Mary E. Vogel
AS ORIGENS SOCIAIS DO PLEA BARGAINING
Volume 9
COORDENADORES DA SÉRIE Augusto Jobim do Amaral Clarice Beatriz da Costa Sohngen Ricardo Jacobsen Gloeckner TRADUÇÃO Caroline Bussoloto de Brum REVISÃO TÉCNICA Ricardo Jacobsen Gloeckner
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Capa e diagramação: Analu Brettas CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de direitos humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra Ex Magistrado do Tribunal Europeu de direitos humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
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Vogel, Mary E. As origens sociais do plea bargaining [livro eletrônico] / Mary E. Vogel; prefácio Ricardo Jacobsen Gloeckner; Augusto Jobim do Amaral, Clarice Beatriz da Costa Sohngen, Ricardo Jacobsen Gloeckner (coord.); Caroline Bussoloto de Brum (trad.); Ricardo Jacobsen Gloeckner (ver.). -1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024. -- (Série Ciências Criminais; v.9) 1Kb; livro digital ISBN: 978-65-5908-710-5. 1. Processo penal. 2. Plea bargaining.3. Política. 4. Tribunais. I. Título. CDU: 343.10(81) Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
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AS ORIGENS SOCIAIS DO PLEA BARGAINING
Volume 9
COORDENADORES DA SÉRIE Augusto Jobim do Amaral Clarice Beatriz da Costa Sohngen Ricardo Jacobsen Gloeckner TRADUÇÃO Caroline Bussoloto de Brum REVISÃO TÉCNICA Ricardo Jacobsen Gloeckner
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS Indescritível a honra de podermos disponibilizar ao público, com o apoio da Editora Tirant Lo Blanch, um espaço singular para as ciências criminais. Uma Série disposta sobre um campo de saber interdisciplinar por excelência, politicamente enraizado, e que concerne à responsabilidade de encontros frutíferos para a decisão sempre urgente de transformar a crise em crítica. A condição atual de normalização da barbárie punitiva historicamente fixada e seus permanentes e violentos desdobramentos necessitam de um pensamento agudo que tenha primordialmente a responsabilidade de questionar este estado de crise. Diante de tamanha relevância temática, abre-se um espaço para investigação interdisciplinar crítica que represente uma ruptura aos esquemas legitimantes postos pelos discursos tradicionais e que demonstre empenho na desconstrução do caldo cultural difuso notadamente com traços autoritários. As inúmeras dinâmicas em matéria de violência punitiva – respaldadas por práticas ardilosamente racionalizadas jurídica e politicamente – em algum sentido, indicam uma biopolítica preocupada com uma governabilidade forjada por narrativas de exclusão/morte e funcionalizada pelas rotinas penais. Às pulsões totalizantes de um poder punitivo, aos afetos de medo que o monopoliza, bem como às suas técnicas securitárias em escala global, requer-se um enfrentamento que não pode se furtar ao aporte interdisciplinar. Assim, para interrogar as tendências e contornos de uma cultura punitiva e estarmos à altura de tempos urgentes, é que as ciências criminais devem fundar seu limiar radicalmente. Afinal, mais diretamente, o que haveria de decisivamente contemporâneo e radical senão o profundamente impossível e necessário traço de convocação ética que a “questão criminal” possa se debruçar? Na fragilidade densa da resistência contra os blocos maciços de sentidos e racionalidades bem pensantes, diante das tendências justificantes da imposição violenta de supostos fins “justos”, talvez reste ainda pulsares, como instantes outros que excedam toda de presença ensimesmada.
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Para tanto, como desafio ímpar, a Série Ciências Criminais foi pensada como abertura fértil a uma qualificada resistência na seara do conhecimento pasteurizado sempre pronto a colonizar o saber nas ciências criminais. Prima-se por garantir o acesso a obras fundamentais nas mais diversas dimensões dos debates relativos à naturalização da violência punitiva. Baseada nesta premissa, a Série possui linhas editoriais plurais. Sua primeira direção tem como princípio fundamental ser um canal de acesso às atuais problematizações nos assuntos de interesse às ciências criminais em ampla escala, no Brasil e no exterior. De um lado, aproximar pesquisas no âmbito nacional, dispondo interfaces entre suas produções e experiências, por outro, construir traduções e possibilitar o diálogo, pontes profícuas a privilegiar a diferença. Permitir que se desenhe o caleidoscópio brasileiro neste campo, juntamente com suas aproximações e distensões ao pensamento alienígena, é contribuir para o encontro com sua própria singularidade e a possibilidade de fazermo-nos outros a nós mesmos. Uma segunda vertente possui acento na reedição de obras clássicas do pensamento das ciências criminais. A dificuldade em se encontrar obras esgotadas, vindas do Brasil e do exterior, que ainda hoje são merecedoras de atenção crítica, encontra-se na base desta linha preocupada com a genealogia do pensamento crítico nas ciências criminais. Emergências estas que, quiçá, acabaram se desviando das principais trajetórias editoriais, habitando injustificável espaço restrito às discussões de pós-graduação, ou um número pequeno de leitores. Nas frestas de uma memória reverberam outros futuros possíveis. Revigorar o debate científico nas ciências criminais certamente passa por aí. Por fim, uma terceira linha a ser contemplada na presente Série cuida de apresentar ao público brasileiro jovens pesquisadores, com obras de vanguarda que procuram oxigenar a atmosfera neste campo. Muitas vezes, o mercado editorial se encontra fechado para autores iniciantes e a tarefa desta linha é a de ajudar que o público tenha acesso a um rico material, represado em virtude da conjuntura do mercado editorial brasileiro. Portanto, em tempos sombrios de naturalização da violência, sobretudo dos dispositivos de punição, em que o embrutecimento do pensamento toma protagonismo, orientado pelos auspícios neoliberais, a urgência radical de alguma inteligência disposta a enfrentar a burrice do
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fanatismo mobilizado pelos fascismos como modo de vida atrofiado pelo terror se impõe. O vazio reflexivo ganha eco, matraqueado pelo senso comum que, em matéria penal, concretamente, não apenas franquia a morte em escala industrial operada pelo sistema penal, mas forja uma expansiva e permanente tecnologia de governo hábil à eliminação da diferença. Responsabilidade diante este estado de coisas é mais que mera questão de engajamento e luta, atualmente trata-se de ponto nevrálgico de sobre-vivência. Porto Alegre, maio de 2017.
Augusto Jobim do Amaral Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, ambos da PUCRS Pós-Doutor em Filosofia Política pela Università Degli Studi di Padova/ITA Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universidad de Málaga/ESP
SUMÁRIO PREFÁCIO.............................................................................................12 Ricardo Jacobsen Gloeckner
INTRODUÇÃO.................................................................................... 19 1. A PESQUISA HISTÓRICA PRÉVIA SOBRE O PLEA BARGAINING...................................................................................... 25 2. CAMADAS DE CAUSALIDADE: ESTRUTURAS, TEMPORALIDADE, EVENTOS...........................................................31 3. PADRÕES DE ADMISSÃO DE CULPA E CONCESSÃO: PRIMEIROS CONTORNOS DA NEGOCIAÇÃO............................... 37 4. TEMPOS DE CRISE: A POLÍTICA POPULAR NA ERA FORMATIVA DO DIREITO................................................................ 63 5. MUDANDO A ESTRUTURA DE CLASSE E O DESAFIO PARA O CONTROLE DA ELITE........................................................................ 64 6. EXTENSÃO DO DIREITO DE VOTO E A POLÍTICA DE CONSENTIMENTO............................................................................. 70 7. A LEI COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA SOCIAL................ 75 8. POLÍTICA SOCIAL NA ASCENDÊNCIA WHIG: O PODER DA ELITE E A PROPRIEDADE PRIVADA...............................................80 9. O ESTABELECIMENTO DA LEI E O LEGADO DO FEDERALISMO PÓS-REVOLUCIONÁRIO.................................................................. 87 10. SOCIEDADE DE MERCADO E RECONSTRUÇÃO RECENTE DA PUNIÇÃO VITORIANA......................................................................90 11. A MICROPOLÍTICA DO CONSENTIMENTO.............................. 93 12. CETICISMO POPULAR: UMA LINGUAGEM DE PROTESTO.....96 13. RECRIANDO A TRADIÇÃO DA LENIÊNCIA EPISÓDICA.........99
14. REPERTÓRIO CULTURAL DO COMMON LAW E DO PURITANISMO................................................................................. 100 15. CONTORNOS DO ESTADO..........................................................107 16. ESTADO CENTRAL FRACO E A ADMINISTRAÇÃO “LOCAL” DOS TRIBUNAIS .............................................................................. 108 17. A POLITIZAÇÃO DOS TRIBUNAIS............................................ 109 18. CONCURSO PARTIDÁRIO E ESTABILIZAÇÃO POLÍTICA..... 113 19. CONCLUSÃO................................................................................. 118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................. 121 Materiais Estatutários e Legislativos (Em Ordem Cronológica)................126 Casos.............................................................................................................. 127 Apêndice A.................................................................................................... 127 Apêndice B....................................................................................................128 Apêndice C....................................................................................................128
AGRADECIMENTOS Esta pesquisa beneficiou-se de doações do Fundo Mark de Wolfe Howe, do Fundo Nuala McGann Drescher, da Sociedade Filosófica Americana e do Fundo Curley. Uma bolsa do Mary Ingraham Bunting Institute do Centro de Estudos e Pesquisas Radcliffe da Universidade de Harvard durante 1992-93 e uma estadia como Visiting Scholar na American Bar Foundation durante o outono de 1996 e como Professor Assistente Visitante na Northwestern University durante 1996-97 proporcionou tempo para o repensar crítico e, acima de tudo, da escrita sustentada. Oportunidades para conversar com Florence Ladd, Morton Horwitz, Ann Thomas, Zipporah Wiseman, Terry Fisher, Aldon Morris, Chris Tomlins e Bryant Garth estimularam muito meu trabalho neste estudo. Em vários momentos, meu trabalho se beneficiou dos comentários de muitos acadêmicos em reuniões profissionais ou em outros fóruns. Orlando Patterson, Mac Runyan, John Gagnon, Judy Tanur, Mark Granovetter, Michael Schwartz, Steve Rytina, Kitty Calavita, David Greenberg, Allen Steinberg, Wilbur Miller, Alessandro Pizzorno, Jonathan Levy, Yu Xie, Rick Lempert e, especialmente Tony Long, contribuiram muito para este trabalho e quaisquer méritos que possa possuir. Suas limitações permanecem, é claro, minhas. Lynn Itagaki forneceu uma valiosa assistência de pesquisa. Os revisores anônimos e os editores ofereceram muitas sugestões excelentes. Francis Shiels, secretário do que hoje é do Tribunal Municipal de Boston, e sua equipe administrativa, especialmente Ann Marie Wren, demonstravam sua genialidade e assistência para fornecer acesso aos principais registros judiciais. David de Lorenzo nas Coleções Especiais na Biblioteca Langdell de Harvard Law School deu generosamente seu vasto conhecimento de materiais legais do século XIX.O Departamento de Sociologia e os membros do Centro para o Estudo da Transformação Social da Universidade de Michigan forneceram animadas comunidades intelectuais para realizar este trabalho. Na Universidade Estadual de Nova York, em Stony Brook, antes disso, muitas dessas ideias foram apresentadas de forma nascente e se beneficiaram enormemente dos comentários dos alunos em meus
seminários de pós-graduação sobre sociologia histórica comparativa e sociologia do direito. Meus agradecimentos a cada um deles. A Autora Visiting Fellow, Centro de Estudos Sociojurídicos, Wolfson College, Universidade de Oxford, Linton Road, Oxford OX2 6UD, Inglaterra (email: mvogel@wjh.harvard.edu)
PREFÁCIO O trabalho da professora Mary Vogel, que tive o prazer de ler e posteriormente revisar a tradução é um daqueles estudos que devem ser inscritos como imprescindíveis para uma boa compreensão do instituto do plea bargaining.1 Todavia, a análise proposta pela autora recua no tempo, procurando oferecer uma explicação compreensiva do instituto, a partir dos dados examinados a partir dos tribunais de Boston, nos Estados Unidos, na transição da primeira para a segunda metade do século XIX. Essa perspectiva, por si só, já coloca o presente texto entre aqueles que oferecem uma interpretação autêntica sobre o instituto. Mas não é só. Um dos pontos de maior vitalidade do texto reside em sua capacidade de, a partir de uma complexa percepção da sociedade bostoniana nesse interregno temporal, extrair as condições políticas, econômicas e sociais que autorizaram o florescimento do plea bargaining. Desde este espectro, a professora Vogel examina o plea bargaining não como uma mera transposição dos episódios de leniência na Inglaterra, que serviram para se construir alguma “cola social” entre as elites e as classes vulneráveis. Esta “leniência episódica” de origem inglesa não foi aquela que se desenvolveu no espaço norte-americano, embora permitisse que o plea bargaining despontasse. A autora aponta uma multiplicidade causal que deu origem aos contornos primordiais do instituto, antes que ele se tornasse o “próprio sistema de justiça criminal” norte-americano. Como bem detecta a autora, havia ali um resíduo de integração de classes que permitiu certa composição social com as camadas sociais proletárias. Por um lado, como bem aponta a autora, as condições políticas e sociais que se deram nos Estados Unidos indicariam uma certa heterodoxia e comistão entre as funções políticas e judicantes dos Estados Unidos. Nesse diapasão, a emergência de um ativismo judiciário característico do sistema norte-americano estaria na própria base da formação do modelo 1
Texto originalmente publicado na Law & Society Review, Volume 33, Número 1 (1999).
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negocial aplicado ao processo penal. As condições políticas e econômicas determinaram que um significativo conjunto de infrações, consideradas como necessárias na tentativa de “formação do caráter” do trabalhador norte-americano fosse edificada. De outro lado, o ativismo judiciário foi, progressivamente, moldando um instituto que tinha suas raízes nas práticas de tribunais religiosos puritanos, a admoestação. Diversamente de outros institutos negociais como o nolo contendere ou o nolo prossequi, que geravam certos incômodos nas classes submetidas ao procedimento judicial, o plea bargaining e sua rápida negociação retirariam o controle estatal pós-acordo. Assim, como bem demonstra a autora, o sistema de deixar os processos “abertos” foi sendo paulatinamente substituído pela prática de uma negociata entre o réu e o próprio sistema de administração de justiça criminal, especialmente nos tribunais de instância inferior, encarregados de dar conta de um conjunto de pequenas infrações. A crise política norte-americana prévia à Guerra Civil foi um dos pontos essenciais para que as classes trabalhadoras fossem controladas e a perda do senso comunitário que ocorreu com a secularização das relações sociais fosse substituída por um sistema de controle fino das ilegalidades, especialmente as menores. Assim, quando o ativismo judiciário permitiu que os tribunais fossem criando institutos capazes de reverter o vazio social deixado pelo colapso da vida comunitária (convergente com os processos de industrialização) e seu sistema de controle social informal, o plea bargaining vai aparecendo como um mecanismo determinante neste período de formação do capitalismo norte-americano. As hipóteses de trabalho da autora não permitem uma convergência fácil para apontar o uso da prisão como mecanismo primordial de controle social da classe operária, hipótese esta difundida por estudos criminológicos de envergadura como Cárcere e Fábrica, de Pavarini e Melossi ou ainda, Punição e Estrutura Social, de Rusche e Kirchheimer. A análise da autora aponta, quando o plea bargaining se apresentava como um instituto capaz de controlar as classes sociais proletárias através de um controle social formal rigoroso (uma enorme teia de infrações penais) que poderiam ser objeto de leniência estatal sem os ônus do controle social via liberdade condicional ou outros mecanismos diversionistas. Mais do que isso, a autora sustenta uma relação estreita entre o efeito preventivo que o plea bargaining deveria produzir assim como a sua funcionalidade vinculada a um modelo no qual a empregabilidade era um trunfo das “classes
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perigosas”. Nesse sentido, como aponta a professora Vogel, a atualidade do plea bargaining em um modelo neoliberal não lograria êxito se o objetivo do instituto for a prevenção à criminalidade, mormente aquelas infrações de menor envergadura. Por outro lado, existem diversas linhas de pesquisa que se desenvolveram em torno da história das ideias criminais com foco no surgimento do instituto da negociação no processo penal. Talvez, de todos estes estudos que buscaram compreender as “origens” do plea bargaining, as hipóteses traçadas pela professora Vogel sejam as mais complexas. Contemporaneamente, um estudo que busque dar conta do instituto do plea bargaining, em franca expansão, deve considerar pelo menos cinco cenários: a) a expansão do direito penal, fenômeno este já detectado por inúmeras monografias ainda nas primícias dos anos 1990 do século XX, como pode ser destacado na obra de Silva-Sánchez La Expansión del Derecho Penal, um texto bastante conhecido no Brasil. Além do fenômeno da expansão do direito penal é possível ao mesmo tempo reconhecer-se o segundo cenário, qual seja, o da “administrativização do direito penal”, mediante sobretudo o advento de um “direito administrativo-sancionador”, que atuaria nos interstícios entre direito penal e administrativo. Um terceiro horizonte que não pode ser olvidado, nesse panorama é a própria crise da estrita jurisdicionalidade, para usar os termos empregados por Ferrajoli, a fim de designar a estrutura mínima que deve arquitetar um sistema de garantias processuais penais. Talvez, mais do que a crise do próprio direito penal, a crise mais profunda que se vive e se viverá no campo da administração da justiça criminal seja a do próprio processo penal. O quarto e quinto cenários são simultâneos e retroalimentares: o impacto da retórica da categoria eficiência e da própria racionalidade neoliberal no direito criminal como um todo (afetando ao mesmo tempo direito e processo penal). A estes cenários pode-se acrescer uma outra perspectiva que não é isolada ou independente das demais. Desde uma perspectiva cultural, pode-se aventar, ainda no século que transcorreu, o surgimento de um processo de “globalização das culturas jurídicas”, especialmente com o implemento da difusão de um modelo adversarial de processo, evidentemente o norte-americano. Ainda que se possa afirmar se tratar de um processo de difusão bilateral (já que se afirma a ampliação do uso de leis nos
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sistemas de common law), este fenômeno é quase sempre unidirecional, ou seja, exportado pela cultura jurídica norte-americana em direção aos modelos continentais. Como exemplos podem-se citar, em contrapartida à ampliação do uso de leis como fontes jurídicas nos países de common law, as doutrinas norte-americanas sobre as regras de exclusão, o uso de precedentes por tribunais superiores em diversos países, além da própria inserção de mecanismos negociais, que, a seu modo, produziriam “reformas acusatórias” na América Latina, uma espécie de “edícula jurídica” capaz de reunir o pior dos dois mundos: aos modelos autoritários que sempre estiveram presentes na América do Sul se somariam os dispositivos negociais, na conformação e cristalização de um híbrido “adversarial-inquisitorial. A produção de uma cultura jurídica norte-americana e sua expansão em direção à colonização dos sistemas continentais não pode ser lida apenas como uma exportação do modelo negocial, o que seria extremamente limitador. Culturalmente se percebe a difusão da teorização conhecida como law and economics, uma corrente de pensamento que, mediante metáforas de duvidosa cientificidade, criam as condições para o uso moral de argumentos pretensamente econômicos (sobre esse uso inadvertido de categorias econômicas já advertia McCloskey há bom tempo). A noção de eficiência é um bom exemplo de uso sem qualquer espécie de rigor no direito brasileiro. Do ponto de vista da racionalidade neoliberal, a expansão dos mecanismos negociais responde à altura os anseios ordoliberais por uma “sociedade de direito privado”. O uso do plea bargaining nos Estados Unidos se destaca pela sua capacidade de transformar e moldar o próprio sistema de justiça criminal. E isso não seria algo propriamente novo, como se pode perceber pelo livro que o leitor tem em mãos. Textos célebres no exame do plea bargaining já apontavam o que se poderia determinar como o “desaparecimento do júri”, como retratou Moley. Este autor chegou, no ano de 1926, na cidade de Chicago, a um percentual de 95% dos casos criminais sendo resolvidos pela via negocial. Moley, em The Vanishing Jury, examinou um total de 13.117 acusações na cidade de Chicago em 1926. Destas, apenas 209 resultaram em uma condenação pelo tribunal do júri. Em grande medida, como aponta o autor, o sucesso do plea bargaining advinha do sigilo processual, que autorizava promotores de justiça a possuir uma altíssima taxa de condenação, sem que fosse necessário arriscar perder o processo diante do júri. Além disso, sustenta o autor, juízes acomodados não arris-
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cariam tampouco eventual revisão do julgado por tribunais. Estes dados se coadunam com os achados de outro texto célebre sobre o uso do plea bargaining. Trata-se do livro The Process is the Punishment, de Feeley. Em sua pesquisa sobre cerca de 1640 casos, através da metodologia da observação participante, Feeley, ao examinar a tramitação destes casos em um tribunal de instância inferior, constatou que nenhum acusado invocou o direito a ser julgado pelo júri. Dentro das camadas históricas sobre a interpretação das razões pelas quais o plea bargaining se tornou dominante nos Estados Unidos, a primeira onda de estudos se debruçou sobre a tese do excesso de casos (pression of heavy caseloads), adstrita à necessidade de tempo para instrução e deliberação pelo tribunal do júri de um caso. Pode-se dizer que similar à tese da “excesso de casos” aparece o argumento, utilizado por Moley, do surgimento de uma “justiça criminal burocrática”, aparecendo o plea bargaining como um dispositivo “desburocratizante”. Ademais, problemas que recairiam sobre os atores judiciais também proporcionariam explicações adicionais para este quadro: advogados indiferentes aos resultados dos processos criminais, promotores cruéis, juízes que encorajariam os acordos a fim de evitar desperdício de tempo e de energia e equipes judiciárias desqualificadas ofereceriam um leque mais amplo para a tese da “justiça burocrática”. Uma segunda geração de estudos sobre o plea bargaining se debruçaria sobre o nascimento, nos Estados Unidos, de um processo bifurcado. A hipótese era a de que um cada vez menor números de casos era tratado por um tribunal do júri com cada vez maiores e mais rigorosas regras ao mesmo tempo em que um número maior de casos seria resolvido sem processo, ou seja, sob a hegemonia dos advogados (incluindo-se, evidentemente, o promotor de justiça). A tese da complexidade do procedimento de julgamento pelo tribunal do júri consiste em uma das mais famosas justificativas para o advento do sistema negocial norte-americano. Além de Feeley (Complexity and the Transformation of the Criminal Process: the origins of plea bargaining), Langbein, em Torture and Plea Bargainig se mostra contrário à tese do excesso de casos. Seria justamente o aumento da complexidade do julgamento pelo júri que teria conduzido ao implemento do plea bargaining como a ferramenta ordinária do sistema de justiça norte-americano. Em sentido similar pode-se encontrar o texto de Alschuler Plea Bargaining and It’s History. Embora autores como Fischer
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sustentem que a teoria da complexidade do júri seria um complemento da teoria do excesso de casos, parece razoável tomá-la como uma corrente autônoma daquela que configurou a primeira geração de estudos. Um estudo que se descola de ambas as análises reside no trabalho desenvolvido por Friedman e Percival intitulado Roots of Justice: crime and punishment in Alameda County. Nesse texto os autores procedem ao exame de casos criminais ocorridos no condado de Alameda, na Califórnia, entre os anos de 1870 e 1910. A hipótese de trabalho dos intelectuais seria que a melhoria nas condições técnicas das investigações criminais, com a crescente profissionalização da polícia seria o fator responsável pela ampliação do plea bargaining. Segundo os autores, sem a tecnologia que permitiu a obtenção de provas mais substanciais, o júri seria a única forma para se obter a condenação de alguém. Impressões digitais, exames sobre o sangue, por exemplo, habilitaram a polícia a encontrar sinais autenticadores da autoria de um crime, atuando como uma verdadeira “fase de instrução”, e tornando a discussão sobre o crime menos dependente de fatores contingenciais do júri. Outro estudo que não pode deixar de ser mencionada é aquela desenvolvida por Fischer, que sustentou o surgimento do plea bargaining no aumento dos poderes do Ministério Público. Segundo Fischer, teríamos como mecanismo originário o on file bargaining, espécie de embrião da liberdade condicional como uma prática dos tribunais, que foi o resultado desse poder conferido ao Ministério Público. Inicialmente o Ministério Público poderia negociar mas não aplicar a pena, enquanto os juízes poderia aplicar uma pena porém não oferecer nenhuma espécie de acordo. Foi somente quando ambas as motivações (de promotores e juízes) se encontraram que o boom das negociações ocorreu. Finalmente, podemos localizar um dos campos de estudos no qual este texto da professora Vogel se situa. Foi justamente as interações entre múltiplos e complexos fenômenos sociais, culturais e políticos que autorizou a emergência da leniência sistemática como produto do ativismo judiciário norte-americano pré-guerra. Assim como Mirski e MConville, Vogel acentua a multiplicidade de fatores que promoveram o plea bargaining. Um cenário mais completo deve levar em atenção as condições micro e macroestruturais, não podendo restar confinadas em análises exclusivas das práticas dos tribunais. São antes as condicionantes políticas,
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sociais e econômicas que determinam uma abordagem mais rica sobre determinado instituto jurídico. A autora consegue, com requintes de detalhes históricos, recontar a história da Boston pré-guerra civil, acentuando a múltipla complexidade que tornou possível o advento da prática judiciária conhecida como plea bargaining. Trata-se de uma obra primorosa, na qual as usuais leituras que se debruça, sobre apenas uma acusa são deixadas de lado em homenagem a uma riquíssima compreensão do quadro social da época. Ricardo Jacobsen Gloeckner Professor do PPGCCRim do PUCRS Pós-Doutor em Direito pela Università Federico II Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná Consultor e parecerista
INTRODUÇÃO Uma característica marcante dos tribunais americanos é a prática generalizada do plea bargaining. Paradoxalmente, a prática recompensa precisamente aqueles que parecem culpados. Ao contrário da percepção popular do plea bargaining como uma inovação ou uma corrupção dos anos pós II Guerra Mundial, este estudo mostra que a prática surgiu cedo na república americana. Em meio ao conflito social forjado pela industrialização, imigração e urbanização durante a Era Jackson, políticos perceberam o potencial de revolução na Europa. Sendo as instituições políticas locais sobressalentes e fragmentadas, os tribunais avançaram como agentes do Estado para promover a ordem social necessária para o funcionamento saudável do mercado, a segurança pessoal e o crescimento econômico. O plea bargaining surgiu durante as décadas de 1830 e 1840 como parte de um processo de estabilização política e um esforço para legitimar instituições de autorregulação - realizações que eram vitais para os esforços dos Whig a fim de reconsolidar o poder político da elite social e econômica de Boston. Para esse fim, a tradição de leniência episódica do common law britânico foi recriado em uma nova forma cultural – o plea bargaining - que atraiu conflitos para os tribunais enquanto mantinha a discricionariedade da elite sobre a política de condenação. Em uma sociedade onde se diz que a “lei é o que os tribunais fazem”, uma característica notável da justiça americana é a prática do plea bargaining. Quando pensamos sobre as origens da lei e da ordem social, muitas vezes minimizamos a atividade humana e, em vez disso, escolhemos destacar o Estado-nação e os poderes de coerção (Arendt, 1958; Meyer e Hannan, 1979; Abrams, 1982; Soysal, 1994). A ação do Estado de cima para baixo eclipsou as formas pelas quais as iniciativas da sociedade civil e os movimentos sociais moldaram o Estado de baixo para cima.2 Só recentemente histórias de voluntarismo local e contestação, juntamente com seus efeitos sobre a formação do Estado, foram amplamente conta2
Abrams (1982) destaca a interação entre agência e estrutura na formação da vida social - um tema celebrado por William Sewell (1980) em sua análise clássica do trabalho e da revolução na França durante o século XIX. É precisamente a relativa falta de ação nas análises pós-estruturais de Foucault (1979) que frequentemente suscita críticas.
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das (Sewell, 1980; Skocpol, 1992; Somers, 1996). Este estudo examina uma trajetória inovadora de transformação local nos tribunais americanos - a ascensão do plea bargaining - que mudou profundamente a natureza da justiça criminal. Ao explorar o plea bargaining, eu examino forças causais e dinâmicas de ritmos temporais variados e realço o poder transformador de eventos em momentos cruciais na história (Sewell, 1996; Gramsci, 1971). Concentrando-me na transformação social, apresento um relato dinâmico, em camadas, sobre como surgiu o plea bargaining. Teoricamente, o início enriquece nossa compreensão da relativa autonomia institucional dos tribunais. Ao focar na mudança como um complemento à reprodução social enfatizada pelo novo institucionalismo, ela também aprofunda nosso conhecimento sobre como as instituições e a cultura se adaptam à contestação e aos eventos disruptivos como parte de um processo constitutivo de mudança social (Vogel, 1988). Embora altamente controversas, as origens do plea bargaining são surpreendentemente obscuras. Embora comumente pensado como uma inovação ou como uma corrupção dos tribunais após a Segunda Guerra Mundial, ele tem raízes históricas muito mais profundas.3 Compreender este início fornece uma maior clareza dos problemas que a prática apresenta hoje. Meu propósito aqui é explicar por que o plea bargaining surgiu, quando e onde, e por que assumiu a sua presente forma cultural. Este estudo mostra que as forças sociais que produziram o plea bargaining são muito diferentes daquelas normalmente atribuídas. A importância do plea bargaining encontra-se no fato de que, no final do século XIX, a maioria dos casos nas cortes criminais estavam sendo resolvidos por esse processo. Embora a imagem popular seja dos julgamentos do júri com a incidência da presunção de inocência, um processo muito diferente tem ancorado as cortes americanas. Para explicar a ascensão do plea bargaining, eu exploro seus inícios na antebellum Boston - o primeiro exemplo sustentado da prática que se sabe existir.4 Boston era um centro nacional de inovação legal a partir do 3
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Plea Barganing é definido aqui como a laboração de um pedido pela defesa, com alegação de culpa em antecipação às concessões do Ministério Público ou do juiz. Pode ser implícito ou explícito e não precisa render concessões em todos os casos. A negociação antecipada é demonstrada por anotações ocasionais de reduções de acusações que acompanham as mudanças de apelação nos documentos. No entanto, os registros da Cadeia de Charles Street (Condado de Suffolk) mostram forte concordância entre as acusações e as prisões que constam no boletim. O acordo incidente sobre as acusações parece ter se destacado apenas depois que os acordos sobre sentenças foram estabelecidos. O reconhecimento de que a ascensão do plea bargaining ainda era inexplicável foi afirmado em 1979, por Malcolm Feeley, como editor de uma edição especial de referência da Law & Society Review (1979a). Feeley observou que, na pesquisa aca-