Luciana Jordão da Motta Armiliato de Carvalho
DesmaterializanDo a espera
como inovações virtuais podem mudar a atitude de usuários de serviços públicos
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Analu Brettas
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
eDuarDo Ferrer mac-GreGor poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil luis lópez Guerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owen m. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA tomás s. vives antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
C325 Carvalho, Luciana Jordão da Motta Armiliato de Desmaterializando a espera : como inovações virtuais podem mudar a atitude de usuários de serviços públicos [livro eletrônico] / Luciana Jordão da Motta Armiliato de Carvalho.
- 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024.
1Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-750-1.
1. Policy feedback. 2. Políticas públicas. 3. Sistema de justiça. 4. Tecnologias de informação e comunicação (TIC).
I. Título.
CDU: 35
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Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Luciana Jordão da Motta Armiliato de Carvalho
DesmaterializanDo a espera
como inovações virtuais podem mudar a atitude de usuários de serviços públicos
Le regard prolongé et accueillant qui est nécessaire pour s’imprégner de la necessité singulière de chaque témoiage, et que l’on réserve d’ordinaire aux grands textes litéraires ou philosophiques, ou peu aussi l’accorder, par une sorte de démocratisation de la posture herméneutique, aux récits ordinaires d’aventures ordinaires.
aGraDecimentos
Em 2019 tomei uma das decisões mais acertadas da minha vida: participar do processo seletivo do programa Doctorate of Business Administration (DBA), oferecido pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas FGV EAESP. Uma inquietação e o sentimento de que eu poderia fazer mais, no âmbito da administração pública, onde me encontro na condição de servidora pública do Sistema de Justiça há mais de 16 anos, foram os principais motivadores desta decisão.
Construí minha carreira na Defensoria Pública exercendo cargos de gestão, apesar de ser Defensora Púbica e da minha formação concentrada no campo do Direito. A partir da minha trajetória e do desejo de ampliar meu campo de conhecimento, iniciei minha caminhada.
Depois de 3 anos e meio, 15 disciplinas regulares, 7 disciplinas extras, 2 disciplinas como Ouvinte na Université de Strasbourg, da Cátedra de Pesquisa Victor Nunes Leal do Supremo Tribunal Federal (STF) para a qual fui selecionada no decorrer do Doutorado e de muita dedicação pessoal, o resultado da minha contribuição é este livro, versão modificada da minha Tese de Doutorado, defendida em julho de 2023 e que apresento à comunidade científica, aos meus pares e também aos usuários de serviços públicos no Brasil.
É na pessoa do Professor Thomaz Wood que inicio os meus agradecimentos, estendendo-os a todos os Professores e Funcionários do Programa Doctorate of Business Administration (DBA) FGV EAESP.
Agradeço à querida Professora Maria José Tonelli pela orientação dedicada durante o período de pesquisa, sempre zelosa não só sobre o meu progresso no curso, mas também sobre a minha carreira e meu futuro profissional, para além da Defensoria Pública. Sou muito grata por este carinho, que será sempre recordado.
Agradeço igualmente à Professora Gabriela Lotta, minha coorientadora e referência no estudo da burocracia de nível de rua, que me acolheu desde o primeiro minuto no seu grupo de orientandos, em seu grupo de estudos e em todos os seus projetos ao longo dos últimos 3 anos e meio. Mais do que orientadora, foi uma amiga querida e hoje é uma companheira de novos projetos e pesquisas. Nossa jornada acadêmica está só começando.
Agradeço também ao Professor Vincent Dubois, Professor de Sociologia e de Ciência Política da Science Po da Université de Strasbourg e pesquisador do Centro de Pesquisa Sociétés, Acteurs, Gouvernement en Europe – SAGE do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS que gentilmente me acolheu em dois períodos de estágio doutoral em Strasbourg, logo após a qualificação do projeto da tese, no início de 2022 e no período final de redação, entre o final de 2022 e no início de 2023. Sempre disponível e acessível, sua produção científica reconhecida mundialmente e seu apoio possibilitaram que as discussões que embasam este livro se aprofundassem através de outras lentes teóricas.
Gostaria, da mesma forma, de agradecer o diálogo e apoio da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, pela disponibilidade de auxiliar-me na construção desta investigação, sempre em busca da qualificação da política pública de acesso à justiça.
Por fim, meu eterno agradecimento a você, Leo. Pelo apoio, pela parceria incondicional e pelo amor, que move o mundo.
lista De imaGens
lista De tabelas
lista De GráFicos
lista De abreviaturas
AACD - Associação de Assistência à Criança Deficiente
AFC – Análise fatorial confirmatória
CAPS - Centro de Atenção Psicossocial
CDHU - Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo
CEPH FGV - Comitê de Conformidade Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos da Fundação Getulio Vargas
CHD - Classificação Hierárquica Descendente
COVID-19 - Coronavirus Disease 2019
CRAS - Centro de Referência de Assistência Social
DJE - Diário da Justiça Eletrônico
DPESP - Defensoria Pública do Estado de São Paulo
EDEPE - Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
IATE - Interactive Terminology for Europe
IRAMUTEQ - Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires
LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados
NASF - Núcleos de Apoio à Saúde da Família
NEB FGV - Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas
OAB-SP - Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo
OG-DPESP - Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
OTRS - Open-source Ticket Request System
ST – Seguimentos de Texto
STF - Supremo Tribunal Federal
SUS – Sistema Único de Saúde
TIC - Tecnologias de Informação e Comunicação
UBS - Unidade Básica de Saúde
introDução
Políticas públicas mudam. Mas como os atores sociais interagem e atuam a partir das mudanças que criam, alteram ou suprimem a oferta de políticas públicas?
Estas indagações deram origem, a partir da década de 1990, a um fértil campo de pesquisas inaugurado por Pierson (1993) por meio do conceito de policy feedback, modelo inserido no institucionalismo histórico (EVANS, 1993) e que defende que políticas possuem um papel de retroalimentação do sistema político, desenhando, moldando e definindo políticas subsequentes (CAMPBELL, 2012). O modelo de análise das políticas públicas de policy feedback leva em consideração as forças políticas dos atores sociais tanto como seus resultados, quanto também como suas causas (PIERSON, 1993).
Entretanto, o papel que o usuário dos serviços públicos desempenha nesta dinâmica passa a ser objeto de reflexão há menos tempo. E isto só acontece a partir da compreensão de que ele é por vezes esquecido nas análises de políticas públicas, tratado como mero destinatário e não como cocriador das políticas implementadas pelo Estado (SCHIFFINO; VAN INGELGOM, 2021). Trata-se de uma tentativa de desvio de olhar, onde o Estado deixa de ser o principal foco de interesse, em busca de uma compreensão sobre o ponto de vista do usuário do serviço público (REVILLARD, 2018) a respeito das mudanças nas políticas públicas.
No campo teórico do modelo de policy feedback, duas linhas de pesquisa investigam a participação do usuário dos serviços públicos. A primeira delas, mais antiga e que conta com um maior número de estudos empíricos, busca discutir o comportamento político do cidadão de forma coletiva, enquanto eleitor (BÉLAND; CAMPBELL; WEAVER, 2022; CAMPBELL, 2012; SOSS, 1999). Já a segunda linha de pesquisas, mais recente, busca avançar na sedimentação dos conceitos a respeito das atitudes dos usuários de serviços públicos (LARSEN, 2019), chamado de policy feedback atitudinal.
O policy feedback atitudinal é a reação das pessoas às políticas públicas. Este tipo de policy feedback pode ser utilizado para mensurar o sucesso de uma política pública, analisando se existe uma adequação desta às necessidades da população, além de servir como subsídio para a tomada de decisão de gestores públicos (BAEKGAARD; LARSEN; MORTENSEN, 2019).
Este livro se filia a esta última linha de pesquisa, que busca compreender como a mudança de uma política pública influencia a atitude do usuário dos serviços públicos com relação a esta mesma política. Mais especificamente, parte-se do interesse pela mudança de uma política pública, após a sua desmaterialização.
Mas o que significa desmaterializar uma política pública? Ela pode ser considerada uma expressão figurativa para identificar o fenômeno através do qual as Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC) são incorporadas pela administração pública como ferramenta para a adoção da virtualização dos serviços públicos colocados à disposição do cidadão.
O termo, ainda pouco utilizado no Brasil, mas já incorporado em outros contextos sociais que discutem os efeitos da adoção de tecnologias virtuais em cenários de e-governos, significa também transformar todos os suportes físicos à concessão da ação pública em suportes digitais ou virtuais (EUROPEAN UNION, 2021).
A aceleração da agenda de incorporação das novas tecnologias pela administração pública merece nossa atenção, já que existem particularidades no contexto brasileiro que dificultam a generalização de estudos e achados advindos de outros contextos culturais e sociais (BÉLAND; CAMPBELL; WEAVER, 2022; CAMPBELL, 2012; LARSEN, 2019).
A imensa desigualdade social vivenciada no país, estruturalmente aumentada pela pandemia do COVID-19, os níveis preocupantes de exclusão e discriminação de populações mais vulneráveis e as características próprias de cultura do país, que indica uma preferência pela oralidade nas suas relações com o estado, são fatores essenciais para os estudos sobre a virtualização das políticas públicas no Brasil.
Ainda, a mudança abrupta de algumas políticas públicas para o formato virtual, ocasionada pela circunstância exógena gerada pela pandemia que atingiu o mundo em 2020, agravado pelo fato de que 12,9 milhões de domicílios no Brasil não possuem computador ou acesso à internet (COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL, 2022), faz com que o fenômeno seja ainda mais intenso e, consequentemente, relevante para a academia e para a sociedade.
É certo que o termo desmaterialização pode, de alguma forma, ser compreendido como uma crítica ao fenômeno da incorporação de inovações digitais pela administração pública. Entretanto, a desmaterialização da ação pública, discutida neste livro, não possui julgamento de valor. Ele tem a vantagem, unicamente, de traduzir de forma precisa o fenômeno de dissolução de uma ancoragem material na implementação das políticas públicas, até recentemente a única forma possível de torná-las reais.
Ainda, para analisar o fenômeno da mudança das políticas públicas através da incorporação das inovações digitais que as desmaterializam, devemos levar em consideração outros fatores. As condições sociais, econômicas e culturais dos usuários (BOURDIEU, 1986; DUBOIS, 2012), a influência dos intermediários que mediam a interação virtual (PÉLISSE, 2019), o tipo de tecnologia digital empregada (CUNHA; MIRANDA, 2013; MORGESON; VANAMBURG; MITHAS, 2011; RAMIREZ-MADRID et al., 2022) e a justificativa do usuário para buscar o Estado, ou seja, o “problema” que busca resolver ao procurar a administração pública em uma política pública de aplicação concreta e tangível.
Os estudos empíricos mais recentes sobre policy feedback nas atitudes dos usuários voltam seus olhos para os Estados Unidos (HETLING; MCDERMOTT; MINGUS, 2008; PACHECO, 2013; SOSS, 1999), Europa (BENDZ, 2017; BUSEMEYER; GOERRES, 2020; ELLINGSÆTER; KITTEROD; LYNGSTAD, 2017; FERNÁNDEZ; JAIME-CASTILLO, 2013) e por vezes Ásia (IM; MENG, 2016; LÜ, 2014), sendo menos numerosos os estudos por meio deste modelo em países do Sul global.
Por outro lado, as investigações giram em torno de políticas públicas específicas, como educação (BUSEMEYER, 2013; BUSEMEYER; GOERRES, 2020; FLEMING, 2014; LÜ, 2014) e saúde (BENDZ, 2015, 2017), implementadas pelo poder executivo, mas são menos comuns os estudos envolvendo políticas no sistema judiciário como a que será aqui apresentada: a política pública de acesso à justiça.
Ainda, uma parte dos estudos recentes realizam investigações empíricas em momentos de criação (BENDZ, 2017; FLEMING, 2014; PACHECO, 2013) ou de supressão de políticas públicas (FERNÁNDEZ; JAIME-CASTILLO, 2013), mas um número menor de estudos são voltados para mudanças incrementais pela administração pública – como no caso da adoção das TIC.
Por fim, a questão temporal para observação da alteração de uma política pública e seus efeitos na atitude dos usuários também é relevante. Estudos que buscam compreender os efeitos de policy feedback comumente analisam períodos extensos, com recortes temporais longos (GARRITZMANN, 2015; JORDAN, 2010; PACHECO, 2013), muitas vezes com dados de painel (BUSEMEYER; GOERRES, 2020; BUSEMEYER; IVERSEN, 2014).
Todos estes ingredientes constroem o objeto de reflexão deste livro: como a desmaterialização de uma política pública afeta as atitudes dos usuários em relação a esta política (policy feedback). Além disso, como podemos avaliar os impactos da mudança da política pública na atitude do usuário a respeito do órgão público que adota as inovações virtuais? Estas mesmas mudanças também afetam a percepção do usuário sobre sua capacidade de acessar a política pública?
Para responder a estas indagações, fatores como as condições culturais, sociais e econômicas dos usuários (BOURDIEU, 1986); a presença dos intermediários para o acesso à política pública; os tipos de demanda apresentados pelos usuários ao órgão público e os diferentes tipos de TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) utilizados pelo órgão público são igualmente relevantes.
1.1. a política pública em transFormação DiGital: nota metoDolóGica
Para buscar compreender a complexidade desses cenários, foi realizado um estudo de caso único (CRESWELL, 2014) que combinou técnicas distintas de coleta de dados e foi conduzida no Brasil, em um órgão componente do Sistema de Justiça encarregado da implementação da política pública de acesso à justiça: Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP).
A política pública de acesso à justiça é aquela que garante orientação jurídica e defesa, em todos os graus de jurisdição, dos necessitados e é implementada de forma institucionalizada no Brasil mediante um órgão autônomo e específico atribuído desta função, pertencente ao sistema de Justiça. A partir de fontes documentais e entrevistas com usuários do serviço público, foram analisadas manifestações espontâneas de usuários da política pública dirigidas à Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (OG-DPESP).
Estas manifestações são divididas três períodos distintos de implementação da política pública: presencial, virtual e híbrido. Todas elas estão indicadas com a nomenclatura “Ticket”, para identificá-las a partir de sua análise.
No período presencial, as manifestações recebidas pela Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública entre março de 2019 até fevereiro de 2020 têm a prevalência da oralidade.
No segundo período, o virtual, surge a transformação contingencial desta política pública para um contato virtual com o cidadão, em razão da pandemia do COVID-19, entre março de 2020 até fevereiro de 2021.
Finalmente, no terceiro momento híbrido para a implementação da política pública, a opção pelo uso das TIC não é mais fundada em uma contingência exógena, mas em uma decisão de gestão do órgão público e corresponde ao período de março de 2021 até fevereiro de 2022.