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Maurício Zanotelli

Dignidade Humana Global

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Diagramação e Capa: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

Eduardo FErrEr Mac-GrEGor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

JuarEz tavarEs

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis LóPEz GuErra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owEn M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA toMás s. vivEs antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

Z36 Zanotelli, Maurício

Dignidade humana global [livro eletrônico] / Maurício Zanotelli; Prefácio Vicente de Paulo Barretto, Alfredo Culleton. -1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024.

1Kb; livro digital

ISBN: 978-65-5908-723-5.

1. Dignidade da pessoa humana. 2. Conceito. 3. Hermenêutica. I. Título.

CDU: 342.7

Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Maurício Zanotelli

Dignidade Humana Global

Ao meu avô, Jordão Pinto da Silva Neto (in memorian).

“Não sou nem ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo”
Sócrates
PrEFácio ............................................................................................................. 9 Vicente de Paulo Barretto e Alfredo Culleton 1. notas PrELiMinarEs ....................................................................................... 10 2. PEssoa huMana E diGnidadE: diFErEnça E dEsiGuaLdadE dE dirEitos ............... 24 2.1. A dimensão valorativa da pessoa humana .................................................................. 24 2.1.1. O valor moral e o valor ontológico: da diferença ao direito..................................... 25 2.1.2. O valor material e o valor espiritual: por uma concepção de dignidade humana para além da percepção material de pessoa ............................................................................... 29 2.2. A gênesis filosófica da pessoa humana: uma breve aproximação ................................. 33 2.3. A dignidade humana em Pico della Mirandola: a contextura do antes e depois .......... 46 2.4. O conceito de dignidade humana no desvelar dos critérios kantianos 61 2.4.1. Núcleo conceitual de dignidade da pessoa humana: pessoa (homo noumenon), moral (reino dos fins), autonomia (liberdade) e respeito (humanidade) 67 2.4.2. Juízo da Dignidade Humana Global ...................................................................... 79 3. tExtos E contExtos à (rE)construção da diGnidadE da PEssoa huMana ......... 82 3.1. O Eurocentrismo e a primeira salvaguarda da dignidade humana na América Latina 82 3.2. Direitos, Declaração Universal e Dignidade: humanos(a) .......................................... 87 3.3. Os Direitos Humanos como vetor de boa governança ............................................ 105 3.4. Globalização e Cosmopolitismo: a dignidade humana no cosmos ........................... 110 4. hErMEnêutica Jurídica E a coMPrEEnsão da diGnidadE huMana PósMEtaFísica ....................................................................................................... 126 4.1. Um olhar interior e a constituição do sentir: a dignidade da pessoa humana global como imaginário social moderno? .................................................................................. 126 4.2. A revolução heideggeriana na construção do conhecimento e a dignidade humana como condição de possibilidade ..................................................................................... 133 4.3. A Hermenêutica Jurídica no acontecer de sentido da dignidade da pessoa humana ..... 142 5. Ética hErMEnêutica E a autonoMia do dirEito: uMa rEFLExão Ética na intErPrEtação Jurídica ................................................................................... 155 5.1. Direito e Filosofia: a transdisciplinariedade de um diálogo 155 5.2. Estado, Constituição e Dignidade Humana ............................................................ 160 5.2.1. A dignidade da pessoa humana positivada na ordem constitucional dos Estados: alguns exemplos na Europa, América Latina, África e Ásia ............................................. 172
suMário

5.2.2. A dignidade da pessoa humana em estudo comparado: breves aproximações entre Brasil, Portugal, Espanha, França e Itália ........................................................................

5.3. Ética Hermenêutica: pela(s) resposta(s) correta(s) em Direito

6. a diGnidadE da PEssoa huMana EM JuLGaMEnto: Estudo dE caso no suPrEMo tribunaL FEdEraL brasiLEiro E no tribunaL dE Justiça da união EuroPEia ......... 199

6.1. O julgamento histórico da ADI 3510 pelo Supremo Tribunal Federal: a busca pelo ponto de estofo do sentido

6.2. A dignidade da pessoa humana entre os direitos nacional alemão, comunitário e internacional: o caso Omega no Tribunal de Justiça da União Europeia..........................

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190
199
217 6.2.1. Visão analítica do caso Omega 219 6.2.2. O conceito de
Pública
dignidade humana
direito nacional
direito comunitário
225 6.2.3. O juízo da dignidade humana e
jogo simulador
homicídios 227 7. considEraçõEs Finais .................................................................................. 236 rEFErências bibLioGráFicas ............................................................................. 258
Ordem
e a
correlata: uma tensão entre o
e o
.........................................................................
o
de

PrEFácio

Kant sustenta, na sua Metafísica dos Costumes (1797), que as pessoas, como fins em si mesmas, têm dignidade. Mas o que é dignidade? Até o último século, “dignidade”, do latim dignitas, valor, se referia a um alto status social associado à aristocracia, cargos de poder e altas funções eclesiásticas. A dignidade distinguia assim as pessoas socialmente importantes dos hoi polloi, os muitos, o vulgo, que não tinham dignidade. A visão de Kant de que toda pessoa tem dignidade marca, portanto, uma revolução na visão de que apenas pessoas moralmente boas ou investidas de poder tinham dignidade. Os comentaristas discordam sobre como entender o que Kant quer dizer com dignidade. Mas a interpretação mais comum é que a dignidade é um valor objetivo de um ouro tipo, distinto, que é absoluto, não condicionado às necessidades, desejos ou interesses de ninguém, um valor que todos têm e uma razão primordial a ser reconhecida no outro; intrínseco, inerente, não concedido ou conquistado e não sujeito a ser perdido ou confiscado; incomparável, intransferível e a mais alta forma de valor. Isto que parece tão claro e evidente quando visto de maneira abstrata, na hora de ser aplicado pelo Direito e seus operadores, se torna motivo de mal-entendidos, manipulações e arbitrariedades de todo tipo.

É justamente por isso que este trabalho do Mauricio Zanotelli é urgente. Nesta obra, o Zanotelli situa o conceito numa perspectiva histórico-hermenêutico-conceitual, visando trazer luz sobre uns dos fundamentos constitucionais mais fortes e menos conhecidos pela tradição jurídica. Ele o faz de maneira meticulosa, transitando por diversas tradições teóricas em busca de um denominador comum que auxilie o leitor na compreensão e eventual aproveitamento nas atividades práticas da Política e o Direito. A riqueza da bibliografia utilizada não só mostra a erudição do autor como representa um exaustivo levantamento bibliográfico que dá suporte a quem quiser dar continuidade aos estudos sobre o tema.

vicEntE dE PauLo barrEtto1 aLFrEdo cuLLEton2

1 Pós-doutor pela Maison des Sciences de L´Homme, Paris. Livre-docente em Filosofia pela PUCRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA. Presidente do Fórum de Filosofia, Ética e Sistemas Jurídicos da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

2 Pós-doutor no Medieval Institute - University of Notre Dame - USA. Professor no Programa de Pós-Graduação em Humanidades na Universidade Franciscana.

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1. notas PrELiMinarEs

A dignidade é o bem de maior valia para o ser humano ou, pelo menos, deveria ser. Nessa questão, vislumbra-se uma “oculta” fronteira entre razão, moral e religião tanto de definição de pessoa humana, como em sua dignidade, tendo em vista que, desde a Antiguidade até o Renascimento, Deus era a razão. Assim, acabou-se por fomentar uma tensão que se arrastará pelo decurso da história da humanidade – em se tratando de pessoa humana em dignidade. Por ser a razão o mote humano - é, através dela, que classes em massa são movimentadas, sustentando um verdadeiro Poder de comando diante das pessoas. E, por tratar-se de pessoa, é ela, a razão, quem dirá o que é pessoa – por exemplo. A definir dignidade. Começa-se, desse modo, a perceber-se a real dimensão de submissão das pessoas governadas pelos interesses de quem diz a razão. Uma vez que, a partir do que se diz como sendo o correto – constitui-se como um precedente a ser seguido, em seu nome, dignidade. Como consequência, a gênesis da dignidade da pessoa humana esteve sempre, de uma forma ou outra, correlacionada com o desenrolar das angústias da sociedade, pelo definir de pessoa, pelo delinear de cidadão – ditos pela razão. Ela que foi Deus.

Nesse contexto, a Escritura Sagrada definiu, como pessoa, a criação de um ser à imagem e à semelhança de Deus. A partir daí, a doutrina social da Igreja começou a desenvolver a unidade da Santíssima Trindade, principalmente, por meio de Santo Agostinho – que engrendrou também a conceituação de pessoa, ou seja, tinha-se um Deus uno e trino: pai, filho e Espírito Santo. A dignidade do ser humano trilhava pelas suas posses e pelas posições das pessoas na sociedade, logo, nem todos os humanos eram cidadãos. Sendo assim, pessoa humana e cidadão detinham significados diversos, naquela época. Em meio a essa tensão, a dignidade estava mais próxima dos cidadãos do que das pessoas humanas à imagem e semelhança de Deus, isso porque elas não tinham direitos, na classe social.

Na Filosofia, os pensadores epocais da era clássica, como Platão e Aristóteles, dedicaram-se também à lei e à razão. De uma forma mais abstrata, Platão comentava o Direito como sendo as leis e atribuía um terceiro elemento para a alma, até então tida como razão e paixão: o espírito. Segundo ele, o espírito exerceria função auxiliar à razão, uma vez que, para o filósofo, um homem bom seria aquele cujas paixões fossem governadas pela razão. Aristóteles, em um primeiro momento, cumpriu-se do fundamento teleológico, qual seja a felicidade. Na Filosofia de Platão e Aristóteles, o mundo estava em Deus e a Lei era a sua vontade, nesse primeiro pensar.

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Aristóteles passou a refletir a vida prática em uma ética orientadora da vida nascente, de uma visão voltada para a razão lógica, em que o homem prudente constituiu-se em um justo meio. A metafísica do pensador associou-se a São Tomás de Aquino – percebendo-se que o Direito é a normatividade e que a razão deve levar a Deus. Ele que permanece como fundamento de todo o sistema normativo, entretanto, naquele contexto, o fundamento teleológico era a razão –uma felicidade pela razão.

Há de se entender por metafísica, conforme Oliveira,1 a permanente tentativa de negação da finitude, de uma negação de superação da temporalidade. Ela é a pretensão de uma verdade absoluta.

Nessa perspectiva, a Filosofia fez-se chegada ao Cristianismo para pensar a razão, conduzir ao certo, à felicidade – razão dita pela Igreja, que detém a palavra de Deus. Por isso, quem não nascesse cidadão, igualmente não morreria cidadão. O Poder estava hierarquizado nas mãos do Papa e, para ele, os Senhores Feudais deviam e pagavam impostos – na forma da hierarquia do Poder.

Em continuidade, volta-se o pensamento para o século XXI (em um “salto” temporal) e ainda se identificam pontos de contato que marcam a posição da dignidade da pessoa humana, hodiernamente, em submissão ao Poder, tal qual exercido, por exemplo, na Idade Média. No presente século, quem é o Deus que dita quem tem dignidade? Ou, quem diz a palavra de Deus?

O mundo avançou na consolidação da liberdade para o ser humano, o que fortaleceu de igual monta as diferenças entre os homens, sendo que, através das diferenças, instituiu-se a imposição de interesses aos mais fracos pela política de verdadeiros extermínios – almejando-se o Poder. A diferença entre os humanos, das mais variadas formas, seja ela de raça, cor, etnia, religião, posses econômicas etc. – revelou as mais horríveis páginas de um desrespeito, para dizer-se o mínimo, ou o que se afirmar sobre massacres de populações inocentes, tirando-lhes a vida ou se aproveitando delas para os objetivos outros? Expôs, e ainda está a demonstrar, infelizmente, as situações mencionadas de indignidades. Logo, a diferença que há entre os humanos apresenta-se como condição para a indignidade aos olhos de falsos Deuses que dizem a razão no século XXI, e as massas populares, que são maioria numérica, mas minoria em posses, submetem-se às palavras dos seus Deuses. Submissão pela sua indignidade, pela sua miséria humana, fraqueza na ascenção ao Poder. Submissão fácil a quem submete. Por isso, a maioria da população está submetida - tornando-se uma minoria em expressão cidadã, sem força política, econômica. Nessa concepção, as grandes massas tornam-se

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1 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 231.

sem palavra, sem respeito perante o Poder a que estão submetidas, estatal ou não, tornando-se uma maioria de desamparados, isto é, uma maioria conduzida.

E o Poder Judiciário o que tem feito, como tem se manifestado perante a dignidade da pessoa humana, levando em consideração às indignidades sofridas pelas minorias/maiorias?

O Poder Judiciário, em nosso país, por vezes, não consegue libertar-se das crises (principalmente da hermenêutica) em que o Direito fracassou e não conseguiu evitar os notáveis danos, as indignidades etc. O Direito brasileiro, ao mesmo tempo em que evoluiu com a Constituição de 1988, obscureceu por não conseguir efetivar o seu texto constitucional. Criando um largo percurso entre a Constituição formal e a realidade social de seu povo – uma distância enorme entre a Constituição e a sociedade. Um vácuo: em que, de um lado, tem-se o texto formal e, de outro, materialmente, não se consegue efetivá-lo. A superação das amarras dualistas objetificadoras da metafísica clássica mostra-se fundamental na busca pela concretização da Constituição, em tempos adiantados de século XXI. No entanto, a filosofia da consciência, ou seja, a metafísica moderna, que se mostrou propensa a superar a objetificação, passou a formar um sujeito individualista justamente por esse eu pensante, fruto de sua consciência livre, projetando-se solipsistamente. O que, pelo processo compreensivo do Direito, também há de ser superado. A proposta que se forma é pela matriz filosófica hermenêutica, em que a atribuição de sentido não está objetivamente nas coisas, nem subjetivamente no pensamento pensante – mas, na linguagem.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi quem inaugurou, em seu artigo 1°, inciso III, a dignidade da pessoa humana na condição de princípio pátrio do Estado Democrático de Direito. Por outro lado, a sociedade, que se resta globalizada, em constante mutação, gera complexidades das mais extremas, que se fazem resultar em novos direitos que emergem em cada situação de conflito – e que, cada vez mais, clamam pelo Poder estatal, pelas suas soluções. Chega-se a uma situação tal, que a sociedade não consegue viver mais sem o ordenamento jurídico, pelo atual sistema. O Poder Judiciário tem de responder aos questionamentos, com o mundo em crises. Realmente, um desafio aos juristas. Talvez seja por isso também que o Direito é complexo e está a exigir cada vez mais de seus intérpretes.

O século XX contemplou o jurista para que se mostrasse mais eficiente. Quer-se dar destaque, aqui, para a viragem-linguística-ontológica proposta por Martin Heidegger. Além disso, aquele século instigou o jurista ao evidenciar o surgimento das novas dimensões de direitos no constitucionalismo contemporâneo. Ademais, o século XX, em sua segunda metade, demonstrou a relevância da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer.

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Com efeito, as decisões, no Direito, permanecem taxativas pelo que já está pronto e acabado, ficando a cargo do seu operador (sic) descarregar os textos da decisão emoldurada ao caso que se apresente – como se estivesse operando uma retroescavadeira que, através de sua concha, tapa os buracos com terra, onde a máquina carrega terra, que já está sempre pronta, tapando-se os buracos que se apresentam: eis o operador do Direito? Ou, expresso de outro modo: as decisões no Direito permanecem resvalando pelas compreensões nas quais o sujeito ignora a regra e passa a julgar conforme “eu penso”. Exemplifica-se tal situação para a sua melhor compreensão: (utiliza-se um exemplo elucidado pelo Professor Carlos Roberto Velho Cirne Lima em uma de suas aulas) quando se tem apenas um carro no mundo, pouco importa se ele trafegue pela esquerda ou pela direita de uma estrada; contudo, se houver dois carros – e decidir-se que, em determinado sentido, o tráfego deve fluir pela esquerda, a regra é para ser cumprida – já que se o condutor não o fizer, está-se à beira do caos. Nessa condição, não se pode decidir como bem entender cada indivíduo sobre o tráfego de veículos. No caso em tela, a armadilha concentra-se na pergunta: o que você acha do tráfego de veículos, ele deve fluir em que sentido? E o jurista responde: “eu penso” que deve ser (...). Ou seja, se há uma Constituição (regra), nesta etapa, pouco importa o que o sujeito ache, a resposta dá-se na e pela Constituição. Portanto, não somos operadores do Direito. Tampouco poder fazer o que bem se entede com a Constituição. Somos juristas, intérpretes – seres pensantes na e pela Constituição, por sua efetivação social – em que a Lei sozinha não se autoaplica e nem deve permanecer sozinha em nossa aplicação.

Assim sendo, resta à Constituição Federal ser efetivada, isto é, levar-se a cabo os preceitos que emanam dela. Aliás, o que é dignidade humana? Está positivada, sim – mas seu conceito, não. Então, o que é? Posso aplicacá-la conforme eu bem entender, já que não tem lei dizendo o que ela é?

Algumas respostas, equivocadamente, alcançam os mais diversos ambientes, como também fundamentam quase toda e qualquer petição, reclamaçãoprincipalmente, quando o jurista não encontra amparo legal para sua propositura – traduzindo-se como qualquer coisa de acordo com o que se precisa dizer ou fundamentar. Em outros termos, não havendo fundamentação legal ou havendo a necessidade de complementá-la, a dignidade humana estrela como um discurso de eloquente interesse pessoal e político – com roupagens jurídicas. Serve como argumento para tudo e todos, o que pode significar um nada de sentido, ferindo a sua própria essência. Vicente Barretto bem elucida essa percepção ao referir, no prefácio do livro Dignidade, que essa palavra (dignidade) tem sido empregada tanto para encobrir como para julgar, tudo parece encaixar-se ou referir-se; “um conceito usado indistintamente por liberais, democratas e autoritários, todos

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procurando vestir com o manto sagrado da dignidade práticas contraditórias”.2 Schopenhauer já denunciava que a expressão (dignidade do homem) tornou-se santo e senha de todos os moralistas confusos e frívolos e que a expressão escondia sua falta de fundamentos ou, para todos os efeitos, de um fundamento que tivesse qualquer significado.3

Assim considerada, a dignidade humana carece de um reconstruir. Uma reconstrução que diga o que é pessoa humana em dignidade e, além disso, avance até sua applicatio – o momento do ponto de estofo do sentido. O que se compreende pelo artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal e como se vê aplicada a dignidade humana pelos Tribunais é a problematização apresentada neste estudo.

Nessa ótica, a superação ao pensamento objetificante para reconstruir a dignidade da pessoa humana como condição de possibilidade à universalização constitui-se como uma efetiva aplicação ancorada como hipótese dessa proposta investigativa. Ela tem seu tema centrado na dignidade da pessoa humana, com sua delimitação temática na reconstrução jurídica do que é dignidade da pessoa humana e sua aplicabilidade no Direito.

Sob esses olhos é que nasce esse projetar, a partir de um diálogo com a Filosofia, haja vista que a definição de dignidade humana é uma tensão genealógica da Filosofia. Assim sendo, resgatam-se os critérios kantinanos de dignidade, quais sejam: pessoa (homo houmenon), moralidade (reino dos fins), autonomia (liberdade) e respeito (humanidade) – para chegar-se ao juízo da dignidade da pessoa humana. Juízo que se colocará à prova perante o caso concreto, para vislumbrar-se as situações de desobediência à dignidade humana. Em tal momento, ela é vislumbrada por esta investigação, fazendo-o em quatro fases: i) até o Cristianismo; ii) Em Pico Della Mirandola; iii) Em Immanuel Kant; iv) Pós-Segunda Guerra Mundial. Desse modo, com a Filosofia hermenêutica heideggeriana, pode-se compreender esses critérios como um desvelar linguístico que acontece diante do caso concreto, ao estarem dotados do caráter temporal para a interpretação. Expresso de outra forma, é pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer que os critérios definidores de dignidade vêm à fala como um evento da experiência hermenêutica, como ser no mundo. Experiência deve ser compreendida como a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo4 - pois uma das tarefas da hermenêutica, como teoria filosófica, é essa elucidação. Assim, a estrutura compreensiva pertence ao Dasein (ser-aí), um ente privilegiado por

2 ROSEN, Michael. Dignidade: sua história e significado. Trad. André de Godoy Vieira. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015. p. 11.

3 A, Schopenhauer. On the Basis of Morality. Hackett, 1965. p. 100. Apud: ROSEN, Michael. Dignidade: sua história e significado. Trad. André de Godoy Vieira. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015. p. 23

4 GADAMER, Hans-Georg. Verdade y Método II. 5. ed. Tradução de Manuel Lasagasti. Salamanca: Sígueme, 2002. p. 114.

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essa condição. Dessa forma, tal estrutura compreensiva (heideggeriana), isto é, a estrutura do pensamento compreensivo hermenêutico do homem acontece em unidade com o mundo (In-der-Welt-sein), sendo a sua compreensão ponto nodal para a fenomenologia hermenêutica, porque o logos5 da fenomenologia do dasein tem o caráter de hermeneuein que anuncia à compreensão do ser, incluso no ser-aí, o sentido autêntico do ser em geral e as estruturas fundamentais de seu próprio ser.6A estrutura compreensiva heideggariana, assim sendo, é exaltada por Gadamer, pela nobreza do filósofo da Floresta Negra “quando descobre no suposto ‘ler’ o que ‘lá está’ a pré-estrutura da compreensão”,7 diga-se, um sentido que se antecipa, uma estrutura compreensiva que antecede. Por essa razão, a expressão “pré-estrutura”, em que pré pode ser suspenso pela sua inautenticidade ou confirmado como um pré-juízo autêntico, adequado, justo. Esse pensamento circular é desenvolvido por Gadamer em Verdade e Método, justificando a desconstituição do método que, por conseguinte, sempre chega tarde, porque a estrutura compreensiva já compreendeu. Assim como o mundo, a linguagem também tem uma estrutura; a compreensão do mesmo modo tem a estrutura do algo como algo. Então a filosofia já é sempre hermenêutica. Sempre temos que interpretar de alguma maneira.8 Esse é o destino: a compreensão da dignidade da pessoa humana.

Por fim, uma reflexão “ética hermenêutica” ainda comunica a validade dessa applicatio de dignidade da pessoa humana, que acabou de ser definida, no caso concreto, como uma resposta correta em Direito. Observe-se, porém, que esse caso concreto vê-se examinado sob essa estrutura. Ressalte-se que um dos precedentes sob apreciação, no estudo de caso, trata-se de um julgamento histórico no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal – refere-se à Ação Direta de Inconstitucionalidade número 3510, que questionou a constitucionalidade das pesquisas com células tronco-embrionárias no país, frente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, em estudo de caso, tem-se a análise do Caso Omega, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em que se traz à baila as discussões de dignidade da pessoa humana frente ao direito nacional, comunitário e internacional, enfatizando a “ordem pública”, na Alemanha.

Destarte, o núcleo do embasamento teórico projetado assenta-se na Filosofia de Immanuel Kant, em um resgatar de seus critérios de dignidade humana,

5 Conforme Mora, o conceito de logos vem do grego e pode ser traduzido por uma série de palavras como “expressão, pensamento, conceito, discurso, fala, razão, inteligência. O verbo derivado de logos se traduz por falar, dizer, contar uma história. O sentido primário do verbo (logos) é também reconhecer, reunir: se reconhecem as palavras como se faz ao ler e obtém então a significação, o discurso, o dito”. In: FERRATER MORA, José. Dicionário de filosofia. 5. ed. Tomos I e II, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1965. p. 87.

6 STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001. p. 187.

7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. v. 1. p. 405.

8 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipurs, 1996. p. 20.

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para que, com Heidegger, possa-se lançar o intérprete compreendedor à linguagem como condição de possibilidade para essa compreensão. Nessa percepção, a Hermenêutica Filosófica de Gadamer, pela applicatio, enseja ao intérprete a sua construção da ponte interpretativa entre o horizonte passado, presente e futuro. Ainda, segundo Jesús Conill Sancho, realiza-se uma reflexão ética hermenêutica nessa aplicação, fechando, assim, o núcleo de matrizes teóricas desenvolvidas.

Como já se discorreu sobre os métodos de pesquisa, em outras palavras, do propósito do trabalho, abrem-se considerações sobre a metodologia utilizada, isto é, o tipo de pesquisa e a forma como ela foi realizada.

Do ponto de vista da forma de abordagem, a pesquisa é qualitativa, ao considerar uma relação dinâmica entre o mundo e o sujeito em um vínculo indissociável composto pelo objetivo e pelo subjetivo (não se fazendo um esquema dualístico metafísico) – que não pode ser traduzido em números, em oposição, pois, à pesquisa quantitativa. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória (não sendo descritiva ou explicativa), ao proporcionar maior familiaridade com o problema aos propósitos de torná-lo explícito e construir hipóteses, envolvendo levantamento bibliográfico e análise de exemplos que estimulam a compreensão, ou seja, assume-se uma investigação bibliográfica e dois estudos de caso.

Sob a perspectiva dos procedimentos técnicos, a pesquisa é bibliográfica (não sendo a documental, nem experimental) – pois se vê redigida a partir de obras já publicadas, constituída de livros, artigos de periódicos especializados, assim como de material disponibilizado na internet. Quanto ao método de abordagem, ela procura ser, em parte, fenomenológica (Husserl-Heidegger), ao preocupar-se com a realidade construída socialmente e entendida como se quer compreendê-la e interpretá-la; dessa forma, o sujeito/intérprete faz-se imprescindível na constituição do conhecimento, na descrição direta da experiência em seu construir e, em parte, indutiva, ao desenvolver a partir de algo já escrito.

A seguir, apresenta-se o plano de análise deste livro.

Para a consecução dos objetivos propostos pelo projeto apresentado, isto é, uma reconstrução da dignidade humana em resposta ao seu conceito e aplicação, o trabalho contempla-se em cinco capítulos.

No primeiro: pessoa humana e dignidade: diferença e desigualdade de direitos – quer-se retratar a genealogia da pessoa humana em dignidade, porque, para que se possa estruturar um reconstruir, faz-se necessária a demonstração do que se construiu e o motivo dessa nova investidura. Para isso, abre-se esta pesquisa com uma passagem significativa, ou seja, a diferença, visto que notar e respeitar a diferença são imperiosos procedimentos para a condição da pessoa humana, na sua dignidade. Atentando para esse viés é que se intitulou “da diferença ao direito” – com o compromisso de desvelar sobre qual diferença reflete-se, ou ain-

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da onde há tal diferença e em que plano refeletem. Desse modo, a diferenciação condiz entre o valor moral e o valor ontológico – que, não raras vezes, passa-se entificado, e pela diferença que há entre as pessoas, elas não são iguais, acabando por gerar, erroneamente, desigualdades. Entretanto, honrando a proposta da pesquisa apresentada, essa diferença justificará o Direito daqueles que assim se fazem diferentes. Proposto de outra forma, é, pelo respeito à diferença, que se revertem os quadros de indignidade e de desigualdade, tendo em vista que essa diferenciação entre valor moral (o que se faz) e ontológico (o que se é) deverá fortalecer as condições de uma compreensão neste sentido, em que se viu despertado o valor intrínseco da pessoa humana - diferenciando, igualmente, seu valor material (ter) de seu valor espiritual (ser).

Em “gênesis filosófica da pessoa humana” – uma preocupação: procede-se a um autêntico histórico de forma breve, por não ser o foco propriamente da investidura, mas que relate as ânsias da essência desenvolvida sob o manto conceitual de pessoa. Dessa forma, pessoa e dignidade ganham tímidos rumores nos textos e na sociedade, desde a Antiguidade. A definição de pessoa na Grécia antiga, a democracia ateniense e a transição romana da Monarquia Teocrática em República foram desenhando o trilhar da dignidade da pessoa humana. Dignidade que foi definida pela palavra de Deus na Escritura Sagrada e que, dentre os embates da palavra de Deus e da razão, traça os indícios da evolução do conceito (pessoa), pelo filosofar de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Boécio, São Tomás de Aquino. O tema dignidade humana estava ainda submetido à hierarquia do Poder centralizado, no entanto, já abordado pela Filosofia ainda que, por muitos, indiretamente.

Ademais, em meio à ascensão do movimento renascentista, a dignidade humana encontrou, no Conde della Mirandola, um dos mais notáveis trabalhos da época. Ele foi quem usou a terminologia “dignidade humana” pela primeira vez, com um enquadramento tanto mais desprendido da palavra e da razão ditadas por Deus, ou seja, pelo Poder – pois, segundo o pensador, o grande milagre é o homem. Retrata-se, em suas importâncias, antes do Renascimento, a dignidade humana aos comentos de São Basílio, Ambrósio de Milão, São Gregório de Nissa – ainda, na carta do Papa Leão Magno - neste capítulo, que ora se apresenta. Mas, a primazia do estudo reserva-se para a Oratio, em suas novecentas teses defendidas pelo filósofo renascentista (Pico della Mirandola), que renovou a concepção de homem da Idade Média, fundada pela abertura do Humanismo como valor, desbravando um novo horizonte para a dignidade da pessoa humana. E, assim como se corroborou aspectos anteriores à filosofia renascentista, o posterior também se faz tematizado, em que se aflora na Idade Moderna, um libertar dos pré-conceitos da condição humana ante a secularização da dignidade de todo o ser humano. Por conseguinte, a significativa liberdade de espírito crítico dos homens

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– em 1643, na França, restringe-se pela instituição do Poder absoluto do Rei Luis XIV, consignada pela obra de Thomas Hobbes, em um controle exercido pela norma civil, pelo Estado (Leviatã). Momento, aliás, em que a classe da burguesia emergia pelo comércio das especiarias e, logo, revelou-se como classe altamente promissora. E, quanto ao medievo, o lucro que, anteriormente era dito como pecado, era a prática de Judas, no novo contexto de mercancia, foi taxada com altos impostos pelo Rei – talvez temendo um poder ainda oculto (nessa classe, a burguesia) que poderia ameaçar-lhe.

A burguesia necessitava de uma sustentação ante os demasiados impostos e principiava a organizar-se formulando uma ideologia libertária, toando os preceitos do Iluminismo. Com efeito, em 1789, a Revolução Francesa clamava pela liberté, egalité, fraternité - e, em data de 26 de agosto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão restou-se aprovada, como o alvorecer de uma nova era.

Assim foi que a dignidade chegou até Kant, ponto central desta investigação. No pensamento do filósofo, erguem-se os esteios, as estruturas, os pilares, isto é, os critérios que proclamam, na pesquisa, a dignidade da pessoa humana. Previne-se o leitor para a amplitude fundante dos critérios kantianos, haja vista serem, sobre eles, todo o constituir de uma edificação de dignidade que, neste ponto, responde em um a priori, apenas e tão-só - que é a dignidade da pessoa humana. Expresso de outro modo, Immanuel Kant funda a dignidade sob quatro critérios: pessoa (homo noumenon), moralidade (reino dos fins), autonomia (liberdade) e respeito (humanidade). Esses critérios formam uma base autêntica de sustentação conceitual para que, em um a posteriori, se possa dar significado à pessoa humana em sua condição suprema de dignidade, ou seja, aplicabilidade ao conceito ou uma definição concreta, efetivada.

Ainda, no primeiro capítulo, que tem, como desafio, responder o que é dignidade da pessoa humana – apresenta-se o juízo da dignidade da pessoa humana. São quatro perguntas, com a possibilidade da quinta – para que o intérprete dialogue com o caso concreto, com as suas particularidades. Com o objetivo de que a faticidade responda pela circularidade compreensiva do intérprete – para que, naquele caso particular, a dignidade da pessoa humana traduza-se concretamente. Assim, o juízo da dignidade da pessoa humana irá, pelo intérprete, detectar os casos de violação – a partir de um mínimo desvelado filosoficamente, avançando ao desvelamento de outro mínimo ainda entificado, a ser procedido, pela arte da pergunta, no caso fático. Por essa razão, o Direito não tem competência para dizer o que é dignidade humana. Essa resposta é filosófica. De outra banda, ao Direito cabe aplicabilizá-la efetivamente à sociedade, porquanto houver o seu reconhecimento jurídico positivado. Logo, o juízo da dignidade da pessoa humana é uma proposta desta pesquisa – para evitar que se diga qualquer

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coisa sobre dignidade da pessoa humana, tampouco não considere o contexto da facticidade no universo compreensivo do Direito.

No segundo capítulo: textos e contextos à reconstrução da dignidade humana - as barbáries e as guerras, bem como suas contexturas fazem-se explicitados em uma passagem que aborda de igual forma a Declaração Universal dos Direitos Humanos, texto que formou o contexto de reconstrução. Nesse passo, os Estados e os governos adentram em uma fusão na salvaguarda da dignidade do homem, que alcança um condão valorativo frente à globalização, materializado pelo direito cosmopolítico.

Assim sendo, a insensibilidade do desrespeito à condição de diferença descobre-se visualizada como se firmou o exemplo do eurocentrismo, em 1492 – cultura que, com práticas genocidas, escravistas, políticas das mais grosseiras possíveis, pregando, como seres inferiores (diferentes), os índios, os negros e os mestiços. Como consequência da prática espanhola no novo território, no ano de 1550 e 1551, ocorreu a famosa disputa de Valladolid, na qual o Padre Bartolomé de Las Casas, pelas palavras de Delmas-Marty, consagrou-se como o primeiro defensor da dignidade da pessoa humana; para outros, como primeiro defensor, na América Latina (assim, posteriormente, definida), do que, anos depois, veio a ser nominado e defendido como Direitos Humanos.

Direitos Humanos que, com esse lapso temporal (1551), no pós-guerra (1939/1945), anotado pelos massacres de civis em massa, retomaram os ideários da Revolução Francesa e, em 1948, aprovou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se conformou em um grande marco para a história da humanidade. A pessoa humana, com isso, passou de objeto a sujeito de Direito Internacional (ainda em construção), sendo a sua dignidade uma limitadora da repressão engendrada pelos Estados, com inúmeros efeitos produtivos de textos constitucionais em sua consagração. Após o texto da referida Declaração, os juristas, principalmente, enfrentaram e enfrentam outra preciosa missão: efetivá-la.

Com efeito, as políticas de governo ganharam relevo perante a missão de concretizar a Declaração Universal. Dessa forma, os governos déspotas, as políticas de tirania, de submissão, acabaram por implantar um enorme desgaste da relação governo e governado, pelo descrédito da política que não implementa os direitos declarados. Em corolário, as autoridades concorrentes aos Estados começaram a firmar-se nessa lacuna, em uma dimensão extra-nacional de decisões não governamentais, ou seja, a governança: um governar sem governo. A sociedade tomou rumos globais que, perante as mais variadas culturas, fomenta um direito plural, em que o governo deve, assim, pensar para concretizar as políticas em uma esfera pública. Destarte, uma boa governança é aquela sustentada pelo governo

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em contemplação (sustentação) aos Direitos Humanos, em seu respeito à dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a globalização, que, aqui, não encontra o projetar de problematizá-la, faz-se descrita como fato ou como valor. A globalização como fato é uma instrumentação pelo poder, um interesse inserido na sociedade, um dado objetivo, enquanto que a globalização como valor alcança uma proporção subjetiva, um direito comum fundado na concretização de direitos fundamentais, sendo passível, pois, de ponderar um bem ou um mal. Nessa conformidade, a globalização é entendida como valor e, ante a insuficiência de uma Teoria Pura do Direito (Kelsen), lança-se à internacionalização dos Direitos Humanos com o objetivo de se fazer universalizável uma moralidade mínima como um núcleo moral-jurídico que se vale da condição a ser materializada pelo direito cosmopolítico. A globalização é (deverá ser), portanto, um valor a fundar a dignidade humana em contribuição ao humanismo mundial, em um resgate de cidadania universal, qual seja a cidadania cosmopolítica fundada na dignidade da pessoa humana global.

Quanto ao terceiro capítulo: a hermenêutica jurídica e a compreensão da dignidade humana pós-metafísica - a filosofia hermenêutica desvenda-se como a revolução de um compreender. Contudo, o capítulo começa com uma reflexão de Taylor (em uma antecipação temporal, porque deveria vir depois de Heidegger) sobre a superação do individualismo que se faz apontada pela noção de self. Assinala-se que o nosso interior, isto é, o self é composto por uma ordem moral, a qual integra e inspira um conjunto de elementos que compõe uma compreensão que aflora de forma construída e não descoberta, como no individualismo metafísico moderno. Destarte, o interior humano, em seu olhar-se, liberta-se do próprio indivíduo no rumo de uma autocrítica de viés moral.

E essa própria libertação faz-se pela linguagem. Aqui, tem-se a revolução da filosofia hermenêutica de Martin Heidegger, na linguistic turn, que colacionou um novo ponto de partida para a Filosofia: a invasão na e pela linguagem. Com isso, o sentido - que antes (metafísica clássica), tanto na metafísica platônico-aristotélica, quanto na aristotélica-tomista, - estava nas coisas e que, com a modernidade (metafísica moderna), passou para a mente do sujeito pensante - agora se desvela pela linguagem. Dito de outro modo, está-se complementando a filosofia de Kant, porque ela não tem acesso à linguagem (como condição de possibilidade - filosoficamente falando); dessa forma, os critérios kantianos de dignidade humana encontram privilegiada matriz hermenêutica compreensiva (Heidegger e Gadamer) que os desvela no caso particular. Para isso, Gadamer leciona, em sua hermenêutica filosófica, uma aplicação desses critérios que se desvelam em uma fusão de horizontes, ou seja, a fusão de um horizonte passado com o presente que é posto ao intérprete – abrindo-se um novo horizonte pela

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