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fundamentos macroeconômicos do acesso ao mercado de crédito pelos estados da federação

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MURILO NOGUEIRA VANNUCCI

Fundamentos macroeconômicos do acesso ao mercado de crédito pelos estados da Federação

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Diagramação e Capa: Natália Carrascoza Vasco e Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

Eduardo FErrEr Mac-GrEGor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações

Jurídicas da UNAM - México

JuarEz tavarEs

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis LóPEz GuErra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owEn M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA toMás s. vivEs antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Fundamentos macroeconômicos do acesso ao mercado de crédito pelos estados da Federação

Lista dE siGLas E abrEviaturas ............................................................................. 7 PrEFácio ............................................................................................................. 9 José Eduardo Faria 1. introdução .................................................................................................. 13 2. o rEGiME Jurídico dE EndividaMEnto PúbLico subnacionaL na história da PoLítica MacroEconôMica FiscaL ....................................................................... 19 2.1. Introdução 19 2.2. Do expansionismo fiscal da ditadura militar à crise da dívida externa nos anos 1980 . 22 2.3. Da crise da dívida externa à Constituição de 1988 .................................................... 29 2.4. Do refinanciamento da Lei nº 9.496/1997 à crise financeira global de 2008 ............. 40 2.5. Da crise financeira global de 2008 a 2014 ................................................................. 52 2.6. Do ciclo de refinanciamento iniciado em 2014 ao ano de 2022 57 2.7. Considerações finais .................................................................................................. 68 3. FundaMEntaçõEs tEóricas das PoLíticas dE rEFinanciaMEnto E dE controLE do EndividaMEnto subnacionaL adotadas no brasiL............................................... 76 3.1. Introdução ............................................................................................................... 76 3.2. Os conceitos de soft e hard budget constraints como fundamentos teóricos da disciplina do endividamento subnacional ......................................................................... 85 3.2.1. As origens dos conceitos de soft e hard budget constraints 85 3.2.2. Soft budget constraints como um problema de compromisso dinâmico (dynamiccommitment problem) 91 3.2.3. A ideia de soft budget constraints como um problema de compromisso dinâmico aplicada às relações fiscais federativas ............................................................................... 93 3.2.3.1. As instituições políticas como regras do jogo ..................................................... 95 3.2.3.2. As instituições fiscais como regras do jogo ......................................................... 99 3.2.3.3. Os demais atores envolvidos no jogo do resgate .............................................. 103 3.2.3.4. O caso brasileiro sob a perspectiva do hard/soft budget constraints ............... 106 3.3. O neoinstitucionalismo e as prescrições de políticas públicas sobre endividamento subnacional ................................................................................................................... 108 3.3.1. O compromisso confiável e o desenvolvimento econômico: o caminho teórico para o “market preserving federalism” ................................................................................... 110 3.3.2. Relações entre principais e agentes e a accountability .......................................... 116 3.3.3. Os incentivos institucionais como condição para uma disciplina de mercado promotora do crescimento econômico .......................................................................... 120
suMário
3.4. Considerações finais 123 4. os rEGiMEs Jurídicos dE EndividaMEnto PúbLico subnacionaL atuaLMEntE viGEntEs no brasiL .......................................................................................... 128 4.1. Introdução ............................................................................................................. 128 4.2. Regras gerais ........................................................................................................... 130 4.2.1. Limites gerais para o endividamento subnacional: regra de ouro e limites de fluxo, de dispêndio anual e de estoque ......................................................................................... 130 4.2.2. Condições gerais para o endividamento subnacional .......................................... 131 4.2.3. Limites e condições gerais para a obtenção de garantia da União 134 4.2.4. Operação de crédito externo com garantia da União ........................................... 138 4.3. A classificação da capacidade de pagamento dos entes ............................................. 139 4.4. Regras especiais: os diferentes regimes jurídicos de endividamento subnacional ....... 146 4.4.1. Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal 148 4.4.1.1. Metas e compromissos .................................................................................... 149 4.4.1.2. O acesso ao crédito como incentivo à disciplina fiscal: o “espaço fiscal” ........... 150 4.4.2. Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal .............................................................. 152 4.4.2.1. O mecanismo de acesso ao crédito no PEF: o “esforço fiscal” .......................... 154 4.4.3. Regime de Recuperação Fiscal 155 4.4.3.1. Os benefícios e o mecanismo de acesso ao crédito no RRF .............................. 157 4.4.3.2. Deveres, metas, compromissos, medidas de ajuste e vedações ......................... 160 4.4.3.3. Inadimplência e penalidades .......................................................................... 163 4.4.4. Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados 165 4.4.4.1. Os benefícios, as metas de política fiscal e a contrapartida do estado 165 4.4.4.2. O acesso ao mercado de crédito no PAF: o “espaço fiscal” .............................. 167 4.4.4.3. Inadimplência e penalidades ........................................................................... 169 4.5. Considerações finais ............................................................................................... 170 concLusõEs .................................................................................................... 175 rEFErências .................................................................................................... 180

Lista dE siGL as E abrEviaturas

BB Banco do Brasil

BCB Banco Central do Brasil

BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

BNH Banco Nacional de Habitação

CAPAG Capacidade de Pagamento

CMN Conselho Monetário Nacional

COFIEX Comissão de Financiamentos Externos

DF Dívida Financeira

EC Emenda Constitucional

FAZ Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social

FHC Fernando Henrique Cardoso

FINAME Agência Especial de Financiamento Industrial

FMI Fundo Monetário Internacional

FNDU Fundo Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Urbano

FSE Fundo Social de Emergência

ICM Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviço

ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

IGP-DI Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna

IPCA Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo

IPI Imposto sobre Produtos Industrializados

ISS Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza

LC Lei Complementar

LDO Lei de Diretrizes Orçamentárias

LFT Letras Financeiras do Tesouro

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LRF Lei de Responsabilidade Fiscal

MF Ministério da Fazenda

NFSP Necessidade de Financiamento do Setor Público

OCDE Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico

PAC Programa de Aceleração do Crescimento

PAEG Plano de Ação Econômica do Governo

PAF Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados

PND Plano Nacional de Desenvolvimento

PASEP Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público

PATF Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal

PEF Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal

PIB Produto Interno Bruto

PIS Plano de Integração Social

PND Plano Nacional de Desenvolvimento

PRF Plano de Recuperação Fiscal

RAET Regime Especial de Administração Temporária

RCL Receita Corrente Líquida

RGF Relatório de Gestão Fiscal

RLR Receita Líquida Real

RREO Relatório Resumido de Execução Orçamentária

RRF Regime de Recuperação Fiscal

SELIC Sistema Especial de Liquidação e de Custódia

SEPLAN Secretaria de Planejamento da Presidência da República

SF Senado Federal

SFN Sistema Financeiro Nacional

STF Supremo Tribunal Federal

STN Secretaria do Tesouro Nacional

UE União Europeia

UF Unidade Federativa

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PrEFácio

Este livro é fruto da pesquisa de mestrado do autor na Faculdade de Direito da USP, iniciada em julho de 2020 e desenvolvida durante a gestão do governo eleito em 2018 e a pandemia do coronavírus. Ao longo daqueles anos vivenciamos uma regressão institucional que, se não desaguou em um regime autoritário formalmente instituído, evidenciou o caráter contingente da nossa democracia e das nossas instituições. Foi nesse contexto que a pesquisa de mestrado se encaminhou para o enfoque na influência das políticas públicas concretamente adotadas no direito e nas instituições, mais especificamente: o papel desempenhado pela política macroeconômica fiscal como razão organizadora do regime jurídico de acesso ao mercado de crédito pelos estados da Federação, conformando os instrumentos legais que o compõem.

O trabalho se distancia do conceitualismo e dogmatismo arraigados na cultura jurídica brasileira, notadamente no campo do direito financeiro. Com o esforço de inscrever o estudo do regime jurídico de endividamento dos estados no contexto das diferentes políticas fiscais adotadas historicamente no Brasil, o livro põe em cena a conjuntura política e macroeconômica do país, onde está imerso o objeto pesquisado. O capítulo histórico, apoiado em uma pesquisa empírica, propõe uma nova organização da história do regime jurídico estudado em cinco períodos: (i) do expansionismo fiscal da ditadura militar à crise da dívida externa dos anos 1980; (ii) da crise da dívida externa dos anos 1980 ao refinanciamento encetado pela Lei nº 9.496/1997 (Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados); (iii) desse refinanciamento de 1997 à crise financeira global de 2008; (iv) das reações à crise financeira global de 2008 ao desequilíbrio fiscal do setor público brasileiro evidenciado em 2014; e (v) do ciclo de refinanciamento das dívidas estaduais pela União iniciado em 2014 até o ano de 2022. Essa reorganização do conhecimento jurídico sobre a matéria é informada por uma perspectiva sociológica, que permite enxergar o direito como revelador das transformações políticas e (macro)econômicas da sociedade brasileira.

Essa perspectiva sociológica do autor também permitiu um diálogo interdisciplinar com as construções teóricas que funcionaram como paradigmas para as políticas macroeconômicas fiscais para o setor público subnacional. A contextualização não foi apenas na história da política macroeconômica, como

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também teórica: o trabalho apresentou o arcabouço conceitual que amparou a racionalidade por trás das escolhas de política macroeconômica fiscal para o setor público subnacional, viabilizando assim uma discussão mais ampla dos objetivos propostos por tal política diante das particularidades do caso brasileiro.

Em determinadas circunstâncias históricas, sob o pretexto de produzir um conhecimento técnico, o pensamento jurídico ocultou-se (oculta-se) convenientemente da realidade social, refugiando-se na racionalidade lógico-formal, como se a precária cisão entre os mundos do ser e do dever ser fosse o fundamento metodológico necessário para se atingir uma pretensa “pureza técnica” do direito, que seria dotado de valores intrínsecos e ontológicos, de um “núcleo essencial” de valores, atemporais e independentes de qualquer fator circunstancial. É impossível, evidentemente, “limpar” o direito da realidade, falseando-o como uma instância autônoma em relação à economia e à política, para ficarmos em dois exemplos. Pelo contrário, a compreensão do fenômeno jurídico depende de uma percepção acurada da realidade social que o envolve e dos diferentes e conflitantes condicionamentos que ela lhe impõe.

No Brasil, à época da transição do regime autoritário para o democrático, a crítica ao formalismo dogmático – o qual, durante a ditadura, viabilizou a instrumentalização do ensino do direito para afastar os juristas do controle do poder político e para restringir seus papéis ao de meros executores de ordens e de planos de modernização autoritária do país – fundamentava-se sobretudo em uma revalorização do liberalismo, que colocava em pauta questões então importantes como o controle do exercício da autoridade, o acesso ao poder político (a sua redemocratização), as liberdades civis e políticas, a igualdade formal e material, dentre outros. Essa revalorização do liberalismo na cultura jurídica brasileira durante transição democrática, todavia, não afastou o seu formalismo dogmático, tampouco propôs uma substituição da racionalidade lógico-formal como paradigma prevalecente. Pelo contrário, passaram a conviver harmonicamente na cultura jurídica brasileira a visão lógico-formal do direito com um liberalismo que, se já era presente de forma difusa na prática e na teoria jurídicas brasileiras, se tornou cada vez mais explícito.

Nesse contexto, essa pesquisa nos permite entender como, no âmbito do regime jurídico de endividamento público dos estados, a mencionada convivência harmônica entre a visão lógico-formal e o liberalismo foi teoricamente construída e ainda persiste nos dias atuais. O trabalho revela os meandros conceituais pelos quais, a partir de meados dos anos 1990, esse liberalismo foi internalizado e consolidado na regulamentação jurídica do endividamento público subnacional, como parte importante das estratégias de gestão macroeconômica implementadas no país. Foram elucidadas as fundamentações teóricas das recomendações de políticas públicas feitas por diversas entidades financeiras multilaterais, como o

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Banco Mundial e o FMI, para os países da periferia do capitalismo enfrentarem os problemas oriundos do excesso de endividamento público subnacional, tendo sido identificadas duas origens dessas fundamentações: (i) o arcabouço conceitual derivado do emprego da ideia de hard budget constraints na análise macroeconômica e (ii) o neoinstitucionalismo hegemônico no ocidente, mais precisamente, a corrente neoinstitucionalista encampada pelos citados organismos internacionais. Foram examinados três conceitos centrais dessas construções teóricas, que moldaram a análise jurídica e os instrumentos legais sobre o endividamento dos estados da Federação: o compromisso confiável (credible commitment), a accountability e a ideia de incentivo institucional.

Um exemplo concreto da importância e da atualidade da crítica sociológica ao formalismo dogmático no campo do direito financeiro pode ser encontrado em recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, que refletem a desvinculação do pensamento jurídico com a realidade social. Ao discorrer sobre a noção de accountability, o Plenário do STF afirmou que “o amadurecimento da sociedade e a emergência de uma cidadania mais ativa fazem surgir em seu seio, de modo natural, o conceito de accountability. À medida que se vão densificando as relações de cidadania, faz-se necessário o conceito de accountability, até que se torne algo corriqueiro tanto para a burocracia como para os cidadãos”. Entretanto, os paradigmas teóricos prevalecentes na ciência do direito não podem ser explicados, senão de modo simplório, desconsiderando-se o seu contexto social, apenas com base no desenvolvimento lógico dos critérios internos de validação do conhecimento jurídico-científico, tampouco simplesmente a partir de uma suposta “necessidade lógico-teórica” decorrente do desenvolvimento das relações de cidadania. Pelo contrário, as justificativas da prevalência de certos paradigmas teóricos na ciência do direito, em detrimento de outros, são encontradas antes nas circunstâncias históricas e concretas do meio em que eles são formados e do momento em que são aceitos. A função social concretamente desempenhada pela prática e pelo pensamento jurídicos condiciona o paradigma científico adotado na produção desses saberes. A ciência do direito reflete, em sua estrutura metodológica interna, as exigências que a política, a economia e, enfim, a realidade social lhe impõem. Contrapondo-se a essa naturalização do conceito de accountability, o livro revela que a ideia de accountability, longe de decorrer amadurecimento natural da sociedade e da cidadania, foi adotada no corpo teórico do neoinstitucionalismo e se vinculou na prática a uma agenda de política macroeconômica fiscal específica, sintetizada no discurso da sustentabilidade da dívida e das contas públicas. O trabalho deixa claro que o emprego de mecanismos de accountability não é, incondicionalmente, um elemento de reforço da ordem democrática, funcionando antes como um instrumento de enforcement de uma agenda de política fiscal,

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cuja problematização tem sido ausente dos debates públicos nacionais, tendo se reduzido a sua presença inclusive nos meios acadêmicos do direito.

Portanto, este trabalho tem o mérito de colocar em debate as fundamentações teóricas e políticas macroeconômicas da disciplina jurídica de acesso ao mercado de crédito pelos estados. Traz, assim, à discussão os valores e axiomas políticos e teóricos que informaram e informam a construção desse regime jurídico, municiando o leitor de elementos para que possa fazer um juízo de valor e se posicionar acerca do regime jurídico analisado. Espero, por fim, que o livro possa abrir espaço para uma agenda de pesquisa, agora também no direito financeiro, com o enfoque sociológico aqui adotado, que possa apresentar o fenômeno jurídico implicado em questões (macro)econômicas, políticas, sociais e culturais atualmente relevantes para o país.

São Paulo, dezembro de 2023.

José Eduardo Faria

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1. introdução

Tradicionalmente, no campo do Direito, o federalismo é entendido como uma forma de organização do poder político no território nacional. A problematização das relações federativas, sobretudo em trabalhos de Direito Financeiro, é feita a partir do paradigma da autonomia dos entes públicos, frequentemente ponderada com princípios gerais, como o da lealdade e da cooperação federativa. Nessa linha, a noção de autonomia federativa é a chave interpretativa usada para traduzir um conflito nessa área em um problema do Direito, a ser tratado pela racionalidade jurídico-dogmática1. Essa perspectiva, ainda que possa ter seu valor reconhecido para viabilizar a operacionalização prática do direito (especialmente no âmbito do Poder Judiciário), é insuficiente para se compreender quais forças políticas, econômicas e sociais associam-se à centralização e à descentralização em cada momento histórico e quais objetivos políticos, sociais e econômicos dessas forças. Tais objetivos estarão refletidos, afinal, na institucionalidade jurídica federativa constituída ora para centralizar, ora para descentralizar poderes.

A constante tensão dos poderes políticos sobrepostos no mesmo território é ínsita ao federalismo, é parte da dinâmica do sistema político brasileiro, e se precipita concretamente a partir das escolhas políticas – para o que interessa neste

1 O citado conceito de federalismo é amplamente consolidado dentre autores do Direito no Brasil, assim como a abordagem dele derivada para o tratamento das relações fiscais federativas, centrada na autonomia dos entes. A título ilustrativo, Moraes (2017, p. 220) explica que “a adoção da espécie federal de Estado gravita em torno do princípio da autonomia [...]”. No mesmo sentido, dentre outros: LEWANDOWSKI (2009); BARROSO (2006); DALLARI (1986). Especificamente em relação à disciplina jurídica do endividamento público subnacional, a problematização centrada na autonomia dos entes federados foi elaborada por Conti (2003, p. 1.093): “O crédito público é uma das formas pelas quais se exterioriza a autonomia financeira das entidades subnacionais”, de modo que o regime jurídico do acesso ao mercado de crédito pelos entes federados deve ser analisado à luz dessa autonomia. Eis a conclusão do autor: “A existência de limites para o endividamento das entidades subnacionais, desde que em níveis razoáveis, que não aniquilem a capacidade de utilização do crédito público como instrumento de política financeira, não violam a autonomia financeira dessas entidades”. Outro exemplo na área do endividamento público subnacional é encontrado em Assoni Filho, (2007, p. 133): “Outra questão relevante para o controle do endividamento público é a influência da LRF sobre as relações entre os entes federativos engendradas pela forma de Estado adotada pelo Brasil, que, como é conhecida, é a forma federativa, conforme está expresso no artigo 1º da Constituição, que consagra a existência de três esferas governamentais, a saber: a federal, a estadual e a municipal”. Assoni Filho passa em seguida a citar uma série de autores, incluindo um renomado constitucionalista brasileiro lado a lado com um filósofo do iluminismo francês do século XVIII, para destacar a autonomia como critério central de análise teórica do federalismo: “De acordo com a lição de José Afonso da Silva, a Federação ou o Estado Federal caracteriza-se pela ‘união de coletividades regionais autônomas’, ou no dizer de Montesquieu, ‘é uma convenção pela qual diversos corpos políticos concordam em se tornarem cidadãos de um Estado maior, que querem formar, constituindo uma verdadeira sociedade de sociedades’. O federalismo pode ser entendido, segundo o ensinamento de Sampaio Dória, como ‘a fórmula histórico-programática de composição política que permite harmonizar a coexistência, sobre idêntico território, de duas ou mais ordens de poderes autônomos, em suas respectivas esferas de competência’. Tendo em vista a adoção dessa forma de Estado, com a autonomia política, administrativa e financeira dos entes federativos, a Constituição Federal distribui entre eles encargos e recursos, a fim de que cada um possa atuar com independência e ao mesmo tempo cumprir com os seus objetivos, conforme as competências constitucionais fixadas”.

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trabalho, das escolhas de política macroeconômica fiscal. O federalismo, longe de ser uma abstração conceitual fundada na autonomia dos entes, é cotidianamente construído a partir da elaboração e execução de políticas públicas, em especial aquelas que buscam transformar estruturalmente a sociedade. Nesse quadro, o direito tem funcionado no sentido de reorganizar constantemente o federalismo para viabilizar a consecução sempre conflituosa dos objetivos das políticas públicas. Em razão da racionalidade jurídico-dogmática manter-se centrada na autonomia dos entes e desconectada das questões políticas, econômicas e sociais subjacentes ao regime federativo, é extremamente difícil derivar propostas relevantes de políticas públicas sobre as relações fiscais federativas a partir dela e de seu arcabouço conceitual. As suas definições normativas e o seu raciocínio de subsunção têm pouca ou nenhuma relevância para a elaboração de soluções políticas abrangentes para os problemas socioeconômicos que o país enfrenta, já que não viabilizam uma percepção adequada e particularizante desses problemas. O objetivo deste trabalho é analisar o papel exercido pela política macroeconômica fiscal como um motivo organizador da disciplina jurídica do endividamento público subnacional, conformando os instrumentos legais que a compõem. Para tanto, a política macroeconômica fiscal foi adotada como variável-chave para explicar as características desse regime ao longo da história e as transformações por que passaram as instituições e os instrumentos jurídicos que o compõem. Sob o prisma do federalismo como um elemento estruturador e viabilizador das políticas públicas, torna-se possível colocar em perspectiva os propósitos de tais políticas, à luz da realidade que elas pretendem transformar, e o modo como, em via reversa, as políticas públicas conformam a organização jurídica da federação. A tentativa de compreender o Direito sob a ótica das mudanças nas orientações de política macroeconômica fiscal guarda afinidades com a análise sociológica e interdisciplinar dos impactos das transformações econômicas, sociais e políticas sobre as instituições jurídicas, marcante dos paradigmáticos trabalhos de José Eduardo Faria (2004, 2013).

Este trabalho buscou, no capítulo 2, reconstruir o modo como se desenvolveu a disciplina jurídica do acesso ao mercado de crédito pelos estados e das posteriores rolagens de suas dívidas sempre à luz das políticas macroeconômicas fiscais que moldaram essa disciplina e marcaram as suas transformações históricas. À luz das influências que a política macroeconômica fiscal exerce sobre as características do regime jurídico de endividamento público subnacional, foi proposta uma organização da história desse regime em cinco períodos: (i) do expansionismo fiscal da ditadura militar à crise da dívida externa dos anos 1980; (ii) da crise da dívida externa dos anos 1980 ao refinanciamento encetado pela Lei nº 9.496/1997, que, sob as diretrizes do Plano Real, instituiu o Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados; (iii) do refinanciamento

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fundado na Lei nº 9.496/1997 à crise financeira global de 2008; (iv) das reações à crise financeira global de 2008 ao desequilíbrio fiscal do setor público brasileiro evidenciado especialmente a partir de 2014; e (v) do mais recente ciclo de refinanciamento das dívidas estaduais iniciado em 2014 ao ano de 20222. É claro que, se olhados de perto, podem ser identificadas nuances particulares dentro de cada um desses momentos em relação à condução da política econômica. Entretanto, colocando em perspectiva a política a respeito do endividamento público subnacional, sobressaem os marcadores de continuidade e de distanciamento que conduziram a uma organização da história nesses cinco períodos.

Os países egressos do mundo socialista e os países do antigo “terceiro mundo” entram nos anos 1990 contando com dívidas públicas subnacionais de tal magnitude que implicavam riscos macrofiscais e ameaçavam a sua estabilização macroeconômica, gerando preocupações políticas tanto nos respectivos governos centrais como em diversas entidades internacionais. Nesse contexto, organismos multilaterais e instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), passam a prescrever um conjunto de reformas e de políticas públicas fundamentadas nos referenciais teóricos do hard budget constraints e do neoinstitucionalismo e voltadas à implementação de uma disciplina fiscal mais rigorosa do que aquela que havia se observado na história recente desses países.

Ao dialogar com uma política adotada pelo governo para tratar de um campo específico (endividamento subnacional) e buscar compreender as suas razões e a sua lógica, este trabalho enfrentou um referencial teórico da área da Economia. Para empreender essa tarefa, foi adotado o método indutivo: na pesquisa para o capítulo 3, foi tomada como ponto de partida a aplicação específica que Jonathan Rodden fez das ideias de soft/hard budget constraints para tratar das relações fiscais federativas. Esse autor foi quem realizou, de maneira mais acabada e detalhada, a aplicação do arcabouço conceitual do hard budget constraints para tratar do endividamento público subnacional, tendo publicado estudos específicos sobre o caso brasileiro que se tornaram referências consolidadas para diversas entidades internacionais3. O segundo passo foi avançar a pesquisa na direção dos pressupostos teóricos em que se assentou o trabalho de Rodden, o que conduziu

2 O corrente ano de 2023 não foi incluído na pesquisa, seja por ainda não haver dados fiscais atualizados sobre as contas e as dívidas públicas estaduais, seja porque ainda não foram anunciadas nem adotadas mudanças pelo governo empossado em 2023 na política sobre o endividamento subnacional, não sendo possível, por ora, mais do que identificar uma tendência de continuidade especificamente na gestão feita pela Secretaria do Tesouro Nacional das dívidas e contas dos entes federados subnacionais.

3 Por exemplo, o Fundo Monetário Internacional, ao elaborar um Relatório de Assistência Técnica (denominado “Strengthening the Framework for Subnational Borrowing”) específico sobre o Brasil, em resposta à solicitação de cooperação técnica formulada pela Secretaria do Tesouro Nacional, cita a obra de Rodden ao abordar as “lições extraídas dos grandes resgates de 1989 a 2001” (FMI, 2019, p. 13).

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esta pesquisa, primeiro, às origens dos conceitos de soft/hard budget constraints na obra de János Kornai e, depois, às premissas mais abstratas da teoria neoinstitucionalista mainstream (tal como aceita e incorporada no debate econômico no âmbito dos organismos multilaterais e financeiros internacionais, como FMI, OCDE, Banco Mundial etc.)

Na organização do capítulo 3, primeiro são apresentadas as origens dos conceitos soft/hard budget constraints na obra de János Kornai, passando por seu emprego por Eric Maskin no contexto e com as premissas da teoria dos jogos, até alcançar leitura que Jonathan Rodden faz, inspirado no trabalho de Maskin, do endividamento subnacional e das relações fiscais federativas. Esta pesquisa detém-se então no pensamento de Rodden, buscando explicitar as premissas nele contidas. Na segunda parte do capítulo 3 é abordada a vertente do neoinstitucionalismo que está na base dos trabalhos de Rodden, sendo identificadas as principais ideias que foram tomadas daquele edifício teórico para fundamentar sua visão sobre o endividamento subnacional e suas recomendações sobre o tema. Tais ideias também se fizeram presentes nas prescrições de políticas feitas desde meados dos anos 1990 pelas supramencionadas entidades internacionais para os países de economia subdesenvolvida lidarem com o excessivo endividamento subnacional.

No capítulo 4 é analisada a disciplina de acesso ao mercado de crédito pelos estados atualmente vigente no Brasil. São apresentadas as condições e as regras gerais para a contratação de operações de crédito e para a obtenção de garantia da União pelos entes federados. Em seguida, foram explicados em detalhes os regimes fiscais que estabelecem condições especiais de endividamento público subnacional: o Regime de Recuperação Fiscal, o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal, o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e o antigo e ainda vigente Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados. Ao apresentar as características da disciplina jurídica de endividamento público adotada no Brasil, o trabalho explicitou as orientações da política macroeconômica fiscal brasileira nelas refletidas. Além disso, foram identificadas importantes influências exercidas pelo arcabouço teórico visto no capítulo 4 no regime jurídico de endividamento subnacional atualmente vigente no Brasil.

Finalmente, no capítulo 5, à guisa de conclusão, são articulados os argumentos desenvolvidos em diferentes partes do texto. Apesar da política macroeconômica fiscal para o setor público fornecer a racionalidade organizadora do regime jurídico de endividamento subnacional, integrando seus instrumentos e seus arranjos institucionais em uma mesma lógica, as possíveis orientações que essa política poderia assumir estão ausentes tanto dos cânones do Direito Financeiro brasileiro, quanto da própria teoria neoinstitucionalista mainstream, que está na base das políticas públicas para tratar do endividamento subnacional

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adotadas no Brasil e em diversas partes do mundo. Essa teoria propõe a “modelagem do processo político”, objetivando em última instância atribuir às relações estabelecidas em contextos concorrenciais de mercado a primazia da função organizadora e reguladora da sociedade e da política (a retirada dessa tarefa das mãos do estado seria supostamente um fator indutor do crescimento econômico). Essa abordagem, todavia, ainda que o reconheça, minimiza a importância do papel estatal constitutivo dos ambientes concorrenciais de mercado, excluindo do debate questões fundamentais sobre as possíveis configurações e os possíveis modos particulares de funcionamento de cada um dos mercados – e, portanto, sobre quais outros valores, além da “responsabilidade fiscal”, eles poderiam fomentar e proteger.

Em simbiose com essa teoria, o pensamento jurídico estritamente dogmático tem desempenhado um papel social claro em países da periferia do capitalismo, como o Brasil: o de contribuir para forçar o “transplante” de instituições entendidas como “corretas” por entidades financeiras internacionais e por organismos multilaterais, encampando uma agenda política neoliberal. Para fundamentar uma contraposição a essas repetidas receitas de “transplante institucional” no debate sobre o regime fiscal nacional, considera-se essencial abandonar a tradição dogmática e conceitualista do pensamento jurídico, incorporar às elaborações teóricas os problemas socioeconômicos brasileiros e a reintroduzir o debate político na análise jurídica (neste caso, especialmente sobre a política macroeconômica fiscal).

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2. o rEGiME Jurídico dE

EndividaMEnto PúbLico subnacionaL na história da PoLítica MacroEconôMica FiscaL

2.1. introdução

Os instrumentos jurídicos que viabilizam o endividamento estadual, na medida em que estruturam um importante meio de financiamento estatal, refletem o momento político do país e o modo como é conduzida a política macroeconômica fiscal pela União. Este capítulo, ao passo que reconstrói o modo como se desenvolveu o regramento jurídico do crédito público dos estados e o das posteriores rolagens de suas dívidas, resgata o histórico das políticas macroeconômicas fiscais que moldaram tais disciplinas. Neste trabalho, defende-se que a política macroeconômica fiscal é um elemento conformador central do regime jurídico do acesso ao mercado de crédito pelos entes subnacionais. A política macroeconômica fiscal é considerada, portanto, uma variável-chave para explicar as características desse regime ao longo da história e para explicar as mudanças por que passaram as instituições e os instrumentos jurídicos que o compõem.

O objeto do presente trabalho é a disciplina jurídica do endividamento dos estados, especificamente o regime jurídico de acesso ao mercado de crédito formado a partir do refinanciamento encetado pela Lei nº 9.496/1997, renovado e modificado pelas Leis Complementares nº 156/2016, nº 159/2017 e nº 178/2021. O recorte histórico feito neste capítulo, que se inicia com as reformas estruturais de estado promovidas no início da ditadura militar, quando ocorrem sensíveis modificações no padrão de financiamento do setor público, alcança as origens das dívidas estaduais que foram refinanciadas pela União em diversas rodadas sobretudo ao longo dos anos 1990 e, mais recentemente, por meio das aludidas leis complementares.

Embora as condições de acesso ao mercado de crédito pelos estados e a rolagem das suas dívidas pela União pareçam dois temas distintos e autônomos, a partir de 1997, com a Lei nº 9.496, a disciplina jurídica de ambos se unificou e eles deixaram de aparentar autonomia, integrando um mesmo regime jurídico

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fiscal, voltado essencialmente à sustentabilidade intertemporal das contas e das dívidas públicas. Isso justifica o recorte histórico aqui feito e o tratamento dado a essas matérias.

Neste capítulo, os instrumentos jurídicos que disciplinam o acesso ao mercado de crédito pelos entes subnacionais são analisados a partir das políticas públicas macroeconômicas subjacentes à sua concepção e à sua adoção no Brasil. A partir dessa perspectiva, foram propostos cinco períodos históricos do regime jurídico do endividamento público subnacional, marcados por diferentes orientações de políticas macroeconômicas fiscais. Os tópicos nos quais se subdivide este capítulo correspondem a cada um desses períodos.

O primeiro tópico trata do momento que vai do golpe militar até o final dos anos 70. Esse período foi caracterizado pelos sucessivos planos macroeconômicos marcados por uma política fiscal expansionista largamente amparada em instrumentos creditícios, com fortes estímulos ao endividamento público subnacional. A disciplina jurídica do acesso ao mercado de crédito de então é dotada de mecanismos de direcionamento, pelo governo ditatorial, dos recursos obtidos por estados via endividamento para a consecução dos objetivos macroeconômicos de sustentação do crescimento econômico acelerado. O volume das dívidas estaduais não era objeto de controle efetivo pela União.

O segundo tópico abrange o período da crise da dívida externa nos anos oitenta até o refinanciamento baseado na Lei nº 9.496/1997. Foi então declarado como objetivos oficiais da política macroeconômica do governo federal a contenção do déficit público e da necessidade de financiamento do setor público (NFSP), o que tornou disfuncional a institucionalidade financeira estabelecida na ditadura militar para a consecução da política fiscal expansionista. Até a Constituição de 1988, o redirecionamento do regime jurídico do endividamento público para o sentido oposto ocorrerá aos solavancos, com regulamentações que avançam e retrocedem na imposição de medidas restritivas à tomada de empréstimos. Esse momento é caracterizado pela ineficácia da política macroeconômica fiscal em relação à dívida pública subnacional: as condições e proibições de acesso ao mercado de crédito ora são contornadas por diversas estratégias dos governadores (especialmente pela utilização dos bancos públicos estaduais), ora são flexibilizadas pelo próprio governo federal em decorrência de concessões políticas às pressões dos governadores democraticamente eleitos desde 1982, cujas reivindicações fiscais se vinculavam ao processo de redemocratização em curso.

No terceiro tópico é abordado o período compreendido entre o refinanciamento da Lei nº 9.496/1997, concebido na esteira do Plano Real, e a crise financeira global de 2008. Essa rolagem de dívidas estaduais é um marco histórico no

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