REVISTA DE
E STUDOS CRIMINAIS Nº 88 - JANEIRO/MARÇO 2023
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
nº 88 - janeiro/março 2023
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
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Revista de Estudos Criminais – Ano XXII – Nº 88 ISSN 1676-8698
Periodicidade trimestral
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nº 88 - janeiro/março 2023
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ANO XXIII – 2023 – Nº 88 Editores-chefes Prof. Dr. Daniel Achutti Prof. Dr. Rodrigo Moraes de Oliveira
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ANO XXIII – 2023 – Nº 88 Conselho Editorial Internacional Prof. Dr. Adem Sözüer (Universidade de Istambul) Prof. Dr. Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück) Prof. Dr. Byung-Sun Cho (Universidade Cheongju) Profa. Dra. Clelia Iasevoli (Universidade de Nápoles) Prof. Dr. David Sanchez Rúbio (Universidade de Sevilha) Prof. Dr. Fernando Machado Pelloni (Universidade de Buenos Aires) Prof. Dr. Luís Greco (Universidade Humboldt de Berlim) Prof. Dr. Manuel Monteiro Guedes Valente (Universidade Autónoma de Lisboa) Prof. Dr. Manuel Jesus Sabariego Gómez (Universidade de Sevilha) Profa. Dra. Maria João Antunes (Universidade de Coimbra) Prof. Dr. Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra) Prof. Dr. Stefano Ruggieri (Università deli Studi di Messina) Prof. Dr. Vittorio Manes (Universidade de Bolonha)
Professores pareceristas Adrian Silva. Adriano Teixeira. Alaor Leite. Alexis Couto de Brito. André Machado Maya. Ângelo Roberto Ilha da Silva. Antônio Martins. Antonio Tovo. Antônio Vieira. Bruno Tadeu Buonicore. Bruno Rotta de Almeida. Caique Ribeiro Galicia. Camila Hernandes. Carolina Stein. Camile Eltz de Lima. Carlo Velho Masi. Chiavelli Facenda Falavigno. Christiane Russomano Freire. Conrado Gontijo. Daniel Brod Rodrigues de Sousa. Denis Andrade Sampaio Junior. Denise Luz. Eduardo Baldissera Carvalho Salles. Eduardo Pitrez de Aguiar Corrêa. Eduardo Saad-Diniz. Eduardo Viana. Fabiane da Rosa Cavalcanti. Fábio D'Avila. Felipe De-Lorenzi. Felipe Faoro Bertoni. Felipe Mrack Giacomolli. Frederico Horta. Gabriel Divan. Gamil Föppel. Giovani Saavedra. Guilherme Michelotto Böes. Guilherme Lucchesi. Gustavo Noronha de Ávila. Henrique Saibro. Jacqueline Sinhoretto. Jader Marques. Jádia Timm dos Santos. Janaina Roland Matida. Jhonatas Péricles Oliveira de Melo. João Daniel Rassi. João Paulo Orsini Martinelli. Jorge Trindade. José Carlos Porciúncula. José Linck. Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya. Laura Gigante Albuquerque. Laura Girardi Hypolito. Leonardo Schmitt de Bem. Luiz Antônio Bogo Chies. Luiza Farias Martins. Marçal Luis Ribeiro Carvalho. Marcella Alves Mascarenhas Nardelli. Marcelo Almeida Ruivo dos Santos. Marcelo Azambuja Araújo. Marcelo Buttelli Ramos. Marcelo Mayora Alves. Marco Scapini. Marcos Eduardo Eberhardt. Mariana Gastal. Marina Pinhão Coelho Araújo. Mariana Weigert. Moysés Pinto Neto. Michelle Karen Batista dos Santos. Nestor Araruna Santiago. Patrícia Carraro Rossetto. Paulo César Busato. Paulo Vinicius Sporleder de Souza. Raffaella Pallamolla. Ramiro Gomes Von Saltiel. Raphael Boldt. Raquel Lima Scalcon. Renata Machado Saraiva. Romulo Fonseca Morais. Rowana Camargo. Ruth Maria Chittó Gauer. Thiago Allisson Cardoso de Jesus. Thiago Bottino do Amaral. Víctor Gabriel Rodríguez. Twig Lopes. Vinicius Gomes de Vasconcellos.
ANO XXIII – 2023 – Nº 88 PUCRS Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais Decano da Escola de Direito Prof. Dr. Fabricio Dreyer de Avila Pozzebon
Decana Associada Profa. Dra. Regina Linden Ruaro
Coordenador do PPGCCRIM Prof. Dr. Nereu José Giacomolli
ITEC Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais Diretoria Presidente Rodrigo Moraes de Oliveira Vice-Presidente Camile Eltz de Lima Secretário Alberto Ruttke Tesoureira Helena Costa Franco
Conselho Permanente Alexandre Wunderlich Andrei Zenkner Schmidt Antonio Tovo Bruna Aspar Lima Camile Eltz de Lima Daniel Achutti Fabio Roberto D’ Avila Felipe de Oliveira Fernanda Osório Giovani Saavedra Helena Costa Franco Jader Marques Lilian Reolon Marcelo Caetano Guazzelli Peruchin Marcelo Almeida Ruivo Paulo Vinícius Sporleder de Souza Rafael Braude Canterji Rodrigo Moraes de Oliveira Salo de Carvalho
Revista de Estudos Criminais 88 Janeiro/Março 2023
Notas dos Editores Caros leitores e caras leitoras, Inaugurando mais um ano de trabalho comprometido com o desenvolvimento das ciências criminais, o número 88 da Revista de Estudos Criminais (REC) passa a trazer, além dos artigos em edições regulares e temáticas, também uma série de novidades que buscam, com o rigor necessário, aproximar as teorias – tão bem trabalhadas por autores e autoras de diversos países que publicam em nossa revista – com a prática do direito penal e processual desde uma perspectiva crítica, pautada pela permanente busca pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais de todos os envolvidos em uma disputa judicial. Para tanto, esta edição está dividida, essencialmente, em duas partes: a primeira, com nove artigos, devidamente avaliados pelo sistema double-blind peer review, e a segunda, com três pareceres elaborados por reconhecidos autores no cenário nacional das ciências criminais. Na primeira parte, como de costume, trazemos artigos que ilustram o estado da arte do campo das ciências criminais no país, cujas temáticas vão da justiça restaurativa à tecnologia aplicada ao reconhecimento facial, da política criminal à configuração do instituto do whistleblowing, da questão probatória no processo penal à análise das dinâmicas próprias da execução penal, dentre outros. Na segunda parte, os três pareceres ora publicados oferecem, por sua vez, uma visão panorâmica sobre a busca pela efetivação dos direitos e garantias fundamentais no âmbito judicial. O Prof. Dr. Geraldo Prado contribui com parecer intitulado “Direitos digitais e o fluxo de dados: a legalidade e os limites ao exercício dos poderes de intromissão com interrupção forçada do fluxo de dados”; o Prof. Dr. Salo de Carvalho, por seu turno, trata de assunto relevante no tocante à aplicação da pena, com parecer intitulado “Sobre os limites da dosimetria da pena provisória: a inadequação constitucional da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça”; e os Profs. Drs. Alexandre Wunderlich e Marcelo Almeida Ruivo tratam do tema da “Continuidade delitiva em crime contra a ordem tributária”. Os pareceres, como se percebe, tratam de temas atuais e relevantes nas disputas prática e teóricas do campo das ciências criminais, o que justifica a importância desse novo espaço aberto pela REC. Nas próximas edições, espera-se apresentar à comunidade científica novas contribuições relevantes, que possuam potencial de produzir impacto na proteção dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, e que atendam os critérios para publicação da revista. Por fim, reiteramos nosso compromisso de nos dedicarmos ao máximo, neste ano que se inicia, para manter a REC com sua elevada distinção no cenário brasileiro dos periódicos científicos. Novos sistemas de fluxo editorial serão providenciados, o 8
que tornará o processo editorial ainda mais fluido e transparente, e novos pareceristas passaram a integrar o nosso já qualificado quadro de colaboradores. Esperamos, assim, manter a revista cada vez mais transparente e adequada às inovações tecnológicas, de modo a tornar mais ágil os trâmites tanto do lado de autores e autoras quanto dos editores e pareceristas. Registramos, mais uma vez, nosso agradecimento a todos autores e autoras que submeteram seus artigos e pareceres, e temos certeza de que 2023 ainda reserva muitas novidades para nossos leitores e leitoras. Regras e orientações para a submissão de artigos estão disponíveis no site do ITEC (http://www.itecrs.org/edicoes/diretrizes:regras) e deverão ser encaminhados para o nosso email: rec@itecrs.org Desejamos uma boa leitura! Prof. Dr. Rodrigo Moraes de Oliveira
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PPGCCrim/PUCRS
Prof. Dr. Daniel Silva Achutti Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC
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Sumário 12
A política criminal nas ciências penais: Uma análise crítica da contribuição de Roxin José Luis Díez Ripollés
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Análise da compatibilidade da Justiça Restaurativa com os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil à luz do modelo austríaco Ellen Cristina Carmo Rodrigues Brandão e Marina Borges de Freitas
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Convenção, linguagem e objeto: o problema da referência probatória no processo penal Eliomar da Silva Pereira
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Ne bis in idem e independência entre as instâncias: análise do Art. 21, § 4º, da Lei nº 8.429/92 Darci Pretto Júnior e Bruno Tadeu Buonicore
Repercussões penais das discussões legislativas 124 e judiciais do voto de qualidade no CARF Francisco de Assis do Rego Monteiro Rocha Jr e Victor Braga Costa
A “responsa” é do “faxina” : uma análise da autoria das assunções de culpa e da dinâmica de negociações em prisões sob o 152 comando do Primeiro Comando da Capital no Complexo Penitenciário de Piraquara Karina Freire Meirelles e Priscilla Placha Sá
Sumário 176
Problemas do reconhecimento facial algorítmico para o processo penal Daniel De Luca Noronha, Gabriela Mendes Machado e Vinícius Diniz Monteiro de Barros
Whistleblowing: de outros 194 ordenamentos jurídicos ao Brasil Mariana Engers Arguello e Nereu José Giacomolli
A contribuição do finalismo para a compreensão 210 do método da ciência do direito penal de hoje Cláudio Brandão e Leonardo Marcel de Oliveira
Continuidade delitiva em crime contra a ordem tributária (Parecer Caso 224 “Empresa CO da Silva” – Natal/RN) Alexandre Wunderlich e Marcelo Almeida Ruivo
Parecer: Direitos digitais e o fluxo de dados. A legalidade e os limites ao 242 exercício dos poderes de intromissão com interrupção forçada do fluxo de dados Geraldo Prado
Sobre os limites da dosimetria da pena provisória: a inadequação constitucional da 276 Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça Salo de Carvalho
A POLÍTICA CRIMINAL NAS CIÊNCIAS PENAIS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA CONTRIBUIÇÃO DE ROXIN1 CRIMINAL POLICY IN THE PENAL SCIENCES: A CRITICAL ANALYSIS OF ROXIN’S CONTRIBUTION
J osé L uis D íez R ipollés 2 T radução de : C hiavelli F acenda F alavigno 3 L uiz E duardo D ias C ardoso 4 RESUMO: o presente estudo pretende realizar um exame crítico quanto ao papel que o penalista mais influente das últimas décadas, Roxin, atribui à política criminal dentro do conjunto das ciências penais. Sua postura tem condicionado notavelmente o entendimento e o manejo da política criminal por parte dos estudiosos da área há um tempo considerável. Em primeiro lugar, aponta-se que o significante político-criminal é empregado por Roxin para referir-se a quaisquer conteúdos valorativos empregados pelo Direito Penal. Mais adiante, demonstra-se que esse significado tão amplo e vago atribuído à política criminal, agregado a determinadas opções metodológicas ou de interesse intelectual adotadas por Roxin, fez com que a política criminal se convertesse em uma mera ciência auxiliar da dogmática penal. Como consequência, produziu-se uma desnaturalização do saber político-criminal, o que não apenas conduziu à perda de sua autonomia epistemológica, como também a um marcante empobrecimento de seus conteúdos. Outro efeito foi que os dogmáticos se erigiram ao papel de serem os genuínos criadores do Direito Penal, disputando, em termos materiais, a hegemonia com o legislador penal. Também se analisa como a criminologia não foge desse fenômeno de satelização do resto das ciências penais em torno do planeta dogmático. PALAVRAS-CHAVE: política criminal, dogmática penal, criminologia, Roxin. ABSTRACT: This study carries out a critical analysis of the role that the most influential criminal law professor of the last decades, Roxin, 1 2 3
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Original publicado em: RECPC 23-02 (2021) − http://criminet.ugr.es/recpc – ISSN 1695-0194. Disponível em: http://criminet.ugr.es/recpc/23/recpc23-02.pdf Doctor en Derecho. Licenciado en Psicología. Catedrático de Derecho Penal. Director del Instituto Andaluz Interuniversitario de Criminología. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2957-9541 Professora Adjunta de Direito Penal e Processo Penal da Graduação e da Pós-graduação (Mestrado) da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estágio pós-doutoral em Política Legislativa Criminal pela Universidade de Málaga, sob a orientação do Professor Dr. José Luis Díez Ripollés. Doutora em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7264-2171 Lattes: http://lattes.cnpq.br/9833644727888072 Doutorando e Mestre no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. http://lattes.cnpq. br/7842116424496804 ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9432-1379
A política criminal nas ciências penais: Uma análise crítica da contribuição de Roxin José Luis Díez Ripollés
ascribes to criminal policy within criminal sciences. His standpoint has strongly shaped for some time now the understanding and the management of criminal policy by experts. Firstly, I demonstrate that Roxin uses the signifier political-criminal for referring to whichever value contents relevant in criminal law. Then, it is shown how this broad and vague meaning assigned to criminal policy, in addition to some methodological or preferential research options made by Roxin, has entailed that criminal policy has become an ancillary science for criminal law dogmatics, without any autonomous epistemological status. Consequently, a corruption of political-criminal knowledge has occurred, not only leading to its loss of epistemological autonomy, but also producing a remarkable impoverishment of its contents. Another side effect is that dogmatics scholars set up as the real criminal law makers, challenging the hegemony of the legislative body on the substantial, non-procedural, issues. Additionally, criminology does not stay behind in this process of satellization of the other criminal sciences around the dogmatic planet. KEYWORDS: Criminal policy, criminal dogmatic, criminology, Roxin. SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Política criminal e dogmática jurídico-penal. 2.1 O caráter abrangente e a desnaturalização semântica do adjetivo político-criminal. 2.2 A discrepâncias de von Liszt e Roxin sobre as fronteiras entre política criminal e dogmática jurídico-penal. 2.3 A concepção roxiniana da dogmática jurídico-penal e da política criminal. 2.4 A fagocitação da política criminal pela dogmática da responsabilidade penal. 2.5 O esvaziamento epistemológico da política criminal. 2.6 Os agentes da política criminal. 3 Criminologia e dogmática jurídico-penal. 3.1 A criminologia entre as ciências penais. 3.2 Uma criminologia a serviço da dogmática. 4 Conclusões. Referências bibliográficas.
1 Introdução A função que se tem atribuído, nas últimas décadas, à politica criminal no conjunto das ciências penais tem sido profundamente influenciada pelo pensamento de Roxin. Sua tese surge da discrepância que mantém com o entendimento da política criminal de V. Liszt, o mais conspícuo defensor da importância desse saber no marco das disciplinas penais. A proposta de Roxin de proceder a uma forte imbricação entre política criminal e dogmática jurídico-penal gera importantes consequências na compreensão de quais são os âmbitos epistemológicos da política criminal, da dogmática jurídico-penal e até mesmo da criminologia. As páginas que seguem pretendem realizar uma análise crítica dos conteúdos essenciais da proposta roxiniana, assim como dos efeitos – às vezes não pretendidos pelo autor – aos quais sua proposta deu lugar. 13
Revista de Estudos Criminais 88 Janeiro/Março 2023
Antes, convém recordar que o elaborado sistema de responsabilidade penal desenvolvido por Roxin, sobre o qual têm orbitado grande parte de suas numerosas contribuições, é reivindicado pelo autor como uma proposta axiológica que pretende marcar a diferença frente a outras propostas excessivamente condicionadas por aproximações naturalistas ou antropológicas. Em outro estudo5, pôde-se demonstrar como o intenso componente axiológico introduzido na teoria jurídica do delito por Roxin não está constituído de forma predominante por diretrizes, isto é, por valores finais ou utilitários, mas pela presença de princípios em sentido estrito – valores determinados por critérios de correção, e não de utilidade6. Nesse mesmo sentido, comprovou-se que a fundamentação das diversas categorias do delito não tem como referência fundamental a teoria dos fins da pena. A estrutura categorial roxiniana consiste em um enfoque basicamente principialista,7 no qual as diretrizes ou valores utilitários ocupam um lugar modesto. Ademais, assevera-se que a abordagem de Roxin quanto à teoria jurídica do delito não constitui um progresso na sistematização do direito penal; consiste, na verdade, em uma relativação do pensamento sistemático, com o propósito de introduzir, em maior medida, o pensamento tópico, casuísta, na dogmática jurídico-penal. É sobre tais bases que se inicia este estudo.
2 Política criminal e dogmática jurídico-penal 2.1 O caráter abrangente e a desnaturalização semântica do adjetivo político-criminal a. Podemos começar perguntando-nos qual é o significante com o qual o autor se refere de maneira unitária a toda essa grande variedade de conteúdo axiológicos que introduz no sistema de responsabilidade penal. Imediatamente destaca-se, então, um termo, um adjetivo: político-criminal. Nosso autor dota esse adjetivo de um significado, de um conteúdo semântico, que o transforma em sinônimo de tudo que, no direito penal em geral e no sistema de responsabilidade penal em particular, deva supor, a seu juízo, uma abertura valorativa ou axiológica, independente de estarmos perante uma reflexão ou perante um componente principal ou utilitário. 5 6 7
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Veja-se DÍEZ RIPOLLÉS, 2021, passim. Sobre os vários tipos de enunciados jurídicos, e especialmente sobre o conceito de princípio, e sua divisão entre diretriz e princípio em sentido estrito, sendo o primeiro um valor utilitário baseado em razões finalistas, e o segundo um valor último baseado em razões de correção, veja-se ATIENZA e RUIZ, 1996, p. 1-25, 177-185. Por “principial” se entendem, segundo o autor, os valores que fazem referência a princípios não utilitários, não finalistas, mas baseados em critérios de correção e de justiça. São valores que se contrapõem a outros que correspondam a diretrizes e, por isso, seriam utilitários ou finalistas (nota explicativa dos tradutores).
A política criminal nas ciências penais: Uma análise crítica da contribuição de Roxin José Luis Díez Ripollés
Essa equiparação conceitual entre o axiológico e o político-criminal, singularmente marcada quando se trata de componentes valorativos introduzidos ex novo ou destacados especificamente pelo autor, é facilmente rastreável ao longo da grande maioria das publicações de Roxin e, até certo ponto, torna desnecessária a sua demonstração8. De todo modo, dada a transcendência que mais adiante atribuiremos a tal fato, reunirei, na sequência, alguns exemplos referentes a reflexões, argumentos, conceitos e elementos diversos formulados na relação com o sistema de responsabilidade penal. Se começarmos pela caracterização geral que se faz de sua orientação sistemática, muito frequentemente qualificada de político-criminal-teleológica9, não é necessário ir muito longe para comprovar que Roxin a equipara a um enfoque sistemático orientado valorativamente10. Quando busca identificar as diferenças entre o seu sistema e os sistemas precedentes, o autor insistirá, acima de tudo, que a característica específica de seu sistema consiste em sua estruturação em torno de determinados valores ou critérios normativos, que são qualificados, inevitavelmente, como político-criminais11. É a configuração do sistema em torno desses conteúdos valorativos político-criminais que lhe permite superar, em primeiro lugar, as restrições ontológicas dos sistemas causalista e finalista, que lhes conduzem a soluções valorativamente incorretas na medida em que são pouco razoáveis político-criminalmente. Da mesma forma, essa configuração também permite a Roxin superar o sistema neoclássico, que se limitou a introduzir, de maneira isolada e descontextualizada, correções valorativas de natureza político-criminal no sistema causal positivista12. 8
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STRATENWERTH, 1972, p. 197, logo expressou seu desacordo com essa comparação; o autor, sem negar a presença de inúmeros critérios valorativos no sistema de responsabilidade penal, e no direito penal em geral, rejeita que todos esses critérios valorativos, por serem adequados, devam ser considerados, por isso mesmo, político-criminais; ZIPF, 1977, p. 710, da mesma forma, considera a repetida referência de Roxin ao significante político-criminal um mero lugar-comum, um expediente retórico, que dá ao intérprete mais espaço para agir sem lhe causar má consciência, mas que escapa à questão central, qual seja, a correta determinação do que que constitui a política criminal. Tem-se, ainda, ORTIZ DE URBINA, 2003, p. 421-423; 2004, p. 859-860, 864-866, 890. A partir de abordagens roxinianas, MOCCIA, 1995, p. 76-84, de forma mais matizada, vincula o conjunto de referências político-criminais às demandas de um determinado programa ideológico de organização social, especificamente, aquele vinculado ao Estado social de direito; ao contrário, BORJA JIMÉNEZ, 2003, p. 136-139, 142-145, 149, acredita que o político-criminal é um significante que alude, em Roxin, ao necessário vínculo com a realidade, tanto natural quanto sócio-regulatória, que deve permitir uma justa resolução do caso concreto. Às vezes complementada pelo adjetivo funcional. Entre os termos mais usados por Roxin para qualificar seu sistema estão: Zweckrationales (funktionales) Strafrechtssystem, teleologisch-kriminalpolitischer Systementwurf, kriminalpolitisch-teleologischer (funktionaler) Systementwurf, Wertungorientiertes System, teleologischkriminalpolitische Verbrechenslehre. Veja-se ROXIN, 1998, p. 886; 2006, p. 205, 221, 232, 234. Veja-se ROXIN, 2006, p. 221. Veja-se ROXIN, 2006, p. 227; 1998, p. 886, 889; 2002, p. 22; 2003, p. 423, 432, 433. Veja-se ROXIN, 1972, p. 19, 33-38, 77-78; 1973, p. 48-49; 2006, p. 205-206, 232-233; 1998, p. 886; 2002, p. 22, 37; 2003, p. 425-426.
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Seria possível pensar, contudo, que essa equiparação entre o político-criminal e o axiológico se restringe apenas a uma parte dos conteúdos valorativos de seu sistema, mais concretamente aos que constituem diretrizes e aos que perseguem fins e objetivos, e não aos que refletem princípios em sentido estrito. Essa pode ser a impressão nas frequentes ocasiões em que os termos político-criminal e teleológico estão intimamente vinculados, ou naquelas em que o autor parece pensar que a qualidade político-criminal de seu sistema reside no protagonismo atribuído às necessidades preventivas e à teoria dos fins da pena. No entanto, uma leitura mais cuidadosa de suas propostas mostra de forma clara que Roxin atribui a seu sistema o caráter de político-criminal porque é capaz de introduzir na sistemática do delito uma grande variedade de conteúdos valorativos – tanto aqueles que buscam salvaguardar sua utilidade preventiva, quanto os que embasam os princípios limitadores do ius puniendi. Tudo isso é acompanhado de uma desmedida ampliação semântica do significante teleológico13. Resumidamente, como Roxin dirá em algumas oportunidades, todos os conteúdos axiológicos integrantes ou integrados ao direito penal são, por esse próprio fato, político-criminais14. Se, na sequência, nos ocupamos das diversas categorias que configuram o sistema de responsabilidade penal, sabemos que é característico da proposta roxiniana que cada uma delas aporte uma ou múltiplas valorações específicas do comportamento humano analisado, sem prejuízo de que se aceite uma limitada mobilidade, entre as categorias, de alguns conteúdos valorativos. Pois bem, todos esses critérios normativos reitores das diversas categorias, com a única exceção dos que correspondem à categoria da punibilidade, são qualificados como político-criminais15. Assim sucede com a categoria da ação ou omissão, em que a exigência de que o fato se possa atribuir a alguém enquanto manifestação de sua pessoa constitui uma valoração que persegue uma determinada finalidade político-criminal: deixar fora da categoria tudo que não se enquadre no âmbito do permitido ou proibido16. O mesmo sucede com todos os critérios normativos reitores do tipo, a saber, a função de determinação legal do comportamento proibido, sua finalidade de concretizar a nocividade social, o efeito a ele atribuído de dirigir ou motivar o comportamento, bem como sua ponderação entre necessidades de intervenção 13 14
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Veja-se ROXIN, 1972, p. 27-28, 33, 77; 2006, p. 205-206, 222, 228, 234; 2002, p. 22, 31, 26-37; 2003, p. 429-436. Veja-se ROXIN, 2006, p. 222, 1045. As afirmações anteriores permitem a ORTIZ DE URBINA GIMENO, 2003, p. 864-866, 889-890, defender que o atributo político-criminal, assim compreendido, não permite traçar diferenças entre os diversos sistemas penais, pois todos eles poderiam ser classificados como político-criminais. Veja-se também SILVA SÁNCHEZ, 1997, p. 18-19. Vejam-se formulações gerais em ROXIN, 1972, p. 49-50; 2006, p. 177-178, 1045; 2002, p. 22; 2003, p. 427-429. Sobre a punibilidade, ROXIN, 2006, p. 227, 1036, 1043-1050. Veja-se ROXIN, 2006, p. 222-223.
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social e de proteção das liberdades individuais, isto é, suas simultâneas funções de garantia e motivação, incluído o papel ocasionalmente atribuído, dentro do tipo, ao princípio da culpabilidade. São inumeráveis as passagens em que todos e cada um desses componentes axiológicos são qualificados como critérios, funções, postulados, conceitos, enfoques, programas, questões, elementos... político-criminais17. Uma qualificação similar é produzida a respeito dos critérios valorativos que abordam os conflitos sociais a serem dirimidos pela perspectiva da antijuridicidade, assim como a configuração definitiva do juízo de nocividade social a que tal categoria conduz. Neste caso há um afã específico de demonstrar que a frequente procedência alheia ao âmbito jurídico-penal dos interesses a serem ponderados não impede que se qualifique a ponderação e a resolução do conflito como político-criminal, na medida em que se decide sobre a punição ou não do comportamento18. E na responsabilidade (culpabilidade) fica claro que o contraste característico entre garantismo e necessidades preventivas é um conflito entre valores político-criminais, ainda que haja nuances quanto ao seu caráter principal ou utilitário19. Um fenômeno semelhante é registrado quanto aos elementos ou instituições jurídicas que compõem as diversas categorias. Além de afirmações genéricas sobre o fato de que a sua configuração deve ser determinada por aspectos valorativos político-criminalmente relevantes20, são frequentes as alusões a este condicionamento em construções dogmáticas como a teoria da imputação objetiva e o critério do risco inadmissível, o conceito de perigo abstrato, o dolo, a negligência, as causas de justificação e seus vários elementos, a faculdade de agir de outra forma, a menoridade relevante, o erro de proibição, as causas de exculpação, a participação dolosa, a desistência na tentativa, apenas para citar apenas alguns exemplos21. a.i. Se sairmos do sistema da responsabilidade penal e passarmos à determinação dos conteúdos de tutela do direito penal, observamos um uso equivalente do significante político-criminal. Assim, o conceito material de bem jurídico defendido por Roxin é um conceito que estabelece limites ao que o legislador pode ou não criminalizar, e justamente por isso é um critério, diz ele, político-criminal, que se diferencia do conceito metódico de bem jurídico, porque este carece de sentido político-criminal por ser um mero critério hermenêutico ou sistemático. Por outro lado, quando estabelece um valioso catálogo de referências que privariam certos 17 18 19 20 21
Veja-se, entre outros muitos lugares, ROXIN, 1972, p. 27, 39-40, 43-53; 1973, p. 45-46; 2006, p. 206-207, 223, 227-228, 289-291; 1998, p. 886-888; 2002, p. 22, 31-32; 2003, p. 432-434. Veja-se ROXIN, 1972, p. 27-28, 40, 61-66; 1973, p. 46-47; 2006, p. 224-226, 289-291; 2002, p. 32-33. Veja-se ROXIN, 1972, p. 40-41, 66-74; 2006, p. 207, 226-227; 1998, p. 893-896; 2002, p. 22, 23-25, 33-34; 2003, p. 432-436. Veja-se ROXIN, 2002, p. 22. Veja-se ROXIN, 1972, p. 27-28, 43-51, 62-66, 68-74; 1973, p. 46-47; 2006, p. 206-207, 224-226; 1998, p. 886-888; 895; 2002, p. 22, 31-32; 2003, p. 425-426, 433-437.
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objetos de proteção de seu caráter de bem jurídico-penal, tais critérios os qualifica como orientações político-criminais, e sua consideração cuidadosa permite observar que são compostos por conteúdos avaliativos, em sua maioria principialistas, mas também diretivos; critérios axiológicos, aliás, que ele considera amplamente fundamentados constitucionalmente. Também o princípio da subsidiariedade, que complementa o de tutela exclusiva dos bens jurídicos, é qualificado como um critério político-criminal, cuja decomposição dos elementos constitutivos permite ver que se trata de valores, dois deles de natureza principial e o outro, diretiva; são elementos cuja consideração dará origem, diz ele, a importantes consequências político-criminais22. Nada diferente acontece com os pronunciamentos sobre o sistema de sanções e sua execução. A compreensão das finalidades da pena e a avaliação da sua pertinente incorporação ao direito penal são feitas explicitamente no âmbito de um discurso político-criminal e político-social que se desdobra em termos axiológicos diretivos: a legitimidade dos efeitos preventivos a alcançar. Por sua vez, a introdução do princípio da culpabilidade visa a estabelecer limites à intervenção penal que as finalidades preventivas não são capazes de proporcionar: trata-se da utilização de um instrumento político-criminal substancialmente de natureza valorativa principial – lesividade, culpabilidade estrita – que modera as demandas diretivas valorativas ligadas à prevenção de crimes. Em suma, é desejável político-criminalmente que a pena seja limitada, em qualquer caso, pelo princípio da culpabilidade23. b. Fica claro, portanto, que para Roxin quaisquer conteúdos valorativos inseridos no sistema de responsabilidade penal, ou no direito penal como um todo, merecem ser classificados como político-criminais. Poderíamos nos perguntar: qual é o problema? Parece não ser um problema que a valiosa contribuição de Roxin para o sistema de responsabilidade penal e para o direito penal em geral esteja protegida em um conceito como o de política criminal. Afinal, a decisão de escolher aqueles valores – dentre os tantos possíveis – que devem ser incorporados ao direito penal é uma decisão política, pouco importando se tem sentido estratégico ou prudencial. E, claro, é uma decisão que incide especificamente no âmbito penal ou criminal. O problema, porém, surge porque o significante político-criminal ou política criminal não é um bem comum, disponível para quem quiser dele se valer para atribuir o sentido que melhor lhe convenha. O significante político-criminal e seus afins possuem uma história por detrás, a qual lhe atribuiu um significado ou con22 23 18
Veja-se ROXIN, 2006, p. 13- 47. Veja-se ROXIN, 2006, p. 69-100.
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teúdo semântico específico. Sua possível modificação – delimitando-a, expandindo-a ou transformando-a – precisa ter boas razões. Modificar seu significado com argumentos circunstanciais e pragmáticos, usando um termo de prestígio para abranger conteúdos semânticos muito diversos, significaria desvirtuar o conceito político-criminal. A seguir, abordaremos em que medida o sistema roxiniano fez um uso aceitável dos termos política criminal e político-criminal. 2.2 As discrepâncias entre v. Liszt e Roxin sobre a delimitação entre política criminal e dogmática jurídico-penal a. Em trabalho anterior analisei o conceito de política criminal tal como foi formulado por seu criador, v. Liszt24. Podemos resumir sua posição da seguinte maneira: Este autor entende as ciências penais como o conjunto de saberes que permite o desenvolvimento de uma estratégia eficaz de controle do crime e dos criminosos por meio do direito penal. Dentre estas, a política criminal ocupa lugar proeminente como saber prático que, com o auxílio da criminologia e da penologia, está em condições de formular uma estratégia correta de combate ao crime. Esse saber político-criminal tem a função de assessorar o poder político, e especificamente o legislador, na tarefa de configurar o direito penal. O autor identifica corretamente os três âmbitos prescritivos do direito penal, nomeadamente, a determinação dos bens a proteger e a identificação das condutas que os lesam ou põem em perigo, a fixação de um sistema de responsabilidade pelas condutas praticadas e a previsão de um sistema de sanções. Ainda que as três áreas referidas sejam da competência da política criminal, a verdade é que a sua atenção está substancialmente centrada na terceira área, concretamente, nos efeitos preventivos a alcançar através de um sistema de sanções e medidas de segurança devidamente concebido e executado. Embora atribua grande relevância ao objetivo fundamental do direito penal – a proteção dos bens jurídicos, matéria do primeiro âmbito prescritivo –, v. Liszt não se detém na possível atuação da política criminal na seleção daqueles objetos de proteção e consequente identificação dos comportamentos danosos. Quanto ao segundo âmbito prescritivo – a configuração do sistema de responsabilidade, encarregado de estabelecer os limites da intervenção penal –, o autor em grande medida deixa o legislador livre desde que respeite certas realidades naturais. Por outro lado, atribui à dogmática jurídico-penal a tarefa exclusiva de interpretar e sistematizar os conteúdos introduzidos pelo legislador no direito penal, com um estrito respeito pelo princípio da legalidade: a 24
Veja-se DÍEZ RIPOLLÉS, 2018, p. 1-31. Em português: Diéz Ripollés, J. L. (2023). O Papel Epistêmico da Política Criminal nas Ciências Penais: A Contribuição de V.Liszt. Direito Público, 19(104). https://doi. org/10.11117/rdp.v19i104.6963.
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aplicação da lei penal de acordo com o referido princípio é o que permite conformar o código penal como um baluarte contra os abusos estatais, como um garante dos direitos e liberdades individuais. De resto, as políticas sociais preventivas a desenvolver à margem do direito penal estão fora do âmbito de conhecimento das ciências penais. Como já indiquei, v. Liszt tem o grande mérito de ter lançado as bases da política criminal como disciplina determinante do controle da delinquência. No entanto, a concepção de que parte é excessivamente restrita por pelo menos três razões: a. Apesar de a política criminal ser a assessora do legislador na configuração do direito penal, o autor não se preocupa em elaborar axiologicamente seu conteúdo. Não o faz com os dois primeiros âmbitos constitutivos do direito penal; e, quanto ao terceiro – o sistema de penas e medidas de segurança –, baseia-se quase exclusivamente em termos diretivos e instrumentais. b. A disciplina por ele criada concentra-se em criar um sistema de sanções e medidas cujos efeitos preventivos sejam eficazes no controle da delinquência. Os outros dois âmbitos que compõem o direito penal – a determinação do conteúdo da proteção e a configuração do sistema de responsabilidade – permanecem negligenciados. c. O autor recusa-se a retirar a política criminal do âmbito restrito da intervenção jurídico-penal, pelo que não inclui outras formas de intervenção extrapenal de comprovada eficácia no combate à delinquência25. b. Uma compreensão completa da posição de Roxin sobre o que são e o que compete à política criminal e à dogmática jurídico-penal demanda que se analise, de início, a crítica que ele faz das abordagens de v. Liszt esboçadas há pouco. Isso porque, em grande parte – pelo menos no início –, ele desenvolve sua proposta em oposição à de v. Liszt. Na opinião de Roxin, v. Liszt constrói o conceito de política criminal a partir de seu contraste com o de dogmática jurídico-penal. Assim, esta última desenvolve-se no âmbito da aplicação do direito penal vigente, e, através de um método sistemático que ordena e elabora conceitualmente o direito positivo, pretende estabelecer os pressupostos do delito, isto é, da responsabilidade penal, de tal forma que sejam preservadas as garantias individuais dos cidadãos submetidos à intervenção penal. Ao contrário, a política criminal dirige-se especificamente ao criador do direito penal – o legislador – e, com contribuições em grande parte alheias ao mundo jurídico, busca estabelecer as finalidades e o conteúdo do direito penal como um todo de forma que se torne um instrumento eficaz de luta contra o delinquente e a delinquência, o que consegue sobretudo através de uma correta formulação do sistema sancionatório e da sua execução. 25 20
Ver, mais detidamente, DÍEZ RIPOLLÉS, 2018, p. 1-31.