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A punição no B r A sil
crítica do giro punitivo
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Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA toMás s. vivEs Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
S236 Santo, Luiz Dal
A punição no Brasil : crítica do giro punitivo [livro eletrônico]
/ Luiz Dal Santo; prefácio Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos, Dario Melossi. -1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2024.
1Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-733-4.
1. Punição. 2. Encarceramento. 3. Sistema penal Brasil. 4. Criminologia. I. Título.
CDU: 343.2.01(81)
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Luiz Dal Santo
A punição no B r A sil
crítica do giro punitivo
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prEFácio
1. O livro de criminologia de Luiz Phelipe Dal Santo começa perguntando se o giro punitivo dos países centrais corresponde ao encarceramento em massa no Brasil. A fobia de informação do governo brasileiro mantém a população carcerária engessada nos 726.712 presos de 2016 (hoje, beirando 1.000.000 de presos), sob controle de facções criminosas, flagelo de doenças contagiosas, violência interna e homicídios cruéis, com mutilações e degolamentos, nas guerras pelo poder de organizações de presos. Este excelente estudo de Luiz Phelipe Dal Santo penetra na realidade marginal do Brasil, desde o passado colonial até a dependência atual do imperialismo, para explicar por que a taxa de encarceramento cresceu com a ampliação de postos de trabalho, neste início de século 21, em contraste com a relação tradicional de desemprego/criminalização. A explicação do desenvolvimento dependente da formação social brasileira é definida segundo a perspectiva da criminologia crítica, que atribui ao Direito penal um papel de dominação e manutenção das relações de poder social desigual - uma abordagem macrossociológica impossível para as teorias positivistas etiológicas da criminalidade.
Dal Santo começa definindo o tempo histórico do trabalho, mostrando que os conceitos de neoliberalismo, de modernidade tardia, de pós-modernidade, ou de pós-fordismo, são designações linguísticas do último quartel do século 20 até o presente, em que se manifesta o giro punitivo, ou punitivismo, mas que não são sinônimos, nem se recobrem do ponto de vista semântico, o que está correto. Mas o autor prefere a expressão neoliberalismo, com definições alternativas (a) de práticas político-econômicas de bem-estar, em condições de liberdade e de capacidade empreendedora individual, segundo David Harvey, ou (b) como projeto de Estado intervencionista, com nova engenharia política para solução de problemas de mercado, conforme Emma Bell, ou (c) como projeto de governamentalidade com estratégias para governar pessoas e construir subjetividades, transformando o indivíduo no empresário de si mesmo, como define Foucault. Explica que a noção de modernidade tardia parece indicar um fim próximo, mas ainda inserido no período histórico da modernidade, enquanto a pós-modernidade pressupõe uma ruptura com a modernidade - ambos carregados de angústia, de insegurança ou de um medo difuso, determinados pelas mudanças do desenvolvimento tecnológico. Pessoalmente, prefiro a locução pós-fordismo, que designa a mudança de processos industriais fordistas (a esteira da linha de montagem) para o pós-fordismo (a robótica e a microeletrônica), segundo de Giorgi, como também mostra Dal Santo.
2. A ideia de giro punitivo, ou de punitivismo pesquisada no texto, aplicável ao Norte-global para exprimir a expansão do encarceramento, parece problemática no Brasil, segundo Dal Santo. Descreve a passagem do estado social para o estado penal de Loïc Wacquant, representado pelo Estado-centauro (cabeça liberal, de desigualdade social, e corpo autoritário, de criminalização da miséria), de guerra aos pobres, os bodes expiatórios de todos os males sociais, próprios do prison fare, como diz Massimo Pavarini. Esse Estado-centauro se caracteriza pela construção de penitenciárias, já definida como programa habitacional do governo Reagan, nos EUA, superlotadas do povo negro - referida no texto como a quarta instituição histórica de controle dos afrodescendentes: a escravidão, a segregação, os guetos e a prisão. Emma Bell, por outro lado, define o neoliberalismo em outro sentido: não como redução máxima do Estado, mas como intervenção do Estado para aumentar a acumulação privada da riqueza social - um projeto antipopular que compra o apoio da população com uma política penal populista, contra o povo excluído dos processos de produção e consumo do capitalismo tardio.
A mudança dos processos produtivos na passagem do fordismo para o pós-fordismo descrita por de Giorgi, assume o princípio marxista de Rusche de que todo sistema de produção descobre o sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas - uma síntese dialética da relação da base estrutural com as instituições de controle social. A mudança distingue o fordismo como produção de massa em linha de montagem, com controle do tempo e do movimento, do pós-fordismo como automação, robótica e micro eletrônica da produção fabril, com redução da classe operária empregada e ampliação da classe assalariada do setor terciário da economia, o terceiro estágio da fase imperialista: trabalho desprotegido, temporário, terceirizado, subcontratado - como diz Mészaros, desemprego estrutural, com uma minoria de técnicos especialistas e uma maioria sem qualificação, compondo a multidão do desemprego estrutural, fora do mercado de trabalho e dentro do sistema penal. É o pós-fordismo do governo do excesso, das novas classes perigosas (pobres, desempregados, imigrantes), necessitados de contenção por vigilância, segregação e encarceramento, como também diz Pavarini. É verdade, as mudanças no pós-fordismo não alteram as relações de produção, mas a tecnologia dos processos produtivos, que exprimem efeitos políticos e sociais concretos, e não meras mudanças culturais. Hoje, a reestruturação do mercado de trabalho tem por base um desemprego estrutural, com redução do trabalho vivo e ampliação da sub ocupação: o controle do excesso pelo sistema penal não visa construir subjetividades, mas a neutralização/destruição subjetiva para manter o status quo da desigualdade social.
3. A estimulante pesquisa de Dal Santo examina a nova penologia destacando o discurso do risco probabilístico, em lugar da retribuição e do diagnóstico, os objetivos de controle eficiente do excesso ocioso e as técnicas de classificação dos sujeitos em grupos de risco. Origens da nova penalidade são o descrédito
do sistema penal - desde Martinson (1974), cuja pesquisa de centenas de casos não descobre qualquer efeito positivo - e a reorganização pós-fordista de contenção de excedentes de força de trabalho e de controle biopolítico da população. Como se sabe, na sociedade de risco, de intensa exploração da natureza pela ciência e tecnologia do capital imperialista, mudaram as relações sociais e o ser humano, hoje e sempre o conjunto das relações sociais, conforme a famosa tese de Marx sobre Feuerbach. No pós-fordismo, o desvio é fenômeno normal, a criminalidade não pode ser eliminada e tudo é uma questão de gerir a população perigosa: nenhuma ação sobre causas sociais ou individuais do comportamento desviante, mas gestão do risco para reduzir os efeitos da criminalidade. O estudo demonstra a transformação da probation e da parole nos EUA, que abandonam a assistência ou a inserção social do condenado em nome da restrição e do controle puro e simples. A nova penalidade substitui a reintegração social pelo simples depósito ou contenção do preso, como proteção social por incapacitação seletiva com redução de custos: a prisão para os mais perigosos, o resto sob vigilância tecnológica ou virtual. Eis a tragédia social descrita por Dal Santo: o conceito de “subclasse”, o segmento excluído permanentemente das relações econômicas e dos direitos políticos, a população marginal, de maior risco social, como um setor patológico, sem alfabetização, sem habilidades, sem esperança, avaliada não pela culpabilidade do fato, mas pelo risco de pertença a grupos determinados, não mais garantidos pela presunção de inocência, mas regidos pela presunção de perigosidade, como também explica Pavarini.
4. A emoção da leitura do livro é crescente: a estrutura social da modernidade tardia, com suas mudanças de política criminal, de abandono da reintegração, da pena proporcional e de reformas sociais, na visão de Garland, começa na guinada histórica da “nova direita” nas pessoas de Thatcher e Reagan, que alterou a política do controle econômico e da liberação social para a política da liberação econômica e do controle social, nas percepções de Bell e Pavarini, atribuindo ao sistema penal objetivos de eficientismo e informatização, medidos pela quantidade de policiais, pelo volume de drogas apreendidas, pela velocidade dos procedimentos, politizando o medo das pessoas e a insegurança urbana sob o engodo do populismo penal. A “nova direita” propõe divisão de responsabilidades entre agências do Estado (polícia, justiça e cárcere) e agências privadas para restaurar a confiança do público na autoridade do Estado, que deve pegar duro contra o crime - contra jovens, pobres, negros. O fundamento do programa da nova direita é a criminologia do cotidiano, do crime como oportunidade e escolha racional com prevenção e controle situacional, também chamada de criminologia do outro, do delinquente perigoso, da cultura de dependência da sub classe, antes sustentada pelo Estado, agora combatida por guerra declarada, com estratégias de ataque, cerco e aniquilamento. A questão criminal vira questão eleitoral, com
modelos populistas de adesão ao recrudescimento penal, com argumentos do tipo “poderia ser você, ou tua família”, observa Dal Santo.
5. O conceito de giro punitivo, na passagem do fordismo para o pós-fordismo, com encarceramento em massa e transencarceramento (probation e parole), a mudança da função e dos fins do cárcere pela falência do welfare state, o descrédito das funções da pena, a exploração da insegurança do cidadão e o populismo penal de que fala Mathews - tudo isso é compatível com os países centrais do sistema, mas não se ajusta bem ao Brasil, a começar pelo encarceramento em massa com expansão do emprego, afirma Dal Santo: nos países centrais, encarceramento por crimes violentos; no Brasil, encarceramento por drogas e crimes patrimoniais - como se sabe, coisas muito diferentes. A reconstrução do desenvolvimento estrutural, socioeconômico e político da sociedade e do Estado brasileiros, o estudo das determinações político-criminais e do funcionamento do sistema de justiça criminal, é outra contribuição do trabalho de Dal Santo à criminologia brasileira.
6. A descrição do período da ditadura militar e do terrorismo de Estado aparece em detalhes na pesquisa desse jovem criminólogo: o Brasil e o cone-sul da América Latina viveram “a era mais sombria de ditadura e contra terror na história do Ocidente”, diz Hobsbaum (1995, 343), citado por Dal Santo. Mais: enquanto a Europa vivia o Estado de bem-estar social, o Brasil ingressava no desenvolvimento da dependência, do investimento de capital estrangeiro e da integração à ordem do capital financeiro internacional, no processo definido como desenvolvimento do subdesenvolvimento pela teoria marxista da dependência. Desdobramentos da captura do Brasil na dependência imperialista, em pleno regime de ditadura militar: redução do salário real para diminuir custos de produção, crescimento econômico sem distribuição de renda, repressão política como técnica de controle social, cassação de mandatos e direitos políticos, perseguição de líderes operários e camponeses, censura à imprensa e à manifestação do pensamento, a doutrina de segurança nacional e o inimigo interno, o AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional, a cassação de mandatos e de direitos políticos, a suspensão de garantias constitucionais (inclusive do habeas corpus), a polícia política do DOPS e dos DOI-CODI, as prisões ilegais, a tortura e a morte.
7. No Brasil, a predação econômica não tem limites: a redemocratização começa com a Constituição de 1988, mas o neoliberalismo ataca com o Programa Nacional de Desestatização e a venda de empresas públicas ao capital internacional; o consenso de Washington e a subordinação das políticas públicas ao FMI, com recomendações de disciplina fiscal, contenção de gastos em saúde e educação, reforma tributária, ampliação da taxa de juros, extinção de barreiras tarifárias, liberação de políticas comerciais e abertura de investimentos estrangeiros diretos. O governo FHC e a ampliação do neoliberalismo, com a desnacionalização da economia, as privatizações (a Vale do Rio Doce, por exemplo), a desindustrialização, a precari-
zação das condições de trabalho, a terceirização, a informalização e a desregulamentação econômica - em poucas palavras, um país dependente como paraíso das multinacionais -, é o que descobrimos nesse texto brilhante.
8. A estrutura da modernidade tardia, mais ou menos igual nos EUA e na Europa, com urbanização, ferramentas tecnológicas e o Welfare State, é diferente no Brasil, com ditadura militar, terrorismo de Estado, prisões ilegais, tortura e desaparecimentos. A nova penologia atuarial ainda está limitada aos EUA - mas a política da nova prevenção está presente na militarização da periferia urbana brasileira (o Alemão, por exemplo), sob o pretexto de proteger direitos humanos, mas com o fim de ampliar o controle e a subordinação das classes subalternas. O direito à segurança como violação da segurança dos direitos do povo pobre, com danos sociais e novas situações problemáticas. No Brasil, a letalidade policial é superior ao total de latrocínios, afirma Dal Santo: 3.320 x 2.314, alinhando o encarceramento em massa ao lado da matança em massa de jovens negros pobres. Vivemos uma situação de guerra civil permanente: as mortes violentas de 2011 a 2015 no Brasil, são superiores ao total de mortos na Guerra da Síria, mostra o texto.
9. Outra importante sugestão do livro é pensar a realidade brasileira, determinada pelo colonialismo, a escravidão, a dependência do imperialismo - situações inconfundíveis com a mudança do fordismo para o pós-fordismo dos países centrais; é pensar o Estado policial, a marginalização, o encarceramento, a matança da população periférica - e não as ansiedades sociais ou os dilemas culturais do neoliberalismo europeu. Em suma, o sistema de controle social na escravidão, no colonialismo e na dependência constituíram o Estado e a formação social brasileira de modo diferente da economia e da política dos países centrais do sistema globalizado. O modelo de compreensão do crime na situação de dependência do imperialismo é um elemento chave, que precisa ser definido: o texto utiliza a teoria marxista da dependência, como relação de subordinação em que “as relações de produção da nação subordinada são modificadas ou recriadas para reprodução ampliada da dependência” aos países centrais - somente possível após a consolidação da indústria e da divisão internacional do trabalho, mas com efeitos políticos, sociais e econômicos diretos (i) de superexploração do trabalho, (ii) de transferência do mais-valor excedente para os países centrais, (iii) de desenvolvimento do subdesenvolvimento e (iv) de perpetuação do colonialismo acadêmico e intelectual, como denuncia o autor. Ou, de modo mais simples, segundo Nildo Ouriques: a periferia amplia a taxa de desigualdade social, concentra a renda e a pobreza, as riquezas produzidas vão para o exterior e a universidade funciona como instrumento de colonialismo mental, cultural e científico.
10. Mas atenção: nada disso significa rejeição da ciência dos países centrais, o que implicaria rejeitar o marxismo, a psicanálise, a teoria da relatividade, para dizer o menos - e teríamos de começar do zero, apedrejando mulheres por
adultério, ou amputando a mão de autores de furto, diz Dal Santo. Ao contrário, significa considerar as determinações sócio históricas do controle social ou do sistema de justiça criminal de cada região ou Estado, em especial os fenômenos globais da relação centro/periferia na dominação imperialista do capital financeiro - por exemplo, o tráfico de drogas produzida na periferia e consumida nos países centrais, os crimes econômicos e ambientais das multinacionais e a deterioração das condições de vida da periferia, enfim, a submissão política do Estado e a subordinação econômica da sociedade à situação de dependência, que nos constituem, conformam e deformam.
A leitura desta obra soberba é francamente libertadora: perceber como a hegemonia americana engendrou consensos no combate ao comunismo, conseguiu legitimar o emprego da força na prisão dos “Black-Panthers”, estimulou o macarthismo, combateu os sindicatos, financiou golpes de estado no Irã, Iraque, Chile, Brasil e mundo afora, aplicou o poder econômico e político para o embargo comercial de Cuba e estendeu o consenso de Washington a toda América Latina. A estratégia de controle social americana na América Latina teve êxito nas políticas de guerra às drogas, de encarceramento em massa e de militarização da segurança pública - mas ainda não conseguiu exportar as ferramentas atuariais, a perseguição de criminosos sexuais e a privatização de estabelecimentos penais, no Brasil limitadas às parcerias público-privadas.
11. A criminalização secundária mobiliza a Polícia, o Ministério Público e a Magistratura, cuja margem de discricionariedade existe em pequenos detalhes, com grandes consequências, em três questões principais, identificadas pela sensibilidade político-criminal do autor: na relação furto/roubo, no problema das drogas e na prisão preventiva.
A relação furto/roubo depende de pequena diferença: a violência real ou ameaçada do roubo induz tratar qualquer constrangimento como violência, ou qualquer intimidação como ameaça - transformando simples furtos em roubos, com enorme diferença na natureza e extensão da pena - e os roubos representam 25% dos encarceramentos no Brasil.
A diferença entre tráfico e uso de drogas depende da natureza, da quantidade, de circunstâncias sociais e pessoais, da conduta e dos antecedentes do autor, ou seja, depende da subjetividade do acusador, do julgador e, antes deles, do policial na autuação do fato - e todos sob influência de metarregras, como mecanismos psíquicos emocionais que condicionam a escolha da hipótese mais grave - e o tráfico representa 28% dos encarceramentos.
Enfim, as prisões preventivas, com fundamentos precários ou insuficientes, segundo a experiência dos tribunais, ou os indícios de autoria frágeis ou inexistentes, até mesmo ausência de prova da infração e, o que talvez seja mais grave, o
desprezo às medidas preventivas diversas da prisão - mas todos sabemos, a prisão preventiva representa 40% dos encarceramentos.
O estudo contém um exame do perfil étnico e socioeconômico de Magistrados e membros do Ministério Público, que parece correto: a imensa maioria de ambas categorias é branca e, pelos níveis de remuneração, pode ser classificada nas classes superiores do País. E, como aplicam o direito burguês, mais a natureza tecnicista da formação jurídica, seria possível defini-los como elite intelectual e cultural vinculada às classes dominantes - uma classificação normal em relação a um dos Poderes da República no Estado capitalista, em correspondência com a ideologia dominante em sociedades de classes.
12. Então, temos o seguinte: os detalhes levantados por Dal Santo poderiam, talvez, reduzir a população carcerária de forma acentuada, mas a pergunta do autor, se Magistrados e membros do Ministério Público são simples burocratas ou integram a elite da sociedade, deve ser ilustrada com uma pequena, mas relevante observação. Em regra, a tese do texto é inegável: Juízes e membros do Ministério Público são punitivistas, porque assumem a ideologia dominante na sociedade capitalista e, assim, reproduzem as relações sociais como órgãos do poder do Estado capitalista. Mas essa regra tem exceções muito importantes, que precisam ser indicadas e que, sem dúvida, são reconhecidas por Dal Santo: primeiro, existe uma legião de Magistrados estaduais e federais que integram a bravíssima AJD-Associação dos Juízes para a Democracia, com atuação corajosa em defesa da legalidade democrática e dos direitos humanos nos processos criminais - e que não assumem a atitude descrita na pesquisa; segundo, existe uma legião de membros do Ministério Público, dos Estados e da União, organizados no coletivo Transforma MP, com os mesmos objetivos institucionais democráticos - e que igualmente não assumem aquela atitude; terceiro, também existem valorosas associações de policiais, estaduais ou federais, com os mesmos objetivos democráticos no inquérito policial, como os Policiais antifascistas no Rio de Janeiro - e todas essas organizações estão na linha de frente da luta pela construção de uma democracia real, igualitária e socialmente justa no Brasil.
Em conclusão, Luiz Phelipe Dal Santo veio para ficar. Escreveu um livro para ser lido por estudantes e professores de Criminologia e de Direito Penal, para ser refletido e discutido por advogados criminais, membros do Ministério Público e da Magistratura, por todos os operadores do sistema de justiça criminal e por intelectuais e cientistas sociais que se interessam pela questão criminallogo, é um livro digno de figurar nas melhores bibliotecas de Criminologia.
Curitiba/Rio de Janeiro, dezembro de 2020.
proF. dr. JuArEz cirino dos sAntos
Ao apresentar o belo trabalho de Luiz Dal Santo, parece-me que a lição que gostaria de extrair, e gostaria de fazê-lo com todo o coração, seja aquela contida nas palavras finais de sua obra, quando afirma que “a sociedade brasileira periférica necessita de criminólogos comprometidos mais com a pesquisa sobre a própria realidade e menos com a repetição e reprodução de lugares comuns e teorias clássicas pensadas e elaboradas para realidades substancialmente diversas”. É o que seguramente me parece constituir a questão de fundo, não somente em relação às “teorias” da criminologia oficial mas também (ou talvez deveríamos dizer principalmente?) àqueles que de algum modo afirmam pertencer a uma criminologia de marca “crítica”. A partir do exemplo do próprio fundador de um pensamento social “crítico”, Karl Marx, não creio haver dúvida que a inspiração e inclinação das ideias de Marx se direcionem exatamente para a perspectiva de analisar a realidade de uma determinada formação histórico-social, não a partir de alguma “dogmática escolástica”, mas sim segundo as necessidades que emergem daquela realidade.
Este é, para mim, o compromisso subjacente ao trabalho de Luiz e eu não poderia estar mais de acordo! Não são, de fato, as “fórmulas prontas” da criminologia crítica que estamos interessados em desenvolver, mas a compreensão do que denominamos como a “questão criminal”, em 1975, partindo da realidade específica de uma determinada sociedade e em um determinado período de sua história.
Esta exigência nos leva a pôr em discussão, antes de mais nada, a pretensa associação do que vem sendo chamado “neoliberalismo” com a denominada “punição em massa” ou, para ser mais preciso, “encarceramento em massa”. Tal associação, nos termos pelos quais é frequentemente descrita, funciona basicamente apenas para a sociedade norte-americana (“estadunidense”, mais exatamente) e um período bastante determinado na história dessa sociedade, os trinta e poucos anos entre a chamada “crise do petróleo” em meados da década de 1970 e a “grande recessão” de 2008/2010. Certamente, em grau bem menor, tendências para o estabelecimento de políticas que poderiam ser descritas como neoliberais e o aumento nas taxas de encarceramento são vistos em muitos outros países durante este período - o Reino Unido e o próprio caso do Brasil analisado por Luiz - mas, nesses casos, de uma maneira muito menos particular e acentuada do que nos EUA.
Na verdade, é possível desenvolver a hipótese segundo a qual a experiência penal “americana” entre os anos 1970 e 2010 não seria, de forma alguma, uma tendência do “capitalismo global” em geral, mas corresponderia a caminhos, fenômenos e realidades bastante específicas de sua situação e que devem ser explicadas com tal base. Ainda que estejamos bem conscientes de como o prestígio acadêmico e da pesquisa estadunidense – assim como a ambição expansionista inerente à lógica que apresenta as ciências sociais norte-americanas como “modelo” – estão na origem da força da narrativa que apresenta qualquer desenvolvimento norte-americano como um modelo das coisas que estão por vir.
Há, nessa perspectiva, um aspecto que considero fortemente normativo, diria quase prescritivo, em grande contraste à esperada atitude “descritivista” das ciências sociais – particularmente aquelas de caráter positivista. Em outras palavras, as ciências sociais norte-americanas, ao apresentarem as tendências de desenvolvimento de sua própria sociedade como tendencialmente universais, estão apenas favorecendo o expansionismo (certamente inovador e “modernizador”) dos centros de desenvolvimento do capitalismo que me parecem estar ainda prevalentemente nas mãos dos norte-americanos – a começar pelo ciclo “pós-fordista” do período aqui considerado, desdobrado enfim na direção do que foi denominado capitalismo “de conhecimento” ou, de modo correlato, da “vigilância”.
A extensão de tais dinâmicas a outras sociedades e outras partes do planeta é produto de luta, luta de classes sobretudo, mas tal luta de classes se relaciona a determinações culturais, étnicas, de gênero e, como dizem alguns, de “raça”. Todavia, como dizia acima, é preciso começar pela análise teórica. Quais são as determinações específicas com as quais tais “interseccionalidades” se dão, qual é a análise subjacente da realidade social? Afinal, sem tal análise, obviamente qualquer fórmula pronta de “criminologia crítica”, mesmo que quisesse se autodenominar “radical”, não seria nada além de mero flatus vocis. E no caso da América Latina – peço desculpas pela obviedade do que irei escrever – certamente não é substituindo o prestígio da criminologia crítica pelo prestígio do positivismo, ou o prestígio do nome de Baratta pelo de Lombroso, que resolveremos o problema da compreensão da natureza da “questão criminal” no continente. De qualquer forma, é claro que um uso inteligente de algumas ideias de Baratta na análise da realidade latino-americana pode ser de grande valia!
Mesmo o próprio “marxismo” é frequentemente compreendido em um sentido puramente economicista (vide Garland em Punishment and Modern Society), um pouco como se fosse um sistema de equações estruturais no qual a economia constitui a variável exógena e outras determinações de tipo cultural – entre as quais a pena – seriam seu produto mecânico. Claro está que isso não tem nada a ver com a análise marxiana que consiste, sobretudo, como indica o subtítulo de “O Capital”, em uma “crítica da economia política”, uma crítica construída
a partir do ponto de vista de classe, uma crítica, enfim, interna ao discurso que pretende descrever, que o nega ao mesmo tempo em que o reconhece (a famosa “dialética”!). Há aqui uma visão, naturalmente, que concebe tal análise como um trabalho prático de crítica o qual, pelo fato de fazer emergir as contradições, de algum modo intervém na práxis e modifica, assim, o que descreve. As políticas criminal e penal são um aspecto muito importante dessa crítica. De fato, com a questão criminal emerge um profundo mal-estar da sociedade que lhe serve de contexto, um mal-estar inseparável das características estruturais mais profundas dessa mesma sociedade.
Francamente, não sei se a simples aposição do adjetivo “meridional [ou do Sul Global]” ao substantivo “criminologia” é suficiente para avançarmos em tal análise. No trabalho que inaugurou o discurso da criminologia crítica na América Latina, America Latina y su criminología (1981), Rosa del Olmo brilhantemente introduziu no debate um dos ensaios mais famosos de Antonio Gramsci, aquele sobre a questão meridional, de 1926. O que Rosa queria enfatizar era a relação que Gramsci estabelece entre o papel desta sociologia, desta criminologia, de um modo de pensar essencialmente racista, e a inferiorização de certos extratos da população, no caso especificamente os sulistas italianos. E nos explica Rosa que “O racismo teve um papel central: os pobres eram pobres porque eram biologicamente inferiores. E esta afirmação podia ser feita naquele momento com apoio na ‘ciência’. A superioridade – tal como formulava o evolucionismo – era o resultado da seleção natural transmitida geneticamente. Os seres “inferiores” (leia-se não-proprietários) estavam obrigados à obediência e à submissão por sua inferioridade” (p. 30). De fato, quando investigamos qual é o motivo da inferioridade dos italianos do Sul, dentro do debate sobre a chamada “questão meridional” que Gramsci em certo sentido conclui, mas que já começara em 1862 com um primeiro texto de Lombroso sobre a Calabria quando era médico oficial das tropas piemontesas que ocupavam a região logo após a Unificação da Itália (portanto, alguns anos antes de “descobrir” a inferioridade “natural” dos sulistas na “covinha occipital” do pobre Villella!), vemos que essa inferioridade era determinada militarmente pelas forças em campo. Portanto, como disse Rosa, em certo sentido, a descoberta da inferioridade biológica dos italianos do Sul nada mais fez do que justificar a supremacia dos piemonteses, do norte da Itália, que ocupavam a região. É o mesmo tipo de raciocínio que mais tarde ocorreria no caso das colônias, dos impérios coloniais, nos quais a inferioridade dos colonizados legitimaria, justificaria e racionalizaria o poder dos colonizadores.
Assim, parece-me que Rosa estava tentada a aplicar o raciocínio de Gramsci sobre o Sul da Itália ao Sul da América, à América Latina. E como nos bem mostra Luiz, a realidade da escravidão primeiro, e do racismo depois, deixou uma profunda marca nas experiências criminal e penal na América Latina, e particu-
larmente no Brasil. Temos aqui, talvez, a contribuição mais específica que uma criminologia crítica especificamente latino-americana possa aportar não apenas ao estudo da questão criminal em tal região mas, de forma bem mais genérica, ao estudo da questão criminal também nos países aos quais se costuma chamar “primeiro mundo”.
A hipótese ganha força com o fato de as vítimas dos processos de criminalização também nesses últimos serem majoritariamente ligadas às populações afrodescendentes e aos imigrados para a Europa (nem sempre, mas frequentemente também negros). Recordando-nos sempre como ser “de cor” não seja exatamente um elemento em si (como fazem os racistas), mas seja, na verdade, um dispositivo intimamente conectado aos processos de estruturação social das hierarquias, dentro tanto das sociedades “periféricas” como também daquelas que se encontram no “centro” do desenvolvimento! Não é por acaso que seja Luiz, quem conhece bem ambas as realidades, a nos oferecer a valiosa análise contida neste trabalho.
dArio MElossi (Università di Bologna)
[Texto traduzido por André Giamberardino (Universidade Federal do Paraná)]
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introdução
A partir das últimas décadas do século XX, uma tendência no sistema de justiça criminal passou a ser notada em várias regiões do mundo, não obstante apresentando variações quantitativas, qualitativas e temporais, a depender da realidade geopolítica. Trata-se do fenômeno chamado encarceramento em massa, principal característica do que também se apresenta como “giro punitivo”. No Brasil, verificou-se um incremento no número de pessoas encarceradas superior a 700% entre 1990 e 2016 (Ministério da justiça, 2017). Os dados mais recentes dão conta de que hoje 726.712 pessoas encontram-se encarceradas no país, ocupando o terceiro lugar entre as maiores populações carcerário do mundo (Ministério da Justiça, 2017). Para além de referências numéricas, a realidade qualitativa dos cárceres brasileiros é igualmente caótica: prisões superlotadas, controladas por facções criminosas, um ambiente com alta propagação de doenças infectocontagiosas, centro de violências e mortes. É assim indicado como talvez o ambiente de maior violação de direitos humanos e garantias fundamentais no Brasil. Apenas nos primeiros catorze dias de 2017, 126 (cento e vinte e seis) detentos foram brutalmente assassinados (degolados, esquartejados, carbonizados) em presídios de três cidades (Manaus/AM, Boa Vista/RR e Nísia Floresta/RN), em uma guerra entre facções criminosas1.
Não se limitando à questão do aumento nos índices de encarceramento, a letalidade policial é outro ponto alarmante na política criminal brasileira: a polícia do país em referência tem como prática institucional a execução sumária, sendo responsável pela morte de ao menos 4.224 pessoas em 2016 (FBSP, 2017). No último relatório oficial do IPEA (Brasil, 2017), realizado com colaboração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apurou-se que o número de mortes causadas por ações ou intervenções policiais é inclusive maior do que o das correspondentes a latrocínios – isto é, “o policial mata mais do que o ladrão” .
Somadas, as supracitadas questões podem constituir o quadro a se definir como o giro punitivo brasileiro.
Para agravar ainda mais esta situação, os discursos dos últimos três Ministros da Justiça2 indicam um quadro que tende a se intensificar. Em 2016, Alexandre de Moraes defendeu que a solução para a segurança pública do país é
1 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/asmais/2017/01/1846402-saiba-quais-foram-algumas-das-maiores-rebelioesem-presidios-do-brasil.shtml>. Acesso em: 20 fev. 2017.
2 Durante o período em que o presente trabalho foi realizado, o cargo de Ministro da Justiça foi ocupado por três diferentes pessoas, o que pode indicar uma instabilidade e falta de projeto para a política criminal brasileira.