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CADERNO 2
SALVADOR, QUINTA-FEIRA, 6/12/2007
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“Estamos num momento * de miséria sexual total” Contardo Calligaris | Psicanalista lança seu primeiro livro de ficção, com o título provisório de Conto de amor, em 2008
QUEM É | Contardo Calligaris nasceu em 1948 em Milão, é doutor em psicologia clínica pela Université de Provence e colunista da Folha de S.Paulo. Estudou em Genebra e Paris, onde iniciou sua formação psicanalítica e a convivência com Roland Barthes e Jacques Lacan. Chegou ao Brasil em 1985.
LÚCIO TÁVORA | AG. A TARDE
O
que é o amor, como levar uma vida boa, é possível se livrar da angústia? Queríamos respostas, daquelas que se buscam num livro barato de auto-ajuda, e ele parecia mesmo ter todas. Fala calmo, mas com convicção, com um sotaque italiano que não o deixa, mesmo depois de mais de 20 anos da sua chegada ao Brasil. Na última sexta-feira, esteve em Salvador participando do V Seminário Viajando pela Cultura, promovido pela Petrobras. Voltou a Cristóvão Colombo para mostrar como "a maior viagem de todos os tempos", a descoberta da América, fundou a modernidade e fincou em nós a necessidade da transformação e acabou gerando o apreço pela preservação da memória e uma insistente nostalgia de voltar pra casa, mesmo quando a intenção é buscar o novo. "Saudosos do passado, escrevemos a experiência do romance das nossas vidas. Somos o relato da nossa viagem. Precisamos achar a qualidade da nossa viagem ser boa de ser contada". Entre publicações clínicas e outros escritos, é autor de Crônicas do individualismo cotidiano (Ática, 1996), Hello Brasil! (Escuta, 2000 [6a ed.]) e A adolescência (série Folha Explica, Publifolha, 2001). Em abril de 2008, lança pela Cia. das Letras seu primeiro livro de ficção, com o título provisório de Conto de amor. Calligaris conversou com os repórteres Pedro Fernandes e Tatiana Mendonça sobre amor, solidão e viagens.
A TARDE | Qual a importância de viajar, não apenas como o ato de deslocar-se de um lugar, mas no sentido individual? CONTARDO CALLIGARIS | O que importa na viagem não é a distância que a gente percorre, o que importa é que a viagem seja um momento em que a gente é transformado pelo que encontra. Por exemplo, se um amigo me visita em São Paulo, dependendo do amigo e de onde ele vem, não me interessa muito levá-lo para ver as belezas turísticas da cidade. Segundo o amigo vou escolher lugares que eventualmente vão chocá-lo, mas num melhor sentido vão lhe proporcionar um campo de experiência em que ele vai poder se descobrir diferente do que ele é. Viajar é isso: descobrir em si algo que você não sabia que estava lá. AT | Qual a importância do deslocamento se você pode fazer essa viagem de transformação onde está? CC | Concordo, mas a viagem se tornou importante porque a modernidade começou com o deslocamento das pessoas fora do seu quadro habitual, do seu quadro tradicional, do seu vilarejo. Isso certamente criou os pressupostos da subjetividade moderna. E ainda cria. Porque no fundo alguém que sai do sertão e pega um ônibus para São Paulo não está muito diferente de quem estava num barco de Colombo. O choque subjetivo é muito mais importante que a distância percorrida. AT | A busca que se faz numa viagem é uma busca por pertencer ou não pertencer? CC | É uma certa experiência de não-pertencimento. Existem experiências extremas. Tenho uma dificuldade, pessoalmente, de ir para lugares em que de alguma forma eu não consiga me misturar. Isso é uma coisa complicada. Sei lá, passar três meses em Tóquio não interessa muito para mim, porque, por mais que eu me vista como um executivo japonês, eu sempre vou ser um cara totalmente diferente dos outros na rua. Ao mesmo tempo, a experiência tem que ser estranha para mim, mas eu tenho que poder pertencer de alguma forma, passar despercebido. AT | Que tipo de nostalgia sente um indivíduo de uma segunda geração de imigrantes, que não pertence ao seu local de nascimento nem à terra deixada por seus pais? CC | Uma nostalgia muito grande. Não é a nostalgia de um lugar que nunca conhecera. É surpreendente no trabalho psicanalítico nas Américas, tanto no norte como no sul, o fato de que há muito da memória de quem viajou para cá. Você vê pessoas da segunda ou terceira geração que não sabem nem o nome da vila de onde seus avós saíram. Um dos problemas que as pessoas enfrentam para conseguir o passaporte português, espanhol ou italiano é porque elas não têm nem as informações básicas. Não é uma nostalgia da Itália ou daquele lugar da Itália. E é preciso lembrar que quando aquelas pessoas saíram de lá, elas estavam num sofrimento brutal, por falta de liberdade, de bens, de comida. Não era
nho, como diz a música. [Risos] CC | Não, tem pessoas que estão muito melhor sozinhas do que outras. Por uma série de razões. Mas a solidão é um sofrimento. Tem momentos em que a gente sofre disso. Tudo bem, a gente pode transformar isso num filme de Godard, por exemplo. AT | O senso comum das revistas femininas sempre diz que o diálogo é o melhor caminho num relacionamento amoroso. Há coisas que não devem ser ditas? CC | Num relacionamento amoroso o diálogo é o pior caminho. Isso é proibido. Para falar de um filme, de um livro, do que a gente fez ou vai fazer amanhã, é ótimo. O diálogo no sentido de sentar e discutir a relação é a antecâmara da funerária. Em geral, na maioria dos casais, o que falta é uma certa ética discursiva. Saber renunciar a dizer coisas que não são necessárias e que depois vão se provar mentirosas, porque não era isso que a pessoa queria dizer.
uma viagem que se fazia sorrindo. Era uma viagem totalmente penosa. A nostalgia de um lugar ao qual verdadeiramente pertenceríamos. Por outro lado, se você fosse transportado para um lugar ao qual você verdadeiramente pertence, de volta a uma sociedade tradicional como não mais existe, com a cabeça que você tem hoje, certamente você enlouqueceria rapidamente. AT | O senhor falava dessa questão moderna da preservação do patrimônio histórico. Quando se fala em globalização, geralmente se argumenta que culturas mais “poderosas” acabam com a cultura local. Ao mesmo tempo, muitos estudiosos discordam disso e argumentam que as culturas locais não desaparecem, mas se apropriam de novos elementos com os quais se identifica. Queria que o senhor falasse um pouco disso. Outra questão é se essa vontade de preservação de tradições e culturas fadadas a morrer não denota uma certa necrofilia. CC | É claro que sim. Até porque qualquer tipo de preservação nessa altura é um pouco uma visita ao zoológico. Você vai para uma reserva indígena, tanto aqui como nos Estados Unidos. Vai para Utah, reserva dos Navajos, grandes guerreiros, são um monte de gente fazendo colares de espelhinhos para turistas. É um negócio de chorar. Preferia que eles estivessem em Nova Iorque. Acharia mais digno. Isso também está presente na nossa relação com os monumentos históricos. Uma espécie de purismo que não corresponde em nada ao uso que tinham as coisas. É a transformação do mundo em museu, em zoológico. Sou muito feliz em ter nascido quando nasci. Não tenho nostalgia de outras épocas nem de outros lugares. Acho que a cultura na qual a gente nasce é a cultura que a gente tem que vivê-la. Uma cultura tradicional que é inimiga desses princípios é também minha inimiga. Você pode me dizer que a incisão do clitóris na África é legal porque é um costume tradicional. Eu não acho legal. Eu acho que não deve fazer. Acho normal que uma pessoa que não queira saia de lá e vá viver na Europa ou nos Estados Unidos. Não acho legal que uma família norte-africana, que migra para a Europa, se permita um tipo de exercício de poder interno que contradiga os limites que a lei e o costume ocidental impõem. Por outro lado,
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“Ouço jovens que fazem cálculo de quando será sua aposentadoria. Vejo um empobrecimento da capacidade de desejar”
AT | E brigar, é importante? CC | Depende. Tem casais que só conseguem transar depois de ter brigado. Aí é importantíssimo. AT | Seu primeiro livro de ficção será sobre o amor, e a maioria das nossas narrativas são sobre o amor. O que é o amor? CC | O amor é... Tem que ser muito claro, porque o mal-entendido pode ser brutal. O amor é uma série de coisas...
existe o enriquecimento recíproco entre as culturas, ou não teríamos o samba, o blues, o rap. Uma das coisas que mais gosto no Brasil é exatamente essa idéia da miscigenação cultural. O Brasil é um país onde o discurso da preservação não funcionou muito bem. O Brasil é um bom exemplo da não-abolição das diferenças sem que para isso a gente renuncie a uma cultura comum. AT | Certa vez o senhor escreveu que os jovens já não têm grandes sonhos, grandes ideologias. Eles estão mais perdidos? CC | Sou terapeuta de adolescentes e sinto uma mudança nesse sentido. Na minha experiência um jovem de 13 ou 14 era alguém que tem sonhos extravagantes. O que não significa necessariamente refazer o mundo. Significa, "Ah, não sei, quero ser ator em Hollywood". O cara não fala inglês, não tem chance nenhuma de ir para lá, é feio pra caramba, é fanho. Não tem problema. Ele ousa desejar o que ele deseja. Vinte anos mais tarde o que eu vejo são muitos jovens que poderiam ir para lá, que falam inglês e não são fanhos, e querem, fundamentalmente, um emprego público. Ouço jovens de 17 e 18 anos que fazem cálculo de quando será sua aposentadoria. Acho isso estranho. Vejo um empobrecimento da capacidade de desejar. AT | Mas não tem um viés saudosista quando o senhor diz que é um empobrecimento? O senhor está tomando sua referência. É inevitável. CC | Sim,claro.Émeioinevitável. A referência é geracional. Mas isso não é só da geração. Talvez a adolescência esteja acabando. Ela começou nos anos cinqüenta, com o filme do James Dean, Juventude Transviada. Esse é o ato de nascimento da adolescência como conceito no Ocidente. A partir daquela época a gente achou que os adolescentes deveriam ser do contra e isso os qualificava como adolescentes. Pode ser que a adolescência esteja acabando. Aliás, faz sentido,
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“[O amor] É uma relação que o outro tem o maior carinho pelos meus sonhos e minhas ambições, no sentido amplo dessa palavra” porque a maioria dos adultos se veste como adolescentes [Risos]. AT | Os jovens estão mais caretas, moralistas, em relação ao sexo e à política? CC | Sim. Em relação à política, sem dúvida. Mas as duas coisas têm explicações conjunturais. Não é o momento em que grandes projetos de transformação social estejam óbvios para quem quer que seja. Não vejo por que os adolescentes não seriam atravessados por essa perplexidade. Por outro lado, estamos verdadeiramente num momento de miséria sexual total. Essa geração cresceu praticando só sexo protegido. Isso é uma coisa muito legal, mas que transformou totalmente a vida sexual e destruiu a revolução sexual do fim dos anos 60. Não estou falando só da promiscuidade, mas da maneira de transar. Para um adolescente de 20 anos, transar significa ter uma ereção, colocar a camisinha e não pode retirar antes e tira com cuidado para evitar que o preservativo fique dentro. Para alguém que tem 50 anos, transar é transar um pouquinho, parar, recomeçar, recolocar, enfiar, se beijar, se chupar, sei lá o quê. Isso é um negócio que se tornou proibido. Transar se tornou
AT | Difícil, né! CC | Não, não é difícil. É uma relação em que o outro me transforma, mas não da maneira que ela ou ele queria me transformar. É uma relação em que o outro nunca me patologiza. Ou seja, nunca acha que estou louco ou doente por causa dos desejos que eu tenho. É uma relação que o outro tem o maior carinho pelos meus sonhos e minhas ambições, no sentido mais amplo dessa palavra.
um negócio difícil. Beijar se transformou em um negócio difícil. Tem contaminação, mononucleose... Isso não é culpa dos jovens, mas torna tudo menos interessante. AT | O senhor estava falando que cada um de nós cria uma narrativa própria, e é preciso que essa narrativa se sustente de algum modo. Em que medida os filmes e a literatura nos dão elementos para criar isso? CC | É o nosso repertório. É no cinema e na literatura que a gente aprende a amar e a viver. O sujeito moderno aprende a viver na ficção. A literatura é um efeito da modernidade. A partir do momento em que já não há códigos nem norma de conduta, no lugar disso você tem um imenso repertório de vidas possíveis nas quais você vai encontrando inspiração. AT | Esse repertório de vidas e viagens possíveis é crescente. Não sei se estamos indo para uma escala infinita de angústia, onde pensamos que nunca vamos ter tudo isso. É impossível tirar a angústia da vida? CC | É. [Risos] AT | Mas esse repertório de possibilidades mais vasto aumenta essa angústia? CC | Essa angústia é salutar, porque a gente não pode mesmo fazer tudo. Depois o segredo não está na extensão, está na intensidade. Na verdade, alguém pode nunca sair do lugar onde nasceu e ter uma vida de extrema felicidade. O problema é não conseguir viver o que estamos vivendo. Isso é angustiante. Não conseguir se autorizar a viver, seja um amor, uma dor, um luto, uma felicidade qualquer. AT | A solidão é um problema? CC | Sim. Sobretudo a solidão urbana. AT | Existe uma forma tranqüila de se lidar com ela? CC | Não, tranqüila não. AT | Ninguém pode ser feliz sozi-
AT | E o amor tem medida? CC | [Pensa]. Em que sentido? [Risos]. AT | Se tem ou deveria ter limites, fronteiras. A ficção nos ensina que não tem. CC | É uma pergunta perigosa, porque o amor de alguma forma, quando ele funciona, é bastante incondicional. Um bom exemplo do que é um parceiro amoroso e também de um aspecto do amor que não mencionei antes que é a confiança absoluta. Confiança absoluta não tem nada a ver com ciúme e traição. Falo de confiança no outro porque o outro me dá confiança no mundo. Você sabe que está num amor se você é assaltado em Kuala Lumpur, fica sem nenhum documento e dinheiro e você só tem um telefonema e você liga para a pessoa pela qual está apaixonado. Se você liga para outra pessoa, esse amor não é bom. A pessoa para quem você liga é aquela que não vai dizer "o que você fez para ser assaltado?", que não vai perder tempo em conversas inúteis e se for necessário vai vender o cachorro e o carro para pegar o primeiro avião e tirar você do buraco. Essa é uma medida do amor. Mas o que acontece em nosso repertório é que o amor sem medida é a paixão romântica no sentido menos interessante. Em que o outro seria a coisa que completa você. Isso não é nada que eu reconheça como amor. Uma das coisas mais desagradáveis é se apaixonar pelo próprio amor. Entrar numa espécie de prática literária ruim, onde se sentir e se mostrar apaixonado seria um valor em si. AT | Assim a gente volta à questão do sujeito construir sua narrativa. Então narrar o amor pode se tornar mais importante que viver o amor. CC | Sim, claro. Se você ler Werther, de Goethe – que é um livro que não gosto, embora Barthes, que é um dos homens que mais contaram na minha vida, gostasse –, o mais importante para ele era a narrativa. Ele estava apaixonado pela sua própria paixão. Tudo bem, mas não é comigo.