Estrutura doentia

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#572 / DOMINGO, 18 DE AGOSTO DE 2019 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

Estrutura

DOENTIA

As estratégias de psicólogos na abordagem dos efeitos do racismo no sofrimento psíquico


Q Daiana Nascimento, Laura Augusta e Leomaria Alves, da Rede Dandaras

Clínica

ANTIRRACISTA 16

SALVADOR DOMINGO 18/8/2019

Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Foto ADILTON VENEGEROLES adilton@grupoatarde.com.br

Psicólogos articulam novos saberes e estratégias para lidar com a especificidade do sofrimento psíquico de vítimas do racismo

uem entrava na sala trazia a mesma história de sofrimento, como uma dor que atravessasse gerações. Podia ser uma senhora de 80 anos ou um homem de 20. Pobres, de famílias numerosas, trabalhando muito para ganhar pouco, calando humilhações repetentes. Jeane Tavares ouvia aquilo, de novo, de novo e de novo e foi buscar a conexão que unia todas aquelas pessoas. Encontrou no racismo o fio. Ela atuava como psicóloga há 13 anos, mas não sabiadireitooquefazercomaqueladescoberta.Durante agraduaçãonaUniversidade FederaldaBahianãoouviu nada sobre relações raciais, e a experiência atendendo pacientes brancos num consultório particular de Salvador também mostrou-se insuficiente. Para atuar no Ambulatório de Atenção Psicológica a Pessoas que Vivem em Condições Crônicas, projeto de extensão permanente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em Santo Antônio de Jesus, Jeane precisou criar um conhecimento novo. Para diagnosticar depressão, por exemplo, os parâmetros que costumava usar não serviam mais. Há duas formas de avaliação para apontar a doença: o instrumento, uma espécie de questionário, e uma entrevista clínica. Pelo instrumento, muitas vezes a indicação era a de que a pessoa tinha uma depressão moderada, mas, na entrevista, ela reparava que era mais severa. “Percebi que a população negra tende a minimizar seu sofrimento, a não validá-lo, a não reclamar. Existe essa noção de que a pessoa negra é forte, precisa suportar tudo. O nível de sofrimento é tão elevado nessa população que o que para os autores é uma coisa, para a gente que está ali é outra”. Junto com os alunos que atendem no ambulatório, abandonou as escalas antigas e criou novas, além de incluir outros termos na sua prática. “A gente usa muito mais a oralidade do que a escrita. Criamos, por exemplo,uma escala de zeroa dezpara as emoções da semana. Lá a gente não fala estressado. A gente pergunta: essa semana você ficou pegado? E se alguém chega dizendo que está ‘assim, assim’, a gente vai buscar a explicação, e vai tratar ‘assim, assim’”. Além da depressão, ali também são outros os parâmetros do que poderia ser marcado como hipervigilância, paranoia e síndrome do pânico. “Como mulher negra, vivo preparada para um ataque. Um psicólogo branco poderia dizer que sou hipervigilante, mas, se eu fosse o padrão, comparada com uma mulher branca, brinco que ela seria lerda. Good vibes, né?”, ri Jeane. “Da mesma forma, não posso dizer que um homem negro que sente palpitações, que começa

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Q Daiana Nascimento, Laura Augusta e Leomaria Alves, da Rede Dandaras

Clínica

ANTIRRACISTA 16

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Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br Foto ADILTON VENEGEROLES adilton@grupoatarde.com.br

Psicólogos articulam novos saberes e estratégias para lidar com a especificidade do sofrimento psíquico de vítimas do racismo

uem entrava na sala trazia a mesma história de sofrimento, como uma dor que atravessasse gerações. Podia ser uma senhora de 80 anos ou um homem de 20. Pobres, de famílias numerosas, trabalhando muito para ganhar pouco, calando humilhações repetentes. Jeane Tavares ouvia aquilo, de novo, de novo e de novo e foi buscar a conexão que unia todas aquelas pessoas. Encontrou no racismo o fio. Ela atuava como psicóloga há 13 anos, mas não sabiadireitooquefazercomaqueladescoberta.Durante agraduaçãonaUniversidade FederaldaBahianãoouviu nada sobre relações raciais, e a experiência atendendo pacientes brancos num consultório particular de Salvador também mostrou-se insuficiente. Para atuar no Ambulatório de Atenção Psicológica a Pessoas que Vivem em Condições Crônicas, projeto de extensão permanente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em Santo Antônio de Jesus, Jeane precisou criar um conhecimento novo. Para diagnosticar depressão, por exemplo, os parâmetros que costumava usar não serviam mais. Há duas formas de avaliação para apontar a doença: o instrumento, uma espécie de questionário, e uma entrevista clínica. Pelo instrumento, muitas vezes a indicação era a de que a pessoa tinha uma depressão moderada, mas, na entrevista, ela reparava que era mais severa. “Percebi que a população negra tende a minimizar seu sofrimento, a não validá-lo, a não reclamar. Existe essa noção de que a pessoa negra é forte, precisa suportar tudo. O nível de sofrimento é tão elevado nessa população que o que para os autores é uma coisa, para a gente que está ali é outra”. Junto com os alunos que atendem no ambulatório, abandonou as escalas antigas e criou novas, além de incluir outros termos na sua prática. “A gente usa muito mais a oralidade do que a escrita. Criamos, por exemplo,uma escala de zeroa dezpara as emoções da semana. Lá a gente não fala estressado. A gente pergunta: essa semana você ficou pegado? E se alguém chega dizendo que está ‘assim, assim’, a gente vai buscar a explicação, e vai tratar ‘assim, assim’”. Além da depressão, ali também são outros os parâmetros do que poderia ser marcado como hipervigilância, paranoia e síndrome do pânico. “Como mulher negra, vivo preparada para um ataque. Um psicólogo branco poderia dizer que sou hipervigilante, mas, se eu fosse o padrão, comparada com uma mulher branca, brinco que ela seria lerda. Good vibes, né?”, ri Jeane. “Da mesma forma, não posso dizer que um homem negro que sente palpitações, que começa

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a suar frio toda vez que entra num banco, tem transtorno do pânico, nem dizer que é paranoia se ele tem um medo constante de ser assassinado pela polícia”. Instigada pela vivência no ambulatório, Jeane resolveu pesquisar, no pós-doutorado, uma clínica culturalmente adequada à população negra. Num dos artigos que escreveu, em coautoria com Sayuri Kuratani, registrou que o terapeuta precisa estar ciente de que “situações de insucesso educacional, profissional ou amoroso, quepodemseratribuídasaosdiversostiposderacismo,tendemaserinterpretadas pela pessoa negra de forma personalista (distorção cognitiva em que pessoa atribui a si a responsabilidade sobre um evento que não está sob o seu controle). Esta distorção é gerada e mantida por crenças sobre si como inadequado, indigno de ser amado, incompetente ou incapaz, associados a sentimentos de auto-ódio, culpa e desesperança, que podem conduzir a um quadro de depressão, com risco de suicídio”. Outro produto da sua pesquisa são perfis nas redes sociais (@saudementalpopnegra). No Instagram, já são mais de 30 mil seguidores. O acolhimento entre seus pares não é tão expressivo assim. Ela tem dificuldades de publicar os estudos em periódicos. “É terrível. E qual é a alegação? Não é um tema relevante, é muito específico, é identitário, não é científico... Tem todas essas desculpas”. Para Jeane, o que é questionável é que o critério raça/cor esteja tão ausente das pesquisas na área, já que os serviços-escola nas universidades públicas costumam atender majoritariamente negros. “A psicologia no Brasil tem uma dívida enorme com a população negra. A gente usa essas pessoas para fazer pesquisa, mas esses estudos servem para quem? Você não pode dizer que funciona para a população branca de classe média, mas também não serve para a população negra, porque não se analisa raça/cor. Como é possível desconsiderar o fato de que sermos quase 100% negros em Salvador influencia na constituição de nossa subjetividade?”.

CÚMPLICE A discussão sobre como o racismo produz sofrimento psíquico ainda é pouco presente nas universidades brasileiras, mas o tema da raça não é propriamente alheio à psicologia, que em suas origens tendia a ratificar o discurso da superioridade intelectual dos brancos. A partir de reivindicações dos movimentos negros, o conselho federal da categoria reconheceu a prática no documento Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os, publicado em 2017, mas ainda pouco conhecido.

“É preciso criar redes de apoio”, diz o psicólogo Valter da Mata

«Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades» Tornar-se negro (1983) Neusa Santos Souza 18

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Ali, descreve que, “historicamente, a psicologia brasileira posicionou-se como cúmplice do racismo, tendo produzido conhecimento que o legitimasse, validando cientificamente estereótipos infundados por meio de teorias eurocêntricas discriminatórias, inclusiveportomarporpadrãoumarealidadequenãocontempla a diversidade brasileira”. Coube a duas mulheres negras romper o silêncio. Na década de 1940, a socióloga e psicanalista Virginia Bicudo tornou-se a primeira pessoa a escrever uma tese sobre relações raciais no Brasil. Na década de 1980, a psiquiatra baiana Neusa Santos Souza publicou Tornar-se negro, um marco incontornável nos estudos sobre o tema. “Quando se fala na emocionalidade do negro, é quase sempre para lhe contrapor à capacidade de raciocínio do branco”, apontou, e descreveu como o negro precisa estar “sempre em guarda” e ser o “melhor”. “Na realidade, na fantasia, para se afirmar, para minimizar, para compensar o ‘defeito’, para ser aceito. Ser o melhor é a consigna a ser introjetada, assimilada e reproduzida”. Infelizmente, ela mesma não conseguiu carregar o fardo. Suicidou-se em 2008, no Rio de Janeiro, onde vivia, depois de deixar um bilhete pedindo desculpas aos amigos. Faltam dados precisos no Brasil sobre a prevalência detranstornosmentaisnapopulaçãonegra,masuma pesquisa divulgada este ano pelo Ministério da Saúde mostrou que jovens negros têm maior chance de cometer suicídio no país. O risco para os que têm entre 10 e 29 anos é 45% maior do que entre brancos. A diferença aumenta para os negros do sexo masculino (50%). Entre os anos analisados pela pesquisa, de 2012 a 2016, o suicídio entre jovens brancos permaneceu estável, enquanto o de negros cresceu 12%.


UENDEL GALTER / AG. A TARDE

«Estando no centro de uma dinâmica muito complexa, na qual se sentem ora perseguidos ora perseguidores, os negros vivem num estado de tensão emocional permanente, de angústia e de ansiedade, com rasgos momentâneos dos distúrbios de conduta e do pensamento, o que os inquieta e os faz sentir culpa» Racismo e os efeitos na saúde mental (2004) Maria Lúcia da Sìlva SALVADOR DOMINGO 18/8/2019

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Ao lado do Teatro Jorge Amado, na Pituba, funciona o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, vinculado à Secretaria Estadual de Promoção à Igualdade Racial. O psicólogo Valter da Mata acompanha aqueles que chegam para fazer denúncias. É quando a discriminação deixa de ser, como diz, uma “arma apontada para a nuca”. “No mais das vezes, é algo sutil, tem que virar para trás para perceber que existe. Na seleção de pessoal, você é descartado por ser preto, e aí o sujeito começa a se achar incapaz. E a psicologia tem muito disso de colocar para o sujeito o resultado dos seus fracassos. É individual, não coletivo”. Ele, que acredita que o futuro da psicologia são as políticas públicas, busca um outro caminho. “Se você vai atender a população preta, pobre, num Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], num Caps [Centro de Atenção Psicossocial], e não tem a discussão do racismo como vetor de sofrimento psicológico, me desculpe, mas você está fazendo estelionato profissional. Você é 171 da profissão. Porque é isso que mais vai aparecer como determinante do sofrimento”. Valter costuma repetir essa fala para seus alunos da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) – a atuação no Centro Nelson Mandela acontece por meio de um convênio com a faculdade. Os imbricamentos das relações raciais com a psicologia ainda não está formalmente na grade do curso, mas ele discute sempre o tema nas aulas. Amparado nas teorias da psicóloga norte-americana Janet Helms, Valter explica como se desenvolve a identidade do negro na diáspora – o deslocamento forçado de um povo. São quatro estágios, diz, não lineares. O primeiro é o da alienação, quando se está imerso nos “valores brancos”. O segundo é o do impacto provocado pela discriminação racial, quando a “defesa criada pelo sujeito não funcionou da forma como deveria”. A terceira, conta, é a da militância. “É quando a pessoa começa a usar camisas 100% negro e bota embaixo do braço a autobiografia de Malcolm X. Só anda com preto, só namora preto. É uma fase de muita agressividade. A pessoa fica muito intolerante, principalmente com os irmãos pretos que não chegaram à suprema verdade”, ri. A quarta fase, diz, é a da articulação. “Você vai entender que o demônio não está no branco, nem está no preto. Está na sociedade. Nós vivemos numa sociedade racista, uma macroestrutura que designa lugares. E infelizmente o nosso lugar, enquanto a gente ainda não sabe, é de sofrimento. As estratégias de en-

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RAUL SPINASSÉ / AG. A TARDE

ESTELIONATO

Jeane Tavares: uma nova clínica para elaborar os efeitos do racismo

frentamento não podem ser apenas individuais. É preciso criar redes de apoio”. Em 2015, Laura Augusta e Tainã Vieira, que estudavam juntas no curso de psicologia da Faculdade Ruy Barbosa, resolveram montar um grupo de acolhimento para mulheres negras, a Rede Dandaras. O projeto acabou se desdobrando em espaços formativos e também num mapeamento inédito das psicólogas negras antirracistas no Brasil. Cerca de 700 profissionais já se cadastraram no levantamento, 60 delas de Salvador. A Dandaras é formada hoje por seis mulheres. Em novembro, elas vão ministrar uma formação em psicologia e relações raciais. No ano passado, promoveram o Dialogando Clínicas Pretas, em que convidaram psicólogas negras para discutir o seu trabalho. A ideia é que não aconteçam mais casos como o que a própria Laura viveu. Quando falava na terapia sobre sua infância, sobre ter crescido como uma criança negra e gorda, sua antiga psicóloga a interrompeu para perguntar se a cor fazia mesmo


«Historicamente, a psicologia brasileira posicionou-se como cúmplice do racismo, tendo produzido conhecimento que o legitimasse, validando cientificamente estereótipos infundados por meio de teorias eurocêntricas discriminatórias, inclusive por tomar por padrão uma realidade que não contempla a diversidade brasileira» Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os (2017) Conselho Federal de Psicologia

diferença. “Nós precisamos reconhecer que existe um luto intergeracional que é o banzo. Tem a ver com reviver realidades que seus ancestrais viveram. E infelizmente carregar essa maleta que é a maleta das vulnerabilidades que são advindas do processo de escravidão, sequestro, estupro, diversas violações”. Laura, Leomaria Novaes e Daiana Nascimento, que aparecem na foto que abre esta reportagem, estudaram psicologia em faculdades diferentes e em nenhuma delas ouviram falar – ao menos não espontaneamente – de como o racismo afeta a saúde mental. Foram elas que muitas vezes trouxeram essa discussão. “Mas fica sempre no âmbito do conflito, nunca é colocada no viés pedagógico”, diz Daiana, que está concluindo a graduação na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). “Quando nós pautamos o tema, somos tachados de militantes, agressivos, raivosos”.

ENFRENTAMENTO

«Quando o terapeuta não reconhece o racismo como produtor de iniquidades sociais, preconceito e discriminação, contribui para o aumento de sofrimento psíquico de seu paciente negro e para a manutenção das desigualdades raciais» Manejo Clínico das Repercussões do Racismo entre Mulheres que se “Tornaram Negras” (2019) Jeane Tavares e Sayuri Kuratani

No documento sobre relações raciais, o Conselho dePsicologiarecomendouque,alémdedisciplinasespecíficas que “denunciem o racismo” e que apresentem exemplos de como os psicólogos podem atuar na desconstrução dos preconceitos, o tema da raça também deve ser inserido “transversalmente” na formação desses profissionais, para que compreendam que “há um sofrimento psíquico peculiar, sutil e explícito presente no cotidiano da vida de pessoas negras”. E o texto emenda: “Ao deixar de dispor de seu arsenal (justamente tão apropriado para questões de identidade, autoestima,relacionamentointerpessoal e dinâmicas psicossociais, grupais e institucionais), ao silenciar essas temáticas em suas produções acadêmicas, ao não acolher seus efeitos diante de demandas repetidamente escancaradas e ignoradas, [a psicologia] omite-se de participar do enfrentamento político daquelas modalidades de violência, reafirmando invisível a demanda de mais da metade da população brasileira”. No Brasil, o Instituto Amma Psique Negritude e a Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) lutam para mudar este quadro. No ambulatório que coordena em Santo Antônio de Jesus, além dos atendimentos individuais, Jeane criou um laboratório de psicoeducação sobre os efeitos do racismo. Tem um monte de treinamentos, de respiração, inclusive, para lidar com situações de estresse, como ser abordado pela polícia, enfrentar uma discussão racial na feira, ser rejeitado numa paquera no São João. É sobre educação e enfrentamento. “Todo profissional de psicologia, de saúde, precisa ser antirracista. Se não for, jamais será ético”. «

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