Desafio histórico

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#582 / DOMINGO, 27 DE OUTUBRO DE 2019 REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE

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Salvador tem recorde de pré-candidatos negros à prefeitura, que tentam fortalecer debate étnico-racial nos partidos

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HISTÓRICO

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Nós estamos torcendo para que os partidos se toquem. Tá na hora de a Bahia mostrar sua cara preta ANTÔNIO CARLOS DOS SANTOS, pré-candidato e filiado ao PDT

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O fator

RAÇA Texto TATIANA MENDONÇA tmendonca@grupoatarde.com.br e BRUNO LUIZ editoria.brasil04@grupoatarde.com.br Fotos RAPHAËL MÜLLER editoria.fotografia06@grupoatarde.com.br

Representatividade, racismo institucional e outras questões em torno da mobilização de pré-candidatos negros à prefeitura de Salvador

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o meio daquele mundo de gente que celebrava o 2 de Julho, Dia da Independência da Bahia e também do Brasil, uma faixa roxa chamava a atenção entre centenas de outras. Em letras amarelas garrafais, anunciava um desejo: “Agora é Ela”. Era o lançamento da pré-candidatura da socióloga e ativista Vilma Reis à prefeitura de Salvador. No final do mesmo mês, foi a vez de Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, anunciar que também queria ser candidato, durante um evento em homenagem a Abdias Nascimento na sede do Ilê Aiyê, na Liberdade. Ancorado por organizações dos movimentos negros, o levante foi tomando corpo. A menos de um ano das eleições, hoje há pelo menos 13 pessoas negras, entre militantes e políticos de carreira, que manifestaram a vontade de comandar o Palácio Thomé de Souza, um número inédito. A missão de que se imbuíram é tão penosa quanto histórica. Salvador, com 81,5% da população declaradamente preta e parda, nunca elegeu um dirigente negro. No polo oposto, até mesmo Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, com mais de 80% da população declaradamente branca, já escolheu um negro para a prefeitura da cidade.

A administração atual de Salvador também é pouco diversa. Dos 17 secretários municipais, apenas um énegro.IveteSacramento,ex-reitoradaUniversidade do Estado da Bahia, está à frente da Secretaria da Reparação, cujo orçamento previsto para este ano é de R$ 5,7 milhões, o menor dentre as pastas. Entre 1978 e 1979, a capital baiana teve um prefeito negro, mas que não foi eleito. Indicado para o cargo durante a ditadura militar, o advogado Edvaldo Brito governou por apenas sete meses. Na sua antiga casa, transformada no Centro de Excelência Professor Edvaldo Brito, em Armação, ele lembra com orgulho das obras que fez no curto período, como o saneamento da avenida San Martin e a drenagem na Baixa dos Sapateiros, que sofria com alagamentos. Em 1985, Edvaldo se candidatou à prefeitura, apoiado por Antonio Carlos Magalhães, mas foi derrotado pelo radialista Mário Kertész. Agora, aos 82 anos, ele se apresenta novamente como pré-candidato. Abre a conversa com um preâmbulo sobre a nova lei eleitoral, que alterou as coligações partidárias. Agora, é possível se unir a outros partidos para lançar candidatosaprefeito,masnãoavereador.“Quempuxa voto é o candidato da majoritária. Por essa razão, meu partido, se tiver juízo, vai ter que ter um candidato. E como ninguém é candidato de si mesmo, va-

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Salvador é pobre porque os pretos são pobres. O racismo impede a cidade de se viabilizar economicamente SÍLVIO HUMBERTO, pré-candidato e vereador do PSB

RAUL SPINASSÉ / AG. A TARDE

mos ver quem é que o partido escolhe”. A definição será feita durante as convenções partidárias, que acontecem entre 20 de julho e 5 de agosto. Com um longa trajetória na política, Edvaldo, que é vereador de Salvador pelo PSD, diz que a questão da cor “nunca esteve presente nos partidos”. “Eles precisam abrir suas portas para isso. Em vez de apenas terem uma cota para mulher, precisamtercotasparanegros.Éumapeloqueeufaço.Aínósvamosteroinstrumental para conseguir disputar”.

COERÊNCIA Colega de Edvaldo na Câmara, o economista Sílvio Humberto, que está no segundo mandato como vereador, volta a 1789, quando aconteceu a Revolta dos Búzios, também conhecida como Conjuração Baiana, para explicar o cenário das pré-candidaturas negras de agora. Para ele, trata-se de uma “continuidade”. E a pulverização de nomes, uma estratégia política. “Nós estamos lidando com um fenômeno extremamente complexo, que é o racismo. Diante disso, com cada um enfrentando a cultura organizacional dos partidos, o racismo institucional de cada um, a estratégia está mais do que correta. É uma unidade na diversidade. À medida que conseguirmos ultrapassar as barreiras partidárias, as regras invisíveis, Salvador tem uma boa chance de apresentar uma outra visão, mais inclusiva”. Presidente de honra do Instituto Cultural Steve Biko e presidente municipal do PSB, Sílvio sabe que vai encontrar uma briga boa dentro do seu próprio partido. Guilherme Bellintani, que comanda o Esporte Clube Bahia, está conversando com o PSB e pode ser o escolhido pela legenda, embora repita que seu foco é o Bahia. Sílvio faz um afago, lembrando dos serviços “relevantes” que Bellintani prestou à cidade quando foi secretário de ACM Neto, mas diz que é preciso ter “cuidado”. “As pessoas querem impor um nome, não é? E aí chegar e sentar na janela... É preciso combinar com o outro se ele vai ceder a janela assim”. Do seu gabinete no centro da cidade, ele cobra “coerência” dos partidos de esquerda. “Você não pode fazer um discurso de promoção, de defesa da igualdade racial, enquanto esses protagonistas têm que ficar esperando? No limite, se a cor não conta, por que não votar na gente?”. Sem muitos rodeios, do jeito de quem parte para a briga, Vilma Reis diz que, se os partidos optarem por “mais do mesmo”, vão estar “perdendo o bonde da história”. “Nós estamos oferecendo uma oportunidade de os partidos se reposicio-

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UENDEL GALTER / AG. A TARDE

narem num debate contemporâneo, avançado. Não é possível que a esquerda vá se acovardar e partir para um projeto conservador, parado no lugar”. O embate interno para viabilizar sua candidatura no PT será, certamente, um dos mais duros. Na disputa estão nomes tradicionais do partido, como Nelson Pelegrino, Jorge Solla, Robinson Almeida e Valmir Assunção, deputado federal que também integra a lista dos pré-candidatos negros à prefeitura de Salvador, ao lado dos vereadores Moisés Rocha e Luiz Carlos Suíca.

OUTRAS PRIORIDADES Vilma, que nunca concorreu nem para vereadora, aposta que muitos deles irão recuar em nome do projeto que está apresentando, inspirada pela vitória da neófita Alexandria Ocasio-Cortez para o Congresso dos Estados Unidos. “A nova estética política se faz com mulheres negras”. E se o PT foi criticado por ter se afastado das bases nas eleições do ano passado, ela lembra que as mulheres negras são a própria base. “Nós nunca nos afastamos porque somos de lá. Para a gente não tem uma busca por um retorno”. Da mochila que carrega, ela retira um monte de papéis. São os organogramas da prefeitura, que anda estudando para descobrir jeitos de “inverter prioridades”, de olhar mais para o “miolo” de Salvador.

Na Assembleia Legislativa da Bahia, há um prédio batizado com o nome do médico e deputado Nelson David Ribeiro, que faleceu em 1991. Ali trabalha a pedagoga Olívia Santana, considerada a primeira deputada estadual negra da Bahia. Sua mãe foi por muitos anos empregada doméstica na casa de Nelson, e no dia da posse da filha apontou, com orgulho, a reviravolta da vida. Por 10 anos, Olívia foi vereadora. Integrou como secretária a administração municipal e também a estadual e, em 2012, foi candidata a vice-prefeita na chapa de Nelson Pelegrino pelo PT. Agora, mira o comando da capital. Conta que seu partido, o PCdoB, deve lançar candidatura e espera ser a escolhida. Ela ouve muito por aí, quase como um mantra, que é preciso parar com o “identitarismo” e fazer “política ampla”.Porisso,reforçaqueospré-candidatosnegros não estão pensando exclusivamente num setor da sociedade. “Isso me incomoda muito. As candidaturas brancas, quando são postas, não são vistas como a candidatura de uma minoria da cidade. Se pensa sempre no branco como o universal. Mas quando um nome negro se apresenta, vem sempre acompanhado da ideia de que é uma candidatura setorizada”. Olívia diz que não tem uma visão “romântica” ou “meramentesimbólica”doquedevaserapresençade um negro ou uma negra na prefeitura de Salvador. Diz que esta não é uma condição “suficiente” e que é preciso haver um projeto político que promova uma melhora das condições de vida da população e a “integração” da cidade. O também deputado Hilton Coelho, do PSOL, que em 2008 fez sucesso na campanha para prefeitura com um jingle em ritmo de reggae que falava em “capital da resistência”, tem a mesma visão pragmática sobre o tema. Para ele, a cor sempre teve algum nível

Se eles optarem por um projeto conservador, por mais do mesmo, estarão perdendo o bonde da história VILMA REIS, pré-candidata e filiada ao PT

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designificadoparaoseleitores,maséprecisotransitar “de um elemento simbólico para um programa político”. “Não tem mostrado eficácia política, inclusive eleitoral, porque existe a ausência de um programa, com medidas viáveis, num sentido transformador”. No seu partido, há outro pré-candidato negro, o sindicalista Raimundo Calixto.

DISPUTAS INTERNAS

Temos que quebrar os obstáculos que impedem as pessoas negras de serem escolhidas pelos partidos

ADILTON VENEGEROLES / AG. A TARDE

OLÍVIA SANTANA, pré-candidata e deputada estadual do PCdoB

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Foi em 2006 que pela primeira vez, durante a Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, Vovô disse: “Eu Quero Ela”. Ela, a prefeitura de Salvador. Era o início de uma campanha que teve até música e camisa, mas não vingou. De uns quatro anos para cá, o movimento foi retomado. Filiado ao PDT, Vovô ressalta que o objetivo do grupo, “independentemente do partido”, é que haja uma candidatura negra em Salvador. Ele conta que a decisão por seu nome foi coletiva. “Não era minha pretensão inicialmente. Mas, a partir da colocação do meu nome, a campanha extrapolou fronteiras, pela força do Ilê Aiyê. Tá na cidade, tá no movimento negro de São Paulo, do Rio, de Recife, do Maranhão... Todo mundo falando sobre isso”. A questão que conta, naturalmente, é que os partidos também falem. “Estamos torcendo para que eles se toquem, tanto os de esquerda quanto os de direitaquesedizemdemocráticos.EstánahoradeSalvador, depois de 470 anos, mostrar sua cara preta”. Historicamente mais ligados à causa racial, os partidos de esquerda ainda se mostram reticentes em dividir o poder na prática. A discussão acaba, muitas vezes, circunscrita ao plano ideológico. Quando questionados sobre o assunto, os presidentes das siglas acionam um discurso que parece ensaiado. Não minimizam a necessidade de candidatos negros e ressaltam que seus partidos têm compromisso com a pauta. Como em um exercício para demonstrar que as reivindicações da militância ressonam internamente, apresentam uma relação de pessoas negras eleitas pelas siglas – a maior parte no Legislativo. Mas quando se trata do lançamento de candidaturas negras à prefeitura, a retórica dá lugar ao pragmatismo. Não basta ser negro, é preciso ser competitivo. Everaldo Anunciação, presidente estadual do PT, não garante que o partido terá candidato negro para comandar Salvador. Ele afirma que esse fator não será essencial para a escolha. Prega que quem quiser receber a aclamação da sigla precisará ser capaz de dialogar com a população sobre outros temas. “Você não tem uma massa ideologizada. Há outras questões na vida das pessoas, como transporte, emprego, meio ambiente. Temos que aliar o olhar que temos, ideo-


UENDEL GALTER / AG. A TARDE

Fundação Dr. Jesus, ele tem um eleitorado mais pobre e morador das periferias, maciçamente negro. Entretanto, não evoca a questão racial na sua plataforma política. Nas eleições de 2016, quando concorreu a prefeito, Isidório autodeclarou-se pardo. Em 2018, quando foi o deputado federal mais votado, afirmou à Justiça Eleitoral ser negro. Já no grupo de ACM Neto, o Pastor Márcio Marinho (Republicanos) também é um nome. É outro que, assimcomoIsidório,nãotrazocombateaoracismopara a linha de frente das bandeiras que defende. É um quadro cogitado, ainda, para vice de Bruno Reis.

CONSTRUÇÕES

Assim como há cotas para mulheres, os partidos devem ter cotas para negros EDVALDO BRITO, pré-candidato e vereador do PSD

lógico,a uma compreensão de sociedade e direitos que o povo tem. Na maioria das vezes, ele não está tão politizado como nós”. Para Davidson Magalhães, que preside o PCdoB na Bahia, “o racismo é raiz de todas as mazelas sociais do Brasil”. Mesmo tendo este diagnóstico, o comunista não acredita que escolher um nome negro para concorrer à prefeitura seria capaz, por si só, de responder a problemas como violência e pobreza. Para ele, a cor também não é o primordial. “Não escolher uma candidatura negra não significa negar outras candidaturas. É uma visão estreita do movimento negro. Nunca se avançou no combate à discriminação racial com visões estreitas”. Símbolo da direita na Bahia, o DEM, sigla a ser vencida em 2020, não debate a participação de negros na política como legendas do campo adversário. Por lá, quem deve ser alçado candidato à prefeitura é Bruno Reis, que se declarou pardo na última eleição, quando foi eleito vice-prefeito. Apesar de não ser pauta prioritária, o partido tem buscado formar lideranças negras, segundo o vice-presidente estadual do DEM, Antônio Elinaldo, prefeito de Camaçari. Seu discurso é baseado na meritocracia. Para ele, com “força de vontade”, é possível atingir o sucesso. No campo das potenciais candidaturas negras que representam setores conservadoresdasociedade,doisnomes despontam, emladosopostosnapolítica.Na base de Rui Costa, o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante) apareceu na liderança de uma pesquisa de intenção de voto realizada recentemente. Conhecido pelo trabalho controverso de ressocialização de dependentes químicos na

Na última eleição para a prefeitura de Salvador, em 2016, apenas dois candidatos se declararam negros: Célia Sacramento, pelo PPL – que também pretende disputar no próximo ano, pela Rede, enfrentando internamente outro pré-candidato negro, o sindicalista Magno Lavigne –, e Fábio Nogueira, pelo PSOL. Para o cientista político Cláudio André Souza, há no Brasil um fenômeno de pluralização da sociedade, que também acontece na capital baiana, o que ajuda a explicar as pré-candidaturas negras. “Há novos debates acontecendo, que não ficam restritos ao que era, por exemplo, no final da década de 1990, o debate de classe. A discussão sobre racismo, por exemplo, é crescente, especialmente em Salvador”. No ano passado, ele lançou o livro Para onde vai a política brasileira. Sua previsão mais delimitada para as eleições de Salvador em 2020 é que dificilmente uma figura “outsider”, alguém sem uma carreira política constituída na cidade, conseguiria estabelecer uma candidatura competitiva. “Salvador tem tido candidaturas viáveis a partir de quem já foi deputado federal. No sistema político brasileiro, o deputado federal é aquele que tem a magnitude de votos, destaque em termos de agregação política e recursos a serem manejados. Cada um tem R$ 15 milhões em emendas. É um dinheiro que garante entrada nas bases eleitorais”. Mas,comolembraCláudio,empolíticatudoéconstrução – embora às vezes já pareça ruína, como diz a músicadeCaetano.“Quandoagenteanalisaosdados de quem se elege, a gente percebe que a pessoa foi candidata uma, duas, três vezes”. O principal, diz, é fomentar a discussão. “Esse debate é fundamental, paraalémdaeleição.Vejocomoumamobilizaçãoque tem esse caráter interno de influência nos partidos e nos programas de governo. É um diálogo numa perspectiva mais ampla, de pensar a representação negra na política. E isso é muito importante”. «

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