101 funks aue você tem que ouvir antes de morrer, de Julio Ludemir

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101 funks

que vocĂŞ

tem que

ouvir

antes de

morrer Julio Ludemir



Julio Ludemir

Este projeto foi patrocinado pela Secretaria de Estado de Cultura, através do Edital de Criação Artística no Funk 2011. Petrobras Cultural

Patrocínio

Realização


Copyright © 2013 Julio Ludemir COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria HELOiSA BUARqUE dE HOLLANdA consultoria ECiO SALLES coordenação editorial CAMiLLA SAvOiA projeto gráfico FLAviA CASTRO entrevistas com funkeiros MARCELLE ABREU 101 FUNKS qUE vOCÊ TEM qUE OUviR ANTES dE MORRER produção gráfica SidNEi BALBiNO revisão CAMiLLA SAvOiA RAqUEL MALdONAdO revisão tipográfica CAMiLLA SAvOiA TATiANA LOUzAdA CiP-BRASiL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SiNdiCATO NACiONAL dOS EdiTORES dE LivROS, RJ

L975c Ludemir, Julio, 1960101 funks que você tem que ouvir antes de morrer / Julio Ludemir. - 1. ed. Rio de Janeiro : Aeroplano, 2013. 268 p. : il. ; 19 cm (Tramas urbanas) iSBN 978-85-7820-103-6 1. Funk (Música) - Rio de Janeiro (RJ) - História e crítica. 2. Movimento da juventude Rio de Janeiro (RJ). i. Título: Cento e um funks que você tem que ouvir antes de morrer. ii. Título. iii. Série. 13-06489

Cdd: 306.4842 CdU: 316.74:78.067.26

24/10/2013 25/10/2013 TOdOS OS diREiTOS RESERvAdOS AEROPLANO EdiTORA E CONSULTORiA LTdA.

Praia de Botafogo, 210/sala 502 Botafogo — Rio de Janeiro — RJ CEP: 22.250-040 Tel: (21) 2529-6974 Telefax: (21) 2239-7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXi”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.


Na virada do século XX para o XXi, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Senti certa responsabilidade e muita alegria com o convite para escrever este texto. Julio Ludemir é um dos meus heróis culturais. Faz parte de uma galera que está redesenhando o Rio e, mais que isso, apontando questões e caminhos que, no futuro, tenho fé de que darão à cultura a relevância que ela deve ter na construção de um país menos desigual, mais educado, mais potente e mais feliz. Julio apresenta no livro uma abordagem inovadora e “funkcêntrica” das listas de tudo que não se pode perder na vida. Mas consegue muito mais que isso: com rigor jornalístico e muita sacação, compilando funks importantes, o livro relata a própria história do gênero e do movimento, apresenta alguns de seus principais personagens e mostra como vem mudando a própria identidade do Rio de Janeiro nas últimas duas décadas. Assim como o samba e a bossa nova — e mundo afora —, hoje o funk também é a cara do Rio de Janeiro. Não só do Rio da periferia, mas do Rio da cidade, do interior, do morro, da praia, das ruas e dos shoppings — do Rio de todos nós. Outro motivo de alegria: este livro é resultado de um edital pioneiro lançado pela Secretaria de Estado de Cultura em 2011, parte de sua batalha, ao lado de artistas, produtores e intelectuais para desestigmatizar o funk e reafirmá-lo como expressão artística e cultural — o Edital de Apoio a Projetos de Criação Artística no Funk. O edital financiou filmes, livros, exposições fotográficas, Cds, shows, rodas de funk, seminários, concursos de dança, projetos de história através do graffiti, blogs, com alguns belos resultados. Ainda em 2013, teremos outro. O funk vai fazendo a sua história, e ainda bem que tem gente como Julio Ludemir para contá-la.

Adriana Rattes Secretária de Estado de Cultura


Agradecimentos

Comecei a desenhar este livro para o Edital do Funk da Secretaria Estadual de Cultura, uma das ideias visionárias do MC Leonardo, que Adriana Rattes encampou. Agradeço aos dois. Agradeço também ao Bernardo Carvalho e, principalmente ao Tiago Gomes, pela compreensão e boa vontade demonstradas durante o tortuoso processo de produção deste projeto. Tenho certeza de que falo por mim e por todos os ganhadores do edital. Era meu desejo escrever este livro de forma colaborativa, dividindo-o com a plêiade de jovens que descobri a partir de um projeto que coordenei na Secretaria Municipal de Cultura de Nova iguaçu, rede que ampliei na FLUPP Pensa, processo formativo de autor e leitor que antecede a FLUPP. Por uma razão, que não me cabe explicar aqui, a adesão dos jovens foi apenas parcial. de qualquer forma, agradeço aos que participaram, que deram um tom mais afetivo e menos jornalístico aos textos que assinam aqui, de funks que escolheram menos por um critério de qualidade e mais por seu envolvimento com a música em questão. A talentosa e articulada Yasmin Thayná, que tive o privilégio de descobrir em uma escola pública de Nova iguaçu, voltou a afirmar nosso amor ajudando-me a localizar a maioria dos jovens com que tenho a honra de dividir este livro. Mais uma vez, obrigado, Ka-Bella. Também foi fundamental a publicitária e quase jornalista Marcelle Abreu, uma das jovens repórteres de Nova iguaçu que ajudaram a mudar minha vida no final da década passada. Capturei-a na Furacão 2000 (onipresente neste livro), onde conheceu parte dos funkeiros sobre os quais escrevi. Fiquei em dúvida quanto ao cré-


dito com que reconheceria a sua participação no exaustivo processo de localizar e entrevistar os personagens que ajudaram a criar uma nova identidade para o Rio de Janeiro. Mas meu egoísmo intelectual não me impede de dizer que é isso mesmo, escrevi 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer “com” Marcelle Abreu. valeu, Nariguda. dois curadores me ajudaram a definir a lista de clássicos do funk — meus parceiros Ecio Salles e Rafael de Pino. Conheci Ecio em Nova iguaçu, na equipe que Marcus vinicius Faustini levou para a Secretaria Municipal de Nova iguaçu. Ele sugeriu os títulos no final da primeira edição da FLUPP, que criamos juntos. Já Rafael de Pino é a melhor tradução que conheço de um jornalista cultural, que conheci ao lançar o polêmico romance Sorria, você está na Rocinha, e lá se vão dez anos. A firmeza que demonstrou naquele delicado episódio deu origem a uma admiração que só podia resultar em amizade. Tivemos enfim oportunidade de trabalhar juntos. Tudo o que fiz na vida desde o dia 13 de dezembro de 1991 tem como inspiração Juliana Ludmer, que nasceu para me salvar de mim mesmo. Mais uma vez, obrigado por você existir, filha. E Mônica Maia, obrigado por ter aturado as 101 noites que levei para escrever este trabalho — sim, foi isso mesmo, escrevi um verbete no final dos exaustivos e intermináveis dias em que produzi a Batalha do Passinho e a ii FLUPP. Espero que todo aquele sacrifício tenha valido a pena, meu amor.


SUMÁRIO PREFÁCIO – POR RAFAEl dE PInO E ECIO SAllES 01. A FIRMA é FORtE - MCS tIkãO E FRAnk

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02. AtOlAdInhA - BOlA dE FOgO E AS FOgUEntAS 03. BOlAdOnA - tAtI QUEBRA BARRACO

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04. RAP dO RAStAFARI - MCS BORRó E dORRé 05. COnQUIStA - ClAUdInhO & BUChEChA

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06. RAP dO SAlgUEIRO - ClAUdInhO & BUChEChA 07. CEROl nA MãO - BOndE dO tIgRãO 08. ChAtUBA - MC SAPãO

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09. dAnçA dA BUndInhA - MCS XAndE E CABEçA 10. dAnçA dA CABEçA - MC nEnéM

11. dAnçA dO gORIlA - gORIlA E PREtO 12. InjEçãO - dEIzE tIgROnA

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13. dESCE E SOBE - BOndE dO VInhO 14. dOnA gIgI - OS CAçAdORES

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15. EgUInhA POCOtó - MC SERgInhO

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16. ElA Só PEnSA EM BEIjAR - MC lEOzInhO

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17. EndEREçO dOS BAIlES - MCS júnIOR E lEOnARdO 18. EU SOltO A VOz - MC SABRInA 19. FAVElA - MC MARCInhO

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20. FEIRA dE ACARI - MC BAtAtA

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21. RAP dA CIdAdE dE dEUS - MCS CIdInhO E dOCA 22. gAROtA nOtA CEM - MC MARCInhO 23. jÁ é SEnSAçãO - MC AndInhO 24. ME lEVA - lAtInO

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25. MElô dA MUlhER FEIA - ABdUllAh

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26. nOSSO SOnhO - ClAUdInhO & BUChEChA 27. PAVAROttI - ChOCOlAtE E MC FABInhO 28. PERdI VOCê - MCS SUEl E AMARO 29. PIkAChU - VAnESSInhA

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30. MOntAgEM dO StAR WARS - MCS ElESBãO E hAROldInhO 31. PRA ME PROVOCAR - MC kORIngA 32. PRInCESA - MC MARCInhO 33. QUER BOlEtE? - MC COlIBRI

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34. QUERO tE EnCOntRAR - ClAUdInhO & BUChEChA 35. QUICA nO CAlCAnhAR - MC kORIngA 36. RAP dA CIdAdE AltA - MC PIXOtE

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37. RAP dA dIFEREnçA - MCS MARQUInhOS E dOllORES 38. RAP dA FElICIdAdE - MCS CIdInhO E dOCA 39. RAP dA MOREnA - MCS WIllIAM E dUdA 40. A ROCInhA PEdE A PAz - MC gAlO

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41. RAP dAS ARMAS - MCS júnIOR E lEOnARdO 42. RAP dO BOREl - MCS WIllIAM E dUdA 43. RAP dO PIRãO - MC dIEddy 44. RAP dO SIlVA - MC BOB RUM

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45. RAP dO SOlItÁRIO - MC MARCInhO

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46. O REtORnO é dE jEdI - MCS CAtRA E g3 47. Só lOVE - ClAUdInhO & BUChEChA

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48. SOM dE PREtO - MCS AMIlCkA E ChOCOlAtE

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49. RAP dO tREM - MCS MARCElO E PUlUngA

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50. SOU FEIA, MAS tô nA MOdA - tAtI QUEBRA BARRACO 51. PlAnEtA dOMInAdO - Sd BOyS

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52. UM MORtO MUItO lOUCO - jACk E ChOCOlAtE 53. Só UM tAPInhA - MCS BEth E nAldInhO 54. VAI lACRAIA - MC SERgInhO

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55. VEM kIkAndO - OS hAWAIAnOS 56. VIdA lOkA - MEnOR dO ChAPA 57. tOQUE dA CAdEIA - MC gIl

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58. VIdA BAndIdA - MC SMIth

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59. VISãO dE CRIA - MC SMIth

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60. MEl dA SUA BOCA - COPACABAnA BEACh 61. MElô dO BêBAdO - MC BAtAtA

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62. RAP dO BOndE - MCS BIg RAP E lUCIAnO 63. tOP dO MOMEntO - MC dAnAdO (SP) 64. SIMPÁtICO - MC CAtRA

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65. RAP dO BOB MARlEy - MCS tECO E BUzUngA

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66. dE OndE EU VEnhO - MCS PIkEnO E MEnOR (SP) 67. RAP dO ABC - MCS júnIOR E lEOnARdO

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68. RAP dA FAzEndA dOS MInEIROS MCS ROny E SARgEntO 182 69. ME ChAMA QUE EU VOU - MCS nAldO E lUlA 70. RAP dA MUdAnçA - MCS tIê E PlAyBOy 71. dAnçA dA MOtInhA - MC BEth

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72. A dIStânCIA - MCS MÁRCIO E gORó 73. dAnçA dO CRéU - MC CRéU

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74. Ah, EU tô MAlUCO! - MOVIMEntO FUnk ClUBE

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75. RAP dO AMOR - MCS SInIStRO E MIãO

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76. zOnA OEStE - MC MARCInhO E BOB RUM 77. VEnhA COMIgO - MCS nélIO E ESPIgA 78. VIdA nA CAdEIA - MC CAtRA

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79. UM lAnCE é UM lAnCE - MC SMIth 80. EU tô tRAnQUIlãO - MC SAPãO

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81. SOU PAtRãO, nãO FUnCIOnÁRIO - MC MEnOR dO ChAPA 82. SOU FOdA - AVASSAlAdORES

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83. FAlA MAl dE MIM - MC BEyOnCE

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84. RAP dO tRABAlhAdOR - MC MAgAlhAnzE 85. tÁ PAtRãO - MC gUIMê (SP)

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86. BAtAlhA dO PASSInhO - VInIMAX

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87. MElô dOS APAIXOnAdOS - FORçA dO RAP 88. RAP dO BAIlE - MC CACAU

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89. RAP dA dAnIElA PEREz - MCS MASCOtE E nEnéM 90. ChAtUBA dE MESQUItA - MC dUdA 92. BOnECO MEnInO - MC ChUCk 22

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91. FEIA PRA CASCAlhO - BOndE nEUROSE 93. kIlO - BOndE dO ROlê

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94. RAP dA MASSA FUnkEIRA - AIltOn E BInhO 95. tREMEndO VACIlãO - PERllA

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96. RAP dA EStRAdA dA POSSE - MCS COIOtE E RAPOSãO 97. MOntAgEnS dA PIPO'S 98. PROPOStA - AnIttA

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99. yOU tOOk My lOVE - yOU CAn dAnCE

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100. ORQUEStRA FIlARMônICA dA FAVElA - SAny PItBUll 101. EU AdORO, EU ME AMARRO - MC nEgO dO BOREl

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Prefácio

PALAvRA dE “PLAYBOY” Nunca fui funkeiro. E nunca seria. Não significa, em absoluto, que eu não tenha amado a legítima música eletrônica brasileira e que eu não tenha defendido o funk “com voadoras” — como se deve sempre defender os melhores amigos em brigas. Não significa também que eu não tenha ficado até de manhã nos bailes, com os graves ensurdecedores das paredes de som, as brigas de corredor, os banhos de espuma e os beijos na boca, uma experiência que mudou para sempre a história de quem esteve lá. Nunca fui funkeiro porque, em qualquer baile, eu era “playboy”. Não significa, em absoluto, que eu tenha sido rico. Tive uma boa vida proporcionada por meus pais, mas nenhum luxo. Fui o tipo de playboy que passou a infância em um apartamento apertado entre os morros do Borel e da Formiga, na Tijuca. O playboy que foi adolescente em ipanema e ia à praia com os playboys pichadores, os playboys surfistas e os playboys dos morros do Cantagalo, do Pavão e do Pavãozinho, sem distinção. O playboy que cursou o ensino médio na roça, no interior do Rio de Janeiro, e passava lá as férias e fins de semana desde antes de saber falar. O funk, evolução do miami bass, do freestyle e do electro estava em todos esses lugares. O que me atraiu no funk foi justamente a principal arma de seus detratores: a qualidade musical. E a evidência mais clara da qualidade do estilo é a energia de seu ritmo, importado e adaptado à perfeição pelos dJs e MCs das favelas cariocas. Sou um amante incondicional de música. qualquer música. Nada na minha história pessoal poderia justificar a curadoria de um livro dedicado a canções de funk. Se estou no Rio de Janeiro, nunca serei o maior especialista do estilo em um raio de um quilômetro. Só pude ter a honra de escolher essas canções — com o auxílio fundamental de amigos pessoais e dos demais responsáveis pela edição — porque este não é um livro 14


técnico. É um livro sobre canções, cada uma com sua história, suas qualidades, seu charme. A maioria delas marcou um momento importante da minha vida. Meu primeiro contato com o estilo foi com as melôs, tocadas em horários incertos em algumas — raras — rádios cariocas. Meu mentor foi um aprendiz de pedreiro que embalou com funk a curta jornada de trabalho colocando ladrilhos no banheiro da casa dos meus pais. Minha vida monótona de criança foi interrompida e marcada para sempre com aquela batida diferente de tudo o que se ouvia de música na minha casa, e ele deu o caminho das pedras. A obra acabou e, a partir dali, segui sozinho minha vida de pequeno playboy, procurando no dial as rádios imprensa, Manchete, Tropical e Antena 1 para gravar funks em uma fita cassete, torcendo para o radialista não colocar a vinheta do programa e macular o registro das minhas preferidas. Só que aquela batida nova que passei a ouvir com obsessão não tinha nascido para o rádio. Seu habitat natural é o baile funk, que viria a descobrir anos depois, instituição tão poderosa que virou sinônimo de “funk carioca” no exterior. Só se entende o poder do funk depois da primeira visita a um baile — o impacto de uma parede de som, a caixa torácica vibrando, o som tão alto que é impossível conversar, a catarse coletiva, quase religiosa, e os corpos se mexendo, tudo no mesmo ritmo. você pode odiar ouvir o funk no volume máximo em celulares ou em carros com a mala aberta, exibindo o potente sistema de som, mas quem já foi a um baile funk pelo menos entende o motivo desse lapso de civismo. O funk é um fenômeno de grupo. Um fone de ouvido não resolve. A característica que abarca absolutamente todas as canções deste livro é a energia. Todas elas funcionaram nos bailes em algum momento — algumas funcionam até hoje, e para sempre. O batidão do funk é o átomo do estilo, a base que já foi o Voltmix do dJ Battery Brain e o Pump up the party do dJ Hassan, nos anos 1980, e sofreu metamorfose na mão dos dJs brasileiros até virar o tamborzão 20 anos depois. Nessas ba15


tidas, ao passar dos anos, o estilo se desenvolveu em várias frentes, e tive sete pilares para justificar que canções entre as milhares disponíveis seriam as 101 aqui celebradas. Os quatro primeiros pilares tratam apenas da música em si: letra, melodia, voz e estética (a produção fonográfica, os arranjos, os samplers). Os outros três — contexto histórico, crônica social e sucesso popular — tratam das características marcantes da música antes e depois de composta e gravada. A maioria dos funks selecionados atende a mais de um dos critérios de escolha, pouquíssimas a muitos. Simpático, de Catra, por exemplo. Sua voz grave, cavernosa, combina perfeitamente com a letra afiada sobre um dos muitos personagens folclóricos do tráfico de drogas. Alcançou sucesso popular e marcou a grande fase criativa do artista, que logo passou a ser perseguido e desistiu de fazer a crônica da vida na favela para assumir o caminho da “putaria”. Simpático é uma crônica social, importante para o contexto histórico do estilo e com grande sucesso popular. E tem uma letra precisa, interpretada por uma voz marcante em uma melodia envolvente. Simpático só peca na estética. A primeira versão é uma gravação ao vivo, crua, tendo a batida como o único elemento além da voz. É a melhor. A versão consagrada, produzida em estúdio, incorporou elementos genéricos de electro, tornando a música mais palatável ao grande público, mas totalmente fora do contexto soturno que a letra e a voz de Catra mereciam. A primeira revolução estética do estilo veio com a primeira onda de sucesso do funk, no começo dos anos 1990. Claudinho & Buchecha se tornaram as grandes estrelas do funk no Brasil falando de amor. A produção caprichada só foi possível com investimento das gravadoras, e o funk descobriu que poderia ficar com andamento mais lento (Quero te encontrar), ter a estrutura melódica dos sucessos do pop eletrônico da época (Conquista) e até ter acompanhamento de violão, guitarra ou teclado no arranjo (Nosso sonho). Tudo condizente com o caminho trilhado pelos dois funkeiros de São Gonçalo. 16


A excelência, porém, veio com o advento do tamborzão, uma adaptação genuinamente brasileira à batida gringa, e modificada de diversas formas desde o final da década de 1990 — do sampler de atabaques à simulação desse mesmo som com a boca, o beat box, outra herança do hip-hop americano. Foi a segunda revolução estética do estilo e virou sua marca registrada. O Bonde do Tigrão não foi o pioneiro do tamborzão, mas sua música Cerol na mão foi o primeiro sucesso nacional com essa novidade. A partir daí foi quase impossível fazer funk sem os tambores. A versão mais usada nos anos 2010 é a do beat box, e ficou mais rasgada, variações vocais de “tchu” e “tchá” que foram inclusive incorporadas no refrão de um grande hit do sertanejo universitário. depois da batida, o elemento que mais sofreu mudanças com o tempo foram os temas. As letras de crônica social — o “funk consciente” — foram as únicas que permeiam todas as fases, com menos ou mais sucesso. Nos anos 1990, o funk falou sobre a violência nos bailes e, em geral, nas favelas, e sobre o amor e o sexo, este último tratado com alguma polidez. No final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, o funk saiu das rádios e voltou, perseguido, às favelas. O caldo esquentou e reinou o sexo, dessa vez explícito, com poucas metáforas, e o proibidão, com referências também explícitas ao tráfico de drogas, principal financiador dos bailes de comunidade da época. No começo dos anos 2010, o tema recorrente é a ostentação à riqueza, real ou imaginária. Em todas essas ondas, como em qualquer estilo musical, surgiram letras de grande valor poético e outras descartáveis. Nesse quesito, a excelência esteve fora das rádios, sem a pressão do sucesso popular, quando o funk estava banido da classe média e voltou ao morro para renovar sua criatividade. Algumas canções deste livro fazem clara apologia a facções criminosas e a crimes bárbaros, mas estão aqui por suas rimas ricas (Vida bandida e Visão de cria, de MC Smith, são 17


os melhores exemplos) e valor histórico como retrato do que acontecia nos morros, longe dos olhares do asfalto. A grande maioria desses proibidões sequer teve uma gravação oficial, e sobrevivem em registros ao vivo postados por fãs na internet. O sucesso que MC Smith precisou curtir nos becos e bailes de comunidade um número incontável de artistas conseguiu sob os holofotes da mídia de massa. O funk existiu antes de ter ídolos, com as melôs, basicamente canções americanas que, nos bailes, tinham o refrão adaptado para o português. Uma delas, presente neste livro, ganhou gravação definitiva com a letra adaptada, e é símbolo da alquimia de ritmos que impulsionou o estilo bem antes de Claudinhos e Buchechas, Naldos e Anittas. A música Do wah diddy diddy, lançada em 1987 pelo grupo de 2 Live Crew, de Miami, era um sucesso nos bailes daqui antes de sua versão brasileira. A Melô da mulher feia, presente neste livro, foi o primeiro passo na procura de ídolos brasileiros para os hits internacionais. O niteroiense Agnaldo Batista de Figueiredo, o Abdullah, foi o escolhido pelo dJ Marlboro como intérprete da versão, gravada como o primeiro funk cantado em português na coletânea Funk Brasil, de 1989. “Mulher feia cheira mal como urubu” foi encaixada no refrão “do wah diddy diddy dum diddy do” com perfeição. A tradução informal dos bailes era bem mais pornográfica. O sucesso de Abdullah provou que a demanda por ídolos nacionais prevista por dJ Marlboro existia e abriu espaço para a sequência de vozes que marcariam o estilo por décadas. A maioria não se preocupou com afinação ou técnica — como o próprio Abdullah, aliás. Para astros como Júnior e Leonardo (Rap das armas) ou Marquinhos e dollores (Rap da diferença) e Tati quebra Barraco (Boladona) ou MC Catra, a mensagem e o linguajar da favela teriam mais importância que qualquer polidez técnica. Outros tentaram emular o estilo melodioso dos raps norte-americanos e convenceram, como Buchecha, da dupla Claudinho & Buchecha, MC Sapão (Eu tô tranquilão) e, mais recentemente, Naldo, da extinta dupla Naldo e Lula (Me chama que eu vou). Entre as mulheres, a primeira neste 18


estilo foi Perlla, com Tremendo vacilão (Kelly Key, mesmo tendo sido identificada com o estilo por ser namorada de Latino no começo da carreira, nunca gravou um funk). Foi a primeira chance que o funk teve de ter uma diva pop nos moldes internacionais. Nos anos 2010, a oportunidade caiu nas mãos de Anitta (Proposta). O sucesso, mesmo que local, sempre foi o norte dos ídolos do funk, e, no morro, sucesso é sempre questão de orgulho. quando o funk sai do morro e vai para as rádios, vira trilha de novela e é referendado por artistas internacionais como a legítima música eletrônica brasileira, há quem receba o sucesso como ofensa. quando volta para o morro, pelo ostracismo ou perseguição dos detratores, renasce e volta ainda mais forte. O funk é inevitável, quer você goste ou não. Este livro ignora, intencionalmente, a coleira do pertencimento. Ninguém precisa ser funkeiro para gostar de funk. Como ninguém é erudito porque chora quando escuta a 9ª Sinfonia de Beethoven, ou metaleiro porque sabe de cor uma balada do Metallica, ou pagodeiro porque adora Fundo de quintal. O funk, como qualquer outro estilo, é feito de boas e más canções, algumas eternas, outras que duram apenas um verão. Essas canções têm mensagens positivas, mensagens de alerta ou letras debochadas e desbocadas para divertir e chocar. É povoado de músicos e dJs talentosos, e de outros com pouquíssimo ou nenhum talento. Tem belas vozes e vozes irritantes. E, como qualquer outro estilo musical, tem para todos os gostos. Este livro é uma homenagem ao poder criativo do funk carioca e à sua história decenária de sucesso e resistência cultural. O funk é inevitável e vale a pena se entregar. Para, pelo menos, tirar dele o melhor. Palavra de “playboy”.

Rafael de Pino, jornalista Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2013

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quando Julio Ludemir me convidou para contribuir nesta curadoria de funks para seu livro, fiquei duplamente lisonjeado. Por um lado, a ideia é inventiva, instigante e certamente representará uma contribuição importante para a história do funk e, portanto, para a história do Rio de Janeiro e do Brasil. Muito me honra participar, ainda que minoritariamente, deste trabalho. Por outro, a tarefa que Julio me propôs implicou uma viagem no tempo pra lá de estimulante. desencavei vários Cds que há muito não escutava. Perscrutei a infovia atrás de canções que só lembrava de uma frase, ou do MC, ou do título. Liguei pra um punhado de amigos, consultei alguns livros e chamei minha companheira, daniele (funkeira de nascença) pra ajudar nos processos mnemônicos que me levaram à proposta de curadoria presente em parte aqui, já que a dividi com outro garimpeiro de bons funks. decidi demarcar o início da pesquisa em 1989, quando saiu o primeiro volume da série Funk Brasil, do dJ Marlboro. Não tanto por considerar o álbum como origem do funk carioca ou coisa que o valha, mas porque foi ali que escutei pela primeira vez a experiência sonora que ganhou este nome.

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quanto ao marco final, optei por chegar até onde minha memória alcançasse com propriedade. Curto alguma coisa, porém não acompanho mais tão de perto a produção de agora-agora. Embora reconheça as canções, já não decifro suas interações com os públicos. E isso me interessa, a interação dos funks com um público massivo. Resolvi fazer da curadoria uma experiência menos intelectual que sensorial. Preferi uma inflexão nada idiossincrática, escolhi canções que ouvi, que curti, mas que fizeram a cabeça de um número grande de pessoas. Tentei propor um caminho que juntasse meu gosto pessoal com a história mais visível, mais óbvia, mais lugar-comum do gênero. queria, no fundo, me associar a qualquer leitor que, ao ler as referências a alguma das canções, comece imediatamente a cantar, mesmo que mentalmente. E, quem sabe, até arrisque dançar. Foi, de fato, um exercício bem prazeroso. É certo que haverá quem aponte ausências graves ou inclusões desnecessárias. É o que sempre acontece nestas tentativas de eleger alguns destaques no meio de uma produção intensa, múltipla e que, apesar de recente em comparação a outros gêneros, já tem quilometragem o suficiente pra ter-se tornado uma das marcas estéticas mais significativas da cidade, do povo carioca e da música brasileira.

Ecio Salles

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01.

A FIRMA é FORtE MCS tIkãO E FRAnk

http://www.youtube.com/watch?v=ejM4e3COg1w


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 01. A FIRMA É FORTE

Há duas versões para este funk escrito pelo MC Tikão a partir do refrão de um rap do Neguinho da Caxeta. A versão light apresenta uma entusiasmada defesa do poder do funk, que depois de dominar as rádios, estaria invadindo as televisões, arrastando morenas, pretinhas e loirinhas para o baile. Esta versão é cantada nos shows da Furacão 2000, onde frequentemente o MC Frank tem que exercer seu poder de irmão mais velho para controlar o entusiasmo do MC Tikão que, antes de entrar para o funk, flertou abertamente com o crime. A versão proibidona, cantada principalmente nas favelas dominadas pelo Comando vermelho, faz um desabrido elogio aos soldados do tráfico da vila Kennedy, mais conhecida como vK. de acordo com a letra, a vK tem fuzil, AR-15 e várias pistolas. Esta última versão foi apenas mais uma das músicas por intermédio das quais os dois MCs, que viveram no Complexo do Alemão até que o chefe do tráfico pediu que seu pai policial deixasse a comunidade, narraram a famosa vida loka. Terminaram presos por causa dessa crônica do poder paralelo, juntamente com os MCs Max e Smith, em dezembro de 2010, acusados por associação e incitação ao tráfico e formação de quadrilha. A experiência na cadeia não desestimulou a dupla a cantar os proibidões que lhes deram imensa popularidade nas redes sociais e, claro, nos bailes organizados pelos bandidos de que começaram a se aproximar por intermédio do amigo Sapão — também criado em uma das favelas do Complexo do Alemão — e um outro expoente dos proibidões criados pelos MCs quando os bailes, proibidos nos clubes dos subúrbios em que eram produzidos pelas equipes de som, começaram a ser organizados pela boca de fumo.

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02.

AtOlAdInhA BOlA dE FOgO E AS FOgUEntAS

http://www.youtube.com/watch?v=nk6r9EmePxs 24


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 02. ATOLADINHA

Bola de Fogo e as Foguentas podem não ter curtido a Blitz, uma banda de pop rock que reinventou a MPB a partir da teatralização de suas performances e, acima de tudo, da criação de letras que faziam uma deliciosa crônica de uma juventude de classe média cansada das grandes questões da geração que a precedeu. vários aspectos, no entanto, colocam Atoladinha no mesmo patamar de canções como Calma, Beth ou A dois passos do paraíso. Um deles é o humor de sua letra, carioca até na prosódia, com todos os “xis” usados principalmente na civilização erigida do outro lado do Túnel Rebouças, em que favela e subúrbio praticamente se confundem. Também está no mesmo nível a coloquialidade dos diálogos por meio dos quais essa história, com uma forte carga erótica, é apresentada ao ouvinte, sem, no entanto, jamais descambar para a pornografia. Até as crianças sabiam o que aconteceria depois da onomatopeia “tiririm tiririm” que anuncia o telefonema de Bola de Fogo para Foguentinha, convidando-a para um dia de sol na praia da Barra. No entanto, as segundas intenções, os duplos sentidos em cada detalhe da letra, ainda que não sejam explícitos como nos pancadões de um Mr. Catra, deixam subentendido aquilo que logo a seguir, na próxima quadra do tempo, perderá tanto o pudor quanto o humor na produção dos raps lançados nos bailes ainda na primeira década do milênio. Sim, enterrar na areia, deixar uma mulher atoladinha em um dia em que o calor está de matar, tudo isso na verdade são metáforas para um sexo ardente e desejado com intensidade. Tanto é assim que o irreverente Tom zé ganhou as páginas dos jornais depois de hilariante entrevista em que o gênio tropicalista explicou para Jô Soares a exegese de Atoladinha, reconhecendo uma microtonalidade e uma pluralidade de sentidos no modo escandido como a Foguentinha admite sua excitação diante dos pedidos de Bola de Fogo. depois do sucesso do batidão, a palavra “atoladinha” entrou para o cotidiano carioca com um sentido muito mais sexual do que antes, quando a palavra queria dizer apenas que uma calcinha, ou biquíni, estava entrando no bumbum da menina. Bola de Fogo, como muitas outras estrelas passageiras do funk, tornou-se evangélico. 25


03.

BOlAdOnA tAtI QUEBRA BARRACO

http://www.youtube.com/watch?v=USO_dfu-6yg 26


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 03. BOLADONA

Por Poema Eurístenes depois de um tempo sem ter quem quebrasse seu barraco, Tati criou inúmeras letras inspiradas em sua abstinência sexual. Boladona foi uma das mais famosas. A música, título do seu segundo álbum, lançado em 2004, serviu para consolidar o espaço que a cantora estava criando no mundo do funk. Seguindo a linha debochada e divertida de todas as suas letras, em Boladona a cantora também não faz questão de usar indiretas para dizer que é cachorra e gatinha, então “não adianta se esquivar”. Com um teor altamente apelativo para o sexo, a letra marca o estilo que a Tati adotou em toda a carreira. Ao dizer que está com o “esquema todo armado” para “balançar o seu coreto”, Tati demonstra a atitude ousada e nem um pouco submissa da figura feminina, um dos elementos principais das canções da funkeira.

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04.

RAP dO RAStAFARI MCS BORR贸 E dORR茅

http://www.youtube.com/watch?v=k2hCdnhqSkI 28


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 04. RAP DO RASTAFARI

A rica cena de São Gonçalo, além de ter revelado nomes como Claudinho & Buchecha, comportava uma diversidade própria da periferia carioca, onde a experimentação é uma palavra-chave. Apenas em nossas favelas seria possível a convivência de bondes tão díspares quanto os dos charmeiros, funkeiros e rastas, todos eles representados em alguns dos maiores sucessos da primeira geração de MCs. Os charmeiros e funkeiros entraram no clássico Rap da diferença, dos MCs Marquinhos e dollores. Já os rastas foram incluídos no Rap do Rastafari, dos MCs Borró e dorré, que conseguiram ganhar um festival das galeras de sua cidade natal a despeito do visual altamente identificado com os adeptos de Bob Marley. A letra do Rap dos Rastafari faz o mesmo apelo para a paz e elogio às comunidades populares que frequentavam os bailes de subúrbio, mas aqui esse lugar comum parece ter mais coerência na medida em que tanto a ideia de paz quanto de circulação pela cidade são afins à filosofia de vida criada nos guetos da Jamaica. Este rap teve uma nova versão na voz do rapper J3, que resolveu flertar musicalmente com o samba, o reggae, o soul e o funk em seu álbum Rap Rasta. A música, como era comum, foi uma apropriação de um funk norte-americano trazido em um dos discos contrabandeados para o Rio de Janeiro pelos donos de equipe de som. O refrão, outra prática comum na primeira geração de MCs, foi adaptado para outras situações. O “Ôôôô, abram passagem/ demorou formar o bonde dos rastafari” virou “Ôôôô, cadê o isqueiro/demorou formar o bonde dos maconheiros”. A dupla sumiu depois de tentar emplacar outros batidões com a mesma levada, como por exemplo, o Rap do Rastafari apaixonado, romântico como os melody que fizeram sucesso em meados da década de 1990.

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05.

COnQUIStA ClAUdInhO & BUChEChA

http://www.youtube.com/watch?v=dOzM3l-bkzw 30


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 05. CONQUISTA

Yes, tudo ficou blue depois de Conquista, primeiro hit lançado oficialmente pela dupla Claudinho & Buchecha. veio depois do sucesso do “Rap do Salgueiro”, que chegou às rádios de todo o país a partir de um festival de galeras ganho pela dupla em um baile no clube Mauá, para onde convergiam os jovens da grande São Gonçalo. Uma das oito músicas compostas durante a gravação do álbum que vendeu 1,2 milhão de cópias em 1996, Conquista traz em seu dNA a levada pop dos primeiros artistas de classe média que se interessaram pela cena funk — Fernanda Abreu e, principalmente, Lulu Santos, que além de ter emprestado o dJ Memê para produzir o primeiro álbum da dupla, emplacou o antigo sucesso Tempos modernos no repertório do Cd que começou a ser gravado com as quatro músicas com que Claudinho & Buchecha faziam até 12 bailes por noite. Percebem-se em cada faixa os ecos da MPB — que impregnou o repertório dos maiores MCs da história de São Gonçalo a um ponto tal que Claudinho viria a ser tornar um dos primeiros funkeiros a tocar um violão com excelência, bem como a acomodar em seus concorridos shows instrumentos cuja sofisticação ia muito além dos tambores eletrônicos que monopolizam todos os arranjos deste tipo música. Outro elemento que enriquecia as apresentações de Claudinho & Buchecha eram as coreografias que importaram diretamente dos bailes para os palcos, como os passos copiados do personagem dino, de uma família de dinossauros que fez muito sucesso na televisão brasileira. As coreografias da dupla eram replicadas em qualquer esquina do Brasil. Até o artilheiro Romário, um ídolo desses dois flamenguistas dos quatro costados, comemorava seus gols imitando os passos que faziam no palco.

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06.

RAP dO SAlgUEIRO ClAUdInhO & BUChEChA

http://www.youtube.com/watch?v=q37n8Ufylc4 32


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 06. RAP DO SALGUEIRO

O Rap do Salgueiro foi um dos últimos estertores do festival das galeras, que no início da década de 1990, revelou a primeira geração de MCs do funk. Não foi, no entanto, o primeiro a ser ganho pela dupla Claudinho & Buchecha: em 1992, o Rap da Bandeira Branca também dera a esses dois amigos inseparáveis o mesmo primeiro lugar obtido em 1995 no Clube Mauá, na mesma São Gonçalo em que cresceram e se criaram. A diferença foi a repercussão do Rap do Salgueiro, que se tornou uma espécie de hino dos festivais de galera realizados pelos donos de equipe de som que organizavam os bailes nos grandes clubes de subúrbio, que Buchecha só conseguiu defender ao lado do parceiro depois de tomar o primeiro e último porre de sua vida. Uma gravação pirata estourou nas rádios e o sucesso foi tamanho que uma gravadora multinacional convidou a dupla para gravar um álbum, ainda que tenham entrado no estúdio com apenas quatro raps no repertório. Apesar de ter caído no gosto popular, o Rap do Salgueiro trazia algumas chaves difíceis de serem decifradas, como por exemplo o próprio Salgueiro, aqui uma referência à favela em que moravam, em São Gonçalo, não à que deu origem à tradicional escola de samba da zona Norte carioca. O Pira que acompanha o Salgueiro nesse mesmo verso é uma contração do Mutuapira, comunidade da mesma São Gonçalo que também seria imortalizada no Rap do Pirão, do MC dieddy, outra lenda do funk. Também há uma referência à Força, provavelmente a do Flamengo, de que ambos eram torcedores fanáticos. Esse rosário de comunidades populares, inédito em outros gêneros musicais brasileiros, era presença obrigatória nos festivais de galeras, bem como o pedido de paz que em um momento de inspiração a dupla diz levar como iluminação no escuro. “Nem o ouro nem a prata fazem o homem mais feliz”, dizem eles em outro trecho de poesia intensa, aqui fazendo referência às belas mulheres brasileiras que os frequentadores do baile poderiam desfrutar, caso deixassem de brigar e se deixassem envolver pelo funk.

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07.

CEROl nA M達O BOndE dO tIgR達O

http://www.youtube.com/watch?v=PA49hjlkRVo 34


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 07. CEROL NA MÃO

Cerol na mão introduz pelo menos duas grandes novidades, que norteariam a produção do funk na virada do milênio: os bondes masculinos e as letras com duplo sentido, em que cada detalhe tem uma nuance sensual, para não dizer erótica. A partir do Bonde do Tigrão, uma juventude da periferia passaria a dedicar tardes inteiras ensaiando coreografias nas lajes, lugar onde o adolescente da favela afirmava sua virilidade com passos precisos e um balanço da pélvis que tinha o objetivo quase marcial de expor uma genitália volumosa e potente. Era essa dança, a um só tempo irreverente e demarcada por passos muito precisos, que o Bonde do Tigrão ensinou toda uma geração. Por fim, eles também inauguraram uma época de letras picantes, que faziam uma crônica de um baile bem mais permissivo do que os bailes descritos na prosa mais preocupada com a violência dos MCs que configuraram o modelo de duplas, onipresente na cena funk desde os primeiros discos produzidos dJ Marlboro. qualquer criança (e elas idolatraram o grupo formado por Leandrinho, Góia e Teacher) entendia o significado de martela o martelão e dar muita pressão, mas nem mesmo os pais mais conservadores inibiam esse movimento, já que tudo estava no campo da sugestão, de um verbo que só se tornaria explícito alguns anos depois. Também estão presentes nas letras do Bonde do Tigrão referências às cachorras e preparadas, que a distância se confundem, mas que para quem frequentava aquela cena era tão diferente quanto a tchutchuca, igualmente presente em seus batidões. O Bonde do Tigrão foi lançado pelo sempre atento dJ Marlboro, que o descobriu nos festivais das galeras da sempre agitada Cidade de deus, ainda com o nome de Os Putão da Loira.

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08.

ChAtUBA MC SAP達O

http://www.youtube.com/watch?v=XfEakrWtkEs 36


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 08. CHATUBA

Chatuba é um funk que dialoga com a favela homônima, em cuja quadra eram realizados os maiores bailes do Comando vermelho até a chegada do exército em 2009, iniciando o processo de pacificação do Complexo do Alemão e da Penha. Com a voz herdada de uma mãe que gostava de cantar Tim Maia e Sandra de Sá, MC Sapão criou arranjos que mesclam um teclado harmonioso a efeitos eletrônicos mais próximos do hip-hop do que do frenesi rítmico do funk, aqui repetidos de um modo quase mântrico, para fazer um elogio ao baile que seria interrompido tão logo o morro foi ocupado. É óbvio que o “baile funk está uma uva” por causa dos bandidos ao lado dos quais o MC cresceu e para os quais compôs os proibidões que o levariam à cadeia antes mesmo de ter estourado seu primeiro sucesso. Mas o fato de a letra não fazer nenhuma referência nem às armas nem à qualidade das drogas oferecidas na favela em que nasceu pode ser entendida como uma virtude de um povo que se diverte em qualquer circunstância e para o qual o lazer tem uma dimensão quase religiosa. O beat sóbrio também não comporta o sexo quase orgíaco que se fazia enquanto o “galerão” sacodia para “refrescar a mente”, também ignorado em uma letra que de fato parece ter sido “feita humildamente para sua gente”. Ainda que inconscientemente, no entanto, Chatuba contém uma fala que reporta ao “Big Brother”, que nas comunidades populares é encarnado tão somente pelo tráfico de drogas.

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09.

dAnรงA dA BUndInhA MCS XAndE E CABEรงA

http://www.youtube.com/watch?v=8ftWswBg7iM 38


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 09. DANÇA DA BUNDINHA

Por Carlos Meijueiro Era entre 1997 e 2001. Memória de criança é assim. Consegue lembrar do cheiro do estádio, do vento que corria nas rampas de acesso às arquibancadas, do arrepio ao chegar lá em cima e já ver a multidão gritando, enquanto, por outro lado, lembrar de uma data exata fica impossível. O imenso Maracanã ainda existia e estava sempre lotado aos domingos. dias de clássico eram dias sagrados. O Fla x Flu ainda tinha seu charme, mas já não era mais o grande clássico. O Botafogo, apesar de ter sido campeão brasileiro em 1995, já não tinha tanta força nesse período. Portanto, vasco e Flamengo faziam o grande clássico carioca. durante esses anos era certeza de Maraca lotado quando esses times se enfrentavam. As torcidas ficavam nos seus lados clássicos, Fla entrando pelo Bellini e vasco pelo Esqueleto. Ainda existia a geral, que levantava a galera quando entrava já durante o início da partida como de costume. Na hora de cantar, a apropriação de diferentes ritmos para compor os gritos de torcida eram um grande barato. Tinha das tradicionais Marchinhas de Carnaval ao Axé. Mas teve uma que marcou a época: A dança da bundinha. Escutar aquela massa gritar junto “dança, dança! dança a dança da bundinha. No Maracanã...” Aí ficava a critério do time a ser zoado. quando o Flamengo ganhava do vasco cantava que o “bacalhau virou sardinha” e quando perdia escutava a outra torcida cantar “o urubu virou galinha”. A coreografia era por conta dos braços que, de um lado para o outro, balançavam no ritmo do embalo da música. Para os MCs Xande e Cabeça que criaram a música em 1992 e fizeram um sucesso danado durante a década inteira, não poderia existir recompensa melhor do que ver um Maracanã lotado cantando sua música e a eternizando. 39


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 09. DANÇA DA BUNDINHA

A dupla da galera da Rua 1 de Padre Miguel fez uma ode às gatinhas que eles tanto aclamavam durante seu show. A dança da bundinha marcou um dos pontos importantes da história do funk carioca. Foi por meio dela e de algumas outras melôs da época que se começou a rebolar no funk. As mulheres costumavam fazer trenzinho e rebolar o bumbum todas juntas, em sincronia, incentivadas pela música. E também a bater o bumbum de uma na outra. No YouTube é possível ver vídeos de Xande e Cabeça cantando ao vivo e a mulherada com short no umbigo rebolando. Muito interessante, pois é parte de um mapeamento visual de tendências funkeiras desde os funks das antigas até hoje. A juventude frequentadora dos bailes, matinês e do Maracanã jamais esquecerão esse hino. Além da Dança da bundinha, também pode-se encontrar no YouTube outra relíquia da dupla, o Rap do Cavalo de Aço, alertando a respeito da violência que crescia no mundo e nos bailes da época. A própria dança da bundinha lança seu elogio à alegria e à paz nos bailes: “Mas você sangue bom, que vem pro baile pra dançar. você está de parabéns, e nota 10 tu vai ganhar.” E se tem uma coisa que a galera fazia escutando Xande e Cabeça, essa coisa era dançar.

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10.

dAnçA dA CABEçA MC nEnéM

http://www.youtube.com/watch?v=fM9hRo0Fg8E 42


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 10. DANÇA DA CABEÇA

O rap Dança da cabeça foi o maior sucesso da carreira solo de Anderson da Silva Ângelo, que, embora tenha nascido em São João de Meriti, se considera um cria da Rocinha. Foi lançado em 1995, um ano depois de romper com Fábio de Oliveira Cordeiro, com quem fez a dupla de MCs Mascote e Neném, a primeira do Rio de Janeiro e uma das mais bem-sucedidas da história do batidão. Nesse mesmo ano, lançaria o Rap da Rocinha, que também estourou depois das alterações feitas no Rap da Live, que cantava com seu parceiro rendendo homenagem a uma das maiores equipes de som, que por essa mesma razão jamais era tocada nos programas de rádio pilotados pelas equipes rivais. Dança da cabeça surgiu a partir de uma observação que apenas um produtor de sucessos como o MC Neném seria capaz de fazer: até aquele momento nenhum funk mencionara a tradicional dança da cabeça, ainda que todas as coreografias criadas no baile tenham produzido grandes hits. Nessa mesma sequência, ele abalou o mercado com uma nova versão do Rap do Valão 2, uma continuação do primeiro rap de sua carreira, com o qual ganhou o festival das galeras promovido pela Cash Box na Acadêmicos da Rocinha, em 1992, em parceria com Mascote. O prêmio de MC do ano terminou sendo um reconhecimento natural de um trabalho que ainda seria potencializado com outra inspirada invenção sua: MC Cacau, a primeira mulher a tentar carreira na cena funk cantando rap, com o Rap do baile, de sua autoria.

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11.

dAnรงA dO gORIlA gORIlA E PREtO

http://www.youtube.com/watch?v=efcUjgtavhA 44


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 11. DANÇA DO GORILA

Dança do gorila dialoga com vários aspectos da história do funk. Para começo de conversa, foi composto por uma dupla de amigos da Rocinha que rasgaram as cortinas do anonimato da noite para o dia depois da apresentação no programa televisivo da Furacão 2000 de um trabalho concebido nos bailes da favela em que se criaram e amadurecido nos intervalos da empresa em que trabalhavam como office-boys. É também um lugar comum na história do batidão letras que descrevem uma forma específica de dançar no baile, como a dança da bundinha, a dança do cachorro, a dança dos pés, todas elas citadas no rap que tinha como ponto de partida a coreografia desenvolvida por Paulo, cujas características podem ser apreendidas com a simples citação do apelido que ele ganhou tão logo passou a exibi-la nos bailes que frequentava. Por trás do sucesso da Dança do gorila, há ainda a história de uma amizade sólida, que sobreviveu inclusive ao fato de Gorila ter ido sozinho para a apresentação na Furacão 2000 depois de um longo tempo implorando por uma oportunidade nos bastidores da produtora. Só a partir de uma conversa com os produtores foi que Preto, cujo nome é diógenes, passou a figurar nas fotos dos shows da dupla, sempre marcados por uma forte teatralidade e uma enorme facilidade para fazer paródias dos grandes sucessos da MPB, inclusive os do funk. Os shows de Gorila e Preto são, antes de qualquer coisa, shows de humor. vestem fantasias — perucas black power e roupas de mulher são os adereços mais comuns — e mais conversam com a plateia do que cantam seus refrões. Por fim, também é muito típico do pancadão músicas que duram apenas um verão, desaparecendo, junto com seus criadores, tão logo os termômetros da cidade baixam.

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12.

InjEçãO dEIzE tIgROnA

http://www.youtube.com/watch?v=l6jsby8h2y0 46


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 12. INJEÇÃO

Só o funk seria capaz de transformar a vida de deize da Silva, cria da Cidade de deus que trabalhava como empregada doméstica desde os 12 anos para comprar as roupas que a avó não podia lhe dar. Com Injeção, ganhou da noite para o dia a estatura de uma Tati quebra-Barraco, primeiro ícone feminino de um funk que falava de sexo de modo desabrido, no limiar da pornografia. Embora tenha sido composta na virada do milênio, numa época em que tentava a sorte nos bailes da favela em que nasceu, a música só explodiu ao ganhar o tratamento eletrônico do dJ diplo, que ela conhecera durante as filmagens do documentário Favela on blast, um dos melhores registros da história e da amplitude do batidão de que se tem notícia. Produtor de M.i.A., uma cantora anglo-cingalesa, diplo sugeriu não apenas o uso da base Gonna fly now, música tema do filme Rocky – Um lutador, como a usou como base de Bucky done gun. Esse foi o ponto de virada para uma carreira que até aquele momento era marcada por performances como a Miniatura de Lulu, que ela compôs em resposta ao Lanchinho da madrugada, do Bonde dos Magrinhos. Outro momento importante na carreira de deize Tigrona, que inclusive lhe daria o apelido pelo qual é conhecida, foi o batidão De quatro, de lado, que ela compôs na época em que bondes femininos da Cidade de deus trocavam farpas via raps com forte cunho erótico. De quatro, de lado fez tanto sucesso que até mesmo as meninas que pretendia agredir a cantaram. Injeção foi o ponto de virada para a inserção do funk carioca na cena de música eletrônica mundial, garantindo um espaço para a Tigrona, agora acompanhada do dJ diplo, no Skol Beats de 2006, e em shows com Tigarah e Turbo Trio.

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13.

dESCE E SOBE BOndE dO VInhO

http://www.youtube.com/watch?v=OCmhqyyMo_c 48


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 13. DESCE E SOBE

Foi ao ver os movimentos ousados de uma novinha em um dos bailes do Coroado que Willian Campista encontrou inspiração para a letra de Desce e sobe, primeiro sucesso do Bonde do vinho, que em sua formação original tinha também o vocalista Leco, Ancelmo, Robson e Jairo Minileski. A letra começou a ser escrita em casa e foi concluída na praia pelo então jovem Willian, que viria a ser responsável, ao lado de Leco, pela autoria da maioria dos sucessos desse grupo formado na Cidade de deus na esteira do sucesso do Bonde do Tigrão, responsável pela primeira onda de dançarinos do sexo masculino na periferia do Rio de Janeiro. Levou-a em seguida para um dos festivais de galera de sua comunidade, talvez a maior plataforma de lançamento do funk carioca. O Bonde do vinho (o nome é uma referência explícita à bebida preferida do grupo) ganhou o mundo por intermédio da dupla de MCs Cidinho e doca, que, como eles, são da Cidade de deus. O primeiro show para o qual foram convidados foi no Méier Camarista. Levaram um ônibus repleto de amigos entusiasmados, que não pararam de dançar e cantar os sucessos já testados nos bailes da comunidade, apesar da chuva torrencial que caía na cidade naquela noite. Hits como Toma Toma e I feel vinho, sempre dialogando com uma tradição de letras por intermédio das quais as coreografias criadas nos bailes são narradas em detalhes, atraíram multidões de até 50 mil pessoas, como uma festa da Rádio Cidade em Porto Alegre, em 2006, para ver esses jovens negros que sempre tiveram como marca registrada os cabelos pintados de louro.

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14. dOnA gIgI

OS CAรงAdORES

http://www.youtube.com/watch?v=Ilzd40hy2lE 50


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 14. DONA GIGI

Lançada em 2005, Dona Gigi é um ponto de inflexão na história do funk com seu humor rasgado, que em vários momentos descamba para o politicamente incorreto, para não dizer preconceituoso. Fez um sucesso extraordinário e rendeu a participação no réveillon de Copacabana de 2008 e convites para programas de rede nacional, como Faustão, Fantástico e Central da Periferia. O esculacho na “mulher caolha, nariz de tomada, sem bunda e perneta” descolou o grupo da estética consagrada pelo Bonde do Tigrão, da mesma Cidade de deus em que nasceram os cinco integrantes da formação original dos Caçadores, da qual só restou Fábio. Escrita por vaguinho, que depois deixaria o grupo para se tornar evangélico, Dona Gigi teve como inspiração uma vizinha feia, que no entanto se sente vaidosa por ter dado motes como “se me ver agarrado com ela, separa que é briga”. Seu ritmo acelerado também serviu como trilha sonora para que Leir, bandido da favela do Jacarezinho que adorava este batidão, ensaiasse os movimentos que dariam origem ao passinho do menor da favela, coreografia que, embora tenha sido criado no seio do crime organizado, foi fundamental para a desestigmatização do funk. Dona Gigi foi muito mais longe que Besteirinha, que chegou ao topo das paradas em 2003, mas não foi suficiente para que o grupo consolidasse sua posição na cena funk, para a qual só voltariam com algum destaque com Clack boom, lançada em 2010.

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15.

EgUInhA POCOt贸 MC SERgInhO

http://www.youtube.com/watch?v=IF4ssCkvkBE 52


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 15. EGUINHA POCOTÓ

Eguinha Pocotó consolida a vocação para o humor de MC Serginho, que na virada do milênio era um misto de frentista e radialista na comunidade em que nasceu e se criou ouvindo Galo, Neném e Leonardo, no seu entender os verdadeiros heróis do funk. Faz parte da tríade que o colocou na linha de frente de um processo de renovação do funk que criou alternativas ao proibidão, mas que por outro lado abriu caminho por meio das quais o batidão ganharia o viés pornográfico, o que só fez aumentar o estigma dos frequentadores do baile durante a primeira década do milênio. É o mais inocente dos três sucessos que ganhou o mundo seguindo a trilha natural dos grandes hits do funk, bombando primeiro na rádio comunitária para daí conquistar o baile e, por fim, os grandes veículos de massa. A performance do dançarino Lacraia, que criou uma coreografia a partir dos movimentos de um cavalo semelhantes aos de uma criança brincando de faroeste, só fez reforçar o caráter lúdico de um rap criado a partir da relação do MC Serginho com a filha Carol, com quem ficava da janela do barraco olhando os cavalos de um vizinho. As crianças de todo o Brasil dançavam com entusiasmo quando viam a dupla enaltecendo o amor dos dois animais nas vielas do Jacarezinho, cuja associação de moradores o MC Serginho iria presidir quando sua carreira entrou em declínio.

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16.

ElA S贸 PEnSA EM BEIjAR MC lEOzInhO

http://www.youtube.com/watch?v=UCl6dljnUpU 54


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 16. ELA SÓ PENSA EM BEIJAR

Uma entrevista coletiva de Ronaldinho Fenômeno antes da Copa de 2006 mudou a carreira de Ela só pensa em beijar, rap mais conhecido do MC Leozinho. Foi composto a partir de uma situação que ele próprio protagonizou, na Casa do Caranguejo, em Niterói. Acompanhou com olhos gulosos uma menina se levantar para dançar depois que o dJ, que até aquele momento estava se alternando entre o axé e o pagode, resolveu seguir seu conselho e fez diferente, colocando um batidão. Na verdade era ele que só pensava em beijar, mas, depois de estudar a forma de compor de Caetano veloso e Chico Buarque, decidiu-se pela mudança do objeto que deseja. A inclusão do violão, numa época em que a comunidade funkeira estava viciada na acelerada batida eletrônica, foi recebida com desconfiança pelo dJ Batutinha, da Furacão 2000. E talvez seja essa a razão para que a música tenha feito sucesso nas boates antes de o dJ Tubarão começar a executá-la na FM O dia. Já na semana seguinte à descoberta de que o refrão “Se ela dança, eu danço” era o ringtone do celular de Ronaldinho, MC Leozinho estava no Domingão do Faustão, da Rede Globo. “dali não parou mais”, diz ele, cujo nome de nascimento é Leonardo Freitas Mangeli de Brito. Ao contrário da maioria da massa funkeira, MC Leozinho conseguiu emplacar seguidos sucessos, como O show, Negro gato e Toda gostosa, todos eles catapultados por novelas da Rede Globo.

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17.

EndEREçO dOS BAIlES MCS júnIOR E lEOnARdO

http://www.youtube.com/watch?v=em_d3UC_zd0 56


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 17. ENDEREÇO DOS BAILES

Endereço dos bailes é a primeira composição da dupla de MCs Júnior e Leonardo, criada sob o impacto do primeiro festival de galeras que ambos viram na Rocinha, organizado pelas equipes de som no início da década de 1990 para se contrapor ao temido baile de corredor. A música não apenas ganhou o festival como os credenciou a gravar um disco inteiramente dedicado ao funk e também um clipe. Com o sucesso, os irmãos percorreram os bailes citados na letra, que mostrava para o mundo que o Rio de mulata, chope e futebol também tinha "muito funk rolando até de manhã". As primeiras estrofes são uma ode aos bailes das favelas da zona sul, como a própria Rocinha, o vidigal e o Cantagalo, todos eles descritos com mais precisão do que os realizados nas demais áreas da Região Metropolitana. Além de mostrar em suas entrelinhas que o samba estava perdendo espaço para o funk no coração (e nos pés) da juventude pobre, Júnior e Leonardo descrevem o que se dançava nos bailes: ouviam-se nas noites de sexta a domingo charme, rap, melody e montagem, que animavam a dança da cabeça, a dança da bundinha e o trenzinho para uma galera cansada da violência nos bailes dos grandes clubes dos subúrbios (vasquinho de Morro Agudo, Pan de Pilar, Country Club da Praça Seca) para as favelas cada vez mais expostas à guerra de facções que iria pautar o funk não muito tempo depois do retumbante sucesso de Endereço dos bailes. A perseguição ao baile funk, que voltou à pauta depois do processo de pacificação, resultou no fim de todos os bailes citados na letra.

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18.

EU SOltO A VOz MC SABRInA

http://www.youtube.com/watch?v=dWIzeEddw5s 58


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 18. EU SOLTO A VOZ

Eu solto a voz foi composta por Sabrina Luiza de Souza, cria do Morro da Providência, primeira favela do Rio de Janeiro, no centro da cidade. A MC Sabrina estava no Cruzeiro, no alto da comunidade em que chegou com 8 anos e na qual morou até que bandidos pedissem para que se retirasse, ainda que tenha emprestado sua voz para alguns proibidões históricos, como Morador de favela, Escola da vida e A casa caiu, esse último compartilhado com MC Smith numa interpretação digna de antologia. quando a compôs, queria chamar a atenção do mundo para sua comunidade, no seu entender, relegada a um plano secundário mesmo quando o que estava em questão eram os projetos voltados para a favela. “A música foi meu grito de guerra”, conta ela, que parou de estudar ainda no ensino fundamental por causa dos shows que começou a fazer aos 15 anos, depois que regravou Dessa vez, do Sampa Crew, estimulada por um dJ do seu morro. O funk tem duas versões, nenhuma delas proibidona. Na primeira versão, no entanto, não se percebe a sensualidade e a disposição para o amor presentes na segunda versão, onde solta a voz em uma noite que se torna quente depois de doses de uísque com Red Bull e ice com guaraná, como anuncia na letra. Essa sensualidade, que ela desenvolveu inspirando-se em divas pop como Mariah Carey e ivete Sangalo, lhe deu um protagonismo pouca vezes visto em uma cena de MCs em que a mulher além de ser minoria só consegue se destacar quando apela para a pornografia ou para o esculacho.

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19.

FAVElA MC MARCInhO

http://www.youtube.com/watch?v=VjqPy7CzB60 60


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 19. FAVELA

Favela é mais do que um dos numerosos hits de Marcio André Nepomuceno Garcia, um dos poucos nomes da história de 30 anos do funk a se manter quase sempre em evidência com seus raps que com grande frequência louvam o amor romântico, como as igualmente clássicas Garota nota cem, Rap do solitário e Princesa. Gravado depois de um acidente automobilístico, que por muito pouco não lhe custou a vida, e de um sério problema de saúde, Favela é uma espécie de hino ao fértil terreno da cidade, no qual o funk e a carreira de MC Marcinho brotaram. “Estamos à vontade, somos mais você”, diz o MC no início desta música de três minutos e três segundos em que pede “uma trégua para vivermos felizes em nossas favelas”. A referência e reverência ao baile, perseguido desde os seus primórdios, parece inevitável a um MC cuja carreira sempre dependeu desse desejo de celebrar a vida tão presente na periferia da cidade, ainda que nessa época estivesse pensando em se tornar pastor. Favela poderia ser uma versão contemporânea do Rap da felicidade, em que Cidinho e doca dizem que só querem ser felizes na favela em que nasceram. No caso do hit do MC Marcinho, porém, temos um baile com “jogadores, doutores e gente inteligente”, o que de alguma forma aponta para comunidades populares povoadas por uma nova Classe C, sem os estereótipos de miséria em geral associados à ideia de favela.

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20.

FEIRA dE ACARI MC BAtAtA

http://www.youtube.com/watch?v=zEal85n-uC0 62


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 20. FEIRA DE ACARI

Feira de Acari foi a primeira melô a ganhar popularidade no funk carioca, explodindo em todas as rádios tão logo foi lançada no histórico álbum Funk Brasil, produzido pelo dJ Marlboro na virada da década de 1980 para a de 1990. Foi também o primeiro funk a fazer parte da trilha sonora de uma novela, Barriga de aluguel (1990), da Tv Globo. É de uma inteligência pouco comum na cena, com uma letra que tem a mesma riqueza de detalhe e humor que a Feira de Caruaru, baião de Onildo Almeida que ganhou o mundo por intermédio da voz e da sanfona irresistíveis de Luiz Gonzaga, o rei do baião. Mais do que narrar a robauto de uma favela que naquela quadra do tempo encarnava todos os estereótipos da violência urbana, o rap do MC Batata traduz as estratégias de sobrevivência das classes populares para ter acesso a bens de consumo indispensáveis, como os fogões vendidos nas melhores lojas do Rio de Janeiro. Os preços praticados na Feira de Acari, uma instituição carioca até a polícia ocupar a favela durante a Operação Rio em meados da década de 1990, permitiam que os pobres comprassem, com o dinheiro de um bujão, “a geladeira, as panelas e o fogão”. Em compensação, o consumidor precisava entrar naquela “rua logo ali” com o cuidado de quem entra numa zona perigosa, onde se deve malocar a merreca no bolso, no sapato ou (rima poderosa) na cueca, além de se prestar muita atenção aos malandros que tentam vender até o Corcovado aos otários. Tomados esses cuidados e ignorando as questões morais inerentes à indústria dos produtos roubados, consumidores como o avô do eu lírico que narra a robauto do Acari saem muito satisfeitos da barraca do Jacinto ou do Mané. Na primeira por poder trocar do cinto ao pinto e, na segunda, por ter a oportunidade de levar a mulher do feirante como promoção, caso comprasse tudo. O MC Batata tem outras composições consistentes, como a Melô do bêbado e Entre nessa onda, ambas lançados no rastro do sucesso da Feira de Acari. No entanto, não conseguiu se estabelecer na cena do funk. Saiu tão ressentido que evita dar entrevistas e preferia que as composições de sua autoria fossem ignoradas por este livro. Seu último movimento em direção ao mercado foi lançar seu filho como MC. 63


21.

RAP dA CIdAdE dE dEUS MCS CIdInhO E dOCA

http://www.youtube.com/watch?v=XiilgOt1uMg 64


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 21. RAP DA CIDADE DE DEUS

Por Julio Pecly A primeira vez que ouvi falar de Cidinho e doca foi no início dos anos 1990, quando eles tocavam em um baile que acontecia na Cidade de deus. Como o baile acontecia perto do valão, ficou conhecido como baile do valão. Um dJ chamado Luizinho gravou com eles um funk chamado Rap da bicicleta, que contava a história do sorteio de uma bicicleta ganho pela mãe do organizador. Nessa época a violência dominava os bailes: era o lado A contra o lado B, o paredão e os funkeiros da Cidade de deus eram os mais violentos da cidade. O Country da Praça Seca era o baile mais violento do mundo. Não era raro saber que conhecidos da Cidade de deus tinham sido assassinados devido a brigas nos bailes. Matérias sobre a violência eram veiculadas nos canais de televisão diariamente. Talvez essa época tenha sido a mais violenta da história do funk carioca, mas foi também uma das mais criativas musicalmente. ir ao baile funk no início dos anos 1990 era como ir para aquelas batalhas medievais, onde os soldados não sabiam se voltariam para suas casas. Poderiam morrer na ida, ao passarem pelas áreas inimigas da comunidade onde moravam — muitos dos grupos faziam apologia ao comando que dominava a área de onde vinham. Poderiam ser mortos pela polícia, que para tentar inibir os funkeiros, fazia blitz violentas. Era comum matarem os jovens que iam para os bailes. Segundo dados da época, cerca de um milhão de jovens fazia parte do Movimento Funk. Tinha briga dentro do baile, na entrada, nos corredores, tinha o lado A contra o lado B, tinha o corredor polonês e tinha também os seguranças que não aliviavam, batiam com pedaço de madeira bem grosso. Lembro que um segurança deu uma paulada na cabeça de um amigo, que entrou em coma e acabou morrendo. A pancadaria estava tão generalizada que até as mulheres 65


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 21. RAP DA CIDADE DE DEUS

estavam indo para o baile brigar, como diz um trecho da música. As segundas-feiras eram o dia em que os brigões se reuniam para contar suas histórias e ver quem estava vivo ainda. Como bom ouvinte, sempre escutava as aventuras da noite anterior. Naquela época era comum ao entardecer as pessoas colocarem caixas de som na frente da porta de casa e ficar ouvindo programas que tocavam funk. Os programas começavam às cinco da tarde e iam até às sete horas da noite, quando começava a voz do Brasil. Foi assim que ouvi pela primeira vez o Rap da Cidade de Deus. Confesso que gostei da música no mesmo momento, pois falava tudo que eu sabia que acontecia nos bailes. Além da verdade da letra, o ritmo era cativante. A música começou a tocar em todos os lugares, no rádio, na televisão, em programas internacionais, no programa da Xuxa. Se naquela época existisse o YouTube, ela teria milhões de acessos. Não sei se essa música, ao pedir a paz nos bailes, contribuiu para diminuir a violência. Só sei que marcou uma época e atualmente serve como trilha sonora para a história do funk carioca. Serviu também para o Brasil e o mundo conhecerem, na minha opinião, a melhor voz do funk, a de Cidinho. Se trilhasse por um meio que sofresse menos preconceito poderia ter feito uma carreira muito maior, talvez atingindo outros países, línguas e culturas. Só que o funk é o funk. Apesar de tudo, continua firme e forte, sempre lutando para se manter vivo e, graças a deus, conseguindo.

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22.

gAROtA nOtA CEM MC MARCInhO

http://www.youtube.com/watch?v=k-z8vPjn1tg 68


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 22. GAROTA NOTA CEM

Parafraseando o refrão, Garota nota cem mostrou de uma vez por todas para a nascente indústria do funk que igual a MC Marcinho a gente sabe que não tem. A garota que de zero a dez tira nota cem consolida o melody como a quarta tendência do funk, depois das melôs traduzidas à moda caralho, as danças da bundinha e quetais e, por fim, os raps pacifistas. Essa tendência só deixará de ser hegemônica com o surgimento dos proibidões — tanto os de putaria quanto os de apologia ao crime. Garota nota cem nasceu como um clássico, caindo no gosto do público de um modo que, mais do que consolidar um novo filão de mercado, lhe permitirá ser lembrado por décadas a fio. Não foi à toa que em 2008 um Circo voador superlotado, principalmente de mulheres que o cantaram com emoção durante a gravação do dvd “Tudo é festa”, quando ele fez uma rentrée sensacional depois de um acidente automobilístico que por pouco não lhe custou a vida. Também estava presente no álbum que gravou para a Furacão 2000 para comemorar dez anos de carreira, chamado Perfil, com seus maiores sucessos. A música corroborou sua vocação para o sucesso ao ser incluída na trilha sonora de Suburbia, minissérie da Rede Globo que fez mais sucesso de crítica do que de público no início de 2013. Parte dessa popularidade se deve às digitais de Michel Sullivan, Paulo Massadas e Miguel Poplish, os maiores hitmakers da história da MPB, que dividiram a autoria com MC Marcinho depois que ele, bem à moda funkeira, se apropriou de Te cuida, meu bem, que havia estourado na voz de Patrícia Marx. Além de introduzir o romantismo no pancadão, a música traz como novidade um formato mais enxuto, respeitando os cerca de dois minutos e meio dos grandes sucessos do rádio. Foi lembrada na festa do presídio Edgar Costa de 2003, quando depois de cinco anos voltou para os braços de MC Cacau, que embora não tenha sido a musa da Garota nota cem se encaixa como uma luva no perfil de uma mulher insubstituível que ele no entanto não sabe amar. Marcinho e Cacau, que se conheceram num momento em que o Rap do baile fazia dela a rainha toda poderosa do funk e que ele não media esforços para emplacar o Rap do solitário, fizeram dupla tanto profissional quanto pessoal. 69


23.

jÁ é SEnSAçãO MC AndInhO

http://www.youtube.com/watch?v=Xke-oPhygAU 70


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 23. JÁ É SENSAÇÃO

O MC Andinho já havia tentado duas duplas no funk, tendo feito sucesso em ambas: com o MC Rodrigo, iniciou sua carreira com o funk melody Se liga, moça, que gravou tão somente porque ivan, companheiro anterior do seu parceiro, fora preso; já com vinicius, irmão de seu amigo e referência no funk Marlboro, emplacou Corpo nu, escrito depois de a sogra ter flagrado ele e a então namorada Juliana repousando nus de uma intensa noite de sexo. Mas na virada do milênio resolveu seguir carreira solo, que decolou a partir da composição de Já é sensação com Latino e o produtor dennis dJ (o produtor já tinha o pegajoso refrão pronto quando o trio se reuniu em sua casa). Neste mesmo ano, Baba Baby tornou-se um fenômeno de vendas na voz de Kelly Key. Baba baby, no entanto, tinha a mesma pegada melosa dos sucessos anteriores do MC Andinho, em que letras de amor pueris flertavam abertamente com o pop através do violão, instrumento que foi introduzido ao funk desde que Marlboro o convenceu a emprestar sua voz ao batidão. Já é sensação, no entanto, apresenta duas novidades na sua carreira: o beat representava um salto em direção ao eletrofunk, inédito e que ele jamais voltaria a repetir, e a letra, pedindo que os ouvintes jogassem a mão para o alto enquanto dançava, retoma uma das grandes tradições do funk, que é a de dialogar com as coreografias experimentadas no baile. Esta coreografia, porém, é um claro sinal de que se trata de certo tipo de funk que conseguiu falar para além dos bailes de favela, levando-o para boates frequentadas pela classe média dos grandes centros urbanos.

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24.

ME lEVA lAtInO

http://www.youtube.com/watch?v=n190Xi7vxg4 72


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 24. ME LEVA

A musa deste melody descaradamente inspirado em Take me in yours arms, de Lil Suzy, pode ter ignorado os pedidos desesperados de Latino, mas a música abriu-lhe o caminho para uma trajetória de sucesso quase sempre ascendente em que o funk muitas vezes esteve num plano inferior ao pop. Nascido Roberto de Souza Rocha, ele praticamente ignorou o circuito dos bailes, interagindo esporadicamente com produtores como os onipresentes Rômulo Costa e dJ Marlboro. quando chegou ao mercado, trazia na bagagem a cultura de rua dos Estados Unidos e um perfeito domínio da língua inglesa. Essas duas informações lhe deram um lugar privilegiado na cena do batidão, como demonstrou por exemplo como o compositor de You took my love, que um ano antes de Me leva estourou em todas as rádios na voz do grupo You Can dance, outro expoente do melody. Tudo mudaria durante a carreira de Latino, menos a capacidade que esse camaleão sempre demonstrou para se ajustar às tendências do mercado. Com o tempo, porém, suas músicas se tornariam cada vez mais dançantes e os desejos sexuais cada vez mais explícitos, ainda que sem jamais descambar para o que os funkeiros chamariam de putaria. Seus muitos acertos lhe deram prestígio o suficiente para que sobrevivesse a deslizes como a expulsão do palco do réveillon de Copacabana depois de avançar no tempo reservado a david Guetta, na virada de 2010 para 2011, em nome da gravação de um dvd ao vivo; a versão brasileira do hit coreano Gangnam style, que depois de mais de 100 mil dislikes resultou na suspensão de sua conta no YouTube; por fim, uma foto tirada na cabine de um avião obrigou a empresa a demitir dois funcionários. Alguns dos seus grandes sucessos são Festa no apê, Renata e Dança Kuduro. Em todos eles, apropriou-se de outras músicas em um nível que beira ao plágio, e nenhum deles pode ser considerado funk, ritmo que abandonou ainda na década de 1990.

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25.

MEl么 dA MUlhER FEIA ABdUllAh

http://www.youtube.com/watch?v=znidOdyv0cy 74


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 25. MELÔ DA MULHER FEIA

A Melô da mulher feia é tida como o marco zero do funk carioca. Foi a primeira a ser gravada para a coletânea Funk Brasil, produzida em 1989 pelo dJ Marlboro. Tinha como base Do wah diddy, do grupo Live Crew, uma das principais referências do miami bass, estilo de rap com uma forte batida grave e com letras de duplo sentido que iria criar as bases para o funk carioca. Tanto Melô da mulher feia e Do wah diddy usam samplers da canção Do wah diddy diddy, gravada originalmente em 1963 pelo grupo vocal americano The Exciters. A versão brasileira tem uma verve bem-humorada que remete a outros grandes momentos da história do batidão, como Dona Gigi, em que Os Caçadores também namoraram o politicamente incorreto para desqualificar a condição feminina. Sua letra produz risos como ver alguém levando uma topada, mas hoje essa divertida pegadinha, muito comum nas comunidades populares, teria que evitar a associação entre mulher feia e fedor de urubu para sobreviver principalmente às críticas das feministas, para não falar de eventuais acusações de bullying. Principalmente se a versão cantada nos bailes fosse publicada: em vez de “mulher feia cheira mal como urubu” cantava-se “mulher feia chupa pau e dá o cu”. O mesmo Abdullah participaria de dois outros momentos históricos do funk: foi um dos principais expoentes do chamado funk melody, em que se o excesso de romantismo das letras o aproximou perigosamente do brega, pelo menos se inseriu na mídia, principalmente nos programas da Xuxa, minimizando parte do estigma do batidão; Abdullah também foi o autor Fico assim sem você, em que praticamente previu a morte de Claudinho, que se tornou um clássico da MPB em vozes como as de Adriana Calcanhotto e do próprio Buchecha.

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26.

nOSSO SOnhO ClAUdInhO & BUChEChA

http://www.youtube.com/watch?v=4laBRi4sm5I 76


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 26. NOSSO SONHO

Nosso sonho narra a história de amor platônico entre Buchecha e uma menina de 12 anos que depois de tentar chamar sua atenção durante um show na Baixada Fluminense adentrou o camarim oferecendo-se para ele. Faz parte do primeiro álbum da dupla, uma explosão de vendas (1,2 milhão de cópias) a partir da qual Claudinho & Buchecha se mantiveram em evidência até a trágica morte do primeiro, em 2002, em um acidente automobilístico na volta de um show. Como admite na letra, o músico fez um grande esforço para não ceder ao impulso de ter a fã em seus braços depois de todo o charme que jogou para ele. Esse desejo aparentemente pedófilo traduz, no entanto, a relação entre ídolo e fã. O ídolo faz tudo a seu alcance para ficar em evidência, para se tornar um ponto fixo na vida de uma adolescente. A fã é uma imagem que ele há de carregar por todos os bailes (ele cita 46 em uma das estrofes, de lugares tão remotos e desconhecidos como Mutuapira e Gramacho), em muitos dos quais ela provavelmente estará tentando atrair sua atenção. É um jogo de possibilidades e projeções que precisa ser estimulado por ambas as partes, mas que termina tão logo um deles rompa o pacto da tietagem — “nosso sonho não vai terminar”, canta ele no refrão, quase num lamento. O cantor e compositor Lulu Santos, ídolo da dupla e um dos mentores do primeiro Cd, chegou a dizer para Buchecha que “Nosso sonho” é a música que ele queria ter feito na vida. Esta deve ser a única letra da história da MPB que tem a palavra “adjudicar”, que ele pinçou no dicionário que usava para construir sua poesia.

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27. PAVAROttI ChOCOlAtE E MC FABInhO

http://www.youtube.com/watch?v=nCEx4xR2l6c 78


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 27. PAVAROTTI

A história de Pavarotti mostra diversas facetas do Rio de Janeiro em que o funk foi reinventado, ganhando um sotaque carioca que somente o samba o teve antes dele. Uma delas revela o modus operandis de uma indústria que se desenvolveu à margem de todos os direitos, inclusive o fato de existir. É que essa parceria entre Chocolate e MC Fabinho teve como ponto de partida uma abordagem com a qual o parceiro do ex-pichador Jack tinha se acostumado desde o estrondoso sucesso de Um morto muito louco: o MC procurou a dupla tal como muitos outros compositores, com a esperança de vender os direitos autorais. No entanto, aquela homenagem a Luciano Pavarotti não tinha o elemento de humor presente no batidão que os revelou, que eles pretendiam transformar numa espécie de marca registrada de sua obra. Mas o refrão, além de soar pegajoso para o público, trazia o potencial de transformar aquela narrativa sobre a máxima potência da voz numa brincadeira, ali no limite do bullying, com um amigo gago e o outro fanho, a antítese do rei da ópera. Por isso, Chocolate sugeriu fazer uma parceria, em vez de comprar a música. O produtor Batutinha (também foi ele que produziu Um morto muito louco) sugeriu o lá-lá-lá posterior ao refrão.

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28.

PERdI VOCê MCS SUEl E AMARO

http://www.youtube.com/watch?v=dttaB_lte-E 80


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 28. PERDI VOCÊ

Perdi você foi o primeiro sucesso da dupla Suel e Amaro, ambos criados na rua dois de dezembro, no Catete, zona sul do Rio de Janeiro. A música foi composta por Suel, que seria assassinado em 2002, sete anos depois de terem sido descobertos por Grandmaster Raphael em um programa da Furacão 2000 de que os dois participaram como representantes da galera do bairro em que moravam. Era a primeira vez que se apresentavam em público e principalmente Amaro estava nervoso a um ponto tal que quase não subiu ao palco para fazer a segunda voz da dupla que logo se tornaria conhecida como os Mauricinhos do Funk, por serem do asfalto e ele, Amaro, branco. O dJ da Furacão 2000 se aproximou perguntando se aquele típico funk melody, tanto por seu romantismo meloso quanto por sua batida herdada do miami bass de Tony Garcia e Steve B, era de autoria deles. Perdi você foi gravada na coletânea Rap Brasil 3, lançada pela Som Livre em 1995, juntamente com Pra sempre você. O maior sucesso de Suel e Amaro, no entanto, foi Pequena garota, também presente no primeiro álbum da dupla, lançado em 1997 pela Afegan Records — as três com arranjos novos. O estrondoso sucesso do disco teve como ápice um show no imperator, uma casa de show no Méier que posteriormente seria rebatizada para Centro Cultural João Nogueira, onde um coro de milhares de vozes principalmente femininas foi gravado e executado nas principais rádios do Rio de Janeiro. A dupla não estava preparada para o sucesso e gastou todo o dinheiro ganho nos sucessivos shows que fazia em farras envolvendo muitas mulheres e drogas. depois da morte de Suel, Amaro fez algumas incursões pelo funk gospel, para desistir em seguida.

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101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 28. PERDI VOCÊ

gUIA AFEtIVO E MÁQUInA dO tEMPO Por Dorly Neto Trilha sonora para diversas desilusões amorosas de toda uma geração, o hit Perdi você, dos MCs Suel e Amaro, até hoje funciona como guia afetivo e máquina do tempo. isso é possível de observar ao olharmos comentários sobre a música nas redes sociais, principalmente em vídeos do YouTube, em que as pessoas, nos comentários, revisitam tempos passados, lembranças que outrora desgostosas, hoje representam a vida bem vivida. Suel e Amaro, por não serem oriundos de uma favela, às vezes eram chamados de "mauricinhos do funk", o que não os abalava. Eles são a prova viva de que o ritmo e a poesia possuem forças além do território. A música Perdi você foi cantada para o público pela primeira vez em 2000 no programa O Melhor da Furacão, apresentado por verônica Costa, e fez um estrondoso sucesso. Segue-se uma turnê por vários bailes, sempre cheios, até uma fatalidade encerrar a carreira da dupla: o assassinato de MC Suel, com cinco tiros, em Magalhães Bastos. A morte eternizou o hit e a dupla entra para a história do funk com louvor.

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29.

PIkAChU VAnESSInhA

https://www.youtube.com/watch?v=4pkE9MkwtVs 84


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 29. PIKACHU

vanessinha foi uma das primeiras mulheres a anunciar pelas caixas de som que desejava tão intensamente quanto os homens, ali na virada do milênio. Já no seu primeiro sucesso, aquele que lhe deu projeção nas rádios uma semana depois de uma apresentação à capela para o dJ da equipe Pitbull, no Clube Olariense, provocava aquele jovem que chegava na night com uma roupa neurótica mas que sumia na hora do bem bom. O nome desse batidão era Preparado, o que confirma sua tese de que as mulheres do funk possuem o mesmo pensamento que os homens, usando com naturalidade imagens que o mundo politicamente correto toma como desqualificadoras. Sua segunda e definitiva incursão no mundo do funk foi com Pikachu, na qual não apenas diz que prefere ir a um motel a assistir ao Pokemon no cinema, como explicita todas as formas que gostaria de brincar com o Pikachu, personagem do mesmo desenho animado que ganhou conotações sexuais por causa de seu nome sugestivo. Podia ser pela frente, por trás ou de ladinho — o importante é que houvesse o papo reto, as vias de fato, que o Pikachu entrasse seco e saísse molhado de um lugar quentinho e apertadinho. Por incrível que pareça, vanessinha teve o insight de Pikachu na casa de uma amiga, enquanto as duas colocavam a filha para dormir. A amiga pediu que ela fizesse uma espécie de funk de ninar, o que é revelador do lugar do funk no cotidiano do Rio de Janeiro. No entanto, essa persona pós-feminista, acompanhada de um corpo delgado sempre próximo da nudez e longos cabelos oxigenados, seria capa de uma revista masculina por ser na vida real exatamente o oposto daquilo que pregava com sua música: era virgem até os 19 anos, quando estourou. deixou o funk ressentida, depois de ser preterida na gravação do dvd de “Atoladinha”, grande sucesso na voz de Bola de Fogo, que na versão que ela cantava tornava-se “enterradinha” — “Tô ficando enterradinha, calma, calma, vanessinha.” voltou então a estudar e formou-se em educação física, o que lhe permitiu dar aulas em uma academia de ginástica em Olaria, bairro da zona norte no entorno do Complexo do Alemão no qual foi criada, de modo a sustentar seu único filho. 85


30.

MOntAgEM dO StAR WARS MCS ElESB達O E hAROldInhO

http://www.youtube.com/watch?v=tzeRhvjzlow 86


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 30. MONTAGEM DO STAR WARS

O nome da dupla está longe de ser conhecido no mundo do funk. Elesbão (José Bessa) e Haroldinho (Claudio Reston) são célebres entre os designers brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro. Foram os criadores do fanzine design de Bolso, cultuado pela classe, e continuaram juntos trabalhando com publicidade, cinema e Tv. O que isso tem a ver com funk? É só fazer uma busca por “Elesbão e Haroldinho” na internet para descobrir. A obra mais cultuada e difundida da dupla não é um anúncio premiado ou qualquer trabalho de tipografia. É o “Funk do Star Wars”, uma brincadeira composta e gravada pelos dois que foi compartilhada à exaustão por e-mail, antes da difusão dos blogs e o advento das redes sociais. A batalha espacial entre os vilões Sith e os heróis Jedi da saga Guerra nas Estrelas foi travestida em funk, emulando a interminável guerra entre as facções criminosas nos morros do Rio no fim dos anos 1990 e os bailes de corredor, na mesma época, com brigas semanais entre o lado B e o lado A. A batalha era na favela, mas nada fica isolado na geografia carioca. Os jovens do asfalto nunca estiveram imunes. “Cavaleiro Jedi, 3 real, Princesa Rebelde grátis até meia-noite, falou?”, anuncia dJ Haroldinho antes da música, misturando o chamado para um baile fictício e o universo de Guerra nas Estrelas. “Estrela da Morte, vai ter que respeitar/império do Mal, o bonde pra esculachar/Pega e destrói o lado B e o lado A/A galera se agita quando toca o Star War”, canta o MC Elesbão em um trecho. Os dois viraram exemplo da apropriação do ritmo dos morros cariocas pelos jovens do asfalto. Como escárnio, mas com um quê de reverência e inegável qualidade de humor.

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31.

PRA ME PROVOCAR MC kORIngA

http://www.youtube.com/watch?v=Fg2buAsFjj4 88


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 31. PRA ME PROVOCAR

Pra me provocar é um dos vários sucessos que o MC Koringa emplacou ao lançar seu primeiro Cd, A caminhada. Entrou na trilha sonora de Avenida Brasil, em que João Emanuel Carneiro reinventou a novela brasileira, dando um protagonismo à classe C como esta nunca teve em toda a história da nossa televisão. Mas não foi à toa que esse batidão caiu no gosto de Mariozinho Rocha, o diretor musical da novela. Cada detalhe aqui foi concebido de modo a permitir que o MC Koringa entrasse pela porta da frente na casa das famílias brasileiras, com um melody que definitivamente colocava o funk na linha de frente do show business carioca. A letra, light, fala de uma mulher fogosa, que passa a noite inteira dançando de um modo provocador, de quem sabe muito bem despertar a cobiça de um homem, descendo até o chão com o dedo na boca e os olhos fixos no objeto do seu desejo. A batida, frenética, usa e abusa do tamborzão eletrônico, ainda que se tenha a impressão de que todos os instrumentos de percussão provenham da caixa mágica de Alex Bolinha, seu dJ e empresário. Completando um círculo virtuoso de uma produção impecável, um videoclipe em que mulheres bonitas dançam de um modo sensual, mas com o cuidado de não cair na vulgaridade e dessa forma poder ser visto e ouvido pelas crianças sem criar conflito com o restante da família. Todas essas características juntas consolidaram um momento peculiar do funk carioca, de que fazem parte MCs como o prórpio Koringa, Naldo e Anitta, entre outros. Esse movimento está libertando o pancadão do baile e criando uma linha de shows que permite que o funk não apenas fale para um público mais amplo, como também transfira pelo menos parte dos ganhos do empresário para o artista e, por fim, organize um horário aceitável para a grande festa da periferia, praticamente proibida desde o início do processo de pacificação nas principais favelas cariocas. Os shows do MC Koringa são vendidos a peso de ouro em todo o território nacional.

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32.

PRInCESA MC MARCInhO

http://www.youtube.com/watch?v=rtvj14CVd2w 90


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 32. PRINCESA

Princesa é o terceiro rap a estourar na carreira de MC Marcinho. Foi composto em parceria com Famelle, um amigo do Centenário, bairro em Caxias, cidade da Baixada na qual viveu até se mudar para Bangu, um pouco depois dos 16 anos, que foi quando iniciou sua carreira. Surgiu em uma mesa de bar, onde os dois estavam tomando cerveja e batucando na mesa. Não havia uma fonte de inspiração, como o Rap do solitário, que Marcinho fez pensando na ex-namorada Cristiane. Também ao contrário do rap que o projetou primeiro nos bailes e depois nas rádios, Princesa foi criado para atender a uma demanda dos dJs que desde sempre comandaram a cena funk carioca, como o dJ Marlboro, Rômulo Costa e Tubarão, que passaram a acreditar no potencial do MC Marcinho a partir do megassucesso do Rap do solitário. A letra corrobora o romantismo até então inédito no funk, que Marcinho herdou do pai pagodeiro, que na infância e na adolescência o levava para as rodas de samba da Baixada Fluminense. Posteriormente esse tipo de batidão, cujas letras estão entre as mais longas de toda a MPB e comportavam passagens com uma complexidade como “o pensamento é a vida e por isso vivo pensando em você”, ficaria conhecido como funk melody. Também como nas demais letras do artista, há uma musa que partiu, onipresente na memória de um solitário melancólico. A harmonia só não incluía os sopros e as cordas que mais tarde seriam outra marca registrada do MC por causa da precariedade dos primeiros produtores com os quais trabalhou, que registraram os raps da primeira geração de MCs em limitados multivox. Juntamente com Rap do solitário, Quero você, Garota nota cem e outras dez músicas, Princesa seria gravada no primeiro Cd solo do MC Marcinho, chamado Sempre solitário, distribuído pela Link Record’s, do dJ Marlboro. Apesar do sucesso do primeiro Cd, os trabalhos que em seguida venderia de baile em baile foram produzidos de modo independente até lançar o dvd Tudo é festa, gravado em 2008, no Circo voador com nomes expressivos como Sandra de Sá, Bob Rum e MC Sapão. Com o dvd, voltaria a inovar na cena funk, agora incluindo sopros, teclados e cordas, usando um formato de banda que lhe permitia vender seus shows pelo Brasil afora. 91


33.

QUER BOlEtE? MC COlIBRI

http://www.youtube.com/watch?v=yCjVmtiukbs 92


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 33. QUER BOLETE?

Pedro Jorge Lopes nasceu com o samba e no samba se criou, como diria aquela velha canção dos Novos Baianos. Mas dele se separou, e para nunca mais voltar, depois de uma conversa com o MC Marcinho, que com o pragmatismo que caracteriza as classes populares o alertou para as dificuldades de ele se firmar como compositor ou mesmo intérprete dos sambas que aprendeu a cantar na império Serrano, uma paixão familiar. Optou então pelo funk, cena na qual se firmou a partir da escrachada Quer bolete?, batidão que faz referências quase explícitas ao sexo oral, tema a que ele voltaria em Carrinho de pipoca. Há algo de mântrico em Quer bolete?, um sintagma repetido quase à exaustão com breves referências ao chiclete Babalu, que nas versões mais leves é mais gostosa e tem calda por dentro e, nas mais pesadas, antecipa a rima que termina com um “gosta de boquete e dar o cu”. O batidão é a continuação de Chupetinha, criação de doca cantada pelo Bonde das Trigrezinhas que, como o rap do MC Colibri, consegue apontar para uma série de subentendidos a partir de pouquíssimas palavras. “Quer bolete? é a continuação dessa música, só que na nossa versão a garotinha cresceu”, explica o MC. A música estourou em 2003, abrindo a porteira para o proibidão de putaria, mas com uma dimensão do humor acentuada por uma performance no palco que traduz com precisão cada uma das palavras com duplo sentido. O MC Frank tem a sua própria versão para o Quer bolete?, que ele sempre apresentou nos bailes da Furacão com mais malícia do que o MC Colibri. O MC Colibri também foi fundo em um outro tipo de proibidão, aquele que em tese faz apologia ao crime ou ao uso das drogas, principalmente aquelas vendidas nas favelas controladas pelo Terceiro Comando Puro, também conhecido pela sigla TCP. Foi preso por isso, passando quatro meses na prisão em 2006.

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34.

QUERO tE EnCOntRAR ClAUdInhO & BUChEChA

http://www.youtube.com/watch?v=QEt3qylBRSk 94


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 34. QUERO TE ENCONTRAR

Um estalinho de satisfação na língua do sobrinho Fábio foi o ponto de partida para Quero te encontrar, a grande contribuição de Buchecha para o álbum Forma, que chegou às rádios em agosto de 1997 e vendeu 750 mil cópias. Musicalmente, esse hit foi um passo largo em direção ao pop já ensaiado nos sucessos do primeiro álbum da dupla, com uma batida marcada por instrumentos de percussão deliciosos, muito mais importantes para o andamento da música do que o batidão eletrônico que caracteriza o gênero. A letra, como sempre, faz referência a episódios da vida amorosa do compositor, aqui ignorado por uma mulher que o visita nos fins de semana quase como se ele fosse um objeto sexual. A grande novidade, pelo menos para os padrões da dupla, uma narrativa enxuta e sem aquelas palavras que o compositor procurava no dicionário nas horas de dúvida, como o “adjudicar” de “Nosso sonho”. Uma das principais referências pop do mundo funk, Quero te encontrar foi gravada por mais de um artista em pontos de virada de sua obra. Kelly Key a gravou em Festa Kids, Emicida fez um mashup junto com Vou buscar minha fulô, de sua autoria, e o Kid Abelha a incluiu no repertório do dvd Acústico, como uma homenagem póstuma a Claudinho.

Por Elis de Aquino O amor está no funk. Na década de 1990 uma dupla estourou nas rádios e na Tv com letras melódicas e coreografias inconfundíveis. Mesmo quem não estava ligado na cena funk já ouviu as músicas de Claudinho & Buchecha. Eles foram ícones do funk romântico e até hoje são referência do tamborzão apaixonado. A dupla só love fez tanto sucesso que até japonês dançou em turnês no exterior. Quero te encontrar, um dos sucessos dos rapazes, é uma poesia, uma declaração de um amante que faz tudo para poder encontrar a amada que vem para “passar o fim de semana”. Na ânsia de amá-la outra 95


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 34. QUERO TE ENCONTRAR

vez, “mesmo duro ou com grana”, o apaixonado percorre o país para ter a chance de tê-la em seus braços outra vez. A sua “preta, sua paz”, vai embora “desatando os laços” com o apaixonado, que louco de amor, cheio de ousadia e alucinado com o olhar da moça não desiste de sua paixão. Claudinho & Buchecha são uma das minhas primeiras recordações do funk poético e amoroso. Lembro-me de ouvi-los durante minha infância e adolescência. Sem dúvida eles deixam registrado que além de ser um “som de preto e de favelado”, o funk é o som dos apaixonados. Mais do que rebolar a bundinha, o funk também é o ritmo que expressa o amor, sentimento mais genuíno dos seres humanos.

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35.

QUICA nO CAlCAnhAR MC kORIngA

http://www.youtube.com/watch?v=FhgIIn6CAP4 98


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 35. QUICA NO CALCANHAR

Quica no calcanhar, que no original se escrevia com “k”, reitera o eterno diálogo do MC Koringa com as coreografias do baile, que ele só deixou de narrar em Pedala, Robinho, com a qual ele fez sua reentrada triunfal na cena funk, no verão de 2005. Aqui já tínhamos um artista maduro, com um projeto de tirar o batidão do gueto que ele mesmo descreve nesta narrativa de uma mulher excitada com o tamborzão em um baile de comunidade, cheio de “bebida regada”. Não foi à toa que emplacou seguidas músicas na trilha sonora das novelas do horário nobre da Rede Globo — para ser mais preciso foram seis de 2005 a 2013. O projeto pop já o levou até Boston, mas embora tenha ficado emocionado ao final do show para a maior comunidade brasileira nos Estados Unidos, seu sonho é internacionalizar de fato o funk, dando-lhe uma projeção como foi com o reggae ou a salsa. Pode não ter a seu favor a capacidade de dançar inerente a projetos globais, mas a determinação é uma marca registrada deste ex-soldado e ex-açougueiro criado na Penha, que antes de vencer a indiferença de produtores como dJ Marlboro e Rômulo Costa (trabalhou com os dois), teve que convencer os pais adotivos que ia ao baile não por farra, mas porque sonhava em ser MC. Há aqui outra marca de seu trabalho como compositor, que é o de usar expressões típicas da favela, como quica no calcanhar, com o qual as comunidades populares, que estão sempre reinventando a língua, passaram a se referir ao clássico movimento de descer o bumbum até o chão. Outra expressão típica das favelas que ganharam o mundo por intermédio de sua voz grave, que muitas vezes sai direto da garganta, foi “pente certo”, que poderia ser traduzido para a língua do asfalto como “trepada garantida”.

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36.

RAP dA CIdAdE AltA MC PIXOtE

http://www.youtube.com/watch?v=EajX0nqMCMU 100


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 36. RAP DA CIDADE ALTA

Nascido em uma família de sambistas, Carlos Henrique só conheceu o funk já moleque graúdo, depois de já ter arriscado alguns partidos altos que começou a compor por volta dos 12 anos, depois de ter se mudado de Brás de Pina para Realengo e daí para Paciência. Mas terminou entrando para a história do pancadão ao estourar o Rap da Cidade Alta, que ele compôs em 1995 já com o nome artístico que escolheu depois de ver o filme Pixote como um lembrete para si mesmo, para não desperdiçar as poucas oportunidades que a vida oferece a um moleque da periferia carioca. A razão para toda essa importância, no entanto, está menos na qualidade do inócuo e repetitivo pedido de paz embutido no seu rap do que no fato de ter interrompido o vicioso círculo das equipes de som, que naquela quadra do tempo só tocavam funk melody. O refrão melódico, cantado nos bailes em coro, lembra o rock n’roll Runaround sue, do grupo vocal dion and The Belmonts, gravado no início dos anos 1960. O arrebatador sucesso da versão que a Pipo’s gravou ao vivo, em um baile no Coimbra Esporte Clube, na Penha, obrigou as equipes de som a ressuscitarem MCs como Bob Rum, que usaram sua voz para alertar os frequentadores dos grandes bailes organizados nos clubes do subúrbio. Mas o próprio MC Pixote admite que, quando cantava o Rap da Cidade Alta, até parecia que os funkeiros viam no seu pedido de paz um estímulo à violência, iniciando as brigas do lado A contra o lado B tão logo começava a cantar. Não foi à toa que o rap saiu vencedor de um festival de galera organizado pela zz Club, no Pan de Pilar, na Baixada Fluminense. Como devem se lembrar os funkeiros da antiga, eram nos bailes organizados pela zz Club que a porrada estancava. O Rap da Cidade Alta foi o único sucesso arrebatador na carreira do MC Pixote, mesmo que tenha experimentado algumas voltas depois de entrar para a igreja em 1998. Mas o Cd Só deus é justo e fiel, lançado em 1999, não deslanchou. Melhor do que Lei do cão, que ele sequer conseguiu gravar em 2004.

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37.

RAP dA dIFEREnรงA MCS MARQUInhOS E dOllORES

http://www.youtube.com/watch?v=BUz8vhj0PPM 102


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 37. RAP DA DIFERENÇA

O funk e o charme têm a mesma gênese: o poderoso movimento Black Rio que, na década de 1970, assustou a ditadura militar com uma estética que misturava a alegria tipicamente carioca a ícones importados diretamente dos insurretos guetos negros dos Estados Unidos. Como se pode perceber no Rap da diferença, os dois gêneros são uma reafirmação antropofágica daquela cena, recriando seus elementos com um sotaque tão próprio da cidade quanto foi o samba na época do Estado Novo. Mas a história dos MCs Marquinhos e dollores mostra que, ainda que o funk e o charme convivessem harmoniosamente tanto na periferia da cidade quanto nesse rap, os dois gêneros apontam para caminhos distintos do movimento negro, que em outros lugares do mundo até poderiam ser conflitantes. No funk com que o MC dollores cresceu na favela da Rocinha, ele andava bonito com seu “estilo internacional”, no qual cabiam o cabelo enrolado, o bermudão Cyclone e os tênis Reebok ou Nike. Não à toa, esse estilo despojado iria se tornar uma espécie de uniforme do tráfico de drogas, principalmente depois que os funkeiros vestiram a fantasia de “classes perigosas” e passaram a protagonizar as manchetes dos jornais populares com seus bailes de corredor. Já o estilo social do charme, de que o MC Marquinhos aprendeu a gostar no Tênis Clube de Marechal Hermes, tem uma elegância que aponta para um negro indissoluvelmente ligado à ética do trabalho, por meio da qual os jovens da periferia poderiam conhecer algum nível de mobilidade social. A diferença não chega a ser tão gritante quanto a que delimita o campo pelo qual transitam os evangélicos, que encontram em uma vestimenta quase estereotipada de correção uma forma de se diferenciar dos bandidos, emitindo sinais tanto para a comunidade popular na qual se inserem quanto principalmente para os policiais, que reconhecem no terno surrado sobre o corpo recém-saído do banho um passaporte para a cidade formal. Mas não foi à toa que os elegantes usuários das leves calças de Bali foram muito menos perseguidos, assim como é significativo o fato de que o baile do viaduto Negrão de Lima, em Madureira, jamais foi proibido, ainda que cada um dos passes ensaiados pela massa que ali 103


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 37. RAP DA DIFERENÇA

se aperta desde o início da década de 1990 seja uma clara afirmação étnica. Um detalhe que em outro contexto seria irrelevante é que, em um encontro no final do ano de 2012, na Roda de Funk de São Gonçalo, a dupla de MCs tenha dito que ambos eram bonitos, e não elegantes. E bonitos são os funkeiros. Mesmo quando só conseguem falar para o mercado como uma gostosa nostalgia.

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38.

RAP dA FElICIdAdE MCS CIdInhO E dOCA

http://www.youtube.com/watch?v=qkkQjwji8lM 106


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 38. RAP DA FELICIDADE

Mais do que um hino, o Rap da felicidade é um manifesto do funk, o primeiro e talvez o último. Ocupa um lugar na história do gênero que com muito boa vontade só pode ser comparado ao Rap do Silva e ao Som de preto. A primeira estrofe, e refrão, está entre os melhores momentos de toda a MPB tanto pela qualidade dos seus versos quando pelo desejo que enuncia, pedindo o direito de ser feliz, andar tranquilamente na favela em que nasceu, orgulhar-se e por fim ter a consciência de que o pobre tem seu lugar. Outro momento de extrema felicidade da letra, uma parceria de Kátia e Julinho Rasta que Cidinho e doca musicaram para apresentá-la em um dos cinco festivais das galeras do Country Club que ganharam, é o verso que fala que tiros de metralhadora interrompem a oração feita a uma santa protetora. Esse lugar potente anunciado pela dupla Cidinho e doca pode ser a Cidade de deus em que ambos nasceram e se criaram, mas foi apropriado pelos moradores de comunidades populares a um ponto tal que, quando Adriano fez um gol ao reestrear no Flamengo, a arquibancada em peso a cantou tanto por sua torcida ser identificada como favelada como por seu grande goleador preferir o aconchego dos amigos na vila Cruzeiro a uma vida de pompa e circunstância na itália, onde ganhara o apelido de imperador. O verdadeiro Rio de Janeiro, aquele que gosta do baile funk, só não é de todo feliz no lugar de que é cria por causa de uma autoridade sempre violenta e acima de tudo arbitrária, que desrespeita os direitos de viver de pessoas inocentes, que são humilhadas só por ficarem na praça. O desrespeito ao morador, que por isso mesmo tem medo de viver, gera o ódio a uma polícia, principalmente a militar, que posteriormente será tematizado nos proibidões que Cidinho e doca passaram a fazer a partir de que o baile foi acantonado na favela, depois de proibido nos clubes de subúrbio da região metropolitana.

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39.

RAP dA MOREnA MCS WIllIAM E dUdA

http://www.youtube.com/watch?v=nPtuywd1tOI 108


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 39. RAP DA MORENA

O Rap da morena ganhou os bailes e as rádios nas vozes de William e duda, os nomes mais importantes do funk do morro do Borel, zona norte do Rio de Janeiro, em 1994. Mas o segundo sucesso na carreira da dupla na verdade é de autoria dos MCs Alex e Xerengue, que, juntamente com Mr. Catra, na época conhecido como MC Wagner, faziam parte da Caravana do Funk. Nesse sentido, esse funk melody de um romantismo quase pueril dialoga com as grandes tradições da música popular de todo o mundo, em que a autoria dos primeiros rebentos é tão discutível quanto os passarinhos de que o sambista Sinhô falava, que pertenciam a quem os pegasse primeiro. Um exemplo de carreira que decolou graças a um compositor inspirado é a do MC Smith, cujos proibidões foram criados pelo obscuro Praga. Eram, como MC Smith e Praga, unha e carne. Mas o caso do grande intérprete da vida bandida do Complexo do Alemão pelo menos tem a virtude de os pancadões começarem a ser compostos a partir de uma pauta criada pelo MC Smith, apresentada em conversas de trabalho. Já o Rap da morena chegou quase inteiro para a dupla, ainda que em parte tenha sido inspirado pela primeira mulher e mãe de seus filhos. E a dupla o preferiu ao “Rap da gata”, de autoria de William, que estava pronto no momento em que perceberam que precisavam de uma novidade para colocar no lugar do então batido Rap do Borel. O funk melody parece oscilante, começando como uma história de amor rasgado iniciada no baile do Borel para duas estrofes depois ignorar um amor arrebatador a fim de dar os inócuos alertas para a massa que ia ao baile para brigar e enumerar uma ampla lista de comunidades populares sacudidas pelos bailes a cada fim de semana. Mesmo assim, o sucesso foi tão retumbante que a dupla chegaria a se apresentar na Europa depois de passagens expressivas pelo programa da Xuxa e pelo Criança Esperança.

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40.

A ROCInhA PEdE A PAz MC gAlO

http://www.youtube.com/watch?v=gnCky1n5wns 110


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 40. A ROCINHA PEDE A PAZ

A Rocinha pede a paz, também conhecido como “Rap da Rocinha”, foi o primeiro rap composto por MC Galo, nascido no seio de uma família de origem mineira em 1975 com o nome de Everaldo Almeida da Silva. Foi um sucesso instantâneo quando foi defendido em um dos festivais de galeras organizados na década de 1990 pela Cash Box, no qual o menino que ganhou o apelido de Galo por andar sempre cantando, entrou para defender um trocado a mais do que aquele que garantia como a maioria dos moleques de sua geração: pegando bola no Gávea Golf & Country Club ou como guardador de carro no Baixo Gávea. Chegou a fazer 15 shows em apenas uma noite no auge do sucesso, mas a imagem mais consagrada dessa época foi a de um Maracanãzinho lotado, com 20 mil pessoas fazendo coro com o seu pedido de paz para os bailes da cidade, afirmando que era a “maior mancada” dar “paulada” ou “porrada”. Um dos funks mais sampleados de todos os tempos, seus versos não apenas eram usados repetidamente para animar e levantar as galeras nos bailes por todo o Rio de Janeiro como deu a fama de paz que atraiu funkeiros de toda a cidade para a quadra da então recém-criada Acadêmicos da Rocinha. Além do clamor pela paz, o rap do MC Galo inscrevia pela primeira vez no mapa da MPB localidades como Boiadeiro, Cidade Nova e as Ruas 1, 2, 3 e 4, micro-áreas da então maior favela da América Latina, como ele próprio cantou. Conhecido como a “História do Funk”, Galo cantou aqui um Rio anterior à guerra de facções, em que moradores das diversas favelas citadas no seu rap podiam se frequentar sem receio de represálias dos bandidos, algo que deixaria de acontecer depois da morte do traficante Orlando Jogador, em 1994. O assassinato do todo poderoso do Complexo do Alemão, em uma traição digna de Shakespeare do seu então afilhado Uê, deixou a cidade conflagrada.

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41.

RAP dAS ARMAS MCS júnIOR E lEOnARdO

http://www.youtube.com/watch?v=MF4P3wdFiRw 112


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 41. RAP DAS ARMAS

Rap das armas se tornou um dos maiores sucessos da história da MPB antes mesmo do filme de que foi trilha sonora, o fenômeno Tropa de elite. Composta pelos irmãos Júnior e Leonardo para o segundo álbum da dupla, em 1992, o rap se apropriou da base da canção inglesa Your love, do grupo The Outfield, uma estratégia bastante comum na primeira geração de MCs cariocas. Outra prática igualmente comum foi a remixagem da letra feita pela dupla Cidinho e doca, que a partir do onamatopeico refrão “papará papará papará clack bum” o transformou no maior proibidão de todos os tempos, com rimas tão poderosas quanto as armas a que aludia para descrever a interminável guerra de facções do Rio de Janeiro. Esta versão, muito mais popular, foi criticada por Júnior e Leonardo, para os quais a descrição do poder de fogo dos bandidos do Morro do dendê subverteu a mensagem de paz original, colocando em seu lugar uma deslavada apologia à violência. Júnior e Leonardo chegaram a depor na delegacia, mas foram liberados após comprovarem que não tinham nada a ver com essa versão. Cidinho e doca não foram processados, porque a condição de proibidão impediu que as rádios a tocassem, apesar dos insistentes pedidos dos ouvintes intoxicados pelas cenas de violência vividas em um cotidiano em que a Chacina da Candelária e a de vigário Geral tornavam inevitável sua transposição para o cancioneiro popular. Mas se jamais foi executado nas rádios brasileiras, o Rap das armas liderou por várias semanas a lista das mais pedidas em diversos países europeus, como Holanda e Suécia. Gravado em diversas línguas e adaptada a estilos musicais tão díspares quanto o kuduro angolano e a versão dance conhecida como Lucana Club Mix, o Rap das armas teve sua vocação para “Garota de ipanema” do funk confirmada quando os torcedores do djurgardens iF Fotboll começaram a cantá-lo nas arquibancadas durante os jogos.

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101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 41. RAP DAS ARMAS

Por Flávia Ferreira Antes mesmo das campanhas pelo desarmamento da população, iniciadas em 2004/2005 e que tiraram quase 500 mil armas de circulação do país, em 1992 já existia um movimento que circulava no universo funk que pedia, nas entrelinhas, o desarmamento e a instauração da cultura de paz em todo o estado. Através do funk Rap das Armas, escrito em 1992 e divulgado em 1995, MC Júnior e MC Leonardo mandaram uma mensagem de paz em um período que não se sonhava com a Unidade de Policia Pacificadora, policiamento de proximidade e pacificação de uma favela no Rio de Janeiro. As armas citadas pelos MC's na letra são modelos que, na ocasião da midiatização do funk, eram utilizadas pelos traficantes nas comunidades cariocas. O tamanho das armas correspondia ao tamanho da guerra que existia até então. Sem meios de contornar a situação, a polícia trocava tiros com traficantes e quem sofria era o morador. Essa situação ainda é frequente em regiões como Costa Barros, irajá, Juramento, Chatuba, Para Pedro, entre outras favelas construídas nos subúrbios do estado. Algumas pessoas que não vivenciaram a onda de violência que ocorreu no Rio de Janeiro entre 1992 e 1995 podem não entender com tamanha clareza a mensagem que os MC querem passar. Na ocasião, além das constantes guerras entre facções, arrastões, corrupção policial, os moradores vivenciaram a terrível chacina de vigário Geral e a morte de oito meninos na Candelária. Essas cenas estigmatizaram a cidade e fizeram com que os cariocas clamassem por paz. A bandeira levantada pelos funkeiros ainda é utilizada por sociólogos e antropólogos. A filosofia que não nasceu de livros, mas da vivência e do embate cotidia114


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 41. RAP DAS ARMAS

no com a violência armada. Em comum, todos esses pensadores — incluo com direito de causa os funkeiros nesta lista — têm o desejo da instauração de um ambiente mais seguro em que as armas existam somente em jogos de videogame. Por que isso é importante? Os números comprovam. dados divulgados pelo Ministério da Justiça, em 2011, mostram que 50.113 homicídios, ou 26,4 homicídios para cada 100 mil habitantes, foram causados pela arma de fogo. Esses alarmantes índices existem porque as armas de fogo intensificam as práticas criminais e aumentam a possibilidade de desfecho letal de pequenos crimes. Além de alimentar a o crime, as armas potencializam a violência entre os cidadãos comuns, transformando ocorrências banais em crimes violentos. O funk mostra que a geradora e mantenedora de toda essa violência desmedida é a falta de investimentos na educação e a falta de informação. Sem educação — e por ser morador de favela — ele não tem oportunidade, e sem oportunidade ele não sobrevive. Sem informação, ele não consegue selecionar o que é melhor para a sua existência e sem isso ele mata a si mesmo.

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42.

RAP dO BOREl MCS WIllIAM E dUdA

http://www.youtube.com/watch?v=eplpwnk1vny 116


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 42. RAP DO BOREL

Amigos de infância, Carlos Eduardo Cardoso da Silva e William Santos de Souza, não perdiam um festival das galeras organizado pela Pipo´s e Furacão na Unidos da Tijuca. A quadra no pé do morro do Borel era o epicentro da cena funkeira naquela região da cidade, onde MCs como dieddy, Mascote e Neném, duda e Taffarel iam apresentar os batidões que serviriam de inspiração para toda uma juventude da periferia carioca. Citá-los no Rap do Borel, cujo refrão foi dado por Neguinho de Santa Cruz, amigo da dupla que jamais conseguiu se afirmar no mundo do funk, foi a grande novidade da letra que duda acabou de escrever enquanto se recuperava de uma fratura no pé. Eles só fizeram enriquecer a letra, à qual não faltaram os elementos indispensáveis à poética da geração que configurou o funk carioca na virada da década de 1990: a série interminável de localidades cariocas, o pedido de paz aos frequentadores dos bailes de corredor e o elogio à beleza da comunidade, acompanhados de um refrão pegajoso, como o “a-la-la-ô, a-la-la-uê” do rap de duda. William, que já cantava funk na comunidade, foi o primeiro a gostar do que ouviu e propôs a dupla, que já na estreia faturou o festival das galeras. O Rap do Borel estourou nos bailes e atraiu a atenção de Pigmeu, que antes de trocá-los para administrar a carreira de Mr. Catra, tratou de arrumar um espaço no pau-de-sebo em que essa música foi encaixada: Volta do homem mau, da Pipo´s. Em 1996, o Rap do Borel se tornaria o primeiro funk a ser cantado na concentração de uma escola de samba na Sapucaí. Também foi incluído no Cd Eu e Memê, Memê e Eu, de Lulu Santos. Não muito tempo depois, duda e William se separaram na volta de uma viagem a Fortaleza, no Ceará. Em 2012, William foi preso em Santa Catarina com dois quilos de cocaína.

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43.

RAP dO PIR達O MC dIEddy

http://www.youtube.com/watch?v=nhh_k-BUIXM 118


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 43. RAP DO PIRÃO

O Rap do Pirão é um funk seminal, que está na origem de toda a cena que transformou a periferia em geral e as favelas em particular. Foi composto por Edmar Santana, como ainda hoje o chamam a mãe e a esposa do MC dieddy, que entrou no mundo do funk fazendo carreto para o lendário Mister Mu no táxi que seu pai comprou ao se aposentar e se consolidou ao ganhar um festival de galeras no Clube Mauá, em São Gonçalo. Gravado em 1988 pela Furacão 2000, o Rap do Pirão contém todos os elementos que configuraram a primeira geração de MCs do funk carioca. Acima de tudo, há a preocupação com a violência, onipresente naquele momento em que os bailes se deslocaram dos grandes clubes do subúrbio para as favelas devido à pressão da opinião pública. (“Pra que tanta violência?”, pergunta-se o MC antes de mandar o refrão “Alô Pirão, Alô Boavistão”.) Há também um corolário de bairros de São Gonçalo, a começar pelo próprio morro do Mutuapira, que na incorrigível mania do carioca de contrair todas as palavras virou morro do Pira e por fim Pirão. Uma lupa sobre a letra, quando pede fraternidade no salão, revela um baile lotado de jovens cuja identidade dependia da comunidade a que pertencia e com a qual compartilhavam coreografias sempre executadas coletivamente, inclusive a da porrada: Salgueiro, Estrela do Norte, Catarinão, Palmeira e Chumbada são bairros, conjuntos habitacionais ou favelas que convergiam todos os fins de semana para o então famoso baile do Clube Mauá, em São Gonçalo, principalmente quando equipes de som como Pipos e Furacão 2000 promoviam os festivais de galeras. Esses bailes ficavam ainda mais cheios quando o MC dieddy enfrentava o MC Galo, como ele revelado pelos festivais de galeras que redesenharam o funk na virada da década de 1980 para a de 1990, dando origem às batalhas de MCs que mais tarde seriam mais identificadas com a cena hip-hop. depois do estrondoso sucesso do Rap do Pirão, o MC dieddy caiu num período de ostracismo do qual só saiu ao produzir o MC Federado e os Lelekes, que explodiram no verão de 2013.

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101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 43. RAP DO PIRÃO

ECONOMiA NA ACAdEMiA E FUNK NA vidA Por Leonardo Leal O Rap do Pirão é uma mistura de desabafo e estímulo a quem o ouve. Na primeira frase da música, o cantor expressa a tônica dos bailes: “Para o baile ficar bom, só depende de você. ”Ele inverte os papéis, tornando-os enfim reais, garantindo que não é o funk que determina o seu caráter, e sim o contrário. Se há confusões nos bailes, a culpa é de quem as causa, não do som ambiente. MC dieddy, um jovem de periferia e estudante de economia, trabalhava como assistente financeiro e de repente trocou o mundo da estabilidade pela massa funkeira. Foi mais um contagiado e, com seu talento, também contagiou. MC dieddy era estudioso — muito, por sinal — e nunca deixou de ser, pelo funk. Em quase todas as estrofes, o MC bate na tecla da fraternidade, sempre argumentando que se o funkeiro levar o amor no coração, a violência é esquecida. dieddy profetiza quando diz: “A violência nos bailes com o funk acabará.”Ela ainda não acabou com o funk, mas sim com seu prestígio. O cantor também exalta a união dos points do funk em São Gonçalo, sua terra, como Mutuapira, Pirá, Boa-vista, Palmeiras, Buaçu, entre outros. Afinal, todos estão ali pelo mesmo motivo, embalados pelo mesmo ideal. Uma música que surgiu na época da explosão do funk nacional. Um funk de raiz, sem apologia às drogas, palavrão, desvalorização da mulher ou algo relacionado a sexo. O Rap do Pirão vale a pena ser ouvido, seja qual for sua época. Para os veteranos, é uma sensação de nostalgia e uma possível lembrança da adolescência. Para os novos, é a certeza de que o funk e o funkeiro devem continuar com o seu valor. 120


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44.

RAP dO SIlVA MC BOB RUM

http://www.youtube.com/watch?v=zlCkxP802yM 122


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 44. RAP DO SILVA

Rap do Silva é a segunda música a marcar a vida de Moyses Osmar da Silva, um funkeiro nascido em Bento Ribeiro, mas criado em Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro. A primeira foi Bob Rum, nome do cachorro de um vizinho que ele atribuiu ao surfista do subúrbio de uma canção que fez um sucesso tal entre seus amigos que nunca mais o chamaram pelo nome de batismo. Rap do Silva não chegou a mudar sua identidade, mas sua letra extraordinária colocou sua carreira em um patamar impossível de ser alcançado outra vez. incluída no disco Rap Brasil 2, produzido pelo indefectível dJ Marlboro, a música foi um dos carros-chefes para a vendagem de 250 mil cópias desse trabalho seminal do funk carioca, que entre suas 14 faixas teve o Rap da Estrada da Posse (Coiote e Raposão), Rap da Espuma (vinimax) e Rap da Cidade de Deus (Cidinho e doca). de certa forma, o Rap do Silva repetiu os chavões da primeira geração de MCs, quase toda ela preocupada com a violência dos bailes de corredor que ajudaram a estigmatizar o funk. Mas alguns lampejos, como a que apresenta o funk como uma necessidade para calar os gemidos dessa cidade, o colocam no nível de um hino de uma época. É verdade que tem suas contradições, como a de só reconhecer a humanidade do personagem funkeiro por ele ser pai de família. A letra, detalhista como a maioria dos primeiros raps, faz todo um esforço para colocar esse Silva como um trabalhador, que pegava o trem lotado e era considerado pela vizinhança, que considerava maneiro aquele cara cuja gentileza podia ser medida em gestos singelos como o de levar uma rosa pra irmã e beijar as crianças antes de sair para jogar o futebol de domingo. Esse quase operário padrão merecia o pecadilho do baile funk, no qual ele foi o primeiro a chegar com a melhor camisa e o tênis que comprou suado. Mas um sujeito com a cara amarrada, que carregava um berro na mão escondida pela escuridão da noite, dispara-lhe um tiro do nada. Seria um policial aumentando as estatísticas da violência contra a juventude negra da periferia, com seus autos de resistência jamais investigados? Ou seria uma vendeta por conta de uma das brigas do baile de corredor que jogaram o funk no colo do tráfico exatamente na época em que o Rap do Silva estourou nas rádios de todo o país? 123


45.

RAP dO SOlItÁRIO MC MARCInhO

http://www.youtube.com/watch?v=pjbi-sqAVak 124


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 45. RAP DO SOLITÁRIO

Por Ana Paula Lisboa Minha tia Kelly era adolescente, ela é a única irmã da minha mãe, eu nasci no dia 23 e ela no dia 24, com 11 anos de diferença. Como disse ela era adolescente, usava tênis Nike e namorava uns garotos que vestiam bermuda da Cyclone. Eu ainda morava na Tijuca, na Formiga, minha tia morava no Rio Comprido, com a avó dela, que era diferente da avó da minha mãe. Minha avó já havia morrido e em algumas tardes minha mãe e eu íamos visitar minha tia. Ela sempre deu “muito trabalho” mesmo quando minha avó ainda estava viva. Por vezes ela me contava várias histórias de bailes funk que ia, das brigas que rolavam, era um épico sempre e alimentava minha vontade de crescer logo. Minha tia tinha um objeto precioso: um caderno de letras de funk escritas com a letra redondinha dela e caneta Bic azul, que eu ficava todo o tempo da visita folheando, mesmo tendo acabado de aprender a ler. Às vezes a gente cantava juntas uma das músicas. Minha tia e minha mãe eram apaixonadas pelo MC Marcinho. Eu, claro, herdei a paixão. E das músicas que a gente lia, minha preferida era o Rap do Solitário, era aquela que eu relia muitas vezes naquelas tardes. Adorava aquela coisa de começar o funk falando, antes de chamar o dJ: “Solta o Rap do Solitário para todos os apaixonados...” quando já era adolescente e ouvia Menor do Chapa, nas viagens com a Cia. de Teatro, lá no fundo do ônibus, sempre dava um jeito de puxar o Rap do Solitário. O Leandro também era desse grupo, ele morava na Tijuca, na Chacrinha, e eu, nessa época, já havia mudado para o Engenho Novo. O Leandro era apaixonado por funk e eu era apaixonada por ele. Como todos os garotos que eu conhecia ele frequentava muito o baile do Salgueiro, do Turano, da Árvore Seca... Como mi125


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 45. RAP DO SOLITÁRIO

nha mãe não me deixava ir, restava ouvir mais uma vez as aventuras dele. O funk só perdia para os Racionais no coração do Leandro. Foi ele quem me apresentou Mano Brown, Jesus Chorou e Negro Drama, e a gente ficava horas ouvindo nas madrugadas. Namoramos uns seis meses e um dia, quando tudo já havia terminado, numas dessas viagens com a Cia. de Teatro, o Rap do Solitário foi puxado por alguém no fundo do ônibus, e dessa vez não fui eu. Aí, sem perceber, a gente ficou cantando um para o outro e se olhando nos olhos coisas como “ainda lembro daqueles momentos, até hoje está no pensamento” ou “eu sei que estou muito novo pra amar, mas a idade não importa quando você gosta de alguém como eu gosto”, ou ainda “a nossa paixão não é como antes, mas ainda é forte o bastante”. Lá pro verso 27 “eu passo por ela e não dá pra aguentar”, a gente não se aguentou, e disfarçadamente fomos para o último banco do ônibus e nos próximos e últimos 19 versos da música a gente se beijou sem pausa. “Era ele pedindo pra voltar.”

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46.

O REtORnO é dE jEdI MCS CAtRA E g3

http://www.youtube.com/watch?v=Qtok8c0M1Wg 128


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 46. O RETORNO É DE JEDI

Este rap contém uma peleja entre deus e o diabo muito característica do mundo do crime, onde os bandidos, por sempre estarem transitando no limiar da morte e para não tropeçar nesse abismo, pedem mais proteção do que os seres normais. Gravado no Cd O Fiel, lançado em 1999 pela Warner Music, O retorno é de Jedi já diz ao que veio em seu primeiro verso, a citação bíblica “O senhor é meu pastor e nada me faltará”, que desde então Mr. Catra costuma citar na abertura de todos os seus shows. Mas este Senhor é tão implacável e vingativo quanto aquele que vemos nas grandes histórias clássicas do mundo, impiedoso com aqueles que não têm humildade (estranhamente, uma palavra chave para se entender o crime organizado no Rio de Janeiro), conspiram, caguetam ou recorrem à violência para se livrar de seus inimigos. Para sobreviver nesse mundo no qual as leis não são escritas, mas são compreendidas por todos, é preciso ir na flecha, com uma retidão que talvez não se encontre nem mesmo entre os evangélicos que superlotam os templos das favelas cariocas. Extrapolar essas restrições, como em qualquer sociedade fundamentalista, implica ir — e ir aqui significa uma morte brutal, provavelmente sem direito a que seus parentes o pranteiem e muito menos o enterrem. Figuras como o bulidor, o x-9, o bilha e o conspirador não têm vez nesse mundo, e para todos eles está reservado o retorno de Jedi, mais uma das incontáveis metáforas para a morte. Ao lado do Justo (escrito com letra maiúscula), há a garantia de uma Terra Prometida, mas a ausência de crença inevitavelmente leva para um inferno — e essa travessia para os subterrâneos do diabo quase sempre ocorre de uma maneira violenta, para não dizer bárbara.

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47.

S贸 lOVE ClAUdInhO & BUChEChA

http://www.youtube.com/watch?v=a0zl9denAiy 130


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 47. SÓ LOVE

duas ou três imagens do clipe oficial mostram que Só love está mais para o pop do que para o funk, ainda que que a dupla Claudinho & Buchecha tenha conquistado o Brasil a partir dos festivais de galera realizados no Clube Mauá de São Gonçalo e sempre tenham se posicionado como MCs. Uma dessas imagens é Claudinho arranhando um vistoso violão enquanto canta esse batidão que teve como inspiração o bordão de um amigo dos tempos de favela, para o qual tudo que era bom era só love. Não é preciso ser um grande conhecedor da música popular brasileira para saber que esse instrumento é tão representativo da MPB quanto a coreografia ensaiada por dançarinos que com certeza jamais foram aos bailes de que a dupla retirou movimentos como o de um coração desenhado com a mão, que ganhou o mundo a partir do sucesso feito por essa música. O Cd vendeu 500 mil cópias, o que não chega a ser um número extraordinário para os padrões da época, mas em compensação os arranjos do dJ Memê deixaram a música palatável para a indústria fonográfica e fácil de ser consumido por um público tão classe média quanto o cenário utilizado no clipe, também ele preparado de modo a desvincular a dupla da estigmatizada favela. Resultado: havia dez anos que uma música não era tão pedida nas rádios brasileiras. Músicos sofisticados como Herbert vianna fizeram rasgados elogios tanto à pulsação de Só love quanto à letra em que mais uma vez os MCs afirmam para o mundo sua quase infinita capacidade de amar. depois da morte de Claudinho, Buchecha compôs uma versão em homenagem ao jogador de futebol Wagner Love, um atacante criado na zona oeste do Rio de Janeiro, que se projetou no Palmeiras e foi contratado pelo Flamengo.

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48.

SOM dE PREtO MCS AMIlCkA E ChOCOlAtE

http://www.youtube.com/watch?v=z4aai7Bj2ny 132


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 48. SOM DE PRETO

Por Flávia Ferreira Assumindo o lugar que já foi do soul, jazz e blues, o funk se mostra como um manifestação popular de periferia. Uma vertente da música negra americana, surgida na década de 1930, com artistas como James Brown e Melvin Parker. Com Funky Butt,“I Got You Some”, de 1932, o adjetivo funk, até então usado para o lado sexy, passou a classificar o estilo musical. O Rio de Janeiro, por sua vez, teve como inspiração o miami bass, como já tinha falado, um tipo de hip-hop muito famoso nos Estados Unidos na década de 1980. Por ser uma música dos excluídos socialmente, logo o funk assumiu posturas sociais e passou a falar de temáticas como racismo, pobreza e discriminação. Foi baseado nessa vertente que os MCs Amilcka e Chocolate escreveram a letra Som de Preto. Essa música foi considerada no mundo inteiro como o hino do funk da paz. Esse funk ganhou ainda mais visibilidade após ser tema da personagem Raíssa, de Mariana Ximenez, da novela América, da Tv Globo. Sendo carro-chefe de uma campanha contra o preconceito racial. isso fica claro nos seguintes versos: “O nosso som não tem idade, não tem raça e não tem cor, mas a sociedade pra gente não dá valor. Só querem nos criticar, pensam que somos animais, se existia o lado ruim hoje não existe mais. Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real, essa história de porrada isso é coisa banal.” Nesta letra, Amilcka não só retrata a vida de vários jovens brasileiros na favela que sofrem cotidianamente com o preconceito por serem “pobres e pretos”. Ele retrata a sociedade que criminaliza o morador de comunidade e toda a cultura surgida em periferia como algo primário, errado e ilegal. 133


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 48. SOM DE PRETO

O funk pode ter surgido como um som de preto, mas é inegável que ele dominou todas as camadas sociais. Muitos que o criticavam, hoje concordam que ele é uma manifestação cultural de suma importância para a manutenção de nossa cultura e para a exemplificação de nossa história.

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49.

RAP dO tREM MCS MARCElO E PUlUngA

http://www.youtube.com/watch?v=dl1zak9R_1o 136


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 49. RAP DO TREM

Por Marcão Baixada No dia 1º de maio de 1994, acontecia o Grande Prêmio de San Marino, corrida de Fórmula 1, realizada na itália. Nessa corrida, o Brasil perdeu um dos principais representantes no esporte: Ayrton Senna, que após perder o controle de seu carro, se chocou contra um muro de concreto. Mesmo sendo levado ao hospital, após o acidente foi confirmado o óbito do piloto. Na vila vintém, favela da zona oeste do Rio de Janeiro, fronteira entre os bairros de Realengo e Padre Miguel, Marcelo e Pulunga se conheceram e anos de amizade renderam grandes conquistas como MCs em festivais promovidos por equipes de som em bailes funk do Rio de Janeiro. Na década de 1990, quando os bailes funk tinham a fama de violentos e eram conhecidos como “bailes de corredor”, surgia o Festival de Galeras, com o objetivo de pregar a paz e a união, e que foi responsável pelo surgimento de grandes artistas. O Festival era dividido em etapas que iam desde disputas de gritos de galera a ações sociais, como doação de sangue e arrecadação de alimentos. Marcelo e Pulunga foram campeões da etapa do rap no Festival de Galeras do Coleginho de irajá, graças ao Rap do Trem, onde os MCs começam convidando a galera a participar do trem, uma dança coletiva famosa nos bailes. Seguindo no ritmo alto astral da dança, eles homenageiam o piloto Ayrton Senna, contam sobre o acidente e lamentam sua morte. E também não deixam de denunciar o descaso do poder público com a comunidade em que vivem. Fato interessante é que o Festival de Galeras do Coleginho acontecia aos domingos, dia da semana das corridas de Fórmula 1. O Rap do Trem foi apenas o começo de uma dupla que, por meio de suas letras, pregou a paz, a união, e a importância do exercício da cidadania. 137


50.

SOU FEIA, MAS t么 nA MOdA tAtI QUEBRA BARRACO

http://www.youtube.com/watch?v=tVnjQ8F-CAA 138


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 50. SOU FEIA, MAS TÔ NA MODA

Tati quebra Barraco mexeu com todos os tabus da sexualidade feminina, de uma forma que jamais foi feita no Brasil, quiçá no mundo. Suas composições narram em detalhes aquilo que, antes dela, as mulheres, principalmente as de classe média, só se permitiam conversar enquanto retocavam a maquiagem diante do espelho nos banheiros femininos. Há acima de tudo um desejo explícito, percebido no próprio apelido pelo qual o mundo conhece Tatiana dos Santos Lourenço, já que quebra barraco é uma das inúmeras metáforas para o ato sexual criadas pela inventiva favela e não para as desavenças que a cidade formal imagina ser a forma de se relacionar dentro das comunidades populares, sempre em conflito ao ser representada em nossos jornais (os tiros) ou mais recentemente nas telenovelas (aos gritos). O desejo de Tati se manifesta não apenas em uma matemática sexual (“Matemática” é o nome de um de seus batidões), mas também na exposição de todas as posições possíveis (frango assado, 69, kabo kaki, dako etc.) e de um desabrido envolvimento com o homem da próxima (“fama de putona só porque como teu macho”). Sou feia, mas tô na moda desfralda duas bandeiras novas na janela de Tati quebra Barraco, tão emblemáticas que deu origem ao hypado documentário de denise Garcia. Uma delas é o direito da mulher feia desejar — e aqui vale lembrar o modo como a mulher feia é apresentada no funk tradicional, fedendo como um urubu na seminal Melô da mulher feia ou o trágico “separa que é briga” caso alguém flagre o vigoroso macho da favela agarrado a uma delas. Este funk traz ainda a presença de uma mulher poderosa, cuja força é cultuada na cada vez mais monoparental família carioca, onde ela é descrita quase epicamente como a guerreira que cria e sustenta filhos. Mas talvez o tabu dos tabus esteja no verso repetido de um modo quase mântrico neste pancadão clássico, em que o fraseado eletrônico comporta a mesma estrutura minimalista que a letra a que dá sustenta139


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 50. SOU FEIA, MAS TÔ NA MODA

ção: “Estou podendo pagar motel para os homens e isso é o mais importante.” Esta é a última fronteira, onde as relações de poder entre o macho e a fêmea esbarram no cotidiano. deu-se à mulher o direito a tudo: de fazer sexo, trabalhar e até mesmo a de pagar a própria conta. Mas nem mesmo no banheiro as mulheres gostam de admitir a possibilidade de pagar uma conta para seu companheiro, seja ele eventual ou definitivo. Só Tati fica com mais tesão quando quebra o barraco com total independência.

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51.

PlAnEtA dOMInAdO Sd BOyS

http://www.youtube.com/watch?v=98g1nWkftk4 142


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 51. PLANETA DOMINADO

Formiga e Formigão são mais uma dupla da incrível cena de São Gonçalo, cidade na região metropolitana do Rio de Janeiro de que também vieram Claudinho & Buchecha e o MC dieddy, para citar alguns. Arrombaram a porta com o Rap da Maria Gasolina, que tinha o humor que marcaria os principais momentos da dupla, como por exemplo O bicho é o bicho e principalmente o Rap do Pintinho. Mas esses dois ex-soldados (daí o nome da dupla) garantiriam um lugar na história não apenas do MPB, mas do próprio imaginário popular de um modo casual, a partir do uso feito do refrão de Planeta dominado. Poucas são as pessoas fora da cena funk que associam o “tá dominado, tá tudo dominado” à dupla. Também não é muito expressivo o contingente que sabe que o refrão faz referência ao controle que uma gatinha tinha do corpo ao dançar no baile. Apropriado pelo tráfico de drogas, que o pichava nas paredes das favelas que invadia, o refrão traz embutida uma superioridade arrogante e incontestável em relação ao adversário. “Tá dominado” também foi incorporado em pout-porris criados pelos dJs de modo a dar uma virada para cima no baile, não muito raramente seguidos de tiros para o alto. Até mesmo a polícia o incorporou, usando-o em distúrbios ou rebeliões que ela consegue controlar. Torcidas organizadas o cantaram na comemoração dos gols de seu time de coração. Tornou-se uma expressão tão comum como a paulista “tudo acaba em pizza” ou a carioca “tudo acaba em samba”, só que, em vez de denunciar a ausência de seriedade brasileira, aponta para uma situação, igualmente irônica, de afirmação de um poder paralelo sobre a ordem constituída, em geral pela via da corrupção.

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52.

UM MORtO MUItO lOUCO jACk E ChOCOlAtE

http://www.youtube.com/watch?v=MFtlaW1FlF4 144


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 52. UM MORTO MUITO LOUCO

Jack, que nasceu vinícius Silva, e Chocolate, que nasceu Wanderson Gomes, descobriram o funk no frenético baile do Coroado, na microárea da Cidade de deus conhecida como Apês. Sabiam que os batidões que dialogavam com as coreografias sempre tiveram um grande apelo popular, principalmente se traziam consigo o elemento do humor. daí o entusiasmo de ambos quando Jack ligou para o amigo ao lado do qual cresceu e com o qual compartilhava o duro cotidiano pilotando mototáxi, a fim de falar da letra que escrevera a partir da comédia Um morto muito louco. O resto seria uma questão de sorte, como a que efetivamente tiveram ao se apresentaram pela primeira vez no baile, como uma das atrações locais. É que naquela noite o sempre atento dJ Marlboro, que estava ali em sua eterna caça por novos talentos para os álbuns que lançava a partir do programa de rádio que tinha na FM O dia, viu geral pirando no “suingue da batida” daquela história para lá de “diferente”, em que simulam um morto que joga os braços para trás e balança o pescoço. Na semana seguinte, estavam produzindo Um morto muito louco no estúdio do dJ Marlboro. A música estourou nas rádios e ainda hoje os dois, que agora trabalham como taxistas e fazem shows esporadicamente, recebem direitos autorais.

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53.

S贸 UM tAPInhA MCS BEth E nAldInhO

http://www.youtube.com/watch?v=hUh43okR1Q0 146


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 53. SÓ UM TAPINHA

Só um tapinha deu origem a uma das maiores polêmicas sobre a misteriosa sexualidade feminina. Terminou no banco dos réus, com uma batalha jurídica que se arrastou por dez anos e por pouco não custou 500 mil reais ao empresário Rômulo Costa, que depois de uma obscura operação contratual se apropriou dos direitos autorais da música composta pela MC Beth e pelo MC Naldinho. As feministas ficaram indignadas e pressionaram o Ministério Público Federal a entrar com um processo, alegando que a letra banaliza a violência contra a mulher e transmite uma visão preconceituosa contra a imagem feminina. Gravado em 2003 e um sucesso imediato nos bailes e na mídia, o funk foi defendido por personalidades como Fernanda Abreu, Caetano veloso e Adriana Calcanhotto, que o gravaram como uma espécie de afronta à onda de conservadorismo sexual e uma defesa da liberdade de expressão. O batidão voltou a ser lembrado durante os debates em torno da lei que criminaliza qualquer tipo de violência dos pais contra os filhos, inclusive o tapinha no bumbum. A MC Beth não participou de nenhum dos dois debates, na medida em que estava ocupada com seus próprios problemas: na primeira celeuma, estava gerenciando a crise com o MC Naldinho, com quem rompeu no auge do sucesso e só voltou a falar anos depois, quando os dois estavam por baixo; na segunda, estava cuidando do casamento com o empresário que a tirou da prostituição, na qual mergulhou quando seu comportamento explosivo a tirou do mercado. Embora a imagem do tapinha tenha entrado quase sem querer na discussão sobre a violência doméstica, essa teria sido a verdadeira inspiração dos dois MCs ao proporem o pegajoso refrão da música — Beth o repetia para si em seus momentos mais vulneráveis quando a mãe e principalmente o pai a espancavam quando insistia para ir aos bailes; já Naldinho se inspirou na cena em que ele próprio deu um tapinha no bumbum da filha Caroline. Segundo conta o MC, o primeiro refrão teria sido “dói, na bundinha não dói”. O corte teria sido sugerido por verônica Costa, ex-mulher do empresário Rômulo Costa.

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54.

VAI lACRAIA MC SERgInhO

http://www.youtube.com/watch?v=zjzjCmgwMlI 148


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 54. VAI LACRAIA

Sem a presença performática do dançarino Marco Aurélio Silva da Rocha, em tese o grande homenageado deste funk que tomou de assalto os bailes e as rádios populares na virada do milênio, talvez as duas frases que compõem Vai Lacraia caíssem na lata de lixo da história, destinadas ao esquecimento a que a maioria esmagadora dos batidões é condenada alguns meses depois de seu lançamento. Mas a coreografia escancaradamente gay de Lacraia criou um novo lugar na indústria do batidão, até então um reduto destinado à afirmação do macho em todos os momentos, desde suas letras até os passos então executados em conjunto, seja nos bondes por intermédio dos quais os tigrões suavam sua virilidade seja nos salões em que os jovens ecoavam tardiamente as evoluções coletivas dos bailes charmes por intermédio dos quais o funk chegou ao Rio de Janeiro. Lacraia, cujo apelido foi cunhado pelo próprio MC Serginho depois de ver o animal homônimo evoluindo pelo piso do baile com a mesma desenvoltura do dançarino com que iria fazer par, até ele ser vencido pelas infecções oportunistas da Aids, tornou-se o protagonista de uma favela em que a presença homossexual era tão forte no baile que não à toa se tornou o celeiro de dançarinos como os do Bonde do Trem Rosa, que atravessaram a multidão que se espremia ao som do batidão com os trejeitos que os moleques do passinho incorporariam principalmente depois da morte precoce do dançarino Gambá. A irreverência de Lacraia apontava para uma nova sexualidade da favela — e não foi à toa que em algumas delas já ocorrem paradas gays e que, enquanto teve saúde para acompanhar o MC Serginho, uma das grandes atrações dos bailes em que se apresentavam eram os concursos que premiavam os homens que davam beijos mais demorados na Lacraia.

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55.

VEM kIkAndO OS hAWAIAnOS

http://www.youtube.com/watch?v=MbVct2lfy_s 150


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 55. VEM KIKANDO

Por Julio Pecly Este funk, que tomou conta do Brasil e fez todas as crianças dançarem, foi o terror das mães. de repente, os filhos começaram a chegar em casa com os fundos das calças rasgados. As mães só descobriram a causa ao ouvirem o funk dos Hawaianos e ver seus filhos fazendo a coreografia característica inventada por Yuri e seus companheiros, que consistia em andar quicando com a bunda no chão. A partir disso foram inventadas as mais variadas formas de quicar: quicar em dupla, quicar em trio, quicar em trenzinho, e os fundos das calças iam se acabando de tanto arrastar no chão. quando apareceu no programa da Regina Casé, o que era uma loucura carioca, passou a ser febre em todo o Brasil. “vem que vem kikando no colo dos Hawaianos” foi o refrão que tomou conta de todos os bailes do Brasil, mais uma vez mostrando que apesar de todo o preconceito o funk carioca tem força para fazer sucesso. A Cidade de deus é cortada por um rio, o Rio Grande, eu moro de um lado e o Yuri e os Hawaianos moram no lado oposto. Sempre via aqueles moleques, com suas roupas características de funkeiro, conversando, ouvindo funk e criando coreografias; às vezes parava para olhar e às vezes seguia meu caminho. Às vezes via os dançarinos quicando no chão, porém, jamais iria adivinhar que estavam inventando uma coreografia e que aquilo ia tomar conta do país. É muito bom você ver as coisas antes de elas acontecerem porque no primeiro momento podemos achar que não é nada demais, só depois vamos ver a verdadeira dimensão quando toma conta das ruas e cai no gosto do povo. O legal também foi ver que essa música abriu muitas portas para o grupo. Sucesso como o dos Hawaianos é muito bom para a autoestima da comunidade e 151


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 55. VEM KIKANDO

principalmente das crianças, que conseguem ver que é possível fazer sucesso também com seus talentos, sejam musicais sejam de dançarinos. Como costumamos dizer por aqui, “a Cidade de deus é um celeiro de talentos”.

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56. VIdA lOkA

MEnOR dO ChAPA

http://www.youtube.com/watch?v=Akg5WAxydnc 154


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 56. VIDA LOKA

Por Saulo Martins A caminhada pelas ruas repletas de buracos no camelódromo do centro de Nova iguaçu era guiada pela firme mão da minha mãe, que me levava em diferentes universos: à barraca de frescas frutas coloridas, à peixaria — que eu odiava - e à banca de jogos de videogame, onde eu mergulhava num mundo só meu e do qual só retornava quando terminava de olhar todos os catálogos atrás de um único jogo. Mas o mais prazeroso de toda essa aventura sempre era a trilha sonora: o funk sempre tocava nas televisões das bancas de Cds por todo o camelódromo e foi lá, com certeza, que ouvi Vida Loka pela primeira vez. depois de muitos anos, eu finalmente entendi. Foi na primeira vez que ouvi o termo “funk consciente”. diferente do “proibidão”, como é rotulado, o funk consciente trata da realidade da comunidade sem exaltar o crime. A fé em deus e o poder das armas de fogo estão presentes no mesmo lugar: nas composições do MC Menor do Chapa. Vida Loka fala da crença divina do Menor do Chapa, morador do Morro do Turano, na zona norte carioca, combinado com a realidade que ele vivia na época: o controle do Comando vermelho sobre a comunidade. “Paz, justiça e lazer” é o que o MC canta, se apropriando do slogan da facção, “Paz, justiça e liberdade”. A música fala sobre a experiência de viver no Turano, comunidade dominada pelo Comando vermelho até a chegada da UPP. A celebração de um território pra chamar de seu, é esse o sentimento que eu consigo identificar, sutilmente, na voz do MC. dedicada aos trabalhadores, donas de casa e sofredores da comunidade, o rap do Menor do Chapa fala sobre a influência da facção e todas as suas qualidades. Um dos primeiros passos do funk consciente, que hoje influencia muitas outras composições. 155


57.

tOQUE dA CAdEIA MC gIl

http://www.youtube.com/watch?v=RkdFfhFRg9c 156


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 57. TOQUE DA CADEIA

Uma pessoa mais apressada pode enquadrar Toque da cadeia, do MC Gil do Andaraí, na categoria de proibidão. Mas esse rap, escrito em cinco minutos sobre uma mesa de sinuca em uma birosca da favela em que ele cresceu até se mudar para Caxias, é um relato de um jovem criado no Andaraí, que já foi uma das comunidades mais armadas da cidade. Há aqui uma descrição de uma guerra de facções clássica, mas com uma narrativa que consegue transitar pelo estreito corredor do relato sem resvalar para a apologia ao crime. A expressão “toque da cadeia” pode ser traduzida como ordem do patrão, no caso, o chefe de uma boca de fumo determinando a invasão de uma favela rival. (“O patrão já deu o papo, quer geral reunido.”) A sequência em que cinco inimigos são executados narra com uma incrível concisão o clima de uma guerra de facções no Rio de Janeiro: “O primeiro tomou na cara/O segundo tomou no peito/O terceiro ficou fodido/E o quarto correu com medo/E o quinto pediu perdão/O bonde não perdoou/Tacou dentro do latão.” Essa precisão de sniper está presente em toda a letra. A música explodiu na própria comunidade que, em 2004, a cantou com o mesmo entusiasmo que em 1996 cantara Só lazer, incluída pelo dJ Marlboro em uma de suas coletâneas, quando o MC Gil tinha apenas 17 anos. Bastou que gravassem uma versão cantada ao vivo em um baile para que ela se tornasse um hit instantâneo nas rádios comunitárias do Andaraí. Rômulo Costa quis gravar Toque da cadeia em um dvd da Furacão 2000, mas o então empresário do MC Gil exigiu um cachê para seu cliente. O MC perdeu a oportunidade e o empresário, o emprego. Toque da cadeia chegou a ser cogitada para a trilha sonora de Tropa de elite, no lugar de Rap das armas. A bem sucedida carreira comercial de Toque da cadeia deu ao MC Gil uma estabilidade econômica poucas vezes vista no funk, em que os MCs costumam brilhar por um verão e são esquecidos (na miséria, claro) pelo restante da vida. O MC Gil, que diz jamais ter bebido ou se drogado, guardou dinheiro para que hoje possa viver de rendas, com apartamentos, um mercadinho e uma padaria. 157


58.

VIdA BAndIdA MC SMIth

http://www.youtube.com/watch?v=f_W65OfgzXc 158


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 58. VIDA BANDIDA

Mal comparando, Vida bandida é um dos proibidões que colocou o intérprete desse hino do crime organizado num patamar semelhante ao da atriz Beatriz Segall, que na década de 1980 atraiu para si todo o ódio despertado pela personagem Odete Roitman, uma das maiores vilãs da história da televisão brasileira. A condição de um dos maiores inimigos das forças de segurança do Rio de Janeiro, o que lhe rendeu pelo menos uma temporada na cadeia, é uma prova de que o público de sua música poderosa confunde criador e criatura. É tão verdadeiro e mesmo próximo do objeto a narrativa que faz do crime que viu crescer nos becos do Complexo do Alemão, que não são poucas as pessoas para as quais ele é um dos bandidos cuja alma revelou como poucos artistas no Rio de Janeiro. A mistura entre narrador e narrativa se dá logo no primeiro verso, em que se apresenta como o bandido que tomou o Chapadão e o Jorge Turco, além de anunciar a tomada para breve de outras favelas para o Comando vermelho, cujos integrantes ele pede que levantem a mão tanto nos concorridos shows que faz quanto em algumas gravações. A vida bandida aqui é a de FB, alcunha pela qual é conhecido o frente do Complexo do Alemão até ter início o processo de pacificação daquelas favelas em que mais fortes eram as emanações de uma cidade partida, de um Fla x Flu social. Esse bandido teve uma ascensão irresistível na facção de um menino que se envolveu com o artigo 12 para ter o poder que lhe permitiu ter, além da fama, um grosso cordão de ouro no pescoço, uma BMW que voa pelo morro, as patricinhas que saem da zona sul para fazer um sexo passageiro e, acima de tudo, porque não existe mercadoria ilícita sem mercadoria política, tem o batalhão da área comendo na sua mão. Em frases tão certeiras e ágeis como os tiros trocados na Guerra do Alemão, aparece a filosofia de um bandido que tem a consciência plena de que bandido burro morre no final do filme ou de que o mesmo rosto que faz rir, faz chorar. Blindado no sangue de Jesus Cristo, ele tem consciência de que além de efêmera (hoje somos festa, amanhã seremos luto) a vida bandida é um jogo bruto que não lhe permite se embriagar com o sucesso porque dentro da cadeia (ponto inevitável 159


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 58. VIDA BANDIDA

de todos os bandidos, onde todos chegam na mão) todos são de processo. Ser de processo é uma qualidade tão redutora da vida quanto a de fazermos xixi e cocô todos os dias, uma dimensão humana que nos iguala a todos, inclusive os bandidos. Também é digna de registro a rima na qual o autor incorre em dois erros ortográficos para colocar confrito e Crito no mesmo verso.

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59.

VIS達O dE CRIA MC SMIth

http://www.youtube.com/watch?v=df9kghdsjUA 162


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 59. VISÃO DE CRIA

Por Poema Eurístenes Com uma letra que apresenta um pequeno release da vida dos que se envolvem com o crime, e enquadrada na categoria de proibidão, Visão de cria revela alguns dos atrativos que levam muitos jovens à vida do tráfico. As letras de MC Smith lhe renderam uma prisão por incitação ao crime em 2010. Ainda assim, Wallace Ferreira sempre defendeu que falar sobre armas, drogas e crimes não é apologia, mas um retrato da realidade que encontra nas favelas. definições à parte, não é possível negar que a letra define uma vida de sucesso sob a visão daqueles que se envolvem com o crime organizado. dinheiro, carros, joias, tudo nas mãos de jovens que muitas vezes não têm sequer oportunidade de sonhar com esses artigos de luxo. A chance de bancar a família e as mulheres com que se relacionam é outro sinal de poder, em uma realidade onde o importante é ser leal ao grupo e, sendo a vida uma guerra e a morte é uma certeza, deve-se batalhar para “deixar a família bem e as novinhas com saudade”.

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60.

MEl dA SUA BOCA COPACABAnA BEACh

http://www.youtube.com/watch?v=SAy0iVCEyWy 164


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 60. MEL DA SUA BOCA

Mel da sua boca nasceu como uma ciranda e terminou sua história como um pagode na voz suave de Carlinhos Conceição, que depois se tornaria Carlinhos Copacabana Beat devido ao sucesso do grupo de MPB que ele criou com a ex-esposa Andreia e a cunhada Lisa na primeira metade da década de 1990. A migração para a cena funk se deu pela impossibilidade de entrar no mercado tradicional, apesar do apadrinhamento de Michael Sullivan, de quem as irmãs eram amigas de infância. O plano de um dos maiores hitmakers da história da MPB era lançá-los no mercado internacional, mas o que acabou acontecendo foi apresentá-los ao mago das pickups Marlboro, que gravou Mel da sua boca no álbum Funk Brasil Especial, ajustando-a à onda melody introduzida no país por intermédio da mistura de romantismo e ritmos envelopada na música de Steve B, nos Estados Unidos conhecida como freestyle. A partir de então, toda a produção do trio, que mais tarde se tornaria um quinteto, se voltou para esse estilo, que até aquele momento tinha como principais representantes no Brasil Abdullah e (principalmente) Latino. Não tinham nada a ver com o funk, mas foram acolhidos sem preconceito nos bailes que só conheceram como músicos, na esteira do sucesso das canções transpostas para o idioma do batidão pelo dJ Marlboro. Um ano depois, foram contratados pela Sony Music, mas sumiram na poeira da estrada como a maioria dos grupos ligados ao gênero. Na virada do milênio, o grupo passou a se apresentar em bares, tocando todos os tipos de música, inclusive seus antigos sucessos. Na segunda década do século XXi, Carlinhos Copacabana Beat participou das gravações de um dvd pilotado pelo dennis dJ, de que participaram remanescentes da primeira geração do funk e na qual se gravou uma nova versão de Mel da sua boca, arranjada pelo responsável pelo projeto. Posteriormente, Carlinhos tentou se ajustar a uma nova demanda do mercado, gravando seu antigo sucesso no ritmo de pagode.

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61.

MEl么 dO B锚BAdO MC BAtAtA

http://www.youtube.com/watch?v=l8AjsqxBUnI 166


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 61. MELÔ DO BÊBADO

O humor e as habilidades do MC Batata para descobrir rimas inventivas são reafirmados neste funk, que, como as primeiras composições da turma do batidão, era chamado de melô. Trata-se de um bêbado que se embriaga por sina, já que, como revelaria a alguém que lhe pagasse uma 51 (ótima rima para bebum), herdou o alcoolismo dos pais. Há situações absurdas, como o velho Barreiro tomado pelos pais durante a gravidez, a garrafa que lhe dão para brincar quando se mostra um bebê manhoso e o licor de menta servido com água benta no seu batizado. Mas por trás de cada uma dessas tiradas bem-humoradas há um elogio à cachaça que pode ser universal, mas também é muito brasileiro, como a gente pode deduzir pela tradicional marchinha Cachaça não é água ou por um samba muito popular daquela época, em que cantoras como Elza Soares e Elizeth Cardoso dizem que bebem sim, e estão vivendo. O traçado também é apresentado como um poderoso viagra, graças ao qual poderia satisfazer a volúpia sexual de uma namorada. A bebida sequer é suficiente para trazer os problemas de saúde inerentes ao vício (“dos vinte você não passa”, vaticinavam os amigos) e o eu lírico desta melô se torna um orgulhoso provador de caninha, tirando partido de um dom contra o qual não se deve fazer gracinha. No fundo, o MC Batata corrobora uma ideia quase freudiana, segundo a qual o mal-estar da civilização é inevitável. E quem não gostar disso, o rapper manda tomar... Pirassununga.

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62.

RAP dO BOndE MCS BIg RAP E lUCIAnO

http://www.youtube.com/watch?v=AbExwnOcsMg 168


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 62. RAP DO BONDE

Os dois finalistas de um dos festivais das galeras que a Curtisom organizava no Emoções da Rocinha falavam basicamente a mesma coisa: a periferia do Rio de Janeiro estava cada vez mais funkeira e havia uma juventude disposta a conhecer os intestinos da cidade, indo de favela em favela para se divertir nos bailes que começavam a ser organizados pelo tráfico de drogas. de um lado, estava o Endereço dos bailes, da dupla Júnior e Leonardo, que começavam anunciando que o Rio de Janeiro das praias, mulatas e Maracanã também tinha “muito funk rolando até de manhã” nas mais diversas reentrâncias da cidade. do outro, estava o Rap do bonde, em que Big Rap e Luciano não apenas anunciavam que “o funk predomina em qualquer morro que chegar”, mas que os jovens se amarrariam se seguissem os bondes puxados da zona norte até a zona sul, da Rocinha até Bangu. Outra coincidência entre as duas duplas que disputaram a final daquele festival das galeras de 1992 é que depois de um período de muita popularidade e mesmo de dinheiro no bolso os seus letristas tiveram que se sentar diante de um volante de táxi para fazer frente às contas. Mas por causa de um sentido de militância que nas eleições de 2012 faria com que Leonardo pleiteasse uma vaga na Câmara dos vereadores pelo PSOL o compositor do Endereço dos bailes conseguiu se reinventar quando caiu no ostracismo, recolocando-se na cidade a partir das lutas encampadas pela APAFunk (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk), que ele idealizou e ajudou a criar. Já o MC Big Rap se afastou do parceiro Luciano, que conhecera no comitê eleitoral da Rocinha de Fernando Collor de Mello, onde ambos faziam trabalhos braçais. E desde então nunca mais emplacaria um sucesso de verdade, ainda que tenha tentado criar uma nova dupla, fazer carreira solo e por fim municiar outros MCs com suas composições. Já o Rap do bonde caiu no gosto do público antes mesmo de ser gravado, como Big Rap percebeu, surpreso, ao se apresentar no palco do Scala, casa de show no Leblon em que o dJ Marlboro organizava uma concorrida matinê. quando começou a cantar, a multidão, composta em grande parte pelos frequentadores dos bailes de comunidade, fez coro com ele. 169


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 62. RAP DO BONDE

Ali mesmo acertaram a inclusão do Rap do bonde no álbum Funk Brasil, que oito meses depois começaria a tocar nas rádios de todo o país. Antes de romper, a dupla emplacou Tem que ter, Balas perdidas, FunkVal e Rap da Ideia.

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63.

tOP dO MOMEntO MC dAnAdO (SP)

http://www.youtube.com/watch?v=PlSt7kScE60 172


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 63. TOP DO MOMENTO

MC danado é André Moura, e demorou 30 anos para virar uma estrela do funk de São Paulo. Nasceu na zona leste da cidade e foi office-boy de sapataria e auxiliar de escritório em uma empresa de contabilidade. determinado a ser um empresário, começou sua empreitada com um estacionamento, comprado com um empréstimo que sua mãe fez no banco. deu certo. O empréstimo foi pago, e a renda foi investida em outros estacionamentos pela cidade. Começou a ouvir funk com o estouro de artistas cariocas como Bonde do Tigrão, Tati quebra Barraco e, principalmente, Menor do Chapa, que divide com MC Frank o pioneirismo da influência nos jovens funkeiros paulistanos. daí a virar artista? danado é um mulato boa pinta, bem-sucedido, e encontrou caminho no bem trilhado funk de ostentação de São Paulo, o primeiro subgênero do estilo nascido fora da Cidade Maravilhosa. A primeira estrela desse subgênero foi Boy do Charmes, que estourou com o funk Megane. “Só quem gosta de carro importado, 1100 (a motocicleta), nota de cem, cordão de ouro... É desse jeito!”, cantou Boy do Charmes. danado foi atrás. “vida é ter um Hyundai e uma Hornet, 10 mil pra gastar, Rolex e Juliet”, canta em Top do Momento, seu primeiro e grande sucesso. Um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos, tudo avaliado em quase R$ 500 mil. virou ídolo, mas levou para o funk de São Paulo o seu lado empresarial. Fundou o Funk da Capital, empresa idealizada para ser o Furacão 2000 de seu estado. “Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”, diz MC danado.

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64.

SIMPテ》ICO MC CAtRA

http://www.youtube.com/watch?v=VrpnsF5uk5y 174


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 64. SIMPÁTICO

Parte do estigma do funk se deve a esse polêmico personagem: Wagner domingues da Costa, o Mr. Catra, apelido que ganhou por causa da rua em que morava na Tijuca, a dr. Catrambi. É um mestre nos dois tipos de proibidão — o que faz apologia ao crime organizado e o que faz apologia ao sexo desabrido, que ele prefere chamar de putaria. Simpático, lançado em 2001 no Cd Mr. Catra, pertence à primeira categoria, ainda que a partir de certo momento tenha se tornado tão popular que seu conteúdo se desvinculou da crônica que faz do tráfico de drogas. quando foi acusado de fazer apologia ao crime, Catra se defendeu dizendo que suas músicas apresentavam uma realidade muito própria da favela, na qual pululam personagens como o descrito aqui, um “vacilão de bobeira no movimento”. Cada verso traduz o que os traficantes chamam de proceder, um conjunto de códigos que, como também é dito na letra, se mostram no dia a dia. O personagem que gerou tanto ódio e desprezo é alvo das piores críticas de Catra, cuja vivência junto à malandragem, iniciada quando foi reclamar um casaco de couro que lhe roubaram na adolescência e consolidada nos muitos bailes que fez nas favelas antes de ser descoberto pela classe média e daí pelos produtores europeus, lhe permite decupar cada deslize, aqui chamado de “vacilação”. viver na sombra do patrão, ser cartucheira de bandido, confundir ganância e ambição — são algumas pérolas desse rap que detecta a epidemia da “simpatia”, que no mundo do crime tem um sentido pejorativo jamais imaginado na cidade formal. Simpático é aquele que fortalece quem tem mais, que admite a brutalidade gratuita dos poderosos, que vive formando caô. E a receita para essa doença em um crime que admite a existência do bandido bom é tão somente uma: “vacina é bala de AK.”

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65.

RAP dO BOB MARlEy MCS tECO E BUzUngA

http://www.youtube.com/watch?v=yRPPpCgxojI 176


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 65. RAP DO BOB MARLEY

Uma das muitas maneiras de identificar a importância do Rap do Bob Marley é por intermédio da gênese dos apelidos de Teco e Buzunga, seus autores. Alexandre Ferreira Barcellos se tornou Teco por causa de sua semelhança com o irmão de um amigo, cujo apelido era Teco-Teco. Já Melvin de Souza Ferreira se tornou Buzunga por causa de sua semelhança com um famoso bandido da Rocinha. desde suas origens, o funk sempre se espelhou em algo para criar um dos movimentos culturais mais originais de toda a história do Rio de Janeiro, num processo de renovação constante em que a cópia é sempre um instrumento de alavancagem. Foi assim com a melodia deste rap, inspirada a um ponto tal em um sucesso de Milton Nascimento que aqui não se dá nem para falar de um plágio. Era típico dos MCs da primeira geração do funk criar letras a partir de melodias preexistentes, como foi o caso do Endereço dos bailes, em que a dupla Júnior e Leonardo se apropriou de uma antiga cantiga de roda. vários sucessos de Mr. Catra são paródias criadas a partir de sucessos da MPB, como é o caso clássico de Adultério, francamente inspirada em Tédio, do Biquíni Cavadão. Buzunga e principalmente Teco possuem uma consciência de mundo muito mais madura que seus companheiros de geração, mas eles também não sabiam que uma figura jurídica chamada direito autoral em tese os proibia de usar os acordes criados por outros músicos, ainda que mudassem o seu andamento e lhe acrescentassem o inconfundível beat do batidão. Também como os criadores desse gênero musical, eles se surpreenderam com o sucesso instantâneo de uma composição que nasceu com o título de “A viagem”, mas que, depois de virar um encontro de equipe de que o dJ Tojão estava participando, foi gravada em um baile em Petrópolis comandado pela Espião Shock. O rap, que caiu nas graças do povo como Rap do Bob Marley, jamais teve uma versão gravada em estúdio. Outros grandes sucessos da dupla, que terminou em 2000, depois que o trauma com um grave acidente automobilístico transformou Buzunga no Pastor Melvin, foram Forever to love e Por causa de você. Mano Teco retomou a carreira no processo de criação da APAFunk, que encabeçou a luta para acabar com a proibição dos bailes no final da primeira década do milênio. 177


66.

dE OndE EU VEnhO MCS PIkEnO E MEnOR (SP)

http://www.youtube.com/watch?v=wtAyl4AX0tg 178


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 66. DE ONDE EU VENHO

Pikeno e Menor são Clayton e Caíque, dois amigos de colégio da vila Carrão, região pobre da cidade de São Paulo. Sempre juntos, começaram na música roubando os instrumentos dos pagodeiros quando estes iam tomar uma cerveja, beijar as gatas, descansar. E improvisavam. Logo encontraram o rap: uma batida pronta e, no papel, as letras sobre as dificuldades e desafios de meninos pobres. Pikeno tem o dom da palavra. Menor é bem afinado. O funk surgiu durante uma atividade escolar. Sempre que tinha um palco e um microfone, os dois estavam rimando e ganhando boas notas. Fizeram juntos um funk, pela primeira vez, e xerocaram a letra para distribuir entre as meninas. quem não sabia de cor, dançou até o chão. viram um caminho profissional, mas foi difícil. Cantavam de graça, pulavam a catraca dos ônibus para chegar nos bailes, pensavam se aquilo tudo valia mesmo a pena. Encontraram-se profissionalmente cantando a riqueza. “Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar a miséria”, afirma o MC Menor. Em De onde eu venho, cantam o dinheiro, a boa gorjeta, os bons carros e a piscina, a joia da coroa das comunidades. “Se tu ficou revoltado, aí vai tua resposta: Não gosta de favelado, mas a sua filha gosta”, cantam, inspirados no refrão de Chico Buarque para Jorge Maravilha, repetido à exaustão em letras de ritmos musicais renegados, como o funk carioca. viraram exemplo de sucesso com a música. Sem palavrões, sem apelação. E, por enquanto, sem o dinheiro que cantam em suas canções.

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67.

RAP dO ABC MCS júnIOR E lEOnARdO

http://www.youtube.com/watch?v=88FxlmzOz4I 180


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 67. RAP DO ABC

O Rap do ABC é um dos três batidões do Cd de Baile em Baile, gravado em 1993, que entraram para a história do funk. Sua letra dialoga intimamente com Endereço dos bailes, a primeira música composta pelos MCs Júnior e Leonardo e carro-chefe do mesmo Cd. As duas composições estouraram no baile do Emoções, que os dois começaram a frequentar por causa dos festivais de galeras realizados na comunidade de que são crias. As duas se referem a diversas comunidades populares da cidade, mas o Endereço dos bailes ainda estava preso à lógica dos raps da primeira geração de MCs, que faziam um elogio à área de que os funkeiros eram crias, pediam paz nos bailes e mandavam um alô para as outras comunidades. Já o Rap do ABC fala em áreas e galeras queridas de favelas que jamais serão esquecidas, anunciando uma ligação nunca interrompida pelos dois MCs, principalmente o Leonardo, um militante incansável tanto da causa do funk quanto da favela, cujas pautas muitas vezes se confundem. A dupla ganharia fama mundial com o “Rap das armas”, cuja letra é uma crônica do pesado armamento usado pelos bandidos na interminável guerra do tráfico, de que a Rocinha já era íntima na virada da década de 1980 para a de 1990. Mas a possibilidade de circulação implícita na letra fala de uma cidade anterior ao assassinato de Orlando Jogador, mítico bandido do Complexo do Alemão cuja morte desencadearia uma série de conflitos armados primeiro com a quadrilha de Uê, do vizinho morro do Adeus, e depois por toda a cidade, como já havia sido falado neste livro. Essa guerra interferiu no cotidiano das favelas, impedindo que famílias inteiras se visitassem e acima de tudo tornando os morros citados no “Rap do ABC” em sinônimo de violência e tráfico de drogas.

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68.

RAP dA FAzEndA dOS MInEIROS MCS ROny E SARgEntO

http://www.youtube.com/watch?v=7gRv8tghr9E 182


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 68. RAP DA FAZENDA DOS MINEIROS

Reza a lenda que Roni da Silva Ribeiro e Jorge da Silva se conheceram em uma das brigas de baile de corredor a que o Rap da Fazenda dos Mineiros faz referência (“Foram tantas guerras, não dava pra entender, queremos que isso tudo não aconteça com você.”) Mas a amizade dos dois na verdade nasceu no campo do Esperança, da mesma São Gonçalo em que está encravada a favela Fazenda dos Mineiros, pertencente ao Complexo do Salgueiro que se tornaria conhecido nas vozes de Claudinho & Buchecha, seus vizinhos e norte na carreira. Como a dupla que ganhou projeção nacional com o “Rap do Salgueiro”, eles conquistaram o mundo a partir do Clube Mauá, cujo salão atraía jovens que acreditavam que “o movimento é uma arte de viver”, como diz a letra do rap com que levaram um dos festivais das galeras ali realizados antes de explodir nas rádios de todo o país e se tornar uma presença quase obrigatória nos programas da Furacão 2000. Eles emplacaram outros sucessos, como Prosseguir, Trem bala e Amigos unidos, antes de se separarem na virada do milênio, quando Sargento queria enveredar pelo proibidão e Roni sonhava em seguir as pegadas da dupla Claudinho & Buchecha, na qual se percebe a influência dos ídolos Stevie Wonder e Michael Jackson, que ele cultuava ao ponto de querer ter um sobrenome estrangeiro. depois daquela encruzilhada histórica, eles só voltariam a se encontrar na Assembleia de deus, para a qual Roni se converteu depois de primeiro tentar a carreira solo como Ronny Baby e depois com o parceiro Baby, com o qual logo se desentenderia.

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69.

ME ChAMA QUE EU VOU MCS nAldO E lUlA

http://www.youtube.com/watch?v=tlB6M3A56nM 184


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 69. ME CHAMA QUE EU VOU

UMA HOMENAGEM AO FUNK CARiOCA Por Vinicius Neto Me chama que eu vou é um dos primeiros sucessos da dupla de MCs Naldo e Lula. Composta pela própria dupla e lançada em 2005 em uma coletânea organizada por dJ Marlboro, Me chama que eu vou levou os irmãos MCs a um impressionante sucesso, que os premiou com quase dez anos de carreira que Naldo e Lula traçaram, até a ocasião, na cena do funk do Rio de Janeiro. Os irmãos nascidos na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, em Bonsucesso, se encontraram com o mundo da música por caminhos diferentes. Enquanto Naldo teve o primeiro contato com a música na igreja, Lula já se aventurava pelos bailes e conhecia toda a galera já interessada em trabalhar profissionalmente com o funk. Em uma espécie de homenagem ao funk melody da década de 1990, Me chama que eu voufoi um contraponto aos funks de sua época, ao ter uma abordagem mais romântica e com batidas melódicas, enquanto o pancadão, que se utiliza sobretudo de batidas repetitivas, predominava nos bailes funk cariocas. Os versos de Me chama que eu vou contribuem pra um resgate de um funk dançante, envolvente. Trazem à memória um nostálgico baile, onde “balance o corpo e deixe balançar” e “parado não dá pra ficar”, é a tônica. O clima de sedução não fica de fora e a temperatura da música sobe quando Naldo e Lula cantam “você me dá prazer me seduzindo”. Chamados pelo próprio dJ Marlboro de “os melhores substitutos de Claudinho & Buchecha”, estavam em processo de gravação do primeiro álbum de estúdio, 185


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 69. ME CHAMA QUE EU VOU

quando a carreira da dupla terminou em 2008 com a morte de Lula. Após dias desaparecido, o MC foi encontrado morto em uma favela na zona oeste do Rio de Janeiro. Em 2009, sem o irmão, Naldo iniciou carreira solo. Hoje, após oito anos do seu lançamento, Me chama que eu vou continua no setlist dos shows de Naldo Benny (como atualmente prefere ser chamado). Uma homenagem a Lula. Uma homenagem ao funk carioca.

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70.

RAP dA MUdAnçA MCS tIê E PlAyBOy

http://www.youtube.com/watch?v=Mh34ya3RkyI 188


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 70. RAP DA MUDANÇA

Por Milena Manfredini Os raps dos anos 1990 tratavam a realidade das comunidades, suas dificuldades, a alegria em vencer as adversidades e a beleza existente entre seus pares. Uma conjunção de fragmentos diversos que formam a maior e mais bela manta de retalhos já existente. Com suas cores próprias, texturas e nuances. O Rap da Mudança, em especial, traz um contraponto poético sobre cada comunidade do Rio de Janeiro e extirpa qualquer separação geográfica. de maneira sutil nos sinaliza o cenário em que se encontravam e de algumas ações de violência que ocorriam nos bailes funk dos anos 1990, uma delas chamada de baile de corredor, onde havia uma divisão de dois lados que se enfrentavam em embates. Conhecido popularmente como lado A e lado B. Na composição desses dois jovens, Tiê e Playboy, sentimos o que os movia, o apelo que propagavam em seu manifesto artístico e até mesmo político. Apregoavam a paz e o amor entre os seus e a unificação dessa cidade partida pelos noticiários e pelas fronteiras faccionais dos comandos. Esses jovens MCs criaram, através desse hino, a celebração e a unificação dos iguais, em um fluxo de amor à paz e como consequência a uma legião de fãs e seguidores que repensavam ouvindo suas letras e entendiam o quanto estavam fundidos nesse efervescente caldeirão. Caldeirão este composto por indivíduos que caminham com os mesmos pés e na mesma direção. Lutando pelos mesmos direitos e ideais. O Rap da Mudança é uma celebração otimista de novos tempos. Uma busca por tecer fios de cores distintas, mas de uma mesma composição, que são representados pelas comunidades mencionadas nessa letra. Formando assim um grande mosaico afetivo que une 189


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 70. RAP DA MUDANÇA

as comunidades em um só. Na letra os MCs Tiê e Playboy mencionam diversas comunidades do Rio de Janeiro resultando em um desenho representativo e sentimental das favelas cariocas. Em conversas informais com moradores de algumas localidades mencionadas neste rap percebo o quanto foi importante esse movimento e do quanto ele ainda representa em termos de reverberação no nosso rap atual. Esses personagens da vida real me aproximam e me trazem o gosto não vivido desses anos. Sinto-me abraçada por essa onda de saudosismo. Muitos demostram passos que não são mais usados sejam pelo avanço da idade ou pela modernização das batidas aceleradas. Contudo, nestes encontros, percebo o quanto os movimentos ainda se mantêm vivos em suas memórias, em seus pés e em seus quadris. Rememoram musicalmente fatos vividos, paixões adquiridas e embaladas por essa e outras composições. Através dos raps dos anos 1990, revisito as favelas cariocas em bares e conversas informais. Nesse resgate a essa década, sou remetida às suas construções artesanais-orgânicas, às suas relações verdadeiras e solidificadas de amizades francas, mãos solidárias, abraços sinceros, varais furta-cor que desenham entre nuvens a mais bela exposição a céu aberto. A exposição do que não vivi, mas do que me foi apresentado. O que definiria para mim esses anos dourados seria o bailado sincronizado, o amor pela origem, à prece pela paz, a unificação das barreiras geográficas e midiáticas. Reconheço, após esse resgate, que somos filhos desses anos, que carregamos em nossos passos a referência desses gloriosos tempos. A representação e a influência desse movimento dos anos 1990 é presente em nossos braços como um estandarte, agora não tão mais inconsciente, mas sim, com um orgulho de ser quem somos. 190


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71.

dAnรงA dA MOtInhA MC BEth

http://www.youtube.com/watch?v=juMzxgkPd78 192


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 71. DANÇA DA MOTINHA

MC Beth sempre pautou sua vida pelo baile funk, razão de seus inúmeros conflitos com a mãe e principalmente o pai, que a espancavam todas as vezes que voltava do Country Club da Praça Seca, palco dos grandes embates entre os adeptos do lado A e do lado B. Amava-o tanto que teve uma longa crise de amnésia durante uma temporada com o namorado na Baixada Fluminense, quando os pais, cansados de tentarem proibi-la de rebolar até o chão, a expulsaram de casa. Só começou a recuperar a memória ao compor seus primeiros funks, e, depois, estimulada pelos médicos, voltar a frequentar os bailes até eles serem proibidos pela polícia e se deslocarem dos clubes do subúrbio para as favelas. MC Beth tentou substituir os bailes pelas festas do Monte Líbano, clube da elite carioca no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, na fronteira do Leblon com ipanema. Ouviu então uma música, que jamais soube identificar a autoria, muito embora tenha adorado tanto a melodia quanto a coreografia que ensejava, que o salão dançava em peso. Essa é a origem da Dança da motinha, cuja primeira versão tinha uma batida mais tecno, ainda que travasse um diálogo direto com o funk, cujas melôs eram quase sempre inspiradas em sucessos internacionais tocados pelos dJs das grandes equipes de som e cujas letras quase sempre faziam referência às coreografias inventadas no baile. Apesar do sucesso da primeira versão, MC Beth gravou uma segunda versão, mais funkeira. A segunda versão fez ainda mais sucesso do que a primeira.

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72. A dIStânCIA MCS MÁRCIO E gORó

http://www.youtube.com/watch?v=doF_y8IO358 194


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 72. A DISTÂNCIA

Um inusitado diálogo entre um filho e a mãe sobre amores não correspondidos catapultou a carreira da dupla Márcio e Goró, dois crias da favela de Congonhas que durante anos percorreram os bailes organizados nas favelas de Madureira tentando fazer com que funks como Rap da Serrinha ou Liberdade dos funkeiros caíssem no gosto da massa. Jamais ganharam um festival de galeras, porta de entrada das duplas de MCs que plasmaram a cena funkeira na virada da década de 1980 para a década de 1990, mas se tornaram populares a um ponto tal que canções como A distância os colocaram no patamar de estrelas como Leandro e Leonardo, dupla caipira cujas letras melosas eram um contraponto no interior do país ao romantismo desbragado do funk melody. A Universal propôs um contrato para três Cds, mas àquela altura Márcio e Goró haviam largado seus empregos como lustrador de móveis e carteiro, respectivamente, por causa da demanda de shows em seguida à artesanal gravação de “A distância” (o lado “do it yourself” está na base da revolução do funk no modo de produção musical na periferia carioca, que só não é mais independente que o tecnobrega paraense). Não foram uma dupla de um só sucesso, mas não conseguiram se reinventar a um ponto tal para emplacar mais músicas. Atrevida e Deitados na areia são dois exemplos, mas já não levavam a vida de nababo proporcionada pelo sucesso instantâneo e, quando a gravadora multinacional cospe no final do contrato, eles vão para a rua com uma mão na frente e outra atrás. Goró não se conformou com as seguidas perdas e pôs fim à vida com um balaço na cabeça em 2000. Márcio deu um tempo na carreira, para voltar em 2005 como Marcio G (o G de Goró, o parceiro perdido). Tornou-se então uma respeitada referência, principalmente nos eventos nostálgicos da cena funkeira surgidos no final da primeira década do novo milênio, como a Roda de Funk ou Funk de Raiz. Como Márcio G seu maior sucesso foi Bumbum sarado, que no entanto não teve nada de espetacular.

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73.

dAnçA dO CRéU MC CRéU

http://www.youtube.com/watch?v=WMbzrfA6mtA 196


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 73. DANÇA DO CRÉU

Por Poema Eurístenes Muitos funkeiros seguem o destino de serem artistas de um único sucesso e esse foi o caso do MC Créu. Lançado para o grande público em 2008 como o hit mais tocado durante aquele ano, o funkeiro chegou a dividir o palco com grandes celebridades, como Roberto Carlos. Os vídeos postados da dança conquistaram milhões de acessos na internet, tornando a letra uma febre. O grupo chegou a fazer mais de oitenta apresentações em um único mês. Com não mais que dez versos, a Dança do Créu propõe um desafio aos amantes da dança: manter a habilidade de ritmo nos cinco níveis de velocidade do passo. iniciando no nível um até chegar ao nível cinco, as dançarinas do MC Créu deixavam todo o público boquiaberto. E foi uma dessas dançarinas que deu início a um dos maiores fenômenos do funk nacional. Andressa Soares, com apenas 18 anos, foi o estopim desse movimento de vanguarda, o das mulheres-fruta. Os feitos alcançados por Andressa, mais conhecida nacionalmente por Mulher Melancia, dificilmente serão repetidos. A dançarina estampou a capa da Playboy por não uma ou duas, mas três vezes em um mesmo ano. O fascínio nacional pelos 119 centímetros de bunda de Andressa inspiraram até o imortal da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar, a escrever um artigo. depois do auge da Mulher Melancia muitas outras surgiram, formando um verdadeiro hortifruti, reunindo maçãs, pêras, jacas, morangos, além das variações que incluem a Mulher Filé e a divertida Mulher Banana. Algumas das mulheres-frutas arriscaram sair dos palcos e das revistas masculinas e tentaram candidaturas a cargos públicos, não sendo bem-sucedidas na empreitada até então.

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74.

Ah, EU t么 MAlUCO! MOVIMEntO FUnk ClUBE

http://www.youtube.com/watch?v=24CCn9IVgMc 198


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 74. AH, EU TÔ MALUCO!

O sucesso de Ah, eu tô maluco! é bastante revelador de um Rio de Janeiro que deixou de existir imediatamente depois do primeiro sucesso estrondoso do grupo Movimento Funk Clube, em 1993. A primeira faceta é a própria circulação dos seus nove integrantes pela cidade, em uma época em que a juventude não precisava pedir licença a bandidos para ir a bailes em locais diferentes e distantes entre si, como o Mackenzie do Méier, o Renascença de vila isabel e o Manequinho de Botafogo, nos quais se conheceram e passaram a se admirar. Também há um significado especial no fato de Paulão, Bi MC, Fat Boy, Jz e companhia se destacarem na multidão por aquilo que faziam no salão, o que na prática mostra que o baile ainda não fora monopolizado pelas grandes atrações que não muito tempo depois mudaria a atenção da juventude da periferia, agora voltada para o palco armado pelas principais equipes de som. Há ainda algo de crônica de uma época no fato de um de seus integrantes subir ao palco para que as dançarinas o colocassem no centro de uma rodinha e se esfregassem na sua cabeça. Um deles, extremamente excitado, jogou-se do palco no meio da multidão, gritando aquilo que se tornaria o refrão do grande hit daquele verão. Esse mesmo salto, registrado nas redes sociais, fala de outra sexualidade, já que os homens praticamente monopolizam a zona do gargarejo para ver de perto as popozudas, atrás de imagens que lhes permitissem se masturbar ao chegar em casa. isso é um claro sinal de um baile anterior a Tati quebra Barraco, aqui citada como símbolo de um pós-feminismo, de uma mulher liberada sexualmente, principalmente nas favelas, desde a adolescência. Por fim, há o fato de 19 pessoas terem assinado a autoria desse batidão, ainda que do ponto de vista musical “Ah, eu tô maluco!” estivesse longe da complexidade, e que a letra tivesse, quando muito, seis versos. Todas aquelas assinaturas, que abrangem os quatro integrantes principais do Movimento Funl C (...), remetem a outra época do baile na medida em que, quando se tornou mais profissional, os direitos autorais passaram a ser exclusividade do produtor, como dJ Marlboro ou Rômulo Costa — e no caso do Ah, eu tô maluco!, além dos quatro 199


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 74. AH, EU TÔ MALUCO!

principais integrantes, assinam sua autoria o produtor e um número considerável de pessoas da Pipo's, uma das equipes de som mais importantes do Rio de Janeiro. Ah, eu tô maluco! chegou a ser um grito de guerra das torcidas organizadas, que o entoavam em seguida à comemoração dos gols do seu time de coração.

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75.

RAP dO AMOR MCS SInIStRO E MI達O

http://www.youtube.com/watch?v=2tWzBCbhndo 202


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 75. RAP DO AMOR

As fotos e os vídeos dos MCs Sinistro e Mião no auge do sucesso são altamente reveladores de tudo o que o funk representou para a juventude da periferia desde que aportou aqui, na década de 1980: eram dois meninos imberbes, um com 13 anos, o outro com 12, quando descobriram o baile do Acari, favela na zona norte do Rio de Janeiro em que nasceram, foram criados e viveram até o sucesso os levar para irajá, bairro contíguo a essa comunidade, que até 1994, ano em que ganharam o mundo com o Rap do amor, era sinônimo de tráfico de drogas. O primeiro funk que compuseram dialogava com a narrativa dos raps da primeira geração de MCs cariocas, que eles ouviam siderados na Rádio imprensa. Como dieddy, Gallo, Mascote e Neném, teceram loas à Barreira, rua onde andavam com os pés descalços, jogando peão e soltando pipa, ainda como a dupla Maurício e Sião. Com o Rap do amor, inauguraram uma pegada romântica e também o nome da dupla que os catapultaria para a fama depois de serem apresentados ao produtor Grandmaster Raphael, que conhecerem por intermédio do dJ Cachorrão. A música foi a mais pedida da semana na rádio Curti Som, outro nome fundamental na pré-história do batidão. Como não podia deixar de ser, a letra é quase pueril, falando de um amor que é como mel, que começa no cinema e termina no motel. Mas esse clássico deu à dupla um lugar cativo nos programas da Furacão 2000, do qual foram parar no primeiro episódio de Malhação, novela vespertina que estreou em 1995 com a missão de falar para o público jovem. Aquele amor pode não ter dado a solução para que esses meninos, que até aquele momento tinham que ajudar os pais como vendedores ambulantes na Ceasa, recuperassem a amada. Mas caiu no gosto do povo e tornou-se presença obrigatória no show da dupla até mesmo na época em que passaram a cantar proibidões nos bailes promovidos pelo tráfico de drogas.

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76.

zOnA OEStE MC MARCInhO E BOB RUM

http://www.youtube.com/watch?v=awdQdBwPtjA 204


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 76. ZONA OESTE

A longa amizade de Bob Rum e Marcinho resultou em algumas parcerias que entraram para a história do batidão. Uma delas foi Zona Oeste, que começou a ganhar forma em uma entrevista que os dois funkeiros deram para uma rádio comunitária do Cantagalo, favela no alto de ipanema, zona sul da cidade, durante a qual Marcinho cantou a primeira estrofe. Aquela canção só saiu da cabeça de Bob Rum quando ele a concluiu, agregando elementos que fugiam dos estereótipos sexistas presentes nas montagens então em voga. O resultado foi registrado no disco Chapa quente, mais uma coletânea do dJ Marlboro, que chegou ao mercado em 2001. Na virada do milênio, o funk havia encontrado uma zona de conforto nas favelas dominadas pelo tráfico de drogas, que transformara o baile em uma ação de marketing. O acantonamento do funk criou o ambiente propício para que a mensagem de paz que Marcinho de Bangu e Bob Rum de Santa Cruz (é assim que se apresentam na letra) tentam transmitir pelo “funk que corre em suas veias” tivesse um sentido bem diverso daquele que Bob Rum e seus companheiros de geração cantaram para alertar os jovens que saíam de diferentes partes da cidade para brigar nos tristemente famosos bailes de corredor. A violência a que fazem referência tinha bandidos fortemente armados, que tiravam o sono dos moradores com suas trocas de tiros, sua eterna brincadeira de polícia e bandido. “viemos trazer um pouco de paz e harmonia em forma de canção”, dizem eles antes de começarem a falar das muitas coisas ruins que conseguiram superar com o talento que lhes permitem brilhar em qualquer lugar.

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77.

VEnhA COMIgO MCS nélIO E ESPIgA

http://www.youtube.com/watch?v=ne5aA-qj2-c 206


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 77. VENHA COMIGO

Venha comigo, também conhecido como Rap da lembrança, quase consolidou a carreira da dupla de MCs Nélio e Espiga, ambos criados no Morro do dendê, na ilha do Governador, nas imediações do Aeroporto do Galeão em que Espiga trabalhava lavando avião. Trata-se de uma narrativa quase pueril de um jovem abandonado pela namorada, que um dia jurara amá-lo para sempre e que, no entanto, o abandonara sem mais explicações. A melodia foi surrupiada do grande sucesso pop Girls just want to have fun, da cantora Cyndi Lauper, gravada em 1983. Esse funk só foi lançado depois da explosão do Rap do Dendê, primeiro sucesso da dupla, mas já o tinham na manga quando procuraram o empresário Roni Rap que, depois de uma briga com o dono da Furacão 2000, passou a usar o espaço de que dispunha na Rádio imprensa para agenciar alguns MCs, como danda e Tafarel (ambos presentes neste livro). A ascensão da dupla, que coincidiu com a transição do baile dos clubes para as favelas, lhes permitiu cantar para os amigos com os quais brigara nos bailes de corredor ou mesmo para louvar sua comunidade nos festivais de galera, o estágio que antecedeu a transformação dos bailes em ações de marketing do tráfico de drogas. Nesse período, os MCs ainda precisavam fazer de oito a dez shows por noite não apenas para atender às demandas de um público crescente, mas porque os cachês ainda eram muito pequenos. As lembranças de apresentações para as quais foram de ônibus ainda estão na memória da dupla, que hoje faz shows esporádicos em festas como Eu amo baile funk, do produtor Matheus Aragão, que tem como política valorizar o chamado funk de raiz. Atualmente, com 39 e 37 anos, Nélio Rodrigues e Luciano Hermenegildo Moisés (Espiga) vivem como motorista de táxi e motoboy, respectivamente.

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78.

VIdA nA CAdEIA MC CAtRA

http://www.youtube.com/watch?v=SxdRSARUyq4 208


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 78. VIDA NA CADEIA

Por Marina Moreira “E já viu playboy preto?”. É com essa indagação, diante do roubo de seu casaco na adolescência, que o jovem Wagner domingues da Costa, conhecido como Mr. Catra, entra no mundo do funk. Sua juventude vivida próxima ao morro do Borel e seu gosto por música iniciado com o rock-and-roll também influenciaram nesta escolha. Em 1994, Catra lança seu primeiro disco, O Bonde dos Justos. O hit do Cd é Vida na cadeia, que relata a difícil condição dos presidiários no Brasil. Tanto no ritmo quanto na harmonia musical, ela reúne forte influência do soul e de uma batida eletrônica diferente do funk atual (mais dura e marcada). O MC canta diversas situações dos encarcerados, como a entrada na prisão e a divisão do presídio em facções, assim como a visita de amigos e parentes e toda a humilhação pelas quais são submetidos. A ideia que se tem de inferno são penitenciárias. quem viveu, de alguma forma, essa situação, tem visão semelhante. daiane Tavares, 29 anos, pesquisadora na área de educação em presídios, já trabalhou com diversas unidades prisionais. Em sua crônica “Buscando cores entre grades”, ela escreve: “Se de fato o inferno existe é como a cadeia: almas apenadas, dor, sujeira, mau cheiro, calor, ódio, culpa...”, relata a pesquisadora. Sobre o funk nos presídios, daiane traz uma observação curiosa: “Eu percebi no Talavera Bruce (presídio feminino no Rio de Janeiro) que o funk é muito presente. Na creche da unidade, onde as presas ficam com seus filhos, as Tv's sempre estavam ligadas na Furacão 2000”, relata. O refrão da música de Mr. Catra (”Liberta coração!”) não poderia ser mais claro quanto aos sentimentos das pessoas privadas de liberdade. Por mais que a 209


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 78. VIDA NA CADEIA

música tenha um ritmo dançante, ela traz em si uma angústia e melancolia, colocando este funk proibidão numa esfera de abordar temas não só referentes à criminalidade, mas também a outros temas polêmicos e mal resolvidos de toda sociedade.

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211


79.

UM lAnCE é UM lAnCE MC SMIth

http://www.youtube.com/watch?v=8g-Blzw87Po 212


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 79. UM LANCE É UM LANCE

Um lance é um lance é um funk que quase destoa no repertório de Wallace Ferreira da Mota, um cria daquela zona que misturou no mesmo sintagma o Complexo da Penha e o Complexo do Alemão, que se tornaria um dos principais inimigos da polícia carioca com os proibidões cantados de uma forma performática nos bailes em que se apresenta com a persona de MC Smith. Mudou inclusive o letrista: quem escreveu os breves versos desta apologia ao amor sem compromisso não foi o incendiário Tiago Praga, autor de clássicos como Visão de cria e Vida bandida, mas o amigo Magno. Também diferiu o clima em que foi criado este funk, que antes de fazer sucesso no Rio de Janeiro explodiu em São Paulo: ele começou a ganhar forma num clima de descontração, ambos zoando as novinhas que costumam se oferecer a esse ícone das favelas cariocas, principalmente as ainda dominadas pelo Comando vermelho, cuja imagem foi construída a partir da idolatria ao ator Will Smith, que descobriu no seriado Um maluco no pedaço e tratou de imitar de todas as formas possíveis, a começar pelo cabelo quadrado no alto da cabeça. A visão novelesca de um amor duradouro é desdenhada com o papo reto presente em suas narrativas sobre o cotidiano do tráfico. “Novinha, acorda pra vida, caralho”, pede ele cansado das admiradoras que confundem um “lance” com um romance, que saem hoje e amanhã o estão sufocando, para usar outra imagem presente na letra de Magno.

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80.

EU tô tRAnQUIlãO MC SAPãO

http://www.youtube.com/watch?v=6rj6tbhQlC0 214


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 80. EU TÔ TRANQUILÃO

Eu tô tranquilão é um dos maiores sucessos na vitoriosa carreira de Jefferson Fernandes Luiz, um cria de Nova Brasília que se tornou conhecido como MC Sapão, nome artístico que ele mesmo atribuiu a si, recorrendo ao apelido que lhe deram na infância por causa dos olhos saltados. É mais uma de suas homenagens ao baile funk, que ele sempre tematizou em seus raps, mesmo nos seus proibidões. Há um batidão a ser curtido — razão de ser da juventude da periferia carioca, que organiza a vida em torno do baile, para o qual vai todos os fins de semana a fim de rasgar as cortinas da invisibilidade. O baile narrado em 2006, porém, é muito diferente daquele onipresente nos raps da primeira geração de MCs do funk carioca. No funk do passado havia a preocupação permanente em se acabar com as brigas do corredor, de modo a salvar o principal espaço de lazer das comunidades populares para que todos tivessem um lugar para se divertir. O baile frequentado pelo MC Sapão tem mulheres sensuais descendo até o chão e a certeza de que ali se pode dançar tranquilamente, de que ninguém os impedirá de se divertir. Alguns detalhes deste rap, que se tornou tão popular que foi apropriado até mesmo por uma das torcidas organizadas do ABC de Natal, mostram que o funk já não era tão bárbaro quanto as tintas pintadas no imaginário daqueles que o proibiram: além da suave batida que se faz acompanhar de um violão e um sopro mais próximos do pop do que do batidão, a letra não contém nenhuma referência ao sexo ou mesmo ao tráfico de drogas, ainda que se saiba que eram os donos do morro que garantiam toda aquela “festa linda”, todo aquele lazer, para usar uma palavra bastante em voga nas favelas dominadas pelas facções criminosas. Até a chegada das UPPs e, portanto, depois do ano em que este pancadão se tornou campeão de vendas no camelódromo, o baile funk era o point da juventude da periferia, a “sensação” a que se recorria para se renovar as forças para mais uma semana de ralação. Parece que é justamente isso o que se tenta negar a essa juventude quando se criminaliza o baile funk, como se a ela só restasse o direito de trabalhar e trabalhar e trabalhar. 215


81.

SOU PAtRãO, nãO FUnCIOnÁRIO MC MEnOR dO ChAPA

http://www.youtube.com/watch?v=g0cntqpfduU 216


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 81. SOU PATRÃO, NÃO FUNCIONÁRIO

O Menor do Chapa é uma das maiores revelações do proibidão, que na sua boca se aproxima do chamado funk consciente. Cheio de ódio, por exemplo, é quase um hino da juventude das favelas cariocas, em que todo mundo tem um amigo ou mesmo um familiar cuja perda o deixa boladão, para usar uma expressão da música. Outro pancadão que marcou história foi o Salgueiro é o caldeirão, que se tornou um hino da comunidade principalmente depois que a escola de samba homônima o levou para a Sapucaí. Esses sucessos abriram-lhe mercado em todo o país, mas nos últimos anos da primeira década do milênio passou a viajar sistematicamente para São Paulo — tanto interior quanto capital. Foi na terra da garoa que conheceu o funk de ostentação, ao qual aderiu depois de ver que sonhos de consumo como um carro Hyunday, uma moto Hornet e um Rolex tinham saído das músicas da primeira geração de funkeiros paulistas a influenciar os cariocas, para entrar no cotidiano de seus intérpretes. Seu primeiro sucesso nessa seara foi “Sou patrão, não funcionário”. de certa forma, repete os clichês de um gênero musical que durante sua história já descambou inúmeras vezes para o machismo, que vê as mulheres como seres fúteis e materialistas, preocupadas apenas em que lhe paguem uma dose de “whisky, big apple, red bull e absolut”, para citar um dos trechos repletos de marcas. A própria ideia de deixar de ser funcionário é um lugar comum no imaginário do brasileiro médio, para o qual a perspectiva de trabalho dificilmente está associada a prazer. É assim que acontece no clipe lançado nas redes sociais para bombar, que teve mais de 3 milhões de acessos com a narrativa de um “estilo de vida foda” de um cara que “tira é onda” pegando as melhores andando sempre na moda. Há uma interpretação soberba, com as imagens sendo atiradas na cara do ouvinte com o mesmo impacto dos tirambaços desferidos na guerra de facções que em outro momento de sua carreira o Menor do Chapa narrou com a mesma maestria.

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82. SOU FOdA

AVASSAlAdORES

http://www.youtube.com/watch?v=45U2fjfru1E 218


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 82. SOU FODA

Por Elis de Aquino Como medir o sucesso de um funk? Em minha opinião, uma das coisas que o define como a “música do momento” é a quantidade de pessoas que este ritmo pode alcançar, principalmente os menos adeptos do batidão. quando um funk cai no gosto do povo, não dá para escapar. Em todo o lugar tem alguém ouvindo, dançando e comentando. Nas redes sociais não se fala em outra coisa. Muitas vezes ele não só conquista o país, mas cai também no gosto da “gringaiada”. quando ouvi Sou foda, dos Avassaladores, pela primeira vez, foi um marco. Já tinha visto várias brincadeiras e piadas pelo Facebook que usavam partes da música, como “eu sou siniXtro”, ou que tinham a expressão fodástica do vitinho (o inesquecível dançarino e cantor) estampada em vários posts. Só para dar um exemplo de como a coisa virou moda pelo Brasil afora, assisti ao vídeo por indicação de um holandês, que já sabia de cor e salteado os versos do tal funk. Não tem como não ser conquistado pelos Avassaladores e sua humildade. O fenômeno ganhou a “net”. Até o Google Tradutor cantou a música com sotaque japonês. Caí nas graças do grupo e busquei as variações da música pela rede: Sou foca, Sou Foda versão Sakura, e por aí vai. Enchi o saco dos meus amigos e enviei as novas versões que encontrava para todos. Outra característica marcante deste funk é a criatividade dos rapazes na produção do clipe. Acompanho de longe o funk, nunca tinha visto um vídeo como aquele, e o achei genial. E não foi só eu, o vídeo teve mais de 2 milhões de acessos no YouTube, e virou referência para os outros vídeos caseiros ou não que surgiram na cena funkeira depois dele. Ganhadora do prêmio de Web hit no vMB (video Music Brasil) de 2011, da MTv, a música virou sertanejo, metal, versão gaú219


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 82. SOU FODA

cha, brasileirinho e teve até resposta feminina. Tenho que reconhecer que os Avassaladores não cantavam nada além da realidade: eles são realmente “fodas”. Os muleques são sinixxxxtros (com direito a sotaque carioca).

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83.

FAlA MAl dE MIM MC BEyOnCE

http://www.youtube.com/watch?v=6djykRzlA7M 222


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 83. FALA MAL DE MIM

Por Poema Eurístenes Os duelos são recorrentes no funk desde que o estilo surgiu. Entretanto, há uma variação dos duelos que ganhou espaço a partir da inserção das mulheres nos postos de MCs. As cantoras interpretam letras que apresentam uma afronta às suas rivais e Ludmilla Oliveira, a MC Beyonce, passou a ser conhecida no mundo funk por uma dessas letras. Em Fala mal de mim, a MC que carrega o nome de seu ídolo pop, se impõe pelo uso explícito de expressões violentas, dizendo que “se ficar de caozada, a porrada come”. Com apenas 17 anos, a jovem moradora da Baixada Fluminense conseguiu alcançar mais de vinte milhões de acessos em seu vídeo na internet com este funk. Contrariando o imaginário popular que atribui um distanciamento entre o funk e aquilo que é acadêmico, Ludmilla apropria-se do conceito de recalque da psicologia para definir suas oponentes. A “recalcada” teria uma verdadeira fixação pela personagem da canção, desejando seu namorado e imitando sua personalidade, e demonstraria seu recalque falando mal dela nas rodas de amigos, resumindo-se em uma “fã encubada”.

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84.

RAP dO tRABAlhAdOR MC MAgAlhAnzE

http://www.youtube.com/watch?v=j3_otVqXVQc 224


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 84. RAP DO TRABALHADOR

Se tivesse a mesma compulsão para compor que desenvolveu para vender balas no sinal, o MC Magalhanze ganharia o mesmo status que um Bispo do Rosário. Mas o funk do crioulo louco que o tirou do anonimato em 1993, depois que a equipe de som Pipo’s o gravou na festa do Parquinho, em Padre Miguel, foi o único rebento de um imaginário que o que tem de delirante tem de revelador de uma cidade e de uma época, ambas muito peculiares. Palavras extraordinárias como “maroulive” e “tchurunanuglanver” rompiam a lógica da primeira geração de MCs, principalmente a daqueles revelados nos festivais de galeras, cujos raps invariavelmente pediam paz nos bailes e desfilavam um rosário de favelas cariocas. Com uma lógica impossível de ser reproduzida, o discurso desse cria da zona oeste, nascido Wellington Roger Marcelino no dia 11 de junho de 1970, narra uma das guerras mais arbitrárias e injustas do Rio de Janeiro, que por anos a fio colocaria de um lado o prefeito Cesar Maia e, de outro, o exército de vendedores ambulantes, que viviam perdendo suas caixas de bombom para a então recém-criada Guarda Municipal. “Tomaram minha caixa de bombom”, lamentava essa mítica figura da zona oeste, que teve inclusive o poder de ressuscitar pelo menos cinco vezes, segundo reza a lenda da região do Rio de Janeiro em que desde os 10 anos de idade oferece suas balas (Chokito e Serenata do Amor, entre outras). “Todo mundo duro”, acrescentava ele com seu bom humor inabalável, graças ao qual se tornou uma figura folclórica da cidade, vista e reconhecida em lugares díspares e distantes como as praias da zona sul, o centro da cidade e, claro, os bailes funk que inicialmente frequentou como um misto de curtidor e vendedor ambulante. A única coisa capaz de tirar o humor de Magalhanze foi a pendenga judicial em que se envolveu depois de processar o empresário Rômulo Costa, que, até meados de 2013, jamais pagou os cerca de 300 mil reais determinados pelo juiz. O Rap do Trabalhador explodiu nos bailes, mas mesmo fazendo até dez shows por noite, jamais deixou de carregar sua caixa de bala e o apito com que chamava a atenção de sua clientela na rua. O rap já foi tema de um quadro da artista plástica Beá Meira, feito por encomenda pelo artista multimídia Marcus vinicius Faustini, e de um documentário do cineasta Marcelo Goularte, ambos criados na mesma região que Magalhanze.

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85.

tÁ PAtRãO MC gUIMê (SP)

http://www.youtube.com/watch?v=Qtoec6Fkpzy 226


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 85. TÁ PATRÃO

Tá patrão é um marco na história do funk na medida em que este rap de Guilherme Aparecido dantas Pinho, que descobriu o batidão na periferia de Osasco em 2008, lançou luzes sobre diversos aspectos até então desconhecidos neste universo. A primeira delas é a própria cena paulista, que surpreendeu o país pelo fato de sua periferia ter uma histórica identificação com o hip-hop e não com o funk que o MC Guimê conheceu a partir dos MCs da Baixada Santista, cujos shows ele passou a levar para vila isabel, sua quebrada. Outra novidade foi a influência da poética do hip-hop, que rompeu a inércia em que as letras de funk se encontravam desde que Tati quebra Barraco inaugurou a era da putaria, na virada do ano 2000. Tá patrão pode ser considerado o marco zero do chamado funk de ostentação, que em sua essência trabalha a partir do desejo, onipresente entre os jovens da periferia dos grandes centros urbanos desse Brasil pós-Lula, de parecer patrão na noite que eles frequentam, aqui chamada de vibe. Escrita em clima de brincadeira nos bastidores de um show que o MC Guimê fez depois de ter comprado um Civic Navi, a letra apresenta o que os jovens da periferia chamam de picadilha de boy, ainda que todos pertençam ao que eles também chamam de vida loka. Essa picadilha de boy resume todos os sonhos de consumo de uma geração para a qual a imagem é tudo: tênis da Nike, camisa polo, óculos da Oakley e, claro, o carro da Honda cuja aquisição ele estava comemorando na ocasião. Com esse kit, eles podem dar a moral para as novinhas que poderiam surpreender os pais com as fotos que os paparazzi tirariam delas caso aceitassem os convites para sair — no fundo, todos eles estão querendo aumentar seu capital simbólico na noite. A música explodiu nas redes sociais, usadas pelos funkeiros paulistas com a mesma intensidade que os funkeiros cariocas o fazem: o vídeo oficial tinha mais de 17 milhões de visualizações até meados de 2013. Outro ponto em comum entre o funk carioca e o funk paulista é que ambos tiveram que criar sua própria mídia (no caso, o Facebook e o YouTube), já que até então não existia nenhuma rádio ou televisão disposta a veicular os conteúdos que produziam. 227


86.

BAtAlhA dO PASSInhO VInIMAX

http://www.youtube.com/watch?v=j1tAFdl1t9Q 228


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 86. BATALHA DO PASSINHO

Batalha do Passinho foi composta por vinimax, MC que na década de 1990 estourou com Banho de espuma e depois de um tempo de ostracismo fez sua reentrada no mercado como rapper, mas também nesse caso seu sucesso teve fôlego curto. Estava praticamente esquecido discotecando no Castelo das Pedras quando seu amigo José Jacy pediu que fizesse a música da i Batalha do Passinho, criada e organizada por mim e pelo músico Rafael Soares, o Nike, em 2011. Surgia aí o hino de uma geração que ele viu nascer nos bailes em que trabalhava na mesma Rio das Pedras em que morava num casabre de madeira até receber os direitos autorais da música executada no encerramento das Paraolimpíadas de Londres, na cerimônia em que o prefeito de Londres passou a bandeira olímpica definitivamente para o prefeito do Rio de Janeiro. (Com os 15 mil reais de direitos autorais, vinimax reformou a casa em que sua mãe pôde se recuperar da leptospirose contraída ali mesmo.) A música também entrou na trilha sonora do documentário homônimo, dirigido por Emílio domingos, vencedor de uma das mostras paralelas do FestRio de 2012, e um dos objetos do desejo dos dançarinos, que em muitos casos viram cinco ou seis vezes o filme rodado ao longo da i Batalha do Passinho, que depois de passar por três favelas pacificadas teve uma final apoteótica no Sesc da Tijuca. versos como “mostra o que tu faz” e “os moleques são sinistros” se tornaram slogans de uma juventude que perdeu a invisibilidade fazendo as colagens de passos que deram origem a uma das coreografias mais inventivas da história da música brasileira, acrescentando ao batidão ritmos como o frevo, a ioga e até mesmo a capoeira. Batalha do Passinho não tinha um beat capaz de entusiasmar os dançarinos, assim como não foi a primeira nem a mais popular entre os batidões que narravam as particularidades dessa cena, que não apenas oxigenou o funk como minimizou o estigma que historicamente acantonou o gênero nos guetos, criando pela primeira vez em anos a possibilidade de o batidão se tornar o símbolo identitário de uma cidade. No entanto, está definitivamente associada às conquistas dos moleques sinistros, como a viagem para a inglaterra ou a participação em programas como Esquenta, Fantástico, Show da Xuxa e Caldeirão do Huck. O último, com presença do próprio vinimax, exibiu a final da ii Batalha do Passinho.

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87.

MEl么 dOS APAIXOnAdOS FOR莽A dO RAP

http://www.youtube.com/watch?v=j1jnr5gOEts 230


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 87. MELÔ DOS APAIXONADOS

No 35º segundo deste melody que explodiu nas rádios do Brasil em meados da década de 1990, o vocalista Pingo do Rap, cujo nome de batismo é vanderlei querino, escorregou no verso mais emblemático da história do funk: “E por todos os dias que a gente namoramos.” O erro de concordância, tão clássico quanto o “nós vai”, diz tudo da geração que configurou o funk, de que os sete integrantes da Força do Rap, todos eles nascidos e criados no Acari, são altamente representativos. Ela era tão naif quanto o nome escolhido para o grupo, que dá a impressão de que apresentaria um repertório como o dos Racionais ou de qualquer outra banda de hip-hop extremamente politizada, quando na verdade suas canções estavam muito mais para o brega com suas insistentes narrativas de traições amorosas. Escrita pelo vocalista Pingo enquanto jantava em casa, essa melô, que como todas as outras se apropriou de uma base norte-americana tocada pelas equipes que pilotavam os bailes nos clubes de subúrbio, teve como inspiração um namoro recém-acabado. A música foi levada em seguida para os amigos Pixote, Bentinho e Marquinho, que não se furtaram a dar seus pitacos na letra. quando foram se apresentar em um concurso promovido pela Rádio imprensa, a Melô dos apaixonados já tinha estourado nos bailes (outro caso clássico do funk). O estouro abriu as portas para que o grupo gravasse um Cd que venderia 120 mil cópias e teria divulgação em programas como o da Xuxa, onde o público de fato se entusiasmou com a Melô da traição, a nova música de trabalho do grupo. igualmente normal no universo do funk, a Força do Rap não resistiu à paisagem do tempo, que atraiu Pixote para a igreja, Marquinhos para uma escola de samba e Betinho e JL para a morte, o primeiro executado friamente por policiais do 9º BPM. Apenas Alex e Pingo continuam no funk. Pingo, que passou a cantar raps conscientes, está entre os criadores da ApaFunk.

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88.

RAP dO BAIlE MC CACAU

http://www.youtube.com/watch?v=6O-pI8AiOjw 232


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 88. RAP DO BAILE

Beyonce, Pikachu, Marcelly, Pocahontas e Anitta podem não saber quem é Cláudia Mendes dos Santos, uma baiana que chegou a Caxias com 5 anos de idade e trabalhou como costureira até descobrir o funk nos programas de rádio pilotados pelo dJ Marlboro. Mas todas elas na verdade seguem uma senda que ela abriu depois de gravar o rap que o MC Neném, que a conheceu no baile do zito´s Clube, em Caxias, compôs para ela com base em uma cantiga de roda. A primeira MC do funk carioca, que por causa do seu jeito mignon ganhou de verônica Costa o apelido de Bonequinha do Funk, tem uma voz meiga que conquistou as multidões já em sua primeira apresentação, no Colégio Maria Tenório, também em Caxias, onde defendeu o Rap do baile no concurso de raps organizado pela escola. dali para a participação no LP da Mind Power foi uma sequência tão meteórica quanto a dos MCs a que ela faz referência/reverência na letra, que pela primeira vez na história do gênero dialoga com seus criadores. O primeiro a ser citado, coincidência ou não, é o MC Marcinho, com quem ela faria uma dupla tanto profissional quanto afetiva que em ambos os casos experimentou muitas idas e vindas por causa de um ciúme que só mais tarde ela admitiria ser doentio. O Rap do baile também cita Garrincha, dieddy, Galo, a dupla danda e Taffarel e o próprio MC Neném, “que na favela da Rocinha a trata muito bem”. depois de várias participações em coletâneas de funk, ela gravou um Cd ao lado de Marcinho em 1997 e um ano depois lançou seu primeiro trabalho solo.

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89.

RAP dA dAnIElA PEREz MCS MASCOtE E nEnéM

http://www.youtube.com/watch?v=y3VlRVQ_Sk4 234


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 89. RAP DA DANIELA PEREZ

O assassinato da atriz daniela Perez deixou o Brasil abalado. A mãe do MC Mascote não foi exceção. A única maneira que ela encontrou para protestar contra a barbaridade cometida pelo casal Guilherme de Pádua e Paula Thomaz foi pedir um rap em homenagem a ela ao filho, que no início da década de 1990 havia criado a primeira dupla de MCs do funk carioca com Neném e fazia um sucesso para lá de razoável na cena funk. Uma semana depois ele lhe mostrou o batidão, que pela primeira vez levaria a dupla de MCs ao programa Fantástico, a maior revista eletrônica do país, e ao seu momento de maior sucesso profissional. O resultado foi tão impactante que conseguiu dobrar a resistência da novelista Glória Perez, que desde a morte da filha se dedica a preservar sua memória (seu lugar na mesa de jantar jamais foi ocupado) e a clamar por Justiça. Emocionada com a detalhada narrativa, que fazia uso de muitos elementos do hip-hop, a mãe da atriz autorizou a gravação da homenagem revanchista a um ponto tal que, além de apelar para que o juiz prenda os assassinos, pede a decretação da pena de morte no país para que esse sujeito não possa cometer o mesmo crime contra um familiar nosso. Os detalhes são quase tão sórdidos quanto os da morte, como as dezoito tesouradas que desfiguraram o corpo abandonado em um matagal na Barra, depois de uma gravação no Projac. No entanto, a música, a única permitida por Glória Perez, cai no gosto do povo, que amava a atriz que representava a ingênua Yasmin, também citada na letra. Não muito tempo depois, a dupla se separa e o MC Mascote se torna autor de alguns dos melhores e mais populares proibidões da cidade, como Alemão tu passa mal e Sete um.

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90.

ChAtUBA dE MESQUItA MC dUdA

http://www.youtube.com/watch?v=VjfgxnyUhsA 236


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 90. CHATUBA DE MESQUITA

MC duda foi mais do que uma celebridade instantânea do funk, como é o caso de inúmeros jovens da periferia cuja vida se organiza em torno dos bailes. Há pelo menos três aspectos que fazem desse fenômeno de popularidade algo particular. Um desses aspectos é que sua música explode na virada do milênio, quando a internet começa a se tornar popular também nas favelas do Rio de Janeiro. Foi graças às nascentes redes sociais que Chatuba de Mesquita conseguiu falar para fora do universo em que foi criado, ele próprio também muito peculiar — um festival de música de putaria, cuja vitória deu ao autor o prêmio de 500 reais. Esse festival é revelador de uma cena de que a cidade formal só iria tomar conhecimento com a morte do jornalista Tim Lopes, que foi à vila Cruzeiro fazer uma reportagem sobre uma rede de prostituição nos bailes. O batidão também aponta para a cena do proibidão de putaria, que só atravessou a fronteira anos mais tarde. A intelectualidade carioca achou a maior graça na letra, tida na época como a mais pornográfica de todas, com suas referências a uma máquina de sexo, o bonde do sexo anal, que transa como um animal e come as minas de geral. MC duda foi um dos personagens de Febre de funk, um dos primeiros documentários feitos sobre o batidão, dirigido por Gustavo Caldas e Pedro Só. Achá-lo, por intermédio do porteiro do prédio em que Gustavo Caldas morava, foi uma das façanhas do filme, já que a cara do MC era totalmente desconhecida. O primeiro título escolhido para a continuação do filme, em fase de pré-produção em meados de 2013, será Onde está o MC Duda?. O título é uma referência não apenas ao desaparecimento brusco do intérprete e compositor, mas também ao indivíduo, sumido há anos da comunidade.

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91.

FEIA PRA CASCAlhO BOndE nEUROSE

http://www.youtube.com/watch?v=ie3lye_y7_E 238


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 91. FEIA PRA CASCALHO

O Bonde Neurose foi um grupo de amigos que ia aos bailes se divertir. Ganharam esse nome dos frequentadores do baile da vila vintém, na zona oeste do Rio de Janeiro, que aderiam em peso às extravagantes coreografias que inventavam. (A palavra neurose é um sinônimo para foda, do caralho, bom pra cacete.) Uma das pessoas que teve a atenção atraída para as deliciosas brincadeiras que faziam foi o dJ Marlboro, que se interessou em gravar a despretensiosa Feia pra cascalho, composta por Marcelo vidal, também cantor do grupo, depois de ver a apoteótica performance do grupo em um baile do Amarelinho, no Acari. O batidão, que já havia vencido um festival de rap na vila vintém, foi gravado no álbum Proibidão liberado, em 2001, mas só explodiria nas rádios de todo o país depois da mudança do dJ Marlboro para a FM O dia, no ano seguinte. No primeiro ano de trabalho, dão canjas em shows de MCs como Mr. Catra, que sempre os apresentava como “o teatro do funk”. A interpretação que faziam continha muitas referências a Michael Jackson, em particular sua fixação em histórias de terror, que nas apresentações do Bonde Neurose misturavam os zumbis norte-americanos aos sacis e entidades do candomblé. O grupo se desfez em 2006, depois que Marcelo se separou da mulher e caiu em depressão. A situação do líder do grupo se agravou com a síndrome do pânico que se desenvolveu na mesma época, provavelmente em decorrência do dramático mal-entendido vivido pelo grupo na favela Para Pedro, controlada pela facção criminosa Amigos dos Amigos. Os bandidos quase o executaram por causa de uma versão proibidona, feita à revelia do grupo, do funk “100% neurose”. Esse proibidão fazia apologia ao Comando vermelho.

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92.

BOnECO MEnInO MC ChUCk 22

http://www.youtube.com/watch?v=scfFwUmua9s 240


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 92. BONECO MENINO

O MC Chuck 22 é como um personagem de terror, nascido em 2003 como a reencarnação capixaba de um grande ídolo do funk proibidão do Rio de Janeiro, MC Cruel. André, o Cruel, morador do morro do Juramento e um dos poucos funkeiros que representavam a facção criminosa Terceiro Comando no Rio — a grande maioria cantou para o Comando vermelho —, foi um dos principais representantes do funk de apologia ao tráfico de drogas no começo desse século, quando o estilo musical ficou malvisto nas rádios e foi abrigado pelos bailes de comunidade patrocinados pelo crime organizado. Nessa época, MC Cruel esteve entre os grandes propagadores do funk nos estados vizinhos, junto com MC G3, MC Frank e MC Menor do Chapa. Um dos poucos registros de sua carreira, sem lastro nas rádios ou em grandes meios de comunicação, é um vídeo de uma batalha de rimas protagonizada por Cruel e G3 em um baile em vitória, no Espírito Santo. É possível, ali, ouvir sua voz cavernosa, gutural, cantando um louvor sinistro aos líderes do tráfico de sua facção criminosa. Thiago Gualberto Soares, capixaba, era um adolescente nessa época, gostava de rimar e era fã de Cruel. quando soube da morte de seu ídolo, em 2003 — Cruel foi morto na guerra do tráfico no Rio —, Thiago assumiu sua voz gutural e passou a se chamar MC Chuck 22. A música Boneco menino, que explica essa reencarnação macabra, é supostamente inspirada na história pessoal de Cruel no Rio. Fala sobre um menino que “viu o pai ser assassinado” e foi “criado na lei dos bandidos”. Na narrativa de Chuck 22, o menino “foi esquartejado, foi despedaçado” depois de um cerco de traficantes rivais. “Hoje o cerco é o exemplo, o inferno é o templo pro Chuck morar/Eu sou Chuck 22, represento o Morro da Capixaba”, canta, em referência à favela onde cresceu, no centro de vitória, capital do estado.

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93. kIlO

BOndE dO ROlê

http://www.youtube.com/watch?v=wPqgoelUz_w 242


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 93. KILO

O produtor musical e dJ inglês Mark Ronson estava produzindo um novo álbum do ex-beatle Paul McCartney quando deu entrevista a uma das maiores revistas de música do mundo e falou sobre as referências de seu novo patrão. Segundo ele, Paul colocou um disco para tocar e perguntou: “Como conseguimos esse tipo de energia?” A descrição para o que Ronson ouviu, segundo o próprio, foi algo “pós-Bonde do Rolê, baile funk-moonbahton”. Foi o bastante para que a imprensa relacionasse um dos maiores artistas pop vivos com o ritmo que nasceu nas favelas cariocas, para desespero dos detratores do funk. isso porque a energia do funk é a base criativa do grupo de música alternativa curitibano citado por Ronson, o Bonde do Rolê, criado em 2005 pelo trio Rodrigo Gorky, Pedro d’Eyrot e Marina vello (substituída em 2007 pela mineira Laura Taylor). O Bonde mistura a batida eletrônica do funk com ritmos como axé e rock. O primeiro artista do sul do país a fazer sucesso com essa mistura eclética foi o gaúcho Eduardo dornelles, o Edu K, líder da banda deFalla. O disco Miami Rock, do deFalla, foi lançado em 2000 e rendeu o sucesso Popozuda Rock n’Roll, uma mescla pobre de funk com rifes de guitarra. Mas a verdadeira pérola da música eletrônica que nasceu com a influência do funk carioca no Sul foi o Bonde do Rolê. A produção caprichada de seu primeiro disco, With lasers, chamou a atenção do jornal americano The New York Times e da revista americana Rolling Stone. E também encantou um dos maiores dJs do mundo, o americano diplo, codinome de Wesley Pentz, um apaixonado pelo funk carioca. Como disse antes, foi diplo o responsável por produzir a estrela pop inglesa M.i.A., indicada a dois prêmios Grammy, que fez sucesso com Bucky done gun, um clássico funk carioca em todos os termos. voltando ao Bonde do Rolê — e a Paul McCartney, acredite — chegamos a Kilo, música que consta do disco Tropicalbacanal, disco do Bonde produzido por diplo em 2012. Na faixa, o batidão reencontra a atmosfera country presente em muitas das montagens do funk no começo dos anos 1990, como Jack Matador e Homem mau. A música foi trilha sonora do desfile da estilista Stella McCartney, filha de Paul McCartney, na semana de moda de Paris em 2012. O ex-beatle estava na primeira fila. 243


94.

RAP dA MASSA FUnkEIRA AIltOn E BInhO

http://www.youtube.com/watch?v=3m77zunAsms 244


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 94. RAP DA MASSA FUNKEIRA

O Rap da massa funkeira é um retrato fiel dos idos de 1994, ano em que Aílton e Binho saíram do morro do Tuiuti, em São Cristóvão, para ganhar um festival das galeras no Madureira Tênis Clube, no bairro que dá nome ao clube. A sonoridade tem um beat seco que aproxima essa música das marchinhas carnavalescas, no meio do caminho entre o miami bass e a pegada que o funk iria ter ao se tornar o batidão tal como é, com uma clara influência dos pontos de macumba. Já a letra contém todos os elementos de um fenômeno que pela primeira vez na sua história se assume como sendo de massa, para lá do registro que Júnior e Leonardo já haviam feito em “Endereço dos bailes”, que no máximo disputava um lugar no imaginário de um carioca ainda interessado no tripé “samba, mulata e futebol”. A força do funk, que os MCs pedem para o dJ fazer explodir no início do rap, era percebida nos bailes produzidos nos mais diversos e remotos locais da cidade, muito deles aqui apresentados como a “rapeize sangue bom” de favelas como Jacarezinho, Mangueira, Pavão e outros oito lugares, adotando uma estratégia narrativa então clássica nas letras de mostrar em última instância o quanto o fenômeno havia se espalhado pela cidade. Há um pedido de paz clássico, mas aqui já se fala de um baile que “tá uma uva”, no qual se pode ficar “na moral” curtindo a “alegria do princípio ao fim” proporcionada por um gênero que, nas palavras de Bob Rum, havia se tornado uma “necessidade para calar os gemidos dessa cidade”. Há uma breve referência às coreografias executadas pelas meninas — que faziam a dança das cachorrinhas cantada no rap imortalizado na voz dos MCs Neném e Mascote, dois “amigos MCs” das 13 duplas citadas na letra, o que de alguma forma aponta tanto para a tradição de compositores em processo de formação quanto para a estratégia de reverenciá-los, presente em outras músicas.

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95.

tREMEndO VACIl達O PERllA

http://www.youtube.com/watch?v=2IMi3gwd9lI 246


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 95. TREMENDO VACILÃO

Perlla foi uma séria candidata a estrela pop do funk, ocupando um lugar que ia para muito além do baile. Esse espaço estava vago desde que mulheres como vanessa, deize Tigrona e principalmente Tati quebra Barraco mostraram para o mundo que o funk não era um monopólio do macho. Mas essa presença feminina assustava o mercado, para o qual a mulher vale muito mais como um objeto do desejo do que como um sujeito do desejo, principalmente quando o desejo é tão explícito que é entendido como sacanagem, putaria, cachorra no cio. O estouro de Kelly Key só não teve continuidade porque ela terminou traindo a causa do funk para investir em um projeto assumidamente pop, com possibilidades midiáticas mais amplas, na medida em que naquele momento os veículos mais poderosos se assustavam com a música mais consumida pelas chamadas classes perigosas. Filha de um casal evangélico, que entrou no mundo da música por intermédio do coral da Assembleia Universal do Reino de deus, Perla (com apenas um “l”) Fernandes dos Santos Castilhol (o Castilhol, baixista de sua banda com quem se casaria e teria duas filhas) despertou a cobiça do mercado com as canções influenciadas por Claudinho & Buchecha, uma mistura de melody e MPB, que essa ex-catadora de lixo e vendedora de sacolé na praia começou a fazer aos 14 anos. Um ano depois, conhece os produtores de nomes como Kelly Key e vanessa, que passaram a investir nela depois que ela acrescentou um “l” no seu nome, para não ser confundido com a cantora paraguaia homônima. depois de emplacar “Totalmente demais” na trilha sonora de “Cobras e lagartos”, ela consolida seu projeto de cantar os amores jovens sem descambar para a sacanagem com Tremendo vacilão. A vingança de um namorado infiel, filmada em um videoclipe cujas locações estão muito mais próximas do universo da classe média do que das comunidades populares em que nasceu e se criou, lhe dá uma projeção extraordinária: participa da 5ª edição da dança dos famosos (Domingão do Faustão) e canta ao lado do astro Felipe dylon no Criança Esperança de 2007. Mas tudo cai por terra após a crise com o então noivo Leonardo Moura, jogador do Flamengo que engravidou uma ex-namorada. 247


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 95. TREMENDO VACILÃO

A crise em que ela entra a leva de volta para a igreja evangélica e assina contrato com a gravadora Central Gospel, pela qual lançou o bem sucedido álbum “Minha vida mudou”. O lugar deixado vago por Perlla terminou sendo ocupado pela MC Anitta, que, como ela, cantava em uma igreja da periferia antes de fazer sucesso.

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96.

RAP dA EStRAdA dA POSSE MCS COIOtE E RAPOS達O

http://www.youtube.com/watch?v=tWPxjfd11Ow 250


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 96. RAP DA ESTRADA DA POSSE

Esta história de amor juvenil, de dois colegas de escola, inclui na vasta cartografia do funk a Estrada da Posse, em Campo Grande, um dos últimos bairros da zona oeste, que na época em que Raposão a protagonizou ainda era chamada de zona rural. A história tem um cheiro de Lulu Santos, com a diferença de que o rei do pop carioca na década de 1980 tinha como personagens principais de sua crônica de costumes jovens de uma zona sul dourada, mesmo quando uma de suas partes era o garoto menos favorecido da turma. Aparentemente, o fato de morar na Estrada da Posse é o que impede a continuidade de uma relação iniciada em uma festa na escola e amplificada em uma tarde ociosa na praça, mas também parece ser o fato de Raposão ser da Estrada da Posse o que lhe dá o direito de dizer ao mundo que ama, e que esse amor é lindo, duradouro e fiel. (“É que eu moro na Estrada da Posse/Eu digo para o mundo que amo você/É que eu moro na Estrada da Posse/Nosso amor é lindo e eu só quero você.”) É sempre melancólica a narrativa desse amor perdido para todo o sempre, em que Raposão alterna as vozes com Coiote (amigo de infância também criado na Estrada da Posse e que hoje trabalha como segurança). Mas era tão necessária a narrativa que a dupla burlou os produtores do festival promovido no Clube dos Aliados em 1994, que daria aos três primeiros colocados o direito de gravar a música no Estúdio Ld. (Raposão e Coiote o ganharam com o Rap da Nike, que caiu no esquecimento.) Os registros das apresentações da dupla postados nas redes sociais mostram um tal entusiasmo tanto da plateia quanto dos cantores que nos permite dizer que pelo menos naquela época o melody ocupou o lugar do samba, para o qual se ia a fim de se sublimar dores inerentes às duras condições de vida das classes populares.

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97.

MOntAgEnS dA PIPO'S http://www.youtube.com/watch?v=X646-sV2ylM

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101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 97. MONTAGENS DA PIPO'S

“Cuidado com a cuca, que a cuca te pega. E pega daqui, e pega de lá”. Lembra? E dos versos a seguir? “Treze piratas sobre o caixão, ‘Ho ho ho ho ho!’, e uma garrafa de rum... ‘Ho ho ho ho ho!’ deu briga a bebida, saiu confusão. ‘Ho ho ho ho ho!’ E não sobrou nenhum.” Se você está aqui lendo um livro sobre funk, é possível que já tenha identificado duas das principais montagens do estilo no começo dos anos 1990. As músicas são de dori Caymmi, filho do mestre baiano da música brasileira dorival Caymmi, com letras de Geraldo Casé e Wilson Rocha, respectivamente. Foram publicadas originalmente no segundo volume do disco infantil Sítio do Picapau Amarelo, da obra do escritor Monteiro Lobato. Foi Geraldo Casé o responsável pela adaptação da obra de Lobato para a televisão, o que acabou gerando os LPs. E essa é apenas uma das participações de Casé em clássicos do funk carioca — mesmo que ele, um gênio do rádio e da televisão brasileira, nunca tenha sabido disso. Ele batizou o grupo teatral que sua filha Regina Casé participava: Asdrúbal Trouxe o Trombone. Regina e o outro fundador do grupo, o hoje também renomado ator Luiz Fernando Guimarães, foram vocalistas de um dos primeiros funks produzidos com letras em português, o Rap do terror (“Pode passar o rodo, e me mandar embora, que eu vou ficar dançando lá do lado de fora”), gravado pelo dJ Marlboro em 1990, no segundo volume da coletânea Rap Brasil. No começo dos anos 1990, o funk já existia no Brasil, mas carecia de ídolos brasileiros, cantando letras em português. Foi assim que começaram a surgir as melôs, adaptações do funk para sucessos estrangeiros, e as montagens, adaptações do funk para qualquer música, frase ou ruído que caísse bem na batida herdada do hip-hop do início dos anos 1980. As montagens “Cuca” e “13 Piratas” foram obra dos dJs da equipe Pipo’s, famosa pelo baile do vila Lage Esporte Clube, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Os dJs Mamut, Fabinho e Flavinho e Purá, da Pipo’s, foram os principais responsáveis por ocupar a falta que o estilo tinha de ídolos brasileiros com trechos de discos antigos cantados em português (não tinham os contatos de Marlboro para chamar Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães). Acabaram alçando 253


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 97. MONTAGENS DA PIPO'S

a equipe de som ao estrelato, com a série de LPs Pipo’s — O encontro da Massa e com o programa de rádio que tiveram a partir de 1994 na Rádio imprensa do Rio (na faixa de horário ingrata entre 21h e 22h, só entre terça e quinta-feira). Além das montagens com músicas do Sítio do Picapau Amarelo, os dJs também ficaram célebres ao fazer funk com canções da dupla sertaneja goiana Léo Canhoto e Robertinho, todas gravadas no fim da década de 1970. dessas músicas vieram clássicos na pré-história do funk carioca como Jack Matador, Chumbo quente e O retorno de Jack.

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98.

PROPOStA AnIttA

http://www.youtube.com/watch?v=6rVnktfyR_w 256


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 98. PROPOSTA

A série Presença de Anita, da Tv Globo, trazia no título a personagem vivida pela atriz Mel Lisboa, inspirada na garota de 12 anos seduzida por um homem mais velho no livro Lolita, do escritor russo vladimir Nabokov. Foi exibida com sucesso em 2001, quando Larissa de Macedo Machado era uma criança de 8 anos, nascida em Honório Gurgel, bairro de classe média baixa da zona norte do Rio de Janeiro. Tão nova na época, Larissa lembrou da personagem a ponto de assumir seu nome muitos anos depois. Como justificativa, disse que considerou a personagem “sexy, mas sem ser vulgar” (talvez tenha tido essa a impressão quando a série foi reexibida em 2005 em um canal a cabo, e Larissa tinha exatos 12 anos, a idade da Lolita de Nabokov). Larissa sabia cantar desde criança, acompanhando o avô tecladista em apresentações na igreja católica Santa Luzia, em seu bairro. Adolescente, fez aulas de dança e, em pouco tempo, virou professora. A voz e a dança encontraram o baile funk e a internet, quando ainda era menor de idade. “Eu vou ficar, eu vou trair/ você merece mais do que me fez sofrer/ vou me acabar, eu vou viver, zoar/ vou te esquecer até o amanhecer”, cantava Larissa em 2010, já conhecida como Anitta (com dois T`s como “nome artístico”). A música “Eu vou ficar” foi descoberta no YouTube de Anitta por um produtor e acabou rendendo contrato com uma grande gravadora, depois de muitos bailes a cargo da Furacão 2000, produtora e equipe de som do funk carioca. No palco dos bailes, Anitta era sexy, como a personagem que a inspirou, mas um tanto vulgar, fazendo com o quadril o movimento que respeitava o ritmo da música e acabou conhecido como “quadradinho”. Tanto melhor. Por onde passou, Anitta colocou o público dos bailes no bolso de seu curto short. Seu novo hit, Proposta, a colocou no mundo do funk como a evolução do discurso de Tati quebra-Barraco. Em vez de só trepar, como Tati, Anitta queria compromisso, não queria ser usada. Enquanto Tati era feminista usando o discurso masculino de usar o sexo oposto como objeto, Anitta tornou-se a voz da mulher que quer gozar, mas com sentimento e relações estáveis. “Não toque no meu cabelo, você não é escova, só manda papo errado, pensa que eu sou boba”, cantou em 257


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 98. PROPOSTA

“Proposta”. “Aceita, sai da mesa, não me encosta, eu quero outra proposta. Meu sensor de ‘mané’ me deixa ligada”. Com a produção da gravadora, conseguiu bancar músicos e clipes de sucesso. Em abril de 2013, Anitta lançou o clipe de Show das poderosas, que conseguiu milhões — muitos milhões — de acessos na internet. Acabou virando trilha de novela com Meiga e abusada, com roupagem pop. Como a letra, com “jeito de menina brincalhona, a fómula perfeita pra poder te controlar”, Anitta finalmente conseguiu assumir a faceta de sua inspiração “sexy, mas sem ser vulgar”.

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99.

yOU tOOk My lOVE yOU CAn dAnCE

http://www.youtube.com/watch?v=_lShjc4sI6o 260


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 99. YOU TOOK MY LOVE

O funk carioca tem vários pontos em comum com o punk londrino, ainda que musicalmente sejam diametralmente opostos. Um desses pontos em comum está no fato de que ambos os movimentos sempre apostaram na revolução do “faça você mesmo”, de que o grupo You Can dance, formado em 1984 por quatro jovens de São Cristóvão, é uma das maiores evidências. Esses amantes do baile fizeram tudo sozinhos até explodirem na década seguinte depois de caírem nas graças da produtora Marlene Mattos e por extensão da apresentadora Xuxa Meneghel, na época a maior plataforma de lançamento da televisão brasileira. Em primeiro lugar, conseguiram se destacar em meio à multidão propondo coreografias cuja ousadia só tinha uma finalidade: chamar a atenção das mulheres para eles, que além de pobres eram ou se sentiam feios. A performance foi tão extraordinária que não apenas arrumaram as namoradas com que sonhavam, como anos mais tarde posariam para a revista G Magazine, voltada para o público gay. O trabalho como dançarinos lhes deu uma enorme visibilidade na televisão, mas, determinados como sempre, resolveram disputar um lugar no então emergente mercado de MCs. Foi aí que entrou em cena Latino, recém-chegado de uma temporada pelas ruas de Nova York e com um perfeito domínio da língua inglesa. “You took my love”, composta especialmente para Kadu, Kall, Tom e Fly, foi gravada no estúdio caseiro (olha o “faça você mesmo de novo!) do produtor Adriano dJ, que os colocou na coletânea Bass Crew. Um ano depois Adriano dJ voltaria a ser visionário ao gravar o próprio Latino, mas You took my love só bombou mesmo quando a gravaram uma segunda vez pela Sony, gravadora a que chegaram pelas mãos do dJ Marlboro, em 1995, três anos depois de terem se lançado. Era o auge do melody, onda na qual surfaram com galhardia, emplacando pelo menos mais três hits: Anjo, Te faço feliz e Bota o bumbum pra dançar. Com a mudança no formato do programa da Xuxa, o grupo é afastado e cai no ostracismo, até ser desfeito entre 2006 e 2007. Apenas Fly continuou na televisão, mas em compensação fez uma brilhante carreira, tendo se tornado diretor do programa em 2012. A experiência com a pobreza levou Fly a se tornar educador financeiro, para poder ajudar as pessoas com o mesmo perfil que ele. 261


100.

ORQUEStRA FIlARM么nICA dA FAVElA SAny PItBUll

http://www.4shared.com/mp3/n372jM7S/07_-_Sany_Pitbull_-_Orquestra_.html 262


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 100. ORQUESTRA FILARMÔNICA DA FAVELA

Sergio Reis Silva, o Sany Pitbull, um dos dJs mais antigos do Rio de Janeiro. durante anos foi uma das estrelas dos bailes do Rio de Janeiro, que conheceu por intermédio dos amigos de São Cristóvão, bairro para o qual se mudou, vindo de Nova iguaçu, aos 11 anos. Tornou-se dJ acompanhando o dJ Marcão, da Cash Box, que conheceu no Clube Magnatas, no Rocha, não muito distante de sua casa. Fez seu primeiro baile em 1987, na praia de Ramos, hoje Piscinão de Ramos. Tornou-se produtor em 1992, mas só conseguiu emplacar um grupo na virada de 1998 para 1999. Foi o Bonde do vinho, que conheceu em um baile na Barreira do vasco e do qual foi empresário até o ano de 2006. Um pouco antes, conheceu a jornalista Adriana Pittigliani, em uma festa na vila Mimosa, região do baixo meretrício. Ele deu carona à jornalista e, quando ela ia saindo do carro, o dJ esbarrou no toca-Cd, botando para tocar sua bagunça pós-baile funk, como a batizara os jornalistas do selo Man Recordings. Ela gostou das experiências sonoras que o dJ vinha fazendo e alguns meses depois o convidou para aquela que seria sua primeira turnê internacional, pela Europa. Foi em sua terceira turnê que teve oportunidade de tocar na Fabric, o templo da música eletrônica. O jornalista Bruno Natal, então correspondente do G1, publicou matéria no poderoso site das Organizações Globo sobre sua efusiva mistura de sons, que engloba barulhos de construção, guitarras, gongos orientais e, claro, o tamborzão. O mesmo Bruno Natal seria convidado para comandar o Tim Festival e projetos socioculturais da Red Bull, para os quais convidou Sany. Orquestra Filarmônica da Favela é uma das suas experiências mais ousadas, na qual misturou em seu liquidificador sonoro a sujeira do beat do funk com o que tem de mais suave em uma orquestra, como o violino e a harpa. Considerado estranho no começo, hoje tem seus seguidores.

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101.

EU AdORO, EU ME AMARRO MC nEgO dO BOREl

http://www.youtube.com/watch?v=ORhzCnyVlb4 264


101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER - 101. EU ADORO, EU ME AMARRO

quando a UPP ocupou o Borel, todo o povo do Rio de Janeiro adorou, se amarrou mesmo. Mas o fim do baile do funk, uma das primeiras providências da Polícia Militar em seguida à ocupação, obrigou o MC Nego do Borel a migrar para um mundo para o qual absolutamente não havia se preparado: o do trabalho. Um dos nomes mais talentosos desta mítica favela da Tijuca — que não faz muito tempo teve como dono do morro o presidente do Comando vermelho (isaías do Borel) —, Leno Maycon viana Gomes (seu nome de batismo) fracassou em todas as tentativas que fez para se adaptar aos novos tempos: não conseguiu se firmar como cobrador, mototáxi, entregador de supermercado e até mesmo mobilizador de dançarinos para a Batalha do Passinho, da qual ganhou R$ 5 por cada concorrente com a documentação completa. Criado entre o baile e a boca de fumo, só tinha a oferecer sua incrível capacidade para rimar, com a qual fez alguns proibidões antológicos, tecendo loas tanto aos chefes do tráfico de sua comunidade quanto ao que os bandidos chamam de “proceder”. Só conseguiu dar a volta por cima quando foi chamado pelo produtor do Bonde das Maravilhas, um grupo de adolescentes que criou uma série de coreografias em torno do passo chamado quadradinho, do qual se tornou uma espécie de cronista. A mistura da dança sensual das meninas com o poderoso refrão que ele criou (eu adoro, eu me amarro) colocou o MC e as dançarinas no olho do furacão. O refrão entrou no cotidiano das pessoas, que o cantaram quando se deparavam com qualquer situação agradável. E as meninas, quase todas elas menores de idade, foram envolvidas em polêmicas em que mais uma vez o funk foi criminalizado, com juízes de várias cidades proibindo a apresentação de suas coreografias, principalmente o quadradinho de oito (um movimento com pélvis feito de cabeça para baixo). Embora tenham sido um dos destaques de um verão poderoso para o funk (Anitta, Lek Lek, Koringa e Naldo entraram no mainstream), a parceria não foi duradoura. E de comentarista dos passos sensuais executados pelas novinhas do Bonde das Maravilhas tornou-se MC de funks de ostentação altamente bem-sucedidos, de que os mais de 21 milhões de acessos de Os caras do momento e os 5 milhões de acessos de Bonde dos brabos no YouTube são os momentos culminantes.

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Este livro foi composto em diN. O papel utilizado para a capa foi o Cart茫o Supremo Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o P贸len Bold 90 g/m2. impresso pela Grafitto para a Aeroplano Editora em novembro de 2013.


Aqui tem a história do baile funk resgatada por intermédio de 101 músicas que marcaram a história da principal manifestação cultural do Rio de Janeiro. Elas vão dos grandes bailes animados pelo miami bass até o passinho do menor da favela, passando pelos sucessos do primeiro LP produzido pelo DJ Marlboro. Este LP, que chegou às lojas no início da década de 1990, contém os primeiros pancadões em português. Há também um esforço no sentido de contar a história das ruas, onde os jovens negros são perseguidos muito antes de o funk ser assim. Nos primórdios do funk, por exemplo, as letras obrigatoriamente faziam referência às comunidades pelas quais eles puderam circular até ter início a guerra de facções. Estes funks também contam as estratégias criadas pelos produtores e também pela massa funkeira para não deixar o baile acabar. O funk, ainda que seja sempre o funk, está em constante mutação. Enveredou pelo crime quando foi varrido para as favelas, exacerbou na sexualidade e agora, a partir da periferia de São Paulo, fala dos objetos de consumo que os jovens gostariam de ostentar em seu cotidiano. Mas acima de tudo há uma narrativa das incontáveis coreografias que o povo carioca criou para celebrar a vida: a da cabeça, a da bundinha, a da motinha e até a do gorila, entre muitas outras. O funk, como diz uma de suas letras mais emblemáticas, é uma necessidade para calar os gemidos que existem nesta cidade. Precisamos satisfazê-la!

Julio Ludemir

Este projeto foi patrocinado pela Secretaria de Estado de Cultura, através do Edital de Criação Artística no Funk 2011.


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