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Acorda hip-hop! Despertando um movimento em tranformação DJ TR

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opyright © 2007 DJ TR COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES projeto gráfico CUBÍCULO ACORDA HIP HOP: DESPERTANDO UM MOVIMENTO EM TRANSFORMAÇÃO produção editorial ROBSON CÂMARA copidesque CECÍLIA GIANETTI revisão TETÊ OLIVEIRA e ROBSON CÂMARA revisão tipográfica ROBSON CÂMARA

L478a Leal, Sérgio José de Machado Acorda hip-hop! : despertando um movimento em transformação / Sérgio José de Machado Leal. - Rio de Janeiro : Aeroplano, 2007. il. ; ISBN 978-851. Hip-hop (Cultura popular). 2. Rap (Música). I. Título. 07-4020.

CDD: 784.5 CDU: 78.067.26

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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22440 030 TEL: 21 2529 6974 Telefax: 21 2239 7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia social – se reforçam cada vez mais movimentos culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam os de alguns segmentos específicos: grupos musicais, grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas de idêntica importância, embora com menos visibilidade, é a produção intelectual que cuida, além de questões artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos. A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes, um consistente e instigante apanhado dessa produção amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que não são originários de favelas ou regiões periféricas dos grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionáveis das elites intelectuais”. A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar. Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século, cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar para diminuir as distâncias sociais é um esforço imprescindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.



AGRADECIMENTOS Ao Senhor meu Deus, o autor de todas as coisas e a única razão de não sermos consumidos. A Ele toda honra e glória seja dada! Obrigado Pai, por ter concedido a mim a sabedoria necessária para a feitura deste livro. Também ao meu Senhor e Salvador Jesus Cristo, nosso elo com o Pai que está nos céus. Às mulheres importantes da minha vida: minha mãe Dona Josefa, minha sogra Dona Erotildes e minha mulher Andréa Vitório, pois sem elas seria impossível ter o incentivo e a compreensão, fundamentais ao vencimento dos obstáculos dessa dura jornada. Aos meus filhos Rebecca Abayomi, Felipe, Gabi e Mariane. Que os ensinamentos de Deus se tornem essenciais para as suas vidas e que o hip-hop possa ser um complemento positivo nessa educação. Às minhas irmãs e cunhados Kátia e Luiz, Mary e Romero. Que o Senhor Jeová seja luz em suas vidas. À trindade divina da cultura hip-hop: Afrika Bambaataa, Kool Herc e Grandmaster Flash por terem trazido ao mundo algo tão importante para a vida de muitos jovens sem perspectivas. Que o Senhor Deus os cubra com Seu manto! Aos irmãos Nelson Triunfo, Nino Brown (Zulu Nation Brasil), Thaíde e DJ Hum por terem brigado ao lado de outros tantos irmãos para manter o nome da cultura hip-hop nacional sempre elevado. Que a Paz do Senhor esteja com vocês!


Ao amigo de muitas horas, Ecio Salles. Obrigado, irmão, por me atender no momento em que não possuía nem o dinheiro para o registro desta obra. Jamais esquecerei essa atitude! Que o Senhor seja contigo irmão! À toda família Aeroplano, em especial, Heloisa Buarque de Hol­lan­da, por ter acreditado no meu potencial como escritor, e Robson Câmara, por ter me aturado durante todo esse tempo em meio às muitas revisões desta obra! Que a graça de Deus esteja sobre vocês! E como poderia esquecer Dona Regina, minha segunda mãe, que durante os meus momentos mais difíceis em São Paulo, acolheu-me como seu filho? Que o Senhor Deus derrame suas bênçãos sobre ti e sua família, lhe dando paz e prosperidade! Aos irmãos de todos os momentos em São Paulo, Magno C-4 e DJ Branco, sempre prontos a me ajudar nas duras correrias. Que o Senhor os abençoe ricamente! Aos irmãos Paulo Jr. e Quinho, que muito me ajudaram nas primeiras digitações deste livro, e no período em que não possuía computador para registrar todas as pesquisas. Que Deus os abençoe imensamente! À Família Racionais pelo grande incentivo dado, desde 1996, ao projeto de que eu fazia parte. Sem esse apoio – pois acredito que Deus os colocou em nosso caminho –, seria muito difícil galgarmos os degraus que galgamos. Que o Anjo do Senhor os abençoe e os guarde dando a vocês todo sucesso merecido! Aos escritores deste livro: DJ Marcelinho (Trama), Clodoaldo Arruda (Geledés), RDO (Cresposim), Big Richard (Du Big Produções), DJ Juan (Six), Nelboy Dastha Burtha (Masta Basta), Elza Cohen, Mara, Só Calcinha, Bonga, Bad, Rooney Yo-Yo (Pixa-In), Mano Brown (Racionais MC’s), DJ Deco e Gabriel O Pensador. Suas palavras tornaram as linhas deste livro mais reais e mais humanas. À minha Família da Cidade de Deus: Feijah’N, Piri, Léo, Titula, Cão, Marcelo Coca-cola, Fernandinho Ávila, Magoo (Resumo 51), Feijão (Seu Jorge), Guto (GT), Paulo e Julio (Boca de Filme), Leandro Firmino e Rui Vitório (ambos da ONG Nós do Cinema), Gilton, Mauro


Alemão (FM Jacarepaguá), Kid (Tattoo), MCs Cidinho e Doca, e os rappers Zezé, Dom Michel e Mingal. Que as bênçãos de Deus estejam sempre presentes em suas vidas! À minha Família Zulu: DJ Preto El, Kamarão, Marcio, Nina Brown, Noise D, Zulu Beto, Cinthia G, Herval, Taís, Junior Baladeira e Walter Limonada. Que o Senhor Deus esteja à frente de nossa luta! Às minhas Famílias Rio Festa (Sergio Cinelli, Alan, Bernardo, Bru­no, Barucco, Bia e os demais), LUB (Dom Filó, Zezzynho Andrade, Rômulo Rosa e os demais), Rap Nacional (Mandrake, DJ Nelson e os demais), Enraizados (Dudu de Morro Agudo, Mano Dix, Dimenor, P, 10, Lamartine Silva e os demais), e Rapevolusom (B. Dog, Big Boss e os demais). Obrigado pela credibilidade e que Deus esteja sempre abençoando os seus passos! Aos colegas escritores Paulo Lins, Rolf Preto, Jadiel Guerra, Ferréz (Capão pecado), Spensy Pimentel (O Livro vermelho do hip-hop), Alessandro Buzzo, Sacolinha, Sérgio Vaz (Cooperifa) e DJ Raffa (Trajetória de um guerreiro). Que o Espírito Santo de Deus continue lhes dando toda a inspiração possível para levar literariamente as riquezas das periferias brasileiras ao mundo. Aos irmãos das muitas batalhas, que direta ou indiretamente contribuíram para esta iniciativa: Pr. Selmo Reis (Saint John Primitive Baptist Church/ Delray Beach – Flórida), João Robero, Valter Vasconcellos (VM Produções), O Frio Bira e Big Foot (Os CRIAS), Pregador Luo (Apocalipse XVI), Tina (Mina de Ouro), Robson Nascimento, Silveira, Serginho DJ’esus, Irmão André, Kleiber Fragoso, REP, Família Geração Hip-hop (Cissa, Cris, Cláudia Sena, Cleide, Patrícia e Kelly), Letícia (Let’s Hop), Professor Hélio Santos (COMDEDINE), Professora Elisa Larkin Nascimento, Professores Jennifer e Derek (Universidade de Nova York), Professora Shoshana (Universidade da Califórnia), Deputada Jurema Batista (PT), ÂÂÂÂÂnderson Madeira, Massacre (MM Dub) e Família Faces do Subúrbio (Zé Brown, Tiger e Garnizé), Jorge Foques, Toninho, MF Jones (Projeto Rio Charme), Stanley Frase (Chicago), Sanny Cupello, Lupper (Concepção Black), Giordana Moreira (Com Causa), Fran (CEDECA Rap), Piá, Família Nós do Cinema (BR e Dom Killer), Kátia Lund, João Moreira Salles (Vídeo Filmes), Gute Fraga (Nós do Morro), Lama, Soca, Matheus e Marcelo Mc e toda


a Família Hip-hop Voador, Pedro Paulo e Léo Almeida (Na Rua/ TV JB), MC Slow, Reinaldo Baso (Prefeitura de S. Gonçalo), Dom Negrone, DJ Claysoul, DJ Alan Beat (Sampa Crew), DJ Alpiste, DJ Scooby (Manuscritos), DJ Carlinhos N@tty Dread, DJ Boneco, DJ Paul (RPW), DJs Michel, Blackjay e “A” (Proj. Rio Charme), DJs Saci e Saddam (Six), DJ Marcelo Soares, DJ Markin New Charm, DJ Marcell, DJ Fabinho, DJ Hadje, DJ Marcelinho MG, DJ Negralha (O Rappa), DJ Negrito (APC XVI), DJ Tamenpi (Bocada Forte), DJ Cobra (Universal Music), DJ Phabyo (Castelo das Pedras), DJ Daddy Kall, DJ Marcelo Araújo (Gospel Night), Djah Teko Rastafari (Afroreggae), Solange Bastos (Família Bastos Produções), Jorge Ferreira (Jornal Inverta), Freitas (Real Hip-hop), Frank Ejara, Frei Davi (Educafro), DMN, Gog, Viela 17, Vinimax e DJ Roque, B. Negão, Jovem Cerebral, Mr. Paulão Black Power, Prof.a Magali Almeida (UERJ), Da Gama (Cidade Negra/ UCEBA) e toda a Família Raggae Brasil, Ricardo Brasil (TV ALERJ), Mr Catra, Cleuza (Charme da Cor), Gargamel, Vinicius Terra (Bossarap Produções), Família Godspell Renato, Lidiane, Pr. Amorim, Avila, Vanessa e Luciana (Filha da Luz), Marcus Vinícius (ACM), Marcos Vinícius (MH2O-RJ), Bruno (Programa Hip-hop RPB), Fabiana Menini (Trocando Idéia), Família São Gonçalo in (Rap K2 e Candace), Alex Nery (Groove do São – SESC São Gonçalo), Família do Jornal Estação Hip-hop (Ademir e Adonias), Paulo Salles, Adriano Dias (Jornal Alternativo), Alternativa C, Ana Rita (Ass. SSP), Black (Cresposim), Marcelo Eco, Família CJ Hip-hop, Daniele Torres (Grupo Votorantin), Delano, Black Alien, Da Guedes, Clã Nordestino, Banda Nocaute, Dod, Gellson (Raggae Movimento), Ras Sérgio, J3, Hannah Lima e André Gomes, Lisiane Ramos (e-Vista), Nego Chic, Márcia Leitão (Pesquisadora), Mano George, MH2O Brasil, Toy (Barraca do Toy/ Uruguaiana), Nós do Morro, Patrick Guimarães (jornalista), Fred e Paula Alves, Paulo Brown, Programa Hip-hop Sul, Eazy (BHTE), revista Rap Brasil, revista Raça Brasil, Pavilhão 9 e todos aqueles que acreditam em um movimento capaz de transformar positivamente um ser humano. Que Deus os abençoe! “Toda escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça”. II Timóteo 3:16




Sumário 14 16 17 174 188 204 211 223 235 238 252 266 276 286 296 305 315 322 334 343 355 369

Prefácio Muito falam, pouco conhecem. E o que fazem? Apresentação ACORDA HIP-HOP! Despertando um movimento em transformação Cap. 01 A história do Hip-Hop Cap. 02 Conservadores vs. Comerciais Cap. 03 Rap à brasileira Cap. 04 Rap vs. Funk carioca Cap. 05 Graffiti e Breaking vs. Rap Cap. 06 Grupos vs. Bandas Cap. 07 Identidade do Hip-Hop carioca Cap. 08 O Hip-Hop ganha liberdade nos cárceres Cap. 10 Hip-Hop vs. Rap na mídia Cap. 11 O Hip-Hop e a Política Cap. 12 O Hip-Hop e sua ação social Cap. 13 O Hip-Hop nacional no mercado aberto Cap. 14 Rappers Pretos vs. Rappers Brancos Cap. 15 Rap político vs. Rap marginal Cap. 16 Ativismo pesado ou excesso de realismo? Cap. 17 Hip-Hop contra as drogas Cap. 18 Estamos confrontando o sistema ou a nós mesmos? Cap. 19 União, será que entendemos o verdadeiro sentido dessa palavra? Cap. 20 Unificação do Hip-Hop. E a profecia se fez como previsto... Sobre o autor


Prefácio MUITO FALAM, POUCO CONHECEM. E O QUE FAZEM? O hip-hop como manifestação de cultura de rua saiu, nos primórdios dos anos 70, dos guetos nova-iorquinos para o mundo. Seus quatro elementos (grafite, break, MC), tinham como proposta renovadora unir entretenimento a uma força de expressão tipicamente urbana e à margem das expressões artísticas convencionais à época. Era a subversão do objeto, seja ele o corpo, a parede, a voz ou o toca-discos, em favor da diversão e do reconhecimento da necessidade de inclusão de minorias, principalmente a de imigrantes negros e latinos. A diversidade étnica foi usada por seus mentores para educar e apresentar uma nova ordem: a ordem do pensamento periférico, que ajudou a diminuir a violência entre as gangues da maior cidade do EUA, Nova York. Esse foi o primeiro grande feito do hip-hop e, por isso, ele se estabeleceu antes mesmo de ser inserido na indústria cultural. O hip-hop tinha, claramente, propostas de inclusão social jovens e revitalizadoras, porque estavam baseadas em novas linguagens e objetos de expressão no âmbito da arte. O movimento estava desprovido das barreiras que, hoje em dia, o enquadram

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em um estereótipo cada vez mais aceitável para a cultura consumista branca americana. Quando nasceu, as rimas não chamavam as mulheres de putas, o seu poder pretendido não se resumia a cordões de ouro, roupas de marca ou carros sofisticados. Mas embora hoje em dia o que se mostra nos videoclipes da maioria dos artistas internacionais do gênero possa parecer politicamente vencido, seus ideais se estabeleceram mais fortemente nos lugares mais distante de seus berços, onde se deixou levar, construindo afinidades com as culturas de diversas regiões do mundo. A verdade é essa: seu romantismo ideológico hoje sobrevive a duras penas num plano periférico muito maior, nas favelas de todo o Terceiro Mundo. É a partir da periferia dos países pobres que ele se projeta no futuro, anunciando seu mais novo elemento: a informação. Daí a importância de se entender sua identidade e seu crescimento em suas diversas áreas de ação. No Brasil, essa história começa a ser contada de maneira própria, em sua organização, divulgação e manifesto, mesmo que politicamente muitas vezes explorada, e comercialmente ainda sem a contundência que merecia ter para as massas. DJ TR, a quem eu conheci há muitos anos nas trincheiras da luta social urbana, foi um dos primeiros a entender a informação como força para o crescimento e a preservação da identidade cultural do hip-hop. Portanto, é não apenas prazeroso mas urgente, seguir as linhas desse livro que nos convida a entender melhor as nuances do tema, fugindo das possíveis prisões do universo acadêmico tradicional. É em sua essência o hip-hop se explicando e se ampliando sem ingenuidade e com poder crítico e auto-crítico. É o quinto elemento exercido não só por quem quer, mas por quem há muito entendeu que o conhecimento e que os livros devem estar juntos e misturados a qualquer manifestação popular. Marcelo Yuka


Apresentação ACORDA HIP-HOP! Despertando um movimento em transformação

Este livro está longe de ser a “Bíblia do Hip-hop Nacional” ou uma enciclopédia da nossa história. Para que o hip-hop seja compreendido em sua plenitude, será necessário mais do que uma obra. Compreendê-lo exige a atenção e o exercício de cada um de nós, em prol de um saber coletivo e abrangente. Um saber pregado e também questionado por figuras como Afrika Bambaataa, Kool Herc e Grandmaster Flash. Saber que nos despe do orgulho, permitindo que abracemos uma cultura não à nossa conveniência mas que, a bem da verdade, nos une. Que derruba diferenças e a indiferença, impedindo que sejamos vítimas de um tabu cultural instalado em uma sociedade retrógrada. Que nos possibilita lidar com os crescentes problemas de má administração política, desemprego, ensino desqualificado, drogas, crimi­nalidade, violência policial, má distribuição de renda, mi­sé­ ria e racismo de um modo consciente. Saber que nos torna um veículo de acesso à informação muito poderoso para o povo preto e pobre do Brasil.

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Apresentação

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Lamentavelmente, mesmo no início de um novo milênio, continuamos a ver desentendimentos que colocam em xeque nossa condição de “porta-vozes da consciência” da juventude desassistida. O mais curioso é perceber que esse conflito de opiniões existe onde quer que se tenha conhecimento do movimento hip-hop. Visando à reflexão sobre o nosso movimento, levantaremos aqui alguns fatos históricos que possibilitem o debate sobre nossos problemas, a fim de que os mesmos possam ser solucionados para o bem de futuras gerações.


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PARTE INTERNACIONAL EUA, década de 70: em busca da perfeição musical Os punks procuram livrar o rock do que enxergam como indiferença. No começo dos anos 80, a força punk diminuiria; no entanto, a indústria da música mantém um padrão baseado no som da guitarra tocada principalmente por brancos em grandes estádios. Muitos artistas de música negra suavizam seu ritmo para serem aceitos no mercado musical. Quando o rock parece estagnado, uma inovação surge para levar a música de volta às ruas. Vinda do Bronx, em Nova York, essa transformação radical provoca tanto medo e desconfiança quanto o rock quando surgiu. Longe da elegante Manhattan, a juventude negra, através de novos estilos de dança (break) e artes plásticas (grafite), dá vida ao hip-hop, movimento embalado pela trilha sonora de DJs locais como Afrika Bambaataa. Bambaataa, ex-líder de uma gangue conhecida como Black Spades, crescera no lado sul do Bronx – uma das regiões mais violentas e deterioradas de Nova York entre as décadas de 60 e 70 – e, baseado na memória da luta política de grandes líderes afro-americanos dos anos 60 como Louis Farrakhan, Malcolm X, Panteras Negras e Martin Luther King, busca criar um novo estilo de vida para os jovens de sua comunidade.

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1971 Nova York: ainda movidas pelo Movimento Black Power dos anos 60, as casas noturnas dos guetos utilizam o soul e o funk como as principais trilhas sonoras das pistas de dança. Admite-se que a popularização do termo hip-hop – ainda sem a referência de movimento cultural – dá-se nesta época com Anthony Holloway, o DJ Hollywood, residente do Club Charles Gallery, no Harlem (NY), e considerado o primeiro rapper do estilo. Na empreitada de espalhar essa expressão, contou com MC Lovebug Starski, um dos favoritos de Afrika Bambaata. Hollywood tem como fonte inspiradora os brados de James Brown, que levantava o público com improvisações durante os solos instrumentais de sua banda JBs. Do mesmo modo, Hollywood agita a pista em meio às suas discotecagens com a seguinte frase: “Hip-hop-Duh-Hip-hop-Duh-Hop” Vale lembrar! A figura do DJ vai de encontro ao surgimento do rádio (1921-22) nos EUA. Locutores da época, que podem ser considerados os primeiros DJs, entretinham o ouvinte intercalando conversas com seleções musicais nos toca-discos – isso quase meio século antes de terem surgido os aparatos tecnológicos que impulsionariam o movimento nos anos 70. Na Era do Rádio, os DJs, ainda desprovidos de equipamento adeqüado, animavam festinhas caseiras e bailes de formatura selecionando os hits da estação.

1973 Nascido em Kingston, Jamaica, West Indies, Clive Campbel – o DJ Kool Herc – vai para Nova York em 1967, fugindo da forte crise econômica em seu país. Considerado o primeiro DJ a misturar o reggae e o rap, Herc levara seu equipamento de som para as ruas do Bronx em 1969, tornando-se responsável pelo surgimento das festas ao ar livre – as block parties –, velho cos-


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tume jamaicano. Lembrando um trio elétrico baiano, Herculoids – referência ao popular desenho animado da década de 70 – o sound system de Herc, é um potente equipamento de som acoplado a carrocerias de caminhões e carros grandes que circula em velocidade moderada arrebatando uma multidão e parando em seguida em uma praça ou estacionamento para continuar a festa. Herc se torna a referência principal das festas no bairro, animando seus freqüentadores com ritmos latinos, funk, soul, reggae e jazz. Mas essa não é a única novidade que traz: a tradição dos toasters (autênticos mestres de cerimônia que rimavam – em cima de batidas dub – sobre assuntos como a violência das comunidades de Kingston e a situação política jamaicana, além de temas mais polêmicos como sexo e drogas) influencia os jovens locais, familiarizados com as rimas faladas no funk e no bebop produzidos na década de 70 por importantes nomes como Last Poests e Gil Scott Haron. Vale lembrar! Toast é um termo que resume uma tradição do reggae que consiste em os músicos falarem e cantarem de improviso sobre trechos instrumentais. Criado no fim dos anos 60 pelo DJ jamaicano U. Roy e sua equipe de som El Paso, o toast ganhou a Jamaica, tornando-se tempos depois um dos elementos fundamentais para a construção musical do hip-hop.

Em 1973, Herc estréia na festa de aniversário dos 16 anos de sua irmã (no conjunto habitacional onde residia, no sul do Bronx) um novo estilo de performance: utilizando duas réplicas de um mesmo disco, mixava-as alternadamente, dando assim a impressão de uma instrumental infinita. Ele batiza sua invenção de breakbeat. A descoberta causa impacto no Bronx e suas festas tornam-se muito populares; por conta disso, muitos DJs, como Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash acabam aderindo ao novo estilo de discotecagem. Kool Herc e DJ Hollywood são creditados por introduzir o estilo pesado da Jamaica à cultura musical do sul do Bronx.


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No dia 12 de novembro, preocupado com os conflitos crescentes entre os jovens do seu bairro, Afrika Bambaataa funda a Universal Zulu Nation, uma Organização Não-Governamental que reuniria DJs, dançarinos, MCs e grafiteiros, com sede na Escola Secundária Adlai Stevenson, na Avenida Sedgwick, 1520, no Bronx. Com o lema “Paz, Amor, União e Diversão”, a entidade oferece atividades envolvendo dança, música e artes plásticas, e também promove palestras, as Infinity Lessons (Lições Infinitas), sobre temas como matemática, ciências, economia e prevenção de doenças, entre outros. A idéia é transformar positivamente o comportamento dos integrantes de gangues de rua. É importante salientar, nesse campo, a influência de trabalhos comunitários desenvolvidos anteriormente por grupos libertários como os Panteras Negras junto aos guetos afroamericanos. Em entrevista ao documentário Scratch,1 Bambaataa declara: “Este é o conjunto Bronx River Houses, o berço do hip-hop e o lar de Deus. Uma pequena Vietnã, tão perigosa que nem a polícia entrava. Havia muita violência entre gangues, o que gerou uma conscientização social. Foi por isso que fundamos a Zulu Nation. Tentamos transformar a afiliação às gangues em algo positivo. Começamos a organizar as pessoas na rua, os grupos de dança, os b-boys e as b-girls, os rappers e os grafiteiros para criar esta cultura”.

A expressão “hip-hop”, até então, não dá conta do que virá a ser toda uma cultura híbrida do subúrbio.

1974 Quando percebem o trabalho que dá discotecar e animar o povo ao mesmo tempo, os DJs têm a idéia de contratar “MCs” (Mestres-de-Cerimônia ou Controladores de Microfone) – garo-

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Documentário de 2001 dirigido por Doug Pray e exibido pelo canal a cabo GNT.


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tos que freqüentam assiduamente as festas e têm a facilidade de entreter o público com frases e gírias locais. A iniciativa parte do DJ Kool Herc, que contrata Coke La Rock e, logo depois, Clark Kent, para animarem os bailes promovidos pelo sound system Herculoids. Empolgado com a idéia, La Rock cria algumas frases do hip-hop repetidas até hoje: Rock the house, to the beat y’ all, Rock on, you don’t stop.

Coke La Rock é considerado o primeiro MC-Rapper do hip-hop. Vale lembrar! A figura do MC originou-se na Jamaica. Apenas mais tarde o DJ Kool Herc introduziria a idéia no Bronx. Até então, a função era assumida duplamente: DJ-MC. No entanto, na Jamaica, além dos DJs, os toasters também controlavam o palco. Ao contrário do que se imagina, o MC nada tem a ver com o rapper; sua origem jamaicana precede o surgimento do rap no Bronx. Além disso, o MC cria versos de pronto, enquanto o rapper os elabora antes no papel. Ainda que nada impeça a possibilidade de um MC ser um rapper ou vice-versa, cada elemento possui seu valor distinto.

O dia 12 de novembro, além de marcar o aniversário da Zulu Nation, passa a significar também – com um ano de diferença – o aniversário do hip-hop enquanto movimento cultural, idealizado pelos DJs Kool Herc, Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa. O hip-hop torna-se a filosofia do gueto e contribui para nortear os membros da Zulu Nation, garantindo a manutenção de valores construtivos e positivos. Em entrevista ao site oficial da Zulu Nation (zulunation.com), Bambaataa explica suas intenções com o hip-hop: Quando nós criamos o hip-hop, o fizemos esperando que seria em função da paz, do amor, união e diversão e que as pessoas se afastariam da negatividade que estava contaminando nossas ruas (violência de gangues, tráfico e consumo de drogas, complexos de inferioridade, conflitos entre afro-descendentes e latinos).


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Embora essa negatividade ainda aconteça aqui e ali, à medida que a cultura cresce, nós desempenhamos um grande papel na resolução de conflitos e no cumprimento da positividade.

Em Walk this way,2 documentário sobre a história do grupo Run DMC, Grandmaster Flash comenta: O hip-hop surgiu no Bronx. Nos primeiros anos houve muita experimentação e muita coisa era feita ao ar livre, em festas de rua. As pessoas da vizinhança se reuniam nos parques e tocávamos de graça para gente de todas as idades, desde criancinhas até avós e avôs.

Em entrevista ao (extinto) programa Yo! MTV Raps, da MTV Brasil, Afrika Bambaataa fala sobre a organização territorial estabelecida pelos DJs para os eventos: Todo mundo tinha o seu território. Kool Herc tocou no lado oeste do Bronx, onde o hip-hop começou, e depois foi pro sul do Bronx, e a Zulu Nation [que também funcionava como Equipe de Som] para o sudeste do Bronx. Depois, passou pra zona norte do Bronx e chegou ao Harlem, Brooklyn, Queens, Connecticut, Nova Jersey e todos os EUA. E agora o hip-hop é uma comunidade mundial. Temos hip-hop brasileiro, francês, inglês, antilhano, africano e japonês.

1975 Kool Herc passa a divulgar seus breakbeats em locais populares como o Hevalo, no Bronx. Sua influência crescera através de DJs como Grandmaster Flash, que mais tarde se tornaria também uma fonte inspiradora para outros colegas. Afrika Bambaata segue seu exemplo, promovendo festas por todo o bairro. Além das festas conhecidas pelos nomes “Party” e “Flava Jam 2002”, que acontecem no número 123 da 4th Street, no Bronx, Bambaataa tem a idéia de realizar algo não-convencional. Com a intenção de adotar um novo conceito de festa, ele cria a “Hip2 O documentário foi episódio da série Impacto no canal GNT em setembro de 2006.


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hop Beeny Bop”. É a partir dessa festa que, com o auxílio do MC Lovebug Starski, o termo hip-hop se espalha. Nela, Afrika Bambaataa adota ritmos populares como rock, electro-pop, calypso, temas de TV e heavy metal, além dos sons funk de James Brown, Sly and The Family Stone e George Clinton, entre outros. MC talentoso, Starski entretém o público jovem com suas frases de efeito imortais: Welcome to the hip-hop Beeny Bop! That’s right ya’ll! Hip-hop till you don’t stop!

A respeito dessas festas, Bambaataa declara à MTV Brasil: A primeira superfesta que dei foi em 1975 no Centro Cívico do Bronx. Todos nas gangues de rua eram parentes meus. Foi só dar a notícia para a festa lotar. E assim o hip-hop nasceu no sudeste do Bronx. Dava para ouvir de longe. As pessoas vinham de trem, ônibus, táxis, mobiletes... Era eletrizante. Quando ouvia a batida, a moçada começava a gritar. As garotas se arrepiavam, os irmãos piravam. Era uma curtição funky.

Bambaataa ainda acrescenta, explicando a origem de sua popularidade: Nas festas, a gente gravava o que fazia. Com a gravação das fitas, o som chegou até Manhattan, Queens e outras partes.

Ainda sobre o clima das festas: Tínhamos MCs, b-boys e b-girls. Não havia brigas, só dança. Ninguém brigava, a coreografia era de luta.

Similar ao encontro das poderosas Furacão 2000 vs. Cash Box, por exemplo, na década de 80 no Rio de Janeiro, tornam-se um costume entre a Herculoids e a Zulu Nation (nome da equipe de som de Afrika Bambaataa) os confrontos amistosos sobre quem possuía o melhor e mais potente equipamento e mais novidades musicais. Tudo ocorre nos ginásios locais e nos estacionamentos ao ar livre.


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A respeito do breakbeat que, dentre as muitas novidades do hip-hop, é talvez uma das principais, em declaração ao documentário Além do Bronx, o DJ Jazzy Jay relembra: Pegávamos pequenas partes do disco e as aumentávamos para 15 ou 20 minutos. Aí os rappers cantavam sobre elas. Daí vem o termo “rap over”: cantar por cima da batida. Como os nativos e os tambores. Encontramos nossos próprios tambores. Os pratos dos toca-discos.

Em 1990, ao ser homenageado pelo evento “Rapmania Festival”, que ocorre na casa de shows Apollo em Nova York, e na The Palace, em Los Angeles, o DJ Kool Herc relembra em discurso emocionado reproduzido no <zulunation.com>: O primeiro lugar em que eu toquei foi o número 1520 da Avenida Sedgewick. Aquilo lembrava um cômodo do meu apartamento. Como um flautista colorido, os ratos saíam dos tijolos para dançar. Minhas festas na época custavam 25 centavos. Posteriormente, mudei para um salão de festas, depois fizemos uma festa de rua e depois uma festa anual. Quando você vem para a rua e conhece Herc tocando, você nunca mais volta ao velho tempo. Então, fui para um lugar chamado Twilight Zone. Distribuí panfletos por todo o Hevalo, e meus amigos disseram para eu persistir e ir em frente. Eu disse: um dia eu estarei aqui. Então eu fiz a minha primeira festa na Twilight Zone, estava chovendo. Todo mundo veio ao Hevalo, querendo saber o que estava acontecendo. Eles disseram: Herc está tocando na rua. E da Twilight Zone eu fui para Hevalo... E de lá eu fui para um lugar chamado Executive Playhouse na rua 173, no Bronx, ao mesmo tempo em que eu tocava em várias escolas, centros comunitários e parques.

Assumindo as suas raízes naturais jamaicanas, Herc continua: Minhas raízes ‘Muddah’ vêm de St. Mary [uma comunidade na Jamaica]. Um homem chamado George da Jamaica me inspirou. Ele morava na rua Victoria e costumava vir com um grande equipamento de som. Era destruidor, porque era ao ar livre, mesmo quando chovia a festa continuava. A Jamaica me inspirou muito e eu trouxe pra cá para meu estilo de vida.


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Durante a década de 70, torna-se comum entrar nas festas da Zulu Nation e deparar-se com as animações feitas pelos MCs. Cansado da mesmice instalada nas festas, um MC conhecido como Busy Bee, num gesto radical, instaura uma nova maneira de usar as rimas. Surgem então as “batalhas”, desafios em for­ma de rima lançados por um MC a outro, de onde sai vence­dor aquele que fosse mais longe em confrontar o adversário den­ tro do espaço de tempo estipulado. Tal idéia torna o público mais fiel às festas. Em entrevista ao documentário Além do Bronx, Kool Moe Dee, um de seus principais oponentes na época, esclarece: Eu e Busy Bee fizemos a fita de rua mais conhecida. Era uma competição de rap.

Busy Bee, em declaração no mesmo documentário, acrescenta – cantando e falando: Todos sabem quem é Busy Bee. É o número um, o número um. Kool Moe Dee estava lá, ouvindo todos dizerem... Busy Bee é o número um.

Kool Moe Dee então completa: Era uma nova onda, um novo jeito de falar sobre alguém.

DJs e dançarinos surgem em clubes como o Harlem’s World e a Disco Fever. Como uma espécie de “promoção de cargo” no mundo dos DJs e MCs, esses clubes servem também como uma porta de acesso do hip-hop para o mundo externo. A respeito de uma dessas casas (Disco Fever), Grandmaster Flash, explica no mesmo Além do Bronx: A fase um era diversão. Montar um palco em um parque e só tocar, do jeito que vinha. Fase dois: depois de ser respeitado nos parques, tocar nos clubes. Tendo formado um nome conhecido na metrópole, virava herói. O Fever era o clube mais quente da época para ouvir rhythm‘n’blues e hip-hop. Era onde os caras cool se encontravam”.

Durante algum tempo, é comum entrar no Fever e ver figuras do mundo hip-hop como DJ Hollywood, June Bug, Kool Herc, Lovebug


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Starski, Busy Bee, Melle Mel, Sequence, Grandmaster Flash & The Furious Five, Fearless 4, Funk 4 Plus 1, Sugar Hill Gang, Kurtis Blow, Whodini, Run DMC, Kool Moe Dee, The Tracherous 3, Sweet G, Fat Boys, LL Cool J, T La Rock, Spoonie Gee, Doug E Fresh, Cold Crush Brothers e Fantastic Freaks, entre outros artistas lançados lá. Theodore Livingston, um adolescente de 13 anos, mais conhecido como DJ Grand Wizard Theodore, ao mexer no aparelho de som que o DJ Grandmaster Flash emprestara a seu irmão mais velho, acaba girando o disco ao contrário e extrai uma sonoridade diferente do toca-discos. Surge então o scratch (arranhar os vinis em ritmos alternados sobre a agulha do aparelho). Theodore aperfeiçoou o scratch e somente se apresentou em público dois anos mais tarde, no Ballroom, na 3rd Avenue, utilizando duas cópias de Sex Machine de James Brown. Em entrevista ao documentário Scratch, Theodore contou: Um dia, depois da escola, eu estava ensaiando. A música estava um pouco alta, e minha mãe bateu na porta: “se não baixar o volume, vou desligar”. Então, enquanto ela estava na porta gritando comigo, eu continuei girando o disco para frente e para trás. Quando ela saiu, eu pensei: que grande idéia! Então, passei a fazer experiências por um tempo. Com discos diferentes. Quando fiquei feliz com o resultado, dei uma festa e apresentei pela primeira vez o scratch.

Sobre Theodore e seus colegas desta época, Afrika Bambaataa, em entrevista ao programa Yo! MTV Raps, da MTV Brasil, declara: O scratch começou com Grand Wizard Theodore. Ele detonou com tudo, colocou a agulha no disco e fez aquele barulho; todos falaram: “Ele está acabando com o seu disco!” E eu: “O que está havendo?” Mas o som era funky e todos queriam tentar. Acabou pegando. O Flash fez o Master Mix, eu fiz scratch com Jazzy Jay e o Kool Herc fazia outra coisa. Todos estavam com novidades: eu com as batidas, o Herc trouxe os systems e outras batidas, Flash cuidou das mixagens malucas e Theodore fez o scratch. Tudo isso se transformou em cultura hip-hop.


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1976 Até aqui os MCs tinham o costume de bradar palavras de ordem que eram reproduzidas pelo público. Em um ato de criatividade ousada, o quinteto The Furious Five, produzido por Grandmaster Flash, implanta uma linha de versos completos e rimados. Surge a primeira letra de rap.

1977 O DJ Grandmaster Flash organiza oficialmente o Furious Five como um grupo de rap. O grupo é composto por Melle Mell, Kid Criolo, Raheim e Escopio. A respeito do rap, Bambaataa, ainda na entrevista ao Yo! MTV, menciona: Os MCs existem há anos, antes mesmo do hip-hop. Antes havia os disc-jóqueis ou os DJs das rádios falando: você está ouvindo tal som. A sua fala parecia um rap. O rap veio mesmo com Melle Mell e Furious Five. DJ Kool Herc e o Soul Sonic Force faziam um rap com participação do público. Mas as rimas começaram com Melle Mell e o Furious Five. As rimas vieram de histórias infantis ou de Cab Calloway e outros cantores dos anos 50. Depois, veio o rap poético do Last Poets ou dos Watts Poets e o rap político de Malcolm X ou do Ministro Louis Farakhan da Nação Islâmica, e de Mohammed Ali no boxe. Tudo isso era rap, mas quando Kool Herc, eu e Flash nos unimos, o som hip-hop nasceu. Ele sempre esteve presente; neste instante estamos fazendo um rap. Quando Deus falou com Moisés e os profetas ele estava fazendo um rap com eles. Todo mundo faz rap, isso é hip-hop.

Grandmaster Flash é creditado também como o criador das performances batizadas de back to back, doubleback ou back door (alternar nos toca-discos dois vinis – iguais ou diferentes – em tempo muito menor do que o breakbeat, extraindo efeitos surpreendentes); phasing (dois exemplares do mesmo disco sendo expostos com os dois canais do mixer em aberto, tendo as rota-


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ções de ambos os toca-discos controladas à dedo pela lateral do prato ou pelo pitch – graduador de velocidade do toca-discos –, criando um efeito meio “afunilado”) e backspinning (girar com precisão o vinil, na rotação inversa, sobre os toca-discos).

1978 Influenciado pelo canto falado do toast, pela linguagem própria dos guetos nova-iorquinos e pelas críticas politizadas de personalidades como o jazzista Gil Scott-Heron, o rap – ritmo e poesia (rhythm and poetry) nasce. Contudo, sua oficialização viria somente mais tarde, com a popularização do projeto de Grandmaster Flash, The Furious Five. Sobre o nascimento oficial do rap, o DJ, produtor e amigo de Afrika Bambaataa, Arthur Baker, declarou em entrevista ao Jornal da MTV, da emissora brasileira: Eu diria que o rap começou em 1978. Era muito legal, porque se você fosse ao parque, escutaria as pessoas fazendo rap, rimando em cima dos discos, com alto falantes. Foi uma época legal porque era novidade. Vale lembrar! Arthur Baker era proprietário de um estúdio e da bateria eletrônica TR-808, responsável por reproduzir a timbragem pesada que, em 1982, levaria o hip-hop a ultrapassar fronteiras com as descobertas sonoras de Afrika Bambaataa.

Reforçando as palavras de Baker, o ator, apresentador e grafiteiro Fab 5 Freddy, em depoimento ao filme Além do Bronx, vai fundo em sua versão para o nascimento do rap: O rap começou nos anos 70. As gangues de rua do Bronx cansaram-se de se arrebentar em brigas e decidiram canalizar a energia para algo mais criativo: a luta pela supremacia musical.


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Assim como ocorria entre os toasters jamaicanos – que entoavam sua rimas sob as versões dub de reggae –, no rap, os artistas passam a cantar (inicialmente) sobre instrumentais de vinis de funk.

1979 A era da disco music, ou discoteca, surge para atender aos interesses dos grandes empresários da música, inibindo a ação do hip-hop. Considerado “O Suserano do funk”, Afrika Bambaataa inicia uma campanha para manter a autenticidade do funk, que ascendia com o auxílio do hip-hop. Em outubro o grupo The Sugarhill Gang, lança Rapper’s delight, considerado o primeiro single na história do rap. Fato controverso, já que grupo FatBack Band lançara uma semana antes o single de King Tim III Personality, que pode ser considerado a primeira produção de rima completa de rap. O pioneirismo só é atribuído ao Sugarhill devido a uma intensa promoção organizada por Sylvia Robson, empresária do grupo e do selo Sugarhill Records. Sylvia também é considerada a primeira mulher a empresariar um grupo de rap e um selo musical. Rapper’s delight se tornaria um recorde de vendas no fim da década, levando o Sugarhill Gang a um sucesso até então não alcançado por outro grupo no pouco tempo de vida do rap. Ainda sobre o Sugarhill Gang, o rapper Kool Moe Dee, em declaração a Além do Bronx, relembra: Quando o Sugar Hill Gang surgiu, estranhamos. Quem são? De onde vieram? Soubemos que eram de Nova Jersey. Mas Nova Jersey não é nem na área. Nem Manhattan ou Bronx. Que negócio é esse?

Nem só de glórias viveu o Sugarhill: os três rappers do grupo nunca haviam cantado juntos antes. As bases instrumentais foram fornecidas por uma banda de estúdio que não fazia parte da formação original – naquela época, o DJ raramente


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compunha – e Sylvia os reunira apenas para ganhar espaço no mercado fonográfico. Porém, sobre este fato, em entrevista ao documentário Scratch, Grand Wizard Theodore declara: O disco Rapper’s delight inaugurou a era em que os rappers não precisavam de DJ. Se tivessem uma bateria eletrônica, não precisavam de DJ. E muitas gravadoras queriam pagar os rappers, mas não os DJs, porque era a voz dos rappers nos discos. O DJ era considerado dispensável.

E mais: a letra de “Rapper’s delight” é construída com alguns versos roubados do rapper Grandmaster Caz, líder do grupo Cold Crush Brothers. Caz, embora respeitado no meio hip-hop, permaneceria no anonimato e jamais ganharia crédito ou indenização pelos versos usurpados. Controverso ou não, o Sugarhill colaboraria para que o rap fosse percebido não apenas como mais um elemento do hip-hop, mas como algo genial na música do gueto feita por e para jovens negros sem oportunidades. Kool Moe Dee ressalta: Rappers assim começaram a gravar. Depois foi Sweet G Rap, Kurtis Blow... Percebemos que podíamos gravar discos. Depois foi o Funk 4.

Em dezembro, Curtis Walker, mais conhecido como Kurtis Blow, natural do Harlem, assina contrato com a Mercury Records e torna-se o primeiro rapper a controlar parte significativa de um grande selo. É fundada na mesma época a gravadora Enjoy Records, responsável pela divulgação de grupos memoráveis como o Funky Four, composto por Jazzy Jeff, Lil’ Rodney Cee (dançarino do grupo de street dance Magnificent Seven), DJ Breakout e Baron. O hip-hop cresce com uma velocidade impressionante e, como a música rap sempre estivera à frente do processo de evolução do movimento, ele ainda não tem sua programação autêntica difundida em rádio. Para preencher esse lugar, o DJ Mr. Magic


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cria o primeiro programa de rap do país, na rádio WHBI-AM, em Nova York. Enquanto isso, Lady B, natural da Filadélfia, começa a demarcar territóruio feminino diante do microfone com seu primeiro single, To the beat y’all. Ela também é responsável por formar a rádio WHAT 1340 AM, estabelecendo oficialmente, através das ondas de rádio, o hip-hop na Filadélfia. É também uma das primeiras mulheres do rap a assinar contrato com uma gravadora – no seu caso, a TEC Records. Mais tarde ela passaria a fazer parte da Sugarhill Records, chegando a participar de uma série de compilações da gravadora. A rádio WHAT daria o pontapé inicial na carreira de artistas como Public Enemy, Poor Righteous Teachers, King Sun, Jazzy Jeff & Fresh Prince, MC Breeze, Schoolly D, 3X Dope e Cash Money entre outros. Por isso Lady B é tida como a personalidade de rádio mais influente da história do hip-hop. “To the beat y’all” seria um dos raps de vocal mais executados durante o ano seguinte.

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Década de 70. Procurando o traço certo Admite-se que o grafite é a arte mais antiga do mundo. Surgido na pré-história como narrativas pintadas pelo homem nas paredes das rochas, seu nome originário vem do italiano grafito, e pode ser considerado também a primeira forma de escrita. Para entender melhor o grafite, deve-se primeiro compreender que toda ou qualquer inscrição feita na parede está diretamente relacionada com essa arte. Cabe ressaltar que desenhos ou inscrições impressos em papel, tela ou outro meio não são considerados autênticos grafites. A graffiti art viajou ao longo das eras arrebatando para si sempre novos adeptos, responsáveis por sua diversificação de esti-


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los. Contudo, procuremos entender sua origem como cultura urbana assumida.

O nascimento de uma arte urbana (1966-71) O grafite é assumido inicialmente por meio de manifestos de ativistas políticos na França, Itália e nos próprios EUA, em movimentos pela paz, como os dos hippies, e por gangues de rua nas demarcações de seus territórios. Embora algumas referências históricas se reportem aos Cholos,3 de Los Angeles, durante os anos 30, ou às assinaturas dos Hobos4 como sendo os primeiros vestígios de grafite nos EUA, a compreensão dessa arte como movimento urbano se faz somente na Filadélfia, Pensilvânia, em meados dos anos 60, através da ação que ficou conhecida como “bombardeio” (bombing), pelos traços dos grafiteiros Cornbread e Cool Earl, detectados pela população e imprensa locais.

Atitude Pioneira (1971-74) Um pouco depois da Filadélfia, é a vez do bairro de Washington Heights, Manhattan, ascender no mapa do grafite. Em 1971, o jornal The New York Times publica um artigo sobre os escritores das ruas de Washington Heights, como Taki 183, apelido de um jovem de nome original Demetrius. O número 183 refere-se ao número da rua onde vivia. Por trabalhar como officeboy, Taki consegue decorar o interior dos vagões do metrô com o maior número de assinaturas possível. Rapidamente o apelido se torna sensação entre os jovens. Revelam-se, em seguida,

3 Espécie de gangue de rua de descendência latina cujo nome refere-se aos imigrantes pobres do Peru. 4 Andarilhos que percorriam os Estados Unidos, pulando de uma cidade para outra clandestinamente, nos vagões de trem durante a Grande Depressão.


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nomes como Julio 204, Frank 207 e Joe 136, considerados também precursores dos bombardeios em Nova York. Mesmo com o surgimento de outros nomes, Taki 183 é tido como o “rei dos bombardeios”, pela grande quantidade de nomes assinados nos vagões de metrô. Essa forma de expressão é identificada como subway art (arte do metrô). O grafite se expande e chega ao Brooklyn. O primeiro nome a se destacar por lá é o de Friendly Freddie. Todo o sistema de metrô se torna um poderoso divulgador da nova arte de rua. É através dele que os grafiteiros dos cinco municípios nova-iorquinos tomam conhecimento uns dos outros, passando a gerar uma concorrência acirrada, das ruas ao metrô. A pichação (tag) torna-se o primeiro traço do grafite. O bombing ainda não era interpretado como uma modalidade da cultura grafiteira. A tag se populariza a ponto de se tornar previsível. Nasce assim a necessidade de diferenciar as formas de expressão do grafite. Estrelas e outros desenhos passam a fazer parte da ornamentação do grafite. Formas complexas dão vida às letras, quase sempre ilegíveis. Os que se consideram reis no estilo adicionam o desenho de coroas em seus bombardeios. Stay High 149 é creditada como a tag mais original da época, por acrescentar na barra do ‘H’ de seu nome um anel de fumaça, referindo-se ao seriado de TV The Saint.

Do Primitivo ao Moderno Os grafiteiros começam a fazer tags numa proporção maior, mas a largura da abertura da válvula (caps) das latas de spray é estreita e o efeito visual inicialmente desejado não é obtido. A partir de então, passam a usar válvulas de outros produtos aerosol com aberturas mais largas para obter o sucesso espe-


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rado. Este novo estilo de traço motivou os escritores a adicionarem mais de uma cor aos trabalhos, antes monocromáticos. Quanto aos traços mais modernos de tag, Super Kool 223, do bairro do Bronx, e Wap, do Brooklyn, são vistos como os autênticos popularizadores do estilo. A possibilidade de um traço mais grosso não só permitiu uma exposição mais visível dos nomes, que chegavam a ocupar até um vagão inteiro, como também incentivou a exploração do preenchimento decorativo dos interiores das letras com estrelas, tabuleiros de dama etc. Super Kool 223 é considerado o primeiro artista a grafitar sua tag em toda a extensão do lado externo do vagão do metrô. Apesar das muitas evoluções apresentadas, a forma primitiva do tag não fica ultrapassada, pelo contrário, ela continua fazendo parte do painel elaborado dos grafiteiros como um detalhe fundamental. No período, Hondo 1, Japan 1, Moses 147, Snake 131, Lee 163d, Phase 2, Pro-Soul, Tracy 168, Lil Hawk, Barbara 62, Eva 62, Cay 161, Junior 161 e Stay High 149 são os writers de maior popularidade do meio. O piece se torna a mais recente novidade após o tag. Na Filadélfia, o escritor Topcat 126 cria o broadway style. As competições continuam e originalidade torna-se o termo mais badalado entre os grafiteiros, que passam a brincar cada vez mais com o formato de suas letras, inclinando-as. Muitas vezes não fugindo do conceito inicial, o blockbuster, caracterizado por letras do piece com sombreado em preto e preenchimento das letras em branco, transforma-se numa das intervenções de bombardeio mais requisitadas entre os escritores. O grafiteiro Phase 2 avança em suas experimentações criando o soft, conhecido originalmente como bubble letter, identificado ao lado do brodway style, como uma das primeiras modifica-


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ções de adornos dentro do estilo piece, que mais tarde agregaria outras ornamentações como setas, cachos, conexões e torções; todos influenciadores do mechanical ou wild style, estilo que surgiria muito em breve. O estilo criado por Phase 2 se torna uma das referências principais dos artistas do metrô. Nomes importantes como Riff 170 e Pel colocam em prática suas criações. Riff traz a público o war style, incentivando Flint 707 e Pistol, que optam por uma estética mais tradicional. Mesmo adquirindo grande notabilidade, o grafite ainda não é percebido como uma expressão artística de nível. Para tentar reverter esse quadro, Hugo Martinez, sociólogo da Universidade de Nova York, impressionado com o valor contido na essência do grafite, funda a United Graffiti Artists (União dos Artistas do Graffiti). A UGA atuaria selecionando, por toda a cidade, escritores do metrô, para expor seus trabalhos numa galeria de arte, a The Razor Gallery, que passa a ser o pólo de reconhecimento dos grafiteiros como autênticos artistas de rua. A Razor Gallery definiu Phase 2, Mico, Coco 144, Pistol, Flint 707, Bama, Snake e Stitch como os principais protagonistas deste feito. Em 1973, o repórter Richard Goldstein publicaria o artigo The Graffiti Hit Parade (“A Parada de Sucesso do Graffiti”) na revista New York Magazine, potencializando o sucesso dos grafiteiros. Em 1974 surgem, em meios às letras elaboradas, fundos de paisagens, ilustrações diversas e desenhos caricatos através dos traços dos escritores Tracy 168, Cliff 159 e Blade One. Por ser mais detalhista, o novo estilo seduz os grafiteiros a trabalharem com uma quantidade maior de latas em cores variadas e a explorarem todo a extensão do vagão, legitimando a prática whole car.

Graffiti-art no topo (1975-77)


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O ano de 1974 foi fundamental na caracterização dos estilos de grafite. A partir de 1975 uma nova escola surge e passa absorver todo o conceito gerado por seus antecessores. Nova York atravessa um momento de crise financeira acarretando fortes declives em diversos setores da sociedade. O sistema ferroviário é afetado por problemas de segurança. Dessa forma, a quantidade de bombardeios cresce e torna-se a maior da história da subway art. A prática do whole car ganha destaque e o throw-up (estilo derivado do piece decorado com bolhas, as bubble letters, produzido em esboço simples, porém mais apressado e pouco preenchido no interior de suas letras) se torna o estilo mais usado. Ávidos pela promoção de seus nomes, os grafiteiros se esforçam para deixar sua marca por todos os vagões, que serviam como uma espécie de outdoor ambulante. Entre os sistemas de metrô do IND (Independent Subway) e BMT (Brooklyn Manhattan Transit), crews como POG, 3yb, BYB TC e TOP se sobressaem em suas intervenções em throw-up. Os grafiteiros Tee, Iz, Dy 167, Pi, In, Le, To, Oi, Fi, também conhecido como Vinny, TI 149, CY e Peo se tornam os reis da arte do metrô por colecionarem o maior número de grafites reproduzidos. A cena do grafite continua em grande expansão com mais nomes surgindo a cada momento. Butch, Case, Kindo, Blade, Comet, Ale 1, Doo 2, John 150, Lee, Mono, Slave, Slug, Doc 109, e Caine One se tornam os criadores de throw-ups mais sofisticados valorizando ainda mais o estilo através de reproduções em whole car.

Sofisticando o traço (1978-81) Nova York se ergue de sua crise fiscal e passa a investir na reestruturação dos seus muitos setores sociais. Enquanto isso, no fim de 1977, as crews TDS, TMT, UA, MAFIA, TS5, CIA, RTW, ROC Stars, TMB, TFP, TC5 e TF5 dedicam-se à


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elaboração de novos estilos de grafite, estimulando novamente as batalhas para eleger o melhor e mais criativo de todos. Na Broadway, Chain 3, Kool 131, Padre, Noc 167 e Part 1 dão continuidade a estilos já desenvolvidos por Phase 2, Riff 170 e Pel. Chain se encarrega de manter suas intervenções nas composições das linhas 2 e 5 juntamente com sua crew (TMT), enquanto a CIA, fiel às origens, procura manter a tradição do style war, dando destaque ao escritor Dondi.5 A antiga escola funde-se à nova em competições ainda mais acirradas e as crews demarcam seus territórios. Nomes como Case 2, Kel 139, Mare, Comet, Repel, Cos 207, Duro, Min, Shy 147, Kade 198, Fed 2, Revolt, Rasta, Zephyr, Boots 119, Kit 17, Crash e Daze são identificados como veteranos ainda em plena atividade. Lee, Caz 2, Iz, Slave, Ree, Dondi, Blade e Comet se atêm a duelos de whole car. Seen, Mad, PJ e Dust cuidam da linha 6 produzindo whole cars mais sofisticados. Mitch 77, Ban 2, Boo 2, Phody, Max 183 e Kid 56 investem suas obras na linha 4. O grafiteiro Fuzz One pode ser reconhecido como o campeão de intervenções, deixando sua marca em todas as sete linhas da IRT (Interborough Rapid Transit). As crews CIA, TB e TKA são creditadas como as organizações que atuam na preservação do grafite nas BMTs (Brooklyn-Manhattan Transit). Em 1979, os grafiteiros Lee Quiñones e Fab 5 Freddie são convidados pelo empresário de artes Claudio Bruni para visitar Roma. A viagem de ambos significa o reconhecimento da graffiti art em galerias de arte respeitadas como Esses Studio, Stephan Eins’ Fashion Moda e Patti Astor’s Fun Gallery. Essas galerias passam a expor, logo no ano seguinte, trabalhos de diversos grafites, fomentando um intercâmbio entre artistas de rua e outros artistas plásticos. A atitude de Bruni leva alguns empresários europeus do ramo de arte, a investir no movimento, realizando

5 Nome inspirado em personagem do popular cartunista nova-iorquino Vaughn Bodé.


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exposições que revelam ao mundo nomes como Dondi, Lee, Zephyr, Lady Pink, Daze, e Futura 2000. Em 1980, plenamente restabelecido, o sistema de metrô de Nova York recebe uma atenção mais eficaz por parte das auto­ri­dades de transporte. O serviço de manutenção que ga­ran­te a lim­peza dos vagões torna-se grande obstáculo para os grafi­tei­ros. Alguns resolvem até mesmo abandonar a prática nos subways.

Resistindo às duras provas (1982-85) A cocaína conquista os guetos. Durante parte dos anos 80, o grafite é colocado em questão tendo sua identidade confundida com a prática das gangues de rua: a venda de latas de spray é proibida por lei para dificultar as demarcações de território de gangues criminosas que, coincidentemente, utilizam tags para se identificar. Como se não bastasse, a MTA (“Metropolitan Transportation Authority”, ou Autoridade de Transporte Metropolitano) aproveita a situação gerada para investir maciçamente no controle do sistema de metrô, impedindo por completo a ação dos grafiteiros nas linhas. Cercas são instaladas para impossibilitar o acesso dos grafiteiros e, imediatamente reparadas em caso de danos. A fiscalização acirrada contribui para que muitos artistas desanimem e abandonem o grafite permanentemente. Mesmo assim, muitos persistirão, buscando a superação dos desafios. O ambiente hostil faz crescer certo territorialismo entre os artistas, que passam a defender seus espaços ao longo das jardas do metrô com unhas e dentes, bem aos moldes das gangues criminosas. É importante ressaltar que as demarcações de território sempre existiram. O diferencial dessa época é que a força física passou a ser utilizada para repelir a invasão do intruso. Além disso, muitas vezes apreendia-se o material de pintura do membro de outra crew.


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Instauram-se então os conflitos: de um lado a pressão da MTA contra todos os grafiteiros, sem exceção; de outro, grafiteiros digladiam-se entre si utilizando os túneis ou jardas abandonadas para suas disputas territoriais. Dentre os muitos incidentes registrados nessa época, talvez o mais famoso seja o das crews CAP e MPC contra a The World. Destacam-se nesse duro período os grafiteiros Skeme, Dez, Trap, Delta, Sharp, Seen TC5, Shy 147, Boe, West, Kaze, Spade 127, Sak, Vulcan, Shame, Bio, Min, Duro, Kel, T Kid, Mack, Nicer, Brim, BG 183, Kenn, Cem, Flight, Airborn, Rize, Jon 156, Kyle 156 e X-Men, por resistirem heroicamente em prol da preservação do grafite.

A queda e a resistência do grafite (1985-89) Devido à eficácia do serviço de manutenção nos vagões e jardas a remoção dos grafites se torna menos freqüente. O último grande bombardeio registrado é feito pelos escritores Wane, Dero, Wips, T Kid, Sento, Cavs e M Kay. Eles escolhem as linhas 2 e 5 para pintar whole cars à base de “canetão”, em vez de spray – mais tradicional e mais caro –, decorando com tags o interior dos vagões, suas laterais externas, portas e janelas. Vale lembrar! As tags podem não apresentar o mesmo valor artístico representado pelos grafites mais elaborados. No entanto, se assim não fosse, certamente, em questão de tempo, não haveria vestígio da presença desses artistas dos subways e a história do graffiti art seria velada e extinta.

A MTA torna-se ainda mais potente em sua batalha contra o grafite, em meados de 1986. Percebendo seu real inimigo, muitos grafiteiros cessam seus conflitos. As linhas D, B, L, J e M são as últimas com obras em piece, enquanto as demais permanecem limpas e fora do alcance dos escritores. Magoo, Doc, TC5, Dondi,


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Trak, Dome e DC, são alguns nomes que ainda se pode perceber circulando. A polícia do metrô dobra seu efetivo de segurança e um braço ainda mais radical de grafiteiros se levanta em resistência às intervenções das autoridades: Ghost, Sento, Cavs, Ket, JA, Ven, Reas, Sane e Smith são os protagonistas desse levante.

Vagões limpos: surge a era do The Clean Train Moviment (1989) Em 12 de maio, a MTA declara sua vitória sobre o grafite. Todos os vagões grafitados são recolhidos. Objetivo: nenhum grafite à vista. Nasce então o que ficou conhecido por The Clean Train Moviment (O Movimento do Trem Limpo). Mesmo assim, muitos escritores resistem às investidas da MTA e, embora in­ten­ samente reprimidos, persistem grafitando em vagões. Cope 2, Sento, Põem e Yes 2 destacam-se pela coragem e ousadia. Vale lembrar! Dentro da cultura grafite, até então, um vagão de metrô decorado representava toda a autenticidade de um escritor de grafite, enquanto muros, vagões de trens cargueiros, sucatas e telas se restringiam aos falsos.

Um movimento introduzido em outro movimento Nos anos 80 o hip-hop atinge uma popularidade até então nunca alcançada. Videoclipes exibem os elementos do hip-hop popularizando a nova cultura do gueto entre os jovens da época. MCs, b-boys, e grafiteiros reúnem-se em eventos como as block parties para apresentar ao público suas habilidades e dividir experiências. Embalados pela magia do hip-hop, jovens de fora da cidade de Nova York organizam-se e começam a pintar trens de carga, onde a segurança era menos intensa. Estes artistas ficaram


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conhecidos pelo termo Freight Writers (Escritores de Carga). Cavs, Sein 5, Sento, Case 2, Zephyr e Mone são alguns dos pioneiros dessa nova intervenção. A prática de pintar fora dos metrôs, vista como abominável pelos escritores de Nova York e inadmissível pela cultura do grafite daquele período, passa a ser o principal veículo de propaganda dos escritores de outras partes do país. Tal acontecimento ficou conhecido como “West Coast Phenomenon” (“Fenômeno da Costa Oeste”). Percebendo a criatividade dos novos grafiteiros, os escritores dos subways deixam seus preconceitos de lado e partem para a prática da decoração dos trens de carga.

O grafite é percebido novamente em todo o planeta O hip-hop se espalha pelo mundo e os grafiteiros nova-iorquinos voltam a receber convites das galerias de arte européias. Os jovens europeus fascinam-se com a cultura plástica dos subways. É lançado em 1982 o filme Style Wars, de Tony Silver e Henry Chalfant e, logo após Wild Style, de Charlie Ahearn – considerado um clássico cinematográfico da cultura hip-hop e a principal referência do movimento europeu em formação naquele período. Os pesquisadores Henry Chalfant e Martha Cooper publicam em 1984 o livro ilustrado Subway Art, considerado até hoje a “Bíblia do grafite”. Em 1987, Henry Chalfant publica, desta vez em parceria com James Prigoff, o livro Spray Can Art, que retrata dessa vez a ação impactante do grafite por todo o mundo. A geração européia mantém intercâmbios com grafiteiros americanos almejando intervenções na “Meca do grafite” (Nova York). O mesmo ocorre com os grafiteiros nova-iorquinos, que passam a visitar a Europa. Por considerarem os americanos ícones da cultura grafiteira mundial, os europeus oferecem aos seus ídolos privilégios como a cobertura das despesas de passagens aéreas, estadias e até material de pintura. Em pouquís-


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simo tempo os trens da Itália e da Alemanha são transformados em réplicas fiéis do sistema de metrô de Nova York.

Sucatas tornam-se forte opção diante das dificuldades No final dos anos 80, a MTA havia retirado todos os vagões das três divisões do sistema de metrô. Os carros viram sucata em um pátio no bairro do Brooklyn. Muitos grafiteiros, buscando deixar suas marcas como lembrança de uma época próspera, passam a pintar os vagões abandonados. Alguns o fazem apenas por diversão. Eles acreditavam que não seriam incomodados pela segurança metroviária por se tratar de sucatas. Mas a polícia intervém e o número de artistas das sucatas diminui drasticamente.

Grafiteiros buscam espaço nas rodovias A cada momento torna-se mais difícil grafitar no metrô. Os grafiteiros descobrem nas rodovias, um novo espaço de exposição de seus trabalhos. Com o tráfego intenso de automóveis, elas tornam-se um eficiente veículo de propaganda. A prática dos bombardeios rápidos é ressuscitada, trazendo à tona os throw-ups e tags. OE e P13 são os autores dessa façanha; logo Cope 2, PJ, Trak, Méd e Fayde seguiriam seu exemplo.

A antiga escola do grafite e incorpora-se à nova Movidos pela ousadia da nova geração, muitos veteranos retomam a atividade. As crews RTW, TDS, TFP e TMB são as primeiras a reiniciar suas intervenções incentivando o retorno de todos nos cinco municípios nova-iorquinos. O Bronx reassume a liderança em murais detalhistas reproduzidos pelas crews FX, KD, e TAT.


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Já que a MTA continua a postos com sua vigilância voltada para os grafiteiros, os rooftops (grafites reproduzidos nos topos de prédios) tornam-se uma prática alternativa para os escritores que preferem os edifícios com vista para as linhas do metrô. Nesta nova modalidade, o escritor Nato ganha projeção no bairro do Queens, enquanto que Cope 2 destaca-se no Bronx.

O grafite moderniza sua agência de notícias Desde o surgimento do grafite em Nova York, todos os registros do movimento foram produzidos pela imprensa não-especializada. Em 1988, o grafiteiro Phase 2 decide publicar o zine International Graffiti Times, visando manter intercâmbio com o maior número possível de artistas e legitimar a cultura grafite por meio de uma imprensa saída do próprio movimento. O material conta com a colaboração de alguns grafiteiros como colunistas, mas mesmo assim, grande parte dos artistas não entende as razões de Phase, alegando que ele estava apenas tentando ganhar fama. As críticas são fortes e o slogan “real writers bomb trains, not magazines” (“escritores de verdade bombardeiam trens, não revistas”) é criado, em repúdio ao seu projeto. Em 1989, o grafiteiro San 2, conhecido também como Carl Weston inicia a gravação da série underground Videograf, considerada o primeiro documentário a retratar cruamente a realidade do grafite enquanto “arte proibida”. Em 1994, é criado o primeiro website a retratar as intervenções do grafite, o <www.graffiti.org>. Nos anos subseqüentes, a Internet seria bombardeada por um número incalculável de páginas do mundo inteiro sobre o tema.


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Vocabulário 3D – um dos mais sofisticados estilos de grafite. Desenvolvido já no fim dos anos 80, é o “Salvador Dali” do grafite, com suas letras e desenhos tridimensionais, compreensível, muitas vezes, apenas para quem é do meio; All City – grafiteiro que escreve por toda a cidade. Bite – grafiteiro que não é autêntico, copiador de idéias de outros writers; Blockbuster – grafite composto por letras grandes e quadradas, ligeiramente inclinadas, normalmente produzido em duas cores; Bomb – toda e qualquer ação rápida de grafite produzida na parede. Devido ao risco iminente, bombardeios assim são geralmente retratados nos estilos tag e throw-up. O bomb é uma ação muito comum entre os pichadores e uma parcela diminuta de grafiteiros que gostam de desafiar o perigo; Burner – um piece em destaque; Cap – válvulas do spray, responsáveis por gerar as proporções de traços; Crew – gangue ou turma de grafiteiros, mas também de b-boys, MCs, DJs e rappers; Kill – o ousado dos bombardeios, constantemente em atividade por toda a cidade; King – o melhor grafiteiro, inspiração de todos; New School – os pertencentes à Nova Escola da cultura hip-hop e do grafite; Old School – os pertencentes à Velha Escola da cultura hip-hop e do grafite;


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Piece – baseado na estética hippie, este estilo pode ser considerado um dos primeiros na escala evolutiva do grafite em Nova York. Ao contrário do throw-up, suas letras e desenhos são elaborados e há liberdade quanto ao número de cores usadas. Bastante apreciado pela facilidade de interpretação; Piece Book – material para desenho como cadernos e agendas, utilizados pelos writers em esboços e/ou assinaturas destes e de amigos; Silver Piece – similar ao piece, porém elaborado à base de tinta cromada; Tag – assinatura feita à base de spray ou “canetão” (caneta hidrocor de ponta grossa, específica para o manuseio dos grafiteiros). Considerada a assinatura do writer. É também vista no formato de frases que complementam um desenho ou um outro estilo de letra. Quando utilizada negativamente, ela pode ser interpretada como o que conhecemos por “pichação”; Throw-up – estilo de pintura elaborada de forma rápida, sem muitos detalhes – que simula algo proibido como a pichação –, à base de duas ou três cores, reproduzida por rolos para encher as letras e desenhos e sprays para contornos; Top to Bottom – quando um vagão de trem ou metrô é pintado de cima a baixo; Toy – o aproveitador de situação. Aquele que não respeita os fundamentos da história do grafite, tampouco do hip-hop, além de ser um péssimo artista; Whole Car – quando um lado inteiro do vagão é pintado; Wild Style – letras complicadas, entrelaçadas, coloridas, elaboradas em formas mais agressivas; Writer – o escritor das paredes, o grafiteiro;


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“É importante ressaltar que a autêntica escola da grafite spray can art zela pela história da cultura hip-hop – ‘respeitando para ser respeitado’ – além, é claro, de exigir de todos o saber abrangente que permita ao writer exercer o domínio dos tags, throwups, pieces etc., fazendo-o ter a consciência de que nunca é o bastante. O capricho, o contexto, o estilo e o equilíbrio da pintura (mesmo num formato simples) são fundamentais para se caracterizar um verdadeiro writer”.6

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EUA, década de 70. Definindo os movimentos Ao contrário do que se imagina, o break não é a única dança na cultura hip-hop. Muitos dos movimentos que compõem as coreografias de rua estão caracterizadas em outros estilos, descritos a seguir:

Up rocking (Brooklyn, 1967-68) Durante os anos 60 e 70, o bairro do Brooklyn é tomado pela presença das gangues de rua. Rubberband Man e Apache, ambos oriundos de Bushwick – parte de cima do Brooklyn –, crescem em meio à crueldade de gangues locais como a Devil Rebels. Embora mantenham uma boa relação com essas gangues, suas intenções na vida são outras. Grandes entusiastas da dança, em especial ao som de soul e funk, eles desenvolvem uma coreografia autêntica, baseada em sua realidade, denominada rocking. Para praticá-la, a dupla utiliza as próprias calçadas do bairro, atraindo a atenção da vizinhança. Ao som de seu rádio, eles misturam movimentos que variam de passos de Fred Astaire, Gene 6

Retirado do livro Subway Art, de 1984, de Henry Chalfant e Martha Cooper.


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Kelly e salsa, a alguns movimentos extraídos do rock n’roll. Mais à frente o hustle (dança popular da região), outros movimentos corporais (jerks) e das mãos (burns), que simulam um confronto entre dois adversários (dançarinos), se fundiriam à nova dança. Muitos membros de gangues abraçam a novidade, dando início a uma espécie de “luta ritmada” (rock contest) em que os movimentos se aceleram de acordo com a trilha sonora. Em meados dos anos 70, o rocking deixa de ser visto como uma dança exclusiva das gangues, tornando-se algo tão popular e acessível a todo o bairro, que chega a ser uma prática comum nas teen dances e block parties da região. Embalados pela energia do rocking, surgem nesse período os primeiros campeonatos do gênero promovidos pelo produtor de eventos Crazy Rob. A partir daí, o Brooklyn se transforma numa espécie de Coliseu onde vários dançarinos se confrontam em verdadeiras “batalhas de dança”. Devido à sua grande popularidade, o rocking acaba sendo confundido com uma dança do gênero musical rock (ou rock n’ roll). Para que não haja essa troca de identidades, a dança é rebatizada com a adição da preposição “up”, passando agora a ser identificada pelo nome up rocking. Contagiados, muitos jovens organizam suas crews para as competições: Touch of Rock, Nasty Rockers, Mysterious Rockers, MTC, Jigabugs, Dynamic Spinners, Non Stop, Rockers, All Star Rockers, Symphony Rockers, IND Dancers, Supreme Rockers, Down to Rock, Fast Rockers, Disco Rockers, Fantasy Rockers, Just Begun Rockers, Romantic Rockers, Holy Rock Smokers, Lil Dave Rockers, Rock With Class, Universal Dancers, One On One Rockers, Touch of Class, Phazzic Rockers, Explosive Rockers, Floor Master Dancers, Out to Burn, Out to Rock, Born to Rock, Born to Burn, TNT Rockers, Incredible Rockers, Latin Timbales, Galaxy Rockers, Unique Rockers e Majestic Rockers são as primeiras equipes de que se tem informação. Ao contrário das disputas das gangues criminosas, a intenção das batalhas era pacífica. Poém, em certa ocasião, Rubber-


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band apostou a namorada de seu adversário como prêmio. Ao reivindicar seu troféu por ganhar a batalha, Rubberband Man é baleado pelo namorado ciumento – que logo foge do clube onde competiam – e morre. É o fim trágico de um dos criadores da dança de rua do Brooklyn.

Dynasty Rockers: o espelho do up rocking Mais e mais crews se organizam à medida que o up rocking se torna poderoso. Em 1973, a dupla de dançarinos Danny Boy (Danny Negron) e Carlos Perez idealiza a crew Dynasty Rockers, composta ainda por Manny Figueroa e Eddie Figueroa. Eddie fora aprendiz de Rubberband Man e repassa seus ensinamentos a Papo, Clarck e Manny, que os desenvolvem em tributo póstumo a um dos pais do up rocking. A Dynasty Rockers passa a se destacar mesmo no meio graças à dedicação de Danny Boy, Carlos Perez, Ralph Casanova, Tony e Gary Crumb. Várias novas crews se formam a partir de sua influên­cia: Junior Dynasty Dancers e Girl Dynasty Dancers são as crews que sobressaem, colaborando para manter vivo o nome da Dynasty Rockers e, conseqüentemente, o up rocking. O momento é de inovação e as crews mais jovens criam termos, como rockers e colors (utilizadas para identificar crews individuais), que tornam-se parte do dialeto urbano do Brooklyn. Em depoimento ao site <dynastyrockers.com>, o renomado King Uprock relembra: Nós usávamos camisetas ou jaquetas e pusemos o nome da nossa crew nas costas em forma de círculo. As camisetas, jaquetas e suéteres tinham nossas cores e as letras tinham o nosso Rockers.


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Vale lembrar! Nessa época, o Brooklyn era marcado pela presença das gangues que, em sua maioria, se organizavam em grupos de motos. Elas influenciaram intensamente a indumentária e o comportamento dos dançarinos de up rocking.

O Up Rocking é reconhecido oficialmente como dança (fim dos anos 70 – início de 80) King Uprock estabelece regras que definem o up rocking como dança típica de sua região. Orientado por advogados, ele realiza campeonatos, agora federados, para avaliar as crews candidatas. Mulheres e dinheiro continuam sendo os principais atrativos de recompensa nas batalhas. Um diferencial interessante na nova regra é que a crew derrotada corre o risco de perder seu uniforme e o seu nome de batismo. Dentre os muitos campeonatos realizados no Brooklyn entre os anos 70 e 80, o The King Up Rocking é o maior de todos os eventos. Ralph Casanova torna-se o campeão da primeira edição, em 1980.

A morte súbita do Up Rocking (final dos anos 80 – início de 90) Do bairro do Bronx, uma nova dança passa a ocupar posição de destaque entre as muitas formas de expressão corporal de rua em meados dos anos 80: a break dance. Em destaque na mídia devido à sua presença em filmes como Wild Style e Breakin’, a break dance transforma-se na mais nova atração dos jovens dançarinos do Brooklyn. O up rocking é esquecido, mas o passo top rock, introduzido nos movimentos da break dance, permanece vivo. Mesmo assim, há quem questione que o top rock seja originalmente uma coreo­ grafia do up rocking.


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A luta pela preservação do up rocking No início dos anos 90, dois b-boys, Numbers e Burn One, inconformados o desaparecimento do up rocking, iniciam no Brooklyn uma busca pelos autênticos up rockers (ou simplesmente rockers). Finalmente nomes como King Uprock, Clark, Lil Dave, Noel, Cuz, Buz, Duz, Diana, Danny Boy, Lil Ed, Lucan, Manny, Carlos Casanova, Jefferey, Gary Crumb, Lil Tito, Lil Bebop, Gee, Disco Ed, Mr Loose, Rocky Nelson e Chino, entre outros tantos dançarinos, são localizados e incentivados a retornar à ativa. Eventos importantes como o aniversário da Zulu Nation e o “B-boy Masters Pro-Am” tornam-se acolhedores do up rocking, reconhecendo-o como expressão típica do Brooklyn e do hip-hop. Atualmente, a crew Dynasty Rockers conta com King Uprock (que dirige o grupo como líder e professor), Numbers, Break Easy, Seamstar, Danny Boy e Antonio, membros ativos responsáveis pela preservação das tradições do up rocking no Brooklyn e no hip-hop por outros lugares. Numbers e New Danny Boy, por exemplo, moram em Las Vegas; Seamstar trabalha como DJ na Flórida e Antonio reside na Suíça. Embora sua formação esteja um tanto pulverizada, o compromisso da Dynasty Rockers é manter viva a identidade do up rocking para as novas gerações.

Locking (Los Angeles, 1969) A série de TV Perdidos no Espaço, de Irwin Allen, no ar desde 1965, é sensação em todos os EUA, permanecendo em exibição até 1968. Na série, um personagem robô torna-se a referência principal dos adolescentes dos subúrbios de Los Angeles para o desenvolvimento de uma dança especial: the robot (ou “o robô”). Os movimentos do robô da TV são copiados e reproduzidos de forma dançante ao som de gêneros como o funk. A eles incorporam-se movimentos de pés como o goodfoot, criado por James Brown.


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Ainda em 1969, o dançarino Don Campbell, de Los Angeles, cria a dança the campbellock, campbellocking ou simplesmente locking, como é popularmente conhecida. Para formá-la, Don fundiu os movimentos de robô aos passos do tap-flash dance (espécie de sapateado) e expressões faciais cômicas. O locking arrebata seguidores e crews específicas começam a se formar por toda Los Angeles. Em 1973, Don Campbell organiza sua crew, The Lockers, formada pelo próprio, Fred “Rerun” Berry (que interpretava também o personagem Fred “Rerun” Stubbs na série de TV What’s Happening!, 1976-79), Greg “Campbellock Jr.” Pope, Adolfo “Shabba Doo” Quiñones, Bill “Slim the Robot” Williams e Leo “Fluky Luke” Williamson. Vestindo meiões listrados, calças cavilhadas com limitações até os joelhos, camisas coloridas e brilhantes de cetim, colares grandes, gravatas de laços coloridas, chapéus gigantes de apple boy7 luvas brancas e calçando sapatos de salto plataforma, a The Lockers representa o modelo típico do locking.

O reconhecimento do locking como dança (1972) Toni Brasil, uma renomada atriz e coreógrafa, famosa por organizar espetáculos como Shindig e Hullaballoo encanta-se ao conhecer a dança do The Lockers. Além de integrar-se à crew, dominando rapidamente sua coreo­ grafia, Brasil torna-se uma espécie de empresária do The Lockers elevando-os a um reconhecimento de âmbito internacional. O programa humorístico Saturday Night Live, que costuma exibir um quadro musical no final de cada episódio, é um exemplo vivo do reconhecimento da qualidade do The Lockers, que aceita de imediato o convite para uma apresentação. Outro programa de TV, o Soul Train, insere o locking na coreografia de

7 Personagem de menino pobre, vendedor de maçãs, inspirado em trabalhos do pintor realista sueco Carl Larsson.


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sua companhia de dança. Logo, comerciais como o da cerveja canadense Schlitz Malt Liquor Beer perceberiam também o valor da crew. A casa Crenshaw Flasts, no Crenshaw Boulevard, em Los Angeles, torna-se então o principal ponto de encontro dos dançarinos do Soul Train e lockers em geral.

Popping: uma história baseada no locking (Fresno, Califórnia, 1972-73) Enquanto a break dance de Nova York ganha popularidade a passos largos pelo país, o popping, dança derivada do the robot, ganha também seu espaço ao sul da Califórnia. Fresno é uma pequena cidade entre Los Angeles e San Francisco, lar de Boogaloo Sam e seus irmãos, exímios dançarinos de locking e criadores de uma outra dança: o electric boogaloo. Popping Pete (estrela do filme Breakin’) e seus irmãos juntam-se à Toni Brasil, à crew The Lockers e aos dançarinos da Soul Train a fim de adicionarem ao locking o electric boogaloo. Ao contrário do que é feito no locking, no electric boogaloo movimenta-se o corpo de dentro para fora. Os movimentos são parecidos com os do robot, mas o estalar dos membros do corpo (popping) simula uma descarga em alta voltagem sincronizada com a música. Em 1977, Boogaloo Sam cria em Fresno a crew The Electronic Boogaloo Lockers com intenção de dar mais visibilidade à dança de rua de sua terra natal e influenciar positivamente outros jovens. Além do próprio Sam, integram a Electronic Boogaloo, Slide ou “Nate” (co-fundador da crew), Robot Joe (dançarino original de robot), Toyman Skeet (criador do toy man style), Tickin Will (habilidoso no style ticking criado por Sam), Twist-O-Flex Don (já falecido, considerado o dançarino de popping mais


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ousado da região), e Ant Man ou “Anthony” (o locker da crew que melhor praticava o popping).

A notoriedade do electro boogaloo como dança Altamente popular em São Francisco antes mesmo de chegar a Los Angeles, o electric boogaloo passa a atingir todos os EUA ao aparecer na coreografia dos dançarinos do Soul Train como uma nova modalidade do locking. Movimentos como o lightning bolt e o rippling river são inseridos na dança. O electric boogaloo conquista Nova York, enquanto o break ganha os guetos. É interessante notar como danças tão distintas, criadas por jovens negros de localidades tão diferentes possam se influenciar, sem qualquer rivalidade. Vale lembrar! Boogaloo Sam, é responsável também pela criação do passo backslide, introduzido no popping e no boogaloo. Copiado por Michael Jackson e apresentado em cadeia nacional durante a execução ao vivo de seu sucesso “Billie Jean”, no programa Motown 25: Yesterday, Today, Forever, em 1983, o movimento é rebatizado pelo cantor de moonwalk e creditado mundialmente como invenção do pop star, sem quaisquer créditos para seu inventor.

Interpretando o Popping e o Locking Para se compreender melhor cada uma dessas formas de dança, deve-se saber primeiramente que: – O electric boogaloo é uma modalidade introduzida no popping (ticking); – O popping é uma criação da crew Electric Boogaloos, criada em 1978 em Long Beach, Califórnia, formada pelos dançarinos Boogaloo Sam (criador do popping e do electric boogaloo), Poppin Pete (irmão caçula de Sam), Tickin Deck (irmão do meio de Sam), Robot Dane, Puppet Boozer (hábil no desenvolvimento do


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puppet style, criado por Sam), Creepin Sid, Scarecrow Sculley (especialista no desenvolvimento do scarecrow style, criado por Sam), Darryl, o “King Cobra” (criador do style snaking) e George, o “King Ratter” (considerado um dos primeiros dançarinos de popping de Long Beach); – Mr. Wiggles, pesquisador e dançarino de todos os estilos de street dance afirma que os b-boys nova-iorquinos, por não conseguirem dançar o popping de forma exata, o maqueiam com o nome electro boogie. Acrescenta ainda que o break da atualidade absorveu, além de seu estilo próprio, movimentos do popping, locking e electro boogie; – Publicado em outubro de 1984, Breaking and the New York City Breakers, de Michael Holman, traz um profundo estudo acerca dos gêneros break dance, popping e electro boogie; infelizmente ainda não há tradução para o nosso idioma. – A música de acompanhamento de ambas as danças inicialmente era o funk. Entretanto, com criação dos brekbeats em 1973, e do electro funk em 1982, o poppnig e o locking começam a diversificar um pouco mais a sua trilha sonora.

Breaking – a história (1972) Breaking, b-boying/b-girling ou break dance são nomes da dança do hip-hop que consiste em movimento de footwork (início), spinning (meio) e freeze (finalização), como o kata de uma luta marcial. A figura do b-boy (dançarino do breaking) surgiu no Bronx. Afir­ ma-se que seu nome tenha sido cunhado pelo DJ Kool Herc, que assim os batizou porque dançavam durante longos instrumentais de breakbeats: daí o termo b(break)-boy. A primeira geração de b-boys é marcada pelos nomes Nigger Twins, Clark Kent e Zulu Kings.


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A queda e ascensão do breaking (1977) A break dance eventualmente perde sua popularidade entre os jovens negros do gueto e é ressuscitada e remodelada por uma outra geração etnicamente diferente: os porto-riquenhos, que introduzem em sua coreografia movimentos acrobáticos como inovação. O windmill (moinho de vento), por exemplo, é extraído kung fu.

A queda e ascensão do breaking (anos 80) Durante esta época, o breaking se espalha de Nova York para o mundo, tornando-se muito popular pelo termo break dance, através da TV. Porém, quando o interesse da mídia pela dança esfria, muitos imaginam que não passara de uma moda e também se desligam dela.

A queda e ascensão do breaking (1985-90) Após 1985, durante todo o inverno, os autênticos b-boys se es­for­çam para manter viva a chama do breaking em Nova York. O esforço, no entanto, resulta desanimador, pois muitos jovens não se interessavam mais. Mas em 1990 há um sopro de renovação: eventos como o “B-Boy Summit” e o “Rock Steady Anniversary” reascendem o interesse da juventude. Os eventos passam a ocorrer tradicionalmente todos os anos, mostrando novamente toda a genialidade do breaking. Ao contrário do que a TV especulara, não se tratava de uma simples tendência, mas de uma sólida cultura de dança baseada na iniciativa dos jovens pobres do Bronx. Nomes como Frosty Freeze, Boogaloo Shrimp, Little Man, Short T, Killer Free­ze e Fast foram alguns dos responsáveis por manter a chama acesa ao lado de crews como Rock Steady Crew, Electric Boogie, Zulu Nation e Dynamic Breaks.


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O breaking enquanto filosofia de vida Tanto o breaking quanto o hip-hop são estilos de vida. A maneira de se vestir, de falar, gesticular e de seus participantes se autodenominarem são características marcantes desta cultura, aceitem os mais céticos ou não. Para os b-boys, é gratificante desgastar os trajes – de preferên­ cia folgados – dançando. Com essa indumentária também evitam arranhões e maiores contusões que poderiam ocorrer no contato brusco com o chão. Os tênis velhos, e confortáveis, em bom estado de conservação, também são importantes tanto para os movimentos quanto para a proteção dos pés.

Curiosidades sobre o breaking Como em muitos outros costumes populares, o breaking não possui um criador legítimo. Sabe-se que James Brown, em 1972, lançara o sucesso “Get on the goodfoot”, identificando a existência desses dançarinos já nesta época – muito antes de os porto-riquenhos terem-no assumido e aperfeiçoado. Contudo, sabe-se ao certo que foi popularizado pelos garotos do Bronx entre 1975 e 1976, nas block parties, ao som dos ritmos latinos, soul, funk e jazz. O curioso sobre o nascimento do estilo é que ele foi desenvolvido por adolescentes que não conseguiam imitar a dança soul de seus pais e irmãos mais velhos; acidentalmente, portanto, acabaram por criar um estilo mais radical, que incorporava mímica (locking), acrobacias olímpicas e até a estilização de lutas como a capoeira. Muitos b-boys brasileiros rejeitam a expressão break dance por acreditarem que o termo banalize sua cultura. Em parte, estão certos. Durante o processo de pesquisa deste livro, entrevistando dançarinos, lendo artigos nacionais e internacionais e assistindo a inúmeros documentários, tendo a concordar com o irmão e rapper Nelboy, quando este diz que a matéria do hiphop é algo muito complexo, chegando a extrapolar em alguns


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momentos a compreensão sul-americana. Talvez eu esteja enganado, mas estudando mais profundamente essas danças, tentei compreender a insatisfação dos b-boys americanos em relação à mídia, já que eles utilizam até hoje a expressão break dance como sinônimo de breaking. Cheguei à conclusão de que tal insatisfação existe porque a mídia – que até hoje ignora a história dos elementos do hip-hop – trata popping, locking, up rocking e breaking como a mesma coisa. Vale lembrar! O breaking teve um papel muito importante na preservação da cultura hiphop durante os anos 70, quando a disco music explodiu nas FMs e nas pistas de dança: as crews de breaking se reuniam nos pontos mais movimentados da cidade e abriam rodas ao som do rap e do funk. O resultado dessa iniciativa foi tão positivo que, em pouco tempo, os elementos do hip-hop estavam invadindo novamente as rádios, boates, as indústrias fonográfica e cinematográfica e as academias de dança.

Movimentos do Breaking 1990 – os b-boys iniciam os movimentos do handstand (o apoio de mão) e do spin (expressão que descreve a rotação), sustentando-se sobre um braço só. Há duas formas diferentes de praticá-lo: a primeira é conhecida pelo termo drilled 1990, que consiste num spin mais longo, permitindo a simulação de um “parafuso” equilibrado com os braços. O segundo é o 1990 with tabbing, composto por spin-handstand-spin – tudo no compasso da música; 2000 – pratica-se como o 1990, mas usam-se as duas mãos para suporte do spin. Backspin – movimento giratório do spin praticado com as costas no chão e os pés no ar, reproduzindo uma espécie de ondulação contínua; Footwork – é considerado o movimento de iniciação da coreografia antes de o dançarino exercer os movimentos de solo.


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Neste caso, o footwork é realizado em etapas, como por exemplo o six steps e o helicopter; Freeze – consiste na finalização em forma de congelamento por alguns segundos do movimento que o dançarino tenha desenvolvido; Halo – similar ao windmill – mas mais curto –, consiste no ajuste do spin com a cabeça; Hand Glide – consiste no movimento similar ao turtle, mas realizado com apenas um braço afastado do estômago, a mão controlando a velocidade do spin; Head Spin – na posição de headstand, o dançarino realiza o spin com a cabeça. Consiste basicamente no uso dos braços para suporte e equilíbrio do movimento e dos pés para o controle da velocidade. O mais desgastante neste movimento é manter o contrapeso do corpo; Knee Spin – consiste no spin ajustável com os joelhos. Considerado um dos movimentos mais simples. Aconselha-se o uso de joelheiras para evitar o atrito dos joelhos no solo; Suicide – movimento doloroso e perigoso, consiste em lançar-se para trás intencionalmente, com o apoio dos braços flexionados sobre os ombros para amortecer a queda. Turtle – consiste em movimentar os cotovelos de encontro ao estômago, girando ou passando o peso de um braço para o outro. Os braços giram sem peso algum do corpo sobre eles, na tentativa de um spin; Windmill – rolamento dos ombros fixados em linha reta;

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EUA, década de 80 – O que a mídia não controla não decola Embora representantes dos quatro principais elementos (DJ, break, grafite e rap) da cultura hip-hop se esforcem para que a popularidade de todos seja igual, o rap acaba se destacando e assumindo responsabilidade como porta-voz do movimento, tanto do lado político-ideológico quanto do sócio-cultural. Essa popularidade acaba atraindo alguns músicos brancos, que apos­ tam suas carreiras nele.

1980 Afrika Bambaataa, ao lado do grupo The Cosmic Force, estréia em vinil com a música “Zulu Nation throwndown – (part 1)”, pelo pequeno selo Paul Winley Records. No dia 16 de setembro, o rapper Kurtis Blow lança The breakers (part I), que mais tarde se tornaria o primeiro LP de hip-hop a ser premiado com o disco de ouro. Blow também é o primeiro rapper a apresentar-se no renomado programa de TV Soul Train, em transmissão nacional. Ainda neste período, Bambaataa inicia uma turnê por toda a Europa, começando pela França.

1981 A expansão do hip-hop continua, e Afrika Bambaataa faz shows pela cidade de Nova York com a Zulu Nation, promovendo o rap, o grafite e a dança. Após o lançamento de Zulu Nation throwndown (part 1), ele assina um contrato com a gravadora Tommy Boy. Surge neste período o primeiro sintetizador para samplear sons, equipamento que se torna indispensável nas produções de rap dos anos seguintes. A música “Rapture”, da banda Blondie, é considerada o primeiro rap a alcançar o topo das paradas. O sucesso homenageia Grand­ master Flash e o grafiteiro Fab Five Freddy (que mais tarde seria


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VJ do programa Yo! MTV Raps). Mas, embora em destaque no mundo fonográfico, os artistas e adeptos do hip-hop não simpatizam muito com a gravação. Para eles, além de não serem do gueto, a vocalista loiraça Debbie Harry e seus colegas estão pegando carona na onda da música de lá. Joseph Saddler, o Grandmaster Flash, lança “Adventures on the wheels of steel”, considerada a primeira gravação de hip-hop de estilo autêntico e inovador, produzida exclusivamente por um DJ. A música contém colagens de trechos de vários ritmos e estilos que variam do pop do Blondie ao rock do Queen. Os diversos bons lançamentos do período levam o hip-hop a conquistar mais espaço na mídia: caso do programa 20/20, por exemplo, exibido pela TV ABC, que apresenta o primeiro documentário sobre essa cultura. O grupo The Funky Forum é o primeiro representante do hip-hop a comparecer ao renomado programa Saturday Night Live. Daryl Admaa Nubyan, o Brother D, é o responsável por levantar pela primeira vez na história do hip-hop a bandeira do rap politizado. Enquanto grupos como Treacherous Three, T-Sky Valley e Grandmaster Flash and The Furious Five assumem suas posições como pioneiros do rap, Brother D traz ao hip-hop, através de sua visão islamizada, o que faltava em sua bagagem: a consciência afro-americana. A música “How we gonna make the black rise?” (“Como nós vamos mobilizar os negros?”), em parceria com o grupo Collective Effort, traz ao hip-hop a visão de que seus adeptos não devem desfrutar só de arte e lazer. Enquanto todos se preocupam com a “nova onda”, o sistema branco continua a oprimir os afro-americanos. Brother D usa o seguinte slogan: “agitate, educate, organize” (“agitar, educar, organizar”), inspirando-se na ideologia libertária dos Panteras Negras. Infelizmente ou não, esse slogan só surtiria o efeito desejado seis anos mais tarde, quando sampleado na música “Big decision”, do grupo irlandês de rock That Petrol Emotion.


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Os versos abaixo são traduções de alguns trechos de letras de Brother D. O hip-hop da época ainda não estava preparado para uma militância política tão engajada: A Ku Klux Klan está no telhado Ensinando seus filhos a atirar Reflexos de uma paranóia crescente Na maioria das vezes, da comunidade negra americana.

1982 Surge a bateria eletrônica Rolland TR-808, que seria responsável por produzir a nova linha de batidas do rap. Prova disso é a experimentação de Kevin Donovan, nome verdadeiro de Afrika Bambaataa, que, com seu grupo The Soul Sonic Force, em 17 de julho lança Planet rock em compacto, pelo selo Tommy Boy Records. Bambaataa conta com o auxílio dos amigos e produtores John Robie e Arthur Backer (produtor também de New Order e Donna Summer). A seleção do seu repertório musical é inusitada. O grupo alemão Kraftwerk desenvolve um novo estilo de som através de computadores e, embora tivessem feito sucesso com a música “Autobahn”, são tratados como uma moda passageira. Mas seu estilo encontra uma oportunidade nas boates negras de Nova York. Bambaataa remixa a música do Kraftwerk, “Trans-Europe Express”, para criar “Planet rock”, um funk eletrônico com vocais de rap que se tornaria um marco musical da cultura hip-hop. Atingindo a marca de 600 mil cópias vendidas só nos EUA, antes mesmo de se tornar um enorme sucesso internacional, o estilo criado por Bambaataa fica conhecido como electro funk. Esse estilo de rap mais tarde influenciaria ritmos como o techno de Detroit, o miami bass de Miami, o jazz mais moderno e o dancehall da Jamaica. Pode-se afirmar também que o chamado funk carioca é filho bastardo inicialmente do electro e, depois, do miami bass.


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Vale lembrar! O electro funk foi o responsável por revelar uma série de nomes importantes como Newcleus, Egyptian Lover, Twilight 22 e Pretty Tiny, entre outros.

Ainda neste período, Freddy, artista e rapper do Brooklyn, lança Wild Style, primeiro documentário de longa-metragem sobre a cultura hip-hop. Em 16 de outubro é a vez de Grandmaster Flash and The Furious Five lançarem o álbum The message. A músicatítulo é considerada a primeira, no hip-hop, a tratar do gueto, mas isso é controverso, pois Brother D já estava na ativa. “The message” acabou tornando-se a mais famosa letra de rap de todos os tempos. “White lines” (“Linhas brancas”) é o segundo destaque do álbum e trouxe a primeira referência à cocaína em músicas de rap. Porém, se em algum momento, Brother D pensou que não existiria quem utilizasse o rap para empunhar a bandeira do orgulho negro no país, enganava-se: o estudante de design gráfico e fã de hip-hop Chuck D cria o Public Enemy. Seus objetivos: modernizar as levadas musicais do rap e introduzir no gênero discussões políticas e sociais voltadas para os afro-americanos. Além de Chuck D, são parte do Public Enemy o DJ Terminator X e os rappers Professor Griff e Flavor Flav. No mês de novembro, Afrika Bambaataa é aclamado como porta-voz do rap de Nova York, após uma turnê pela Europa. O DJ é o principal beneficiário do fortalecimento do rap. Brucie B, por exemplo, torna-se o primeiro a comercializar mixtapes, versões de músicas remixadas e mixadas umas nas outras, que dão a impressão de uma pista de dança em cassete. Ainda neste ano, o DJ Afrika Slam atende ao desejo dos adeptos do hip-hop em Nova Jersey e lança um programa na rádio WHBI. Vale lembrar! O comércio de mixtapes existe ainda hoje, na forma de CD e continua revelando muitos talentos do rap.


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1983 A popularidade do rap passa a atrair também músicos brancos, como os três jovens que fundam a banda Beastie Boys. Tendo começado como uma banda hardcore, quando ainda cursam o segundo grau em 1979, inicialmente os Beastie Boys são considerados amadores no rap por serem brancos. Em abril, Run DMC, grupo do Queens, lança seu primeiro single, Sucker MCs. Vale lembrar! Os membros do Run DMC foram os primeiros a afirmar que o DJ podia ser uma banda. O trio formado pelos rappers Run, DMC e DJ Jam Master Jay aderiu a um estilo mais minimalista, utilizando somente bateria eletrônica, toca-discos e microfones.

A tecnologia desenvolve-se a favor do hip-hop. A Technics, sensível às necessidades dos DJs, apresenta ao mercado o tocadiscos profissional SL-1200 MK2, modelo considerado insubstituível por DJs até hoje. Dando seqüência às inovações, os samplers, além de se tornarem um recurso indispensável, também passam a ser identificados como marca registrada do rap. Kurtis Blow, em caráter de experimento, utilizou a máquina de sampler Free Lite, para a sua ode ao DJ, a música “AJ Scratch”. Em agosto os Beastie Boys gravam sua primeira experiência em rap pela Rat Cage Records. Cookie Puss, um doze polegadas, narra de maneira bem-humorada a história de um jovem b-boy que passa trotes por telefone. A experiência permite que o grupo conquistasse espaço em Nova York e passe a empregar um conceito não-convencional de hip-hop em casas como a Danceteria. O empresário Greg Mack funda a KDAY, primeira rádio AM exclusivamente de rap. Pegando carona no crescimento eminente do rap, Malcom Mclaren, produtor de bandas como o Sex Pistols, investe em discos do gênero. Seu primeiro lançamento, “Buffalo


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gals”, do álbum Duck rock, torna-se um clássico, misturando folk com hip-hop. Acompanhando a evolução tecnológica, Rick Rubin torna-se um dos produtores a popularizar a Rolland TR 808 – utilizada por Bambaataa um ano antes em “Planet rock”. A bateria eletrônica, usada no sucesso “It’s yours”, de T. LaRock, e nos lançamentos da Partytime/StreetwiseRecords, leva para as ruas dos EUA uma nova maneira de experimentar bases instrumentais de rap.

1984 “Buffalo gals” e “Double Dutch”, do álbum Duck Rock fazem os EUA dançar por todo o ano de 1983. Em fevereiro deste ano, é a vez do mini-LP (remix) D’ya like scratchin’ tornar-se outro hit das pistas. Em 23 de Abril, o Run DMC lança “Rock box” (do álbum Run DMC, que venderia mais de um milhão de cópias), o primeiro clipe de rap a ser exibido pela MTV. O hip-hop passa a ter destaque também no cinema, e prova disso é o lançamento, em maio, de Breakin’ (Break Dance). Ice-T, ainda conhecido como Tracy Marrou, estréia nesse filme. Em junho, Beat Street (Na onda do Break) – uma versão hollywoodiana do Wild style co-produzido por Harry Belafonte – faz imenso sucesso. Patrocinado pela empresa de relógios Swatch e promovido em dezembro pelo Run DMC, o Fresh Festival dá origem a uma turnê nacional nos EUA. Nomes como LL Cool J, Grandmaster Flash, Kurtis Blow, Fat Boys e a gangue de breakin’ The Dynamic Rockers, responsável por abrir o evento, viajam divulgando a cultura hip-hop. Na época, Jermaine Dupri (hoje produtor de rap) era b-boy do grupo Whodini. Considerado um dos mais inovadores grupos do hip-hop nos anos 80, o Mantronix, composto pela dupla DJ Mantronik (nas-


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cido em Khaleel, na Jamaica e radicado em Nova York, no baixo Manhattan) e MC Tee, tornam-se populares por misturar rap, funk, reggae, pop e ritmos eletrônicos. Um ano mais tarde, eles dariam à cena hip-hop uma contribuição valiosa. Após o sucesso maciço do grupo do Brooklyn U.T.F.O. com a música “Roxanne, Roxanne”, muitas mulheres aparecem no rap tentando ser Roxanne. Adelaida Martinez, a modelo que faz o papel-título no videoclipe do hit, ganha a alcunha de “The Real Roxanne”.

Vale lembrar! “Roxanne, Roxanne” contribuiu muito para o aumento da cena feminina no ambiente do rap por ter provocado o que ficou conhecido como as Roxanne Wars (Guerras de Roxanne): série de canções criadas em resposta ao sucesso do U.T.F.O.

Ainda no calor das tensões das ‘Roxannes’, Lolita Shanté Gooden, uma menina de 14 anos do Queens, fica sabendo da insatisfação dos DJ-Produtores Mr. Magic, Marley Marl e Tyrone Williams com um show que produziam para o U.T.F.O., cancelado pelo próprio grupo, e propõe a Magic e Marl um revide em rap. Após testarem a aptidão da adolescente, os produtores resolvem apostar na idéia utilizando a instrumental original de “Roxanne, Roxanne” do U.T.F.O. para lançar o single “Roxanne’s Revenge”, que chega a marca de 250 mil cópias vendidas só em Nova York. Lolita ganha o nome artístico Roxanne Shanté. Leonel Martin e Ralph McDaniels estréiam o programa de TV Video Music Box, em Nova York, abrindo a oportunidade para a exibição de vídeos de rap. Embora a cultura hip-hop já se mostre lucrativa, alguns meios ainda se recusam a abrir espaço. A MTV é quem demonstra maior descaso. Quando nasceu, em 1981, o mercado musical se transformou. Embora beneficiasse a dance music, a MTV nega-se a exibir clipes negros. O forte selo musical CBS pressiona, então, a emissora a passar o clipe da música “Billie Jean”, de Michael Jackson. A MTV rende-se e, em


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pouco tempo, Jackson torna-se o megastar da música popular. Contudo, mostrar o Michael Jackson é uma coisa; o rap do gueto é outra, muito diferente. É apenas com a exibição de vídeos do Run DMC que começa a era do rap revolucionário. Influenciados por essas recusas lamentáveis, muitos dos grandes selos desprezam os rappers, deixando o caminho livre para os pequenos empresários. Dois deles se unem e montam a Def Jam Recording. Um deles é Rick Rubin, de origem branca e conhecedor profundo de rock; o outro, Russell Simmons, irmão de Run (do Run DMC), e grande conhecedor do rap. Mas a história da Def Jam não começa de repente. Russell e Rick encontram-se pela primeira vez na Danceteria – um dos poucos lugares na cidade onde jovens da parte alta e os roqueiros da parte baixa se misturam sem grandes conflitos. Ao lado de Larry Smith, Russell apresenta-se como co-produtor do Run DMC e empresário da Rush Produções (entidade que agenciava nomes como Run DMC, Whodini, Kurtis Blow, Dr. Jackyll & Mr. Hyde, Jimmy Spicer, Spyder D e Sparky D). Originário do Hollis, no Queens, Russell Simmons passa a atuar como produtor de shows e discos dos rappers desde 1977, quando ainda é estudante do segundo ano de sociologia no City College de Nova York – dois anos antes de os primeiros discos de rap existirem. Rick Rubin crescera numa comunidade racialmente mista de Long Island (NY). Como todo jovem branco da época, era fã de rock pesado, mas ao contrário dos demais, mostrava-se um verdadeiro entusiasta do rap. Em declaração ao precioso encarte da coletânea Def Jam (Vol. 1), lançada em comemoração ao sucesso da gravadora, Rick relembra um pouco sua adolescência: Se as crianças brancas gostassem de hardcore, eu nunca me envolveria com o rap. Mas o fato de que a nova música é sufocada em vez de aceita pelos adolescentes brancos me levou a gostar do rap. As crianças brancas da minha escola gostavam de Stones, Sabbath, The Who ou Zeppelin – grupos que acabaram ou que ainda fazem sucesso. As negras ficavam sempre esperando


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pelo lançamento de um novo disco de rap. Houve um panorama se intensificando no rap, mas não no hardcore.

Sua afeição e admiração pelos discos do Run DMC o inspiram a produzir It’s yours de T. LaRock & DJ Jazzy Jay, quando tem apenas 21 anos e cursa filme e vídeo na Universidade de Nova York, sem qualquer experiência como produtor musical. A respeito disso, ainda em depoimento à coletânea da Def Jam ele apresenta seu lado empreendedor: Não há um modo específico para aprender como produzir; você tem apenas que fazê-lo. Jazzy Jay & T. La Rock não vieram até mim. Eu fui até eles. Eu sabia que eles nunca tinham feito um disco antes e queriam fazer. Eu achei que sabia como fazer e fiz.

Sobre o inusitado de um fã do Run DMC conhecer casualmente o agenciador do grupo numa casa noturna, Russell Simmons, na coletânea da Def Jam, relembra: Eu não pude acreditar. Rick gostava dos mesmos discos que eu – e nem todos eles estavam à venda. Ele entendeu a música melhor que a maioria das pessoas. Eu compartilhava um amor pelo mesmo som básico, o som de rima elaborada, sobre uma batida forte.

Rick acrescenta ao comentário de Russell: Russell gostava da levada bem produzida do material vindo do r&b, como Al Green e James Brown, e eu gostava da boa levada do rock, como AC/DC e Aerosmith.

Nasce aí uma longa e prolífica amizade. Os dois vão juntos ao escritório da Rush Productions (agência de rappers administrada por Russell), na Rua 26, Broadway, em Manhattan e imediatamente começam a “conspiração”. Ambos sabem que não é fácil projetar um empreendimento que representa um gênero ainda visto com resistência por grande parcela do mercado musical. Em depoimento à coletânea da Def Jam, Rick comenta:


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Eu não ganhei dinheiro com o disco do T. La Rock, e Russ me contou muitas histórias sobre discos pelos quais ele nunca foi pago. Então eu sabia que, se nós dois continuássemos a fazer discos, teríamos de fazê-lo por nós mesmos. A forma como promovemos nossos grupos foi a que quisemos e usamos o dinheiro para fazêlos maiores. Os selos só estão interessados em dinheiro rápido.

Cada um investe então quatro mil dólares na fabricação e distribuição de discos de rap. Em novembro do mesmo ano, eles se tornam a principal referência no gênero, e Russell declara à Billboard, a mais respeitada revista de música da época: A proposta dessa empresa é educar as pessoas com o valor da verdadeira música de rua, lançando discos que ninguém no mercado distribuiria a não ser nós.

Conhecendo bem a desatenção dos empresários ao produto do gueto, Russell acrescenta: Um menino como LL Cool J, por exemplo, que não cresceu somente com o rap, mal podia lembrar do tempo que isso não existia. Ele canta rap desde os nove anos e fazia gravações no porão da casa da sua avó em St. Albans, no Queens, já com 12 anos. Uma das gravações chegou até Rick Rubin, que imediatamente reconheceu o potencial do LL Cool J, que tinha 16 anos de idade. O disco que eles fizeram juntos, I need a beat, foi o primeiro da Def Jam. Lançado em novembro de 1984, custou 700 dólares para produzir e vendeu mais de cem mil cópias.

Durante todo o verão, o grupo Beastie Boys mostra em apresentações seu estilo autêntico de rap, arrebatando uma parcela considerável do público branco para seus shows. Cientes de que precisariam de uma estrutura adequada na execução de um show, os Beastie Boys convidam Rick Rubin, também conhecido como DJ Double R, para operar os toca-discos no palco e uma máquina de bolhas de sabão – uma novidade entre os jovens que freqüentavam os shows e festas da época. Eles lançam então o segundo trabalho da lista da Def Jam: o 12 polegadas Rock Hard/Beastie Groove. Com esse disco, o trio abre shows memoráveis, como os de Kurtis Blow e Disco Three


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(na mesma noite em que o grupo oficializou sua mudança de nome para Fat Boys), apresentando-se inclusive na renomada Disco Fever, fazendo uma enorme algazarra na cabine do DJ com suas rimas polêmicas. Tudo isso colaboraria para que a Def Jam emplacasse um total de sete gravações de artistas solo em menos de um ano. “It’s yours”, de T La Rock, torna-se uma espécie de hino das ruas ao lado de “Together forever” do Run DMC, abrindo caminho para uma nova sonoridade no hip-hop nova-iorquino. Artistas de Miami como Amazing V, Fresh Kid Ice e Mr. Mixx organizam-se e criam o grupo 2 Live Crew, amparados pela Macola Recording Company, gravadora de forte influência na Costa Oeste. Assim, o 2 Live Crew lança o single It’s gotta be fresh, a primeira exceção à regra da música rap. Em seguida, seu segundo sucesso, “The revelation”, sacramenta uma espécie de “lado B” do rap, apresentando um electro de timbres mais pesados, com sonoridade de baixo, em batidas secas e programadas pela bateria 808; algo que no futuro próximo resultaria no miami bass. Em Nova York, Rick conta com o apoio de seu sócio, Russell Simmons, para lançar o rapper LL Cool J e os Beastie Boys, enquanto o 2 Live Crew é empresariado por Luke Skyywalker. Durante os anos 80, a Costa Oeste do sul da Flórida torna-se o foco de rappers underground, que apostam no estilo electro. Oriundos da baixa Miami, estes artistas buscam na TK Disco alguma oportunidade para suas carreiras. Afinal, trata-se de um império fonográfico, criado por Henry Stone, divulgador de talentos musicais como James Brown, Hank Ballard, Sam & Dave, Ray Charles, Lightnin’ Hopkins, Gwen and George McCrae, Timmy Thomas, Betty Wright, K.C. & The Sunshine Band, L’ Trimm e The 2 Live Jews, que os inclui nas principais rádios do país e no popular sistema das jukeboxes. Billy Hines, proprietário da Royal Sounds, loja de álbuns independentes, situada em Lauderhill Mall, Ft. Lauderdale, na Flórida, passa a receber material


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destes artistas através de seu filho Adrian, que mantém contato direto com as ruas. Essas produções já fazem parte da cultura urbana de Miami desde 1983, e tornam-se populares através dos potentes amplificadores dos carros (prática que anos mais tarde seria chamada de car audio bass, baseada em instrumentais e efeitos, sem muitos vocais). Convencido por seu filho, Billy inaugura a 4-Sight Records. Frank Cornelius, integrante do grupo Cornelius Brothers & Sister Rose, torna-se produtor da gravadora, selecionando trabalhos de artistas locais e utilizando a Rolland TR 808 e o sampler Emulator Keyboard II para dar vida a este novo som. O electro funk, matéria-prima de todas essas sonoridades modernas e pesadas, permanece em alta, influenciando uma série de artistas em Nova York, como o grupo Divine Sounds, que estoura com o clássico em 12 polegadas de What people do for money/ Dollar bill dub dub. Acompanhando o grande boom do rap em seus mais variados estilos, DJs tornam-se produtores e produtores assumem os palcos dos shows como rappers. O clássico “One for the treble”, do DJ-produtor Davey D, é um exemplo disso.

1985 Nasce a marca Tommy Hilfiger, lançada pelo empresário homônimo, cuja linha de roupas se tornaria símbolo de status entre os hip-hoppers. O Run DMC lança o álbum King of rock, emplacando mais de um milhão de cópias vendidas. A música “Roots, rap, reggae”, em parceria com cantor de reggae Yellowman, é considerada a primeira fusão entre os ritmos rap e reggae. O rapper Too Short, natural da Costa Oeste americana, lança o álbum Player, pela sua gravadora, a 75 Girls, abrindo caminho para a cena independente local. Too Short também é consi-


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derado responsável por trazer ao rap um estilo que divulgava a imagem do cafetão e suas garotas. Nos anos subseqüentes, este estilo, junto ao gangsta se tornaria uma forte influência para gerações de rappers da Costa Oeste americana. Após uma série de tentativas, o DJ e produtor Stephen Wiley lança o álbum Bible break, marco de um novo estilo de rap, destinado aos errantes e cansados dos pecados do mundo: o gospel rap. O disco não é um sucesso, mas Wiley seria depois reconhecido como pioneiro do estilo. O produtor Amos Larkin III – alcunha de Leon Greene –, da Prime Choice Records, firma uma parceria com a 4-Sight Records para produzir Adrian Hines. Sob o nome artístico MC ADE, Hines usa um vocal sintetizado, bem similar ao electro. A música “Brass Rock Express”, um presente por seu aniversário de 16 anos, iria tornar-se um clássico do bass. Embora baseado no electro de “Planet rock”, o bass tem uma proposta autêntica. Ainda que ADE fosse o primeiro artista da 4-Sight Records, a fama vem mesmo com o segundo: MC Shy-D que, com o sucesso de “Rap will never die”, intensifica um vocal cru sem quaisquer trabalhos eletrônicos em suas performances, similares ao electro, fazendo nascer o miami bass. Nesta seqüência de acontecimentos importantes, Luke Skyywalker leva da Califórnia para a Flórida Mr. Mixx e Fresh Kid Ice (irmãos de Amazing V) e lá eles gravam seu terceiro single: “Throw the d/Ghetto bass”. Luke investiu o dinheiro ganho em sua casa em Miami, a Pac Jam, na divulgação do trabalho em todo o sul da Flórida. Tyrone Brunson, um cantor e músico de funk de Washington D.C., havia lançado em 1982 o single “The Smurf” (uma homenagem instrumental ao desenho animado Os Smurfs), sucesso até 1985. MC Doug E. Fresh sampleou “The Smurf” para criar “The show”, o primeiro bass tema de um desenho animado (Inspector


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Gadget).8 Neste período, Doug E Fresh faz um beatbox (bateria improvisada com a boca) como instrumental para o sucesso de “La di da di”, ao lado de seu autor, o rapper Slick Rick. LL Cool J estoura com o clássico álbum I can’t live without my radio, em mais uma vitória comercial para o rap. Para Russell Simmons: LL Cool J era muito especial. Trouxe a idéia do que era a indústria. E só a melhorou.

Apesar da resistência de boa parte da mídia, o rap continua a crescer e cavar seu espaço. O programa de variedades That’s incredible, da TV ABC, abre caminho para o breaking e para a cultura hip-hop quando recebe a crew Dynamic Rockers. A rádio WRKS lança um programa exclusivo do gênero comandado pelo DJ Red Alert. Por outro lado, o programa The box (MTV), em que os telespectadores escolhem os clipes a serem exibidos, apresenta um problema para a emissora: mesmo muito votados, os vídeos de rap ainda são vetados pela direção da emissora. Um grande exemplo desse tipo de preconceito se manifesta no festival Live Aid, produzido pela MTV americana. Durante um dia inteiro, artistas de diversos gêneros se apresentam no evento beneficente em favor das vítimas da fome na Etiópia – mas nenhum rapper é convidado. Entrevistado no documentário Planet Rock, exibido no Brasil pelo canal People and Arts, o produtor de vídeos Don Letts desabafa a respeito: Desculpe, MTV, mas preciso dizer isto: estou em Nova York. 1981. O telefone toca: “Don, queremos entrevistá-lo. Você faz vídeos do Clash...!” Legal! Vou lá... Entro no escritório... Todos me olham torto... Como se eu devesse usar a entrada dos empregados. Alguém me chama num escritório. Eu sento, ele diz: “Don, você precisa entender que temos um problema aqui.” Ele queria dizer

8 Inspetor Bugiganga. Popular desenho animado exibido no Brasil, na década de 80, pelo SBT.


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que não sabia que eu era negro. Disse que naquela época a MTV se dirigia a um público branco do interior. E, assim, não exibiam vídeos de negros. Até deu um exemplo de como eram rigorosos. Citou Rappinghood, que era um desenho animado... Disse que soava muito negro, e por isso não exibiam.

Mais uma vez inovando, o Run DMC se junta à banda de rock Aerosmith para gravar uma versão rap do sucesso “Walk this way”. Em entrevista ao documentário Além do Bronx, Grandmaster Flash reforça o Run DMC como grande divisor de águas da cultura hip-hop, em especial do rap: Depois que tivemos nossas diferenças sérias, a cena se esvaziou por um tempo. Alguém tinha que preencher o vácuo. Surgiram três caras. Um DJ, dois MCs. O nome deles era Run DMC.

A parceria com o Aerosmith não é, no entanto, tão bem recebida como se esperava. Aquele é o primeiro contato de muitos brancos com o rap. Alguns roqueiros fanáticos sentem-se afrontados: como permitir que negros participem de um dos hinos do rock da época? O produtor Jon Small, em entrevista no documentário Walk this way, narra um episódio marcante: Fomos a Park City, Nova Jersey, para gravar. Eu anunciei no rádio que o Aerosmith estaria lá e fizemos propaganda boca-a-boca do Run DMC. Às oito horas da manhã havia três mil negros na porta do teatro. Eu só via negros e nenhum branco, e precisava de muitos brancos, porque a história [do clipe] era que o Run DMC invadiria um show do Aerosmith. De repente, vi Camaros, Mustangs e outros carrões dos brancos, dos metaleiros. Eles estavam com medo de sair do carro. Eu tive que fazer os brancos entrarem pela porta de trás para que ficassem nas primeiras filas. O que aconteceu foi que começou um tumulto. Chamamos a polícia. Os tiras subiram no palco armados. E o público negro estava tão empolgado para ver o Run DMC que quebrou as portas e invadiu o teatro. Foi um prejuízo de nove mil dólares. Derrubaram as portas. Todo mundo era legal, mas estavam loucos para entrar”.

Para o Run DMC, o sucesso não passa de um remix. Mas “Walk this way” ressuscita a carreira do Aerosmith, que não ia muito


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bem. O single é considerado “Compacto do ano” em 1986 pela revista Rolling Stone e pelo Village Voice.9 Aproveitando o assédio da mídia, o Run DMC lança o álbum Raising Hell, que contém Walk this way. O Run DMC simplificou por completo a maneira hip-hop de ser, não apenas na música, mas também na atitude. Como lembra o escritor e diretor de cinema Orville Hall no documentário Walk this way: Eles se destacaram porque, na época, tudo era complicado. A música era complicada. Melle Mell, Grandmaster Flash. Jay dizia que eles usavam roupas chamativas e tal, mas a batida do Run DMC era... simples. Só isso. Era simples e dançante. Eles elevaram o ritmo a um novo nível.

Hall vai além, explicando o que acontecia então nas ruas: Na época, a atitude das ruas era a dos b-boys. E aquela música refletia o que acontecia na rua. B-boy era a atitude das ruas. A postura b-boy do Run DMC [interpreta cruzando os braços] era a postura b-boy, e fazia parte do jargão das ruas, do hip-hop.

Ainda no mesmo documentário, o músico Antonio Allen reforça os comentários de Hall: Antes deles, havia shows elaborados, Afrika Bambaataa, Kool Herc, e o pessoal fantasiado: Grandmaster Flash & The Furious Five, Cold Crush Brothers. Eles usavam roupas extravagantes, mas o Run DMC usava chapéus, casacos de couro e tênis sem cadarço. Era o máximo e a juventude, principalmente a negra, se identificava com aquilo, porque era muito simples: “o rap é isso. Eu sei o que visto todo dia. E é isso que quero usar. Não quero me fantasiar”. Quando eles surgiram, transformaram o rap na cultura do hip-hop.

A respeito dessa tendência, Jam Master Jay, DJ do Run DMC, em depoimento ao documentário Walk This Way, conta:

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Jornal semanal nova-iorquino.


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Para mim, as roupas de hip-hop são uma moda própria. O hip-hop é mais do que só a música e o comércio faz parte da vida. Quanto mais famosos ficarmos, mais sucesso o hip-hop fará.

Mesmo assim, a resistência da MTV ao rap continua por um bom tempo. Apesar de o Run DMC ter um clipe na programação diária, prevalece a relutância da emissora em relação a outros vídeos de rap e à inclusão do gênero em eventos organizados ou apoiados por ela. Sobre isso, Chuck D, em entrevista ao documentário Planet rock, comenta: A relutância da MTV era baseada em ignorância e na má interpretação dos fatos. Os programadores do início dos anos 80 gostavam de certos tipos de música. Os programas refletiam o que eles gostavam. Michael Jackson surgiu e aumentou a audiência, mas o rap foi mal interpretado. Run DMC e Aerosmith provaram que havia muito mais, mas a MTV achou que o Aerosmith tinha feito todo o trabalho. Foi em 1988, com o Yo! MTV Raps, que o rap estourou. Depois, em 1989 e em 1990, o rap provaria que era a música mais popular da programação da MTV. Vale lembrar! “Walk this way” foi responsável por influenciar muitos artistas de outros gêneros. A exemplo disso, Erik Parker, colunista da revista Vibe, em entrevista ao documentário Walk this way, comenta:

“A música influenciou o nascimento de grupos como Korn e Anthrax. O Anthrax participou da canção ‘Bring the noise’ do álbum Apocalypse 91... The Enemy Strikes Black, de 1991, do Public Enemy e, no clipe, víamos o Anthrax se divertindo. Acho que a base disso foi a relação entre o Aerosmith e o Run DMC”.

Aproveitando a popularidade – mesmo com a censura da MTV –, o Run DMC faz um grande concerto em Long Beach, o primeiro show de rap a conquistar as manchetes dos jornais. O grupo passa a percorrer todo o país com a turnê Raising Hell, acompanhado de LL Cool J, Whodini, Timex Social Club e Beastie Boys (que conquistara o público do hip-hop com a música “Hold it now, hit it”).


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A seguir, algumas declarações sobre a importância do Run DMC, extraídas do documentário Além do Bronx: “Rock Box, do Run DMC. Esse disco revolucionou a indústria!”

KRS-One “Run DMC mostrou que o rap chegou para ficar.”

Big Daddy Kane “Muita gente só entrou no rap depois de ouvir Run DMC.”

Ice-T “‘Walk This Way’ fez muito pelo rap. Foi um salto à frente.”

Salt –N– Pepa “‘Walk This Way’ era o meu ideal. Não havia nada igual. É cool. Gostaria de ter feito.”

Rick Rubin

“Gosto do seu estilo. Sem muita guitarra elétrica.”

Joe Perry

Os Beastie Boys lançam então Paul Revere/The New Style e She’s on it/ Slow and low, primeiros trabalhos em conjunto entre as gravadoras Def Jam e Columbia. Como resultado, a banda passaria a abrir os shows da cantora pop Madonna. William Socolov, responsável pelo selo Sleeping Bag Records, ouve a fita demo do Mantronix: meses depois, “Fresh is the word”, faixa do seu primeiro álbum – The album – tornaria-se um grande hit. As letras de rap tornam-se mais famosas e desmedidas. Para combater o que considera uma linguagem chula, a Associação da Indústria do Disco da América (Recording Industry Association of


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America – RIAA) consegue, através da justiça, que os discos cujas músicas contenham letras de conteúdo considerado “explícito” levem um carimbo: “Parental Advisory – Explicit Lyrics”.10

1986 Afrika Bambaataa assina um contrato com a gravadora EMI. Seu LP de estréia chama-se The light, “a luz”, força que une música e revolução. Este disco é a declaração da crença de Bambaataa em uma seita baseada em temas cósmicos, ligados à ufologia. No início do ano, a concorrência entre o sul da Flórida e a Costa Oeste torna-se acirrada. Mas não são apenas os rappers que brigam pela aceitação popular: a Pac Jam, de Luke Skyywalker, trava uma batalha com a Bass Station de Noberto Morales, mais conhecido como Candyman. Enquanto Luke produz o 2 Live Crew (com Brother Marquis como mais novo membro), Candyman lança Eric Griffin. Após uma série de lançamentos de discos por ambas as casas, Candyman é encontrado morto, vítima de assassinato. Luke reúne seu grupo de artistas e concentra-se na construção de uma identidade baseada em samples de trilhas da X-Rated,11 de Rudy Ray Moore12 e Lawanda Page,13 assumindo uma postura sexista. Mesmo com as melodias de cartoon funcionando sobre as bases instrumentais secas do bass, o som de Miami estagnaria não fossem as inovações das máquinas de samples E-mu SP-1200, operadas pelo DJ Magic Mike, responsável pela produção do clássico “Let’s get this party started”, 10 Advertência aos pais: letras explícitas. 11 Produtora de filmes pornôs das décadas de 60 e 70. 12 Comediante afro-americano que durante a década de 70 tornara-se popular por interpretar o papel de cafetão em seus filmes. 13 Atriz americana famosa nos anos 70 pelo papel de Tia Esther, no seriado Sanford and Son.


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da dupla Kooley C and KJ. Todas essas mudanças fazem com que Miami se torne a capital do bass. Muitos artistas ligados ao electro funk aderem ao miami, e um dos resultados é o clássico “Egypt, Egypt (Egyptian empire)”, do produtor Egyptian Lover, de Los Angeles. Esse single revela o rapper Rodney O, que pouco tempo depois transformaria-se no primeiro artista a gravar uma ode ao bass, a música “Everlasting bass”. A Def Jam torna-se o abrigo dos rappers. Em 20 de dezembro, os Beastie Boys, um dos melhores investimentos da gravadora, emplacam a marca de quatro milhões de cópias vendidas do álbum Licensed to ill, que contém os sucessos “Fight for your right to party”, “Brass monkey”, “No sleep ‘til Brooklyn” e “Posse in effect”. Esse primeiro álbum do grupo é um recorde na história das estréias da Columbia (selo da Sony Music que mantinha relações com a Def Jam). As letras do disco agridem os ouvidos da sociedade americana e seus shows são considerados um desrespeito a todos os seus princípios. Mas não eram apenas eles que, de algum modo, alavancavam a indústria do gueto: o recém-lançado álbum do Run DMC, Raising Hell, alavancado por Walk this way, vende 3,5 milhões de cópias. O maior e mais consagrado campeonato de DJs, o “DJ Mixing Club” (DMC), sediado em Londres, aclama o DJ Cheese como o campeão do ano. Cheese incluíra o hip-hop em suas performances, influenciando outros DJs nas futuras edições do DMC. Mas não são apenas os campeonatos de DJs que absorvem o hip-hop. O rapper Kurtis Blow torna-se garoto-propaganda de uma campanha publicitária do refrigerante Sprite e o Run DMC assina um contrato de patrocínio com a marca esportiva Adidas. Mantronix lança o single “Bassline”, faixa de seu primeiro álbum, The album.


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Vale lembrar! “Bassline” é considerada uma das produções mais pesadas de rap até então e faz sucesso em todo o país.

Mantronix lança o disco Music madness. O rapper Joeski Love ganha as pistas nova-iorquinas com o sucesso “Pee Wee’s dance”, clássico que ficaria conhecido nas pistas de funk carioca como “Melô do merengue”.

1987 Os Beastie Boys limpam a sua imagem durante a turnê mundial Licensed to ill, recebendo inclusive a chave de Kansas City pelas doações às pesquisas de erradicação da anemia falciforme. O rap assume uma postura previsível, com um visual de correntes de ouro no pescoço e um jeito durão estampado no rosto. Pode-se mesmo afirmar que o Run DMC é a principal influência dessa onda. Em meio à mesmice que dominava o rap, surge em Nova York, em socorro não apenas ao hip-hop, mas a toda América negra, o Public Enemy. Inspirado na luta dos líderes Martin Luther King, Malcolm X e de grupos ativistas como os Panteras Negras, o Public Enemy traz uma mensagem politizada ao povo afro-americano em seu primeiro álbum Yo! Bum rush the show. Vestimentas africanas se misturam ao visual pesado do gueto e medalhões artesanais com os desenhos do continente africano gravado (conhecidos como zulu) assumem o lugar das pesadas correntes de ouro. Pode-se dizer que, neste momento, o rap torna-se de fato a trilha sonora da resistência negra nos EUA. Vale lembrar! Tal postura, politizada e de resistência, levou ao jovem daquela geração, no gueto, a consciência das suas raízes africanas.


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O rapper e grafiteiro Kris Lawrence Parker, conhecido como KRS-One, e seu DJ Scott La Rock, do grupo Boogie Down Productions (BDP), do sul do Bronx lançam seu primeiro álbum, Criminal minded, com um estilo que seria abraçado na Costa Oeste e chamado de gangsta rap. KRS-One ressurge do ostracismo com o ímpeto de discutir problemas e propor mudanças para o hip-hop: sua luta inicia-se com debates sobre os termos ho (prostituta) e bitch (cachorra), atribuídos pelos rappers às mulheres. Entretanto, como “em terra de cego, quem tem um olho é rei”, ele aproveita o momento de discussão consciente do movimento, chegando a ser arrogante em suas declarações, como se pode notar no site <hiponline.com>: Eu não sou um rapper. Eu sou o rap! Eu sou a encarnação do que muitos MCs estão tentando ser. Eu não estou fazendo hip-hop, eu sou o hip-hop!

Mesmo soando pedante, KRS-One é creditado como pesquisador da cultura hip-hop americana, e passa a ser conhecido como The Professor. Seguindo a linha humorística no rap, embora totalmente diferentes dos desavergonhados Beastie Boys, o grupo Fat Boys lança o álbum Crushin’, faturando o disco de platina pelo sucesso da música “The twist” (remake do velho hit rock de Chubby Checker, contando inclusive com a participação especial de Checker). Wipeout, sucesso com a participação da banda de surf music Beach Boys, contribui ainda mais para que os rappers sejam detectados pela mídia. Em evidência novamente (após participarem em 1985 do filme Krush Groove, de Michael Schultz e do comercial para a marca de relógios Swatch e, em 1986, para série de TV Miami Vice), o trio aceita um convite para estrelar nos cinemas a comédia Disorderlies. Para o rap não cair na mesmice, muitos rappers adotam a tradição das “batalhas” em seus discos e apresentações, como


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haviam feito no passado nas festas do Bronx. O rapper Kool Moe Dee inicia uma batalha oficial contra LL Cool J, gerando o sucesso de “How ya like me now”, enquanto o grupo Boogie Down Productions, do Bronx, se confronta com o Juice Crew, resultando no clássico “The budge is over kill tha noise”. Vale lembrar! Mesmo tendo o público se dividido em torcidas durante as batalhas, nenhuma briga é detectada então.

Miami emerge no cenário rap lançando viários rótulos de miami bass, fazendo uma maciça campanha por todo os EUA. Devido ao estilo ainda ser uma grande novidade, muitos produtores e artistas se esforçam para estabelecer sua identidade definitiva junto a ele: o DJ Magic Mike inspira-se no estilo do 2 Live Crew, criado por Mr. Mixx para produzir a música “Creep dog”, da dupla MC Cool Rock & MC Chaszey Chess. E ele não pára por aí: ao lado de Beatmaster Clay D, Mike continua produzindo esses rappers, lançando o álbum Boot the booty,14 que pode ser considerado fundador da linha do miami bass que explora a sensualidade – ou melhor, sexualidade – feminina como o centro de suas características. O sucesso do bass chama a atenção da mídia e da indústria fonográfica, a ponto de o empresário Edward Meriwether, dono do selo Suntown Records, contratar temporariamente o DJ Magic Mike para a construção de novas sonoridades dentro do bass. Assim, Magic Mike e Rod Whitehead unem-se para reproduzir a versão demo de 1986 de “Drop the bass” do grupo Prime Time, relançando-a com sucesso. Por falta de estrutura para se manter, Eric Griffin desenterra uma série de 12 polegadas produzidos por ele, divulgados no antigo catálogo da Bass Station. Junto a ele, Rod Whitehead e DJ Magic Mike trabalham numa trilha para a Suntown Records. Intitulada “Give it all you got”, 14 Booty significa bumbum.


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ela se tornaria um marco na história do rap de Miami. Enquanto a produção se conclui, a dupla de produtores dá “Give it all you got” para o grupo Afro-Rican, que a inclui em seu repertório ao lado das principais “We down express” e “The Afro-rican connection”. Dessa forma, Mike recebe o contrato definitivo para trabalho na Suntown Records. Embora o trabalho do Afro-Rican fosse diferente do bass da época, principalmente no que diz respeito à suavidade dos vocais, a nova trilha torna-se a consagração plena do grupo. Enquanto isso, em Nova York, rappers de todos os estilos dão con­tinuidade às suas pesquisas musicais, buscando novos sons, batidas e melodias. O rapper Big Daddy Kane apresenta seu mais novo estilo de rimar na música “Just rhymin’ wit biz”. O lado feminino do hip-hop reage, e essa força surge no bairro do Queens, pela voz do grupo Salt-N-Pepa, que em 21 de novembro abre caminho com o sucesso de “Push it”, do álbum Hot, Cool & Vicious, conquistando um disco de platina – o primeiro para mulheres rappers. A grande mídia, ainda atenta ao sucesso do rap, demonstra sua falta de conhecimento em relação ao hiphop, indicando o Run DMC ao Grammy, na categoria de “Melhor grupo vocal de rhythm & blues”.

1988 O questionamento torna-se a arma principal da música rap, que é vista como uma espécie de trilha sonora de conscientização afro-americana. Em 5 de fevereiro, Fab Five Freddy dirige o vídeo para a música “My philosophy”, do compacto simples By all means necessary do grupo Boogie Down Productions. Mantronix lança In full effect, que representa também sua assinatura de contrato com a gravadora Capitol Records. Infelizmente, o álbum é mal recebido: o público o interpreta como


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um trabalho meramente comercial, uma mistura patética de soul e dance baratos. MC Tee desliga-se do projeto sem divulgar os motivos, mas muito provavelmente por conta do fracasso do álbum. Algum tempo depois o rapper Bryce Wilson, integrante do grupo Groove Theory, consegue reunir o Mantronix, que o segue em sua turnê divulgando In full effect. O single “Tell me”, do Groove Theory, emplaca na terceira posição na parada r&b dos EUA e entra no top 10 do pop no Canadá. Vindo de Long Island, o Public Enemy lança o album It takes a nation of millions to hold us back, no dia 24 de junho. Trazendo sucessos como “Don’t believe the hype” e “Rebel without a pause”, o álbum é aclamado pela crítica, que considera a proposta de conscientização do grupo avançada para a época. Nes­te período a MTV dá início a apresentação de clipes de rap. No entanto, os mais politizados, como os do Public Enemy, ainda sofrem o impedimento de exibição. Como aquele velho ditado: “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, a MTV acaba abrindo a sua guarda para o hip-hop, inserindo em sua grade de programação o Yo! MTV Raps, com estréia em setembro de 1988. Em poucos meses, o Yo! torna-se o programa de maior audiência da MTV americana, ajudando a revelar artistas de rap nos seus mais variados estilos e a divulgar o movimento hip-hop. Cai finalmente por terra o monopólio branco da emissora. Durante os últimos anos o hip-hop caminhara rumo ao progresso a passos largos, mas ainda sem um veículo de comunicação que, além de entreter e informar os adeptos do movimento, adotasse também a sua linguagem. Eis que surge a revista The source. Especializada em hip-hop, a The source é publicada pela primeira vez em um dormitório da Universidade de Harvard. A sua primeira edição é feita no formato A3, com duas páginas. A música Colors, do rapper Ice-T, tema principal da trilha sonora do clássico cinematográfico do hip-hop Colors (As cores da violência), populariza conflitos, até então velados pela grande


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imprensa, entre gangues de Los Angeles (Bloods Vs. Crips), e dá origem a uma repercussão de âmbito nacional. Enquanto o rap mostra explicitamente a linguagem dos guetos afro-americanos, trazendo consigo o visual pesado dos hopers (cordões de ouro trançados no formato de corda), conjuntos esportivos, chapéus de golfista e tênis de solão, um outro ritmo, também oriundo das ruas do subúrbio, desperta de um longo sono com uma proposta inversa. Com vestimenta social, mas mantendo no corte das roupas o traço black, e no cabelo o penteado escovinha, constróem um perfil do negro de bom gosto, romântico e inteligente. Ao contrário dos versadores raivosos que introduzem as suas letras em batidas cortantes e secas, esses novos rappers preferem um som mais melódico e doce à base de extensões vocais e floreios. Seu nome: rhythm & blues (r&b). Neste momento, muitos redutos blacks criam a sua forma diferenciada de qualificar seu público, utilizando regras: “No tenis! No t-shirts! No caps”.15 É aí que o produtor Teddy Reiley apresenta uma nova fórmula para o r&b, de olho no rap como suporte em potencial da sua criação: o new jack swing ou new beat. Com BPMs (batidas por minuto) mais aceleradas e assumindo um modo de vestir que mescla os estilos formal e esportivo, o new jack é apresentado a alguns artistas de rap, como Big Daddy Kane e Heavy D, que o aprovam. Mas o new jack tem uma vida curta. De qualquer maneira, esse experimento significa o começo da fusão de dois irmãos que não se relacionavam amistosamente. Nos anos seguintes, o rap e o r&b tornariam-se parceiros: um potencial no bilionário negócio da música. Just Jammin’ Fresh and Def, ou J.J. Fad, torna-se o primeiro grupo feminino de rap a ser premiado pelo Grammy na categoria PopRap com o hit “Supersonic”. O trio de Los Angeles formado por MC JB (Juana Burns), Baby D (Dania Birks), e Sassy C (Michelle Franklin) prova ser um contraste completo, comparado aos seus colegas de selo (Ruthless Records) e a seus produtores: o grupo 15 Proibido tênis! Proibido camisetas! Proibido bonés!


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NWA. O álbum Supersonic conquista também o disco de platina e permanece durante quatro meses nas paradas da Billboard. Pela primeira vez uma posse – termo utilizado no rap para definir família, clã, crew –, formada por quatro MCs-rappers (Kool G Rap, Big Daddy Kane e Masta Ace) grava uma música: “The simphony”. Dentro dos próximos anos, essa prática se tornaria mais uma tradição entre os rappers de diferentes bairros. Os DJs Magic Mike e Beatmaster Clay D continuam seu trabalho como co-produtores até o meio do ano, até Mike descobrir que não está levando os créditos devidos por suas produções. Por conta disso, ele retorna para a cidade de Orlando e passa a trabalhar no desconhecido selo Cheetah Records, recebido como o DJ-produtor principal da casa. Enquanto o MC A.D.E continua fazendo álbuns, tendo seu repertório construído sobre vocoders16 mesclados a instrumentais do bass. Os grupos Dynamix II e DXJ, que também faz parte de uma crew de rappers conhecida como Maggotron, forjam uma espécie de preservação do electro funk em meio a era das inovações rítmicas de Miami, sendo a principal delas o electro-bass. O produtor conhecido como Pretty Tony, responsável pelo lançamento de artistas importantes como Trinere, Debbie Deb e Shannon lança um ritmo baseado nos instrumentais do miami bass, mesclando vocais latinos melódicos e, algumas vezes, os vocoders do electro: o freestyle. Enquanto isso, a gravadora Joey Boy Records se torna uma espécie de Def Jam de Miami, abrigando artistas de bass. Discípulos do Dynamix II, como Lon Alonzo, Scott Weiser e Phil ‘Bass Junkie’ Klein intensificam suas produções em cima do electro-bass, garantindo a preservação do estilo eletrônico do bass. Esta presença do electro no miami bass prova que sua matéria-prima ainda é muito valiosa para a caracterização do ritmo de Miami.

16 Efeitos eletrônicos de voz muito usados no electro funk e no funk dos anos 70.


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A jovem rapper conhecida como Queen Latifah, tenta a sorte entregando sua fita demo no escritório da gravadora Tommy Boy. A gravadora se entusiasma com seu trabalho e lança o álbum Wrath of my madness, com destaque para o sucesso de “Dance for me”. Latifah torna-se exemplo de militância feminina contra o machismo estabelecido pelos rappers em suas letras e posturas. Os artistas de gospel rap continuam surgindo e suas batidas e rimas atraem cada vez mais fãs. Conhecidos como os “Apóstolos do rap”, um time formado por artistas como D-Boy, SFC (Soup The Chemist), Freedom of Soul (Peace586), PID, JC and the Boys (hoje D2), T-Bone, XL, E-Roc, entre outros, torna-se a representação de um novo estilo de música consciente e espiritual. O grupo Run DMC entra em cena novamente lançando o álbum Tougher than leather, que emplaca mais de 1,5 milhão de cópias vendidas, com os sucessos de “Mary Mary”, “Papa Crazy” e “Run’s House”.

1989 Filho de Amityville, em Long Island, o grupo De La Soul lança no dia 3 de junho Me, myself and I, um compacto simples do álbum 3 feet high and rising. A Costa Leste reage e retorna à cena com propostas inovadoras, trazendo na bagagem estilos diferentes com base no humor e na melodia. 3 feet high and rising influencia tantos artistas que é apelidado de Sergeant Peppers17 do rap. Por não viverem no ambiente pesado do gueto, apesar de seus integrantes serem negros, o De La Soul acaba adotando um visual diferente, mais de acordo com o seu estilo de vida. Suas roupas simples remetem ao visual hippie, com algo de africano, e seus samples 17 Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o revolucionário oitavo álbum dos Beatles, lançado em 1967.


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ultrapassam as fronteiras da música negra, fugindo à regra dos rappers do gueto. Um dos artistas sampleados pelo grupo, o Turtles, banda de rock dos anos 60 e 70, similar aos Beatles, entra com um processo de um milhão de dólares contra os rappers por plágio. A respeito do problema, em entrevista ao documentário Planet rock, Posdnous, rapper do De La Soul, comenta: Deve-se declarar tudo que há de alheio na música. Nós sentamos com os advogados da gravadora no começo das gravações, e eles disseram: Herb Albert não quer mais que façam rap com a música dele. Ou então: Herb Albert quer oito mil dólares. Pagam? Eles informam a situação. Recebemos uma lista das pessoas que não devem ser incomodadas ou pedirão dinheiro. Você pode usá-la ou não.

Embora o De La Soul acabasse obtendo um acordo amigável com os Turtles, o assunto começa a preocupar outros rappers que procuram trabalhar menos com samples. Vale lembrar! Grupos como Arrested Development, The Roots e A Tribe Called Quest deram seqüência à nova linguagem do rap estabelecida pelo De La Soul.

Los Angeles subitamente lembra-se de seus bairros pobres. Assim, o rap da Costa Oeste começa a ganhar destaque. Emergindo das cinzas, o polêmico grupo NWA (Niggas With Attitude, “negros com atitude”), de Compton, é identificado como o pioneiro do estilo apelidado de gangsta rap pela mídia. O NWA estoura com o sucesso de “Fuck tha police”, do álbum Straight outta Compton. Ice Cube, integrante do grupo, teria recebido do FBI uma carta ameaçadora por conta do álbum. Embora o Public Enemy tivesse causado forte repercussão na sociedade, o grupo não chegou a causar o impacto do gangsta rap. Nascido nas ruas do bairro de Compton, o gangsta mostraria ao mundo, através de uma linguagem desmedida, a dura realidade do gueto.


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Muitos movimentos ativistas, inclusive a Igreja Negra, se voltaram contra o estilo. Com um jeito particular de narrar os fatos da rua, muitas vezes assumindo a identidade do personagem principal das letras, a atitude gangsta torna-se, facilmente, alvo para os mais conservadores, que resolvem travar uma guerra contra os rappers. No entanto, conforme aumenta a pressão da sociedade contra o gangsta, cresce a adesão dos jovens também, chegando a preocupar o Estado americano, especialmente porque a juventude branca também se torna então uma consumidora do produto proibido. A presença da juventude consumista é maior que a oposição gerada, a ponto de permitir o surgimento de novos selos no mercado, novos artistas e a exportação inevitável deste trabalho para o resto do mundo. Em meio a esse boom do gangsta, o rapper Ice-T reivindica seu pioneirismo no estilo, alegando tê-lo criado muito antes de o NWA surgir. Segundo ele, o título deve ser atribuído ao seu bairro, South Central. O rapper Ice Cube, acaba deixando o NWA para seguir carreira solo. Após a absurda morte de seu DJ, Scott La Rock – que tentara apaziguar um grande mal-entendido envolvendo um amigo DJ que se relacionara com a ex-namorada de um traficante ciumento do Bronx –, em 1987, e o aumento da violência entre os jovens dos guetos, o grupo Boogie Down Productions, com o apoio da equipe Bomb Squad (produtores do Public Enemy), lança o single “Self destruction”, trilha sonora da campanha “Stop The Violence”. Participam tanto no single como no videoclipe, além do BDP, Public Enemy, Stetsasonic, Kool Moe Dee, MC Lyte, Doug E. Fresh, Just-Ice e Heavy D. Desde então, todos os álbuns de rap dos artistas da região da Costa Leste passam a aderir ao movimento imprimindo em seus álbuns o selo da campanha. Mesmo com toda avalanche de sucesso e polêmicas gerados pelo NWA, o grupo Public Enemy, retorna às paradas com o hit “Fight the power”, presente na trilha do clássico Faça


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a coisa certa, longa do diretor Spike Lee. Em “Fight the power”, o grupo ataca ídolos brancos, como o ator John Wayne e o cantor Elvis Presley. Posteriormente, Chuck D, líder do Public Enemy, tentaria amenizar a fúria que a letra causara através de declarações à imprensa. Ainda em 1989, Professor Griff, rapper integrante do Public Enemy, é expulso do grupo, após ter feito declarações antisemitas ao jornal The Washington Post. Segundo o jornal, Griff teria declarado que os judeus eram os culpados pela maioria dos males que aconteciam no planeta. A demissão de Griff por Chuck D é importante para o grupo, adepto do islamismo. Chuck D temia mais acusações similares associadas ao Public Enemy. O renomado rapper DOC, no auge de sua carreira, logo após ter lançado o álbum No one can do it better, é vítima de um acidente de carro que compromete suas cordas vocais. O polêmico grupo de estilo miami bass 2 Live Crew, estoura com “Me so horny”. A censura de algumas rádios a seus versos obscenos não impede o sucesso da música. A letra, baseada nas citações de uma prostituta vietnamita, parte sampleada do filme Nascido para matar, de Stanley Kubrick, irrita a American Family Association (Associação Americana da Família), organização conservadora que até então acreditara na eficiência do selo de advertência “Parental Advisory” para a inibição da obra do grupo. Numa postura ainda mais radical, Jack Thompson, advogado afiliado à AFA, reune-se com o então governador da Flórida Bob Martinez e exige uma intervenção direta do político com o intuito de obter uma restrição maior, imprimindo junto ao selo de advertência já existente, a palavra obscene (obsceno). Morre aos 28 anos, vítima de crack, o rapper Cowboy, do grupo The Furious Five. Ao lado do DJ Grand Master Flash, esse artista de Nova York, que assumira a personalidade também de MC, pode ser considerado um dos primeiros renovadores do hiphop, com suas experimentações musicais adicionadas a críticas sociais. Cowboy fora inclusive, o primeiro rapper a integrar-se ao


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projeto de Flash. Ele será lembrado, enquanto houver hip-hop, por participações memoráveis em músicas como “Freedom” e “The showdown”, como também por ter criado frases que até hoje sacodem o mundo hip-hop: Throw your hands in the air, And wave ‘em like just don’t care; Everybody say ho; Clap your hands to the beat.

Mas nem só por caminhos tortuosos trilha o hip-hop. Como representante das mulheres no rap, Queen Latifah atinge rapidamente grande prestígio com o estouro do single “Ladies first”. Ela aproveita muito bem as oportunidades cavadas por seu talento e mantém uma relação de afinidade com o r&b e o reggae, demonstrando ser uma artista de rap versátil. Latifah adquire o respeito da comunidade hip-hop por participar em duetos ao lado de KRS-One e De La Soul. Bem-sucedida, diversifica também seu ramo de atividades, fundando a agência Flavor Unit Entertainment, responsável por descobrir novos talentos no rap, como o grupo de Nova Jersey, Naughty by Nature. Quando o Grammy finalmente apura seus ouvidos e conhecimentos em relação ao hip-hop, o prêmio vai para a dupla DJ Jazzy Jeff & Fresh Prince, na categoria Rap, concorrendo ao lado de nomes importantes como as mulheres do Salt-N-Pepa e do rapper Big Daddy Kane. Outra boa notícia é criação do programa Rap City, pelo canal de música negra BET, com apresentação de Chris Thomas, conhecido como “The Mayor” (“O Prefeito”). Embora o canal já exibisse o rap normalmente na extensão de suas programações, o Rap City serve então para dar mais visibilidade ao ambiente hip-hop, o que chega a incomodar seu concorrente, o programa Yo! MTV Raps.


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1990 Preocupados com os constantes conflitos entre gangues, os rappers da Costa Oeste reúnem-se e lançam o hit “We’re all in the same gang”. O rapper gospel MC Hammer lança “You can’t touch this”, do álbum Please Hammer don’t hurt’em, que emplaca 10 milhões de cópias vendidas. Ice Cube, em carreira solo, junta-se aos produtores do Public Enemy, então conhecidos como Bomb Squad, para lançar, em junho, o polêmico álbum Amerikkka’s Most Wanted. O rapper Slick Rick é preso e acusado de assassinato. Seguindo a linha humorística dos Fat Boys, a dupla Kid’N Play, alcança sua popularidade estrelando no filme House party. Com o sucesso comprovado do longa, Kid’N Play inspira o primeiro desenho animado contendo personagens rappers. A Costa Oeste volta a ser palco de acontecimentos polêmicos: surge em Miami mais um rapper branco no cenário rap: Vanilla Ice lança o single “Ice ice baby”, seguido de seu álbum To the Extreme. Piada na comunidade do rap – não por ser branco, mas por se fazer passar por espécie de gangsta branco –, Ice consegue atingir um público leigo ao hip-hop, que aceita de pronto a dançante “Ice ice baby”,18 destinada ao primeiro lugar nas paradas americanas. Além da grande aceitação do single, To the extreme rende, em apenas 16 semanas, o marco de sete milhões de cópias vendidas, somente nos EUA. A popularidade de Vanilla Ice leva à sua participação no longa Cool as ice. Mas a demora na finalização das filmagens leva a carreira do rapper ao ostracismo; enquanto espera que o filme fique pronto, seus fãs se esquecem de “Ice ice baby” e do rapper. Sua situação

18 A música foi baseada em um sample de Under pressure, um clássico da banda de rock Queen. Under pressure é cantada em dueto pelo vocalista Freddy Mercury e David Bowie.


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pioraria ainda mais no ano seguinte com o lançamento de “Pop goes the weasel”, do álbum Derelicts of dialect, do grupo de rap originário do Brooklyn, 3rd Bass: além de esta música ser endereçada a todos os rappers aproveitadores de situação – em especial a Vanilla Ice –, o clipe do 3rd Bass apresenta uma cena de espancamento a um personagem que é uma espécie de caricatura de Vanilla, com direito a tacos de baseball e pisadas sobre o impostor. Diretamente de São Francisco surge um rapper que contrariaria todos os padrões sistemáticos do seu país através de músicas altamente contestadoras, que deixam o Tio Sam de cabelos brancos: Paris é o seu nome. Lançando o single “The devil made me do it” (“O diabo me obrigou a fazê-lo”), seguido do álbum do mesmo título, Paris mostra-se inflexível diante de assuntos políticos e sociais polêmicos, como o envolvimento do governo americano em conflitos no Oriente Médio, a violência policial e o racismo, levando sua mensagem para além dos guetos e aliando-se a grupos revolucionários como o Public Enemy. Nick Navarro, xerife oficial do condado de Broward, na Flórida, recebe ordens expressas do juiz Mel Grossman para advertir artistas que violassem as leis e cantassem letras obscenas. Dentre todos os artistas de bass listados, o mal visado é o 2 Live Crew, que decide agendar um encontro com o xerife. Os proprietários das lojas de discos, também entram na proibição, e os que se atrevem a vender discos considerados impróprios são levados aos tribunais. Em junho o juiz José Gonzalez determina uma busca contra o álbum As nasty as they wanna be, declarando-o obsceno e ilegal para venda. Charles Freeman, um varejista local, é preso dois dias após ter vendido uma cópia do álbum do grupo a policiais disfarçados. E não pára por aí: três membros do 2 Live Crew são detidos após um show por cantar as letras do álbum confiscado. Em seguida, são inocentados e liberados. A conseqüência de toda essa controvérsia em torno de As nasty as they wanna


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be é a vendagem de mais de dois milhões de cópias, só nos EUA. Outros varejistas seriam presos mais tarde pelas vendas do álbum. E a popularidade do grupo cresceria ainda mais, especialmente quando George Lucas, diretor da trilogia Star wars, processa Luke Skyywalker por apropriação indevida do nome de seu personagem. Skyywalker muda seu nome artístico simplesmente para Luke. Após tanta pressão sobre o 2 Live Crew, Luke lança um álbum solo de forte teor político – o que até então não fazia parte do seu perfil original – como ato de protesto: “Banned in the USA” sampleia parte do instrumental e parodia os refrões do sucesso de Bruce Springsteen, “Born in the USA”. Tudo legalmente acordado entre o rapper e o roqueiro. A revista The source adotou como ícones para crítica de álbuns microfones de ouro, que variavam de um a cinco, para classificar os melhores artistas de rap. O grupo A Tribe Called Quest torna-se o primeiro a conquistar cinco microfones com o álbum People’s instinctive travels and the paths of rhythm.

1991 A indústria cinematográfica volta a apostar no hip-hop, e lança em março, o filme New Jack City (A gangue brutal), que fatura sete milhões dólares somente na primeira semana. Em julho ocorre a pré-estréia do filme Boys in the hood (Os donos da rua). No dia 7 de setembro, o grupo Naughty By Nature lança OPP, que mais tarde chega ao sexto lugar da parada de sucesso da música pop americana, enquanto sua madrinha, Queen Latifah lança o álbum Nature of a sista, mal divulgado pela gravadora Tommy Boy. Latifah permanece na “geladeira”, sem poder reincidir seu contrato junto à gravadora. Em meio ao ponto baixo que enfrenta em sua carreira, seu irmão morre, vítima de um acidente de motocicleta.


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A MTV dá a devida atenção aos rappers através do seu Acústico MTV, convidando LL Cool J, MC Lyte e De La Soul, como os primeiros artistas do gênero a participarem do programa. O grupo Main Source lança o álbum, Live at the BBQ, e apresenta para a comunidade hip-hop o rapper Nas, do Queens. Anos depois, Nas seria mal interpretado, tanto pelo público quanto por colegas de trabalho, devido ao seu estilo inovador de canto e composição. Em minha opinião, mesmo hoje, seu estilo ainda pode ser visto como avançado. No final do ano, o rapper, ex-integrante do NWA e produtor Dr. Dre, e o empresário Marion Suge Knight, formam o selo Death Row Records, em Los Angeles, numa transação de 10 milhões de dólares com a distribuição da Interscope. A partir de então, o Death Row é o principal selo a amparar os artistas de gangsta rap, tornando o sucesso de muitos um negócio milionário. Embora a prática do sample já tivesse acarretado problemas com a justiça para alguns artistas do rap, muitos ainda preferiam correr riscos: em 13 de novembro, o cantor Gilbert O’ Sullivan processa o rapper Biz Marquie por samplear o sucesso de “Alone again, naturally”, de 1972. Eventualmente as duas partes estabelecem um acordo em um tribunal de Nova York e a gravadora do rapper, a Warner Bros., concorda em pagar a Sullivan os royalties pedidos, estabelecendo a partir de então que samplear sem a autorização do autor pode ser visto como forma de plágio. Em 28 de dezembro, nove pessoas são mortas e uma multidão fica ferida durante um jogo de basquete de celebridades promovido pelo produtor Puffy Combs (Puffy Daddy, hoje P. Diddy), em Mount Vernon. O conceituado advogado Allan Dershowitz defende Combs no tribunal. Inovações não param de acontecer, favorecendo o hip-hop: O DJ Stretch Armstrong e Bombbito Garcia, colunistas da revista The source lançam o programa HH na Rádio WKCR, da Universidade


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de Columbia. Surge também no miami bass uma nova sonoridade: o latin bass, que combina samples de salsa à base instrumental pesada de Miami. Fascinado pela nova mistura, o DJ Laz, da Rádio Power 96, de Miami, inicia divulgação acirrada em sua programação. Mas enquanto o bass de Miami evoluía por conta própria, tomando destaque por todos os EUA e em outras partes do mundo, os produtores de Nova York (que se baseavam até então em raps caracterizados nas batidas da bateria eletrônica TR 808) abandonam essa linha, causando assim uma espécie de conflito territorial. Isto leva o miami bass a ser visto como um estilo inferior dentro do rap, repudiado tanto por artistas quanto por seus fãs. O Cypress Hill é o primeiro grupo latino a ganhar o disco de platina por alcançar a marca 1,7 milhões de cópias vendidas de seu primeiro álbum, Cypress Hill, sem sequer ter tocado nas rádios. Neste período, o Cypress Hill aproveita o sucesso e fortalece suas bases formando uma posse junto aos grupos House Of Pain, Funkdoobiest e The Hooligans, quase todos brancos e/ou imigrantes nos EUA. Vale lembrar! O sucesso do Cypress Hill foi todo construído sobre um tema um tanto polêmico e completamente fora dos padrões ideológicos do hip-hop: a maconha! Em entrevista à revista DJ sound, B-Real, líder do grupo declara o seguinte a respeito: “Muitos vão dizer que isso é ruim, mas preferimos falar a respeito de algo que existe do que ficarmos inventando histórias fantásticas sobre violência, mulheres vulgares e sobre o quanto somos bem dotados sexualmente. Fazemos parte de um movimento para a legalização do uso de marijuana por termos estudado a respeito, termos concluído que ela tem uma série de usos terapêuticos e que é um produto inteiramente natural e menos ofensivo que o cigarro, por exemplo. Falar sobre o uso positivo de uma planta não pode ser ruim. O que é ruim é glorificar a prática de assassinatos e a promiscuidade, como muitos fazem”.


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O grupo feminino JJ Fad lança seu segundo álbum: Not just a Fad, com produção de DJ Yella e Arabian Prince (ambos do NWA), que não atrai a atenção dos fãs. O grupo desanima e se desfaz no ano seguinte.

1992 O músico e produtor Quince Jones e a gravadora Time Warner tentam, em vão, comprar a revista The source. Como não conseguem, fundam a revista Vibe. Estréia em janeiro nas telas de cinema mais um clássico do hiphop. O filme, intitulado Juice é estrelado pelos rappers 2 Pac e Queen Latifah, além do ator novato Omar Epps. O rapper Grand Puba encontra o empresário Tommy Hilfiger, casualmente, no aeroporto JFK, em Nova York. O encontro rende um contrato: durante os anos seguintes, Puba promoveria a linha de roupas Tommy Hilfiger. Mas nem tudo sairia tão bem para a Tommy junto a seus consumidores do hip-hop: após uma declaração infeliz dada à imprensa – em que afirma que sua marca não fora criada para atender ao consumidor afro-americano, em especial, ao público do hip-hop –, o empresário Tommy Hilfiger acaba por desencadear uma resposta fashion no gueto. Quatro amigos do bairro de Hollis, indignados com o comentário, reúnem-se e lançam a grife FUBU (For Us, By Us),19 que seria comercializada com qualidade similar à Tommy, mas com preço muito mais acessível. Nos anos seguintes, a FUBU prospera no setor de moda, mantendo o preço de suas roupas de acordo com as condições da população do gueto. Os produtores musicais Anthony Marshall e Danny Castro inauguram em Nova York o evento “The Lyricist Lounge Open Mic Night”, com a intenção de dar visibilidade aos novos talentos do rap. 19 Para nós, por nós.


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Vale lembrar! O “Open Mic” revelou artistas como Foxy Brown, Notorious BIG e Eminem.

Apesar de ter sido lançado no ano anterior, o álbum Apocalypse 91...The enemy strikes black, do grupo Public Enemy, causa forte polêmica com o clipe de “By the time I get to Arizona”, um protesto contra o Arizona – um dos dois estados dos EUA que então não consideravam feriado a data de aniversário do líder afro-americano Martin Luther King Jr. (1929-68). O Guinnes book, livro de registro de recordes mundiais, indica o rapper Twista como recordista: ele é capaz de falar 598 sílabas, compassadamente, em apenas um minuto. O jeito de rimar de Twista torna-se uma das principais referências do grupo de Cleveland, Bone Thugs-N-Harmony, que mistura elementos do soul e r&b em suas composições, tornando-se a revelação sonora do rap melódico nos EUA. Líder do grupo nova-iorquino Boogie Down Productions, e um dos pioneiros autênticos na divulgação do hip-hop durante os anos 80 e 90, KRS-One, excursiona pelos EUA não só apresentando suas músicas, mas também palestrando sobre a importância do movimento em locais inusitados como as universidades de Yale e Harvard, entre outras instituições, para o desânimo daqueles que ainda julgavam a cultura hip-hop um veículo sem conteúdo para a transformação positiva dos jovens. Ainda neste período, ele recebe as chaves das cidades de Kansas, Philadelphia e Compton (Califórnia), além de receber da NACA (National Association for Campus Activities, ou Associação Nacional para Atividades nos Campi) o prêmio “NACA 1992 Harry Chapman Humanitarian Award”.20 É também homenageado pelo trabalho social que promovera através das empresas Reebok e Ampex com os prêmios “Reebok Humanita-

20

Prêmio Humanitário Harry Chapman.


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rian Award” e “Ampex Golden Reel Awards”, por promover ações sociais através do hip-hop, entre os jovens de comunidades. Ele também é o responsável por criar e promover a campanha “Stop The Violence Movement”,21 envolvendo a participação de rappers de renome na música promocional “Self-destruction”, e por levantar fundos para entidade National Urban League (Liga Nacional Urbana), especializada na formação de líderes comunitários, por meio do single “Heal yourself”. Participa de gravações ao lado de artistas de outros gêneros, como a banda de rock REM, na música “Radio song”,22 além de Sly And Robbie, Shelly Thunder, Shabba Ranks, Ziggy Marley, Billy Bragg e The Neville Brothers, e de colegas como Kool Moe Dee, Chuck D e Tim Dog, entre outros, comprovando o respeito e a admiração que KRS-One cultiva no mundo da música. Vale lembrar! KRS-One é bem visto ainda por participar de shows beneficentes como o “Nelson Mandela 70th Tribute Concert” e “Earth Day”.

Desde 1989, Magic Mike e 2 Live Crew travam uma competição saudável, exigindo cada vez mais qualidade de produção. Em meio a loucura das concorrências, surge o grupo Boys from the Bottom, que se torna mais conhecido com o sucesso do single “Abusadora”, lançado pelo selo Cut It Up Def. Muitos produtores dos anos 80 estavam habituados a utilizar samples de scratch para representar as performances de um DJ, e estes artistas chegam para mudar tal cenário, trazendo ao estúdio o elemento real e fundamental: o DJ. Um exemplo dessa linha é o produtor Rick Rubin, que sempre preservara a figura do DJ nas produções da Def Jam, mantendo viva a chama do hip-hop underground até hoje. Todavia, até então, apesar das muitas dificuldades

21 “Movimento Parem com a Violência”. 22 Em apoio ao líder da banda, Michael Stipe, numa campanha de levantamento de fundos para o projeto HEAL, que cuida de doentes mentais. O HEAL funciona até hoje.


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enfrentadas pela cena bass – inclusive o boicote dos produtores de Nova York –, Mr. Mixx e Magic Mike são apontados como os responsáveis principais pela resistência do rap de Miami. Uma prova dessa iniciativa são as milhares de cópias de álbuns distribuídas por todo o país e pelo resto mundo. O miami bass só começa a se deteriorar por conta da grande quantidade de grupos nada autênticos, que se aproveitam da situação e confundem o público com fotos sensuais de mulheres de mini-saias na estampa de seus álbuns. Artistas como Lon Alonzo, Jock D, Jealous J, MC Zeus, Luis Diaz, e Danny D, que num passado não muito remoto eram considerados no meio pelos rappings precisos e por autênticos scratchings em suas produções, agora vendem bem menos que os álbuns de car audio bass, que se tornam um de seus principais concorrentes. Mas essa não era a única barreira enfrentada pelos rappers de bass: a booty music torna-se outro estilo em ascensão. Em meados de 1992, no entanto, os clássicos “Woomp/Whoot there it is” e “Dazzie duks” dominam as ondas das FMs trazendo de volta o autêntico miami bass, e mudam a opinião do público que antes o negligenciara. Agora, o bass é reconhecido como seguimento oriundo do electro funk. O rap mais politizado ainda sofre algumas represálias por parte do mercado: a gravadora Tommy Boy Records, juntamente com a Time Warner, recusa-se a distribuir o segundo álbum de Paris, Sleeping with the enemy (Dormindo com o inimigo), quando descobrem seu conteúdo incendiário. O rapper fantasia em suas letras uma série de tentativas de assassinato ao então presidente George Bush23 e atentados contra policiais racistas. Após travar uma luta feroz para a liberação de sua obra, ele fecha contrato com a recém-inaugurada Scarface Records, que possibilita sua distribuição inicial e aclamação em âmbito nacional. Uma corte de apelações presidida pelo juiz José Gonzales decide,

23 O George Bush pai, que governou de 1989 a 1993.


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oficialmente apoiada pela suprema corte dos EUA, a cassação e proibição de álbuns obscenos. Fresh Kid Ice e Mr. Mixx, mesmo sabendo dos riscos com a justiça, relançam sucessos antigos do 2 Live Crew (registros feitos antes mesmo da aparição de Luke Skyywalker no grupo), e também dois álbuns solo de Luke: I got shit on my mind e The Chinaman. O vice-presidente americano Dan Quayle critica Ice-T e sua banda de hardcore, Body Count, pela música “Cop killer”, acusando-os de apologia à violência contra policiais. Curiosamente, Ice interpretara um policial no filme New Jack City, o que pode ter contribuído para chamar mais a atenção das autoridades para o trabalho do rapper. Ele se defende alegando que seu papel no filme não passara de um retrato idealizado de um policial linha dura, a favor da comunidade, o que não estava de acordo com a realidade, segundo Ice. A cantora de r&b Mary J. Blige lança o álbum What’s the 411?, produzido por Puff Daddy, que a indica como rainha da fusão hip-hop-soul. Nos anos seguintes, esta experiência daria a ambos os ritmos a notoriedade mundial, além da liderança no mercado da música. A mídia, associada ao mercado fonográfico, tentaria divulgar esse gênero como mais um elemento do hip-hop; erro grave que resulta em classificações confusas até os dias de hoje.

1993 Enquanto contratos milionários são fechados, estimulando o crescimento e a comercialização do gangsta, gente como o Reverendo Calvin Butts, em ato de protesto, quebra em público pilhas de CDs com músicas que fazem apologia à violência. O rapper Snoop Dogg é capa da revista Newsweek, como personagem do artigo “Quando o rap é violento”. E por falar em estilo autenticamente violento e inteligente, Paris assina como artista principal numa transação de distribuição junto à Priority Records, que, em parceria com a Scarface Records, lança seu


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terceiro LP, Guerrilla funk. O álbum traz uma participação notável da dupla feminina Conscious Daughters. André Harrell, o principal homem da gravadora Uptown, demite o produtor Puffy Combs em julho. Em 13 de agosto, surge a Bad Boy, novo negócio de entretenimento de Combs, que assina um contrato de produção com Clive Davis, da gravadora Arista Records. No dia 9 de novembro, Flavor Flav, rapper do Public Enemy, é acusado de tentativa de assassinato a um vizinho. Flav, usuário de crack, é afastado temporariamente do grupo por Chuck D para um tratamento intensivo. Totalmente recuperado, anos depois Flavor Flav declararia em entrevista ao New Music:24 Cometi muitos erros e aprendi com eles. Assim, posso compartilhá-los com meus filhos. Falo de experiências verdadeiras e não de algo que alguém me contou. Quando passar isso pra eles, não direi: Não façam porque alguém me contou que isso pode acontecer. Não! Sinto orgulho de poder dizer: Não façam isso, pois acontecerá isso e aquilo. Estou feliz por ter passado por essas experiências e significa muito para mim. Deus é bom.

Em 1º de dezembro, o rapper Tupac Shakur é submetido a jul­ ga­mento em Atlanta, sob acusação de envolver-se em uma discussão entre dois policiais e um motorista negro. O rapper teria atirado contra os policiais alegando autodefesa. No julgamento, descobre-se que os policias estavam bêbados e Tupac é inocentado. Considerado um dos primeiros rappers a popularizar o beatbox, Darren Robinson, mais conhecido como Buffy – o Beatbox Humano, na companhia dos amigos Prince Markie Dee e Kool Rockski – todos do bairro do Brooklyn – assumem seu antigo nome, Disco 3 e ganham o show de talentos promovido pelo Radio City Music Hall.

24 Programa canadense exibido pelo canal Multishow.


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Vale lembrar! Todos os integrantes do Disco 3 pertenciam ao Fat Boys.

Após uma longa temporada “congelada” pela Tommy Boy, Queen Latifah reemerge formalizando um contrato com a poderosa Motown. Seu novo álbum é dedicado à memória de seu irmão, e transforma-se em um dos LPs mais populares de rap até então. Além de conquistar o disco de ouro, o single “U.N.I.T.Y.” ingressa no top 10 americano de r&b e ganha um Grammy na categoria de “Melhor performance de rap solo”. Com o sucesso absoluto de sua carreira musical, Latifah salta para a telona e brilha em filmes como Jungle Fever, House party 2 e Juice, além de participar da série de TV The Fresh Prince of Bel Air. Ainda em 1993 ela é convidada a co-estrelar na série humorística da Fox Living single, que duraria até 1997. Aproveitando o prestígio colhido nos anos anteriores, KRS-One lança seu primeiro álbum solo Return of the boom bop, com destaque para a faixa “KRS-One attacks”, que continha algumas partes das letras dos sucessos “The criminal minded” e “P is still free” (uma atualização da sua música anti-crack de 1986, “P is free”).

1994 Natural de Los Angeles, o rapper Warren G lança, em abril, Regulate...G funk era, que se torna o single pop número um da gravadora Def Jam. O álbum traz ao gangsta rap o estilo g funk.25 O g funk é melódico, com linhas de baixo e baterias envolventes – similares ao estilo p funk dos anos 70 –, e periódicos vocais de r&b. Bem próximo da visão harmônica de Warren G, o grupo Bone ThugsN-Harmony, natural de Cleveland, lança, com o apoio de Eazy-E, 25 Uma alusão ao estilo p funk, de George Clinton.


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o EP Creepin’ on ah come up, mostrando ao mundo uma espécie de releitura melódica do rap e do r&b, que remete aos trabalhos pioneiros do grupo Whodini, nos anos 80. Creepin’on ah come up rende aos rappers o primeiro lugar na parada da Billboard, e três milhões de cópias vendidas com o sucesso “Thuggish-ruggish bone”, clássico que em seguida torna-se clipe assim como “For da love of Money” (com a participação especial de Eazy-E). Porém, bem antes do sucesso, os integrantes do Bone Thugs traficavam drogas na esquina da St. Clair com a E. 99, em Cleveland, e costumavam roubar o entregador de pizzas do bairro. Em um desses delitos, chegam a virar notícia nas páginas policiais do jornal local. Em 1987, Krayzie, Layzie, Flesh e K-Chill haviam formado o grupo The Band Aid Boys e juntaram suas economias para gravar uma fita-demo chamada Faces of death. Sem qualquer possibilidade aparente de sucesso para os Aid Boys, K-Chill desligara-se do projeto, que em seguida foi rebatizado Bone Enterprise, contando com a entrada de Wish e, por último, de Bizzy. Ainda envolvidos com encrencas nas ruas, os rappers vão para a Califórnia na tentativa de fazer contato com Eazy-E (dono da gravadora Ruthless Records e líder do NWA). Mas não conseguem e voltam ao mundo das drogas em sua cidade. Persistentes, acabam conseguindo falar com Eazy por telefone. Mesmo sem uma resposta concreta do rapper, rebatizam o grupo com a polêmica sigla B.O.N.E. (Buddahead Out Nigga Everyday). Krayzie Bone ainda adiciona à sigla o sobrenome Thugs-N-Harmony, em referência à harmonia vocal característica do grupo e também à unidade mantida entre os integrantes. Após diversas tentativas, o grupo consegue contatar novamente Eazy-E, em Cleveland, durante um show do NWA. Um fato engraçado foi que os rappers estavam em outra cidade e retornaram desesperados quando souberam do show. Arrumaram um jeito de entrar no backstage e, ao avistarem Eazy, começaram a cantar um rap, que futura-


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mente serviria como catapulta para lançá-los mundialmente: “Thuggish-ruggish bone”, o início de tudo. Ainda no campo das inovações no rap, no dia 19 de abril, Nas lança o álbum Illmatic, bastante evoluído para a época. No dia 1º de setembro, a Bad Boy Entertainment lança o rapper nova-iorquino Notorious BIG e o seu trabalho Ready to die. Ins­ pi­rado no estilo gangsta, BIG assumiria um estilo de “durão das ruas”, com uma diferença sutil que agradaria às mulheres: coloca-se como playa (uma espécie de Dom Juan negro). Em 26 de setembro, o grupo Thug Life, liderado por Tupac, lança seu primeiro álbum, Thug Life: Vol.1, considerado um sucesso de vendas. No entanto, o grupo se desfaz assim que Tupac é liberado de uma prisão temporária. Em 30 de novembro, Tupac Shakur é baleado com cinco tiros, tendo suas jóias (avaliadas no valor de 40 mil dólares) roubadas na entrada principal de um estúdio de gravação na Times Square, em Nova York. Enquanto o gospel rap entra numa espécie de ostracismo, e o gangsta rap assume o lugar da velha escola do hip-hop, um grupo de novos convertidos ao Evangelho, oriundo de Los Angeles, surge para manter vivo o espírito dos “Apóstolos do Rap”. O Gospel Gangstaz, formado por Mr. Solo, Chillé Baby e Tik Tokk, com o apoio do DJ Dove (do grupo SFC) na gravação de seu primeiro CD, Gang Affiliated, obtém vendagem superior a cem mil cópias, conseguindo entrevistas na MTV e comentários positivos de artistas como Coolio, Tupac e Dr. Dre, que os viram como autênticos representantes do estilo evangélico. Vanilla Ice ainda tenta um “álbum de misericórdia”, lançando Mind blowin’, disco que aposta mais no pop e na linha do Cypress Hill, ídolos do rapper. O desastre é total. Sua estratégia para se manter no mercado musical é seu passaporte de ida definitiva para a “geladeira” no mundo do rap.


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Considerada uma das mais populares emissoras de FM entre o público jovem de Nova York, a Hot 97 inclui o hip-hop em sua programação. Além da atenção das FMs ao hip-hop, o refrigerante Sprite dá continuidade a suas campanhas publicitárias junto ao movimento, desta vez usando os rappers Grand Puba, Pete Rock e CL Smoth. Os Beastie Boys lançam o álbum Ill communication, com destaque para a faixa “Sabotage”. Durante a premiação do MTV Video Music Awards, quando o clipe de “Everybody hurts”, da banda de rock REM, é premiado, Nathaniel Hornblower, suposto tio de Adam Yauch (o MCA, dos Beastie Boys), invade o palco do Radio City Music Hall. Trata-se do próprio MCA, fantasiado com peruca, barba e bigodes exagerados, que faz seu protesto, alegando que os Beastie Boys são o grupo mais aclamado do momento. Mas os brincalhões Beastie Boys também levavam as coisas a sério: eles doam os direitos autorais das faixas “Shambala” e “Bodhisattva vow”, do álbum Ill Communication, para criar a ONG Milarepa, dedicada a promover programas educacionais e a liberação do Tibet. O grupo faz três shows em maio, em Nova York, Los Angeles e Washington DC, com o intuito de levantar fundos para a Miralepa.

1995 Mês de fevereiro. Enquanto paga sua pena por abuso sexual, com sentença de quatro anos, Tupac ganha os primeiros lugares da parada Billboard, com seu álbum Thug Life: Vol 1, atraindo a atenção do empresário e dono da gravadora Death Row, Mario Suge Knight. Mario paga a fiança de um e meio milhão de dólares para livrar o rapper da prisão. Em troca, Tupac, assina um contrato com a gravadora ainda preso na Penitenciaria de Clinton, em Columbia. Liberado no final de fevereiro, segue para o estúdio para iniciar a gravação do álbum Me Against the World, lançado em 14 de março.


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No dia 26 de março morre, vítima da AIDS, Eazy-E, líder do NWA. Neste mesmo ano falece também Buffy, dos Fat Boys, vítima de ataque cardíaco, deixando pendente o trabalho que representaria o retorno do grupo. Aproveitando o sucesso do EP Creepin’ on ah come up, o grupo Bone Thugs-N-Harmony lança o álbum East 1999 eternal, em homenagem à rua em que passavam seus dias traficando. O álbum vende quatro milhões de cópias, e seu destaque é a faixa “Tha Crossroad”, uma homenagem ao rapper e padrinho Eazy-E. Paris corta relações comerciais com a Priority Records por “divergências ideológicas”. A Priority entrara no mercado graças à explosão do gangsta, e ter um ativista em forma de rapper como Paris era perigoso demais para os negócios da gravadora. Mesmo não assumindo uma linha tão radical quanto a de Paris, o grupo The Roots não apenas colabora com a inovação do modo de militância política no rap, como também resgata a primeira forma de gravação do gênero em seu álbum de estréia, Do you want more, com instrumentos sendo tocados ao vivo nas músicas. Os Beastie Boys apresentam-se na turnê de arena Quadraphonic Joystick Action com ingressos esgotados no Madison Square Garden (Nova York) e no Rosemont Horizon (Chicago), em cerca de uma hora e meia cada. O mesmo se repete no Worcester Centrum (Massachusetts), num período aproximado de 20 minutos, e no Cobo Arena (Detroit) em cerca de nove minutos. Em todas essas casas, um dólar de cada ingresso vendido é destinado às obras assistenciais da Milarepa e a instituições de caridade locais das respectivas cidades americanas. O grupo percorre com a mesma turnê países da América do Sul e do sudeste da Ásia. Neste período, lançam o EP Aglio & olio, pelo selo independente Grand Royal (focado em “punk vintage hardcore”, estilo do grupo antes de sua conversão ao hip-hop).


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O empresário Russell Simmons vende o império da Def Jam para a gravadora Polygram, numa transação de 100 milhões de dólares. Mas a negociação não elimina Simmons da direção da gravadora: ninguém melhor do que ele para conduzir uma casa dedicada ao rap. O empresário Suge Knight agride com palavras indiretas o produtor, empresário e rapper, Puff Daddy, durante a entrega de prêmios da revista The source. Um prato cheio para a imprensa, que tenta mostrar o conflito como uma briga mais ampla entre as costas Leste e Oeste. O cineasta Spike Lee convida os grupos de gospel rap Soup the Chemist e Dynamic Twins (D2), para compor uma música para seu próximo filme. A proposta alavanca a carreira de ambos, que apostam no lançamento dos álbuns Illumination (do SFC) e 40 Days in the wilderness (de D2), fortalecendo ainda mais a popularização do gênero. As rappers do Salt-N-Pepa são o primeiro grupo feminino a conquistar o Grammy na categoria de “Melhor duo de rap”.

1996 Em 13 de fevereiro Tupac Shakur lança All eyes on me, título e rap do seu primeiro álbum duplo, considerado o mais vendido de toda sua carreira, rendendo-lhe um disco multi-platina. Neste mesmo mês, a marca Tommy Hilfiger chega ao topo, passando a investir na bolsa de valores de Nova York. Os Beastie Boys intensificam sua militância em prol dos tibetanos e realizam o primeiro show pela libertação do Tibet, nos dias 15 e 16 de junho, no Polo Fields do Golden Gate, em São Francisco. Com cerca de cem mil pessoas lotando o espaço, o evento é então considerado o maior show beneficente dos EUA desde o Live Aid (1985). Em solidariedade à iniciativa dos Beastie Boys, reúne-se um elenco de gêneros diversificados da música: A Tribe


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Called Quest, Beck, Björk, Cibo Matto, De La Soul, Foo Fighters, Fugees, John Lee Hooker, Pavement, Rage Against The Machine, Red Hot Chili Peppers, Smashing Pumpkins, Sonic Youth, Yoko Ono and Ima, Buddy Guy, Biz Markie, Skatalites, Richie Havens e Chaksam-Pa, além dos convidados ilustres, o fundador da Casa do Tibet, Robert Thurman e Palden Gyatso, um monge tibetano que suportara 33 anos de tortura e confinamento em seu país. O evento influencia o lançamento da coletânea The in sound from way out!, composta por bases instrumentais dos Beastie Boys e disponibilizada comercialmente pela Grand Royal/Capitol, morada do grupo. No dia 1º de julho, a Bad Boy e a Arista assinam um acordo visando investimento sobre um elenco de artistas de rap. Em 6 de setembro, logo depois a luta do pugilista Mike Tyson, Suge Knight e Tupac, envolvem-se em uma briga, ao reconhecerem um dos homens que haviam agredido e assaltado o rapper cerca de dois anos antes. Por conta dessa briga, semanas depois Suge Knight seria sentenciado a nove anos de prisão por violar a condicional. Como se não bastasse, no mesmo dia, Tupac Shakur, em companhia de Suge Knight, ao se dirigir à festa da Soul Train Awards, é baleado, enquanto pára com seu carro num sinal fechado, e morre uma semana depois por não resistir aos ferimentos. Começa uma fase sombria na cena rap. Queen Latifah dá continuidade ao seu trabalho no cinema coestrelando como uma ladra de banco no filme Set it off (Até as últimas conseqüências). Neste mesmo ano, ela é detida por dirigir em alta velocidade e em seu carro são encontradas uma arma carregada e maconha. Latifah é multada e liberada em seguida. O rapper Snoop Dogg e seu guarda-costas são acusados pelo assassinato do jovem Philip Woldemarian. A apelação de alguns artistas de rap para um trabalho mais comercial fica mais evidente. Dentro deste contexto, alguns


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ainda lutam para preservar a verdadeira imagem do hip-hop e do rap. KRS-One torna-se um exemplo dessa resistência. A resposta dos grupos mais comerciais vem pela boca do grupo P.M. Dawn em declaração à revista Details: “KRS-One quer ser um professor, mas um professor de quê?”. A afronta resulta no ataque físico de KRS-One a Prince Be, líder do P.M. Dawn. O rapper, juntamente com sua posse, invade o palco do Sound Factory Club, em Nova York, interrompendo a apresentação de Be. A batalha é filmada pelo programa Yo! MTV Raps, em um furo de reportagem surpreendente para a história do hip-hop. Após o incidente, KRS-One se desculparia publicamente, alegando que estava farto dos MCs e grupos de hip-hop que o desrespeitavam, e que sentiu-se no direito de preservar sua integridade e reputação. Defendendo-se da nova safra de usurpadores do hip-hop, KRS-One, declara à MTV: Eu paro a violência é com um taco de baseball e bato até tirar m... de você. Se a negatividade vier com um 22, a positividade vem com um 45. Se a negatividade vier com 45, a positividade vem com uma Uzi: A luz ficará mais forte que a escuridão.

KRS-One usa metáforas para descrever a sua insatisfação diante do estado lamentável em que se encontra o hip-hop da época. No entanto, suas reações e palavras podem ter contribuído para uma queda em sua carreira. O rapper só voltaria às paradas em 1997, com o álbum I got next, considerado uma ode à autêntica escola do hip-hop, com clássicos como “Step into a world”, “Blowe”, “A Friend”, “The MC” e “I got next”. Por motivos pessoais, Dr. Dre desfaz sua sociedade com a Suge Knight, deixando a Death Row e montando a Aftermath Entertainment. O West Side Connection, formado pelos rappers Ice Cube (exmembro do NWA), WC e Mack 10, lança no dia 22 de outubro, o álbum All the critics in New York, uma crônica da ascensão da Costa Oeste, a costa da guerra.


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1997 Mesmo com a fama de encrenqueiro do rapper, as letras de Tupac, são consideradas poesia inspirada nos guetos, e se tornam fontes de pesquisa na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Notorious BIG é assassinado em Los Angeles em 9 de março. A imprensa tenta associar o crime a um revide de amigos de Tupac, devido às conhecidas desavenças entre ambos. Em 25 de março, a Bad Boy lança em homenagem a Big, o álbum Biggie’s last album, life after death. É realizada a segunda edição do show pela libertação do Tibet, nos dias 7 e 8 de junho, no Randall’s Island, em Nova York, contando com as presenças de Beastie Boys, U2, Radiohead, Foo Fighters, Rancid, KRS-One, Patti Smith e Alanis Morissette, entre outros. O show transforma-se numa coleção de três CDs, sob o título Tibetan freedom concert, com lançamento no outono. Em 27 de julho, o rapper Puffy Daddy lança No way out, que vende quatro milhões de cópias. Paris retorna à cena underground assinando uma transação com a Whirling Records, para o lançamento do seu quarto álbum, Unleashed. Distribuído em números limitados, o disco apresenta desmedidamente a linguagem revolucionária, típica do rapper, contrariando mais uma vez tudo aquilo que se poderia esperar de um protesto nos moldes do rap politizado. O ineditismo talvez se deva à religião de Paris, praticante da seita islâmica Black Muslims (Islamismo Negro), fundamentada nos padrões ideológicos defendidos pelo líder afro-americano Malcolm X. Após o fim da série de TV Living single, Queen Latifah retoma suas atividades como rapper e entra em estúdio para a elaboração de um novo álbum. Com a popularização da Internet, os DJs Maj e All Star produzem mixtapes que se propagam pela rede, criando uma linha


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inteligente de divulgação do gospel rap que se estende a um público de mais de dois mil fãs.

1998 O rapper Big Pun lança em 28 de abril o álbum Capital punishment, e torna-se o primeiro artista solo de rap latino a ganhar disco de platina. O rapper DMX é o primeiro a lançar dois álbuns no mesmo ano e conquistar o primeiro lugar em vendagem. O primeiro é It’s Dark and Hell Is Hot, lançado em 19 de maio e o segundo é Flesh of My Flesh, Blood of My Blood, lançado em 22 de dezembro. Os dias 13 e 14 de junho marcam a terceira edição do show pela libertação do Tibet, com ingressos esgotados em apenas uma tarde. Um número superior a 130 mil pessoas lotou o evento no RFK Stadium, em Washington DC. Desta vez, além dos Beastie Boys, o festival contou com shows de Radiohead, Dave Matthews Band, Pearl Jam, REM, Headhunters (de Herbie Hancock), Sonic Youth, Luscious Jackson e Red Hot Chili Peppers, entre outros. Em 14 de julho, os Beastie Boys lançam o álbum Hello Nasty, atingindo nas primeiras semanas a marca aproximada de 700 mil cópias vendidas só nos EUA, com forte repercussão na Alemanha, Austrália, Canadá, Holanda, Inglaterra, Japão, Nova Zelândia e Suécia. Emplacam também nas paradas top 10 da Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Irlanda, Israel e Suíça. No dia 31 de julho, o grupo inicia a turnê In the round, no Arena Key, em Seattle, com um palco giratório montado no centro da arena chamado “Beastie Boys winners circle”, que oferecia uma visão panorâmica de todo o show, enquanto um moderno sistema de som – Sound surround – atende o público com a melhor qualidade possível. Ainda no início da turnê, os Beastie Boys disponibilizam as faixas gravadas em show para download gratuito na internet. A gravadora imediatamente proíbe a banda de distribuir gratuitamente as músicas. No mesmo ano, os rappers recebem o prêmio “Videoclipe de van-


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guarda” por realizações ao longo de toda a sua carreira, durante a edição do MTV Video Music Awards, em setembro. Vanilla Ice tenta mais uma vez, em 20 de outubro, um retorno com o álbum Hard to swallow, exibindo – na intenção de apagar sua imagem antiga – um visual gangsta. O público o ignora novamente e Ice retorna mais uma vez à “geladeira”. O rapper Jay-Z lança em 21 de outubro a música Hard knock life, com a participação especial de cantores infantis, que em pouco tempo chegaria ao primeiro lugar na parada pop americana e lá permaneceria por cinco semanas. O empresário Russell Simmons e o produtor Rick Rubin se separam. Simmons fica com a gravadora, enquanto Rick cria a Def Ame­rica Records. Em dezembro, a Seagran compra a gravadora Polygram por 20,4 bilhões de dólares. A nova empresa chama-se Universal Group Music, e em meio aos seus grupos mais lucrativos está a Def Jam Recordings, que permanece submetida a Russell Simmons. É como se um pequeno selo independente recebesse um mega-aparato de uma major para expandir no mercado. O rapper, produtor e empresário Master P aparece na conceituada revista Forbes como um dos 40 mais ricos empresários do entretenimento da América, ocupando a décima posição. O Public Enemy entra em recesso criativo, e passa a lançar trabalhos irregulares. O mais expressivo deles é He got game, trilha sonora do filme homônimo de Spike Lee. Queen Latifah lança Order in the court, um álbum temperado com o mais puro r&b. Comparada pela crítica à rapper Missy Elliott, Latifah conta, no álbum, com as participações vocais da cantora de r&b Faith Evans e do rapper Pras, integrante do grupo Fugees. Order in the Court vende ainda mais graças aos singles “Bananas (who you gonna call?)” e “Paper”, ambos do mesmo álbum. Neste mesmo ano ela retorna também às telas de cinema em pequenos papéis nos filmes Sphere e Living out loud, impressionando os fãs com sua interpretação de uma cantora de jazz.


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1999 Os Beastie Boys iniciam o ano colecionando prêmios de artista, banda e/ou álbum do ano, concedidos pelas revistas Rolling Stone, Spin, The New Yorker e Playboy, entre outras. Um mês depois, a 41a edição do Grammy dá a Hello Nasty – que já era quádruplo de platina – o prêmio de “Melhor performance de música alternativa”, enquanto a faixa “Intergalactic” é premiada na categoria de “Melhor performance de rap por uma dupla ou grupo”. Vale lembrar! Os Beastie Boys são os primeiros a acumular tantos prêmios nas categorias “rap” e “alternativa”, em toda a história do hip-hop até então.

No dia 13 de junho, a quarta edição do show pela Libertação do Tibet é considerada a mais ousada de toda a série até então: rompendo com o padrão dos anos anteriores, o evento transforma-se numa espécie de turnê internacional, demembrando-se em palcos de East Troy (Wisconsin-EUA), Amsterdã, Tóquio e Sydney; com a participação dos Beastie Boys, Thom Yorke (vocalista da banda de rock Radiohead), Joe Strummer, Blondie, Run DMC, Luscious Jackson e The Cult, entre outros. Idealizada pelo rapper Jay-Z, com as participações dos rappers DMX, Red Man e Method Man, “The Hard Knocks Life” é a primeira mega turnê de rap sem quaisquer incidentes de violência. Queen Latifah estréia seu talk-show, The Queen Latifah Show, pelo canal Fox, que permaneceria no ar até 2001. A rapper Lauryn Hill conquista o Grammy de “Melhor álbum do ano”, como o álbum solo The miseducation of Lauryn Hill – lançado em 25 de agosto de 1998 –, além vencer em mais quatro categorias. Isto faz de Lauryn a primeira mulher no rap a colecionar tantos prêmios importantes numa mesma noite no Grammy.


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Intergalactic, dos Beastie Boys, recebe o prêmio de “Melhor clipe de hip-hop” no MTV Video Music Awards. O discurso comovente de um de seus integrantes, Adam Horovitz, chama a atenção dos realizadores da reedição do evento Woodstock, onde inúmeros incidentes de violência e estupro haviam ocorrido.


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PARTE NACIONAL Advertência Você pode estar sentindo a ausência de alguns fatos importantes ocorridos com algum nome do hip-hop não mencionado, mas isto é apenas o resumo da história de um movimento que se originou em meio ao conturbado ambiente das ruas do Bronx, e, com a colaboração ativa de homens como Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash, cresceu, fortaleceu-se, amadureceu, venceu obstáculos e conquistou o mundo. Em cada país ele adquiriu uma linguagem própria, de acordo com a realidade ali existente, respeitando todos os grupos étnicos e todas as raças. Um movimento que engloba cultura, arte, lazer, informação e política, hoje está diretamente envolvido nas indústrias da moda, música e cinema como um gerador de empregos em potencial. Introduzir o assunto já no Brasil, seria negar a nossa relação de aprendizado com os primórdios dessa cultura. Dos anos 80 até hoje, o rap vem se tornando uma indústria à parte dos outros elementos do hip-hop, com o auxílio da mídia, que por sua vez, transforma os termos hip-hop e rap em sinônimos. Devido a esse lamentável erro, a Universal Zulu Nation resolveu adicionar aos quatro elementos do hip-hop, um quinto: o “Conhecimento”. A ausência deste elemento junto à cultura hip-hop faz com que muitos de nossos jovens, no mundo


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inteiro, cometam o erro grave de pensar que atividades como fumar maconha, consumir bebidas fortes, vestir uma marca famosa estampada no peito como forma de ostentação, portar armas, ou freqüentar boates de strip-tease são atitudes hiphop. O movimento tem sido retratado negativamente por muitos rappers. Negatividade esta instigada e promovida pela indústria fonográfica e outras corporações que exploram a cultura hip-hop à custa da juventude e da moralidade. A Universal Zulu Nation acredita que há uma diferença entre manifestar-se livremente a respeito da negatividade (ativismo) e promover isso como estilo de vida desejável. Assim, problemas enfrentados pelo movimento no Brasil assemelham-se aos enfrentados nos EUA, no início do movimento. É necessário que observemos esses erros, a fim de que possamos traçar com sabedoria os rumos do nosso movimento. Os rumos do hip-hop.

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Brasil, final dos anos 70. Importando novas idéias Natural da cidade de Triunfo (PE), dançarino do bloco Cambina Maracatu e profundo conhecedor dos ritmos do maracatu e do frevo, o jovem franzino conhecido como Nelson Triunfo envolve-se com o movimento soul aos 15 anos. Indo morar mais tarde em Paulo Afonso (BA), Triunfo acaba se tornando a referência principal do novo ritmo na cidade. De lá, ele se instala em Ceilândia (DF), considerada na época a maior favela do mundo.

1976 Nelson Triunfo viaja a São Paulo, para a casa de seu irmão, na intenção de manter um intercâmbio direto com adeptos do soul.


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1977 Triunfo muda-se definitivamente para São Paulo, e se envolve com as equipes de som que promovem o ritmo soul, participando das rodas de dança nos bailes. Ele cria neste período o grupo Black Soul Brothers.

1979 Com idéias amadurecidas a respeito do soul Nelson Triunfo forma o grupo de dança Funk & Cia., composto por dançarinos selecionados das rodas de soul, e começa a percorrer o país colaborando com divulgação do movimento.

1982 A rádio Bandeirantes FM (SP), hoje Band FM, torna-se a primeira emissora a transmitir um repertório extenso e variado de black music, o que viria a ser, mais tarde, a trilha sonora para os b-boys. A rádio é também considerada a pioneira na transmissão de um programa de rap.

1983 Com o esfriamento do soul devido à explosão da discoteca ou disco music, um novo estilo de dança chega às ruas de São Paulo, vindo diretamente do Bronx, para dar continuidade a uma história interrompida, e, ao mesmo tempo, uma alternativa para a nova geração das periferias. A nova onda é batizada pela mídia de break dance. O programa de auditório do apresentador Silvio Santos, exibido na extinta


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TVS, promove concursos para divulgar a novidade. Mesmo sem conhecer completamente os movimentos dos b-boys, Nelson Triunfo aceita o desafio e comparece na emissora. A partir daí o Funk & Cia. passa a levar o breaking às ruas e monta sua base em frente ao Teatro Municipal. Por causa da má acomodação, eles se mudam para as esquinas das ruas Dom José de Barros e 24 de Maio, no Centro de São Paulo. Em entrevista à revista Sportswear, Nelson Triunfo fala um pouco sobre o começo de sua carreira: Cheguei em 76, em São Paulo, quando começava o verdadeiro movimento black soul. Eram os anos 70 e nós éramos a juventude “Woodstock”. Era a liberdade, a força do movimento negro no Brasil. Na época do black soul, começaram a vir uns clipes de fora com uma dança diferente. Foi uma questão de tempo até começar a desenvolver a dança daqui. Em 83, surgiu em São Paulo, a discoteca Fantasy. Os DJs traziam novidades do exterior – faziam uns scratches. Lá nós começamos a nos encontrar e a desenvolver o break. Aí, tive a idéia de trazer o movimento para a rua – como era feito no Bronx, começou na 24 de Maio... A gente tinha problemas com a polícia... Quando fazíamos o moonwalk, o pessoal pedia para levantarmos o pé para ver se tinha rodinha... Era um tipo de mágica, o jogo da cabeça, o movimento do corpo, era como se não tivéssemos ossos! Chamavam a gente de invertebrados. Muitos de nossos movimentos foram extraídos da capoeira e também da dança afro-brasileira.

Começa também a excursão do Funk & Cia. por todo o país para divulgar a nova dança. Além de Triunfo, outros nomes se destacam, colaborando para o registro da história do hip-hop no Brasil: Billy, Star, Lilá, Def Paul, Raul, Maguila, Moacir, Charlie, Nayce, Tatu, Everaldo, André, Função, Maleiro, Silvio, Jack, Vadão, ET e Pulguinha, são algumas das personalidades que levantam, então, a bandeira da cultura hip-hop em São Paulo. Nesta mesma época, a equipe de som Chic Show lança o primeiro programa de rap do Brasil, o Estúdio 33, também na rádio Band FM (SP).



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Em depoimento à revista Sportswear, DJ Hum conta como foi sua conversão ao movimento que se iniciava: Comecei fazendo bailes na periferia de São Paulo, na Zona Leste, em Ferraz de Vasconcelos, em 1980. Lá, é muito forte o impacto da música negra. Na época eu ouvia muito funk [dos anos 70] e soul, ouvia também muito samba de morro do Rio de Janeiro, que era um samba diferente, mais parecido com o rap de hoje. Cantava músicas de samba com as bases de funk, até então, a gente nem tinha idéia do que rolava lá. Um dia, fazendo uma festa, pintou um molequinho dançando tipo robozinho, e uma semana depois eu vi o clipe do Malcolm Mclaren com o Eletric Boogie na TV. Na outra, eu vi o Nelsão Funk & Cia. na São Bento. Aí, percebi que era uma onda nova... isso em 1983.

1984 Chega às telas de cinema do Brasil, o filme Na Onda do Break,26 responsável pela conversão de muitos jovens das periferias do país em b-boys. Ainda neste ano um dançarino chamado Ricardo, calçando tênis All Star de três cores, chega ao ponto de encontro dos b-boys na Rua 24 de Maio e apresenta os passos do back slide, causando surpresa. Ricardo tinha morado em Nova York, onde se envolvera com os b-boys do bairro do Bronx; assim, domina as técnicas do top rock e do footwork, novidade para os dançarinos de São Paulo. Mais tarde, Ricardo criaria o grupo Eletric Boogies, chegando a gravar um disco e apresentando-se em vários programas de TV. Segundo o b-boy Raul, embora Ricardo não mantivesse a sua freqüência nas ruas junto aos outros dançarinos, tem seu nome relacionado na lista dos pioneiros do hip-hop do Brasil. No mesmo período, Robô é considerado o primeiro grafiteiro de São Paulo, tornando-se a referência principal para outros futuros artistas da pintura urbana.

26 O filme, de 1984 (no original Beat Street), foi dirigido por Stan Lathan.


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O Funk & Cia. recebe um convite para dançar na vinheta de abertura de uma novela da Rede Globo. Ainda em entrevista à revista Sportswear, Nelson Triunfo fala do resultado da experiência: Em 84, a Globo fez a novela Partido Alto. Eu e o meu grupo conseguimos participar da abertura e de mais três capítulos. O break virou uma febre...!

Nos primórdios do movimento no Brasil, um outro forte aliado na divulgação da cultura hip-hop em São Paulo – em especial do rap –, por incrível que pareça, é Nasi, líder da banda de rock Ira!, que na época atuava como DJ de uma casa noturna. Em entrevista ao Jornal da MTV, ele declara: O meu envolvimento com o rap começou em 1984. Eu trabalhava como DJ na noite, pra tirar um troquinho extra, e foi quando chegou através de um amigo um single do Run DMC. Essas festas eram grandes happenings, então, eu discotecava, tinham os shows de rap e de funk, e faltavam os dançarinos pra dar toda aquela alegoria à noite. Foi aí que eu conheci o Thaíde. Ele já era dançarino, era o que mais se destacava, aliás. Eu produzi junto com um amigo parte do Cultura de rua, que é o primeiro disco de rap cantado em português... Pra mim, aquilo era uma nova revolução que se estava fazendo, na maneira de se fazer música e no porquê de se fazer música... Eu acho o rap nacional fantástico, aliás, eu acho que o futuro do rap pertence ao Brasil. Racionais, eu acho que não precisa falar: Racionais transformou a música no Brasil e colocou o rap num patamar acima de tudo, principalmente pela ousadia independente deles. O caráter antropofágico, ou seja, de mistura, de eterna contaminação por outros elementos, eu acho que é isso que é a riqueza do rap! E eu acho que é nisso que tá o futuro de uma música que ao mesmo tempo é capaz de incorporar qualquer elemento e que tem no discurso a sua grande força, isso é muito importante!

1985 Por causa de problemas de saúde, Nelson Triunfo se afasta das ruas durante algum tempo, deixando a cargo de Luizinho e seu irmão, João do Break, as reuniões dos dançarinos.


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Em busca de uma acomodação melhor, ambos pegam o box27 e saem à procura de um espaço onde pudessem treinar. De preferência em local coberto para abrigarem-se da chuva, que aco­mo­ dasse também seu público, já que o festival da Praça da Sé (Centro-SP) conquistara novos adeptos. Após tentarem, sem sucesso, a estação do metrô Tiradentes (próxima à estação da Luz), expulsos pelos seguranças, seguem em direção ao Centro da cidade, quando percebem que a estação São Bento oferece a estrutura necessária para seus encontros. O local é habitado por punks e skatistas que, após algumas discussões, começam a conviver harmoniosamente com os b-boys, dividindo o mesmo espaço. A partir de então, a São Bento passa a ser freqüentada pelas primeiras crews: Street Warriors (formada por gente da São Bento, Pompéia e Cambucí), Back Spin (com componentes do Parque Ibirapuera e Vila Missionária, onde o rapper Thaíde era b-boy e o DJ Hum, mais tarde, faria parte também), Nação Zulu (oriundos de Vila Sapopemba, Tatuapé e outras partes da Zona Leste) e Crazy Crew (dissidentes da Nação Zulu vindos da Vila Carrão e de outros pontos da Zona Leste). Em declaração à revista Sportswear, Nelson Triunfo explica como ocorreu a ocupação: No final de 84, eu tive um problema e fiquei seis meses doente... Enquanto isso, o pessoal do Funk & Cia. começou a dançar na São Bento, porque tinha um grande espaço liso para ensaiar. De lá, acabaram saindo o Thaíde e muitos outros. O importante é que o break é um movimento de rua! Ao invés de brigar, se troca a violência pela arte. Essa é a verdade do hip-hop!

As crews Dragon Break (de onde saiu o rapper Thaíde em sua carreira inicial como b-boy) e Furious Break, a dupla Fantastic Duo e o próprio Funk & Cia. subsidiaram a permanência do hiphop na São Bento, durante os períodos mais importantes de sua existência (ou resistência).

27 Rádio-gravador que toca a música para os b-boys dançarem.


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Entrevistado pela revista Sportswear, Thaíde diz como se deu seu envolvimento com o hip-hop: Quem começou o hip-hop em São Paulo foi o Nelsão Funk & Cia. Eu e alguns amigos dançávamos soul e queríamos algo mais radical. Começamos a dançar o break. Na época, era muito mais difícil conseguir informações, e sempre que íamos dançar nas ruas chegava a polícia e não permitia. Naquele tempo, não se podia andar de boné na rua, quem usava era bandido. Não podia nem entrar de agasalho e tênis em salão.

O grafite também se desenvolve na São Bento, representado nos traços de artistas como Zelão, Kase, Defkid, Puma, Os Gêmeos, Branco (Guerra de Cores) e Viché. As primeiras rimas de rap da São Bento surgem através das vozes de Thaíde, Jr. Blow e Marrom.

1986 A gravadora Kaskatas Records lança a primeira coletânea de rap nacional do país, em vinil, resultado de um concurso para selecionar os melhores grupos, intitulada A ousadia do rap.

1987 Thaíde & DJ Hum iniciam sua carreira como dupla de rap. Sobre este episódio, entrevistado pela revista Sportswear, DJ Hum conta sobre a formação da parceria: Eu vi um cara mexendo com os discos (tic, tic, tic...), um tipo de percussão. Depois de um tempo fui tocar num show no Ibirapuera e lá encontrei o Marcelinho e o Fernando, do Back Spin. Me falaram de um cara que cantava com eles... No outro final de semana, me apresentaram o Thaíde. Me envolvi mais com o hip-hop e o grafite, DJ e MC. Em 86, os caras me convidaram para entrar no Back Spin, eu e o Thaíde montamos uma dupla. Fazíamos som na


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São Bento. Thaíde & DJ Hum não são mais garotos que cantam rap. Hoje têm mais respeito. O DJ é um músico do hip-hop.

A São Bento se torna a escola dos futuros arautos da consciência, como é o caso de Mano Brown, líder do grupo de rap Racionais MCs, que me conta como foi a sua iniciação ao movimento: “Eu arrumei um emprego de office-boy no Brás, num ateliê de costura e entregava paletós durante a semana, e aos sábados também. Quando eu ia embora, pegar o ônibus na Praça da Bandeira, às vezes eu passava na 24 de Maio e cortava caminho pela estação São Bento. Um dia, passando por lá, eu vi os caras dançando, mas aí, eu não era do movimento ainda”, explica. “Demorou uns dias, por acaso, eu tava indo comprar o ingresso pra uma festa que ia ter no Clube do Palmeiras, e quando eu passei por lá, tinha uma treta.28 Eram duas gangues de dançarinos de break. Uns usavam roupa azul e outros vermelha, e os caras tavam saindo na mão! Aí, quando eu cheguei na quebrada,29 eu falei pro Blue: ‘mano, eu vi uns barato louco!30 Estilo Nova York! Os caras com umas roupas bem loucas, com uns ‘rádio-gravadorzão’ saindo na mão...!’ Aí, passou um tempo e eu e o Blue, passamos lá pra ver... E foi naquele dia: paramos e depois nunca mais saímos de lá, até o último dia quando nós fomos lá pra Roosevelt. Nós fomos fiéis e sempre defendíamos. Defendíamos mesmo sabendo que tinham divergências, muitas coisas que tinham lá, nós não gostávamos, nós queríamos que o barato fosse mais favela, mais gueto. Então, quando eu comecei na São Bento, eu comecei como ‘Zé Povinho’,31 olhando! E toda vez que eu passava na São Bento, eu usava pizza32 ainda e eles não gostavam”, conta. “Os caras chamavam a gente de ‘dibirô’, porque eles eram informados dos baratos dos Estados Unidos e eu não era. Eu era um preto comum de periferia, que curtia uns bailes.”

28 Confusão. 29 Bairro de origem. 30 Um grande acontecimento. 31 Transeunte, passante. 32 Recortes em couro costurados na calça jeans, muito utilizados por aqueles que curtiam o black power.


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Ainda sem muita informação acerca de grupos de rap no Rio de Janeiro, surge um cantor no bairro de Copacabana, morador do asfalto, que pronuncia rimas faladas bem ao estilo dos primeiros grupos americanos: Fausto Fawcett, ao lado de sua banda, Robôs Efêmeros, emplaca nas rádios o hit “Kátia Flávia”, do seu primeiro álbum, Fausto Fawcett & os Robôs Efêmeros. Entretanto, se o reconhecermos como pioneiro do rap carioca, como muitos afirmam, caímos no mesmo campo minado em que os Furious Five foram detonados junto à Fat Back Band no início do rap.

1988 A gravadora Eldorado lança a coletânea Hip-hop cultura de rua, revelando grandes nomes do rap nacional, como Thaíde & DJ Hum, O Credo, MC Jack e Código 13. Nesta época o Partido dos Trabalhadores (PT) assume a Prefeitura de São Paulo, que passa a auxiliar de maneira consistente o movimento, em crescimento na capital. Ainda neste momento, vários jovens aderem ao hip-hop em todo o país: a Chic Show lança a coletânea Som das ruas, revelando personalidades como Sampa Crew,33 Ndee Naldinho e Lino Criss. A São Bento, além de reunir a safra de b-boys e grafiteiros, passa a abrigar alguns rappers. Mano Brown me conta como foi a sua experiência junto aos seus antecessores: A minha raiz mesmo foi nos bailes da Chic Show, no Asa Branca de Pinheiros, Clube da Cidade, e outros bailes que eu freqüentava antes, na Zona Sul. Onde tocava música negra, eu tava! O movimento dos caras da minha época era curtir os bailes! Quando eu conheci a São Bento, eu ainda ia nos bailes. A primeira música que eu fiz foi pra entrar num concurso da Chic Show, no Clube da Cidade. Desse concurso eu não participei, porque eu não tinha 33 Grupo de rap paulistano, não tão bem visto por outros rappers, devido ao seu estilo romântico.


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um tênis. Eu queria subir bonitão, no estilo, igual os caras da São Bento, mas eu não tinha o tênis, então fiquei com vergonha de participar. Quando teve o concurso no Asa Branca, aí eu e o Blue entramos, e lá nós ganhamos o concurso. Então, quando a gente foi pra São Bento, nós já tínhamos ganhado o concurso no Asa, mas eu não falava nada pra ninguém e ficava na minha. Aí, eu comecei a escrever as minhas letras e, na época, não tinha ainda o Racionais, era só eu e o Blue e o nome do grupo era ‘B. B. Boys’ [Bad Black Boys], Os Meninos Maus Negros [risos]. Nós éramos maus mesmo...[tom de ironia].

As reuniões da São Bento sofrem uma racha em 1988, resultando no desligamento dos rappers, que migram para a Praça Roosevelt (Centro). Surge então a geração “Malcolm X”, com seu jeito diferente de se vestir, se comparado ao dos b-boys, e uma retórica política voltada para os afrodescendentes. Johnny, ex-DJ do rapper MT Bronx, me explica em detalhes como foi essa mudança: “A São Bento era conhecida como lugar de b-boy. E o cara chamado JR Blow tinha na mente ter um lugar só para rappers. O Blow era integrante do grupo Estilo Selvagem [que existe, até hoje, com outra formação]. Ele morreu atropelado, vítima de um taxista embriagado, quando voltava de uma casa noturna. A idéia era a gente ter o nosso espaço, como os b-boys tinham o deles. A Roosevelt começou com poucos grupos como o Extinto Selvagem, Artigo B, Balanço Negro e o Bad. Mas quem era o Bad? Era um grafiteiro folgado, que tirava uma com todo mundo e que começou a cantar rap”, desabafa. “Então, ele cantava: ‘Eu sou mau! Eu sou mau!’ E de mau ele não tinha nada, só a vontade...! Era branco de cabelo liso e queria fazer uma imagem meio de L.L. Cool J”,34 conta. Na Roosevelt não tinha essa de branco, ou preto, ou amarelo. E aí foi crescendo. Outros foram chegando, os grupos já passavam de 10, e muitos conheciam o Milton Salles, ex-empresário dos Racionais e responsável também pela revelação de grupos da época como Os Gêmeos e B.B. Boys, e ele tinha uma idéia de cooperativa.” 34 Rapper nova-iorquino, considerado uma espécie de sex symbol do hip-hop dos anos 80. Cool J emplacou com o sucesso “I’m bad”, uma resposta a outro sucesso da época, a música “Bad” de Michael Jackson.


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1989 A Praça Roosevelt se tornara, então, o espaço alternativo para abrigar os adeptos da nova ordem, que se opunham aos padrões estabelecidos pelos b-boys da São Bento: os rappers. Mano Brown, em entrevista concedida a mim, dá sua visão de como tudo aconteceu: “Quem fundou a Roosevelt fomos eu, Blue e um cara que hoje não tá mais entre nós, que não tá mais participando diretamente do rap, chamado MC Who. Na segunda vez que nós fomos de vez, era eu, o Blue e um cara que já é finado chamado JR Blow... Nós tínhamos divergências com ele, porque, ele era contra os bailes black e eu e o Blue éramos de baile black. Então, ele começava a tirar uma letrinha,35 fazia refrãozinho de Chic Show36 pra nós, mas, como era tudo preto, nós tirávamos mais sarro dele do que ele de nós”, conta. “Aí, nós fundamos a Roosevelt num dia de sábado. Nós saímos da São Bento, porque tava colando muito boy37, e todo mundo que colava lá era bem aceito e eu não aceitava isso. Eu era muito mais preconceituoso antes do que eu sou hoje”, admite. “Eu comecei a achar que tinha que ter mais preto no movimento; se o movimento era de preto, então, tinha que ter preto, e não havia muitos. Eu e o Blue, a gente sempre teve essa visão: nós temos que ter um lugar que só vai colar quem é mesmo, e aí na Roosevelt começou a favela em peso a colar, porque aí já não era tanto o hip-hop, mas o rap! Tinha o break, mas ali já era a época do rap mesmo. O rap passou a ter mais destaque, eu acho, pela própria forma de se expressar. O rap, ele tem a voz! Ele tem a música a serviço dele! Ele entra na sua casa sem pedir licença, coisa que as outras práticas do hip-hop não têm. São artes caladas! A dança, o muro pintado, são de igual valor, mas não tem como você negar que o rap é música, e a música é f...! Então, na época, o pessoal do hip-hop já não entendia e criou até uma rivalidade.”

35 Caçoar, zombar. 36 Equipe de som que costumava interagir com o público do baile com músicas próprias. 37 Playboy, garoto de classe média ou classe média alta.


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Mesmo desconhecendo os comentários de Brown, Bad rebate afirmando que nem Brown nem Ice Blue fizeram parte da implantação das reuniões da Praça Roosevelt: “Não, eles não participaram da criação da Roosevelt. Eles tinham um grupo chamado B.B.Boys, e se reuniam na São Bento, depois se converteram a Racionais MCs. Eles passaram pela Roosevelt, e foi justamente por isso que acabou... Tinha um programa chamado Documento Especial [exibido pela Rede Manchete], que só tinha matérias polêmicas falando da desgraça do submundo: viciados, travestis – nada contra os homossexuais, mas os que passavam nesse programa eram travestis que injetavam silicone na seringa –, pichadores, só coisas degradantes... Daí, esse programa foi fazer uma entrevista com a gente, só que a gente se ofendeu: ‘pô, lá só aparece bandidagem, tráfico de drogas, então, tão associando a gente com esse lado!’ A gente se recusou, e fomos eu e o Balanço Negro, mas de resto, todo mundo, já influenciado pelo rap, achou que seria uma maravilha, porque seria a bandidagem...”, lamenta. “Daí, o primeiro cara que apareceu lá foi o Mano Brown, sendo que ele não freqüentava lá! E foi justamente quando eu precisei ficar fora mais ou menos um mês, que tudo ficou fora de controle. Quando eu voltei, tava a Manchete e a MTV, eu me recusei a dar a entrevista, e o Balanço Negro também, e todo mundo lá aceitou. Todo mundo lá parecia bandido. Todo mundo se fantasiou de bandido, e fez a entrevista”, lamenta. “Isso decretou de vez o fim da Roosevelt...”

Também sem saber as críticas feitas por Johnny a seu respeito, Bad, que na época era grafiteiro, b-boy e rapper, me conta sua versão da história: “Quando fui pra São Bento, eu já grafitava, dançava e cantava. E chegamos numa época que tava forte, tinha várias gangues, vários atritos entre elas, mas ali dentro se mantinha a paz. Depois da gravação do Cultura de rua [coletânea], muitos carinhas começaram a se destacar. E outra: tava muito misturado o break com o rap. Só que um rap que não dava pra dançar, o b-boy jamais conseguiria dançar com a música do Thaíde, mas os caras dançavam mesmo fora do ritmo”, conta. “Tava tendo muito atrito: tinha uns que eram metidos a malandro, outros não tinham paciência e queriam


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dar porrada mesmo; se falasse mal do break já queriam sair na porrada. Tinha cara novo surgindo porque a coisa tava se expandindo mesmo. Os caras novos chegavam e eram maltratados, não davam oportunidade de eles conhecerem a cultura hip-hop. Eu tava na Zona Leste, e um monte de grupos me vendo cantar, queria fazer também. Um monte de caras me via dançar, queria fazer também. Eu falava: se você quer participar do negócio verdadeiro, você vai ter que colar no Centro [ir ao Centro, onde se localizava a São Bento] pra trombar38 com cara de tudo quanto é região de São Paulo. E vinha cara de fora, de Minas Gerais, Rio de Janeiro e até do Acre. Esses caras eram maltratados, e chegavam pra mim: ‘Pô Bad, os caras tão me tirando, me ofendendo... não vou mais lá!’ Então, eu disse: ‘vamos arrumar um espaço então...!’ Até que chegou ao cúmulo de os caras brigarem tanto um com o outro que não sabiam mais pra onde tavam atirando, teve até o caso do Silvão39 me estranhar. A gente mal se conhecia, eu sabia que ele era encrenqueiro, e eu não ficava pra trás também. Como outros tinham surgindo, eu pensei: não vou deixar os caras aprendendo errado, até se matar um ao outro. A música tava crescendo – não o rap, esse rap de hoje. Era uma coisa mais puxada pro electro funk mesmo. Então, não cabia todo mundo ali”, explica. “Eu era grafiteiro, b-boy e MC. Eu era mal visto pelos b-boys, porque era grafiteiro e MC. E por eu ser grafiteiro, me doía pelos grafiteiros; por ser MC, me doía pelos MCs. Então, eu falei: vamos encontrar um lugar onde se encaixe todo mundo, e deixa os caras brigando aí! A São Bento tava na mão de uns carinhas muito mimados, que não sabiam tratar ninguém, tanto é que uma vez teve a morte de um rapaz no metrô, em 1989, e daí teve uma passeata... Ele era um cara que tava aprendendo rap, mas do modo errado. Ele não sabia nada de cultura hip-hop. É igual ao rap de hoje, ele poderia ser um Racionais hoje... Ele tava aprendendo com uma moda que tinha na época de Clube do Rap, depois que gravaram o Cultura de rua, saiu Clube do Rap em tudo quanto era canto. É por isso que a gente não considera o rap como um elemento da cultura hip-hop, porque ele não tem raiz”, justifica. “Então, o pessoal tava pedindo que o governo desse uma olhada na polícia. Daí chegaram pra um 38 39

Intercambiar, trocar informações. Um dos b-boys da primeira geração de dançarinos de São Paulo.


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rapper, um dos rappers que tinha gravado na coletânea Cultura de rua, MC Jack, e pediram pra ele assinar o abaixo-assinado. Os caras cheios de tristeza, lamentando a morte de um amigo, aí ele falou cheio de arrogância: ‘vou fazer um abaixo-assinado pro Fleury40 mandar duas mileduque41 pra mim’, porque ele tava virando DJ na época. Aí, depois desses problemas a gente saiu. Decidimos ir pra Praça Roosevelt: era eu, Estilo Selvagem, formado por Blow e Jacson, Balanço Negro, formado por Robson, Binho e mais alguém... Até o Paul do RPW chegou a participar. Tinha o Face Negra, que tava começando, e pra não aprender errado, a gente adotou essa rapaziada.”

Brown conta um dos vários episódios que o levaram a procurar um novo espaço para rappers com idéias em comum: “Teve uma vez, que os malucos que dormiam na rua na Praça da Sé, desceram na São Bento pra assaltar todo mundo...Desceram mais de quarenta caras da Praça da Sé pra roubar uns caras que vendiam rádios, achando que os caras eram boys! Aí, quando eles chegaram lá, os caras cataram o gravador e correram, e pegaram o táxi. Aí ficou eu, Blue, finado Crânio e o Zulu, que é DJ lá em Sapopemba, cada um com uma barra de ferro na mão. Aí, os bicos42 vieram e a gente trocou uma idéia, e acabaram não roubando ninguém.”

Por acreditar na força e no talento dos rappers, que se reuniam na Praça Roosevelt, Milton Salles, colaborou com a criação do Sindicato Negro. DJ Johnny explica melhor como se deu essa parceria entre Milton e os rappers, e quais eram os objetivos e propostas da posse: “O Sindicato na época contava com MT Bronx, Doctor MCs, Balanço Negro, Face Negra, MRN, FNR [que chegou já ao fim], Lady Rap, Gangsta Rooney,43 que na época imitava o Ice T, Per-

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Governador do estado de São Paulo entre 1991 e 1994. Par de toca-discos profissionais, modelo MK2. Marginal, vagabundo. Conhecido atualmente como Rooney Yo Yo.


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sonalidades Negros, Ice Rock e Eazy Rock”,44 ri. “O Sindicato, então, foi a primeira posse de São Paulo, que só tinha rappers e alguns tinham uma consciência política legal. Daí a importância do Milton nessa formação do Sindicato. A gente não trabalhava com a comunidade, por quê? Porque a gente sabia que tinha a necessidade de se organizar primeiro. Então, o que acontecia? A gente levava dois toca-discos, um mixer, roubava a energia do supermercado Pão de Açúcar, tocava “Fuck tha Police”,45 Public Enemy e a gente tava se organizando. Qual foi a importância do Sindicato Negro? Mostrou pra todo mundo que a união era válida”, conta, com orgulho.

Pelo que se pode entender, Rooney Yo Yo é o responsável pelo surgimento do Sindicato Negro. Ninguém melhor do que ele para esclarecer algumas dúvidas, como mostra nessa entrevista que fiz com ele: “A minha idéia ao criar o Sindicato Negro na época, quando a gente tava indo pra Roosevelt, foi que na São Bento, os b-boys iam, e aquela história não tinha muito a ver com os rappers... Qual era a idéia? Montar uma posse, a exemplo dos Estados Unidos. Existiam vários grupos, com o intuito de fazer alguma coisa positiva em prol de várias pessoas juntas.”

É então fundado o Movimento Hip-hop Organizado (MH2O), por iniciativa de Milton Salles, com a intenção de formar representantes do hip-hop em todo o país para desenvolver ações políticas, sociais, culturais e afirmativas junto às comunidades. Ainda no mesmo ano é fundada a posse Força Ativa, com idéias similares às do MH2O, atuando na Zona Leste de São Paulo. A emissora MTV Brasil transmite pela primeira vez o programa Yo! MTV Raps em sua versão nacional, apresentado pelo VJ Rodrigo, que, além de exibir clipes de rap, traz informações do mundo do hip-hop.

44 Ice Rock e Eazy Rock são considerados os primeiros gangstas do rap nacional. 45 Sucesso do NWA, principal grupo americano de gangsta, como visto anteriormente.


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1990 A gravadora Zimbabwe lança a coletânea Consciência black, revelando grupos como Racionais MCs, com o sucesso “Pânico na Zona Sul” e o solo de “Tempos difíceis”, na voz do rapper Edi Rock. Ainda neste ano, a Zimbabwe abre mais o caminho para os Racionais, lançando seu primeiro álbum, Holocausto urbano, com destaque para as faixas “Pânico na Zona Sul”, “Racistas otários”, “Hey boy” e “Beco sem saída”. As reuniões da Praça Roosevelt chegam definitivamente ao fim, dando lugar ao Sindicato Negro. Para Bad, tudo não passou de puro interesse financeiro: “A coisa aconteceu muito rápido: eu avisei que não poderia ir durante mais ou menos um mês. Então, pedi pro pessoal do Balanço Negro manter a linha e exigir de todo mundo ali a postura de respeito. Só que eles não tavam preparados pra isso, e nesse meio tempo em que eu não apareci, veio o Rooney com um projeto de Sindicato Negro. Ele vestido dos pés à cabeça de Ice-T, que é o fundador do Rhyme Syndicate [selo musical], e inventou o Sindicato Negro, sendo ele um branco”, ironiza. “Então, o único branco que era bem-vindo ali era o Rooney. Daí, começaram a vir caras sem noção nenhuma de cultura hip-hop, e tomaram conta dali. Quando eu apareci de novo, tinha cara que falava: ‘quem é esse cara que tá falando’?! Sendo que eu fui um dos primeiros a ocupar a Roosevelt. E novamente eu pensei: ‘Deixa quieto! Deixa eles se matarem!’ Nesse dia da entrevista com a Manchete, a mentalidade era racismo e violência”, lamenta. “O Sindicato Negro, ele tava sendo preparado fora da Praça Roosevelt. Ele foi preparado dentro dos bailes do Clube do Rap. Então, até ali, a gente ainda chamava de rap o que participava da cultura hip-hop”, explica. “O Sindicato Negro não preparou nada, ele simplesmente pegou as mesmas pessoas que tinham a mesma mentalidade do rap, e daí só rotulou de Sindicato Negro. Não sei com quantos caras começou, só sei que nessas reuniões, e eu tinha um cara infiltrado lá no meio deles, ele é DJ e trabalha na galeria até hoje, ele ouvia as conversas, e depois trazia tudo pra gente. Ele falava que os caras paravam até uma hora, pra discutir um jeito de calar a boca


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da gente. Imagina, você juntar um grupo, lógico, todos negros, pra atacar um branco, sendo que eles já tavam indo pra esse lado de racismo...?! Então, conspiravam feio, e passavam semanas e semanas discutindo, só falando de Balanço Negro e de Bad... Tanto é que eles aproveitaram essa época em que eu não compareci e se infiltraram ali. Trouxeram gente de Clube do Rap, que não tinha a mentalidade de hip-hop. Por isso que eu falo que o rap não é do hip-hop. Eles não se preocupam com história, e chegam ao cúmulo de cantar: ‘não sei o que em Hollywood’46... Sendo que a música original é italiana”, ironiza.

1991 O Sindicato Negro sofre seus primeiros problemas internos. Segundo Johnny, o motivo principal foi a vaidade movida pela indústria do rap: “A fogueira da vaidade começou a aparecer. O Bronx e eu fazíamos muitos shows. Na verdade, teve uma época em que, dos grupos da Roosevelt, o MT Bronx era o que mais fazia shows. Antes disso, a Roosevelt era um exemplo de organização e união. Até alguns b-boys da São Bento nos visitavam por isso. Então, se você mexesse com um, mexeria com todo mundo. A idéia não era bater em ninguém, mas manter a unidade. A idéia do Milton Salles, de manter uma cooperativa, deixou claro que todo mundo era igual e não tinha ninguém melhor do que ninguém. O que aconteceu, na verdade, é que começou a ter muito show de um grupo só, e a industrialização do rap levou às diferenças. A ânsia de você querer se destacar mais do que os outros. Antes dos discos de gravadora, todo mundo subia no palco para prestigiar o outro grupo. Com a coletânea Consciência black, o que aconteceu? Eu não vou subir no palco porque o show é de fulano... Eu não vou porque vou tá pagando madeira47 pra ele”, exemplifica. “Então, o William Santiago, dono da gravadora Zimbabwe, era um cara que tinha uma visão de comércio muito grande e sabia da força que a gente 46 Trecho do sucesso “Viajando na balada”, do grupo paulistano SNJ. 47 Puxando o saco, bajulando.


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tinha, porque, tirando o Thaíde e os Racionais, a gente era unido, a gente tinha força. O Sampa Crew também já tinha a sua moral na época, mas os bons estavam na Roosevelt. O William conseguiu minar essa força mexendo com a vaidade. Então, ele chegou uma vez pra mim no estúdio e falou assim: ‘o James Brown e o Fred Wesley, eles vão de Limusine pro show e o resto vai de van. E vocês, como é que vai ser isso...? P... Bronx, você não é o cara?’ O William é que queria colocar a gente como artista, então, o que era o break e o rap pra gente?! Era paixão! Quando a gente estava andando com as nossas pernas, sem muita aproximação da indústria, existia o entendimento e o respeito de todos”, relembra, orgulhoso. “No caso do Bronx, a gente tinha que ficar confinado no camarim e a gente não era assim. Algumas pessoas gostavam disso, mas a gente tava acostumado a ir até o meio do público, junto com os dançarinos do grupo, o Wanderley e o próprio Bronx pra dançar break. O William não gostava disso, e começou a nos convencer que agora a gente era artista. Isso ajudou a minar a força da Roosevelt, porque alguns compraram a idéia de que se pareciam com os americanos.”

Para Bad, o problema não foi a indústria do disco, mas a ganância, motivo que aponta para a criação do Sindicato Negro: Eles se uniram pra poder gravar os discos da Zimba.48 A separação foi por outro motivo: no caso, o escolhido das coletâneas era os Racionais, e todo mundo sabia. Então, todo mundo serviu de pano de fundo pros Racionais. Quem não tinha essa visão, entrava no esquema. Agora, quem sabia que os Racionais eram os queridinhos da Zimbabwe, não entrava. Depois que eles tiveram a decepção de ver que foram enrolados, daí começaram a se tocar.

Mesmo sem saber das críticas de Bad ao Sindicato Negro, Rooney bate, em parte, na mesma tecla: “O que aconteceu foi que, como sempre, o ego das pessoas acabou atrapalhando a verdadeira finalização do objetivo, então, eu desanimei e saí fora”, conta. “Quando eu saí fora, ninguém deu continuidade. Há rumores de que outras pessoas atrapalharam,

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Apelido da Zimbabwe.


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mas não é verdade, o que acabou mesmo com o Sindicato foi a desunião e a gente não deixou de ser amigo. Alguns falavam: por que o branco tem que ser presidente do Sindicato Negro? Porque fui eu que criei! Mas isso também não influenciou o término de tudo e nem me entristeceu. Me provou que tenho que fazer os meus negócios e fazer do meu jeito, porque a gente quer fazer os negócios com as pessoas e elas não entendem o que isso pode trazer de bom pra todos.”

Saindo um pouco dos conflitos do Sindicato Negro, fato é que em 1991 os Racionais acabam roubando a cena na abertura de um show do Public Enemy, no Ginásio do Ibirapuera (SP), com os sucessos “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”. Isso dá aos rappers a consagração de que precisavam para trilhar a sua carreira no rap nacional.

1992 O Sindicato Negro acaba oficialmente. Rooney apresenta sua versão para o término do Sindicato Negro: “Eu criei o Sindicato! Nós convidamos algumas pessoas pra participar, foi feita uma ata pra fundação, a gente pediu apoio de algumas empresas do setor na época e fez uma festa de inauguração na Aclimação; só que, pra variar, na hora das responsabilidades as pessoas correm”, lamenta. “Então, sobrou tudo pra mim, até tentei sair fora e eles: ‘vamos continuar! Vamos continuar! A idéia era muito legal!’ Nesse mesmo ano, a gente ganhou um prêmio do finado Natanael Valêncio, do SP DJs, como ‘Melhor turma de rap do ano’ e só fomos eu e o Johnny pra buscar, e as outras pessoas, elas não queriam muito trabalhar. Então, tudo era eu, eu, eu... Fizemos a camiseta, o logo, a estampa, na hora de pagar as camisetas, ninguém queria contribuir, então, eu tava sentindo que tava fazendo tudo por todos”, critica. “Aí, tava faltando a idéia principal: todo mundo se ajudar! Eu, como sou muito fanático, gosto muito de hip-hop, achei que tinha que fazer hip-hop da minha maneira. Então, tudo que eu tô fazendo hoje tá aparecendo por aí, de uma maneira ou de outra, tô na ativa ainda.”


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Do ponto de vista de Bad, o Sindicato Negro chegou ao fim porque já alcançara seu objetivo: “O Sindicato acabou por acabar mesmo. A única coisa que o Sindicato Negro fez foi acabar com um lugar legal que era a Praça Roosevelt”, lamenta. “Mas ele não fez nada adiante, porque a realização do Sindicato Negro era simplesmente a vontade de gravar um disco”.

Surge em São Paulo, com o apoio da organização não-governamental Mulheres Negras Geledés, a primeira revista de hip-hop nacional, a Pode crê!. A revista serve como um referencial importante para unir as representações do hip-hop por todo o Brasil. O rapper Clodoaldo Arruda, militante da entidade e um dos idealizadores do projeto da Pode crê!, conta como foi a experiência: “A Pode crê! nasceu poucos meses depois da criação do próprio Projeto Rappers, que nasceu da primeira parceria entre a Geledés e vários rappers que se conheciam, que andavam juntos e cantavam. Não vou conseguir lembrar de todos os membros: a rapper Sharyline, DMN, FNR, Lady Rap, Fator Ético, MC Regina, entre outros, faziam parte de uma organização importante ao lado da Geledés, numa via de dois lados. Por um lado, havia um crescimento em particular do rap, que tinha todo um compromisso político de protesto, de contestação, de resistência, de conscientização negra, que tava começando a ter problemas nos shows. Tinha músicas sendo censuradas em certos shows. Grupos sendo presos, e por outro lado tinha uma dificuldade da Geledés, como tinham todas as entidades do movimento negro daquela época, de aproximação com a juventude da periferia. Então, essa associação, essa troca de idéias, de informações, de influências, foi absolutamente importante pro hip-hop”, considera. “Foi um marco pro hiphop porque foi o que começou a articular o hip-hop politicamente. Não foi o que politizou o rap, mas foi o que articulou politicamente o hip-hop em São Paulo, e que deu exemplo pro Brasil inteiro fazer depois. Logo depois da formação do projeto, a gente sentiu a necessidade de um vínculo de comunicação: não havia nenhum tipo de publicação do gênero, até então, no Brasil. Tinham as revistas musicais como a Bizz, que fazia esporadicamente algumas


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matérias sobre hip-hop, mas que eram com o hip-hop americano. Falava-se muito pouco do rap brasileiro. E naquela época tinha uma efervescência, você tinha muito material para se trabalhar, mas que não era trabalhado pelas publicações tradicionais, nem de música, e nem qualquer outra. As poucas que existiam eram sensacionalistas demais. Então, nós tínhamos a necessidade de falar por nós mesmos, sobre nós mesmos. Eu acho que a Pode crê! supriu esse espaço”, acredita.

Clodoaldo lembra detalhes das primeiras edições da revista: “A primeira capa foi, então, um muito novo e muito magro, Mano Brown. Na verdade, a revista número zero da Pode crê! era uma espécie de cartilha só com bandas do Projeto Rappers. Só que era um número reduzido. O que se conheceu mesmo como revista Pode crê! foi o Mano Brown [edição número 1], que esgotou logo porque os Racionais tavam em plena evidência na época. Foram quatro edições e a revista tinha intenção de ser bimestral, o que na época já era uma pretensão muito grande. Tão grande que nunca conseguiu ser distribuída a cada dois meses, primeiro pelo excesso de material e pouca estrutura... A revista era feita com papel e impressão de primeira, distribuída pelo Brasil inteiro, pela maior distribuidora do país, que é a mesma que distribui as revistas Veja, IstoÉ e qualquer revista de circulação nacional de grande porte. Havia uma restrição sobre anúncios que não representassem a comunidade, que não tivessem negros. Era vetada, também, a participação de anunciantes que vendiam cigarro e álcool, por motivos óbvios. Nós não estávamos lá para fazer qualquer tipo de apologia às grandes multinacionais de distribuição em massa. Então, a Pode crê! não se pagava, contava com subsídio e recursos da própria Geledés.”

Enquanto organizações se desfazem por motivos de força maior, outros artistas surgem no cenário underground para dar continuidade ao ciclo de vida e morte do hip-hop nacional. Pavilhão 9, oriundo do bairro do Grajaú,49 formado pelos rappers Rho$$i, Camburão, Pivete e DJ Branco, lança neste mesmo ano o álbum

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Na Zona Norte de São Paulo.


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Primeiro ato. Destaca-se com o sucesso de Otários fardados, logo após o massacre no presídio do Carandiru, culminando numa série de ameaças por parte da polícia (segundo Rho$$i) ao grupo. O Pavilhão se sentiu pressionado a se apresentar encapuzado por quase 10 anos. Primeiro Ato não só atingiu inicialmente a marca de cinco mil cópias vendidas, como também foi indicado para o “Prêmio Sharp de Crítica”. Nesse mesmo período, Camburão se afasta do grupo por problemas de saúde causados pelo envolvimento com drogas, enquanto Pivete é procurado pela polícia por roubo de carros. Brasília se mobiliza e lança a coletânea Peso-pesado do rap, que marca a entrada da gravadora Discovery no mercado do rap, trazendo à tona o estilo político e questionador do rapper Gog. Surge no mesmo momento, no Rio de Janeiro, a ATCON (Associação Hip-hop – Atitude Consciente) e, com ela, todo um conceito do que seria o hip-hop carioca. Diferente das formações de muitos estados brasileiros, sua característica se baseia quase que 100% no elemento rap, a exemplo do Sindicato Negro. Para ilustrar melhor essa época, o rapper, escritor, apresentador e ator Big Richard, que também fora o primeiro a presidir as reuniões da ATCON, dá seu depoimento: “No Rio a gente não tinha condições de formar as posses, como acontecia em outros lugares, como em São Paulo e Brasília, porque era extremamente restrito. Você falava sobre isso, do hip-hop e rap, e neguinho viajava50 e não fazia a mínima idéia do que era isso. Quem me levou pra associação, que se reunia no CEAP [Centro de Articulação de Populações Marginalizadas], que é uma ONG que tem no Rio de Janeiro, foi o Gabriel O Pensador, e muito da influência que eu tive desse rap positivo, desse rap progressista foi também, e isso é uma coisa que eu não costumo falar, porque eu acho que eu aprendi muita coisa e ele desaprendeu, com o Gabriel e com os meus primos Wagner e Vinícius”, reconhece. “O Wagner tinha o apelido de Vavá Black, e ele era também da ATCON. Eu já gostava do Run DMC, e eu já tinha assistido ao show 50 Elocubrar, perder o foco de um assunto.


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deles no Hollywood Rock em 90, 91, não tô bem lembrado. Aí eu comecei a conhecer o rap brasileiro e escrever alguma coisa, que não era ainda tão significativa. Quando eu me entrosei com esses meus primos e o Gabriel, passei a ter um contato maior com o rap brasileiro. O Gabriel falava muito do Def Yuri,51 e que eles estavam montando um grupo no CEAP e que eles estavam tentando levar um pessoal que no final da década de 80 se reunia no Largo da Carioca.52 E eles acabaram se voltando mais pro funk carioca da época, que é aquele grupo de pessoas que tinha inclusive o DJ Marlboro”, relembra. “Eu sou de uma família política do Rio. Tem o meu avô que foi perseguido na época da ditadura, enfim, tô querendo dizer que eu sempre tive esse envolvimento de montar grupos, organização política, formar estratégias políticas. O pessoal que tava até então ali do hip-hop, no CEAP, era meio reticente, não entendia muito a importância política da questão do negro. O hiphop dessa época era quase que 99% voltado para a questão negra e também sobre a discriminação racial e policial, inclusive branco no Rio de Janeiro e nos outros lugares de hip-hop não era muito aceito, né? Era inclusive um problema quando o Gabriel tentava colar com a gente”, explica. “Aí a gente começou a se organizar politicamente lá na associação e o Ivanir dos Santos, que era o secretário executivo do CEAP, disse: ‘vocês precisam se organizar como uma associação, como uma ONG, alguma coisa que vai dar uma base pra vocês se movimentarem, alguma coisa que vai dar base pra vocês conseguirem verbas de empresas e ONGs que apóiam o lado social, pra vocês se desenvolverem’. Foi aonde a gente começou a bolar o estatuto da ATCON e quem tinha mais fácil acesso, por morar no bairro do Rio Comprido, mais próximo ao Centro, era eu. Por isso, de repente, eu acabei virando essa coisa do coordenador da ATCON, não porque eu fosse melhor ou pior, mas pela facilidade desse acesso”, justifica. “Diferentemente de muitos grupos, eu não tenho uma origem em favela. E, independente disso, eu enxergava e convivia com isso bem de perto e todo mundo sabe, não é novidade, que o Rio de hoje é um caldeirão explodindo”, lamenta. “Então, num belo dia, por coincidência, eu peguei uma reunião no CEAP – e aí você tem que ser meio entrão 51 Rapper carioca. 52 No Centro do Rio de Janeiro.


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também – em que eles estavam preparando um orçamento pro ano de 1993. Eu lá, fingindo que não tava ouvindo, mas tava, eles discutindo no que iriam investir o dinheiro no ano de 1993. O CEAP recebia verba das fundações Ford e Mitterrand, eu meti o meu bedelho e disse: ‘já que vocês tão decidindo o que vão fazer com o dinheiro, bota uma verbinha pra gente fazer um disco? Uma coletânea de hip-hop!’ Aí eles disseram: ‘Tá, vamos ver, mas não fala por enquanto pra ninguém, pra não criar expectativa e de repente a gente não conseguir cumprir...’ Sem perspectiva nenhuma, o pessoal do hip-hop xingava, dizia que estavam sendo usados pelo CEAP, mas que eles não tinham outro espaço pra se reunir, se desentendiam entre si, queriam jogar o outro pela janela, quer dizer, uma coisa que hoje, eu, você, a gente acha graça, mas era uma revolta adolescente juvenil”, ri.

A ATCON recebe a oportunidade de lançar através do CEAP a primeira coletânea de hip-hop carioca, o Tiro inicial. Para Richard, não foi tão fácil quanto ele previra organizar os grupos para o primeiro passo do profissionalismo: “Antes de falar para aquele bando de revoltados que tava aprovado, o pessoal do CEAP tava tentando se organizar pra saber como é que iam fazer a produção desse disco. E teve uma passagem engraçada: nesse meio tempo eu já namorava a Andréa, minha atual esposa, e ela fazia parte da coordenação de um projeto aqui em São Paulo chamado Rapensinando Educação, junto com a Suely Chan. Aí tava eu, o Edu, do Filhos do Gueto, o Gaspar, também do grupo, e o Paulinho. Lembra do Paulinho grafiteiro, o único grafiteiro que a gente tinha no Rio de Janeiro inteiro?”, pergunta, rindo. “Então, a gente tava indo pro primeiro show dos Racionais aqui em São Paulo e os caras no Rio de Janeiro eram aquela coisa: eles tinham acabado de lançar o álbum Escolha o seu caminho... E aí, a gente dentro do metrô, e eu com aquela coisa dentro de mim, porque sabia que o disco da gente tinha sido aprovado, virei e falei pros caras: pô, a gente tá indo lá assistir o show de lançamento dos Racionais, mas em breve a gente vai ter um disco lá no Rio também. A gente tava na estação Sé do metrô, indo pra estação Carrão, porque o show ia ser no Carrão. Aí os caras começaram a rir e falaram: ‘pô, o Big... esse cara é mentiroso


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pra c...!’ Ainda falaram pra minha namorada: ‘Andréa, você tá com esse cara? Esse cara viaja na maionese...’ E esse cara que tava duvidando era o Edu. A gente é superamigo hoje, e sempre que a gente se encontra, eu falo pra ele: você lembra...?”, risos. Eles na época não acreditaram, então, eu disse que eles iam se enganar. Eles pensavam assim: ‘imagina que o CEAP vai ajudar, eu não vou me vender!’. Porque era assim: tinha a história que o CEAP conseguiu o apoio do Mairton Bahia,53 que na época era dono do selo Radical Records, distribuído pela Virgin-EMI. Quando começou a reunião, nós abrimos a pauta falando sobre o disco que ia sair e neguinho só faltou se matar ali”, lamenta. “E por que neguinho só faltou se matar? Porque viu que o negócio era real, e aí deixou crescer aquela coisa do ego, a vaidade começou a falar mais alto. Aí eu comecei a enxergar que aquela estrutura, aquela ação política que a gente tinha forte, aquele radicalismo, era tudo areia, e com um vento mais a favor de um e menos a favor de outro, aquilo ali começaria a se desmanchar”, conta. “Exatamente naquele momento que a gente tava produzindo o Tiro inicial, eu comecei a me desassociar da ATCON, porque, como prova o meu trabalho até hoje, eu sempre acreditei na coisa, eu sempre... podem me chamar de sonhador, de idealista, eu sempre carreguei isso comigo, e isso era verdadeiro dentro de mim”, declara. “Quando eu comecei a ver que na associação tinha esse inflar de egos e vaidades, eu me afastei, mas terminei de produzir o disco. Nesse tempo foi quando eu comecei a me afastar também do Gabriel, e também até dos meus próprios primos. Por quê? Porque eu observei que o Gabriel assinou o contrato com a Sony, e ele também começou a se achar, se sentir importante. Era o contrário de tudo aquilo que a gente pregava até então. Antes de ter a possibilidade de ganhar dinheiro e assinar contrato, a gente falava que tinha que ter união”, ressalta.

Richard completa: “Você lembra que onde um ia fazer show, chamava todos os outros, não existia aquela coisa que eu chamo de papagaio de pirata?54 Com o contrato do Gabriel na Sony, o que aconteceu com a pos53 Ex-produtor do grupo de rock Legião Urbana. 54 Puxa-saco, aproveitador de situações.


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sibilidade de sair o Tiro inicial? Eu não sei dizer se ele foi orientado pelo marketing da Sony, ou o que foi. Eu sei que eu fiquei fodido no dia, eu tava assistindo o RJ TV – 1ª edição, aí apareceu a divulgação do clipe ‘Retrato de um playboy’, e o jornalista vira e fala: ‘você vai ver agora a gravação do primeiro clipe de hip-hop carioca que o Gabriel O Pensador, um dos mais famosos rappers brasileiros, líder do hip-hop carioca, junto com sua turma...’ E aí o Gabriel dá a entrevista. Ele aparece no primeiro plano e a negrada toda atrás dele”, lamenta. “Ali era um exemplo claro do que os escravocratas preparavam pra gente. Sempre que tem a possibilidade de ascensão de um grupo negro, eles escolhem um representante com a pele mais clara, no caso branco, pra colocar à frente. Assim, se você pegar a história da música mundial, como foi o caso do Elvis Presley, foi a história do Vanilla Ice no hip-hop, foi a do Gabriel O Pensador. Aquilo ali começou a me desmoronar. Aí eu escrevi o seguinte no jornal AfroReggae Notícias, em que eu era colunista: ‘se vocês estão cansados dessa encheção de “Lôra burra” e “Retrato de um playboy”, ouçam Racionais’. Porque os Racionais não eram tão conhecidos no Rio de Janeiro. Dava inclusive o endereço de como conseguir o vinil deles. Ali no Largo da Carioca tinha uma lojinha, que ficava até próxima de onde o Marcelo D2 tinha a banquinha dele de camelô, ele e um outro parceiro vinham pra São Paulo, pegavam umas coisas e vendiam lá... Nessa época o D2 não cantava rap e nem rock, ele visitava os nossos shows de rap.”

Ainda sobre a ATCON, o rapper Gabriel O Pensador me explica como se deu sua iniciação no meio hip-hop e artístico: “Apesar de eu já fazer rap desde 90-91, eu fazia na minha, sozinho, com o meu irmão me ajudando a fazer as coisas em termos de música, de base... E fazia mais letras... Talvez em 91, mas já quase em 92, eu conheci outros rappers no cinema, assistindo à Boyz ’n the hood, e pelas roupas a gente se identificou como fãs de rap. Na verdade eles faziam rap também: o Leandro, acho que tava começando, o Yuri já fazia, e aí eles me apresentaram ao Tito, que tinha uma bateria eletrônica e começou a me ajudar nas minhas letras programando umas bases... Cada um conhecia mais um. De repente se reuniu um grupo de 10 a 15 pessoas, incluindo o


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Bill, você, o pessoal do Artigo 288, Filhos do Gueto, NAT... Essa galera, não sei se todos foram das primeiras idas, mas foi daí que surgiu a associação, que na verdade era uma maneira de a gente ter um encontro semanal pra trocar idéias. Aliás, depois lembrei que acho que fui eu quem deu o nome Atitude Consciente para a associação, que era um nome que eu achava que demonstrava atitude. Não adiantava ter um papo só de marra e não ter consciência, ou ter consciência e não agir... E a gente tava tentando juntar as duas coisas mesmo e quando tinha a oportunidade, a gente fazia a nossa parte, cantava duas músicas cada um nos shows do movimento negro, do movimento estudantil, na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Na Praia de Botafogo rolou um que eu me lembro que foi bem interessante, acho que foi no Dia da Consciência Negra, o palco era grande e o público também, e a gente teve a chance de cantar, mesmo que fosse à capela às vezes, a gente não tinha nem base instrumental. A galera do AfroReggae também, não posso esquecer, começou junto, ralando na mesma época, e a galera do CEAP, é lógico, que foi quem cedeu o espaço pra gente se reunir lá... Então, era um pessoal muito interessante. É claro que a gente era muito novo, alguns ainda tavam desenvolvendo mais a postura e aprendendo a lidar uns com os outros, mas era uma época bem interessante.”

Retornando a São Paulo: a gravadora Zimbabwe lança, em 1992, a coletânea Consciência black II, com destaque para os grupos DMN, MRN e Face Negra.

1993 Os b-boys da estação São Bento conseguem a liberação do Governo do Estado e realizam a I Mostra de Hip-hop Nacional. Praticamente no fim do ano, a São Bento deixa de ser ponto de encontro para o movimento hip-hop em São Paulo. Magno C-4, rapper atuante que na época freqüentava a São Bento


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como b-boy, conta os motivos que levaram à interrupção das reuniões: “Em março, nós tivemos a I Mostra de Hip-hop Nacional. A São Bento já era popular no Brasil inteiro, e essa mostra a tornou ainda mais popular. A São Bento era a ‘Meca’ do hip-hop. Se a gente inicialmente tinha uma meta de 300 pessoas por sábado, passamos a ter 800, até mil pessoas, e o espaço não comportava aquilo. A nova geração de b-boys não tinha respeito pelo espaço, a gente tinha que falar para não dançar próximo à vidraça. Muitos consumiam drogas, e a São Bento não era lugar para isso”, lamenta. “Outros traziam garrafa de pinga, não bebiam ali por causa da gente, mas iam para a praça ao lado e voltavam doidões. Alguns pareciam mendigos, não por não terem condições de se vestir melhor, mas por não quererem se vestir melhor, só porque iam dançar no chão. E dançavam perto das escadas de acesso, atrapalhando o trajeto dos pedestres. Daí a expressão ‘pé-de-barro’.55 A pessoa não precisa estar bem vestida, mas razoavelmente vestida, e não suja. Por isso houve muitas queixas à direção do metrô, porque os pés-de-barro estavam sendo confundidos com marginais e o espaço acabou sendo vetado pra gente.”

No rap, o grupo Filosofia de Rua causa polêmica em 1993 com a música “A cor da pele”, provocando a indignação de um grupo da ala mais radical do movimento conhecido como Black Panthers.56 Tal insatisfação acaba em agressão física: Ali, um dos integrantes do Black Panthers, investe contra DJ Man, do Filosofia de Rua. Confira um trecho da letra que provocou a briga: Se continuarmos pensando do jeito que muitos estão Sempre colocando o homem branco como vilão Não chegaremos a nada, será uma palhaçada Ai meu Deus! A cor da pele não influi em nada!

55 Aquele que não segue estritamente o modelo dos b-boys dentro da cultura hip-hop. 56 Em alusão ao grupo revolucionário negro norte-americano.


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Se nós continuarmos pensado assim Vai estar muito mais próximo o nosso fim Eu te garanto que de nada vai adiantar Você precisa parar um pouco para pensar Que não é todo o branco que é culpado Eu te garanto que existem muitos brancos conscientizados A cor da pele não influi em nada! Será que é pedir muito a união das raças...?

É fundada em São Paulo a posse Hausa, que tem como um dos organizadores o ativista e soulman Nino Brown. A Hausa atuaria de forma política, cultural, social e inter-radial (criada nos moldes da nova-iorquina Zulu Nation, de Afrika Bambaataa), com sede em São Bernardo do Campo. Ninguém melhor que Nino para contar sobre o começo da Hausa: “O nome Hausa, é muito forte, porque representa os malês.57 Quando eles vieram para o Brasil, ainda no período da escravidão, estavam entre eles cerca de oito mil escravos de etnia Hausa. E aí a história de Luiz Gama,58 e da sua mãe, Luiza Main,59 foi a nossa inspiração pra inaugurar a nossa posse. Era na intenção de nos organizar mesmo, porque antes eram o ABC Raps, o Força Ativa, a Aliança Negra, e a gente resolveu montar uma posse com as idéias voltadas pra história do nosso povo no Brasil. Tinha um coordenador, eu ficava encarregado da parte de imprensa e de elaborar os folhetos explicativos. A gente fazia e participava de várias atividades, reunindo todos os elementos da cultura hiphop. E tinham alguns grupos como o Banzu Bantus, Reflexão Ativa, N Clã, MCs Black, Suburbanos [do qual fazia parte o rapper Afro X] e que depois virou Tribunal Popular, o Di Função e, tinha grafiteiros e b-boys. Aqui a gente fazia vários eventos de ação social, como campanha da alimentação, do agasalho, cadastrávamos as

57 Muçulmanos de origem africana. 58 Abolicionista, excelente orador negro e bibliotecário na Faculdade de Direito de São Paulo. Assumindo o corpo de jurados no Tribunal do Júri, foi o responsável pela liberdade de mais de 500 cativos. 59 Uma das principais articuladoras da Revolta dos Malês, em 1835, embora os registros históricos não façam menção ao seu nome.


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famílias carentes e distribuíamos o que arrecadávamos”, conta. “Tentávamos nos organizar da melhor forma possível.”

Numa iniciativa pacífica, o DJ Man se reúne com Ali na São Bento para acertarem as arestas sobre a polêmica em torno da música “A cor da pele” e o absurdo da agressão física que se seguiu. Ali reconhece seu erro e tudo termina de forma respeitosa. O rapper Gog lança o selo Só Balanço, em Brasília, para dar voz ao rap brasiliense. Reconhecendo a importância do movimento no Brasil, a revista DJ Sound inaugura sua coluna de hip-hop nacional, assinada pelo produtor Fábio Macari. É lançada no Rio, pelo selo Radical Records, em parceria com o CEAP e a ATCON, a coletânea Tiro inicial, reunindo os grupos Consciência Urbana,60 NAT, Damas do Rap, Filhos do Gueto, Poesia Sobre Ruínas e Geração Futuro, do qual o rapper MV Bill era líder. A coletânea conta com a participação especial do rapper Gabriel O Pensador na faixa “Filhos do Brasil”, que reúne todos os grupos do disco. Na seqüência Gabriel lança seu primeiro álbum, Gabriel O Pensador, pelo selo Chaos (Sony Music), dando início a uma polêmica trajetória como rapper, conhecido pelos sucessos “Lôra burra” e “Tô feliz, matei o presidente” – esta proibida de tocar nas FMs, pois era endereçada diretamente ao presidente Fernando Collor de Mello, em gestão na época. A respeito do impacto de seu repertório junto ao público, Gabriel relata: “‘Matei o presidente’ estourou nas rádios ainda em 1992, chamando a atenção para o que era o rap e, em maio de 93, saiu o meu disco, que fez muito sucesso também. Eu tentei aproveitar isso pra trazer outros rappers pra cena, ou seja, mostrar a cara da galera... Ainda demorou, o rap tá precisando ainda de cada vez mais espaço, mas agora também já é outra história, não foi assim

60 Liderado pelo rapper e ator Big Richard.


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numa carona rápida no meu sucesso que o rap ganhou espaço. Alguma coisa aconteceu com as portas se abrindo pro meu disco, sim, e depois, em seguida, tocaram algumas outras coisas, mas não como a gente queria... Acho interessante a ‘Matei o presidente’, porque ela me comprovou algo em que eu confiava: que o rap em português poderia ter identificação com o público que não conhecia o hip-hop como a gente curtia, tipo Public Enemy, BDP, Guetto Boyz. Enfim, a gente que já era fã de rap, já tinha tendência pra isso, pra ouvir um Thaíde, Racionais e gostar também; mas um cara que nunca ouviu rap, nunca prestou a atenção nas pouquíssimas coisas que tocavam nas rádios [Run DMC, Beastie Boys etc.], na verdade, esse cara que nunca se ligou nisso. Ali eu vi que ele podia, pela idéia da letra e pela novidade do som também, entendendo o som que era em nosso idioma, reconhecer o valor dessa linguagem. E isso eu vi nos showzinhos que a gente fazia, se eu cantasse ‘Lôra burra’ ou ‘Lavagem cerebral’, ou qualquer letra minha, tinha uma resposta interessante do público! Então, eu já confiava nisso, mas sempre você fica naquela dúvida: será que numa rádio aquilo também ia ter uma resposta? E teve com a letra do ‘Eu tô feliz, matei o presidente’. Ali eu tive certeza de que meu caminho era realmente tentar fazer um disco para um público variado; não só para um público de rap, que era muito pequeno na época.”

Naquele período, começo dos anos 90, o calor da militância aflora entre os rappers, educados sob os ensinamentos do Movimento Negro. O tema racismo ainda é um obstáculo a ser vencido pela insistência de quem não tinha medo de abordá-lo. Consciente do momento por que passava o hip-hop, Gabriel arrisca com seu mais polêmico sucesso, “Lavagem cerebral”, e se impressiona muito com os resultados, justificando inclusive sua predileção por essa faixa: Tocar músicas como ‘Lavagem cerebral’ na rádio ou no Faustão, ou em qualquer lugar desses, sendo ela uma letra séria que falava de um assunto que era tabu, mais do que hoje, porque as pessoas não gostavam de falar de racismo, foi bem interessante. “Lôra burra” e “Retrato de um playboy” são músicas de conteúdo importante, mas com “Lavagem cerebral” eu me surpreendi mais ainda,


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porque ela não tinha refrão, não tinha ironia e nada engraçado e tocou bastante!

Ainda neste ano, a Radical Records lança o primeiro álbum de um grupo de rap oriundo do subúrbio carioca. Do bairro de Realengo,61 surge o Artigo 288 e seu disco A hora da verdade, que passa a significar um fio de esperança para os artistas que imaginam que a oportunidade seria dada apenas a artistas de classe média alta, como Gabriel. Gabriel garante que não foi nada fácil conquistar espaço no mercado da música: “Corri atrás disso, consegui um contrato numa gravadora grande; não foi na primeira tentativa que eu consegui, mas eu insisti, cheguei a recusar um contrato pra fazer um EP em São Paulo por uma gravadora de rap, porque eu conversei com o dono e ele me explicou que a divulgação seria restrita ao público de rap, e não era isso o que eu queria. Apesar de admirar muito o público de rap, eu queria que outras pessoas também tivessem a mesma oportunidade de gostar de rap. Então, eu queria correr atrás de algo melhor, porque sabia que naqueles cinco dias de RPC FM [tempo que a música ‘Matei o Presidente’ circulou antes da censura], o público tinha pedido muito o som do ‘Matei o presidente’. Isso sem o ‘jabá’... Aí aconteceu o lance da censura. Pra quem não sabe da história, a música foi vetada por debaixo dos panos, não havia uma restrição oficial, mas o Ministro da Justiça na época, Célio Borges, assumiu pro Jornal do Brasil que eles ligaram pras rádios e fizeram uma pressão pra pararem de tocar o som. O Collor ainda tava no poder, a música falava de vários escândalos que já tinham saído na imprensa e não eram novidade pra ninguém, mas a linguagem era muito agressiva, apesar das metáforas e do humor. Aí eles deram um jeito de proibir a música aproveitando-se do poder que ainda tinham, através da Radiobrás. Mas a música saiu no disco com a mesma versão e a censura ainda me inspirou a escrever uma outra letra chamada ‘Abalando’. Eu gosto da história de como eu comecei, de como cheguei até a rádio, de como

61 Zona Oeste carioca.


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o trabalho chegou até o público de uma forma muito livre, e eu acho que aprendi a administrar tudo aquilo que eu fazia. Não tive medo de entrar numa gravadora grande, de achar que alguém ia querer direcionar o meu discurso; nunca tentaram, acho que até por causa da minha personalidade, e por causa da história dessa música que mostrou que comigo era diferente no sentido da autonomia do trabalho, sem precisar de um direcionamento artístico como muitos artistas muitas vezes precisam.”

Por outro lado, Big Richard se desliga definitivamente da ATCON naquele momento, desiludido com a ideologia pregada pela associação, decepcionado com alguns membros: “Nunca mais falei com o Gabriel depois disso, fui a alguns shows dele aqui em São Paulo, até que um segurança dele, de nome Portinari, me barrou num show dele. Foi quando eu comecei a desacreditar daquele idealismo da ATCON. Então, eu saio da ATCON e entra um pessoal mais novo: as Damas do Rap, o NAT... Ainda tinha isso, todos lutavam contra o preconceito, mas quando entram as primeiras mulheres na ATCON, que eram as Damas do Rap, tinha a resistência, porque elas eram mulheres e vinham do charme.62 Mas elas resistiram e continuaram, e isso foi importante”, lembra.

Big Richard conta ainda sobre essas pioneiras na ATCON: “Eu me afastei de todos e vim pra São Paulo. Nesse tempo em que eu tava descontente com a associação, entrou uma menina de Niterói, que, de tanto nos ver em vários lugares, queria aprender a cantar rap. Ela também era articulada, politizada... A mãe dela, se não me engano, era psicóloga, militante do movimento negro. A última história que eu sabia era que a mãe dela tava morando nos Estados Unidos. E era a pessoa que tava ali diariamente enchendo o saco, e começou a saber uma série de coisas da associação. Começou a se articular, conhecer gente de São Paulo, viajar pra fazer intercâmbios. Quando precisou de uma coordenação, ela tava ali, independente de ela cantar rap ou não. O nome dela era Quênia. Depois dela veio a Edwirges, das Damas do Rap, e assu-

62 Movimento surgido nos bailes cariocas de r&b.


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miu e fez também um trabalho bacana. Só que onde só se discute música, mesmo que seja uma música que se diz politizada – eu não digo que o rap é uma música politizada, eu digo que o rap é um estilo musical que quem faz, diz ser politizado; se você não tiver um processo de formação de quadros, como se diz nos partidos políticos, você não se sustenta. E eu acho que foi por isso que a associação não se sustentou.”

Em agosto, estréia no circuito carioca o filme Malcolm X, e a ATCON é convidada pelo Grupo Severiano Ribeiro a participar da noite de lançamento no extinto cinema Madureira 1.63 Decepção geral quando descobrem que não poderiam se apresentar no cinema, como previsto. Big Richard, em poucas palavras, conta como foi: Ficamos apenas naquela posição de papagaios de pirata, fazendo decoração de ambiente, pra mostrar pra mídia a influência de Malcolm X sobre uma geração.

Surge em São Paulo o programa Rap Brasil, na Rádio Metropolitana FM, responsável pela descoberta e divulgação de muitos artistas importantes para o hip-hop nacional nos anos 90. No dia 20 de junho, o CIEP Luiz Carlos Prestes, na Cidade de Deus, torna-se palco do primeiro grande evento de hip-hop no Rio de Janeiro: o I CDD SOS Consciência, organizado pelo rapper MV Bill e seus amigos. Sem o apoio de grandes empresas, o evento fora projetado no interior da quadra polivalente daquela escola pública. O palco improvisado sobre uma armação precária de andaime e folhas de compensado, a energia extraída do poste da rua e os equipamentos somados dos amigos do rapper – já que a diretora da escola ausentou-se no dia da abertura do espaço, evitando dar o apoio prometido –, fizeram desta iniciativa o espelho para muitas outras que viriam depois, consolidando assim o movimento no estado. Misturando-se ao público da comunidade, pessoas de fora se aventuraram na favela em

63 Cinema no bairro suburbano carioca de mesmo nome.


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busca do local do show, na intenção de prestigiar algo inédito e inusitado. Sendo assim, os artistas locais MC Zezé, Nego Véio, MC Mi, Guardiões da Cor, e Geração Futuro receberam os grupos Damas do Rap, Artigo 288, Poesia Sobre Ruínas, Filhos do Gueto, NAT, Consciência Urbana e Gabriel O Pensador, numa confraternização memorável. O grafiteiro Padrão, um dos poucos existentes na época, ficara encarregado de pintar o mural multicolorido, oficializando a Cidade de Deus como o ponto carioca por excelência para a primeira geração do hip-hop da época. Enquanto bandas fundiam rap com rock nos EUA, como o Rage Against The Machine, para confrontar o sistema americano com um som feroz, no Rio de Janeiro, uma banda com letras também politizadas, falando especialmente sobre maconha e sua legalização, começa a fazer shows pelo Brasil levantando a bandeira da liberdade de expressão: é o Planet Hemp, que tinha à frente os vocalistas Skunk e Marcelo D2.

1994 A revista Pode crê! fica estagnada, vítima da crise econômica e política que abate o país. O rapper Clodoaldo conta mais sobre essa queda: “As pessoas elegeram um cidadão, sociólogo, que todos nós conhecemos pela sigla FHC,64 e o Plano Real, a pseudo-estabilidade. E os discursos do nosso ex-presidente mundo afora convenceram o mundo de que o Brasil não tinha problemas, de que nós éramos uma economia em pleno desenvolvimento, e que íamos a pleno vapor rumo ao total progresso. Próximo a isso tudo, ocorreu a guerra na Bósnia; a queda do muro de Berlim; as repúblicas socialistas do Leste Europeu tornaram-se independentes, e todas paupérrimas, porque a ‘mãe Rússia’ não cuidava

64 O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que governou de 1994 a 2002.


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mais delas. Com isso, todos os financiamentos se voltaram para o Leste Europeu. E muito pouco sobrou para a América Latina, em particular, para o Brasil, porque aqui, afinal, estava tudo lindo”, ironiza. “Não havia mais inflação, nós tínhamos uma moeda forte, uma economia forte. Todas as ONGs dependiam do financiamento estrangeiro para fazer os seus projetos sociais num país até então subdesenvolvido. Daí começaram a ficar sem dinheiro porque ninguém acreditava mais nesse subdesenvolvimento, ao passo que o real ficara em par com o dólar. Nosso financiamento é em dólar, com isso, a Pode crê! mingüou e, por pouco, a Geledés não mingüou junto, como foi o caso de muitas ONGs da época.”

Este ano também é marcado por uma manifestação em São Paulo e um incidente. Cerca de 30 mil pessoas se concentram no Vale do Anhangabaú65 para o evento “300 Anos de Zumbi”, que tem apoio da MTV Brasil através do programa Yo! MTV Raps. A programação reúne nomes do hip-hop nacional como Thaíde & DJ Hum, MRN, Faces do Subúrbio (de Pernambuco), Posse Mente Zulu, Comando DMC e Racionais MCs. Uma ação não-premeditada da polícia causa revolta no público, durante o show dos Racionais, no momento em que a música “Homem na estrada”, do álbum Raio-X do Brasil, lançado em 1993 pela gravadora Zimbabwe, é executada. O trecho da letra que teria desencadeado a confusão entre platéia e polícia é “Não confio na polícia, raça do c...”. O resultado: a interrupção do show, a depredação de diversas viaturas, várias pessoas detidas e outras feridas em choque com a polícia. Mano Brown, líder dos Racionais, conta o que viu: “A repressão já tava armada, porque alguns grupos que se apresentaram, quando viram a polícia lá, incitaram a polícia contra eles. O Racionais mesmo não fez nada, só cantou! Na época a música que atacava a polícia era ‘Homem na estrada’. Enquanto os outros grupos atacavam com palavras, o Racionais só cantou e agrediu muito mais cantando do que falando! Mexeu com o brio da massa! Acho que foi a primeira vez que, pro grande público, o rap

65 Centro de São Paulo.


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mostrou alguma força, um poder de multidão”, acredita. “Um lugar neutro, longe do que a mídia já tinha estipulado como o lugar do rap, longe da periferia, o rap foi pro centro. Era uma multidão, aí de repente aquela multidão se revoltou com a polícia e saiu pegando de pancada! Os moleques saíram capotando os ‘polícias’ de soco mesmo e os ‘polícias’ não acreditaram! Pedrada, voadora... Eu tava lá no palco e tava vendo os caras dando voadora nos ‘polícias’! Eu não acreditava! Então, a gente não foi preso, porque a gente não aceitou ser preso. A gente foi encaminhado, é diferente”, risos. “A nossa vontade era descer lá e sair capotando os ‘polícias’ com os caras, mas nós já fomos impedidos ali no palco mesmo. Nós começamos a debater e não aceitamos ser presos: daqui nós não vamos sair, e ‘é nós’ mesmo! O que você quiser, nós também quer! O barato já tava o maior inferno. Aí eles ficaram com medo, e encaminharam a gente à delegacia por causa do incidente que teve lá embaixo”, justifica. “Depois, esses caras que fizeram isso, eles se arrependeram. Havia alguns advogados aí que na época tavam lá, por ser no centro, chamou muita atenção, outras pessoas de solidarizaram com o que aconteceu. Com a nossa causa, que era cantar, e os ‘polícias’ não deixaram a gente cantar. O que era ridículo, não deixar uma pessoa cantar uma música, então, eles acharam aquilo uma coisa absurda. Uma instituição como a Polícia Militar de São Paulo, respeitada, ter medo de uma letra de rap, como é que pode? Aí eles mostraram o medo deles! Nós descobrimos que eles têm medo, que o sistema tem medo de uma palavra bem falada pras pessoas certas, no momento certo! Então, se um preto consciente causa medo, imagina cinco mil ao mesmo tempo? É uma revolução de momento! Causa distúrbio, pode ter gente ferida! Eles têm medo! A integridade física dos bacanas tá acima de tudo”, ironiza.

No mesmo ano, Padre Xavier, ativista religioso responsável pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan (CEDECA), funda a posse CEDECA Rap, com sede no Parque Santa Madalena,66 com o propósito de atender os jovens pobres da região, utilizando oficinas de hip-

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Zona Leste de São Paulo.


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hop, cursos profissionalizantes e trabalhos de recuperação a dependentes químicos. O Pavilhão 9 emplaca seu segundo álbum, Procurados vivos ou mortos, que rende ao grupo 50 mil cópias vendidas. São destaque as cinco versões da música Vietnã, mais as faixas Luto e Apaga o baseado – esta a mais aclamada de todas, com seu clipe indicado a “Melhor videoclipe de rap nacional” para o Video Music Brasil, premiação anual da MTV, de 1994. Em Brasília, Gog explode com o sucesso do álbum Dia-a-dia da periferia (do selo musical Só Balanço), com destaque para a faixa-título. O curioso sobre este sucesso é perceber a preocupação de Gog em retratar na letra imagens reais das periferias brasileiras. Por exemplo, em vez de carrões comumente cantados nos raps gringos, o popular Fusca é que passa por seus versos. Ainda em Brasília, DJ Jamaika se desliga do grupo Câmbio Negro por divergências pessoais. Morador recente da comunidade da Cidade Tiradentes,67 o jovem aficionado em rap conhecido como Luciano se converte à Palavra de Deus e adota um novo estilo de pensar, de se comportar e cantar. Tempos mais tarde, esse rapper levantaria um grupo que se tornaria o elo entre os meios gospel e secular: o Apocalipse XVI. Os freqüentadores mais antigos da São Bento se organizam numa comissão e buscam a reabertura do espaço junto à direção do metrô. Magno C-4 conta como foi a tentativa de restabelecer o endereço inicial do hip-hop paulistano: “A gente ficou quase um ano correndo atrás de uma autorização para poder voltar a freqüentar a São Bento. Aí, nessa época, o Marcelinho Back Spin, o Allan Beat e o Moisés, do Jabaquara Breakers, assinaram um documento se responsabilizando por qualquer dano ao patrimônio e eventuais confusões que viessem

67 Zona Leste de São Paulo.


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a acontecer na São Bento. Assim, a cada sábado, a Street Warriors, a Back Spin e a Jabaquara Breakers deviam escolher entre seus integrantes um ou dois representantes, que se apresentavam à direção do metrô, deixavam o RG e eram os responsáveis pelas reuniões durante o funcionamento do espaço. Eu cansei de deixar o meu RG lá. Você tinha que chegar às 13h30min e sair às 18h. Tinha que ser babá de marmanjo. Mesmo assim, o pessoal não respeitava”, lamenta. “A direção do metrô já queria um motivo para tirar a gente dali, porque era uma área de lojas e muitas não estavam alugadas. Na cabeça da direção, ninguém iria alugar as outras lojas com a gente por ali. Antes eles achavam interessante a gente ali, porque a Mostra de Hip-hop tinha sido um sucesso, chegando a reunir mais de três mil pessoas; o metrô tinha os seus próprios eventos e não ia ninguém. A mostra não teve show de rap, foram só os b-boys. Então, eles viram que tinha público, mas essa geração que chegou depois não quis respeitar a gente. Não podia dançar perto das vidraças, o palco de concreto era o único local permitido pra dançar; existiam regras. Quase todos os sábados a gente se reunia pra conversar com os mais novos sobre o comportamento deles, mas eles não davam atenção.”

Enquanto os ritmos do techno, garage, ambient, acid jazz e todos os temperos eletrônicos embalam as raves cariocas, uma mulher nada contra a corrente das novas tendências do underground com algo que até então era explorado somente em comunidades como a Cidade de Deus: o hip-hop. Ela idealiza a “Rave Hip-hop”. Utilizando a Fundição Progresso68 como sede inicial e recebendo nomes como o DJ Paulo Futura – um dos poucos profissionais a tocar hip-hop então, à base do vinil e pick-up –, Marcelo D2 e Gabriel O Pensador, que exercitavam o seu lado MC, ela promovia uma autêntica jam party, num período em que todos negligenciavam o movimento. Seu nome, LZA (lê-se Elza) Cohen. Pode-se considerar LZA como a primeira mulher a empreender eventos de hip-hop no Rio de Janeiro.

68 Casa de shows na Lapa, famoso bairro carioca.


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Surge neste mesmo período outro projeto de LZA, o Super Demo, responsável por revelar nomes como O Rappa, Jorge Cabeleira e Planet Hemp (viabilizando inclusive o contrato da banda junto ao selo Chãos, da Sony Music). O Super Demo percorre as cidades de Curitiba, Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, levando Artigo 288,69 Gabriel, Skank, Pato Fu e Chico Science, revelando um novo cenário de música jovem para a década de 90 – incluindo o rap – para empresários, selos e gravadoras. Com o falecimento de um de seus fundadores, o rapper Skunk, vítima de AIDS, a banda Planet Hemp permanece fora do circuito por algum tempo. A perda do amigo incentiva Marcelo D2 a criar o selo Positivo, que passa a angariar fundos para o tratamento de crianças vítimas do HIV.

1995 DJ Jamaika inicia sua carreira solo, ao lado de seu irmão Rivas, e forma o grupo Álibi, lançando em seguida o seu primeiro álbum, Abutre pela Discovery. Numa das faixas do álbum, Jamaika deixa evidente o seu desafeto por X (líder do extinto Câmbio Negro). A entrada do rapper B. Negão revitaliza o Planet Hemp, fora de cena havia um ano, desde o falecimento de Skunk. Logo os componentes retomam suas funções e assinam contrato com a Sony Music, lançando seu primeiro álbum, Usuário. O disco dá ao Planet visibilidade nacional através de sucessos como “Mantenha o respeito”, “Legalize já” e “Fazendo a cabeça”, além da polêmica “Porcos fardados”, endereçada ao sistema policial. Em São Paulo, determinado a gravar seu próprio trabalho, Luciano junta suas economias e recruta dois amigos para formar o grupo Apocalipse XVI, tornando-se líder e passando a atender pelo codinome Pregador Luo. Em entrevista ao site 69 Extinto grupo de rap carioca; o primeiro a lançar um álbum de rap no Rio de Janeiro.


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Apocaloucos <www.apocaloucos.ubbi.com.br>, Luo conta como foi fazer tudo na marra: Lembro que vendi meu celular naquela época para minha professora de Geografia. Isso foi logo que os celulares foram lançados aqui no Brasil e valiam uma grana alta, deu pra pagar quase a metade do valor que eu gastei no estúdio.

Ainda em Sampa, a direção do metrô proíbe novamente as reuniões na São Bento pelos mesmos motivos de antes. Os b-boys, no entanto, a reativam na surdina, agora sem tanta força, como explica Magno C-4: “Nós voltamos, desta vez na clandestinidade, como foi no início de tudo em 85. Já não ia tanta gente, porque achavam que a São Bento tinha acabado. A São Bento não era mais o point pra dançar, a gente só se reunia pra atualizar nossas idéias sobre o que estava acontecendo no hip-hop. Aí a gente foi para o Vale do Anhangabaú, mas não deu certo porque os mendigos atrapalhavam. Depois a prefeitura cercou a área. Pra dançar, a nossa alternativa era se reunir no boulevard da Avenida São João, no Centro. Tinha uma loja de discos em frente ao local onde a gente dançava em que o dono ligava o som, porque ele gostava de ver a gente dançando. Ajudava a chamar a clientela também. A gente ficava no boulevard das 13h às 17h, e depois subia pra São Bento. Chegava lá, a gente não dançava, só se reunia, e quando não tinha guarda por perto, a gente dançava.”

Enquanto isso, o movimento carioca reage contra as dificuldades e realiza, com o apoio da ATCON o Maré Voz Ativa, no Complexo da Maré,70 reunindo 25 grupos, b-boys do GBCR (Gangue de Break Consciente da Rocinha) e a arte do grafiteiro mineiro, radicado no estado, Padrão. Neste mesmo período, a ATCON sofre a maior de suas dissidências. Uma ala opositora se levanta contra a administração de seu coordenador Frio Bira (ex-Consciência Urbana) e decide formar uma nova frente: a Voz Ativa. Reunindo os artistas e grupos Disciplina Urbana, Eva Samaja, Damas do

70 Conjunto de favelas na Zona Norte do Rio.


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Rap, Realidade Social, Justiça Negra e Paula Diva (a primeira mulher a cantar rap solo no Rio de Janeiro), a Voz Ativa divulga uma nova proposta aos recém-chegados ao movimento carioca. A divisão entre as entidades faz com que os adeptos do hip-hop não vejam mais a ATCON como centralizadora de ideologias, dando a todos a oportunidade do desenvolvimento de seus dons de modo livre, sem a censura de uma entidade pioneira. De volta a São Paulo: o rapper DJ Alpiste apresenta uma versão em rap da música “Ser ou não ser”, da banda de black gospel Kadoshi, que de imediato aprova o resultado e grava a faixa. Surge então a primeira letra de rap gospel nacional gravada em disco.

1996 É fundada a Posse Negroatividades, com os mesmos propósitos das demais posses, dando a sua contribuição exclusiva aos jovens pobres de Santo André (SP). No fim do ano, o Planet Hemp entra em estúdio para gravar o seu segundo álbum, Os cães ladram mas a caravana não pára. Apostando na qualidade, a banda mixa todo o repertório nos Estados Unidos.

1997 Os b-boys desistem de ocupar sua estação de metrô preferida e, fugindo da postura dos pés-de-barro, abandonam definitivamente a São Bento. Magno C-4 conta que a situação acabou se tornando uma guerra entre b-boys e pés-de-barro – segundo ele, os principais causadores da perda do espaço:


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Estourou uma guerra de b-boys versus pés-de-barro, que também eram conhecidos como power move.71 Mas, para não chegar a um conflito maior, a gente parou. Eles não iam permanecer ali sem a gente, porque não sabiam nada sobre a cultura hip-hop.

O projeto pedagógico e social Inamar, que ajuda jovens do bairro Jardim Inamar em Diadema, se muda para o Centro Cultural Caiema, onde a infra-estrutura atende melhor às necessidades do grupo. Nino Brown conta mais sobre seu primeiro contato com eles: Eu conheci o pessoal em 1996. Já tinha a Hausa, e como o trabalho dela já tomava o meu tempo, a gente também fazia nossos eventos aqui. Mas a gente se ajudava e rolava uma troca de favores.

Em Brasília, o grupo Cirurgia Moral lança seu álbum A minha parte eu faço (Discovery), em que uma das faixas é dirigida ao rapper Gog de modo desrespeitoso. Fica claro que há uma divisão de estilos na capital, e, conseqüentemente, de pontos-devista: de um lado, o discurso politizado de artistas como Gog e Câmbio Negro. De outro, o estilo que se assemelhava ao gangsta rap da Costa Oeste americana, com Cirurgia Moral e Álibi. Os cães ladram mas a caravana não pára é lançado e o Planet Hemp conquista o disco de platina. Ganhando cada vez mais destaque no cenário musical brasileiro, engajada na complexa discussão sobre a legalização da maconha, a banda passa a colecionar vários incidentes com a justiça, o que resulta em discos apreendidos, shows cancelados e ordens de prisão. Bem no clima do Planet Hemp, o Pavilhão 9 se transforma numa banda, agregando em seu rap o hardcore. Em sua nova formação, além dos rappers remanescentes Rho$$i, Doze e DJ Branco, o Pavilhão passa a contar também com o apoio dos músicos

71 Modalidade de dança praticada somente no solo, similar aos movimentos dos ginastas. No power move, os b-boys apresentam coreografias com princípio, meio e fim, no compasso da música, ao contrário dos pés-de-barro, que não respeitam compasso ou coreografias.


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Blindado (guitarra), Marinho (baixo), Ortega (guitarra) e Thunder (bateria). O álbum de lançamento da nova cara do Pavilhão é o Cadeia nacional, cujas melhores faixas são as três versões de “Opalão preto”, e a “Mandando bronca”. Esta origina um videoclipe, que conta com participação especial de Black Alien, e conquista o Video Music Brasil 1997. Cadeia nacional reúne também participações especiais de Igor Cavalera – do Sepultura – e Marcelo D2. No entanto, como havia ocorrido nos Estados Unidos quando os rappers do Run DMC se juntaram ao Aerosmith no remake de “Walk this way” – embora a sonoridade do Pavilhão fosse de puro rap-core –, a banda é mal interpretada por alguns roqueiros que não aceitam a mistura, e também por rappers que não admitem a introdução de guitarras em meio à formação DJ e MC. Mesmo com a recepção inicial fria, a banda persevera em sua inovação e conquista o respeito da cena musical brasileira. Após termos tido o privilégio de abrir o show dos Racionais MCs, na companhia do grupo Negros por Excelência, no ano anterior, na cidade de Jundiaí (interior de São Paulo), quando eu ainda fazia parte do projeto de MV Bill, nada mais parecia acontecer de extraordinário para nós, aqui no Rio de Janeiro. Como já era de rotina, eu e Bill fazíamos na Cidade de Deus, nas noites de terça e quinta, o programa S.O.S Consciência (considerado o primeiro programa de hip-hop na cena das rádios comunitárias cariocas), na extinta rádio comunitária FM Jacarepaguá, até que, recebemos numa dessas noites, o telefonema de um homem que se apresentava como empresário dos Racionais. Ele estava ouvindo o nosso programa na casa de uma amiga moradora da Taquara (bairro vizinho), e que há dias estava tentando um contato conosco. Desconfiados, mas contando com o prestígio adquirido em nossa comunidade, marcamos de nos encontrarmos na rádio ainda naquela noite. Passado uma hora, ele chegou na companhia de outro homem, um tanto incomodado talvez com o mito gerado pelas pessoas não residentes da Cidade


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de Deus. Ele se apresentou pelo nome Edson de Deus, e disse que Mano Brown ficara impressionado com a nossa apresentação, e, pelo fato de nunca terem cantado numa comunidade carioca, gostariam de ter este prazer começando pela CDD. Edson também disse que Brown gostaria que a organização do show ficasse sob a nossa responsabilidade. Celso Athayde, o homem que o acompanhara, ao ouvir essas palavras, ironicamente riu desacreditando da nossa competência, alegando ter mais conhecimento e melhor estrutura para atendê-los, já que era dono do extinto projeto Charme na Rua (Viaduto de Madureira), além de ter experiência no assunto por ter trabalhado com nomes como as Sublimes e Sampa Crew. Revoltados com sua atitude prometemos a Edson que faríamos o evento e que seria algo inesquecível para os Racionais. Naquela noite, a reunião que costumeiramente fazíamos após o programa, na pracinha principal, durou horas. Ficamos com medo, pois estávamos acostumados a fazer eventos de baixa qualidade, se comparados a uma apresentação como esta. Desempregados, cada um tinha no bolso o equivalente a 50 reais. Nosso segundo problema foi encontrar um local para a realização do evento, já que o Coroados (quadra que ficava ao lado da casa de Bill) era muito escondido, o que inibiria o acesso de pessoas de fora. Já a quadra da Mocidade de Jacarepaguá, embora fosse localizada na beira da rua Edgard Werneck, da mesma forma causaria este efeito, devido aos grandes conflitos entre moradores e a polícia, documentados pela imprensa da época. Isso, sem falar que os moradores não davam tanta atenção à programação da quadra. Nesta época, o Bandeirantes Tênis Clube, por se localizar ao lado de outros comércios e condomínios de classe média, inibia o desenho de uma Cidade de Deus que se escondia aos fundos de sua construção, era também palco de várias atrações musicais. Sendo assim, era um pretexto a mais, não só para os moradores da Cidade de Deus saírem de casa, como também para quaisquer outros moradores de outras comunidades. Não tínhamos dinheiro, nem garantia para locarmos o clube. Por ter


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a tez mais clara, Bill acreditava que a minha conversa convenceria o diretor do espaço a negociar o local, com uma condição mais aceitável. Mesmo assim, não estava convencido de conseguir dobrá-lo, pois se tratava de um show de rap. Então tive uma idéia e a coloquei em prática: disse ao diretor do Bandeirantes que se tratava de uma festa de bandinhas de colégio que iria receber amigos e familiares. Ele tentou me convencer de fazer num salão anexo de tamanho inferior, mas consegui convencê-lo, que, por se tratar de uma data vaga – 21 de abril – e cair numa segunda-feira, todos estariam retornando de viagem, seria um dia inútil e que não haveria problema se usássemos um espaço maior, ele concordou e disse que podíamos acertar tudo após o término da festa, já que cobraríamos cinco reais de bilheteria, com uma estimativa de 500 pessoas. Procuramos o vereador Edson Santos, do PT, para um possível apoio. Ele nos cedeu parte da sua equipe, os telefones do gabinete e negociou 500 cartazes no formato A3 em preto e branco para divulgação do evento. Tanto os cartazes, quanto os panfletos, todos foram recortados e colados à mão, e conseguimos xerocar algumas folhas, que, recortadas em quatro partes, deram um total de mil e quinhentos panfletos, que eram divulgados nas festas e bailes de várias localidades de forma controlada: um panfleto para cada cinco pessoas. O que na verdade nos valia era a força da palavra após a entrega deste único papel. As pessoas não acreditavam no início que os Racionais viriam cantar próximo a CDD. Muitas vibraram por ser no Bandeirantes, já que os conflitos entre lado A e B (divisões criadas entre as facções funkeiras) eram visíveis naquele período. Montamos uma equipe e cada amigo se encarregou de uma função: o DJ Poindexter (do grupo Negros por Excelência) cuidou do aluguel do som e da iluminação, enquanto Bill e eu ficávamos com a supervisão de tudo e a divulgação do show. Rádios comunitárias e grupos que faziam parte do show de abertura também ajudaram na divulgação em suas respectivas comunidades. Nossos preparativos duraram pouco mais que 15 dias. Estávamos nervosos devido a falta de


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prática. Um contato que tínhamos no jornal O Dia, não nos garantiu uma matéria grande, o que nos deixou ainda mais inseguros. Mas essa insegurança quebrou-se pela metade, quando, neste dia, uma adolescente chegou com um jornal na mão, na porta do clube, nos perguntando se já estava à venda o ingresso para o show dos Racionais. O frio na barriga tomou conta. Perguntei como ela ficara sabendo e ela respondeu que fora pelo jornal O Dia. Ao pedir o jornal emprestado quase caímos para trás, pois, em um canto de página se encontrava um décimo de matéria, com uma foto do grupo em preto e branco. Até o meio da tarde tínhamos vendido próximo a cem ingressos, o que não pagaria nem nossa fiança se fôssemos presos – pelo menos era o que imaginávamos. Não tínhamos dinheiro para o aluguel de um palco, então, o diretor do clube nos informou, que, se conseguíssemos recondicionar um palco quebrado que ele deixara encostado como lixo, poderíamos usá-lo. Começamos, a martelação, eu, Thogun, Bill, Nego Véio, Cão e Poindexter. Não era uma perfeição, mas ficou melhor do que os primeiros palcos dos nossos eventos anteriores... O evento estava previsto para iniciar às 22 horas. Até aquele momento, só tínhamos vendido cento e cinqüenta ingressos e o tempo não estava firme, propenso à chuvas. Bill estava muito apreensivo. Pedi para ele ir para sua casa relaxar um pouco, e eu iria em seguida. Começou chover e as nossas tensões aumentaram: será que vai dar público? Com o som à todo vapor e as mixagens do DJ Poindexter, cerca de 300 pessoas, que, no interior da quadra mais pareciam 30, procuravam agitar na pista improvisada. A chuva continuava sem trégua. De repente, ligei para o telefone do hotel, aonde se encontrava Edson, para saber como estavam as coisas por lá. Risos e falações tomavam conta do ambiente do outro lado da linha, demonstrando o espírito de eufemismo e descontração dos Racionais. Preferi não dizer o que estava acontecendo e apenas disse que se eles chegassem por volta de meia-noite, estaria de bom tamanho. 22h, ninguém chegando! 22h30, timidamente, chegavam algumas pessoas. Às 23h15, minha irmã


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veio correndo do caixa da portaria principal me perguntando se tinha troco para 50 reais, de repente minha ex-namorada, que ficava no caixa do estacionamento, me pediu mais um talão de ingressos. Em seguida, minha irmã retornou pedindo mais dois talões. Não me contive e fui até a portaria e um alvoroço se formava na calçada do clube. Fui até o estacionamento e uma fila de carros já causava uma certa retenção na entrada de veículos. Ao olhar algumas placas, me impressionei, pois algumas eram de Angra dos Reis, Campos, Teresópolis, Petrópolis, Macaé e até Espírito Santo. Em menos de 40 minutos o clube ficou tomado por quase quatro mil pessoas! 0h30, o show começou. Todos estavam cegos e tomados por um tipo de transe, que os proporcionava acompanhar todo o repertório sem sequer olharem para os lados. Nesta época, o último trabalho lançado era o Raio-X do Brasil e as músicas principais do momento eram “Homem na estrada”, “Mano na porta do bar” e “Fim de semana no parque”. Em dado momento, a energia caiu e todos ficaram no escuro. Lembrei que um funcionário da manutenção do clube havia me dito que todos os shows ali realizados, utilizavam gerador para evitar a sobrecarga dos equipamentos. Estava bem próximo do fim do show e a última música fora “Homem na estrada”. O público não se queixou da perda de energia, pelo contrário, acompanharam Brown numa só voz, guiados pela batida cadenciada de palmas. Por fim, Brown, Ice Blue e Edy Rock, foram erguidos pelo público e por sobre suas cabeças, conduzidos até o camarim. Ao tentar me desculpar pelo incidente com Mano Brown, ele me confortou dizendo: Mano, se fosse pra ser tudo certinho, não ia ficar tão bom como ficou... Relaxa, que é nos.

Fato curioso: Thogun havia feito uma espécie de pesquisa informal para saber quais comunidades estavam ali representadas. Pessoas vindas da Rocinha, Rio das Pedras, Morro do Fubá, Macaco, Dendê, Jorge Turco, Chacrinha, São José, Nova Brasília, Mangueira, Mineira, Borel, Formiga, além de grande parte da Cidade de Deus, esqueceram suas diferenças para reverenciar


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o hip-hop nacional. Repórteres e fotógrafos aguardavam impacientes o parecer do grupo para entrevistá-los. Quatro empresários também aguardavam a presença de Edson de Deus para um possível fechamento de contrato para seus eventos. Vale lembrar! Os Racionais foram, direta ou indiretamente, os maiores incentivadores da eclosão das crews de break e grafite, dos novos grupos de rap e dos MCs da cena carioca. Até então, o que se via no Rio era unicamente os grupos de rap, quase todos oriundos da ATCON.

Após dois anos como integrante da banda Kadoshi, DJ Alpiste grava seu primeiro CD solo, Transformação (Gospel Records), alcançando uma vendagem superior a 30 mil cópias. Vale lembrar! Inicialmente, o trabalho de Alpiste foi visto com certa desconfiança entre os evangélicos, mas com o tempo ele se tornou uma influência positiva na implantação do gênero junto à linha gospel nacional.

Em 1997, a antiga casa de shows Metropolitan, hoje Citibank Hall, na Barra da Tijuca (RJ), é palco de uma autêntica batalha de rimas. Durante uma apresentação de Coolio – em mini-turnê pelo Brasil graças ao estouro de Gangsta’s paradise – o rapper americano convoca quem desejar subir ao palco para participar da batalha. Em questão de minutos o espaço fica pequeno, comportando mais de vinte candidatos. A disputa começa, os artistas se esforçam para apresentar aquilo que acreditam ser um freestyle, mas o que se ouve é mera letra composta, anulando o critério da competição baseada em improvisos. Até que surge entre os atropelos dos MCs, ansiosos por um lugar no microfone, um jovem negro, franzino, recém-chegado de Angola. Ao tomar posse do microfone, começa a desferir golpes sonoros contra os oponentes, despreparados à técnica original dos rimadores do bairro do Bronx: era Nelboy Dastha Burtha, refugiado da guerra


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civil de seu país, que encontrara no hip-hop uma forma de conscientizar sua geração, tornando-se o pioneiro dessa arte em sua terra e mostrando serviço também no Brasil. O guerreiro forjado ao calor do deserto da Namibe desfere contra os adversários versos poliglotas, que variam entre o inglês, o português e o dialeto jamaicano patois, deixando em transe a platéia. Aclamado também pela crítica especializada presente, representada pelo DJ Nado Leal (da extinta RPC FM), Jornal do Brasil e revista DJ sound, Nelboy consolida sua posição no cenário carioca como um autêntico MC, um dos incentivadores do crescimento de cultura hip-hop no estado. Perplexo com a performance de Nelboy, Coolio ergue seu punho direito e o declara campeão do combate versal naquela noite. Vale lembrar! Na época, a arte da rima improvisada era dominada por pouquíssimas pessoas, e sendo assim, o episódio ocorrido naquela noite pode ser considerado um marco na história dos autênticos MCs, já que a grande maioria ali presente apenas recitou trechos de suas músicas previamente compostas, enquanto Nelboy representou autenticamente o freestyle, envolvendo em suas rimas o que rolava naquela noite em três idiomas diferentes.

Nelboy também pode ser identificado como um grande colaborador na formação da nova escola de MCs e rappers cariocas, revelando nomes como De Leve e Marechal, ícones da geração atual do Rio de Janeiro. Vale lembrar! Nomes como Black Alien, Gabriel, O Pensador e MV Bill eram um dos poucos que, verdadeiramente, podiam ser considerados autênticos freestylers cariocas, numa época em que na cidade não se ouvia sequer rumores sobre as famosas batalhas de rima.


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Em São Paulo, no final de 1997, começam os preparativos – segredo guardado a sete chaves – para o novo álbum dos Racionais MCs, e, com eles, um dos clipes mais polêmicos do grupo “Diário de um detento”, baseado na ótica do ex-presidiário do Carandiru, Josenir.

1998 Surge nos limites dos altos muros da Casa de Detenção do Carandiru o grupo Detentos do Rap, representando a população carcerária com Apologia ao crime (Fieldz). O álbum origina um clipe, “Casa cheia”, que ganha destaque no programa Fantástico, da Rede Globo. Os Racionais MCs conquistam pelo MTV Video Music Brasil 1998 os prêmios nas categorias de “Melhor Videoclipe de Rap” e “Videoclipe de Maior Audiência”, com o polêmico sucesso “Diário de um detento” do álbum Sobrevivendo no inferno (Zâmbia). Contando com interpretação de Mano Brown, “Diário de um detento” é uma parceria de Brown com Josenir, detento do Carandiru indicado pelos próprios internos ao rapper por ter o dom para escrever. Brown simplesmente formatou os versos de Josenir em rap e deu a ele todos os direitos reservados em lei pela obra. A posse Hausa se desfaz. Nino Brown culpa a incompatibilidade entre seus integrantes: Um não concordava mais com o outro, porque alguns trabalhavam mais que outros e isso tava sobrecarregando. Em 2003, a Hausa retornaria como pessoa jurídica.

Pregador Luo lança o primeiro CD do Apocalipse XVI, Arrependa-se, com músicas próprias e apoio dos Racionais MCs. Agora afirmando suas raízes africanas, Luo, em entrevista ao site Apocaloucos, explica a mudança: Queria algo que me religasse com a África. Luo é o nome da segunda maior tribo do Quênia. Também coloquei esse nome


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porque gosto muito da lua, acho a lua muito bonita mesmo, é ela que clareia a noite e nos traz luz na escuridão. Mas a lua não tem luz própria, sua luz é um reflexo do sol, assim como a minha pequena luz é um reflexo da luz de Deus. Espero ser o Luo das madrugadas sombrias e levar um pouco de luz pra vida daqueles que estão perdidos nas trevas mundo afora. Acredito que a minha Revo‘Luo’ção pessoal vai ajudar a outros irmãos e irmãs também começarem a fazer suas próprias revoluções, e gerar dessa forma uma sociedade melhor para todos.

O rapper carioca MV Bill lança o álbum CDD Mandando fechado (Zâmbia), com destaque para a faixa “Traficando informação”. Com a ajuda da comunidade de Cidade de Deus nas encenações, Bill produziu o vídeo de “Traficando informação” (seu primeiro clipe), sob a direção da cineasta Kátia Lund (co-diretora do filme Cidade de Deus), que até, então, nunca havia dirigido um videoclipe sozinha, e ainda mais, de rap. Kátia sensibilizou-se com a música de Bill e procurou dar toda a qualidade necessária, sob um orçamento baixíssimo, resultante de algumas economias feitas pelo rapper através de alguns shows. O clipe de “Traficando informação” despertou a atenção do cineasta Cacá Diegues, que a incluiu na trilha sonora do filme Orfeu. Com o término dos anos 90, o Super Demo entra numa espécie de entressafra, fazendo com que LZA Cohen desenvolva um novo projeto: eis que surgiu o Zoeira Hip-hop. Trabalhando exclusivamente com b-boys, grafiteiros, DJs e MCs, o Zoeira se tornou o cartel do hip-hop carioca, influenciando o surgimento da nova geração do hip-hoppers do estado. A respeito deste mais novo projeto LZA declara: “Eu sempre gostei de hip-hop, sempre achei uma cultura super bonita. Além da música, a gente tem a arte do grafite, do breaking, a coisa do DJ, dele preservar o vinil, e aí, foi interessante, porque na época que rolou o ‘Zoeira’, foi na Lapa, num ponto aonde todo mundo podia chegar de ônibus, metrô e qualquer meio de transporte, de várias partes da cidade, e era um espaço em que todo mundo se sentia à vontade. O hip-hop, ele não cabe num


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lugar muito sofisticado. E ali na Lapa era tipo street pra caramba, a galera se sentia super bem por isso”, admite. “Então foi uma coisa bem informal, porque eu não fiz com grandes pretensões, foi mais pelo prazer mesmo de escutar o hip-hop, de mostrar a cultura mesmo. E eu queria ser um instrumento também – nunca tive uma pretensão de ser do hip-hop – pra ajudar a galera divulgar, comprar, trocar idéias e se desenvolver. O Zoeira serviu bastante pra isso, tanto é que a gente recebia todo mundo que vinha de outro país, e como era num ponto central, tinha acabado de fechar o Circo Voador,72 a galera migrou pro Zoeira”, explica. “O interessante, é que às vezes, você encontrava no Zoeira, punk, clubber, muita gente que antes tinha preconceito com o hip-hop, e que mudaram completamente: ‘então, é isso que é hip-hop? Isso é muito legal!’ Então, muita gente inconscientemente passou a ter interesse pelo hip-hop indo no Zoeira.”

Paralelamente ao Planet Hemp, Marcelo D2 passa a apostar em seu projeto solo lançando o álbum Eu tiro é onda pela gravadora Sony Music. Gravado no estúdio caseiro do rapper, Eu tiro é onda recebeu os devidos tratamentos de mixagem em Nova York e Los Angeles, envolvendo em sua produção nomes importantes como Carlos Bes e Mario Caldato Jr. Experimentalista por natureza, D2 procurou em sua versão solo explorar ritmos responsáveis por marcar a sua infância suburbana, como o samba a o electro funk dos bailes cariocas dos anos 80. Sucessos como “O império contra-ataca” (com participações da Hemp Family, uma espécie de posse formada pelos amigos B. Negão, Speed, Jackson e Black Alien, e de um dos maiores MCs do Brasil, além do DJ Rodrigo Nuts e Falcão, vocalista da banda de rock O Rappa) e “1967” (uma autobiografia do rapper) se tornam os destaques do álbum, além da faixa título e da participação do rapper americano Shabazz do grupo Gravediggaz. No entanto, a crítica da época não está pronta para as inovações do rap, e, assim como acontecera com o primeiro álbum do rapper Nas nos EUA, o tra-

72 Espaço cultural, situado à frente dos Arcos da Lapa, considerado o celeiro das geração dos anos 80 da música brasileira.


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balho de D2 não é compreendido logo de início. Isso só se alteraria anos mais tarde, com o lançamento do álbum À procura da batida perfeita, em 2003. No final do ano é lançado pela Cosa Nostra (selo independente dos Racionais) o álbum Sobrevivendo no inferno, considerado o mais polêmico, até então, já produzido pelos Racionais. Não se sabe ao certo, então, se o grupo havia trocado definitivamente a sua postura política pela revolta das ruas muito similar ao gangsta rap. Porém, pode-se afirmar que é este o álbum que conquista a admiração plena da crítica e do público, chamando inclusive a atenção daqueles que os rappers mais evitavam: os playboys. O sucesso de Sobrevivendo no inferno, renderia aos Racionais no ano seguinte a marca de um milhão de cópias vendidas, ainda não atingida por nenhum artista de rap nacional até hoje.

1999 O rapper MV Bill assina, contrato com o selo Natasha Records e relança a sua obra alterando o nome do álbum CDD Mandando fechado para Traficando informação, incluindo também mais quatro faixas inéditas, destacando o polêmico sucesso “Soldado do morro”. Soldado do Morro se torna a trilha sonora da consagração do rapper no palco do Free Jazz Festival, na mesma noite em que o grupo de rap americano The Roots se apresenta. Bill revela em um discurso contundente a realidade das favelas cariocas, seguido de uma encenação teatral durante a execução da faixa, onde ele retirou sua camisa, acompanhado por um gesto de toda a banda, e apresentou em sua cintura uma pistola 9mm caracterizando a figura do traficante, finalizando a apresentação com a entrega de sua arma em troca do microfone, tendo como desfecho o gesto que simboliza a pomba da paz (mãos intercaladas ao alto do peito) interpretada por ele e todos os músicos. Tal encenação provocou o delírio do público presente


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e uma grande repercussão por toda a mídia, mesmo que alguns da imprensa tenham tentado distorcer os fatos. A banda Pavilhão 9 lança o álbum de título polêmico Se Deus vier que venha armado, que rendeu a vendagem de 60 mil cópias. Destaque para a faixa “Vai explodir”, que se tornou trilha sonora do filme O invasor, de Beto Brant, lançado em 2001. A gravadora Zâmbia Fonográfica dá voz ao ex-traficante carioca Escadinha lançando a coletânea: Brazil I – Fazendo justiça com as próprias mãos. O título do CD é uma alusão ao presídio de segurança máxima Bangu I (Bangu-RJ), onde Escadinha cumpria pena. Brazil I contou com a produção executiva do empresário Celso Athayde e a composição musical do próprio Escadinha, com a formatação para rap dos artistas Xis, Gog, MV Bill, X (exCâmbio Negro), Dina Dee (Visão de Rua), Thaíde & DJ Hum, Linha de Frente (atualmente 509-E) e Racionais MCs, com a música “Homem na estrada”, única faixa que não era composta por Escadinha – segundo ele, tal letra parecia ter sido inspirada em sua vida. O compositor e rapper Xis firma sua posição no cenário do rap nacional com seu primeiro álbum solo, Seja como for, pelo selo 4P (selo independente do DJ KL Jay, dos Racionais MCs, em sociedade com Xis), que traz o hit “Us mano e as mina”, e, na seqüência, o clipe da música. Com o sucesso do Projeto Inamar e a força da posse Hausa, é fundada, em comum acordo, a Casa do Hip-hop, que tem apoio da Prefeitura de Diadema (SP) e funciona nos mesmos padrões de administração das posses, com os mesmos objetivos, com acom­ panhamento pedagógico a cargo de Suely Chan e Nino Brown. Desde a sua criação, a Casa do Hip-hop tem contribuído ativamente para a diminuição da violência entre a juventude de Diadema. Sobre esta excelente iniciativa, Nino Brown conta: Ao mesmo tempo em que aconteciam as oficinas de hip-hop em São Bernardo do Campo, também passou a existir o projeto Ina-


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mar, que começou com um time de voluntários como a Suely Chan, o Levi, o jornalista Osvaldo Faustini, Nelson Triunfo, Marcelinho Back Spin, e esse trabalho começou a crescer. O DJ Hum veio e deu uma força com a oficina de DJ. Então, teve a necessidade de se ter aqui um trabalho, como é até hoje a Casa do Hip-hop. Já havia vários trabalhos culturais como a Casa da Música, que são organizadas pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de Diadema, em parceria com a UNESCO. Na inauguração da Casa do Hip-hop, eu fui convidado pra fazer uma exposição em formato de workshop de fotos, só que antes eu ainda não trabalhava na casa. Quando eu fiquei desempregado, fui convidado por eles a fazer parte do quadro de funcionários, da qual faço parte até hoje com muito orgulho, trabalhando pra que o jovem daqui tenha uma opção a mais na sua vida pra seguir. Vale lembrar! Simpatizantes, como o músico de reggae Toninho Crespo e a ativista do Movimento Negro Unificado (MNU), Sueli Chan, se tornaram verdadeiros aliados na divulgação do hip-hop no Brasil. O DJ Armando Martins, também foi outro nome importante para a programação do rap nacional, com o programa Projeto Rap Brasil, revelando vários grupos de rap durante o período em que esteve no ar.

No dia 22 de setembro os principais jornais do país publicam, em nota especial, declarações de Mano Brown à revista Trip incitando o seqüestro de jogadores de futebol por ostentarem seus bens em meio a uma realidade em que sua própria torcida não possui dinheiro sequer para comer. Por ser uma figura controversa, e evitar constantemente o assédio da mídia, Brown, muitas vezes, em declarações inflamadas, abre (a contragosto) a oportunidade para que a imprensa trabalhe contra suas palavras, na intenção de polemizar ainda mais os fatos. Quem o conhece particularmente sabe sobre a sua simplicidade e cuidado em manter a imagem dos Racionais MCs nivelada à do povo das favelas, sem ostentar seus bens. Em entrevistas anteriores concedidas pelo rapper à imprensa do hip-hop, Mano Brown sempre alegara que jogadores de futebol e artistas, de um


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modo geral, oriundos da periferia, deveriam ser um pouco mais sensíveis às condições dos seus semelhantes, gerando oportunidades para que eles pudessem crescer socialmente também, em vez de exibir demasiadamente seus bens financeiros.

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Hoje, os programas de TV, rádio, lojas de discos e de roupas, eventos e bailes; grifes de roupa, selos e gravadoras; jornais, fanzines, revistas e sites fazem parte do cenário do nosso movimento, mantendo sólido o nome hip-hop no mercado. Após esta breve tour pela história do movimento, espero que o leitor tenha maior visibilidade do que é o hip-hop. Porém, a intenção principal desse livro é discutir também os aspectos negativos, considerados os causadores principais da desunião interna e crescente no movimento. Para isso se fez necessário priorizar, mesmo que limitadamente, uma pesquisa histórica sobre o hip-hop desde os seus primórdios até hoje, a fim de que as causas desses lado negativo tornem-se mais nítidas. Embora, particularmente, eu preserve a minha imparcialidade diante das críticas, não as singularizando, mas relevando a ótica de um conceito geral de discussão, não desabono a ação dos demais participantes dessa obra, que carregam sobre si as responsabilidades dos nomes citados em seus depoimentos. Muitos acontecimentos certamente ficaram pendentes, até porque não estendi minha pesquisa aos demais estados brasileiros, embora o hip-hop nacional tenha surgido simultaneamente em quase todo o país. Nesse caso, requer hoje, por parte dos membros de nossa cultura, um despertar no que se refere a relatar nossa história em livro nos seus respectivos estados de origem, a fim de que não se perca a preciosidade de nossa


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arte, e possamos fazer com que tenha valor para as gerações futuras. Este livro não foi idealizado exclusivamente para adeptos do hip-hop, embora os assuntos focados sejam de relevância interna. Mas, quando abraçamos a idéia que faz do hip-hop uma cultura em constante crescimento, independente de credo, cor, raça, sexo e predileção político-partidária, naturalmente este problema passa a ser pertinente a todos que se interessam pela nossa filosofia de vida. No primeiro momento, você teve um contato mais próximo com parte da origem de nossa cultura desde os Estados Unidos, até sua chegada em nosso país, contando com a ilustração dos depoimentos de pessoas, que, direta ou indiretamente colaboraram para sua existência até os dias de hoje. Neste segundo momento, são assinalados diferentes problemas a cada capítulo, descrevendo os pontos fracos dessa cultura, estimulando reflexões e, quase sempre, opiniões diferentes entre os colaboradores. O modelo resulta rico, pois projeta uma espécie de debate em páginas. A intenção de trazer pontos de vistas diferentes – tanto na primeira parte da narrativa histórica quanto no campo do debate instalado – partiu da vontade de humanizar ainda mais a experiência desta leitura, a fim de que o leitor possa compreender que a discussão não se encerra, está apenas começando. E buscando conquistar o leitor não somente como um espectador, mas como um formador de opinião em potencial em nossa discussão. Crescimento e progresso não são sinônimos! ****


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208 CAP.02



Quando Afrika Bambaataa idealizou a cultura hip-hop na década de 70, nos EUA, em nenhum momento citou que todos os rappers, MCs, DJs, b-boys e grafiteiros deveriam seguir uma linha de militância política obrigatória em seus trabalhos. Mesmo assim, alguns conservadores teimam em bater de frente com rappers que estão aparecendo com estilos mais comerciais ou polêmicos mas nada conscientizadores na linha do rap nacional. Mas será que esses conservadores já pararam para traduzir algumas letras de seus ídolos americanos? Embora sua postura apresente seriedade nos pôsteres, revistas, CDs e clipes, nem sempre suas letras falam de auto-estima, política e consciência, como fazem Public Enemy e KRS-One, por exemplo. A verdade é que estamos caminhando por um novo milênio em que a evolução está sem limites. E por mais que evolução do rap nacional tenha se apresentado há pouco tempo, será inevitável conter uma gama de estilos comprometidos ou não com a informação à população de maioria. O que devemos ter neste momento, é sabedoria para lidar com “esse futuro bem próximo”, que fará do nosso rap uma grande indústria geradora de empregos e oportunidades ao nosso povo. E esse compromisso deve estar em nossas mentes independente dos nossos estilos. Na opinião do DJ, rapper e produtor Deco, os mais conservadores impedem a ascensão do rap. Para ele, são impostos costumes que mais parecem leis, sob os quais muitos da nova geração abraçam

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a idéia sem questionar. Deco também critica a concentração desse comportamento em São Paulo, como se tudo que fosse correto para os movimentos do Brasil devesse ser gerado lá: “Desde o começo do rap – e hoje em dia isso é mais forte ainda – existe uma grande resistência dos rappers, principalmente dos mais antigos, e os mais novos, que não sabem nada, vão no barco,1 resistindo aos músicos de rap que vão pra grande mídia, pra revista, pra TV, pro rádio... Hoje em dia o rap tomou outra conotação, justamente pela falta de informação de quem tá dentro dele, de tentar fazer um segmento embaixo de leis, ao invés de fazer um segmento que tem espaço no cenário fonográfico, como têm outros estilos e que o rap até hoje não tem”, critica. “Hoje, quando se fala de rap no Brasil, não adianta discutir, é só São Paulo! Qualquer outro tipo de música, você conhece no Brasil inteiro, a não ser as músicas regionais. Mas o rap, por ser uma música universal, e nem ser brasileiro, aqui ela é só difundida em São Paulo”, lamenta. “Porque aqui estão as leis e aqui estão as regras! Então, nada se pode fazer e fica do jeito que tá. E as pessoas ficam criticando os outros que tentam levar essa linguagem pra fora do estado.”

Para Gabriel O Pensador, tudo não passa de uma forma de chamar atenção, salvo algumas exceções: “Hoje em dia o que existe realmente de underground é mais o pessoal do freestyle, que gosta de fazer rima, gosta de batalha, mas não gosta de gravar um disco e não se preocupa em divulgar muito as suas letras ou seu nome com o propósito de vender o produto. Mas eu acho que quem quer gravar e vender discos normalmente gostaria de ter uma estrutura de uma gravadora grande ou de uma pequena que consiga colocar o cara na rádio, na TV etc... Eu acho que muitos gostariam de ter isso e às vezes falam da boca pra fora que não querem, porque é uma forma de tirar uma onda. E falar mal de um trabalho que tá fazendo sucesso às vezes chama a atenção pra quem falou mal. Isso já aconteceu, mas acho que os poucos que tentaram esse caminho viram que isso não dá uma moral verdadeira pra quem fala mal de alguém, 1

Imitam.


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fica até meio queimado2 pra quem realmente entende do assunto. Outro caso que tem de interessante, que eu acho que não é mais underground, por ser bem conhecido e reconhecido, mas que foi construído por um caminho bem alternativo, é o próprio sucesso dos Racionais. Eles têm uma postura bem definida, que é a de escolher onde eles querem aparecer – como eu também escolho –, mas enfim, eles evitam mesmo aparecer na TV e se restringem o máximo às ações de marketing oferecidas pela mídia. E como já diz o disco deles – Escolha seu caminho –, eles escolheram o caminho deles e conseguiram ser uma exceção mesmo, com um público de milhares que consumiu um milhão de cópias no álbum Sobrevivendo no inferno, então isso foi muito interessante! Mas, na verdade, eu acho que cada um tá batalhando por um lado e no Brasil tem muita gente querendo ouvir e precisando ouvir idéias boas. Tem vários canais pra proporcionar isso, mas infelizmente nem todos chegam a todos os lugares. Eu me orgulho de ter conseguido levar essa linguagem pro interior, como a Amazônia, pras tribos indígenas, onde as pessoas só têm mesmo a TV pra se comunicar com o mundo. Apesar da minha personalidade, eu consegui estar num programa de TV e manter-me assim ali, mas com o meu jeito bem-humorado, com esse jeito que facilita o contato com as pessoas e talvez outros rappers não se sintam à vontade pra ir à TV.”.

Big Richard acredita que a palavra “comercial” é algo que não está tão bem definido para muitos de nós do hip-hop. Para ele, tornar-se comercial é bem diferente de se vender: “Eu já fui conservador e com o meu rap me tornei comercial. Mas não me tornei comercial por quê? Porque eu acabei encontrando outros caminhos pra minha sobrevivência”, justifica. “O rap hoje pra mim, é uma alternativa de expressão, e não a minha única forma de expressão. Então hoje eu me expresso com o programa que hoje eu apresento, com o trabalho artístico que eu faço e tenho uma identificação muito grande com a Queen Latifah. Saiu uma matéria por esses dias aqui no Brasil em que ela disse que a necessidade que ela passou por ser rapper, a falta de dinheiro, a

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Embaraçoso.


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falta de perspectivas, ao invés de ela se vender, fez ela descobrir outros caminhos para a sua sobrevivência. Porém: você vive numa sociedade capitalista, então eu não julgo quem é conservador ou comercial”, explica. “Tem espaço, desde que você não seja p...! Você pode se comercializar, mas o quê é se comercializar? Todo mundo fala assim: o cara se vendeu, o cara é comercial... O quê é ser comercial? Você fazer um rap! Vamos falar do instrumental: uma base bem trabalhada, um negócio estudado, pensado, nada que você fique parado só ouvindo, algo cansativo, e esse é o caminho que os americanos conseguiram dominar, esse é o caminho que, por exemplo, o Public Enemy conseguiu. Um grupo que eu acho bacana demais, eles vendem e não se vendem, ou seja, é comercial, porém eles têm um discurso e uma política extremamente positivista em relação a comunidade afro-descendente.”

Big também aproveita para advertir àqueles que desejam comercializar seus trabalhos, chamando a atenção para sua conduta pessoal e sua visão político-social: “De repente como é que se consegue esse equilíbrio? O que é ser comercial? É você fazer um trabalho bem feito, um trabalho com o coração, e não com o bolso”, declara. “O que eu vejo hoje em São Paulo e no Brasil é que o pessoal tá caminhando pra um lado em que eles estão fazendo um trabalho com o bolso, pensando no bolso, o quanto pode ganhar, ou o quanto se deixa de ganhar. Ele ‘tá’ é perdendo! Porque na ânsia, na ganância de ganhar dinheiro fazendo rap, até mesmo pra se auto-sustentar, até mesmo porque de repente eles não tiveram essa oportunidade que nós temos de ‘tá’ estudando, analisando, criando uma consciência crítica e analítica da situação – a gente é privilegiado por isso – eles acabam perdendo. Por quê? Na ganância de assinar um contrato com uma gravadora, eles assinam um contrato furado, que aí eles até, de repente, conseguem fazer uma música comercial meio pobre, mas que vende, e aí os donos das maiorias das gravadoras ganham em cima dele, e por sua vez esse artista não recebe o seu dinheiro, aí ele acaba se contentando e fazendo show por 150, 200 reais no fim de semana – quando ganha –, o nome aparecendo na mídia, comendo uma pá de menina na periferia, engravidando 10, vai preso, porque não tem condições de pagar a pensão, e se f... e aca-


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bou a carreira dele”, critica. “Então, eu acho que você pode fazer um rap comercial, mas faça algo de qualidade, alguma coisa duradoura. O que é uma coisa duradoura? Vamos falar, por exemplo, nos caras que são os papas do comercial: DMX, Jay-Z, Master P, Puff Daddy. Esses caras são comerciais pra c... Só que eles conseguem alcançar um nível de equilíbrio em que eles são comerciais, eles retornam pra sua comunidade, eles revertem, ganham dinheiro – porque no capitalismo você pode ser o que for, mas se você não tiver uma boa casa, um bom carro, se você não tiver bens materiais, você não é respeitado – e é ilusão a gente achar que o mundo é o contrário disso, e que isso não é verdade.”

Para o rapper Magno C-4, o problema maior é a nossa falta de respeito para com os outros estilos, quando os rotulamos de comerciais: “Eu gravei um CD demo, eu mesmo pirateio, saio e vendo. De repente eu vendo um milhão de cópias e meu som começa a tocar na rádio”, exemplifica. “O underground estourou! A partir do momento que o rapper se propõe a divulgar a obra dele, ele é comercial”, justifica. “O cara faz um underground tipo os caras lá do Rio de Janeiro: o De Leve, o Quinto Andar... Os conservadores criticam dizendo que eles não falam coisa-com-coisa. O cara faz uma rima light, do estilo KRS. Faz ragga do estilo do Família Abadá, e já chamam eles de lagartixa”,3, critica. “Isso faz a música rap não se popularizar no país e não se tornar mais forte”, analisa.

Magno acredita que a rivalidade interna no rap tem contribuído fortemente com o insucesso da nossa cultura e conseqüentemente com o nosso despreparo profissional: “O rap é o único estilo musical que fala mal dos outros, além de falar mal dele mesmo”, lamenta. “Você vai no samba e não vê o Zeca Pagodinho falando mal do Fundo de Quintal, nem o Exaltasamba falando mal do É Demais, nem a Alcione falando mal da Beth Carvalho. No reggae não se via o Toch falando mal do Marley,

3 Expressão utilizada no rap paulistano para denominar os que utilizam o rap para rebolar nos bailes, e usam roupas num estilo similar ao dos hip-hoppers, mas considerado bizarro quando comparado ao modo de vestir destes.


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não vê o Ziggy falando mal do Shabba Hanks – que é um estilo novo. Você vai no rock é não vê o Kid Abelha falando mal do Capital Inicial”, compara. “Você só vê isso no rap”, lamenta. “Devido a esse conservadorismo, o rap acabou gerando uma rivalidade interna! É tratado como uma música amadora”, afirma. “É por isso que o cachê do rap não tem seu devido valor. É por isso que o rap não consegue montar uma estrutura pra ter um bom show. É por isso que o rap não consegue ter um público que dê um bom retorno de consumo, que valorize o nosso trabalho”, avalia. “O conservador, ele precisa também se entender como comercial, porque apesar do protesto, a pessoa que ouvir aquela obra, ela vai querer ouvir um boa instrumental, uma boa levada, um bom vocal. Então por isso aí também é comercial! Também é entretenimento”, considera.

Na opinião do DJ Johnny, o conservadorismo do rap está à beira da extinção: Dos conservadores, para mim, o único que continuou até hoje sendo o mesmo é o DMN. Porque continua com letra de protesto, falando de autovalorização, essas coisas. As outras pessoas se adequaram ao tempo, então é meio difícil definir quem é conservador e comercial. A mídia é um caminho inevitável, o Racionais, no dia que for para mídia, morre! O Xis se não for para mídia, morre!.

Johnny acredita que o rap mais radical venha a ter uma penetração tão positiva na mídia enquanto estilo comercial, mas abre uma crítica quanto ao trabalho em conjunto entre underground e comercial, sem qualquer rivalidade, pois a existência de um depende da vaidade do outro: “A industrialização traz poder. O poder traz instabilidade. Sem poder e dinheiro, você não pode ajudar ninguém. Eu posso cantar ‘batatinha quando nasce esparrama pelo chão (...)’ e ganhar milhões com isso. E com esses milhões eu posso ajudar aqueles que vão ser pretos até morrerem”, exemplifica. “Então eu acho que os fins não justificam os meios. Do mesmo modo que a gente aprende a roubar – porque ninguém nasce pra ser ladrão e o pobre não vai ao clube de tiro pra aprender a atirar –, você tem que aprender a ser um homem de negócios. Você só vai aprender a ser


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um homem de negócios quando se envolver com as pessoas que fazem negócios. Você não vai conseguir fazer negócio com o cara do barraco do lado, você vai ter que fazer negócio com o cara da padaria, porque ele tem o capital de que você necessita”, explica. “Quando as pessoas tiverem a consciência de que se vender e ser um homem de negócios são duas coisas diferentes, algumas vão ser mais felizes.

O produtor Marcelinho (ex-DJ do extinto grupo brasiliense Câmbio Negro) vê o próprio conservadorismo no rap gradativamente se submetendo ao meio comercial, a partir do momento em que a indústria musical, com intenção de inovar e colocar algo de diferente no mercado, encontra no rap o que precisa: “Acho que o hip-hop comercial é uma coisa inevitável, a partir do momento em que se descobre que a gente mora num país em que a gente tem que fazer uma música de apelo fácil, de refrão fácil, se você quiser viver de hip-hop principalmente”, considera. “É complicado de responder sobre isso, porque a gente não tem sucessos de rap, então a gente ainda não sabe o poder de ser comercial”, explica. “Às vezes estoura uma ‘Fogo na bomba’ [música do grupo paulistano De Menos Crime], que o cara não tem a intenção de ser comercial, mas acaba virando uma música que toca em qualquer lugar. Isso já é o comercial pra mim. Se tivessem muito mais raps estourados que a gente dissesse ‘essa aqui vendeu cem mil cópias, essa 200, essa 300’, acho que até era uma discussão que daria pra ser levada mais a sério”, acredita. “Acho que agora não tem o que se discutir. Cada um faz o som que quer, o que precisa. O cara percebe: tem que ter um fácil – pegar a letra, não necessariamente consciente, e se for, é melhor – se estourar, vira comercial de qualquer jeito. Se vender bastante é um sucesso comercial”, explica. “Eu acho que pra mim não tem nada a ver treta – um falar contra o comercial, o outro se achar underground. Isso eu não entendi muito bem ainda, o cara que quer fazer underground, e ao mesmo tempo faz uma música que é um pouco comercial, porque tá padronizado o esquema da música – refrão, letra, refrão, letra e final e todo mundo padronizou, não tem jeito. A música comercial e o underground, se você ouvir, elas são iguais, a estrutura dela é igual. Só que o cara que


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não vendeu muito, ele é underground, claro! Eu acho que tudo depende de venda, e não de fazer a música assim ou assado. Vendeu, é sucesso comercial, não vendeu, isso não quer dizer que não seja, mas eu vou falar por mim: quando você faz um disco, você quer que venda. Você não quer apenas que seja pro formador de opinião ouvir! Não! Que venda pra atingir o maior número de pessoas possível. Então eu acho que é válido tanto pro que já é pro comercial, quanto que pro underground, até porque, se todo mundo se basear nos gringos, vai virar comercial mesmo.”

O grafiteiro e ativista Bonga acha o conflito lamentável; para ele o rap é música e, assim, a forma de expressão é livre. Para ele, o que importa não é o estilo e sim a veracidade da mensagem que será passada para as pessoas: “O rap é música, e como música, ele visa ao mercado. No Brasil, todo mundo ainda pega aquela tendência do Public Enemy de ideologia. Alguns caras têm um seguimento político mais arrojado, levado à esquerda como foi a minha formação e a de muitas pessoas. Mas o rap é música, e no mundo inteiro ele é visto como música. Então é difícil criticar quem faz um trampo4 mais comercial, porque, por exemplo, todo mundo que serve de referência, principalmente no rap americano de hoje, é comercial, mais voltado pro mercado. O rap como música, ele tem a sua rima livre, você fala do que você quiser e o que você sente. O importante é você manter a sua essência no ato de falar, e ser verdadeiro no que você fala”, explica. “O microfone é uma arma poderosa e pra você falar alguma coisa, você tem que pensar o que você vai falar, porque muita gente vai te ouvir, principalmente quando você virar ídolo da molecada, você vira uma referência muito forte. Então seja verdadeiro!”, adverte.

O empresário de entretenimento para b-boys, editor da revista de grafite Epidemia e dono da grife de roupas Pixa-In, Ronney Yo Yo, despe-se da sua visão comercial e trata a questão de modo ideológico, apresentando o seu breve ponto de vista:

4 Trabalho.


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Acorda hip-hop!

“Sobre esse assunto eu só acho o seguinte: enquanto a gente fica conservando, ou seja, tentando fugir da mídia, a gente tá ao mesmo tempo fazendo com que a grande parcela da população que fica fora do nicho comercial – que é Rio e São Paulo – sem informação. Não precisa se vender à mídia. Eu acho que você pode usar a mídia de uma maneira em que você coloque e imponha as suas idéias e as necessidades da sua ideologia dentro da sua cultura, pra que todo mundo entenda o seu ponto de vista e o que você quer mostrar”, justifica. “Você não precisa se esconder, porque a partir do momento em que você tá se escondendo, você tá deixando margem para as pessoas pensarem o que elas quiserem ao seu respeito, sem você ter feito nada por isso e assim te interpretarem de uma maneira errônea.”

O grafiteiro Bad não é contra o estilo comercial no hip-hop, mas todo àquele que negligencia a cultura em troca de um lugar na mídia seguindo um modismo: “Eu não sou extremista. Não digo que o cara não pode ganhar dinheiro com a arte, ou que o cara só pode ir pela arte. Rembrandt5 morreu na miséria total, e o único quadro que ele vendeu foi pro irmão dele”, exemplifica. “A arte não pode ir por aí, eu acredito na seguinte forma: existem receitas pra fazer sucesso? Existem! A principal hoje é a polêmica. Não quer dizer que com qualquer polêmica também você vai fazer sucesso”, adverte. “Mas vai te ajudar a chamar atenção. Eu só acho uma coisa: o hip-hop é puxado pra quê? O hip-hop não é esporte, entretenimento! O hip-hop é arte! E sendo arte, não adianta um artista fazer o que não tá dentro dele”, ressalta. “Se ele ganhar dinheiro com isso, maravilha! Agora, não adianta um cara fingir que é artista, copiar o americano, e só ir pela receita da polêmica, porque tá pegando6 rebolar, então vamos rebolar. Porque tá na moda ser homossexual, então vamos ser homossexuais; ou porque tá na moda ser negro, então vamos ser negros. Não é por aí”, acredita. “Se o cara é artista, a arte cabe em qualquer lugar. O Brasil pode ser um país pobre, São Paulo pode ter uma periferia miserável,

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Pintor holandês do século XVII. Está na moda.


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mas se valer a pena assistir a uma obra de arte, o pessoal vai pular o portão. Se não tiver dinheiro pra pagar um ingresso, eles vão pular o portão e conseguir de alguma forma entrar”, afirma. “Esse é o artista que eu considero verdadeiro na cultura hip-hop. Mas ir pela receita, pela modinha... Teve um tempo atrás que era: eu sou malandro! Depois: eu sou bandido! A moda mudou, agora sou traficante! A moda mudou de novo, agora sou negão! Aí, eu digo que isso não é arte”, contesta. “O problema não tá nos que fazem apelando. O problema tá nos que deviam fazer com arte, e esses se sentem obrigados e se vendem, até pela luta: eu não vou conseguir vencer essa luta! Eu não vou fazer com arte! É mais fácil fazer um funk carioca – eu cheguei a ver um dos melhores b-boys de São Paulo, o André Negão, falar: ‘Bad, eu tô me sentindo na necessidade de gravar um funk carioca pra poder entrar no esquema!’ É lógico que isso foi um desabafo dele, não quer dizer que ele faria isso”, acredita. “Por exemplo, o Nelson Triunfo, ele era um cara que, se tivesse uma assessoria, seria uma pessoa milionária”, avalia. “Mas se ele tivesse montado uma estrutura. Eu não me dedico tanto quanto ele se dedicou. Só que é o seguinte: quando o Nelson Triunfo poderia se dedicar, ele não se dedicou”, lamenta. “Ele já partiu pro rap, já trabalhou com pé-debarro e por aí vai... Ele continua mudando de ramo toda hora. Eu já sou radical”, afirma. “Mas se a minha luta ainda tá de pé – e eu acredito que esteja – o dia que aparecer a oportunidade, eu vou aparecer. Mas eu não vou desistir, e não vou me aliar à modinha de hoje, de amanhã etc. Não vou mudar! A minha ideologia é pela cultura, pela arte mesmo.”

DJ Juan é carioca e está no hip-hop há quase 10 anos. Para ele, o problema não está em apresentar-se na televisão e, sim, como se portar diante dela: Os conservadores dizem que você não pode colocar sua música na televisão, ou no rádio, porque estará se vendendo. Você deve lembrar que através da televisão e do rádio, entre outros veículos de comunicação, você chega facilmente às pessoas mais distantes, do mesmo modo que o telefone nos facilita a falar com outra pessoa no outro lado do mundo. Em nosso meio é comum ouvir justificativas daqueles que não concordam com aparições na TV,


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Acorda hip-hop!

alegando que tal prática corrompe os rappers, gerando problemas futuros ao hip-hop.

Juan rebate os pontos de vista contrários atentando-os para o óbvio: “Eles só vão te usar se você se deixar ser usado, porque o lance é seu, e você faz dele o que bem quer. Então você tem que saber fazer as coisas, não se pode ser marionete. Vão querer que você rebole... Eles podem até querer, mas a bunda é sua! O querer do próximo não é o poder sobre você, ele é, simplesmente, um desejo do próximo”, atesta. “Devemos saber como expor aquilo que possuímos, saber exatamente o que queremos atingir e lembrarmos: a partir do momento que essa mensagem é passada pra alguém, passa a não ser mais nossa apenas, mas de todos que vão consumi-la.”

Ele também não esconde sua predileção pelo lado comercial estimulando o seu crescimento, desde que haja sensibilidade junto às expectativas do público, comprometimento com o movimento hip-hop e maturidade ao lidar com a mídia: “Uma coisa é você gostar de ouvir em casa, à sua maneira, determinado estilo de rap. No momento em que você grava um CD, tem que lembrar que aquele produto não vai ser ouvido por você na sua casa e pelos seus amigos. Vai ser ouvido por toda uma galera que não te conhece e vai passar a conhecer através dali. É aí que está a questão comercial: é saber como funciona a coisa na sua região, ou seja, da mesma maneira que o Nordeste tem o forró, no Centro-Oeste, o sertanejo, aqui no Rio de Janeiro as expressões maiores do funk e do pagode, sem querer dizer que o rapper vai cantar sobre a base do último sucesso do Só pra Contrariar, ou pegar o tão conhecido VOT MIX7 e cantar sobre ele, mas se quiser fazer, que faça, mas sem sair da sua realidade de hip-hop, senão vira bagunça”, adverte. “Devemos analisar o seguinte: o povo da minha área curte esse tipo de música? Então nós temos que saber fazer isso pra eles, porque o que estamos fazendo é pra eles e

7 Base instrumental de miami bass muito utilizada pelos MCs e DJs de bailes funk cariocas.


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não para nós. Se for pra mim, eu gravo um CD demo e não um CD com um, dois, três milhões de cópias! A não ser, é claro, que eu vá comprar esse um milhão de cópias só pra mim e aí, parabéns: eu tenho um deposito cujo o único artista sou eu”, ironiza.

Suave, rapper de origem carioca que reside em São Paulo, tem uma visão completamente diferenciada do que é ser comercial dentro do rap. Para ele o modelo de comercial que é vendido no nosso país, ainda não contaminou o nosso rap. Ele acredita que está havendo uma certa confusão da nossa parte sobre tal conceito: “Existem vários conservadores e outros que começaram talvez como conservadores, e aproveitaram essa onda pra virar comercial. Na música você tem que mandar uma mensagem, e talvez a sua ideologia seja conservadora. Mas isso não quer dizer, que, a partir do momento em que você, com aquela ideologia, atinge um maior público, você tenha virado comercial”, explica. “Muita gente mistura: aquele cara que começou conservador atingiu um público grande e agora virou comercial. Isso não tem nada a ver. Comercial é você aparecer na televisão com duas loiras ou morenas rebolando. Isso é o que a gente pode chamar de comercial. Até agora eu não vi ninguém fazendo isso com o rap nacional. Então eu acredito, sim, que no rap existem pessoas conservadoras atingindo um grande público.”

Mano Brown acredita na autenticidade. Para ele, não importa se a postura a ser assumida é conservadora ou comercial, desde que seja verdadeiro aquilo que está sendo realizado: “Eu vou falar do meu caso: o Racionais, ele foi o grupo que quebrou as duas paredes – a do underground e do comercial – porque a gente pode ser os dois ao mesmo tempo, e rejeita os dois. Eu não tacho um rap de comercial, porque ele tem um refrão e tá sendo cantado na boca do povo. Eu não tenho essa visão simplória das coisas. Pra mim, rap é rap! Se o coração do povo aderiu à música, ela é, na minha forma de ver, mérito ao compositor, porque, política de verdade, é se fazer entender. O cara que é compreendido, ele faz a política”, define. “Não vamos dizer que a música do cara tá expressando palavras sobre política, mas um rap bem cantado, um cara negro cantando uma música


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negra bem cantada para o povo negro, é uma política, querendo ou não! Mais leve, mas é! Como também um outro cara cantando palavras políticas, falando sobre a política, sobre economia, é política! Uns em camadas mais leves e outros, mais engajados diretamente! Eu acho que um pouco dos dois é o ideal. Seria uma música política que seria entendida”, considera. “Então eu sou a favor da sinceridade! O amor é sério! Você ter amor pelo seu povo, é sério! Sobreviver de rap no Brasil também é uma missão árdua. Não é impossível, mas é inglório. Muitos deixam a vida de lado, uma profissão, uma escola, e entregam a sua vida pro rap! E essas pessoas, ela querem um retorno pra mostrar pra outras pessoas, até pra aquelas que são desafetos do rap, que o rap é uma música! Tem aqueles que fazem? Lógico! Todo mundo quer ganhar um dinheiro! Se vagabundo dá a vida na porta do banco trocando tiro com o vigia por causa do dinheiro, porque um cantor de rap não pode fazer uma música pra ganhar um dinheiro? Aí é que tá o dilema!.”

Brown se coloca contra aqueles que se consideram mais conscientes que outros e cometem o erro de julgar o trabalho do irmão devido ao estilo diferenciado. Ele também questiona se realmente existe o verdadeiro compromisso nesses críticos do rap alheio: “Eu admiro todo o sentimento puro! Se o cara que tiver criticando, e ele tá com o sentimento puro mesmo, ele tá pensando na melhora pro rap e pro povo negro – eu não gosto da crítica, pra falar a verdade, mas entendo que as pessoas, algumas vezes, por amor, erram! Erram e julgam! Não gosto de juiz também! Todos somos sofredores, de origem pobre, humilde, de antepassados que sofreram até muito mais que nós. A gente não pode colocar o dedo na cara do outro e julgar”, adverte. “Quem tem força pra segurar o fardo pesado, segura! Quem não tem, foge! Tem gente que não é pra carregar o fardo mesmo e nem é bom segurar, senão vai deixar a gente falando. Pior são os caras que batem no peito que são de segurar mesmo a responsabilidade e não seguram! Outros caras, a gente sabe que não vão segurar mesmo, e aí a gente nem cobra dos caras. Eu tenho o meu estilo, e também não são todos que me agradam. Na minha opinião, eu não acho


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certo um grupo de rap lavar roupa suja fora de casa, ou seja, um grupo escalpelar o outro na mídia! Dois negros brigando pros brancos verem! Sempre quando os negros se encontram num lugar, principalmente quando têm brancos assistindo, vira uma guerra”, lamenta. “Às vezes falta a oportunidade pra se expressar com calma o verdadeiro sentimento! Às vezes num debate, numa reunião, numa palestra, o sentimento puro não é expressado! Muitos sentimentos são revelados, mas menos o sentimento verdadeiro do rap: que é o amor, vários sofrimentos das antigas, várias decepções de infância, vários traumas, isso é colocado de lado, porque as pessoas têm vergonha de se expor. O rap é isso! Muito do nosso passado, pesa contra nós hoje! A gente mesmo pressiona um ao outro. Os negros se pressionam o tempo todo, a gente cobra um do outro, porque não é fácil ser negro no Brasil. E cantando rap é muito mais difícil!”


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Cada um sampleia o que quiser e assume as conseqüências por conta própria. O que não se pode admitir é que o nosso rap se tornará mais brasileiro se usarmos elementos de ritmos nacionais. O rap já se torna brasileiro desde o momento em que ele é cantado por brasileiros que descrevem o duro dia-a-dia de suas realidades. Muitos artistas da MPB não gostam do nosso rap e não entendem ou não querem entender as homenagens de alguns irmãos. O rapper que sampleia trechos de MPB em seus raps está sujeito a responder judicialmente por isso, arcando com as multas e até correndo o risco de perder o contrato com a sua gravadora, caso faça parte de alguma. Por isso cabe avaliar se estamos apenas tentando provar para nós mesmos que podemos samplear nossos próprios artistas, da mesma forma que os rappers americanos sampleiam os seus. Fazemos parte da maioria da população preta e pobre, que mal sabe ou não sabe ler e nem escrever; que tem como diversão principal ou única o uso da televisão; que consegue ou tenta sobreviver com o salário mínimo; que sofre diariamente com os problemas de violência policial, descaso social e racismo; que não conhece a sua verdadeira história e cultura e por isso não tem auto-estima. Nosso povo não saberia entender as mensagens poéticas de resistência política da MPB. O rap, na maioria das vezes, não protesta nas entrelinhas, ele fala abertamente sobre os problemas,

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para que todos possam entender e reagir de forma inteligente. E essa postura foi uma total influência do rap dos EUA. Para o DJ Deco, por mais que muitos de nós queiramos abrasileirar o rap, isso se torna algo inimaginável, já que o gênero é americano. Alega também que nem tudo que se faz nos EUA pode ser seguido ao pé-da-letra, substituindo para a nossa versão de realidade, principalmente quando o assunto é samplear um artista brasileiro: “Hoje tá uma grande pressão, tanto do pessoal do rap quanto dos outros que estão caindo de pára-quedas dentro do rap, falando que a gente precisa samplear coisas daqui, dar valor pras coisas daqui, porque somos brasileiros, o ritmo é brasileiro. De modo geral, já que o rap é brasileiro, teria que samplear coisas brasileiras, que começar o olhar também ‘calças jeans, tênis Nike, bike, skate, self-service, Windows, Microsoft’... São todos termos americanos, que tão na nossa língua o tempo todo, e a gente cada vez mais quer falar esse tipo de coisa”, ressalta. “Com relação a samplear, a história do rap vai permitir muito pouco que a gente sampleie coisas brasileiras”, considera. “Porque o ritmo é outro, a pegada1 é outra, a intenção é outra e a gente cresceu ouvindo aquilo que veio de lá [EUA] e lá existe uma cultura que permite que seja sampleado”, explica. Igual, por exemplo, a Roberta Flack voltou a cantar depois que a Lauryn Hill regravou ‘Killing me softly’. Uma pessoa que tinha dado a carreira por encerrada, outra veio e regravou a música e ela voltou a cantar justamente por causa disso”, comenta. “Aqui é mais fácil o cara te processar, tomar a música do seu disco, do que valorizar quando você tá tentando até fazer uma homenagem ou coisa assim”, compara. Então, hoje em dia, essa pressão tá sendo feita por causa da visão das pessoas que querem tirar dinheiro do rap, sim, pra falar a verdade! Porque, quando qualquer gênero estoura, aí não interessa se é do rap ou se não é... Todo mundo quer fazer! Todo mundo quer produzir! Todo mundo quer cantar! E isso aí já aconteceu, já foi provado em outros gêneros, e no rap não vai ser diferente”, considera. “Então o rap nacional, pra mim, ele tem que ser como ele 1

Forma de cantar.


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começou: bebendo da verdadeira fonte, que são os samples gringos, e não adianta mudar isso agora”, afirma.

Tudo parece uma forma de se proteger, seja dentro ou fora da mídia. Na realidade, o que se pode observar, é que muitos de nós desejamos arrebatar uma gama considerada de adeptos para nos tornarmos, de algum modo, imortais. Deco acredita que o lado sensacionalista, acompanhado da contradição, se faz presente entre os rappers que tentam a todo custo nacionalizar o rap, e apresenta os efeitos disso: “São duas coisas diferentes: tem o caso de sofrer com a questão do sampler – que é o perigo de mexer com a música de alguém sem autorização – e tem o caso de se transformar o rap em música brasileira”, explica. “Isso, no meu modo de ver, seria uma coisa impossível porque primeiro que já é rap o nome da música – se escreve ‘R-A-P’. Aí o cara que canta é o ‘M-C’ ou o ‘rapper’. O que toca é o ‘D-J’. O que dança é o ‘b-boy’ ou ‘breaker’. Então já teria que mudar tudo isso”, considera. “Porque, eu vejo aí, tem gente que faz um disco, e a letra fala mal do gringo. Então são umas contradições assim, que não tem como eliminar isso da noite para o dia”, considera. “Eu já vi selo e CD de rap escrito: ‘Exija Rap Nacional’. Quer dizer, ‘exija’ em português; ‘rap’ em inglês; e ‘nacional’ em português. É coisa de quem não tá prestando atenção no que tá fazendo, e eu acho que não é por aí”, justifica. “Eu continuo gostando do que vem de lá [EUA], e eu acredito que o nosso rap tem que continuar sendo feito do jeito que tá sendo feito. Só que com um pouco mais de profissionalismo”, completa.

Alguns de nós tende a abrasileirar o nosso rap, apontando, inclusive em algumas entrevistas na TV, o cantor Jair Rodrigues, como pai do rap nacional devido ao sucesso de “Deixa isso pra lá”. DJ Deco não concorda com o título dado ao cantor, alegando que a música havia adquirido a forma falada por acidente, e não por intenção, e aproveita para justificar a intenção da dupla P.MC e DJ Deco, projeto de que fazia parte quando realizou o refrão da música na voz do rapper P.MC:


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“Gosto muito do Jair Rodrigues, mas não concordo com o que foi feito. Pra ter sido ele, teria que ter feito e colocado: isso aqui que eu tô fazendo é rap”, explica. “Mas não, ele fez uma composição. Todo mundo que faz composição, sabe com é... Você tá andando na rua, dá a idéia de se escrever alguma coisa, e ele fez. Tanto que o maestro que produziu foi o Hermeto Pascoal, e ele falou que não tinha como harmonizar aquilo lá, porque não tinha melodia”, conta. “Deu um certo problema na hora de produzir a música. E não foi uma coisa feita com propriedade”, reconhece. “Saiu uma coisa falada, que inclusive eu e o P.MC usamos no refrão, porque é bem parecido com rap, mas não dá pra falar que ele criou o nosso rap”, justifica.

Segundo Deco, muitos de nós ainda não dão a real atenção para o hip-hop. Para ele, não conseguimos ser profissionais e ter uma projeção maior porque negligenciamos alguns detalhes importantes, que ao nosso ver reflete como obsoleto, como, por exemplo, a elaboração dos instrumentais do rap, dando mais ênfase às letras: “Quando Afrika Bambaataa teve aqui no Brasil, no Fórum de Hiphop, eu percebi que ele ficou meio decepcionado com as coisas que a gente perguntou, porque tava uma coisa muito política, sem musicalidade na conversa... Acho que uma coisa que eu sempre pensei e que meu irmão sempre falava: quando começamos a fazer rap, a gente se preocupa muito com as letras. Lógico, tem que se preocupar com as letras!”, concorda. “Só depois eu comecei a lembrar de que, antes do rap nacional, que na minha cidade [Governador Valadares – MG] começou entre 86/87, do começo dos anos 80 até essa época, a gente adorava música de lá de fora [EUA]. A gente tentava cantar o que a gente ouvia, sem conhecer uma palavra em inglês, sem saber de nada que os caras estavam falando. E a gente já gostava, a gente corria atrás das músicas, queria comprar os discos; se não tivesse os discos, queria fitacassete”, relembra. “Então, a princípio, o mais importante não era a letra. Porque se fosse, a gente não ia ter gostado do jeito que gostava, e gosta até hoje”, enfatiza. “A maioria das coisas que a gente ouve, a gente não sabe do que tá falando”. “Então eu acho que se perdeu muito nisso”, lamenta. “Já ouvi gente que faz rap hoje em dia dizer que a base não importa! O que importa é o que


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tá se falando! Eu acho que isso aí deveria ser um pensamento de quem tá escrevendo um livro – que aí não precisa ter base musical, basta o que tá escrito”, considera. “No rap, acho que tem muita contradição no meio, tem muita gente caindo de páraquedas e muito pouco profissional no meio”, afirma. “Isso aí é uma coisa que a gente perde. Se você escutar as músicas gringas, existe musicalidade nos raps. No nosso, às vezes, falta um pouco disso: às vezes você escuta na rua – independente da condição em que foi feito, da falta de equipamento, e da intenção – você vê que ainda falta um pouco de profissionalismo ou dom”, critica.

Na opinião de Big Richard, essa discussão se conclui a partir do momento em que todos tiverem a real consciência do que estão fazendo junto ao rap. Para ele, esse conceito cai por terra quando, em vez de buscarmos a “brasilidade” para o nosso rap, possamos encontrar a “africanidade” da nossa música, que, diga-se de passagem, está presente universalmente em quase todos os gêneros musicais: “Hoje tem uma onda aí, nem vou dizer que é ruim ou que é boa, que é essa necessidade do pessoal se auto-afirmar como brasileiro. Então, tem um monte de gente dizendo que faz rap brasileiro porque só sampleia brasileiro. Porém, a gente tem que ver que a partir do momento que você diz que faz rap – rhythm and poetry – tá fazendo algo que não é brasileiro. Então se você quiser fazer alguma coisa brasileira, você tem que deixar de ser rapper e fazer embolada,2 fazer repente,3 ou então um partido alto de improvisação,4 que aí você vai tá fazendo alguma coisa parecida com o rap brasileiro”, risos. “E aí, independente de brasileiro ou americano, eu acho essa discussão um tanto quanto boba. Por que boba? Porque você tá fazendo black music, você tá fazendo música negra”, ressalta. “E você não tem que ter vergonha de falar que você sampleia tanto um James Brown ou que você pode samplear um Fella Cut. Você tá fazendo uma música de raiz africana, e se você valoriza as suas origens, se você conhece as suas origens,

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Improvisação rimada e falada à base de percussão, característica do forró. O mesmo que embolada, mas com improvisação melódica. Estilo de samba.


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então você tá fazendo uma música preta. E o Brasil, queira ou não queira, foi construído – a base inclusive da cultura brasileira e da música brasileira – sobre a cultura africana”, explica. “Isso é coisa de gente que não conhece o que tá falando, ou não parou para se ouvir. Às vezes é até gente que conhece, sim, mas não parou pra ouvir aquilo que tá falando, porque talvez, se fosse ouvir e analisar aquilo que ele fala, talvez ele não falasse”, critica. “O James Brown falou, pouco tempo antes de morrer, que a música pop no mundo é a música negra! E é verdade, por que não? O que é pop? Vamos falar das raízes: tirando a nossa formação na cultura ocidental, tirando a música africana, que a gente absorveu, que a América Latina absorveu, que a América do Norte absorveu, sobrou o quê? A música de câmara, a música erudita, a música européia. E o que tem dessas músicas dentro da música pop? Muito pouco! O resto, qualquer coisa que você referir à música no mundo, é música de origem africana”, ri.

Mara é rapper e ativista. Ela, em sua fala, consegue detectar uma certa contradição nas atitudes de muitos de nós, alegando que estamos perdendo uma grande oportunidade de fazermos contato com o restante do mundo: “A gente ouve muito falar que a gente precisa samplear música brasileira pra fazer rap autenticamente brasileiro, e muitas vezes a gente acaba ignorando muito do que é produzido em outros lugares do mundo. Como já dizia uma velha frase: música é universal! E aí, tem muita coisa boa que a gente, às vezes tem a oportunidade de ter acesso, mas a gente acaba abrindo mão disso. E mais do que isso: a gente acaba dando muito peso pra essas coisas das fronteiras, pra essas coisas das barreiras, o que, na verdade, acaba impedindo muitas vezes que a gente faça intercâmbios muito bons. A gente acaba também percebendo, inclusive, que o conteúdo de protesto das nossas músicas, não vem de uma realidade que não é só nossa – a realidade de protesto do povo pobre e preto, não é uma exclusividade do povo brasileiro”, explica. “Então, tanto musicalmente, como em relação ao conteúdo, a gente vai encontrar muita coisa boa em várias partes do mundo. Na verdade, eu acho que, sim, existem coisas da cultura regional que de fato eu a gente deve valorizar, conhecer, porque


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por um outro lado, a gente sofre com essa coisa de americanização, dessa cultura enlatada, mas isso não quer dizer que lá também não existam coisas boas. Além disso, é preciso entender que essa produção cultural no mundo, ela traz muitos elementos que podem nos ajudar em muita coisa, tanto artisticamente quanto que politicamente.”

O DJ Marcelinho vê a nossa realidade de modo muito diferente, se comparada a dos americanos. Na sua opinião, isso reflete também no costume criado pelo rap de samplear músicas. Para Marcelinho, a atitude se deve o fato de a grande maioria não ter a noção de como é resolvida a tramitação fonográfica no Brasil. Marcelinho acredita também que essa busca pelos elementos nacionais tem a ver com a saturação dos samples internacionais e a carência pela inovação: “O lance do sample brasileiro é complicado, não dá pra gente comparar com o gringo, porque ele sampleia James Brown, a gente sampleia o Vinicius de Moraes, porque é outra realidade. O cara que tá sampleando James Brown lá, ele tá ajudando a carreira do James Brown. Aqui, o cara tá sampleando Tom Jobim, e não sabe se isso tá ajudando a carreira do cara”, explica. “Às vezes nem faz muita diferença e não dá pra você querer pegar um pedaço de uma música de um cara que gravou ela há 20 anos, querer gravar simplesmente e não pagar nada”, admite. “Você tá roubando a obra do cara, ele vive daquilo. Do mesmo jeito que você vai viver dessa música que você tá roubando, ele vive daquela música também, que é dele, há 20 anos. O rap ainda não tem uma expressão de vendas pra que esses caras simplesmente liberem o sample, porque é isso: é ganhar dinheiro ou algum benefício que eles querem ter. Porque não é só: ‘o rap é legal! O rap mostra a realidade, eu vou liberar!’ Não! Tem toda uma burocracia atrás que vai muito além da música”, conta. “Pro cara leigo, é só música. Mas eu acho que a gente tem que procurar trabalhar com músico, ouvir as referências do Tom Jobim, do Paulinho da Viola, tentar criar alguma coisa naquele clima. Eu acho que a gente não precisa tá só sampleando. O hip-hop agora tá numa outra fase, então, eu acho que a gente tem que criar. E o lance de se buscar hoje os samples nacionais, é mais uma saturação de tudo que já foi sampleado.


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A gente ouve muito rap gringo, parou o sample lá, aqui automaticamente começa a mudar também. Aí voltou o sample lá, aí aqui volta também. E essa história de deixar o rap brasileiro samplear as músicas daqui, é uma conseqüência natural, eu acho que tem que acontecer e se der pra samplear, vamos samplear. Isso ajuda até criar uma identidade no rap brasileiro, porque se o rap cubano mistura música de Cuba, e o da França, a música francesa, naturalmente o Brasil vai misturar a música brasileira – que aqui ele tem milhões de ritmos, não existe só o samba também.”

Gabriel O Pensador deixa evidente o seu apoio aos samples nacionais, apostando na criatividade do rapper que assim o fizer: “Desde o meu primeiro disco, eu fiz samples de bandas brasileiras e hoje em dia outros rappers também fazem. O Rappin’ Hood por exemplo, tá com trabalhos muito bons aí em cima disso. Eu agora voltei ao sample depois de um disco ao vivo e um outro, anterior, praticamente sem sample, além desse último CD, em que usei ‘Garota de Ipanema’, ‘Que beleza’ do Tim Maia e ‘Pais e Filhos’ do Legião Urbana. Acho que é uma forma de mostrar minhas outras influências, porque elas não vêm só do rap e de vez em quando eu sampleio coisas que fazem parte desse universo de quando eu era adolescente. Então tem a Legião, tem Bob Marley, e muita coisa que eu admirava e admiro até hoje... Particularmente, eu fujo às vezes do funk dos anos 70 e do sample mais típico que a gente no rap tá acostumado a fazer – é até bom, porque se torna também um desafio utilizar outros ritmos pra fazer um rap, e eu gosto dessas experiências.”

Quanto à questão da penalidade em relação aos direitos autorais, Gabriel ressalta: “Ainda tem gente que faz discos independentes sem tomar tanto cuidado com isso, mas as gravadoras tomam o maior cuidado. Cada vez que tem um sample de uma música, eles são os primeiros a perguntar se a gente já pediu autorização; eles ajudam a fazer o processo burocrático de autorização – por que não dá pra gente sair sem isso. Se for por uma gravadora mesmo, normalmente, hoje em dia, é tudo pedido e, quando se fala pedido, quer


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dizer, também dividido, porque tem uma porcentagem que vai pro dono da música sampleada.”

Rooney também não apresenta nenhum argumento contra aqueles que sampleiam a música do nosso país. Seu único conflito é com a falta de responsabilidade de muitos de nós, que se apropriam de um material alheio sem dar devida atenção ao verdadeiro autor da obra: “Nesse capítulo tem uma história muito interessante, porque o brasileiro tem mania de querer inventar que é o pioneiro na situação de, de repente fazer um rap sampleado sobre alguns nomes da MPB, e eu não preciso citar nomes, porque a gente conhece bem eles. Mas a gente tem até alguns exemplos bons, como é o caso do Sampa Crew, que fez uma música com o sample do Tim Maia, em que ele próprio autorizou a música na época. Então isso é uma situação muito interessante, mas ao mesmo tempo há músicos brasileiros que não querem se envolver com a MPB verdadeira – que hoje em dia pode ser o rap, que fala a verdade das ruas – e não querem se envolver com ela, porque é uma música crítica e, de repente, essas pessoas fazem suas músicas só por entretenimento, então elas não querem um envolvimento muito forte”, acredita. “Só que a gente também tem que pensar no seguinte: o próprio cantor ou escritor, e o produtor brasileiro, eles têm que aprender a ser mais profissionais, e profissionais no sentido de saber administrar a própria situação de pedir uma autorização, ir aos órgãos competentes, saber que ele tem que registrar a letra dele, os acordes das músicas dele, porque existe o direito autoral, que existe pra garantir os direitos de uma criação de uma obra. Se você faz um rap, você tem que ir atrás dos direitos autorais da sua obra, só que quando você pega a música de alguém, você tem que pagar os direitos autorais dessa pessoa, porque foi ela que inventou essa música e você está utilizando. Se você usar meu carro, você vai ter botar gasolina pra andar nele. Se você usar a minha marca, você tá comprando a minha camiseta, porque eu não te dei, você tá comprando uma peça pra poder usar”, explica. “Então, a partir do momento que você tá ouvindo música na sua casa, você comprou esse disco e tá pagando alguém pelo direito


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de ouvir essa música. Então, nós temos que pagar aquilo que usamos e temos que ser responsáveis por isso.”

Bonga acredita que realmente há uma vontade por parte do rap nacional de estar mais próximo da música do seu país. Ele acha que o que deveria ocorrer, nesse caso, é um entendimento entre os artistas sampleados e os próprios rappers: “Vai da criatividade e da importância de estar sampleando coisas brasileiras. Você vai trabalhar mais com a genialidade do seu país, não pela nacionalidade, mas pela criatividade da música brasileira. A música brasileira, ela é rica, ela é cheia de ritmos e ela é carregada de criatividade. Do mesmo modo que os caras de lá, sampleiam os grandes músicos do funk, do soul, e, é claro, lá tem a grana pra se pagar os direitos autorais, e no Brasil ainda tem essa grande questão, já que muita gente vê grandes bandas nacionais de rap como MPB – e isso é um fato – como é o caso do próprio Racionais, que é citado no livro Verdade tropical do Caetano Veloso, eu acho que é interessante, sim, tá mostrando pra MPB que o hip-hop hoje, ou seja, a música rap no Brasil, ela já faz parte dessa MPB, ela é consumida pelas grandes massas e nada mais justo samplear as músicas brasileiras”, justifica. “O De La Soul, por exemplo, sampleou Gonzaguinha e vários grupos que não são brasileiros samplearam música brasileira. Por que o Brasil não pode samplear as suas próprias músicas, mostrar a criatividade do músico brasileiro, sendo o próprio rap um resgatador de vários músicos brasileiros através do sampler? Por exemplo: o resgate de Toni Tornado, Gerson King Kombo, Tim Maia, Cassiano [cantores brasileiros de soul da década de 70], músicos que estavam esquecidos, através do hip-hop. Foram reconhecidos novamente e estão sendo consumidos novamente. Os direitos autorais, acho que isso vai de se manter boas relações. Algumas coisas têm que mudar na relação da música no Brasil, a própria sacanagem do ECAD,5 e outros conceitos para que o sample possa ser visto como algo importante pelo artista brasileiro.”

Bad aposta na inovação com samples nacionais e diz que talvez o único problema possa ser a insensibilidade da parte de quem 5

Órgão brasileiro responsável pela arrecadação dos direitos autorais do artista.


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estiver produzindo para que seja criada a harmonia perfeita da colagem com o rap: “Nessa questão de samplear, usar material nacional, tudo bem! Só que durante um bom tempo, a música brasileira não vendia tanto, inclusive até antes de 83, o mercado fonográfico internacional tava fraco. Um artista não conseguia vender mais do que três milhões de cópias. Mas eram músicas que vendiam aqui, então eles admiravam a nossa educação. A nossa cultura de escutar música americana”, explica. “É lógico que, dependendo da idade da pessoa, ela vai dar preferência pra música americana. Tem músicas boas aqui no Brasil para serem sampleadas. A questão também é de qualidade”, acredita. “O Brasil tem uma diversidade musical muito grande, só que seria difícil peneirar pra achar alguma coisa boa pra ser colocada num rap. E outra: o DJ tem que ser muito capaz de dar uma sacada no que é artisticamente bom pra ser sampleado, e não cometer nenhum absurdo de usar uma coisa que musicalmente não se encaixe.”

Bad também teme problemas com direitos autorais reclamados sobre os samples de rap e acredita que a lei deve ser ampliada. Quanto à questão do sample nacional como inovação, ele acredita que os rappers brasileiros ainda não tem o preparo adequado para usá-lo, pois ainda não tem o conhecimento da música brasileira: “O que é de direito, é de direito”, admite. “Eu não acho que os outros artistas deviam liberar isso, porque eu conheço muita música bonita que foi sampleada e foi estragada”, critica. “Então, tirando as leis e os problemas que o rapper vai ter se ele souber fazer a colocação, seria ótimo. Existem várias músicas que o pessoal nem imagina, por falta de conhecimento, que seriam muito interessantes de samplear, como por exemplo, ‘Deus salve a América do Sul’, dos Secos e Molhados, uma melodia que se encaixaria em qualquer electro funk. O dia que alguém fizer realmente sucesso com os samples nacionais, aí todo mundo vai começar a seguir.”

O rapper Suave é um apaixonado pelos ritmos brasileiros e vê a questão da brasilidade do rap como algo positivo. Ele acredita que podemos explorar ainda mais dos nossos ritmos:


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“Eu sou brasileiro e saí do Brasil com 10 anos, morei fora e posso garantir a vocês que não tem nenhum país com a musicalidade que a gente tem. Talvez por causa dessa coisa africana dentro do Brasil, que trouxe todos os ritmos. A gente é rico em ritmo, não precisa samplear coisa de fora. A gente não precisa também só samplear MPB ou outros ritmos brasileiros, mas aproveitar a nossa criatividade e fazer com que esse ritmo nosso atinja outros países ou atinja o próprio Brasil, que seja uma coisa gostosa como os cubanos com um grupo aí, que talvez algumas pessoas achem muito comercial, o Orishas. Mas eles aproveitaram o suingue cubano e fizeram daquilo um rap”, exemplifica. “O brasileiro tem muita chance e vai conseguir, talvez não sei, com samba, com sambarock, ou com os ritmos africanos, fazer com que a cultura rap tenha uma característica única e uma sonoridade só brasileira.”

Mano Brown acredita em uma qualidade especificamente brasileira da nossa música acima de quaisquer circunstâncias. O que ele realmente não aceita é a apropriação indevida, por parte de alguns de nós, dos samples de músicas nacionais: “O rap brasileiro é aquele que fala da realidade brasileira, cantado em português, pros brasileiros verdadeiros, que somos nós, moradores dos morros, favelas! Somos brasileiros, respiramos o Brasil, bebemos da água do Brasil, nascemos aqui e eu acho que a gente pode usar a música do mundo inteiro e ainda continuaremos fazendo rap brasileiro! Quanto à questão do sample, algumas músicas são usadas de forma errada e desrespeitosa. Não vou generalizar dizendo que é assim sempre, mas acredito que pode ter esse perigo de o rapper usar o sample da música de alguém de forma desrespeitosa, esse risco existe. Então algumas pessoas já se previnem antes”, explica. “Vê o nosso caso: a gente nunca pediu pro Tim Maia a autorização da música ‘Homem na estrada’ [sample de ‘Ela partiu’]. Antes de ele morrer, ele já conhecia a música. Nem ele e ninguém dele e da produção dele reclamou o direito da música! Ele era um cara que sempre brigou pelos direitos dele, mas nesse caso, ele nunca falou nada! Eu acredito no momento certo, da forma certa e no respeito, acima de tudo!”


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Sobre o assunto, o DJ Juan apóia as inovações dos rappers que buscam samples e colagens nacionais com autenticidade, desde que não venham descaracterizar a essência do hip-hop: “Eu respeito e acho muito legal que você queira usar samples de músicas brasileiras. Acho também que você deve criar coisas com musicalidade também regional, mas não pode o seguinte: o mundo de hoje é globalizado e da mesma maneira que o soul veio parar nos nossos ouvidos, nós podemos usá-lo. Eu acho que não deve haver preconceito por nenhum lado. Tem certos discos que eu uso para fazer scratch que são de samba e pagode, com frases que as pessoas compreendem, por que eu não vou usar um disco com uma frase do South Park 6 e passar pra galera”, exemplifica. “Isso é legal, algumas pessoas vão até reconhecer, mas eu acho muito mais inteligente da minha parte,quando eu pego o disco dos Morenos [grupo de pagode], ou melhor, da dupla Léo Canhoto e Robertinho, ‘A história de Jack Matador’, muito usada no funk, para ter uma resposta maior do público. Eu tenho feito essa experiência na noite e vejo que o envolvimento do público comigo é bem maior.”

Juan também alerta a todos sobre a questão de nos mantermos no mercado de forma consciente, pois muitos de nossos estilos dependem diretamente disso para a sua sobrevivência: “Você está dentro de um mercado e tem que saber como usar e o que usar, porque você vai bater de frente com ele. Aqui no Rio, o rap internacional é mais forte que o nacional. Dentro do que acontece por aqui, o seu concorrente não é o Racionais MCs – não que eu os veja como concorrentes, ao contrário, os vejo como fortes aliados”, ressalta. “Entre aspas, o DMX, que, é claro, usa algo americano... Mas dá pra vencer, porque se o Só Pra Contrariar [grupo de pagode] está fazendo sucesso com um estilo inovador, então por que o rap também não pode?”, compara e completa: “lembre-se de um detalhe importante: o que você faz não é samba, não é pagode, não é bossa-nova. É hip-hop! Não deixe perder a essência da batida pesada, do groove que de certa 6 Desenho animado americano famoso por satirizar o comportamento da sociedade norte-americana. Exibido no Brasil pelo Multishow.


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forma é repetitivo, porque isso é hip-hop, musicalmente falando. Nunca esqueça disso, porque senão será somente rap em cima de alguma coisa”, adverte.

Toda e qualquer inovação atrai muitas vezes resultados indesejados e nem sempre previstos, como é o caso da utilização de samples sem a autorização do autor da obra extraída. DJ Juan não acredita num problema eminente para o nosso rap, mas não descarta a hipótese futura para tais fatos: “Todo mundo no Brasil sampleia e até o momento não se deu mal porque talvez seus CDs ainda não tenham vendido um milhão de cópias da noite para o dia. Porque no dia que isso acontecer... pode ter certeza que todo mundo da MPB e de outros gêneros nacionais vai saber que o rap existe. E gostando ou não vão procurar o rapper responsável pela proeza meu irmão, tu pegou a minha música! Mas por enquanto isso é inofensivo”, acredita. “A partir do momento em que começarmos a ganhar discos de platina, o dono da música sampleada vai querer uma fatia do bolo, e não pense que o cara vai ter ‘consciência negra’ porque, de repente, ele é igual a você. A única consciência que ele vai ter é financeira, ou seja, você tá ganhando dinheiro às minhas custas”, ironiza. “Para finalizar, o uso do sample eu acho inteligente, sim, porque pegar uma música que já foi sucesso e cantar sobre a sua base instrumental já é tradicional no hip-hop e todos sabem que isso começou devido a uma deficiência financeira [o rapper não tinha dinheiro para pagar uma banda para produzir seu instrumental, e por isso cantava sobre o instrumental em vinil de outro artista], e não foi diferente com o sucesso de ‘Good Times’, do Chic.7 Mas cuidado e lembre-se: respeitem o artista que vocês estão sampleando, porque amanhã podem ser vocês os sampleados!”

Existem relatos na Bahia dos chamados “ganhadores de pau”; escravos que trabalhavam nas ruas de Salvador, vendendo água, e que desenvolveram o canto falado baseando suas letras como modo de denúncia contra a exploração da escravidão. Histórias como esta tendem a remontar o discurso nacionalista de 7

Grupo americano de funk dos anos 70.


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alguns militantes extremistas do hip-hop, que tentam muitas vezes excluir as influências norte-americanas sobre o nosso rap, mas não conseguem. A própria história americana registra a presença dos griots (escravos que trabalhavam nas lavouras de algodão que também utilizavam o canto falado para divertir, contar histórias dos seus antepassados e resistir às opressões do patrão). Essas coincidências nos levam a entender que o rap é algo híbrido, instintivo e de origem milenar africana. Mas é a partir da imigração jamaicana, devido à crise econômica do país, que o rap começa a ser montado e adquire a sua devida forma e reconhecimento nos EUA. Por outro lado, uma outra parte do movimento se baseia 100% no comportamento do rap americano atual, esquecendo-se totalmente dos próprios valores gerados pelo movimento no Brasil. Atitude que muitas vezes se choca com os princípios da cultura hip-hop, de modo que o artista nem mesmo consegue explicar coerentemente os motivos de suas ações. Somos formadores de opinião e não podemos fugir desta realidade. Ou a encaramos de modo sério e maduro, com conhecimento de causa, ou abandonamos de vez os nossos ideais. Não podemos confundir nossa gratidão para com o que é apreendido por nós do estrangeiro com a troca de nacionalidade. Nascemos e vivemos no Brasil, onde o dia-a-dia não se compara ao dos EUA. Se conseguimos facilmente copiar os atos do lado negativo do rap americano, então, porquê, não nos esforçamos um pouco para imitar o lado positivo? É importante evidenciar que os artistas que sampleiam a MPB só ficam mais expostos às ações contrárias dos artistas sampleados quando conseguem expandir o seu sucesso por todo o país. Ainda não é o caso da maioria no momento, mas precisamos estar preparados para o futuro próximo, para os prós e os contras, agora!


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Não quero apontar a MPB como o inimigo número um do povo e do rap, longe disso. Particularmente, admiro o trabalho de muita gente. O que estou tentando expor é que não podemos esquecer de nossas responsabilidades legais quanto a um artista sampleado, mesmo que se trate de uma homenagem da nossa parte.


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Sempre que visito outro estado me deparo com alguns irmãos preocupados com a questão do funk carioca. Percebo que muitos querem tratar esse assunto como se os funkeiros fossem os culpados e devêssemos ignorá-los. Pensávamos assim também no início do movimento aqui no Rio, mas reparamos que estávamos errados em muitos aspectos. Ser favelado consciente no Rio de Janeiro é privilégio de poucos que tiveram a chance de conhecer movimentos como o hip-hop. Os funkeiros são pretos e vivem nas favelas como quase todos nós do hip-hop, sofrendo as mesmas injustiças sociais e raciais. Só não há a busca pela informação – como ocorre entre muitos de nós hip-hoppers –, tornando-se assim, vulneráveis à manipulação dos empresários do segmento. O DJ Deco acredita que, entre os adeptos do hip-hop, existe preconceito em relação a qualquer outro ritmo que seja diferente do hip-hop, e com o funk não poderia ser de outra forma. Segundo Deco, se há briga interna no rap – algo previsível – imagine no funk? Para ele, devemos esquecer as diferenças e, se existe algum problema, deve ser resolvido através de uma discussão sadia entre os movimentos: “O funk nada mais é do que uma vertente do rap também. Porque são músicas com BPM acima de 127. 127 é o BPM do ‘Planet rock’, que é o primeiro rap do Afrika Bambaataa, e as letras do funk carioca, muitas delas, não são muito piores, ou não são tão

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piores do que muitas das letras do rap gringo que a gente gosta de ouvir”, afirma. “E, em contrapartida, eu acho que ao invés de discriminar o gênero e quem faz, deveriam criar mais debates e discutir sobre o assunto pra poder aproximar os gêneros, porque o rap discrimina muito”, critica. “O rap é um gênero musical que fez muitas pessoas se tornarem preconceituosas com relação a tudo: em relação à cor, à música, à BPM”, lamenta. “Quer dizer que se o cara fizer uma letra consciente, mas acima de 127 BPMs, tá errado? Ele tem que fazer em cima de 85/86, que tá certo!”, questiona. “Isso aí é uma coisa que eu não consigo entender do jeito que se fala aqui [em São Paulo]! Então eu acho que deveria haver uma aproximação, e ver, sim, o que tá certo e o que tá errado”, questiona. “Porque é muito fácil você bater no peito e falar: eu tô certo e você tá errado! Eu gostaria muito de ver em quê um tá certo e o outro tá errado”, ironiza.

Big Richard vê o funk de maneira respeitosa, não esconde o seu gosto por ele, mas também não apresenta a sua predileção. Questiona a postura separatista do hip-hop, e na sua visão o funk possui o seu valor e deve ser visto por nós como mais um elemento da música negra: “É engraçado essa coisa de funk carioca, porque aquilo é mais o miami bass, é o pseudo miami bass. Os próprios gringos que vêm pra cá não reconhecem aquilo. Alguns amigos de Miami, quando vêm pra cá, não entendem, aí quando eu explico, eles se lembram da semelhança com o bass. Antigamente eu era super radical quanto a isso, achava um lixo! Mas no fundo é a adaptação – por a gente falar que o Brasil é um grande caldeirão cultural – as coisas chegam aqui, são adaptadas e colocadas no mundo de volta. Então, rap vs. funk carioca, pra mim, eu acho que nem existe isso. A origem é a mesma, só que em determinados lugares e regiões do Brasil, aquilo que chegou pra gente foi adaptado da forma que o artista que recebeu entendeu e mandou pro mundo”, explica. “Então você falar, por exemplo, que o funk carioca é lixo, igual achava-se antigamente, é uma bobagem, por que desde que você produz alguma coisa que tenha raízes, e que sejam as mesmas raízes do rap, você não pode jogar no lixo só porque você não tá de acordo”, ressalta. “Por outro lado, tem uma massa enorme


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que gosta disso, que vive disso, que faz funk carioca. E se eles conseguiram se estabelecer até melhor do que o pessoal do rap, do chamado hip-hop consciente, algum valor deve ter. Eu, particularmente, ainda não descobri qual é esse valor. Mas eu tenho a humildade de falar que eu reconheço que algum valor eles devem ter, e tão na caminhada deles por aí. Acho que pra mim não vale essa coisa de briga, essa rixa que tem, e diga-se de passagem, quando eu tô com os meus filhos, eu adoro ouvir também aquelas músicas de funk – que é bom pra dançar – com aquelas caixas, aqueles bumbos pesados, só que falar que aquilo é uma coisa que você vai encontrar no case1 do meu carro, não é. Mas eu respeito.”

Rooney se mostra um entendedor da original black music, e não perde tempo para deixar a sua crítica ao rótulo que ele mesmo julga abusivo por parte do funk carioca: “Pra começar, eu acho que o funk carioca deveria mudar de nome, porque o funk, na verdade, é um estilo de música que todo mundo conhece como James Brown, Dub Brown, S.O.S. Band etc. E o carioca, ele não faz isso! Eles usam um trecho de miami bass, que muitas vezes nem é criado, só sampleando e usando os beats, o que também não é muito diferente do que o rap brasileiro faz, que é samplear a música já criada, ao invés de ir na raiz. Só que não é questão de ser contra ou a favor. Eu só acho que as pessoas deveriam se politizar, se informar e fazer o tal miami bass virar o rio bass, e realmente fazer música”, critica. “Popularmente, as coisas têm que ser corretas e o nome eu acho que tá errado. A gente, no meio do caminho, poderia tentar dar uma corrigida. Mas os culpados disso tudo são os próprios DJs, que ficam querendo popularizar pra poder vender mais, e não é bem assim. Não é porque o povo é ignorante que a gente tem que jogar mais ignorância pra cima do povo. A gente mesmo tá sendo ignorante em aceitar essa situação. A qualidade musical desse funk é pobre e as letras deveriam melhorar. Agora, sobre o rap, ele é uma coisa natural que vem surgindo no Rio de Janeiro, e eu ainda não tenho tanta

1 Porta-CDs.


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informação sobre o pessoal, mas pelo pouco que fiquei sabendo, existe muita qualidade.”

Atentando para o fato de que devemos nos resguardar de nossas opiniões e objeções precipitadas, Mara acredita que o funk é um elemento utilizado para satisfazer o interesse da indústria cultural: “Apesar de estar em São Paulo, a minha visão talvez não seja tão abrangente assim, mas acho que eu posso falar a partir do que eu vejo aqui, inclusive, como o rap paulista vê o funk carioca, e quando eu começo a pensar nisso, faço um paralelo com outras relações, como algumas falas sobre o pagode de São Paulo, e outros estilos que têm elementos de cultura negra, mas que apresentam diferenças. E uma coisa que eu vejo tanto no funk carioca como nesse pagode de São Paulo e noutros estilos da música negra é que eles são muito utilizados pela indústria cultural, no sentido de esvaziamento de conteúdo e de explorar um estereótipo do que é o preto, o favelado, e se apoderar disso pra vender”, ressalta. “A gente sabe muito bem que quem tá lucrando com isso não são aqueles pretos que tão lá na favela: são empresários que vêm de fora, se apropriam disso, e aí é muito interessante que a gente perceba o que estão fazendo, porque muitas vezes, quando se fala do funk carioca, se fala como se fosse um inimigo ou como algo que tem que ser jogado no lixo porque não traz o protesto que o rap traz, a contestação que o rap traz, mas é fruto, é feito, é praticado por pessoas que vivem uma realidade muito parecida, uma realidade muito semelhante a de pessoas que fazem o rap”, justifica. “Acho que a gente precisa muito disso, porque a gente corre o risco de cair no intelectualismo, de dizer que a gente faz uma música com conteúdo político, e tudo que não for aquilo que a gente espera que seja, a gente tem que jogar no lixo. Aí a gente acaba muitas vezes deixando de considerar a importância do que é a cultura feita pelos pretos nesse país”, ressalta. “Várias vezes eu ouço comentários, muita coisa na internet, principalmente, brigando com o samba de hoje, aquela coisa de dizer que não tem conteúdo, que não fala nada. Mas por que não fala nada? Quem fez isso com o samba? E além disso, o que o samba e o funk representam para aquelas comunidades que não têm trampo, que não


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têm boas condições de vida, que estão jogadas nas periferias e que não têm nem mesmo formas de lazer? E qual é a forma de lazer do jovem do morro carioca? É o funk! Mesmo com todas as deturpações que a indústria cultural provocou, o funk e o samba ainda trazem elementos dessa identidade de unidade de comunidade dos pobres, de cultura preta. Então a gente tem que tomar muito cuidado pra não acabar se dividindo, sem perceber que, na verdade, toda essa fragmentação é provocada pra que a gente se enfraqueça.”

Para Mara a origem deste preconceito está na eloqüência de muitos de nossos membros do movimento paulistano, que tendem a ver São Paulo como pai de toda a cultura brasileira: “Em São Paulo a gente tem ainda muito desse discurso: nós somos os pais do rap, do hip-hop, e os outros estados simplesmente vêm atrás. Pra mim é uma forma muito equivocada de enxergar a história do hip-hop, porque acaba dando visibilidade à meia dúzia de pessoas, e ignorando que em outras partes do país muita coisa tava sendo construída paralelamente, mas não tiveram tanta visibilidade quanto São Paulo, talvez até mais interessantes, com todas as particularidades que cada região vai trazer. A gente se apega muito a essa coisa de barreira porque tem tanto essa coisa de ‘não quero o que vem de fora’, esse discurso, e também tem muito essa coisa de: sou de São Paulo e o que tá no Rio não me diz respeito, ou não tem qualidade. E isso é muito complicado, porque a gente acaba perdendo a oportunidade de trocar muita coisa – eu tenho a absoluta certeza de que a gente pode trocar muita coisa com o hip-hop carioca, da mesma forma que a gente pode aprender com o hip-hop do mundo, nessa perspectiva de troca de idéia, de transformação, de experiência!”, acredita. “Qual o principal contato que o hip-hop de São Paulo vai ter com o funk carioca? Vai ser pela TV ou pelo rádio. Dificilmente a gente vai ter a oportunidade de ir até o Rio pra conhecer o hip-hop de lá, ou até mesmo o funk. Essa distância, que, na verdade, não é tão difícil assim pra gente quebrar, a gente muitas vezes acaba deixando que isso passe batido e acaba não se conhecendo e não fazendo esse intercâmbio e deixando de aprender muita coisa.”


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Mano Brown não esconde seu carinho pelo Rio, nem o respeito pelo funk. Sobre essa questão, ele tem uma definição muito simples: “A gente tem que respeitar as culturas regionais de cada lugar! O Brasil é um continente! O Rio de Janeiro poderia ser um país, e São Paulo, outro, pela distância e pelo tamanho! O Rio é do tamanho de Portugal, acho! São Paulo é maior que muitos países da Europa juntos! As distâncias criam uma outra forma de cultura, uma outra forma de pensar, outras gírias, outros ritmos, e o Brasil, é um exemplo disso”, considera. “O funk, não é um ritmo desprezível. Jamais! É uma cultura de morro, de subúrbio, de peri­feria do Rio de Janeiro, como é o rap, que nasceu nos bairros pobres de São Paulo. Tudo tem um por que, como as músicas do Nordeste, as músicas regionais, que eram consideradas também músicas sem cultura. É só o sistema precisar de uma moda nova pra ganhar dinheiro, que eles resgatam a cultura nordestina e faz explodir, como fizeram com a lambada, e agora com o forró. Eles vão, põem um estilo mais moderno, um instrumento de aceitação geral, e vira um ritmo pra popular, mas sempre existiu o forró! E o funk, é a mesma coisa: ele não pode mudar a essência dele, pra agradar ninguém de São Paulo ou de lugar algum. Tem que ser cru, como é lá! Quando eu chego no Rio de Janeiro, eu ouço um funk no rádio e eu falo: tô no Rio de Janeiro! É como você ver uma camisa do Flamengo na estrada e você fala: tô no Rio! Muda o ar, é mais quente, é o funk, são as mulheres, é o Rio! É a realidade! Então o rap tem que compreender isso, é uma cultura muito forte, o rap também é forte, a gente tem que se respeitar e tem que agir juntos”, afirma. “É o mesmo povo, a mesma época! Nós vamos perder tempo, dinheiro e saúde se continuarmos com essas idéias! Um tem que respeitar o outro.”

Gabriel O Pensador vê que entre os movimentos pode haver um certo equilíbrio, tanto na forma de conscientizar quanto na forma de divertir e entreter: “O rap ganhou mais espaço hoje, até mais do que o funk. Então eu acho que diminuiu um pouco a hostilidade que havia de uma parte do público do rap em relação ao funk carioca. É claro que é questão de gosto e isso não se discute. Ainda tem uma galera


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que não curte, que não acha graça no funk e gosta mais do rap o tempo inteiro; tem outros que já sabem ver o valor nos dois estilos musicais – que são propostas diferentes, mas que têm uma raiz em comum. Inclusive dentro do funk dá pra fazer letras mais conscientes e dentro do rap você também pode falar de coisas de curtição, como é mais o espírito do funk. Hoje em dia o público brasileiro é bem eclético e eu acho que o melhor caminho é esse mesmo.”

Como em todo adolescente, existe no funkeiro uma necessidade de afirmação, e quando a informação se torna ausente, ela acaba se transformando num instrumento de manobra em favor daqueles que comandam a cultura e o lazer nas comunidades, como os empresários. A guerra do hip-hop nacional não deve ser contra o manipulado e sim contra o manipulador. O funk é o único divertimento do jovem favelado carioca. Cabe a nós caminharmos junto a esses irmãos no sentido de aprendermos mutuamente a lidar com nossas diferenças em prol de uma sociedade mais justa para todos.


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256 CAP.05



Essa é uma história em que ninguém quer ser o culpado e ambos defendem suas razões. A verdade é que, embora o rap, o breaking e o grafite façam parte da mesma cultura, o rap foi o elemento que mais se identificou com a causa do povo preto e pobre no Brasil, enquanto que o breaking e o grafite se voltaram mais para a arte, deixando pouco visível seu engajamento político. Talvez seja esta a causa mais aparente dessa “Guerra Fria”. O curioso é notar que, quando um b-boy tem a necessidade de relatar mais diretamente os seus sentimentos e ideais, acaba optando pelo rap como meio de comunicação mais abrangente. É claro que existem pessoas do breaking e do grafite preocupadas com a conscietização das pessoas. Mas, comparadas aos demais, ainda são poucas. O jovem que se integra à cultura hip-hop deve propagar para outras pessoas o que aprendeu, em vez de guardar seu conhecimento para si, na intenção de ser diferente dos outros. É necessário que a cultura hip-hop seja preservada como um todo: tanto o seu lado político-ideológico quanto o cultural. Conversando com alguns b-boys de renome de São Paulo, pude notar que o seu maior descontentamento com o rap está no esquecimento das origens do hip-hop no Brasil. Cabe lembrar que os primeiros MCs foram breakers que se reuniam na Esta-

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Graffiti e Breaking Vs. Rap

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ção São Bento (SP), e muitos writers começaram a carreira no breaking lá antes de pintar também. Mara é a favor do diálogo entre os membros do hip-hop, pois, segundo ela, todos temos uma parcela de culpa por essa desassociação ideológica: “A tão polêmica divisão que se faz entre grafite, break e rap, ela acaba trazendo conseqüências ruins pra gente, pelo fato de que a gente, muitas vezes, acaba inclusive mais uma vez deixando o fato de aprender muita coisa com as experiências que cada um tem. Eu não vejo apenas um culpado nessa história. Acho que na verdade, todos nós temos uma parcela de responsabilidade nesse aspecto, porque muitas vezes a gente acaba deixando passar batida várias oportunidades, de fazer com que essa proximidade role. Há anos que a gente ouve os b-boys falando que tal rapper não é do hip-hop, que os rappers não são hip-hoppers de verdade, porque não fazem a música com breakbeat; aí vem o cara do rap e fala que não tá nem um pouco a fim de ver os b-boys dançando mesmo e que se f...! Eu consigo enxergar o rap como uma voz do povo que grita contra as injustiças, mas eu consigo também encontrar gente no break e no grafite preocupadas essas questões. Pode até ser menos gente que no rap, porque no rap a gente encontra muitos com um puta discurso mas sem compromisso nenhum”, critica. “Se é pra gente ficar só no discurso, a gente acaba não construindo muita coisa. O rap, por trazer essa coisa do discurso, muitas vezes ele vai dar a impressão de que ele é mais comprometido com algumas causas, mas nem sempre é, porque muitas vezes o cara vai subir no palco, vai falar e falar, mas na hora em que ele volta pra comunidade dele, ele não tá nem aí e não quer construir nada”, critica. “O mais interessante é a gente conseguir enxergar essas iniciativas que existem em todos os elementos, de compromisso com o povo pobre e preto, de quem tá no hip-hop procurando uma perspectiva de transformação. Muitas vezes a gente acaba deixando passar batido essa divisão que existe, dizendo que tá tudo bem, tudo lindo, pra fugir do debate, pra não enxergar as divergências. Se a gente for numa festa de rap, vai ser diferente de uma festa de break sim, e temos muito a aprender com os b-boys, porque a gente vai enxergar um


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outro clima. A gente vai enxergar muito mais esse sentimento de irmandade do que nas principais festas de rap que a gente vê hoje, aonde a gente vê muita digladiação, muita treta por nada”, compara. “Então, eu acho que a gente tem que trazer o que há de bom de cada elemento e tentar sintetizar isso, porque o hip-hop que eu conheci é isso! É a síntese de tudo! Em primeiro lugar: a gente não pode ter medo de sentar pra conversar, debater, fora as divergências que a gente tem mesmo, sempre com uma perspectiva de chegar a uma síntese pro melhor caminhar do hip-hop.”

Na opinião do DJ Deco, houve um desequilíbrio por parte do rap, que se politizou demais e não pensou no b-boy. Diminuiram-se os BPMs das músicas, e não se pensou num movimento próprio para que a dança brilhasse em suas performances: “São quatro elementos, e cada um tomou um rumo. Cada um foi cuidar da sua vida”, explica. “Acabou perdendo um pouco da essência, porque começou tudo como meio que junto, né? Principalmente a dança junto com a música. Só que a politização da música, e alguns ritmos também, que são impossíveis de dançar devido aos BPMs, acabaram causando um afastamento. E também, se você faz uma letra extraordinariamente política e põe meia dúzia de neguinho dançando em cima, acaba ficando uma coisa complicada. Você não sabe se é uma música pra se dançar ou pra se ouvir. Então, eu acho que essa dosagem precisaria ser dada no começo. Eu digo no nosso caso, porque eu não sei como isso aconteceu lá fora. Deveria ter sido que, em cada repertório de 15 músicas, no mínimo cinco deveriam ter espaço para dançar. Mas não, começou a ser politizado demais e a dança acabou ficando de fora”, lamenta. “Hoje eu acho que tá mais sério, porque você percebe uma certa antipatia de um com o outro”, considera. “Se você vai numa festa de b-boys, o DJ só toca música americana, Se o DJ toca música nacional, os b-boys todos vão parar de dançar”, critica. “É como se fossem irmãos que nasceram do mesmo pai e da mesma mãe, e hoje em dia não se falam por algum motivo. Tinha que tentar aproximar isso, porque se existem os quatro elementos, têm alguns aí que não estão combinando”, ironiza.


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O DJ Deco também acha que o grafite, desde o nascimento do hip-hop no Bronx, portou-se sempre como uma arte independente, que nunca precisou exatamente da música e da dança pra se fazer presente. Mesmo assim, ele o vê como mais um elemento prejudicado nessa história: “O grafite é a arte visual do hip-hop, só que ele acaba tendo uma abrangência própria. Ele sobrevive por outro caminho, ou seja, não depende da música pra ser feito”, considera. “Agora, pra dançar, você depende da música. Então, hoje em dia você vê que os grafiteiros nem são tão do hip-hop, ou não são do hip-hop, e só estão fazendo por causa das formas, por causa dos traços”, explica. “O grafite também é um que devia tá junto”, considera. “Às vezes ele entra em algum evento, mas você vê que ele entra pela porta dos fundos e não tem a ênfase que deveria ter”, lamenta. “São coisas que se perderam: o DJ acabou ficando porque fica chato sem ele, é meio que obrigatório. Mas mesmo assim alguns ainda conseguem cantar sem DJ”, critica. “Mas o grafite e o break acabaram ficando pra trás, se perderam”, lamenta.

Marcelinho considera o conflito lamentável, que, segundo ele, só ocorreu pela evolução, pela exposição maior e pelo poder de atração do rap sobre o público do hip-hop: “Conforme a coisa foi evoluindo, o rap, claro, tomou mais força por conseguir chegar a mais pessoas. O que já não é o caso do grafite e nem do break, porque não é todo o dançarino que tá se apresentando numa casa noturna, falando numa rádio etc. Se a coisa andasse junto, o show de rap seria um grupo de rap e um cara grafitando, e uns caras dançando break no intervalo da apresentação”, explica. “E essa separação só enfraqueceu, porque um complementava o outro na performance, fazendo uma coisa legal pro público conhecer e interagir mais com o movimento. Aí virou só rap. O grafite, uma vez ou outra você vê. E quando vê, é só grafite, não tem rap junto. É só grafite e não tem b-boy. Então, os três se separaram, até porque quando o b-boy vai dançar, ele não dança em cima de rap e eu acho que a maior cagada foi essa separação.”

Marcelinho também acredita que um dos maiores vilões dessa história foi o próprio rapper.


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“O mais culpado foi o rapper, com certeza, porque é o cara que tem o microfone na mão. E quem tá ouvindo ele acredita no que ele tá falando. A partir do momento que o cara começa a falar que o break não tá com nada, o grafite não tá com nada, aí a molecada vai assimilando isso, e acaba esquecendo mesmo e não dando valor”, explica. “Às vezes o cara fala sem intenção de menosprezar: ‘ah, eu não curto grafite!’ Mas não tem que falar isso. O cara curte rap e curte o movimento hip-hop, e se ele não curte o hip-hop, ele é um rapper e só. Só ouve rap e mais nada? Acho que a culpa tá no rapper, porque é o cara que tem a condição de passar a idéia no microfone, de ‘tá’ chamando o b-boy pra dançar no show, ‘tá’ chamando o cara pra grafitar na hora do show.”

Bonga admite que, embora o b-boy e o rapper se desentendam, o elemento que mais se distanciou do hip-hop foi o grafite: “Eu podia jogar a culpa no rap, no grafite ou nos b-boys. A cultura hip-hop evoluiu muito, só que dispersou demais. A minha base é a cultura hip-hop, e eu ainda vejo nela os quatro elementos. Tudo faz parte de uma coisa só, é como um trem: o b-boy, o DJ, o MC e o grafiteiro, cada um faz parte de um vagão. Todo mundo vê o rap como uma ponta de lança desse trem que sai puxando tudo, mas não é bem assim. Os próprios MCs dos grupos de rap têm que começar a ver o hip-hop como um todo, abrir espaço pro pessoal do grafite, assim como o próprio pessoal do grafite deve abrir espaço aos outros elementos. O grafite hoje no mundo inteiro não tem a ver com o hip-hop, nem todos os grafiteiros seguem a cultura hip-hop”, explica. Não há como negar isso, o grafite é importante na formação do hip-hop e ele faz parte dessa construção. Grafiteiros e b-boys são os originais da cultura hip-hop, a base dessa construção de que o MC também faz parte. O problema é que algumas bandas de rap se distanciaram completamente.”

Para Rooney Yo Yo, os elementos não têm obrigação um para com o outro. O trabalho de colocar o b-boy na pista não é responsabilidade do rapper, mas do DJ, promotor da diversão: “Essa é uma história interessante: dentro do hip-hop, todos nós sabemos que tem o DJ, o MC, o grafite e o break. No Brasil, têm poucas músicas feitas por músicos brasileiros pro b-boy ter o


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tesão. O rapper não incita o b-boy a dançar com a música dele. Hoje surgem algumas pessoas fazendo música pro hip-hop, até alguns grupos de break tão fazendo músicas pro próprio b-boy dançar, e isso tá até sendo bem aceito nas festas. E o grafite, ele tem uma vida própria, parece que é um primo distante da família, mas funciona. A gente passa em qualquer lugar do Brasil, se a gente olhar pra um grafite, quem gosta de hip-hop lembra de hip-hop. Só que o grafite não tem nenhuma obrigação de colar em festa de rap, como o meu rap não tem nenhuma obrigação de fazer música pra b-boy, e o b-boy não tem obrigação de dançar em cima de rap, def music, que é aquele estilo mais lento, porque pra dança, você precisa ter um ritmo um pouco mais acelerado. E algumas vezes você precisa ter uma música certa, acho que o breakbeat veio pra isso. Existem os DJs; eles é que deveriam fazer música pra b-boy. É por aí”, acredita. “O fato é que, se você tá numa festa de rap, você não vê b-boy no palco. Você vai numa festa de b-boy, você não vê rapper cantando. Você vai numa festival de grafite, normalmente tem o DJ tocando e ele toca tudo: rap, breakbeat, tem b-boy dançando, rapper cantando, conta. “Nem sempre cabe ao b-boy chegar, entrar na roda e dançar para entreter. Normalmente, é muito mais fácil fazer isso com música americana, porque o brasileiro não sabe exatamente o que tá sendo dito nas letras, o que não é sempre tão diferente do que tá sendo dito nas letras brasileiras, mas os beats, pelo menos, são um pouco mais empolgantes”, considera. “E a questão do break não levar o rap pra festa, é porque dificilmente você encontra um rapper que tem uma letra que o b-boy gostaria de ouvir, porque ele tá ali pra dançar, e não pra ouvir problema social”, justifica. “Se o b-boy quiser ouvir o problema social, normalmente ele tá na casa dele ouvindo rádio ou põe um CD; tem muito b-boy que ouve rap nacional. Eu acredito também que tem muito rapper que quando chega na casa dele, cansado daquela história, ele pega uma fitinha de break e põe na televisão pra ele assistir!”

Rooney não acredita que esteja havendo um entendimento entre os elementos, do modo como ocorria no início do movimento, mas vê a independência de todos, por conta de necessidades isoladas:


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“Sobre a união dos elementos, eu acredito que cada um tá fazendo o seu papel. É lógico que cada artista tem um direcionamento pra um trabalho. Vira e mexe você vê um artista querendo trazer de volta a cultura, o passado; quando você vê aqueles caras dizendo: ‘back in the days!’. Aqui as pessoas tão entendendo melhor o que é o rap! E que ele tem vários gêneros diferenciados. Muitos deles falam do b-boy, mas não existe ainda uma música assim que pegou na veia. Vale um recado: que as pessoas também poderiam conhecer os b-boys que tão fazendo música de break, e tem muita coisa interessante, que, daqui a pouco, muitas delas vão virar hits no meio do rap tradicional do Brasil.”

Para Nino Brown, a causa principal desse conflito é a ausência do quinto elemento entre os membros do hip-hop: “Quando eu conheci o hip-hop, ele ainda tinha quatro elementos. Agora são cinco. Além dos outros, tem o ‘conhecimento ou sabedoria’. Essa briga entre o rap, o break e o grafite é uma coisa banal. Se você não tem conhecimento sobre a cultura da qual faz parte, por que vai brigar? Eu não consigo ver o hip-hop separado dos outros elementos. Não existe isso! Se ele chegou pra unir todos os elementos, então, por que a divisão? Eu não consigo me ver num debate em que as pessoas dizem: ‘o meu elemento é melhor que o seu!’ O que é isso?”, ressalta. “Então, tem muita estrela pra pouco sol.”

Bad não esconde seu desafeto em relação ao rap, considerando-o o único elemento causador da desunião e alheio à cultura hip-hop: “Apesar de acreditar que muitos grafiteiros não pertençam à cultura hip-hop, por exemplo, tenho alunos que são roqueiros e fazem grafite, como também nem todo breaker faça parte, mas a palavra rap eu já associo a muita violência. É mais fácil abrir o campo pros grafiteiros. Os grafiteiros, querendo ou não, estão buscando a arte. Tirando o throw-up e a pichação, de resto eles fazem arte”, alega. “Os b-boys são os pais da cultura hip-hop. São os únicos que seguram mesmo. Já o rap, não. Ele é simplesmente um mercado, e o interesse dele é só o mercado fonográfico, que dá dinheiro. Não existe mercado pra b-boy e nem pro grafite no


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Brasil. No caso dessa arte, ninguém espera ficar milionário com ela. Já o rap, não, ele busca dinheiro independente do que ele tiver que falar ou fazer”, alega. “Então, se existem coisas erradas no break e no grafite, ainda há como se consertar. Mas no rap já não tem mais o que consertar. Ele tá direcionado mesmo pro mal, pra violência, e é isso que eles querem. A gente batalhou tanto pro pessoal abrir o olho e diferenciar no hip-hop o que é e o que não é certo. Uma das coisas que a gente já entendeu é que o rap é uma música que não dá pra dançar. É impossível dançar com o rapper, e quase impossível ter b-boys e rappers no mesmo baile.”

Ao contrário do que muitos possam imaginar, Mano Brown não deixa de expor o seu gosto e respeito pelos demais elementos, lamentando o conflito entre eles: “É uma outra fita1 que não poderia existir, porque são da mesma raiz. Apesar de que, hoje, quando você fala rap e não fala hip-hop, aparecem 30 juízes te acusando. Mas como eu não tô nem aí, e quero que se f..., eu falo assim: quando eu vim pro rap, eu não conhecia o grafite. Eu vim a conhecer na época do break, em 84. Gostava! Sempre gostei! Meus camaradas que dançavam break, que morreram por terem virado assaltantes depois, dançavam break demais! Até mais do que a maioria que eu vejo hoje. Eles nunca pagaram de nada,2 nunca cobraram direitos autorais pela dança deles. Nada! Artistas que morreram no anonimato. Como vários no Brasil espalhados por aí, que dançam e tão no anonimato, nunca cobraram nada, nem reconhecimento, nem capa de disco.”

Para Brown, o break e o grafite foram os principais fomentadores do conflito. Segundo ele, a causa foi a projeção conquistada pelo rap: “Eu acho que é mais da parte do break e do grafite para com o rap, porque o rap, ele tem mais espaço. Eu acho que tem que existir consenso, um tem que parar pra ouvir o outro. O pessoal do break tem a ideologia formada do jeito deles, eles também não querem dobrar, e do lado de cá também não dobra, e, se ninguém dobrar,

1 Caso. 2 Nunca ostentaram.


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não tem como se aproximar! Ninguém tá errado na fita, eles querem os direitos deles”, admite. “Agora também muitas pessoas que tão pelo rap, nunca dançaram break na vida”, ressalta. “Se tivesse que passar por um estágio pra dançar break e depois ir pro rap, eu talvez não tivesse cantando. O rap é muito mais popular, mais acessível. O hip-hop é do povo! Tem gente que não considera hip-hop uma dança de baile, e é! É música de preto, é dança de preto, é povão, passa o suor, vira festa, gente, multidão... é hiphop! Por que tem que ser o break o representante do hip-hop? Quem inventou isso? Eu não sei! A realidade dos Estados Unidos é uma, aqui é outra! Hip-hop na Jamaica é outro! Não adianta você querer que o hip-hop na Jamaica seja igual ao do Bronx! Querer que no Capão Redondo seja igual ao do Bronx! É outro estilo, outras roupas, outras gírias, outro comportamento.”

Mano Brown apóia a união dos elementos da cultura e comenta o que faz por ela através do Racionais: Não só acredito na união como pratico! Mais pratico do que falo! O Racionais chama grafiteiros pros nossos shows, tem grafite nos CDs, tem grafite em todos os lugares que puder ter grafite! Na minha quebrada tudo é grafitado! Eu compro as tintas, e os manos compram as tintas, porque nós apoiamos! Lá o crime também é a favor do grafite! Lá o grafiteiro não é visto como diferente! É igual! Tá no meio de nós, fica ‘com nós’, curte ‘com nós’, é grafiteiro e é igual a nós! Racionais pratica o hip-hop muito mais do que fala! Taí, vê os CDs do Racionais, o último principalmente!

Do ponto de vista do rapper Magno C-4, o conflito está em fase terminal, por conta da predominância do hip-hop nova-iorquino junto às culturas carioca e paulistana hoje: “O rapper, devido às tendências nova-iorquinas que se introduzem aqui em São Paulo e no Rio, teve uma aproximação muito grande com o grafiteiro. Por exemplo: o Binho, o Brizola, o Juneca [grafiteiros], os caras estão muito mais perto dos rappers hoje do que dos b-boys. Mas isso é recente”, conta.

Como podemos observar na história do hip-hop, cada elemento teve a sua origem individual e isoladamente, sem necessaria-


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mente depender do outro. A idéia de se instituir a cultura hiphop foi justamente para que essas artes criadas pelos jovens dos guetos não se perdessem com o tempo, mantendo-as vivas e fortalecidas através de uma unidade cultural. Magno C-4 reforça esta visão: “O grafite é a parte da cultura mais elitizada que tem. O grafiteiro, em sua maioria, é de classe média. É ex-pichador e começou a grafitar não por identificação com a cultura hip-hop. Era mais uma forma de evolução do vândalo pro artista”, explica. “Já o rapper e o b-boy, principalmente o b-boy, faziam aquilo porque gostavam; o rapper, com a popularização do rap queria ser também reconhecido como artista”, define.

Magno acredita que o rap teve a sua parcela de culpa neste conflito, já que a sua projeção junto ao mercado, também foi mais forte que a dos demais elementos do hip-hop. Magno se mostra decepcionado com a postura dos rappers, mas consegue ver uma luz no fim do túnel através da nova geração que surge no hip-hop: “Alguns diziam: ‘eu faço parte do movimento rap’! Nunca houve o movimento rap”, contesta. “É um bando de ignorantes, que pegaram o bonde andando e não sabiam o que estavam fazendo e falando”, critica. “Devido a esse bando de bobagens desses grupos que estavam em ascensão, isso acabou ofendendo os b-boys, que passaram a não considerar o rap nacional como música apropriada para eles”, justifica. “Só que, graças a Deus, isso tá mudando”, considera. “Tá vindo uma nova geração de MCs que estão começando a cantar, e procurando se informar pra saber o que é o hip-hop. Tá começando a ter uma geração de b-boys que tão percebendo que a música do b-boy não é só o breakbeat, o electro, o funk e o soul dos anos 70. Como houve a evolução do rap, tem que haver a evolução da dança. E a dança está integrada com a música. Esse novo rap está conseguindo unir de novo os outros elementos”, garante.

A grafiteira que assina com o pseudônimo Só Calcinha, residente em Santo André (interior de São Paulo), embora seja bem nova no hip-hop em comparação aos demais, tem uma opinião


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bem madura quanto à questão do territorialismo criado pelos elementos e se mostra contra essa atitude: “No caso do break, o que eu acho, a grande rixa é essa coisa da batida da música, eu vejo muitas pessoas comentarem que o rap em si, ele não beneficia o b-boy pra ele fazer os seus passos e representar o seu lado. No caso do grafite, eu acho que eles dizem que tem um descaso do rap, que não tá divulgando a arte. No caso do break também, o rap não divulga o break. Na minha opinião, o rap se manifesta, assim como o grafite. O grafite não tem que toda hora tá desenhando um rapper ou um breaker. Eu sou totalmente contra! E o b-boy, necessariamente, ele não precisa deixar de gostar do rap, criar até um certo receio em relação ao rap, só porque ele não tem a batida do break”, ressalta. “Eu vejo muita gente falar: eu odeio o rap! Nem sabe por quê! Mas odeia o rap.”

Embora muitos grafiteiros procurem desvincular o grafite do hip-hop, Só Calcinha bate na tecla da oposição, apresentando o seu motivo pessoal para essa impossibilidade: “O grafite eu descobri por intermédio do hip-hop. Eu sempre gostei de arte, toda criança desenha, eu sempre desenhei, só que eu tomei gosto por isso, e a primeira coisa que eu descobri no hip-hop foi o rap. Foi nos salões, indo pra São Paulo, vendo o pessoal dançar na rua. O primeiro elemento que eu descobri foi o rap, o rap nacional, daí eu conheci o americano, depois eu fui descobrir o break andando na rua, vendo o pessoal dançando e o grafite, finalmente. Aí o grafite causou um impacto em mim: ‘putz! É aí que eu quero me inserir!’ Eu queria me identificar com alguma coisa, e eu me identifiquei com a cultura hip-hop. Eu não consegui me ver dentro do rap, e não me consegui ver dentro do break, mas quando eu olhei pro muro, eu vi que com aquilo eu me identifiquei muito”, declara. “Aqui em Santo André tá muito forte, o grafite aqui é muito forte mesmo, tem muito grafiteiro. São grupos de diversos bairros periféricos, muitas crews e a maioria assim tá muito a favor disso: o grafite não tem nada a ver com o hip-hop! Mas, eu não acredito nisso! Porque o grafite não tem como se desvincular dessa cultura”, acredita. “O hip-hop propiciou que o grafite fosse essa manifestação que sai da periferia, do jovem expor seu modo


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de ver a cidade, suas necessidades, seus anseios e tudo mais. Isso não quer dizer que eles tenham que andar o tempo todo juntos.”

Existe uma linha dura entre os b-boys, que defende o hip-hop como uma simples “cultura apolítica”. Já os rappers sustentam o conceito do hip-hop enquanto movimento, trazendo à tona seu lado politizado. Mas qual seria a definição da Universal Zulu Nation, principal modelo de organização do hip-hop em todo o mundo? Segundo ela, “o hip-hop é uma celebração da vida, que desenvolve gradualmente cada um dos seus elementos, para formar um ‘movimento cultural’”. Certa feita, o mais sábio de todos os homens, Jesus Cristo, disse que erramos por não determos o conhecimento. Cabe relembrar que o conhecimento é o quinto e principal elemento da cultura hip-hop. Se o praticássemos com freqüência, extirparíamos talvez por completo esta polêmica de: movimento ou cultura? Entenderíamos, inclusive, que, além dos elementos principais – MC’ing e rapping, writing (aerosol art), as várias formas de dança como breaking, up-rocking, popping e locking, e o conhecimento, responsável por mantê-los todos unidos – existem também outros elementos como o beatboxing, a moda, a poesia etc. Para Afrika Bambaataa – considerado o padrinho da nossa cultura –, o hip-hop não promove apenas o conhecimento a respeito dos seus próprios elementos. Através da Universal Zulu Nation, ele defende conceitos multiplicadores, indispensáveis à formação humana, como “a consciência política, a sabedoria, o entendimento, a liberdade, a justiça, a igualdade, a paz, a união, o amor, o respeito, o trabalho, a responsabilidade e a diversão, a superação de desafios, a economia, a matemática, a ciência, a vida, a verdade de fatos, a fé e as maravilhas de Deus”. O que talvez sirva para enterrar de vez essa discussão absurda entre três importantíssimos elementos do nosso movimento cultural nacional.


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Sabemos que a marca registrada do rap é o DJ aliado ao rapper, formando o que conhecemos como grupo de rap. Mas isso não quer dizer que todos os artistas devam seguir essa formação ao pé da letra. O rap precisa evoluir constantemente. E se formar uma banda faz parte dessa evolução, que problema há? O mais curioso é perceber que quando um rapper dos EUA faz o seu trabalho apoiado numa banda dificilmente nós apresentamos uma objeção a respeito. Então, quem tiver condições de formar uma banda, que forme. Todos têm livre-arbítrio, podem fazer o que quiser. Quem deve decidir essa partida é o público que consumirá o trabalho, e não os grupos, propriamente. A condição de criticar outro artista é muito cômoda. Destruir é mais fácil do que construir. Muitos grupos que ainda não fazem parte de gravadora não têm idéia do que é se profissionalizar no rap. A nossa responsabilidade aumenta em cem por cento depois que somos contratados, exigindo de nós o melhor. E esse progresso pode variar entre uma forma diferente de cantar, passando pela qualidade de produção, a criatividade e a dedicação do DJ, completando-se com a formação de uma banda. Mas se você pode melhorar a qualidade do seu trabalho mesmo sem uma gravadora, vá em frente e não se importe com os comentários destrutivos. O tempo que o colega leva para criticar o seu trabalho é o tempo que ele perde sem adiantar o dele.

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Para Bonga, o que importa é a musicalidade que se pode obter com uma banda. Ele não descarta a importância do DJ na formação do rap, mas acredita que a presença de outros músicos junto a ele traz uma abertura maior no universo musical: “Toda a base da cultura hip-hop é o MC e o DJ, mas o importante é a musicalidade. A banda é superimportante pra gerar mais musicalidade”, acredita. “Percussão, um baixo, uma guitarra, uma bateria são importantes. Se no funk a base sempre foram as bandas, sempre pela marcação do baixo, depois da revolução pregada por Afrika Bambaataa através da música eletrônica, aí simplificou e gerou a cultura do MC.”

Bonga concorda que existe dificuldade em se formar uma banda de rap no Brasil. Ele cita alguns exemplos de êxito entre os rappers americanos e acredita que possamos também alcançar o sucesso, se procurarmos ampliar nossas reações junto aos músicos brasileiros: “A banda do rap é o DJ, mas quando eu falo da questão da musicalidade é o seguinte: boa música tem que ser vista e ouvida ao vivo! Então, nada mais importante do que uma boa musicalidade, eu acho que se sofre um pouco com o diferencial de estrutura e grana do Brasil para com o Primeiro Mundo em relação às bandas”, admite. “Mas, como lá fora, os grandes rappers quando fazem os grandes shows e as suas grandes produções, eles utilizam as bandas pra fazer vários acústicos da MTV, por exemplo. No Brasil existe uma série de músicos bons, existe uma série de experiências interessantes, e o que falta, talvez, seja uma maior aproximação da cultura do rap em si com os músicos. Quer coisa mais linda do que um DJ tocando com um percussionista? Existem bandas, por exemplo, dessa forma: eu ouvi um tempo atrás uma banda chamada Julgados e Culpados, que usava percussionista, baterista, DJ e backing vocal. Maravilhoso! E isso não descaracterizou em nada a apresentação, sendo que o enfoque total era o DJ, mas se tornou uma coisa mais rica”, afirma.

Big Richard se mostra receptivo às inovações no rap à base de banda, e aproveita para ressaltar que os que se opõem a esse


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tipo de trabalho são aqueles que têm preconceito com tudo aquilo que pode fazer sucesso antes deles: “Eu acho que no fundo a gente tem tanta coisa pra se preocupar, por exemplos: a exploração que a gente sofre quando vai comprar um produto importado e a falta de reconhecimento que o hip-hop brasileiro tem no exterior. Fui ao show do Das Efex e do Ja Rule, aqui em São Paulo, e cantavam: ‘eu vim pro Brasil pra ganhar dinheiro!’ E todo mundo gostando e gritando. Eu acho que a gente tem que valorizar o nosso produto, e se o artista se sente melhor trabalhando com banda, baixo, bateria e guitarra, desde que ele faça um som bacana e tenha dignidade, parabéns pra ele”, incentiva. “Eu gosto muito, por exemplo, do Faces do Subúrbio, que é uma banda de rap [de Pernambuco]. Agora, se ele se sente bem, e se sente mais à vontade, e o trabalho dele sai melhor com DJ, na formação de grupo como era nos velhos tempos, também acho legal. Independentemente da forma que você for fazer, se for só com tambor e conseguir tirar um bom som, você tem que fazer um trabalho com dignidade, com honestidade, e do jeito que o seu coração manda. Eu não tenho nenhuma crítica aos trabalhos de banda, acho uma grande perda de tempo do pessoal que fica nessa masturbação mental pra criticar o outro”, lamenta. “No fundo, neguinho tá querendo criticar o outro. Quando você no início tá batalhando um lugar ao sol, e, de repente, você tá fazendo com banda, mas tá na merda, eles não ligam pra você. Mas, se você faz sucesso e estoura: ‘pô, olha lá, fazendo banda...Traidor!’ Esse questionamento em relação à banda é coisa de despeitado”, acredita. “Eu acho que a gente tem de discutir é se o cara faz um bom trabalho.”

Big não vê a formação de uma banda como um distanciamento para o público do hip-hop. Segundo ele, ainda não se pode afirmar que existe um público definido para o hip-hop no Brasil, por que o público brasileiro em geral é extremamente volúvel. Em relação ao custo para se formar uma banda, ele dá a receita: “Não existem barreiras pra quem quer seguir em frente. Se o cara optou por trabalhar com banda, a questão de que é mais caro deixa de existir, ele tem que batalhar, então, um espaço maior,


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um patrocínio... Ele não pode ficar se prendendo, se guetificando naquele discurso de ‘eu não tenho. E se eu não tenho, vou trabalhar com que eu tenho...’ Não! Se eu não tenho, eu vou tentar conquistar, vou tentar criar aquilo que eu não tenho. E na questão de que vai afastar o público, eu acho que a gente não tem um público definido”, declara. “O hip-hop no Brasil, ainda tá crescendo, tá surgindo. Que público é esse do hip-hop? Ele é embrionário! O público do hip-hop é qual? Aquele que fica tomando cachaça em garrafa de Coca-cola de dois litros? Aquele que fala que estuda e tá lá dando dinheiro pra traficante, comprando baseado, se drogando? Ou é aquele que fica imitando os rappers americanos, e não sabe p... nenhuma do que o gringo tá falando? A gente ainda não tem um público formado”, critica. “É muito bom sim que venha, por exemplo, a classe média que gosta de rap, a classe média contestadora, esquerdista. É muito bom que, de repente, as classes A e B apóiem. A gente não tem que discriminar ninguém, até porque é um movimento que parte do princípio de que a gente tem que incluir, e não excluir”, justifica. “Então, eu acho que a gente pode absorver todo tipo de público, desde que você tenha a consciência daquilo que você faz, daquilo que você quer pra você, e não se deixe levar pelos embalismos e pelas modas que virão junto com esse novo público que tá aí se formando.”

Em se tratando de inovação no rap, Mara é totalmente a favor e aproveita para contar sua experiência: “Eu, particularmente, gosto bastante de sons com bandas. Eu aprendi a abrir a mente pros diversos estilos musicais, e para as diversas fusões que podem ser feitas. Sinceramente, há oito anos atrás, eu só ouvia rap e só queria ouvir rap, e nada mais. Hoje eu consigo ouvir rap, jazz, hardcore, MPB, samba... Enfim, muita coisa que acabou me trazendo mais elementos pra fazer música. E eu sou defensora de alguns aspectos das raízes do hip-hop, eu acho que uma apresentação de rap precisa do DJ. Eu sinto falta do vinil, do DJ, do scratch, quando vejo uma apresentação sem eles. Por outro lado, existem muitas outras coisas que a gente pode produzir”, acredita. “A gente fica limitado a produzir as nossas músicas com um padrão pré-estabelecido, mas muita coisa diferente pode ser explorada, e continua sendo rap. Eu tô tendo


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uma experiência com um grupo que vai nesse sentido. Nos anos anteriores, eu sempre toquei no estilo convencional, com MC e DJ, com o grupo CulturalMentes. Agora com o Amandula temos o desafio de conhecer a música como um todo. A gente vem fazendo um som que é rap com influências de ritmos afro, percussões, berimbau... Tem sido muito bom pra ampliar esse leque musical, no sentido de conhecer melhor a música negra.”

Gabriel O Pensador não se opõe à inovação: “Cada um deve escolher o que faz com seu próprio trabalho. Eu, como ouvinte, gosto das duas coisas, principalmente se tiver um conteúdo interessante e criatividade musical também. Criar uma coisa com banda, onde é muito rico o leque de coisas que ela pode executar, é bem legal. O DJ também pode fazer coisas muito criativas sem precisar de uma banda. Depende mais da criatividade do artista, o que importa é o talento mesmo, e não o formato.”

Gabriel, que se coloca como um “democrata musical”, reconhece a dura pena de se manter uma banda no palco: É mais difícil mesmo. Você leva mais gente pra viajar, o custo é bem maior. Se a banda for toda composta de parceiros, como, por exemplo, é o Nocaute, aí tá na batalha junto e divide o que entrar de lucro ou prejuízo. Mas se o rapper quiser contratar uma banda, como é o meu caso, tem que pagar cada músico e aí o custo aumenta. Se for só um DJ, facilita mesmo pra logística da produção, pra viajar e fazer tudo isso.

Marcelinho acredita que o preconceito contra uma banda de rap é uma postura hipócrita. Segundo ele, a formação de banda é ainda mais antiga do que o próprio DJ no rap. Na opinião dele, o público tende a simpatizar mais com a banda do que propriamente com o DJ e, deste modo, o que realmente vale é a qualidade do que se está fazendo, e não como o trabalho é constituído: “Essa história de banda, eu já parto do princípio que a banda... Como eu era do Câmbio Negro, ouvia muitos dizerem: ‘ah, isso aí é banda de rock!’ Eu acho que a gente não tem uma referência ainda de grupos, voltando àquele assunto anterior, que vendem discos de hip-hop, pra dar uma referência pra essa molecada que acha


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que banda não é hip-hop. E também não dá pra falar que é inovação. Banda é a coisa mais velha do mundo, formar uma banda é a coisa mais antiga que existe”, diz. “A inovação mesmo tá na idéia, na letra, no tipo de som. E, assim, o formato da banda é uma coisa que o público já conhece, já aceita melhor, já assimila melhor. No caso do Câmbio Negro, ele tocava em lugares que nunca nenhum outro grupo de rap vai tocar, e isso sempre divulgado como uma banda de rap, e não como banda de rock”, ressalta. “Então, eu acho que a banda abre mais espaço pra você mostrar o som pra mais gente. Se muda o som que o grupo quer fazer ou não, aí é ele que decide. Não é porque eu tô sem toca-discos que o som vai ficar diferente”, afirma. “A banda pode reproduzir muito bem a batida do disco, tem bateria eletrônica também, tem bateria acústica, e eu acho que é um caminho a seguir. Não sei se é o melhor ou o pior, mas é uma tendência. Tem um monte de grupo de rock fazendo rap, e caras que montaram uma banda de rock e começaram a fazer rap. Por que o rap não pode formar uma banda e fazer rock também misturado com rap? Aí depende mesmo de quem tá querendo formar, abrir a cabeça e não se limitar na história.”

Marcelinho não concorda com a tese de que montar uma banda distancia o público do rap. Para ele, o uso de uma banda é atraente tanto para o público do hip-hop como para aquele que desconhece a cultura. Marcelinho acredita também que o custo gerado por uma banda, tanto na sua formação como na sua manutenção, é algo relativo, pois todo grupo tem despesas com equipamento eletrônico, que também não é barato: “O lance da grana influencia até se o cara quiser montar um grupo de rap, pra começar. Pra comprar um par de Technics,1 mixer bom, microfone, a grana vai influenciar em tudo de qualquer jeito”, explica. “A banda, você pode fazer com três: bateria, baixo e guitarra. O músico que, é lógico, tem que ter o equipamento dele. Aí, cara, depende mesmo é da disponibilidade financeira de cada um, mas isso não impede ninguém de nada. Se você quiser tentar, vale a pena procurar os músicos certos pra encarar a história certa com você”, orienta. “Mas esse negócio do público, eu acho 1

Marca dos toca-discos profissionais modelo MK2.


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que isso é medo de mostrar pro público, porque você subestima o público: ‘ah, o público só quer ouvir rap assim!’ Por quê? Ninguém tem a coragem de mostrar diferente, aí se tem vontade de montar uma banda fica nessa idéia de que o público não vai entender, ou seja, o público é burro, então? Ninguém entende nada? Uma banda no palco, o cara vai achar que é uma banda de quê? Uma banda de rock? Se entrar uma banda com uma guitarra distorcida, é lógico que vai virar rock”, admite. “Mas se fizer um som numa linha como a do The Roots,2 vou citar eles porque a gente não consegue discutir essa história aqui no Brasil, porque hoje não tem grupo que faça isso, talvez isso se tornasse mais aceitável no nosso meio. Então, quem fazia era o Câmbio Negro, Pavilhão 9 e o Faces do Subúrbio, assumidamente banda, mas todas com influências de rock e com DJ. Mas isso também não é exclusividade, porque foi uma idéia que muitos seguiram como Planet Hemp, O Rappa, Charlie Brown Jr., que, depois de terem visto essas bandas de rap com DJ, vieram também assim”, conta. “O DJ já tá inserido na parte musical como músico, os caras já querem aprender a fazer scratch, enquanto eu quero aprender a tocar teclado, o tecladista quer aprender a fazer scratch. Então, tem a questão da coragem, porque o cara peitar uma banda não é fácil, financeiramente. Com banda é mais difícil, com certeza, mas vai-se encontrar mais facilidade pra começar o trabalho eu acho, porque há mais lugares que tocam bandas, mais festivais, então, eu acho que têm mais possibilidades de trabalho.”

Rooney aproveita para explicar que o rap não surgiu com tocadiscos porque quis, mas por causa das condições da época: “O hip-hop já surgiu com o toca-discos por causa do custo. Não é muito diferente na favela! Na favela, não há condições de colocar uma banda, que nem é feito no samba. O samba é uma coisa que tem mais de cem anos, e todo mundo conhece, desde a minha avó até o meu filho. O rap é uma coisa que não tem 20 anos no Brasil. O toca-discos já é caro, imagine, então, banda, toca-discos e toda uma infra-estrutura? Mas eu sou a favor de os MCs fazerem uma fusion.” 2 Grupo de rap afro-americano já citado, que se tornou conhecido pela formação de banda sem DJ, sem perder a essência do som original de rap.


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Para Bad, se a idéia das bandas não retornar, os samples se tornarão repetitivos: “Essas opiniões de se é correto banda, se é correto grupo, a coisa nasceu do seguinte: o pessoal pegou uma música, sampleou e reformulou. É como se pensasse: essa música é bonita, mas ela não traduz o que eu quero dizer, então, eu vou adaptá-la. Só que isso aí foi de 1978 pra cá. Já samplearam quase tudo; mais uns 10 anos e vão acabar com as músicas que existem. Então, se ninguém juntar uma banda e tocar coisas novas, criar músicas novas, vai se tornar repetitivo”, afirma. “Por exemplo, não é nenhuma novidade samplear James Brown. ‘Pô, James Brown de novo?’ Tem gente que sampleia o que já foi sampleado”, critica. “Tá na hora de as pessoas se juntarem, darem valor e oportunidade pro músico, e começarem a criar músicas novas, pra que, daqui a 20 anos, se comece a samplear essas músicas.”

Bad acredita no progresso do rap no formato de banda. Para ele, esse aspecto de que seria caro manter o padrão de banda é mito, e essas questões geralmente são levantadas por uma minoria do rap que tem preconceito contra quaisquer outros estilos e gêneros musicais: “Eu trabalho com música e também conheço muitos músicos que se matam durante a semana, quinta-feira até as quatro da manhã, e depois vão direto pro trabalho. O cachê do músico não chega a ser exorbitante. Até pro ensaio, vou dizer pra você que já vi muito músico bom, e até maestro, que pra ir num ensaio cobrava 10 reais pra poder pautar as músicas e coordenar”, explica. “É um exagero dizer que é caro o cachê de um músico. Eu conheço muitos músicos bons mesmo que, vira e mexe, tão na televisão acompanhando uma banda ou outra, e ali tão ganhando um bom cachê. Fora dali, ele ganha 30 reais na noite e, muitas vezes, tá trabalhando até de graça”, conta. “Já o público pode ter estranhado muita coisa, por exemplo, o rap, que deu uma guinada: o público que antes era do hip-hop, agora não é mais. Então, que seja criado um novo público. Público existe, e o que falta é criar novas músicas, porque todas elas estão se parecendo umas com as outras”, analisa. “Essa tribalização é só para alguns. Você vê muito cara que curte rap em


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outras festas também. Eu sou b-boy, e curto muitas festas que não têm nada a ver comigo”, comenta. “Se não abrir esse leque, vai ficar todo mundo numa tribo só.”

Suave apóia as inovações no rap: “Quem é que não lembra da música do Run DMC com o Aerosmith, ou o Public Enemy quando fez com banda? Eu acho que o rap tem que deixar de falar que começou só com o DJ e o MC. Você pega hoje aí o The Roots, que tem músicos, e eles fazem um som como se fosse uma caixa de sampler. Então, você fazer um som com músicos, isso mostra o seu profissionalismo, a sua maturidade sonora, e eu acho que as pessoas têm que começar a perceber, que se você começar a montar um show só com DJ ou só com MC fica aquela coisa: tá muito vazio pra um palco. Você tem que botar gente, tem que botar músico, aproveitar que todo mundo pode somar, em vez de falar aquela coisa: ‘rap com banda não é rap!’. Tem muita banda aí que não conseguiu nem o público de rock, e nem o público de rap e ficou em cima do muro, como a gente diz. A gente tem que incentivar se uma pessoa quer tocar com banda”, defende. “O importante é aquela coisa da mensagem e, às vezes, da levada da pessoa, se aquilo te faz dançar, te faz pensar e isso se pode fazer com banda, com DJ ou só no pandeiro, e essa discussão é besteira.”

Suave também fala sobre a questão do custo para a formação de uma banda: “Eu vejo que muita gente também não considera o rap música. Acham que é apenas um DJ colocando uma base instrumental, e o MC cantando por cima. Então, eles não valorizam pelo fato de acreditarem que não existem músicos. Eu discordo! Eu acho que o DJ é um músico, o MC pode soltar uma melodia, e isso já mostra musicalidade. Quanto à questão do custo da banda, é lógico, quanto mais profissional você quer a coisa, mais tem que pagar”, admite. “Se você quiser uma guitarra, uma bateria, por exemplo, como o Bate Lata, que a gente fez até um som com eles,3 eram

3 Esse fato ocorreu quando Suave pertencia ao grupo Jigaboo, extinto grupo de rap que tinha em sua formação além de Suave, o DJ Deco e o P.MC.


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meninos de rua que juntaram umas latas e fizeram um som legal, cantando até rap em cima. Mas aqueles que chegaram ao ponto de terem shows com banda não devem ser menosprezados tampouco discriminados pelos rappers que estão acostumados a só ver o MC e o DJ, porque não deixa de ser um som verdadeiro.”

Mano Brown é a favor da formação de bandas no rap. Acredita também que a maior dificuldade é a falta de dinheiro para se montar tal estrutura, e não vê o público do rap como um obstáculo, pelo contrário: “Eu já fiz apresentação com banda! Tem como. Eu acredito que pode ser bem feito! Mas me impressiona muito mais um rap com DJ. A primeira coisa que eu vi no rap foi o DJ, e não a banda. Marcou a minha infância, e é o que eu amo! Agora, eu não discrimino a banda. Mas o público de hip-hop que hoje ouve rap está entendendo um pouco as diferenças que têm de um estilo de rap pro outro, querendo ou não, o rap veio do funk, que usava banda. Agora a primeira idéia que é lançada, é a do dinheiro; a estrutura do rap brasileiro não tem como pagar banda pra tocar nas festas. Essa é a primeira verdade e a maior delas”, considera. “A distância que tem é a financeira mesmo! Músicos com vontade, existem! Boa vontade do público de ouvir uma música, também! Não existe esse preconceito pesado. Os mais conservadores não gostariam, mas não é uma coisa que chegaria a atrapalhar o desenvolvimento de uma banda. O problema é o dinheiro mesmo.”

Para o DJ Deco, trocar os toca-discos por instrumentos e músicos significaria mais do que uma inovação. Significaria a perda da identidade do rap: “Eu acho que alguns DJs fazem parte de algumas bandas. Falo isso até porque já toquei bastante com o Charlie Brown Jr.,4 gravei dois discos, fiz turnê com eles. Acho legal ‘tá’ junto, mas rap não pode perder a característica principal dele, que é a p ­ rogramação das batidas”, justifica. “Por mais que uma banda tire o som de um rap, nunca vai ter a essência de como tudo começou no passado. É difícil você mudar a característica de uma coisa. É a mesma

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Banda de rock nacional famosa entre os adolescentes.


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coisa que você começar, daqui pra frente, a querer fazer samba numa bateria programada”, exemplifica. “Trocar 280 pessoas tocando por uma programação de bateria. A mesma coisa é o rap. É legal fazer outros gêneros, eu já gravei um monte de outras coisas assim, tipo Rita Lee, João Jr., o próprio Charlie Brown e outros por aí”, declara. “Eu acho legal pelo fato de estar se fazendo um intercâmbio, que a gente não pode ser uma coisa fechada no meio da música” reconhece. “Não pode querer fazer disso uma tendência, porque eu já vi vários músicos falando que uma música programada não tem alma, e eu acho que não é bem por aí”, contesta. “Na minha geração, muitos são testemunhas de que, quando começou a surgir o rap, as músicas gringas começaram a chegar e a gente só queria saber daquilo. Esquecemos que existia qualquer outro tipo de música”, relembra. “Eu acho que mais do que alma, o rap tem essência e ele tem a nossa linguagem”, justifica.

Algumas bandas que compõem o cenário do rap nacional justificam a sua formação como uma inovação, afirmando que jamais perderam a sua essência hip-hop. Deco discorda, alegando que esse discurso é uma forma de ser aceito pelos meios de comunicação: “É uma tendência daqui, do Brasil. Uma forma de buscar um refúgio no mercado musical. Você não vê nenhum rap tocar nas grandes emissoras de rádio ou TV. Por mais que os caras critiquem, eles também gostam de estar nas emissoras, e de ouvir as músicas tocadas naquelas emissoras, e ganhar dinheiro como as bandas de rock”, afirma. “Eu sei de vários aí que estão ganhando dinheiro como as bandas de rock”, afirma. “Eu sei de vários aí que reclamam: ‘a gente faz, faz, faz e não é reconhecido como artista!’ As bandas vão e tocam, têm os seus shows, os seus cachês, e o rap não tem”, justifica. “Então, é mais como buscar uma saída do que como uma coisa que vem do coração mesmo”, considera. “Eu já trabalhei com banda, tenho música com banda no CD do Jigaboo, mas não é a nossa cara. A nossa cara é o rap como ele é”, afirma.

Deco não descarta a possibilidade de uma banda de rap dar certo, mas acredita num distanciamento considerável do seu


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público de origem. Ele também considera uma descaracterização do rap com essas inovações: “Podem dar certo, mas vão ser caracterizados como rap só pro público que é não é do rap”, considera. “Por exemplo, eu gosto de uma pá de coisas feitas com banda, mas eu consigo separar aquilo do rap. Por mais que o vocal seja rap, a base não sendo eu não considero rap”, afirma.

Deco também alega que o custo gerado com uma banda ainda não condiz com a realidade do rap: “Quem já tocou com uma banda sabe disso. A estrutura de que você precisa pra colocar uma banda no palco tá muito longe daquilo que se oferece pro rap, que são alguns microfones e dois canais pro mixer”, explica. “Quer dizer, se começar a enfiar isso onde é feito o rap, já vai ter que mudar tudo”, considera. “Porque com o cachê que se paga pra um grupo de rap não paga os músicos da banda.”

Como vimos, as opiniões se dividem no rap nacional, deixando no meio do caminho a polêmica sobre como manter uma banda. Mas o que Afrika Bambaataa pensa acerca dessa idéia? Em entrevista à MTV Brasil, ele declara: Hoje em dia virou um negócio. Todos querem fazer rap pra ganhar dinheiro fácil e esquecem da cultura. Algumas bandas mandam o DJ embora, ficam com um rapper e trabalham com fitas DAT. Temos que manter toda a cultura unida. Mesmo numa banda, é preciso um DJ como integrante.

Percebe-se, portanto, que a idéia de banda não é algo descartável. A principal preocupação dos formadores de opinião do hip-hop é a preservação da imagem do DJ como elemento identificador da nossa cultura junto à nossa música.


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Em razão da forte predominância do funk no Rio de Janeiro, muitos estados não contavam com a existência do hip-hop carioca. Com o passar do tempo, no entanto, o Rio conquistou sua notoriedade, lançando para o Brasil trabalhos de alguns artistas importantes, através de coletâneas e álbuns exclusivos, além de receber artistas de outros estados para shows. Mesmo com todo o barulho feito hoje no Rio, seria prematuro afirmar que o hip-hop carioca já atingiu a maturidade. Trata-se de uma cultura em transição, em crescimento. A maioria ainda não conseguiu enxergar sua importância dentro do movimento. A responsabilidade não deve ser um capricho individual. Ela deve se basear no senso próprio de cada um e no respeito. Alguns de nós tendemos a anunciar na mídia que o estilo do rap carioca é diferente dos outros estados. É óbvio que grande parte da nova geração do Rio está mais preocupada com as rimas improvisadas e com as festas, o que certamente se deve ao fato de a maioria dos rappers cariocas não ser oriunda de favela. No entanto, quem mora no caos se sente na obrigação de cantar a verdade que vive, e isso acaba provando de uma vez que o rap carioca é composto por estilos variados, não sendo tão diferente dos demais lugares do país.

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Identidade do hip-hop carioca

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Para Big Richard, o carioca tem a característica de se expressar de acordo com o ambiente em que ele vive. Até o clima da cidade influencia diretamente o estilo do movimento no Rio: “Eu acho que essa coisa não é assim, e até mesmo os cariocas, pregam como se fosse, mas não é a identidade do rap carioca: é a diferenciação do carioca pro restante dos brasileiros”, explica. “O Rio de Janeiro é uma cidade que foi capital do Brasil, é uma cidade onde começou, por exemplo, a luta pelas eleições diretas, é uma cidade que sempre efervesceu com movimentos contestadores, políticos e tudo o mais. E dentro do hip-hop não poderia ser diferente. Mas dificilmente você vê no Rio o cara do hip-hop com aqueles casacões que você vê em São Paulo, com a touquinha e a cara amarrada. Isso até existia na nossa época, porque a gente ainda não tinha noção de construção de identidade. Mas o carioca anda de bermuda, tênis sem meia, de chinelo, e até é um hábito que perdi muito desde que vim morar em São Paulo”, ressalta. “Então, essa coisa da identidade do rap carioca está intrinsecamente ligada à identidade do próprio carioca, uma coisa mais descontraída, com um espírito de união e de comunidade mais forte, diferentemente de outros lugares. Isso não significa, como muita gente costuma dizer, que o rap carioca é um rap mais bobo, ou que é menos politizado. Acho que não, é uma forma de ver o mundo diferente”, considera. “Apesar do mesmo objetivo, que é caminhar diferente.”

Por outro lado, o Rio é uma grande metrópole e, por isso, sua realidade diante da violência e da miséria não é tão diferente ou mais amena em relação a outras cidades. Porém, no âmbito musical, a situação é bem diferente. São Paulo, por exemplo, possui um estilo de rap mais comprometido com as causas sociais. Big Richard explica que essa diferenciação do rap no Rio se deve a uma geração que, ao contrário dos outros estados, teve seu primeiro contato com o movimento através da tecnologia. Algo que está muito longe das condições de uma comunidade carente carioca: “Se você for ver hoje o lado mais forte do rap carioca, você vai ver o rap feito pela classe média”, ri. “Então, a classe média, ela


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tá contente com o que tá acontecendo; ela não é tão afetada com o que tá acontecendo no Rio de Janeiro como eu, que sou do Rio Comprido, como você, que é da Cidade de Deus. E o lado que mais se destaca hoje no rap carioca é o rap feito pela classe média, porque é justamente quem tem a possibilidade de entrar num estúdio, fala inglês, navega na internet, se comunica com o mundo, tem o computador que tem o gravador de CD, dentro de casa mesmo já faz 10 CDs e manda pras rádios comunitárias, manda pra São Paulo etc. E aquele pessoal que tá lá no morro, que tá no subúrbio carioca, não tem tanto essa possibilidade”, explica. “Toda essa galera que eu conheço e faz o rap mais politizado, das comunidades do São Carlos, do Salgueiro, de Madureira, já passou pela ATCON ou já ouviu falar nela. Era o celeiro do rap político carioca. Agora, se você for ver o pessoal que faz o rap mais festivo, e não é nem crítica, não, acho que cada um faz rap ao seu jeito, porque ele não tem dono, é o pessoal que não teve essa ‘base histórica’ do Rio de Janeiro; conheceu o hip-hop porque virou moda. Ou pelo Wu-Tang Clan ou House of Pain,1 que fizeram muito sucesso no Rio. Muitos eram skatistas”, conta. “É uma cultura de rua e o Rio de Janeiro é muito grande. Tem gente que deve ‘tá’ fazendo coisa boa, e que a gente ainda não teve a oportunidade de conhecer.” 1 Grupos de rap americanos que marcaram a geração 90 no Rio e não tinham um compromisso político como o Public Enemy.



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Em 1998, o rap nacional ganha voz nas celas cariocas, transformando vidas consideradas irrecuperáveis pela sociedade. Nesse mesmo ano, a Casa de Detenção do Carandiru se torna plataforma de lançamento para talentos até então desconhecidos e inesperados pela sociedade. Entre os times organizados de futebol, grupos de pagode e evangélicos, o rap passa a ser mais uma alternativa positiva de reação à dura realidade de quem vive sem esperança. CDs e clipes gravados no Carandiru conseguem atrair uma gama considerável de público do outro lado dos muros altos, apagando um pouco o estigma negativo da população carcerária. A maior prova desse progresso se faz presente no presídio de segurança máxima Bangu I, no Rio de Janeiro, de onde surgem mentes convertidas pelas pregações do rap, resultando numa compilação musical com o apoio de alguns artistas importantes para o movimento. Talvez a adesão carcerária ao rap em alguns presídios possa representar mais uma forma eficaz de recuperação para detentos, dando a eles uma nova oportunidade através da música e influenciando a juventude da comunidade de cada preso que adere ao movimento.

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A essência do hip-hop baseia-se na sabedoria e no respeito entre as pessoas, independente do seu credo, cor, raça e sexo. Mas se a teoria da cultura hip-hop fosse constantemente praticada, nós não teríamos escrito este livro. Ao contrário de algumas organizações sociais africanas em que a mulher tem um papel extremamente importante, dividindo as responsabilidades do seu lar ou de um Estado ao lado do homem, ou até mesmo governando uma nação, a cultura brasileira tem origem patriarcal. Mesmo apresentando uma proposta contrária aos tabus da sociedade brasileira, o hip-hop nacional não conseguiu superar o seu lado machista. Antes de fazermos parte de um movimento de resistência, fomos criados por nossas famílias, que seguem passivamente a cultura dominante, que prega de forma sutil o poder do homem na sociedade. Da mesma forma que aprendemos que somos superiores às mulheres, as mulheres aprendem a ser submissas aos homens. Esse costume contribuiu fortemente para a desconstrução da idéia de que a mulher é instrumento de apoio para o desenvolvimento da sociedade. Big Richard explica que por mais que muitos de nós se esforcem para ser diferentes no hip-hop, ainda refletimos muito do machismo da sociedade. Aproveita também para apontar outro

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aspecto que, segundo ele, demonstra um péssimo hábito em nossa postura questionadora, porém contraditória: “A gente vive dentro de um país machista, e muitas vezes a gente acaba pregando uma coisa, o não-preconceito, a inclusão, e fazendo totalmente diferente em relação às mulheres no hip-hop. Até hoje, já faz tempo que tem o hip-hop no Brasil estabelecido, isso é uma questão muito delicada”, considera. “Se você vem de uma região sem acesso à informação, à cultura, como são as periferias no Brasil, você vem muito fechado, muito bronco, na maioria das vezes. E aí você começa a se destacar, fazer sucesso ali no seu meio, e a ser assediado por várias mulheres. E as mulheres também têm o seu porquê de ser assim. Não é porque são cachorras ou vagabundas, nada disso. Elas também foram criadas e induzidas a isso”, explica. “E a primeira relação do hip-hop com a mulher é o homem fazendo sucesso e querendo comer todas as meninas. Aí vem a segunda relação: a menina cansou de ser comida, desculpe a expressão, cansou de ser usada e não foi pra lugar nenhum, e descobre que tem potencial pra fazer aquilo também, e conquistar o lugar, não como uma mina que fica andando atrás do cara, mas uma mina que fica andando do lado do cara. Aí começa uma grande guerra, né? Por quê? Porque você começa a abrir espaço pras mulheres, e isso aconteceu, por exemplo, lá na ATCON, onde todo mundo queria as Damas do Rap perto: umas negas gostosas pra todo mundo passar o rodo”, ri. “Aí pouca gente ou quase ninguém conseguia; as minas se impunham também, porque tinham a cabeça formada, tinham a sua afirmação consistente, e aí era um problema sério pra alguns membros da ATCON que tinham uma mentalidade machista. E isso é um problema sério até hoje, em se tratando de sociedade”, lamenta. “Isso é uma questão que só o tempo vai mudar: a mulher trabalhando pra mudar essa situação, como todos os discriminados têm que trabalhar pra mudar a sua situação. Mas a gente também tem que começar a rejeitar esses enlatados que nos chegam, esses clipes em que a mulher tá lá balançando a bunda. A gente tem que mudar pra não começar a copiar, como muito rap tupiniquim copia. A gente copia os gringos fazendo as músicas contra a mulher, chamando ela de cachorra e mulher vulgar”, critica. “Então, a mulher, batalhando,


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não tem nenhuma diferença a não ser que nós somos de sexos opostos”, finaliza.

Pode soar um tanto machista a maneira como o rapper Magno C-4 opina sobre as mulheres do movimento. Mas, segundo ele, da mesma forma que existem homens que desempenham erroneamente o seu papel no hip-hop, as mulheres também não podem ficar de fora das suas críticas. Magno acredita que a mulher que se vitimiza no hip-hop procura um subterfúgio para justificar a sua falta de competência dentro do que ela se propõe a fazer: “Quantas MCs boas você conhece? Não enche os cinco dedos da mão”, ironiza. “Agora, quantos MCs você conhece? Enche os dedos das mãos, dos pés! E a ladainha é sempre a mesma: que a mulher é discriminada, que o mundo é machista. Eu acho que o espaço e o respeito têm que ser conquistados com trabalho, esforço e respeito mútuo”, justifica. “Não adianta ficar dizendo aos quatro ventos que a mulher não tem oportunidade, que a mulher não tem espaço. O espaço e a oportunidade serão galgados com o talento”, define. “A história do rap mostra muito poucas MCs de talento, mas muitas oportunistas. Por exemplo: elas falam mal das minas do É o Tchan!,1 mas fazem pior”, critica. “Pra gravar ou cantar em algum lugar, elas são capazes de chupar o p... de todo mundo!”

Magno C-4 alega que no hip-hop não existe a ala machista e que, ao contrário do que muitas mulheres dizem, o número de incentivadores é bem superior ao de reprovadores. O que não falta é homem disposto a ajudá-las: “Quando uma b-girl entra na roda, todo mundo grita, bate palma e assobia! Quando sobe uma mina no palco, ela pode ser a pior que for, todo mundo bate palma! Todo mundo vibra! A questão é: falta de talento. Quando a mina fala que vai cantar, todo mundo se oferece para ajudar. Quando rola maldade, é falha de caráter pessoal, tanto da pessoa que se oferece a ajudar quanto daquela que quer ser ajudada”, observa. “Já vi muitas minas que vão treinar para ser DJ, ou b-girl, ou MC, com muitos caras de caráter i­ rreparável”, 1 Grupo de axé music, que investe na sensualidade da forma de se vestir e dançar de suas dançarinas.


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adverte. “Esse lance de elas acharem que o hip-hop bate de frente com elas, é o contrário: elas é que batem de frente com o hip-hop”, ressalta. “Igual àquela ladainha dos anos 70: gritar e fazer passeata... Se você provar que é capaz, você vai conseguir”, afirma. “Da mesma forma que a mulher consegue ser diretora de uma multinacional, se você tiver competência, você vai ser uma excelente artista e vender um milhão de cópias”, afirma. “Se você tiver talento e personalidade, não há quem segure!”

Quando o assunto é mulher, Mara não mede palavras. Como uma metralhadora, dispara opiniões concisas, demonstrando que é muito pequeno retratar o machismo no hip-hop, quando o problema é algo incutido na sociedade da qual fazemos parte: “Eu já participei de muitos debates sobre a mulher no hip-hop, e a questão de gênero no hip-hop. Não tenho problema nenhum em ser uma das pessoas chatas que vão querer discutir isso constantemente. Muitos vão argumentar: ‘não, mas a gente já discutiu isso no debate do ano passado!’ Mas precisa continuar discutindo, porque é uma questão que não tá resolvida. Em primeiro lugar, é importante salientar que o hip-hop tá inserido nessa sociedade; ele se caracteriza como um movimento de contestação e aí algumas parcelas do hip-hop vão além da contestação, vão construir, se organizar politicamente, socialmente. Mas, queira ou não queira, a gente faz parte dessa sociedade e muitas vezes a gente vai reproduzir o que essa sociedade nos coloca”, explica. “Uma parcela do hip-hop vai se dizer anticapitalista, mas a gente vive no capitalismo e, muitas vezes, cai em muitos vícios em que o capitalismo nos coloca. A gente vai bater de frente com o racismo, mas nem sempre é uma questão tão bem resolvida dentro do hiphop. E aí, quando a gente trata de machismo, vai ser bem complexo também, porque o hip-hop reproduz esse machismo da sociedade de uma forma muito intensa. Se não fosse essa possibilidade que o hip-hop me traz de questionar, e saber, e querer discutir, eu não teria questionado essa reprodução do machismo no hip-hop. Talvez eu nem estivesse mais nele”, admite. “A gente vai ter inúmeras formas de machismo no hip-hop, desde as mais sutis até as mais grotescas. Então, partindo das mais grotescas, a gente sabe que o rap vai trazer isso na sua mensagem, muitas vezes com discursos


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que colocam a mulher como a mera vadia, que não presta, enfim, todos aqueles estereótipos da vagabunda, ou o estereótipo que a polariza, como o da mulher santa, chegando a parecer que existem apenas dois tipos de mulheres: aquela que é a santa Virgem Maria ou a p... Madalena”, ironiza. “Só esse elemento, pra mim, já é muito complicado, porque é um dos aspectos mais difíceis de a gente debater até hoje: o que é padrão de comportamento sexual e quem define o padrão de comportamento sexual de cada pessoa? As mulheres não têm o poder pra julgar o comportamento sexual dos homens! Não conseguem fazer este questionamento. Eu acho que nem devem também, porque essa coisa do comportamento sexual é pessoal. Por outro lado, a gente reproduziria essa coisa da sociedade de que o homem pode tudo. E aí, ele faz tudo o que quiser, inclusive desrespeita. Algumas coisas também que passam batido: se o cara violenta a mulher, isso fica dentro de casa”, alerta. “O estilo de vida da mulher vai sempre ser questionado, e aí cabe a reflexão: se a gente tá reproduzindo isso que essa sociedade machista e patriarcal nos coloca, então, vamos entender essa sociedade? Acho que é o primeiro passo. A gente não pode partir simplesmente do hip-hop, porque a gente pode cair no grande erro de dizer simplesmente que o hip-hop é que é machista. E criar uma grande guerra entre os sexos, dizendo que os homens do movimento é que são os grandes culpados de tudo. Então, vamos tentar entender o que é essa grande sociedade machista em que a gente vive! A partir daí, a gente vai passar a enxergar o papel da mulher na história, não só do Brasil, em que a gente vai ter inúmeros exemplos do que representavam as mulheres na formação dos quilombos, na resistência das senzalas, na Casa Grande, qual foi o sofrimento da mulher nativa e também da mulher africana, que foram estupradas. Porque, quando a gente fala da história do negro no Brasil, isso passa despercebido”, lembra Mara. “É uma reprodução da sociedade em que a gente vive. Se olharmos para a nossa história, os grandes nomes que vamos enxergar são de homens. A gente reproduz isso. Quando a gente fala de Palmares, a gente só fala de Zumbi, a gente fala de resistência à escravidão e a gente não fala de Dandara, Anastácia, Chica da Silva. Acabamos não tendo contato com as sociedades


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matrilineares da África, que são exemplos reais de sociedades que existiam sem a presença da opressão. Tudo isso é oculto”, lamenta. “Além da história da mulher no Brasil, existem muito mais exemplos. O que é o Dia Internacional da Mulher hoje? Uma data utilizada pelo capitalismo pra você dar presente pra sua namorada, noiva, esposa, mãe. Simplesmente um dia pra vender! Mas qual é o conteúdo desse dia? Vamos tentar achar a história disso? A gente vai encontrar a história de mulheres que foram queimadas nas fábricas, porque reivindicavam melhores salários”, conta. “Se for resgatada toda a história da humanidade, a gente vai enxergar o papel fundamental das mulheres. Aí se torna muito pequeno este questionamento: a fulana saiu com sicrano ou saiu com beltrano...! Porque não é nesse mérito que eu quero entrar! Fulana transou com o cara de tal grupo, depois saiu com o fulano de tal! Isso é muito pequeno, levando em consideração o papel da mulher em nossa sociedade. Qual o papel que ela já cumpriu, e que não se enxerga, e qual papel que ela cumpre hoje e qual ela pode cumprir?”

Mara acredita que a mulher compactua com o exercício do machismo no hip-hop: “Tem uma série de coisas que, pra mulher, torna complicada a sua participação em qualquer movimento, enfim, em qualquer ação na sociedade. Em virtude do machismo, muitas mulheres acabaram desistindo, e desencanando. E por conta de outros fatores também. A mulher, quando engravida, tem que ir pra casa cuidar do filho, e o homem, quando é pai, continua a vida dele numa boa. A gente não conseguiu resolver esse problema ainda. O que existe de mulheres, que, quando engravidaram, tiveram que parar de cantar pra virar dona-de-casa, e não conseguiram colocar em prática aqueles discursos que elas traziam nas músicas delas, contra o machismo e a favor de independência da mulher”, explica. “O machismo prejudica muito isso, mas, por outro lado, também não quero cair no erro de dizer que os homens nos tiraram do movimento, e que nós somos coitadas. A partir do momento que a gente disser que somos coitadas, apenas vítimas, a gente tá dizendo também que a gente não tem potencial pra reverter isso. Não podemos cair naquele discurso: ‘por favor, deixem um


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grupo de mulheres tocar num evento! Eu sou uma pobre coitada! Eu tenho três filhos pra cuidar! Apesar de ser mulher, eu também posso fazer hip-hop!’. Não são só os homens que reproduzem esse machismo, nós mulheres também ajudamos a reproduzir esse machismo no hip-hop. A mulher precisa enxergar o potencial transformador que ela tem. Os homens também vão ter um papel fundamental nessa história toda, porque, em primeiro lugar, eles precisam reconhecer as vantagens que eles têm nessa sociedade, proporcionadas pelo machismo, pra então poder romper com esse comportamento”, acredita. “Queira ou não, os homens foram condicionados a ser machistas porque isso traz uma ou outra vantagem pra eles, apesar de também trazer malefícios. A sociedade machista diz pra ele que ele tem que ser o machão. Diz que ele tem que proteger a cria dele, o produto dele! Então, a própria mulher vai cobrar isso dele também! A gente precisa enxergar esse global, esse todo, pra poder perceber quais os malefícios e os benefícios que isso traz ao homem e à mulher, no sentido de que todos nós somos responsáveis por mudar isso. Então, pra enxergar de fato que não é somente dizer que os homens são os culpados, é a gente entender que tudo isso existe pra manter essa desordem, que é o proveito que o capitalismo tem de exploração dupla da mão-de-obra da mulher, e quem vai reproduzir isso é o oprimido. E só rompendo com isso é que a gente vai dar os primeiros passos pra transformar.”

O DJ Marcelinho acredita no potencial feminino em quaisquer áreas, sob qualquer aspecto. O que ele realmente não aceita é que a mulher no hip-hop não se dispa do machismo já existente na sociedade. Para ele, o fato de muitos homens as tratarem de maneira paternalista, e esse comportamento ser aceito por muitas, é machismo e deve ser combatido por elas: “A mulher no hip-hop agora está em igualdade, como em todas as camadas da sociedade, elas estão cada vez mais trabalhando em empregos que eram de exclusividade dos homens. Você, por exemplo, quando pega a estrada e passa pelos pedágios, quase todas são mulheres trabalhando agora. No rap, é lógico que, quando elas conseguem o espaço delas, elas tão conseguindo a linha que os homens fazem. Aí eu acho que elas têm que tentar


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buscar a originalidade que os homens fazem, e aí conseguem um certo espaço. O que eu acho errado, porque elas são mulheres, é o lance de ‘tá’ usando calça larga, cabelo preso... Porque se é mulher, ela tem que utilizar o artifício que ela tem como mulher pra se destacar. Ela não tem que ser igual a um homem, ela tem que ser uma mulher”, critica. “Então, eu já acho que elas pecam por causa disso. Não todas, algumas fazem a diferença, mas a grande maioria acha que se subir no palco com uma minissaia vira p.... Eu não entendo esse pensamento até hoje. Isso é pensamento de macho, e não de uma mulher que tem consciência do seu próprio corpo e da sua condição”, diz. “E também não tem essa de coitadinha. O espaço é difícil pra qualquer um, pra mulher é um pouco mais porque... me diz qual foi o grupo de mulheres aqui no Brasil que estourou e vendeu? Visão de Rua!2 E o outro? O outro... Aí já não se sabe. Então, é difícil, elas têm que se juntar ou num movimento feminino pra fazer barulho e acordar a galera pra prestar a atenção nelas, ou tentar se manter original, fazendo uma coisa mais feminina mesmo. Isso não é falar abobrinha e rimar abobrinha, mas fazer uma coisa voltada pras mulheres. Porque também não adianta a mulher fazer uma música pro homem, porque eu acho que é um pouco difícil. A mulher é machista também. Pro homem aceitar uma mulher falando... a gente não aceita nem a nossa. Elas vão ter trabalho, e só aí elas vão ter o espaço delas.”

Bonga acredita que em nosso meio há aqueles que incentivam por paternalismo, o que nos impede de enxergar se o que está sendo feito tem alguma qualidade. Na opinião dele, o machismo ainda é muito forte e cabe a nós incentivarmos a figura da mulher no hip-hop, desde que ela exerça um trabalho de competência: “Dizem que se abriu muito espaço na cultura hip-hop, existem mais mulheres pintando, mais meninas dançando, mais meninas cantando e algumas tocando. Só que o que acontece dentro da cultura hip-hop, e é falho, talvez ocorra por se incentivar a má formação da mulher na cultura hip-hop. Tem menina dançando mal, fora da batida, e os caras aplaudem só porque é mulher. Tem

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Grupo feminino de Campinas, São Paulo.


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mulher pintando mal, os caras aplaudem só porque é mulher. A presença feminina, isso é valoroso. Mas ela tem que ter essência e qualidade naquilo que ela faz”, julga. “Não importa se é no grafite, se é b-girl, não importa se é MC ou DJ. De uns 10 anos pra cá, cresceu muito o espaço da mulher na cultura hip-hop. O que eu acho é o seguinte: tem que se aplaudir, até mais pra fortalecer o posicionamento da mulher, mas aquilo que tem qualidade, porque tão empurrando algumas coisas que não tem qualidade. Mas que também existe o machismo, existe! Muitas festas não dão espaço pra mulher, pras bandas de rap feminino, pras b-girls; não existe uma festa específica de b-girl, não vejo muitos encontros só de mulheres no grafite, por exemplo, e não existe uma batalha de DJs mulheres. Podia-se abrir mais esses espaços. É claro, vão dizer que isso é pouco, mas também existe um pouco de machismo dos caras”, admite.

Rooney Yo Yo apóia a presença da mulher no hip-hop, mas não deixa de apontar que elas convivem ali com certo machismo: “O hip-hop tá precisando de mina com atitude pra fazer alguma coisa! Hoje existe o Minas da Rima, que é uma posse de garotas com vários grupos se apresentando juntos pra mostrar que a mulher também sabe fazer hip-hop. Mas falta um disco, falta um clipe, falta uma atitude, faltam os produtores de hip-hop introduzirem uma mina dentro dos eventos de hip-hop. Tem DJ mulher tocando por aí, mas ninguém chama as minas pra tocar. Isso também vai muito de a mulher querer correr atrás pra tocar, e de o cara que produz eventos, trazer mulheres pra cena, o que eu acho importante. Agora, mulher b-girl, tem bastante. Tem mina dançando popping, tem mina dançando locking. Não é muito, mas é bastante comparado há 10, 15 anos. Mina grafiteira, a gente tem hoje muitas conhecidas, até renomadas internacionalmente, que viajaram pra fora, expondo na Holanda, na Grécia, e eu ainda acho que faltam muitas mesmo assim. Tem muito homem, pra um negócio machista.”

Mano Brown não esconde a sua admiração pelo sexo oposto, tampouco sua importância para a nossa cultura:


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“Nós somos descendentes de negros, índios e portugueses. Os negros na África tinham várias mulheres. Os índios, no Brasil, também tinham. E os portugueses adoravam pular a cerca. Olha a nossa raiz: a raiz do Brasil é machista! É o homem como a coluna da família! A estrutura da sociedade brasileira é machista. E o rap faz parte da estrutura da sociedade brasileira, apesar de contestar toda a estrutura que existe nela. Essa a gente não conseguiu ainda contrariar, porque é um barato que tá na nossa família, nas nossas raízes”, admite. “A nossa mãe, ela ensina a gente a ser homem. A primeira coisa que ela diz é: seja homem! A nossa mãe, como mulher, ela ensina a gente a ser machista. Minha mãe me ensinou a ser machista. Acho que a maioria das mães ensinam. Então, eu acho que pras mulheres, hoje, é uma guerra maior. Mas o rap necessita da mulher. É diferente! A mulher tem sensibilidade, muito mais que o homem. Sensibilidade, disposição e coragem! Isso falta no rap! Falta mais sentimento! Talvez seja a hora de as mulheres entrarem pra preencher essa parte no rap! Seria o acabamento! A essência! A sensibilidade! Pra mim, o cara que é contra a mulher, ele tem tendência homossexual. Eu, graças a Deus, sou um cara homem mesmo e sou um admirador das mulheres. Falta mulher no hip-hop, e até mesmo pro hip-hop sobreviver e ter mais saúde.”

Só Calcinha diz que o grafite não se porta tão diferente dos demais elementos da cultura, em relação ao machismo. Ela não deixa de reconhecer os poucos homens que fizeram algo por ela durante a sua iniciação nesse universo, mas admite que a maioria trabalha numa espécie de “descaso não-culposo”, ou seja, não ensina as mulheres e alega ser “democrático” quanto à permanência da mulher no seu ambiente: “Aí, hip-hop versus mulher... Eu falo tanto disso nas reuniões e debates que a gente tem, que os meninos do grafite, acham que eu tô sempre pedindo alguma coisa; parece que eu sou uma chata sempre pedindo que ponham mulheres, e que tenha cota para as mulheres. Mas não é nada disso: eu não quero discutir por que a mulher não está no grafite, só. Eu quero discutir por que a mulher sofre a violência dentro de casa, por que a mulher ganha menos, por que a mulher não tem a liberdade de vestir a roupa que ela


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quer. O porquê de tanta coisa, sabe? O grafite, ele me propicia tentar, no meu meio, no meio do hip-hop, retratar isso”, explica. “No meu grafite eu retrato sempre a mulher. Quando eu comecei a pintar, eu sempre desenhava mulheres. Comecei a me perguntar: por que eu faço isso? Eu não consigo sair disso! Mas aí eu fui ver que a própria história do grafite, o que eu conheço dela, não tem nome de mulheres grafiteiras. Na própria história dos Estados Unidos tem só a Lady Pink. Pode ter até mais, mas foi a única informação que eu recebi. Foi uma gama de homens que fizeram a história do grafite, e eu só recebi o nome de uma mulher. Isso pra mim ficou muito vazio e aí veio esse desejo de sempre desenhar mulheres. Em toda a história a mulher é apagada”, lamenta.

Só Calcinha identifica ainda um certo receio nos homens de dividir seu espaço com uma mulher: “Eu não sei se é muita prepotência minha, mas rola um pouco desse negócio: ‘será que ela vai tomar o meu lugar?’ É claro que eles não vão usar essas palavras, mas eles agem de certa forma, até um pouco violentamente, como se quisessem tomar o meu lugar. Então, rola o machismo! Num ciclo de debates em Santo André, em agosto de 2003, o Grafite Internacional, veio muita gente de fora. A gente tentou discutir o grafite nesta cidade e no mundo, e fazer um intercâmbio através disso. Um dos temas que sugeri foi o gênero. Então, foi uma luta, porque eu não sabia que ia ter uma falta de receptividade dos caras, de eles falarem: ‘mais uma vez isso? Pra que falar disso? O muro taí, você não pinta porque não quer!’ Eu não tive tanta dificuldade para aprender grafite porque eu estudava artes, e o Ícaro, grafiteiro do Traços, foi um cara que me ajudou muito, e muitos outros caras e mulheres me ajudam até hoje. Mas, voltando ao assunto, a minha pergunta é: tem muita menina querendo pintar, por que elas não pintam? Aí a resposta vem: não pintam, porque não querem! Então, tá muito difícil de a gente colocar essa questão ainda”, afirma.

Ainda na pauta do machismo contra a mulher do hip-hop, Só Calcinha aponta irregularidades que acontecem no meio de comunicação do grafite:


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“Eu me deparei com uma menina esses dias, que pinta e é anarco-punk. Ela também acha que o grafite não é ligado ao movimento hip-hop, defende a idéia dela, não posso contestar. E é como também o machismo tá na cabeça das meninas. Ela teve uma resposta assim: ‘você tá colocando a sua vivência? Você teve dificuldades? Eu não!’ Uma coisa pela qual eu sempre vou brigar é a presença da mulher no grafite e a maneira como ela é vista. Existem muitas maneiras de se conhecer o grafite no mundo, mas o único acesso que a gente tem é a revista do Binho3 [grafiteiro]”, reconhece. “Tem coisas que eu vejo na revista e me dão muita raiva: a imagem da mulher sendo passada por ele. Legal! Tem páginas ali com uma menina pintando...Beleza! Lindo! Muito legal! Aí você vira a página, tem uma mina passando na rua porque os caras tiraram a foto da bunda dela. Beleza? Legal? Não acho! Do meu jeito de ver, essa maneira de mostrar a mulher no grafite não é certa! Você vira mais uma página e tem uma menina com os peitos de fora. Não tô falando dos peitos dela que tão de fora, porque aí os peitos são dela, mas sim da tag em cima dela. O cara vai lá e assina de canetão em cima dos peitos da mina. E isso é mostrado na revista”, critica. “Chega uma menina do Chile, muito boa, por sinal, faz um trabalho lindo. Aí tá em cima da foto: ‘o trabalho dela é tão louco que nem parece de menina!’. Eu vejo isso e me dá uma revolta tão grande. Eu olho pros meninos e eles falam: ‘essa menina é estressada! Essa menina tá enchendo o saco!’. E eu quero fazer alguma coisa contra isso”, explica. “Eu tô juntando umas meninas pra fazer alguma coisa e falar pro Binho: se você não tá enxergando isso, a gente tá! Você, como um cara que passa toda essa informação, que tem esse ponto de referência de vários grafiteiros do Brasil, tem que ver isso! A imagem que você tá passando da mulher não é bem essa! Às vezes, você acha que tá contribuindo, mas não tá!”

Hoje, embora ainda seja vítima das pressões da sociedade, a mulher pouco a pouco vem galgando o seu espaço em meio a uma população de maioria preta e pobre. Ela foi à luta, tornando-se a líder do seu lar, cuidando da educação, saúde, alimen-

3 Revista Terceiro Mundo.


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Acorda hip-hop!

tação, da criação de seus filhos, das tarefas de casa e da renda familiar. Por mais que alguns ignorantes do movimento não concordem com a presença da mulher em nosso meio, gostaria de dizer que a cultura hip-hop foi criada para todos, independente do sexo. Se hoje pelo menos 20% das mulheres fizessem parte do hip-hop em todo o Brasil, não estaríamos sofrendo tantos desencontros no movimento. Quando uma mulher recebe uma responsabilidade, na maioria dos casos, ela a encara até o fim, demonstrando disposição para a luta. Força que grande parte dos homens no hip-hop não têm. Nós dependemos delas desde que nascemos, e não é depois de adultos que seremos autosuficientes. Então, irmã, não espere ser aceita no movimento hip-hop. Conquiste seu espaço nele, se tornando grafiteira, b-girl, rapper, MC, e, acima de tudo, uma mulher consciente. O hip-hop nacional ainda tem muito a aprender com você, esteja certa disso!



312 CAP.10

10. Hip-hop vs. Rap na mídia

10. Hip-h


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Vivemos num país em que a população necessita urgentemente de informação, e de forma facilitada. Neste caso, acabamos nos deparando com a TV, que, se mal conduzida, pode se transformar numa droga letal. Nela, mergulhamos num mundo de fantasia, e nos tornamos seus totais dependentes, dando valor ao que vemos na tela. Nos voltamos contra nós mesmos e nos inferiorizamos muitas vezes diante de alguns temas abordados. Assistimos ao desenrolar de querelas políticas, não nos sentimos responsáveis por aquilo e depois votamos. Achamos bonita a vida dos artistas, nos preocupamos com a intimidade deles, e muitas vezes esquecemos da nossa. Somos solidários e sofremos quando eles sofrem, mas esquecemos do nosso próprio sofrimento. Nos prendemos tanto à TV que esquecemos de enfrentar nossos próprios problemas. Nossas famílias acham normal, engraçado e bonitinho ver nossas crianças imitando os gestos obscenos que são encarados como dança pelos grupos de música pop que as promovem. Mas você não acha que é onde a população está conectada que o hip-hop tem de ir para libertá-la desse transe? O rapper angolano, residente no Rio de Janeiro, Nelboy Dastha Burtha, procura ir além com suas opiniões: “Sabemos que existem razões culturais no próprio país, onde os meios de difusão maciça são controlados por não negros, que abrem espaço somente para os seus semelhantes em prol dos

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seus benefícios financeiros, deixando de lado, e olhando pelas frestas, pessoas de classes inferiores no escalão social, na sua maioria afrodescendentes, que eles jamais permitiram que tivessem vez nos seus órgãos de comunicação. Esse é o discurso que muitos de nós temos decorado e tornado patente. Não podemos negar que é um fato, mas quando nos é aberta a oportunidade de acesso a esses meios, devemos ou não usá-los? A resposta é óbvia. Não podemos nos acomodar, pois se hoje temos noção da cultura hip-hop, é porque nossos ídolos, grandes revolucionários, fizeram-se conhecidos em seus atos e propostas através dos veículos de comunicação, sejam eles quais forem, compondo o que se entende por mídia.”

Está fundamentado que existe – de certa forma – também um certo ceticismo em nosso meio. Estamos criando desculpas para adiarmos esse compromisso com a TV em virtude de quê? Qual é o real receio que nos leva a evitar a mídia? Nelboy aponta algumas evidências dos nossos medos e do despreparo em apresentar os valores que defendemos no hip-hop em frente às câmeras: “O radicalismo de nossos atos no que se refere ao assunto mídia acaba nos colocando numa situação desagradável, onde damos margem a sermos qualificados como hipócritas e dissimulados. Pois o que vestimos, onde gravamos, os CDs que compramos têm influência direta ou indireta da mídia. Se isso é um fato, entramos em contradição com o que dizemos. Não queremos nada com a mídia, e somos nós próprios que a patrocinamos para ela estar onde está! Eu, tu, ele, todos nós estamos num mundo globalizado. Quando você liga a TV, o rádio, compra revista, jornais e produtos que a mídia promove para nós mesmos comprarmos, parte do dinheiro que você pagou volta para a mão dela, dessa mídia. Se você patrocina algo, você tem direito de usufruir de onde você aplicou, para ampliar a nossa mensagem ao nosso povo que é refém dessa mesma mídia. Se mudarmos nossos conceitos de forma madura e menos ingênua, seremos entendidos e respeitados pelo nosso próprio povo marginalizado, que fica hipnotizado diante de tudo que a mídia dita”, adverte.


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Nelboy aponta nas linhas acima uma questão pouco debatida entre nós: o fato de sermos também contribuintes e consumidores dessa mídia. Muitas vezes depositamos um fervor excessivo no hip-hop, anulando o entendimento quanto à nossa condição de cidadãos comuns como quaisquer outros. De que somos contribuintes da mesma forma, independente de ideologia. Ele conclui suas críticas com um tom encorajador: É o momento de crescermos e nos firmarmos com respostas maduras e concisas quando a mídia nos interpelar. De nada adianta estar nela sendo palhaço. Posar de mau, falar gírias, até os playboys falam, é fácil demais. Temos que saber nos colocar para defender os anseios do nosso povo. Chega de sono! O despertador toca! Tá na hora de acordar!!!

Na opinião de Big Richard, o integrante do hip-hop que não aparece na mídia perde uma grande chance não só de se divulgar como também de promover todo o movimento. Para ele, muitos de nós não têm um discurso forte o suficiente para defender em público aquilo em que acreditamos. Dessa forma, preferimos fazer do discurso daqueles que não precisam aparecer para fazer sucesso, o nosso próprio discurso. Big aproveita também para exemplificar oportunidades que muitas vezes surgem à nossa frente e perdemos pelo simples fato não sabermos lidar com elas: “A gente até tenta, acredita na esquerda, tem aquela coisa de ‘vamos construir um mundo melhor...’ Como é que a gente pode dispensar um veículo de comunicação que quer abrir as portas pra gente, e que também quer ganhar em cima da gente? Se fechar, não dar entrevista é a maior bobagem que eu já vi. Você sabe muito bem que desde o início eu nunca tive problema quanto a isso. Sempre dei entrevistas, acho que você acaba se fortalecendo quando tem alguma coisa pra passar, quando tem consistência do que tá fazendo”, explica. “Mas se o cara quiser aparecer por aparecer, eu digo a ele pra não ir, porque aí ele se queima. A gente tem vários exemplos aí de neguinho que se achava o tal, quis aproveitar o espaço, não mostrou consistência e tomou no c...”, ressalta.


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“Não tem que ter medo, se surgir a oportunidade, você tem que mostrar o seu serviço. Porque se o cara do rap ou do hip-hop que é bom não mostrar, a gente vai ficar reclamando que não tem espaço, sem razão pra reclamar”, critica Big. “Você reclama e, quando esse espaço aparece, não aproveita a oportunidade. E se o cara que for fazer a entrevista contigo vier na trairagem,1 você tem que ‘tá’ suficientemente preparado pra saber contornar essa situação”, adverte. “Eu tenho uma história de uma única vez, e eu tô no hip-hop publicamente desde 1992, do cara que não colocou realmente o que eu falei. E foi quando eu fui preso no Vale do Anhangabaú, em 1994. O Ricardo Valadares, que trabalhou como jornalista no Notícias populares, foi numa delegacia localizada no Centro de São Paulo, pra saber por que eu tava sendo preso. Eu falei pra ele: ‘agora eu tô sem condições, recebi o alvará de soltura. Mas se você quiser, depois você me liga e a gente se fala melhor. Eu tentei contornar essa situação assim”, explica. “Ele, pra não perder a matéria, foi lá, pegou o boletim de ocorrência, fez a matéria com o delegado, e colocou só a versão da polícia. E ainda colocou coisa que eu não tinha falado”, conta, indignado. “E aí, é onde eu digo que você tem que estar preparado, eu tinha advogado na época, ele entrou com o pedido de direito de resposta, e o jornal deu um espaço bom pra resposta. A situação foi tão boa que depois eu virei colunista do Notícias Populares, apresentei festas com eles, o próprio aniversário do jornal, o único debate que teve dentro do auditório da Folha de São Paulo, no ano de 2000, falando sobre hip-hop e consciência negra fui eu que organizei, associado a uma revista que eu tinha na época, a Hiphop Cultura de Rua. Aliado ao Notícias Populares, organizamos um debate onde levamos o Rodrigo Brandão [ex-VJ do programa Yo! MTV Raps], o DJ Hum, o Túlio Cam [sociólogo do Núcleo de Violência da USP], e uma pá de gente. Tudo a partir de uma notícia mal dada que esse mesmo jornal deu ao meu respeito”, lembra, orgulhoso. “Eu abri um leque lá dentro. Então, se você tiver consciência do que você faz e firmeza naquilo que você divulga e se propõe a fazer enquanto artista, não tem nenhum problema aparecer na mídia. Tem muita gente que me critica também, mas são aqueles falsos críticos. Aquele cara que não teve a oportunidade 1

Falsidade.


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de aparecer e gostaria de ter, como é um tremendo recalcado, fica metendo o pau em quem aparece”, reclama. “Alguns têm uma p... base, e aí esse não é recalcado, esse tem ideologia, como é o caso dos Racionais MCs, que eu respeito muito. E é importante falar isso: eles têm a base deles, a ideologia deles para dizer ‘eu não quero estar lá!’. E a gente tem a consciência de que eles têm condições de sustentar uma conversação tranqüilos”, considera. “Mas uma grande maioria segue o discurso deles de estar fora da mídia, naquela coisa de imitar o ídolo, queira ou não, eles são ídolos, e não só do público do hip-hop, mas do público de maneira geral. O cara fala isso porque ele não tem base pra outra coisa. E aí só pode falar isso mesmo”, ri.

O rapper Magno C-4 sustenta a presença do rap na grande mídia. Ele coincidentemente apresenta a mesma opinião de Big: “Você acha que o Raí e o Leandro [jogadores de futebol] teriam condições de fazer a Fundação Gol de Letra se os dois não tivessem dado certo na carreira? Então, como é que você vai querer ajudar o próximo se você tá mais f... que ele? Se você faz um rap de protesto, você vai alcançar mais pessoas precisando ouvir a sua palavra numa rádio comunitária ou numa rádio grande, campeã de audiência? Você vai conseguir atingir mais gente aparecendo na MTV ou na Globo? O remédio deve ser dado a quem tá doente”, explica. “Vou ficar falando de hip-hop, de cultura, de autovalorização pra quem sabe de tudo isso? Eu tenho que falar pra quem não sabe! Pra quem tem que aprender”, justifica. “É muito importante para o rapper estar na mídia. Mas ele tem que ter um preparo psicológico pra chegar lá, e expressar o que ele tem pra falar. Não se intimidar com a força da mídia. O dia que ele tiver a oportunidade de ir num programa, tipo o do Jô Soares, ele tem que mostrar a cara dele, quem ele é, e o que é hip-hop, nem que seja a sua última vez ali”, orienta. “Pelo menos ele foi lá, e não foi tirado.2 O office-boy que virou cantor, um Zé ninguém que gravou um CD, tem que ir lá pra mostrar que ele é uma pessoa que procurou se informar, estudar e que hoje ele tem valor.”

2

Ser zoado, caçoado.


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Marcelinho apóia a presença do rap na mídia desde que se represente corretamente o hip-hop. Para ele, quem se opõe à presença do rap nos meios convencionais de comunicação está escondendo sua incompetência: “Eu acho que a partir do momento que a gente grava um disco, a gente tá chegando a várias pessoas de todos os tipos. Quando as pessoas começam a comentar qualquer tipo de trabalho, seja rap, seja samba etc., a mídia vai atrás, a mídia quer saber, a mídia quer audiência. O povo assiste TV. Então, se o povo tá falando disso, é porque ele quer ver isso na TV. Se o hip-hop vira as costas pra isso, ele tá virando as costas pro povo que ouve”, considera. “A mídia quer simplesmente saber o que tá acontecendo com o povo, no meio dele. É um risco: se tem um programa de rap na televisão, como é que não vai nenhum grupo de rap? É Brasil, é televisão, é a Rede Globo que domina aqui. A Rede Globo põe o presidente, tira o presidente, faz o que ela quer. O rap dá as costas pra isso”, lamenta. “A maioria que tá ligada na TV é a população pobre, que não tem dinheiro pra ir num cinema, freqüentar um teatro, comprar DVD, vídeo cassete, então, a TV é o único divertimento barato. E a mídia só quer mostrar o que o povo quer. Isso tá fazendo um barulho, então, vamos mostrar esse cara! Aí, é claro, não tem que cair naquela coisa: ‘ah, se ele for eu não vou’. Que isso é medo, simplesmente medo”, reconhece. “Porque, se tivesse mais opinião própria, falaria: ‘isso é bom pra mim!’. Mas infelizmente diz: ‘isso não é bom pra mim!’. Por que não é bom? ‘Porque os caras da minha área não vão gostar!’. Então, você ainda não tá preparado pra entrar na mídia. E tudo é mídia. Internet, rádio, TV, jornal, livro, então, não tem essa de a gente ficar com medo, ou achar que isso não vai ser bom. O que a gente tem é que tomar cuidado, não é nem em ir na TV, é tomar cuidado com o que a mídia vai fazer com você”, adverte. “Porque do jeito que ela quer, vai sugar e pode te transformar em moda. Você tem que se posicionar na mídia de um jeito em que não vire moda.”

Bonga diz que devemos procurar uma maneira de usufruir da mídia para o benefício da nossa cultura, sem perder a nossa originalidade:


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Acorda hip-hop!

“Eu vou usar uma coisa que o próprio Malcolm X falava: a mídia é uma faca de dois gumes. Tanto ela te corta, como ela te ajuda a cortar. O hip-hop, pra ter a sua própria independência, ele não tem que depender da mídia, ele tem todo o seu posicionamento, sua essência pra não se vender, pra não virar a banalização de um modismo. Mas os espaços de mídia são necessários. Os artistas de hip-hop precisam se apresentar, precisam mostrar o seu trabalho”, afirma. “Em certo momento, principalmente no Brasil, já não terá mais como segurar; é como água escorrendo entre os dedos. A mídia acabará se obrigando a abrir os espaços, por mais que ela possa podar esses espaços da cultura hip-hop dentro da televisão, principalmente o rap, chega um momento em que não dá mais. Vai escorrer entre os dedos, caso do nosso saudoso Sabotage,3 que começou a fazer essa ponte, mostrando o que é a cultura hip-hop sem precisar se vender. Então, começaram a abrir espaços que até então não se abriam. Por exemplo: ele foi ator em filmes, começou a aparecer em programas de televisão, se apresentar em alguns deles. Aí é que tá a importância de mostrar a nossa cultura sem perder a essência. Vários b-boys aparecem, alguns grafiteiros também, mas o importante é mostrar a essência da nossa cultura sem perder a originalidade.”

Na opinião de Rooney, o rap nacional não se expõe mais na mídia para se autodefender. A mídia, segundo ele, tenta firmar o estilo como música de apologia à violência: “Nem todo rap é hip-hop! Tem muita gente que só quer fazer a rima, mas não quer se envolver com o hip-hop, porque o hip-hop é uma filosofia muito séria. Podem estar mais interessados em vender seu próprio produto do que em falar sobre uma cultura, um conhecimento que deveriam levar quase como uma religião. O hip-hop tá totalmente aberto em mostrar a sua cultura, sua dança, os DJs, os MCs etc. Mas muitas vezes é visto na mídia de maneira pejorativa; dizem que é feito por ladrão, bandido. As pessoas precisam entender que o rap veio pra mostrar a realidade que tá aí! Você tá acostumado a ver o Schwarzenegger matar no filme e acha que tá tudo certo. Agora, se você entra numa favela

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Rapper e ator paulistano, assassinado em 2003.


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e tem uma chacina, você acha que tá tudo errado”, ressalta. “Que diferença tem entre um filme e um rap falando de violência, que é o que acontece no dia-a-dia? Existe essa situação e o rap tá só contando essa história. Muitas dessas histórias são verídicas, aconteceram com a própria família do cara que tá cantando. Aí a mídia fala que o cara é marginal, bandido etc. O cara pode até ser, mas nem todos são. Conheço muitos que não são! Nem todo mundo é tão perigoso como se diz nas letras. Nas letras, é uma fantasia, uma história. É como ler um livro, assistir a um filme, uma peça de teatro.”

Rooney não concorda com a postura da maioria dos rappers e acredita que eles deveriam encarar o desafio: “As pessoas deveriam encarar a mídia! Se você tá se expondo, as pessoas querem te conhecer. E se elas querem te conhecer, você tá sujeito a mostrar aquilo que realmente é. Só que o que você é e o que a letra representa podem não ser realmente aquilo que você gostaria que as pessoas enxergassem em você”, avalia. “Acredito que muita gente foge da mídia porque não quer revelar sua verdadeira identidade.”

DJ Johnny não tolera hipocrisia – que, segundo ele, também tem lugar no hip-hop. E a mídia também não escapa às suas críticas: “A mídia, ela é podre! Se a mídia é podre, a MTV não é mais bacana que a Globo. A única TV que eu vejo que tem um pouco de liberdade ainda é a TV Cultura de São Paulo, porque nos outros estados eu não tenho conhecimento. Então, quando o Xis vai à Casa dos Artistas,4 por exemplo, e o grupo lá da p... no Yo! MTV Raps, com o Thaíde apresentando o Yo!, não quer dizer que seja melhor ou pior que a Casa dos Artistas”, compara. “É mídia! É uma janela que tá na sala de todo mundo e que todo mundo vê. A mídia é necessária porque, sozinhos, Rio Negro e Solimões [dupla sertaneja] não conseguiriam vender um milhão de cópias de discos lá no interior. O rap não chega a isso, mas a gente precisa de mídia para as pessoas saberem que o que a gente faz é música. Eles vão

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Reality show exibido pelo SBT.


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Acorda hip-hop!

olhar e falar assim: ‘é um bando de maloqueiros5 do c... que estragam a música dos outros’. E não é isso, a gente estuda música!”, defende. “Tem cara hoje que é formado em música e toca até instrumento, trabalha em estúdio! Então, a mídia é necessária. O hip-hop tem as pessoas que têm poder, mas se você não jogar esse poder pra beneficio próprio, não adianta nada. Você não vai poder ir à Banheira do Gugu6 pra agarrar os outros e os outros te agarrarem, mas você pode ir ao Raul Gil7”, exemplifica. “Independente de onde você aparecer, se você tiver uma posição firme e idéia pra trocar, você nunca vai ser vendido. O Public Enemy foi pro mundo nas TVs do mundo e nem por isso se vendeu!”

Suave não aceita que a posição de alguns grupos nacionais que resistem a aparecer na mídia reflita diretamente sobre todo o nosso hip-hop: “Tem uma letra que a gente cantava e falava justamente isso, ‘mídia ou hip-hop?’. De quem é a culpa, é da mídia ou do hip-hop? Por que as pessoas do hip-hop não querem aparecer? Tudo bem, teve grupo aí que não precisou aparecer pra fazer sucesso. Gente, isso acontece uma vez em um milhão”, adverte. “É o antimarketing. O marketing não fala que você não precisa aparecer pra você vender. A Coca-cola até hoje faz comercial, ela aparece. Não precisa, todo mundo sabe o que é Coca-cola. É um produto que todo mundo consome e não precisa de comercial. Mas mesmo assim está na mídia”, exemplifica. “Agora, como é que o rap vai crescer, se ele não aparecer? Pára de ficar pensando que alguém vai modificar a sua imagem! Cara, a partir do momento em que você tá na televisão, que tem gente que não tem fogão em casa, mas televisão tem, a partir do momento que a pessoa tá vendo você ali, basta você ser consciente e não se vender, porque ninguém vai te obrigar: ‘pra aparecer aqui, você vai ter que rebolar!’ Não é verdade! Você, com a sua postura, chega lá e manda o seu recado. E precisa da televisão sim, não é só rádio, não é só revista. A televisão hoje é um meio indispensável pra você propagar infor5 Loucos. 6 Quadro extinto do programa Domingo Legal, do SBT, por exibir nudismo em horário impróprio. 7 Programa da Rede Record.


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mação. Pode ser pela internet também, que é um meio visual. Agora, você querer que as pessoas conheçam o seu trabalho sem você aparecer, isso é impossível! Não vamos todos ter essa postura porque não vai dar certo. Esquece! Vamos tentar aparecer e ganhar espaço. Quantos negros você vê na televisão? Quantos pretos fazem comerciais? Vamos mudar isso! Vamos começar a pensar nos artistas com potencial. Senão, vai ficar aquela coisa de sempre: artista preto na televisão só faz papel de empregada doméstica! O preto tá sempre como escravo! Se você não quiser aparecer, isso vai continuar, então, vamos mostrar a cara, a realidade e vamos fazer com que o rap cresça dessa forma, aparecendo, porque senão vai demorar 30 anos ou mais.”

Para Suave, o conceito do “vendido” levantado pelos adeptos do hip-hop atrapalha o sucesso de um trabalho: “O pessoal acha que tá se vendendo. ‘P..., apareci na Globo, sou vendido!’ Não é assim. A Globo vai te mostrar pra um público que talvez nem esperasse se identificar com você, e se aquele público se identificar, melhor! É mérito seu! A Globo foi só um canal pra você atingir aquelas pessoas e você não conseguiria isso sem ela. É como uma gravadora: muita gente critica as multinacionais, que funcionam como a televisão. A multinacional consegue mandar meu produto pra lugares que uma independente não vai conseguir”, reconhece. “Mas eu não mudei por causa de uma gravadora multinacional. Talvez eu tenha gravado ali umas duas ou três músicas por exigência da gravadora, mas se você pegar o CD inteiro, 80% são coisas que eu tinha pra falar e falei”, justifica. “Mesma coisa a televisão: se o cara quiser que você mude, talvez, o ritmo, que é pesado, a mensagem vai ser a mesma. Muda a levada, mas a mensagem vai ser a mesma. O pessoal que escutar aquilo, vai se identificar, e a televisão só fez você mostrar aquilo. É errado dizer: ‘você apareceu, comercializou, se vendeu...’ Não é isso.”

O rap, para Bad, é inexpressivo e só tem prejudicado a cultura hip-hop: “Eu nem considero o rap na mídia. O rap pra mim é uma má influência, uma apologia à malandragem e à bandidagem, e ao que não


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Acorda hip-hop!

presta no ser humano. Justamente tudo que vai contra a ideologia do hip-hop. No caso de ‘tá’ na mídia, é a divulgação de uma apologia negativa”, alega. “Então, estar na mídia ou não, pra mim vai causar o mesmo efeito. Sempre vão existir aqueles apelando pra ‘tá’ na mídia. E, pra mim, se é original ou não, não vai afetar. Sinceramente, até agora já ouvi e já ajudei muitos rappers, mas vou falar: é uma coisa perdida. Se continuar desse jeito, vai se desligar do hip-hop. Vai chegar um dia em que ninguém mais vai considerar o rap um elemento da cultura hip-hop”, avalia. “E, pra mim, pode continuar desse jeito.”

Mano Brown ressalta que o hip-hop passa por um momento de fortes contradições, em que passamos a querer fazer parte de um meio contra o qual lutamos a vida inteira: “Eu penso assim: o hip-hop é e foi feito por seres humanos, e os seres humanos não são iguais, desde a nossa digital até a retina. Então, nós somos diferentes! Não somos obrigados a pensar igual. Agora, na visão do Mano Brown, que nem é a do Racionais, a nossa mídia é a nossa voz! Nosso corpo! Nosso sangue! Nossa presença física nos lugares! O rap nasceu pra contrariar a fantasia da mídia! A ilusão! Toda fantasia, todo o brilho que enganou a gente, que escondeu o nosso povo, que tirou a nossa estima, que tirou a nossa autoconfiança, a nossa segurança, a nossa vontade de vencer, o rap vem pra contestar isso”, acredita. “Agora que nós estamos conseguindo conquistar um espaço mínimo, a gente começa a demonstrar vontade de fazer parte daquele mundo que a gente tanto odiava. Eu não entendo isso! Ou a gente é contra ou a favor, porque ou o sistema acaba e começa do zero, ou o rap não tem como entrar na mídia.”

Mano Brown acredita na auto-suficiência da divulgação do movimento, e apresenta o caro e solitário preço de dizer não: “O hip-hop em que acredito é aquele que me leva a Pernambuco e ao Maranhão pessoalmente, que me faz dar um rolê nas favelas a pé! Isso, pra mim, é revolução! E outra coisa: dizer ‘não’ é uma revolução também, só que custa caro! Eu admito que a ideologia que eu prego é uma ideologia cara! É preciso vender uns 500 mil [alusão à venda de um milhão de cópias do CD Sobrevivendo no


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inferno, sem a intervenção da grande mídia]. Então, pra dizer ‘não’, você desperdiça oportunidades, você não pode exigir reconhecimento por isso e nem agradecimento.”

Mano Brown apresenta um posicionamento particular de resistência à mídia: “Eu não sou contra, desde que eu não vá! Eu sou contra o Mano Brown na mídia! Eu não gostaria de ver o Mano Brown cantando o que ele canta na mídia! Se eu fosse um cara que curtisse os Racionais, eu não gostaria de ver o Mano Brown falando de mim pros playboys na mídia. Quanto mais o rap se isola, mais ele cresce. Isso faz as pessoas terem amor, porque a dificuldade faz a gente criar garra pelas coisas, amor pelas coisas”, acredita. “Eu até já fui a alguns canais de televisão por necessidade do rap, não minha! Em momentos que o rap precisou mesmo, vítima da fraqueza, porque o rap precisava de audiência, pro programa tal não cair, pro programa X não acabar, então, nós íamos. Aconteceu isso umas duas ou três vezes. Não foi pra gente divulgar disco”, ressalta. “Acho que a maior divulgação de um disco são as músicas. O que tem dentro dele! Não o que é falado por fora dele! Vai ser espalhado e levado aos quatro ventos. Eu me coloco no lugar de 12 anos atrás: morando na casinha onde morava com a minha mãezinha, e eu desempregado. Eu, se ouvisse uns caras como os Racionais, com certeza eu ia gostar. Só que eu ia gostar tanto que eu ia me tornar possessivo, não ia querer dividir o grupo com ninguém, ia achar que ele era meu, e eu dele! Não ia admitir que eles compartilhassem esse sentimento nosso de favelado, de sofrimento, com todo mundo, mesmo que seja uma realidade f... que deva ser espalhada aos quatro ventos. Eu não ia querer ver aquilo sendo compartilhado com todo mundo”, desabafa. “É nosso! É da favela! É dos pretos! O prazer que o cara tem de saber que o Racionais ou o MV Bill ou o Xis, ou o RZO, ou o 509-E tão fazendo o maior sucesso, os playboys tão ouvindo no carro, e quando é pra ir ver o show dos caras, é na periferia que eles têm que ir, e aí, eles não vão! É da periferia! E hoje tem poucas coisas que são da periferia! Nosso rap é nosso! Racionais vai cantar sabe onde? Não é no Olímpia, é no Planeta Azul, no Grajaú, no fundão da periferia, onde o chicote estrala. Nós vamos lá e os playboys vão também,


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Acorda hip-hop!


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carne e osso, sem colete à prova de bala e sem maquiagem”, afirma. “Feios do jeito que eles são, vão ‘tá’ lá!”

Muitos de nós sustentamos a idéia de que o grupo que aparece nos canais de TV se vende. Cabe lembrar que essa idéia é adotada por alguns grupos, não pelo movimento hip-hop em geral. E é importante ressaltar que os nossos heróis Malcolm X e Martin Luther King, por exemplo, se pronunciavam em programas de entrevista, colocando suas críticas e propostas a favor do povo afro-americano. O clipe “Don’t believe the hype”, do Public Enemy, foi gravado num programa de auditório ao vivo, onde nem o apresentador nem o público eram pretos. Apesar disso, não descaracterizou o que o grupo representa para os pretos. Estar na televisão, sendo você mesmo, é falar para milhões de pessoas a realidade de suas vidas simultaneamente, agilizando de modo inteligente e eficaz o trabalho do rap. O que resta saber é se evitamos a TV por uma questão de oposição, por causa da fama de inescrupulosos de alguns segmentos da mídia ou por não termos base para rebater as perguntas embaraçosas da imprensa. Atualmente, a intervenção do hip-hop na mídia tem se tornado mais freqüente. É como se nós, enquanto adeptos do movimento, estivéssemos revendo alguns de nossos conceitos. De qualquer forma, parte do que está acontecendo nem sempre se torna algo positivo para o nosso hip-hop, uma vez que a maioria de nossos representantes não apresenta preparo para defender a nossa ideologia, deixando ainda turvo se estamos realmente preocupados com que o hip-hop represente o bem coletivo ou apenas querendo satisfazer uma necessidade de afirmação. Devemos conhecer outros estados brasileiros, suas culturas, costumes e necessidades, e a TV é um agente eficiente na divulgação de nossa ideologia. Falta-nos sermos sábios o suficiente para lidar com a mídia sem que sejamos manipulados pela mesma.


330 CAP.11



A cultura hip-hop não faz acepção à opção religiosa de seus adeptos, e nem às suas predileções político-partidárias. O que não podemos é prejulgar que o hip-hop deva seguir uma linha socialista ou capitalista, e que temos de nos filiar a partidos de esquerda, só porque eles apresentam uma proposta de governo baseada na participação direta do povo. Precisamos, acima de tudo, ter nosso senso crítico sobre a política do país, antes de darmos asas às nossas emoções. O hip-hop tem sua própria ideologia, seu jeito próprio de conduzir as ações. Não podemos cometer atitudes impensadas, nos tornando massa de manobra em favor dos interesses daqueles que se dizem representantes das nossas indignações, apenas porque sustentam uma chapa de oposição a um determinado governo. Devemos primeiramente observar com cuidado se suas propostas estão sendo praticadas em prol do povo de maneira concreta. No ponto de vista de Bad, o hip-hop é uma filosofia baseada exclusivamente na arte, e a política é desnecessária entre seus seguidores. “A cultura hip-hop foi criada em molde artístico e cultural. Política é outra coisa. É a questão administrativa de uma região, de uma cidade, de um estado ou de um país”, explica. “A cultura hip-hop não tem nada a ver com administração”, alega. “Então, você vai gravar uma música falando mal da política? Falar mal de política é fácil. É só achar os pontos errados. E o que vai adiantar um can-

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tor ensinar como um prefeito deve agir, como um deputado, um senador deve agir, e quais as leis que eles devem ou não aprovar? Não vai afetar em nada”, afirma. “Ele não vai conseguir com uma música influenciar um político, e outra, sinceramente, música não ganha voto. Vai ser simplesmente uma pichação.1 Já o hip-hop é cultura, e não tem que se meter nessa questão”, acredita. “Se a pessoa é artista, ela é artista, mas se ela é política, então, é outra coisa. Toda música teve a sua pitada política. Você fazer uma colocação, dar uma alfinetada em algumas questões, sendo objetivo e poético ao mesmo tempo, eu ainda considero uma arte, mas simplesmente falar mal da política, reclamar, só xingar e realmente não saber nem pra que serve um vereador, eu acho inútil.”

Ao contrário do que muito de nós imaginam quando se enfoca o assunto política, essa palavra pode conter muitos sentidos. Big Richard traz em suas declarações um pouco de suas experiências ao lado de uma dessas faces, e aproveita para reforçar essa opinião quanto à posição que o hip-hop deve assumir: “Eu hoje acredito que você não tem que fazer no hip-hop a política partidária, e sim política cultural, política social. Por quê? Se você faz política partidária, você começa a se fechar, se guetizar. E se a gente tá querendo sair do gueto, mostrar pro mundo que a gente sofre, você não pode se fechar”, explica. “Tem muita gente que acredita que você tem que ser de esquerda, que você não pode bandear pra outro lado, outros acreditam que hip-hop é só pra fazer política em relação à comunidade negra... Se a gente tá no mundo, a gente tá em constante desenvolvimento. Eu já errei muito até ter essa opinião”, admite. “Eu acreditava que, com o hip-hop, eu tinha que fazer política negra para o povo negro. E acabei inclusive, por mais que eu seja de esquerda, e a minha família também, apoiando aqui em São Paulo o Pitta2 pelo PPB [Partido Popular Brasileiro – direita], e fui até muito criticado por isso, mas acreditava que eu tinha que apoiar um negro e ele era o único negro. A esquerda não tinha lançado um candidato que satisfizesse, por mais que o Pitta tenha sido só no papel, as nossas ambições e os nossos desejos.

1 Embaraço, vergonha. 2 Celso Pitta, o primeiro prefeito afro-brasileiro e único, até então, de São Paulo.


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Se a esquerda não lançou e a direita lançou, eu era a favor do preto. Eu apostava na bola preta em qualquer situação”, declara. “E na vida você vai aprendendo, a gente tem que ter humildade pra reconhecer que acabou errando”, admite. “Assim como eu não gosto da administração da prefeita Marta Suplicy,3 que é do PT. O Pitta teve coisas boas e ruins. Ao meu modo de ver, ele teve mais coisas ruins do que boas. Uma coisa boa que ele teve, foi a imagem dele na televisão. O meu filho via o Pitta, via um espelho e falava: ‘o meu pai!’ Porque ele via um negão na televisão, grande e alto, era o pai dele. Isso é uma coisa boa, você trabalhar a auto-estima da criança. A criança olha o Pitta, que vem de Laranjeiras, um bairro da Zona Sul do Rio, mas não é nenhum bairro classe alta, e vê que ela pode chegar lá também”, explica. “Só que o que você tem que analisar, o que eu não fiz, é como você pode chegar lá. Então, quando você começa a usar o hip-hop pra política partidária, você começa a cair em alguns erros que não são bons. Eu não sou a favor do hiphop fazer essa política partidária, eu acho que o rapper tem que ter o objetivo dele, e o b-boy também tem que ter o seu objetivo, independente se esse objetivo vai bater um pouco pra direita ou pra esquerda. De repente, a gente vai ver lá no Rio de Janeiro, e até já falamos nisso antes, que o que se destaca é o rapper de classe média. O que te garante que o rap feito por eles, não é um rap com uma tendenciosidade maior pra centro-esquerda, que já é mais à direita? Mas você vai ficar questionando isso? Acho que o mundo é vasto, cada um é cada um, você não pode querer inverter o movimento e usar o rap pra fazer política partidária. Talvez, se alguém fizer, pode ser que eu esteja errado, mas outros virão a acertar”, otimiza. “Eu não tenho uma opinião sólida quanto a isso, porque a minha experiência não foi boa, e eu costumo partir do que eu já vivi, do que eu vi na vida pra emitir opiniões.”

Neste capítulo, Rooney aproveita para advertir àqueles que, no período das eleições, usam do seu talento para comprometer o voto popular, em troca de dinheiro: “Primeiro, vamos falar dos políticos: a melhor maneira de você atingir a população ignorante e pobre é usando o próprio exér-

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Ex-prefeita de São Paulo.


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cito que vem da periferia, pra você poder induzir o teu vizinho a votar no cara. Só que a gente também tem que ir atrás, lutar por aquilo que a gente tá precisando. Não é só o dinheiro, porque na época de eleição, todo mundo quer uma graninha, e aí esquece de cobrar aquilo que você lutou, e tem um monte de gente que acaba fazendo só por grana. A gente tem que entender que o hip-hop é muito sério, a política do hip-hop é uma questão mais séria ainda, e o militante é o cara mais importante dessa história, porque ele faz, só que depois ele tem que dar continuidade. Não adianta você eleger o político e fazer o cara tá lá dentro. Hoje a gente tem que saber cobrar e, pra isso, a gente tem que estudar um pouco. Vamos tomar cuidado pra não misturar as coisas, porque hip-hop não é política! A gente pode usar o hip-hop dentro da política, da filosofia etc. Mas uma coisa não tem nada a ver com outra.”

Verdadeiro entusiasta da causa hip-hop, Mano Brown acredita na emancipação do movimento através de sua verve política: “O problema é que o nosso povo, o povo negro, tem uma tendência a ser de direita. Um povo que nunca teve nada, descendente de escravo, sempre teve como o maior problema o dinheiro e a posse de bens, sem falar na auto-estima, agora, quando tem oportunidade, quer o quê? Acumular bens! Acumular diploma, carro na garagem, status, auto-estima! Tudo isso somado, é o que o negro quer”, justifica. “Isso é o que as pessoas de direita fazem: acumular bens, se fechar dentro da família, ignorar o que acontece fora dela, como se o mundo exterior não existisse! A tendência do povo negro é essa! O hip-hop, sendo o gênero musical do movimento negro, teria essa tendência também se não fosse influência de discursos como o de Malcolm X, que prega a anarquia, bater de frente contra a regra geral, contra as estruturas, contra o sistema que tá aí estabelecido, contra os mandantes, os patrões. É um movimento negro de esquerda que tem dentro do hip-hop, porque todo o movimento negro pensa em quê? Acumular bens materiais, como se a auto-estima do negro estivesse ligada a bens materiais”, explica. “O hip-hop fala outras coisas: que os bens materiais fazem parte, mas que a gente precisa ter opinião própria pra falar ‘não’! Isso é ser de esquerda, se é o caso! É do lado esquerdo que


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tá o coração, você vê como é que funciona o barato! O hip-hop, ele é a própria política! Ele não precisa de partido nenhum!”

Mano Brown explica a lógica de o hip-hop estar associado, muitas vezes, à política partidária: “Em determinados momentos alguns partidos procuram o hiphop em troca de apoio, porque eles sabem da força que temos. E nem sempre dá pra você ser neutro, porque você tem que dar o seu voto e mostrar de que lado você tá! De que lado você gostaria que o seu povo estivesse, ou o lado que você acha que vai defender o seu povo melhor que o outro”, ressalta. “Neste momento, o hip-hop se aliou ao PT, ao PC do B, mas não é o movimento do PT, ligado ao PT. É o movimento que apóia o PT, quando o PT precisa. Talvez um dia, quando líderes de verdade aparecerem, negros que, daqui a 20 anos com seus 45, 50 anos, assumirem a sua postura com leis que protejam o nosso povo, leis de interesse dos negros, e eles estiverem lutando por um cargo político, vai ter que existir um partido que defenda esses interesses nossos, que não seja só o PT.”

Mara nos chama a atenção para a importância de nos organizarmos politicamente: “Pra falar de hip-hop e da política, é importante voltar lá no início e enxergar como o hip-hop nasce enquanto manifestação dos excluídos, dos pretos e dos latinos. Isso traz muitos elementos pra gente discutir e perceber um pouco da essência do hip-hop. É uma expressão dos pretos e dos pobres. Aqui no Brasil a gente tem isso desde a chegada do hip-hop, e aí uma coisa interessante é perceber como avançamos a partir do fato de ser uma manifestação feita pelos pobres, pretos, oprimidos nessa sociedade. Disso, passamos a um discurso de protesto em relação a esse cotidiano vivenciado pela juventude. Daí, uma parcela do hip-hop vai avançar mais ainda, no sentido de tentar compreender tudo isso, e como se insere nisso”, explica. “Aí a gente vai ter grandes polêmicas: ‘a gente tem que fazer arte, e não deve fazer política’, só que essas falas ignoram que na verdade, em primeiro lugar, a política tá no nosso dia-a-dia, e não tem como fugir disso, e as condições da sua vida são definidas politicamente. E aí, no meu


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ponto-de-vista, seria uma perda muito grande se a gente abrisse mão de intervir nisso e simplesmente ficasse assistindo como se a gente não tivesse nenhum papel transformador”, lamenta. “Se a gente entende que existe uma reivindicação, uma insatisfação da sociedade que a gente vive, é uma perda muito grande se a gente estagnar só na insatisfação, no dizer que a nossa vida tá ruim, e não tentar compreender as causas disso e como a gente pode ser agente transformador disso”, defende. “Eu vou falar mais do hiphop de São Paulo, mas eu sei que é uma coisa que acontece no hip-hop do país inteiro relacionado à política: há muitos fatores que trazem prejuízos pra gente. Um deles é a forma como o hiphop se relaciona com a política partidária, entrando no mérito de política partidária, lembrando que ela não define a política em si. Eu vejo grandes prejuízos pro hip-hop, quando a gente se atrela a partidos, meramente, em troca de alguma migalha, de alguma barganha, um palco, um panfleto ou coisas desse tipo, que é a forma como grande parte dos políticos partidários chegam até o hip-hop, sem fazer discussão política nenhuma, ignorando inclusive, o debate sobre qual é a questão desse cara. Por outro lado, a gente tem de fato grupos, indivíduos que vão se identificar com a política de um ou de outro partido, e uma coisa que a gente tem que ter bem nítida é que o hip-hop é heterogêneo, então, é muito complicado a gente tentar defender que o hip-hop se defina a favor da candidatura de fulano ou de sicrano”, explica Mara. “Eu, na verdade, nesse tempo que tenho de hip-hop, nunca tive envolvimento, no sentido de apoio, com nenhum candidato político, pelo fato de não enxergar nesses partidos que tão aí uma resposta pra situação que a gente vive. Vou ter muitos questionamentos ao reformismo que alguns partidos de esquerda vão trazer, à tentativa de dizer que vai mudar a sociedade através de reforminhas aqui e ali. Mas, aí, voltando como isso se dá no hip-hop: a gente vai perceber que muito dessa cooptação que acaba acontecendo, muitas vezes se dá porque a gente não tá organizado, então, nesse sentido, é primordial que a gente passe a sentar e traçar quais são os nossos objetivos de fato. É necessário a gente enxergar isso, e não ter medo das divergências que vão existir. Porque se eu abrir mão de discuti-las, de repente, eu


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posso ‘tá’ levando4 uma política na qual eu não acredito”, Mara afirma. “É importante percebermos que não podemos ser sectários e tentar impor um pensamento político. Ou dizer que nenhum integrante do hip-hop possa ou não se filiar a um partido político. Mas tem umas viagens assim, acho que a gente não pode ficar caindo nessas idéias de que o hip-hop deve formar um partido político. Na boa, eu não consigo acreditar nisso porque eu vejo o papel do hip-hop principalmente como movimento e como manifestação artística. E aí, como movimento, não só no sentido de fazer atividades na periferia, mas de se organizar politicamente mesmo e de colocar as suas reivindicações. Hoje em dia a gente tem exemplos de iniciativas de organizações que não são pautadas na demanda de estrutura que o hip-hop tem. Se a gente tem um compromisso com a questão racial, por exemplo, o que a gente pode fazer em relação ao que tá acontecendo lá na Base de Alcântara [MA]? Tem um monte de preto, remanescente das sociedades de quilombos, que não consegue viver porque tem uma base militar que os impede de pescar! Eu acho muito importante a atuação política do hip-hop porque com isso conseguiríamos colocar a vivência que a gente tem no nosso bairro, na cidade em que a gente tá, e se articular como um todo. É aquela coisa de não ficar analisando só uma parte, mas analisar todas e perceber como isso faz parte de um todo muito maior. Aí a gente vai cair em várias discussões: seja na Cidade Tiradentes, seja na Cidade de Deus, onde as condições são difíceis. Não é porque na Cidade Tiradentes os motivos são uns, e na CDD outros. Os motivos são os mesmos! A gente tá numa estrutura de uma sociedade que é racista, que explora os pretos, que vai excluir, que vive às custas do lucro de poucos. Partindo dessa compreensão, a gente deve avançar enquanto movimento hip-hop. Se a gente se entende como agente transformador, a gente vai ter que primeiro compreender essa sociedade pra depois se contrapor e se organizar. Vai ter gente que vai dizer: ‘eu simplesmente quero dançar bem!’ Aí eu não tenho como, e nem posso, forçar ninguém a querer discutir política”, ressalta. “Quanto mais pessoas vierem pra essa discussão, inclusive com o pensamento pra auto-organização,

4

Estar levando significa, estar de acordo, apoiar.


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auto-sustentação, independência, isso trará muito mais força. Tem muita coisa que o hip-hop pode fazer que traria muitos avanços, no sentido daquilo que eu tava dizendo, que é pensar como ele pode ser autônomo. A gente precisa aprofundar os estudos, os debates, não ter medo de desenvolver isso nas comunidades, porque a gente vai ouvir muita gente falando que é viagem a gente querer ser político, que a gente é radical demais. Se a gente não se acomodar em simplesmente reclamar, e se dizer insatisfeito, a gente vai ter que entender o que é o imperialismo dos Estados Unidos, o processo de escravidão dos pretos neste país, e tudo isso. Senão a gente vai continuar sendo os meros menininhos que reclamam, mas que na verdade não têm uma proposta de transformação!”

Embora seu discurso seja de teor crítico e contestador às atitudes negligentes do nosso movimento cultural, Mara consegue observar situações positivas geradas por uma safra mais moderna, em busca de um engajamento mais sério: “Eu vejo uma parcela do hip-hop avançando nesse sentido. A juventude, no geral, hoje, eu ainda vejo como a parcela do hip-hop que tá mais avançada no sentido de engajamento. A gente passa por um período em que a juventude fica muito acomodada, se entendendo com um mero espectador, que só assiste ao que é decidido, mas no hip-hop não! Até por trazer esse questionamento, o jovem vai atiçar, ele vai cutucar essa coisa do: ‘e aí, vamos tentar entender isso? Mas por que isso acontece? Se há repressão na periferia, por que isso acontece?’ Não é simplesmente porque o gambé5 é um filho da p..., é porque o Estado capitalista vai precisar da polícia te reprimindo”, justifica. “Então, é fazer você entender de onde vem tudo isso. É perder o medo de fazer a discussão e de se enxergar como ser social. O hip-hop nasceu feito por pessoas excluídas, e continua sendo feito por essas pessoas. Não é simplesmente uma arte pela arte.”

Bonga acredita que, pelo fato de defendermos valores morais, políticos, sociais e raciais, torna-se inevitável essa inclinação para os conceitos da esquerda:

5 Policial.


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Acorda hip-hop!

“Existem vários segmentos dentro da cultura hip-hop que têm essa base de militância política. Posso citar, em particular, os amigos do Clã Nordestino6 que têm esse posicionamento de contestação. Mas o que o hip-hop tem a ver com política? Se você faz uma contestação social, você já tá sendo político, é um ato político. Quando você reclama do preço do pão, do preço do ônibus, reclama da situação da sua escola, é política, de algum modo. A questão é: política e política partidária. Política partidária é uma coisa, e ação política e contestação de pensamento é outra. Agora, o hip-hop tem que ser político, tem que ser de esquerda ou de direita? Não! O hip-hop é uma cultura. A política não pode engolir o hip-hop, e nem ele a política”, explica. “O hiphop tem a sua própria essência, suas próprias características, é uma cultura. Eu o vejo como cultura, e não como movimento. Movimentos são organizações, como o movimento sindical e os sem-terra. O hip-hop tem que ser uma cultura porque ele é muito grande pra ser só um movimento. Ele tem as três bases da arte: a dança, a pintura e a música. Então, antes de ser um movimento, ele é uma cultura. O movimento pode estar inserido ao hip-hop, mas eu ainda o vejo como uma cultura. E na política há posições particulares que cada um pode tomar”, acredita. “Alguns têm uma tendência mais política dentro da cultura, outros têm uma questão mais aberta da cultura pela cultura, mas eu acho que a partir do momento que você quer transformação pra humanidade, e pro lugar em que você vive, você tá fazendo política e não tem como ignorar esse fato.”

Gabriel O Pensador é a favor da liberdade de pensamento e atitude no movimento: Quanto mais independente, melhor! Só que a música é uma linguagem que pode ser usada pra defender um partido ou outro, quando o artista quer. Então, cada um decide pelo seu próprio trabalho. Cada um tem e deve ter sua ideologia dentro do hip-hop, não é todo mundo pensando exatamente tudo igual.

Coincidentemente, as opiniões acima têm a ver com as do capítulo V (“Graffiti e breakin’ vs. Rap”), no que diz respeito à busca 6

Grupo de rap político do Nordeste.


O hip-hop e a Política

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das causas para os conflitos entre grafiteiros, b-boys e rappers: nos deparamos com a política como uma delas. Chuck D, líder do Public Enemy, e apoiador em potencial do hip-hop, em entrevista ao documentário Planet rock, declara o seguinte a respeito do assunto: As pessoas não precisam de música. Elas precisam de comida, casa e roupas. A música vem depois.

Dentro de uma opinião muito pessoal, primeiro, precisamos conhecer muito bem a história do nosso país, buscando conhecimento através dos livros, muitas vezes títulos fora do catálogo educacional convencional. Em seguida, termos ímpeto participativo, integrando-nos a debates, palestras, assembléias e reuniões, seja numa igreja, numa associação de moradores, num partido político, na escola, no trabalho, em casa, junto às rodas de amigos, em meio aos representantes do movimento, ou em qualquer lugar onde possamos discutir assuntos com uma perspectiva de melhoria social. Por último, nos entendermos como militantes do movimento hip-hop e descobrirmos quais são nossas responsabilidades dentro dele. Só assim estaremos dando o primeiro passo para a maturidade, pois as irregularidades políticas, sociais e raciais ainda ocorrem graças à nossa negligência também. Somos juventude, somos maioria. Infelizmente criou-se uma idéia de que nós, enquanto povo, devemos estar submetidos aos caprichos dos nossos governantes. Não entendemos que eles estão a nosso serviço, e que isso custa dinheiro? Nosso dinheiro! Portanto devemos nos informar bastante antes de expandirmos a informação que tanto defendemos em nossos discursos para todos. Pode não parecer, mas somos responsáveis diretos pelo futuro do Brasil, devido à nossa tenra idade e o nosso jeito de pensar e agir.


ocia

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12. O Hip-hop e sua ação socia

12. O Hip-hop e sua ação socia


12. O Hip-hop e sua ação socia

12. O Hip-hop e sua ação socia

12. O Hip-ho


Embora ainda falte dinheiro nos cofres do hip-hop, em função da falta de experiência por parte de muitos de nós, nada impede que façamos algo para melhorar o intelecto das pessoas ao nosso redor. É claro que não podemos abraçar o mundo com as pernas, mas, se tentarmos transformar a nossa comunidade, logo receberemos a atenção e o apoio popular devidos para modificarmos positivamente nosso ambiente social, despertando o encorajamento para enfrentar nossos problemas com sabedoria. Este tipo de ação pode ocorrer com o breaking, caso você seja um dançarino; com o grafite, caso você seja um grafiteiro; ou com o rap, caso você seja um rapper ou DJ. Tais atividades poderão acontecer com o apoio da igreja local, da associação de moradores, da escola, da escola de samba ou de todos juntos. Só cabe ao idealizador apresentar um bom projeto para o desenvolvimento dessas atividades. Nino Brown afirma o conceito de cidadania trazido pelo hip-hop e aproveita para questionar a indisposição de muitos de nós em relação ao desenvolvimento de ações políticas, assim como a contradição entre os que pregam teoricamente e negligenciam a prática: “Nunca deixei o hip-hop nem o movimento black power, porque não tem como fugir disso. O hip-hop precisa do dinheiro. A questão de trabalhar com o social, num centro cultural governamental, como é o meu caso, só tá ali quem é hip-hop mesmo”, afirma. “Eu tô na Casa

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O hip-hop e sua ação social

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do Hip-hop de Diadema há três anos. Eu trabalhei três meses como voluntário. Você precisa ‘tá’ organizado, tanto mentalmente quanto fisicamente, porque se você começar a fazer muitas coisas que não condizem com você e falar somente no palco, sendo apenas um revolucionário de palco, de mesas e debates pra ficar tomando água mineral, não vai transformar muita coisa nesse sentido. Eu sozinho não vou fazer muita coisa também. Tem eu, tem o Nelsão [Nelson Triunfo], tem o Marcelinho [Back Spin], a Suely Chan, o Levi, que tamos tocando esse trabalho, e a Zulu Nation Brasil, que também é uma coisa muito difícil. Que se você não tiver uma filosofia de vida voltada pra isso, você acaba desandando. Porque eu, desses três anos pra cá, já passei por muitas coisas ruins, já até senti vontade de largar tudo. Então, se eu ficar falando só da questão social, que tá legal, e que estamos muito bem financeiramente, eu vou estar mentindo, porque a história é pra chorar”, desabafa. “Eu queria ter feito muito mais, mas ainda é muito pouco o que eu consegui! Eu queria ter uma independência econômica, aí sim eu ia saber se é isso que eu quero mesmo. Então, quando a gente coloca que o cara do movimento tem coragem de comprar um tênis de 200 reais, e não tem coragem de investir na cultura, você precisa chegar pra ele e explicar qual é a real. O trabalho social não é só você ganhar a sua grana, e fazer o seu trabalho. Não! Também é gerar os multiplicadores. Quando você começa a mudar a cabeça de algumas pessoas que são difíceis, aí sim o hip-hop tá começando a transformar aquele local. Eu trabalho na periferia, onde muita gente do hip-hop não gostaria de atuar, como é o caso do Jardim São Luís. Chego num lugar totalmente excluído, sem endereço, com uma equipe como a Zulu e fazer um trabalho de conscientização e cidadania.”

Nino acredita que um dos fatores que mais implicam para a precária ação social do hip-hop é a falta de conhecimento: “O fato é que não se fala no quinto elemento [o conhecimento, de acordo com a Zulu Nation]. Esse elemento surgiu pra pregar pras pessoas que têm essa consciência ética e cidadã. O hip-hop não vai formar nenhum artista, pelo contrário, todos já somos artistas. A minha função não é formar um artista, mas sim um ativista! A gente fala muito de consciência, mas que consciência é essa?


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Acorda hip-hop!

Você vai num show, aí no final a galera sai do baile e faz arrastão na rua? Não dá! Faço uma bela letra, canto a favor do meu povo, ganho um dinheiro, depois vou morar num condomínio fechado? Então, existem poucas resistências visíveis”, critica. “A Casa do Hip-hop é a única casa da América Latina que trabalha o ano inteiro a cultura hip-hop. E a Casa do Hip-hop é tipo um espelho: o que der errado lá, todo mundo vai ficar sabendo! O que se trabalha lá são puramente aqueles elementos de que muitos estão fugindo e que são os ensinamentos da Zulu: paz, amor, respeito, união e diversão!”

DJ Deco questiona aqueles que muito falam em suas letras, e pouco exercem na prática as soluções dos problemas: “O hip-hop, em se tratando de música, é o que mais tem comprometimento com um papel social, por sua origem humilde. Mas, às vezes, a gente vê muitas letras cobrando bastante, falando bastante de política, bastante de desigualdade e muitos grupos só ficam nas músicas”, critica. “O Jigaboo, por exemplo, a gente não era um grupo de falar muito dos problemas nas letras”, reconhece. “As letras eram muito sem compromisso, mas a gente iniciou um projeto na Febem1 com recuperação comprovada. Eu tô querendo dizer que muitas vezes você não tem obrigação de fazer uma letra falando a respeito de problemas sociais”, explica.

DJ Deco também observa que nós não dispomos ainda de condições plenas para assumirmos financeiramente um projeto social, tendo de ir ao encontro de algumas parcerias: “Em relação aos projetos, eu acho que já tá gerando problema. Quando a prefeitura, por exemplo, reserva uma verba pra um projeto, ela vai procurar alguém que seja engajado no meio pra poder fazer essa distribuição de onde vai trabalhar e quem vai colocar”, comenta. “Muitas vezes, quem chega na frente, acaba fazendo uma seleção política, e, às vezes, não coloca quem é capacitado pra trabalhar, e sim o amigo do amigo dele”, critica. “Então, a gente tem que aproveitar sempre que tiver uma oportunidade, sem que a

1 Antiga Fundação Estadual do Bem-estar do Menor, atual Fundação CASA – Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, em São Paulo.


O hip-hop e sua ação social

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gente tenha respaldo, da prefeitura, de qualquer órgão público ou até mesmo das ONGs, a gente tem que tentar fazer o melhor. Pra que seja comprovado que o melhor está sendo feito em termos de recuperação, e de aprendizado pra essa garotada das comunidades, pra que a gente possa ter pessoas formadas dentro do hiphop com a cabeça que nós não tivemos”, justifica. “Porque a gente começou isso sem esse tipo de ensinamento, e sem esse tipo de espaço. Então, temos que fazer o melhor uso possível disso, pra que não vire uma arma contra nós mesmos”, adverte.

Para Gabriel, a ação social do hip-hop – em especial, do rapper – não deve ser uma regra seguida à risca: “O conteúdo das músicas, na maioria dos casos no Brasil, é uma forma de ação social, através das idéias. Então, eu não acho que todo o rapper seja obrigado a ter outros tipos de ação, além da música. Alguns fazem, outros não, mas não deve ser uma obrigação de ninguém do nosso meio. O interessante é que todos tenham, pelo menos dentro do que dizem, um comprometimento social, a responsabilidade sobre o que estão falando e não façam um rap tratando coisas que, em vez de contribuir, vão prejudicar a molecada”, adverte. “Mas acho que, no Brasil, a gente tá tranqüilo quanto a isso. Nos EUA, infelizmente, é que a coisa se inverteu. A ação social do hip-hop, em grande parte dos casos, é uma ação negativa na cabeça da garotada.”

Big Richard apóia o ponto de vista de Gabriel, alegando que a ação social no hip-hop não é algo obrigatório: “Eu falo muito baseado na minha experiência de vida, e no que eu vi e aprendi por aí: a gente tinha uma noção de que dentro do rap, dentro do hip-hop, e eu falo do rap porque é a minha origem, a gente tinha que lutar, fazer pelo social. A gente não era nem muito artista, a gente não se considerava artista e muitos não se consideram hoje”, ressalta. “A gente era um agente social, um batalhador social, e fazia política social. Só que eu acredito que se você trabalha com música e com grafite, você trabalha com arte. Então, se você trabalha com arte, você é um artista”, lembra. “E o artista não deve ter essa obrigação de fazer alguma coisa pelo social. A música dele, o trabalho que ele faz e que ele manda


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Acorda hip-hop!

pro povo, e ecoa as idéias dele por aí já são uma ferramenta em prol do social”, afirma. “Porém, mesmo pensando assim, eu sou envolvido numa pá de projeto social”, ri. “Mas por que eu tô dizendo isso? Porque eu tenho essa visão, eu me satisfaço, além de fazer o que eu faço, e isso eu faço por vontade própria, indo até o povo e botando a mão na massa. Seria arrogância eu pensar isso e muito comodismo até: ‘eu tô ganhando o meu dinheiro, mas tô propagando o meu negócio por aí. Mesmo assim, tô fazendo um bem pra humanidade’. E não é um favor, o que eu faço é o meu trabalho, eu ganho dinheiro pra isso, e eu cobro por isso e não sou vendido por isso”, declara. “Seria vendido se eu só fizesse isso, cobrasse por isso, enchesse o meu bolso de dinheiro e ficasse por isso mesmo. Só que eu acho que, até por uma questão de realização profissional, eu tenho necessidade de me envolver com o social. E isso não é contradição porque não é regra. Eu não faço isso como regra.”

Bonga vê a ação social como prática fundamental do hip-hop: “Se você contesta o sistema, você tem uma posição política. O hip-hop, se ele tem ou não obrigação social? Se você, além da cultura, quer uma transformação do cotidiano, deve ter uma obrigação social, sim. O grande agente que surge dentro do país nos projetos que existem tanto no poder público quanto nas ONGs é o hip-hop. O projeto Parceiros do Futuro [administrado pela prefeitura de São Paulo], que trabalha as escolas, ele é quase todo engolido pela cultura hip-hop. Nos projetos que existem dentro da Febem, a grande força que existe é o hip-hop. Ou seja, o poder público se torna inoperante mas o hip-hop faz transformações onde os pedagogos, os educadores e os agentes sociais não conseguem. Ele tem uma linguagem mais direta com a garotada do que os educadores e intelectuais”, acredita. “O hip-hop consegue ter uma ação mais verdadeira, mais forte, mais inteligente do que muito educador, muito intelectual, e muitos órgãos do poder público. A responsabilidade social já faz parte da concepção que você adquire antes da cultura hip-hop, mas é de cada um. Eu acho que é necessário, você deve fazer essa ação social, e é de cada pessoa. Tem gente que acha que não deve fazer e f... o social, mas se você quer uma transformação através do que você gosta, do


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que você sabe, e que isso vai se expandir e mostrar o que o hiphop pode conseguir através disso, eu acho que é viável.”

Rooney sustenta a tese de que o hip-hop nasceu na intenção de agir socialmente. Ele apenas teme as alianças erradas, muitas vezes assumidas por nós para ajudar as pessoas: “Vamos pensar o seguinte: nem todo mundo que faz festa beneficente tá precisando. Muitas vezes a gente acaba ajudando numa ação social que não tem um cunho religioso, social e político muito sério. Mas a gente acaba fazendo indiretamente. Acho que a gente pode, sim, usar o hip-hop pra salvar, resgatar e levar a coisas boas. Isso já é uma ação social muito séria, e o hip-hop veio pra isso, nasceu dessa história, de que as pessoas não tinham entretenimento. A política, hoje em dia, no mundo inteiro, é econômica, e ela não pensa no povo. Então, o hip-hop veio pra isso! Resgatar a auto-estima da população, e salvar muita gente das drogas e da marginalidade”, acredita. “Só um adendo: vamos ver as pessoas que realmente estão fazendo ação social, porque tem muita gente utilizando o hip-hop pra ficar na teoria disso, e não conclui uma obra social.”

Ao contrário do que muitos de nós afirmam, Rooney acredita que não é necessário ter dinheiro para praticar uma boa ação: “A partir do momento que eu conheço uma pessoa na rua, e tô mandando uma idéia pra ela, eu tô fazendo dentro do hip-hop a minha parte social, de querer induzir o cara a não fazer besteira. Isso eu já posso considerar uma ação social. Agora, quando você fala de uma festa, arrecadando alimento pra uma instituição, com certeza, precisa de alguma grana! Como é feito isso? É preciso saber qual é o apoio e ver se quem tá fazendo o trabalho é idôneo.”

Bad acredita que o hip-hop já nasceu com esse papel social. Ele só não concorda com a obrigatoriedade imposta para os seus membros: “O hip-hop, em si, ele já foi criado como uma ação social. Ele já foi criado naquela direção de ocupar a juventude da época lá em Nova York. E quando veio pro Brasil, em 84, foi direcionando o pes-


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soal pra arte e exigia-se o bom”, conta. “Agora, que o artista do hip-hop tenha que ser obrigado a realizar uma ação social, não! Primeiro que no Brasil, onde a gente tem que batalhar o pão de cada dia, não tem como você ficar se dedicando a ação social”, justifica. “Cada elemento aqui no centro da cidade [SP] tá precisando de uma ação social pra si mesmo”, ironiza. “É um país pobre, é um país miserável. Tem gente aqui que pensa que é rica, e um rico daqui não se compara com um rico dos EUA. Pega-se muitas pessoas do hip-hop pra montar as oficinas culturais. Por exemplo: um oficineiro de rap, o que ele vai ensinar? O que ele vai falar? Eu conheço pessoas que saíram da cadeia para entrar numa associação de moradores do extremo leste da Zona Leste, repetir as palavras de uma pessoa dessas pra mim é terrível! É só bobagem! Só quer falar de Comando Vermelho,2 PCC,3 e isso não é cultura”, contesta. “Seria uma subcultura ou uma anticultura. Colocar pessoas despreparadas socialmente pra fazer uma ação social é uma péssima escolha e um mau exemplo.”

Para a grafiteira Só Calcinha, o hip-hop já carrega em sua natureza a vocação social, sem que haja uma necessidade de levantar uma bandeira para isso: “Tá havendo uma maior discussão no grafite assim: ‘será que o grafite tem sempre que ‘tá’ ligado ao social? Será que o grafite, sempre que ele fizer o social, é preciso estar ligado a ONGs? Tem que captar recursos, e pedir dinheiro pra não sei quem pra acontecer? Não pode ser simplesmente a arte pela arte?’ O grafite em si, o rap e o break, independente de você ‘tá’ fazendo a arte pela arte, você vai ‘tá’ interferindo de alguma forma”, afirma. “O pivete que te vê pintando vai olhar e vai falar: ‘putz! Vou lá conversar com ela, porque eu quero saber o que ela tá fazendo, e eu quero saber como é que sai a tinta do spray e tudo mais!’ Mas eu acho que assim como eu não tenho que estar ligada ao social, também acho que tenho que estar ligada ao social”, ri. “Todos nós vivemos num país onde a gente necessita de tanta coisa, como de um posto de saúde legal, uma escola decente, e como que a gente

2 3

Facção criminosa do Rio de Janeiro. Primeiro Comando da Capital, facção criminosa de São Paulo.


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pede isso? Como a gente faz a pessoa enxergar isso também? Através do quê? Através das nossas manifestações! Eu acho que é o maior meio de interferência que a gente tem! E no grafite a gente tenta fazer isso! Tenta direta ou indiretamente aguçar o interesse dos governantes pra essas necessidades. As pessoas até vêem que precisam de muita coisa, mas pôxa... ‘Eu preciso do quê? Eu quero o quê? Quem é que dá isso? Quem faz aquilo?’ Se o cara começar a se perguntar isso, já é uma interferência muito positiva”, acredita. “Então, tem muita gente que defende o grafite só como manifestação artística: ‘eu sou underground! Eu sou o cara que vai, e faz mesmo e não quero nem saber!’ Eu acho que isso não é uma coisa errada, mas o poder que ele tem nas mãos tem seus limites. Se eu tô com uma lata na mão, eu tô no muro, por que não fazer uma interferência legal? Por que não gerar alguma coisa legal pras outras pessoas? Se eu tô com um spray na mão, um microfone, se o b-boy tá com a música, se o rapper tá com o microfone, por que ele não pode usar isso pra exigir coisas, e fazer com que no lugar dele exijam coisas também? O hip-hop tem essa coisa legal de criar massas, de juntá-las e defender idéias! Eu acho bem legal isso!”

Segundo Mano Brown, pelo fato de o hip-hop abordar assuntos que a maioria não tem coragem, naturalmente acaba assumindo responsabilidades que não são do movimento: “O hip-hop trabalha! O que acontece é o seguinte: depois que o rap passou a falar da realidade, todo mundo cruzou os braços, e quer que os grupos de rap façam. A própria comunidade não faz e quer que os grupos de rap façam, por quê? Porque o rap tocou na ferida! É como o formigueiro: ele tava quieto, você foi lá, mexeu, as formigas espalharam e elas querem saber quem foi! Então, o cara que mexeu nesse assunto, no caso, o hip-hop, ele é a bola da vez e todo mundo cobra dele”, explica. “Por ele ter essa postura de ensinar o caminho certo pra quem tiver errando, automaticamente, se põe na posição de alvo! Você se torna um alvo, você é cobrado! E sendo cobrado, corre pra provar que tá fazendo as coisas! Eu sou contra isso! Eu acho que isso seria como um pedágio! Se alguém me perguntar: ‘Brown, o que você faz?’, não faço nada! O que eu faço é isso que você tá vendo aí! Os moleques


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Acorda hip-hop!

me cumprimentando na rua! Eu faço isso! Se eu tiver fazendo, eu falo que não tô fazendo! Eu se eu não tô fazendo, não tenho vergonha nenhuma de falar: ‘não tô fazendo nada do que vocês tão querendo que eu faça! Vai cobrar o Só Pra Contrariar! Vai cobrar os grupos de pagode! Vai cobrar os jogadores do Corinthians, do Santos, do Flamengo! Vai cobrar!’ Por que ninguém vai? Eles são de mesma origem, têm muito mais dinheiro que nós, muito mais influência! Deles ninguém cobra”, critica. “Mas a nossa própria comunidade, e os próprios do rap cobram isso uns dos outros, como se isso fosse cartão de acesso pra gravar um disco bom. Música boa e ação social não têm nada a ver!”

Mesmo defendida por muitos como uma prática não-obrigatória em nosso meio, vale citar alguns trabalhos realizados por rappers nos EUA: −− Common Group Organization, do rapper Common: Dedica-se a levantar fundos para presos políticos e inúmeros projetos comunitários. “Temos consciência, mas não desfrutamos daquilo que sabemos, dos revolucionários e dos defensores da liberdade. E acho que é nosso dever tornar os jovens conscientes e tentar viver essa coisa. Eu sei que grande parte da luta foi esquecida e muitos movimentos, impedidos. Hoje nós temos o hip-hop, que é um movimento forte, mas que não diz tudo o que precisa ser dito”, afirma Common em entrevista ao programa New Music, exibido pelo canal Multishow no Brasil; −− Hip-hop Respect: Entidade fundada pelos rappers Mos Def e Talib Kwell, entre outros, para captar fundos para trabalhos como o da Amadou Diallo Foundation – ONG criada após a morte do africano Amadou Diallo, em 4 de fevereiro de 1999, numa ação premeditada da polícia de Nova York –, que milita na causa dos Direitos Humanos. “O hip-hop é nosso músculo, e eu gostaria de ver o hip-hop ser usado para mudar coisas que nos afetam”, declara Mos Def ao New Music;


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−− Wyclef Jean Foundation: Oferece terapia musical para crianças pobres em várias partes do mundo. Também promove projetos no Haiti, terra natal de seu fundador, o rapper Wyclef Jean. “Quando vejo a situação precária do Haiti, preciso falar disso, pois mais ninguém o fará. Milhões de pessoas podem ou não me dar atenção, por isso eu lhes dirijo a palavra. Eu me sinto meio que um porta-voz, sacou?”, explica Wyclef no mesmo programa de TV. Realizar palestras nas escolas das comunidades pode ser uma experiência muito interessante para quem deseja construir uma casa começando pelo alicerce, pois a juventude se identifica com a nossa proposta, graças à proximidade de faixas etárias, realidade e linguagem. A relação é positiva tanto para o jovem interlocutor quanto para o palestrante, que amadurece sua capacidade de discurso e discussão na prática. Estar ao lado do nosso povo, mostrando-nos úteis a ele, é tê-lo como um apoio potencial para nossa vida profissional dentro do hip-hop, caso estejamos lutando por isso também.


13. O Hip-hop nacional no mercado aberto

356 CAP.13

13. O Hip-hop nacional no mercado aberto



Depois desta gama de informações, acredito que já se tenha percebido que qualquer movimento, para manter a sua causa viva, necessita de capital. Mas será que nós estamos preparados para operar o capital gerado pela cultura hip-hop? Nos EUA, o hip-hop domina os mercados da moda, música e cinema, abrindo várias portas de emprego para a população negra e latina. É claro que ainda não podemos nos comparar à organização econômica do hip-hop americano, mas já começamos a nossa fase de transição e não podemos permitir que o dinheiro arrecadado pelo hip-hop venha a girar em mãos erradas. É inevitável admitir que o futuro do nosso rap está nas gravadoras multinacionais, em decorrência do seu alto teor de projeção e comercialização, e é ignorância pensar que nós devemos nos fechar totalmente, promovendo apenas um mercado paralelo. Vale lembrar que não temos um compromisso apenas para com o movimento, mas também para com o povo, que é consumidor em potencial do mercado aberto. E se o nosso objetivo é propagar a informação e a proposta do hip-hop, não podemos nos isolar, seguindo ao pé da letra a expressão underground. Para se ter uma idéia, o Quilombo dos Palmares, considerado um símbolo de resistência afro-brasileira, mantinha relações comerciais com as cidades à sua volta para a sua sobrevivência. Para isso devemos buscar sabedoria para lidar com o mercado aberto. Esse conhecimento só será possível se admitirmos que

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O hip-hop nacional no mercado aberto

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não podemos nos limitar apenas à condição de adeptos, mas de homens preocupados com o crescimento da cultura hip-hop como um todo. Rooney se considera um dos pioneiros no investimento em mercado hip-hop no Brasil, criando a revista Epidemia, de grafite, e a grife Pixa-in, de roupas e acessórios: “Eu, quando entrei no hip-hop, a primeira coisa que fiz, foi gastar dinheiro comprando revistas, livros, porque eu precisava de informação. Então, taí o mercado! Mercado dos livros, das revistas, dos CDs etc. Eu precisava me identificar com a minha tribo que era o hip-hop”, conta. “Aí, eu pensei: ‘o que eu vou fazer? Eu vou me vestir igual aos caras!’ Só que não tinha roupa, aí, pensei: ‘vou fazer roupa!’ Comecei a fazer roupa, aí, você acaba vendo que existe uma coisa chamada consumidor, onde a necessidade é muito grande, porque toda a periferia gosta de hip-hop. Se não gosta de hip-hop, gosta de samba, e são poucos que gostam de outras coisas”, explica. “Como eu sou do hip-hop, hoje, se eu vender uma touca que não é pro rap, é pra b-boy ou um bico de spray, é uma indústria que tá ali pra vender tinta. Tinta não tem nada a ver com o hip-hop, mas é um produto que tá aberto pro nosso cliente. Então, dentro do hip-hop, existe uma infinidade de situações que você pode abrir o mercado, e eu acho que toda a festa deveria ser documentada, porque isso é uma cultura e uma cultura precisa ser documentada. O único documento que a gente tem são livros, CDs, vídeos e tudo isso é mercado. Então, a partir do momento que você acha que tá no hip-hop só por lazer, você já tá consumindo alguma coisa”, afirma. “É um grande mercado. O hip-hop, hoje em dia, é uma das músicas mais vendidas no mundo, em se tratando de música; agora, de roupa têm milhares de marcas hoje no mundo inteiro, e eu acredito que é um mercado bacana!”

Rooney também aponta a deficiência no setor de investimento do nosso hip-hop, alegando a quase inexistência de profissionais provenientes do movimento nas áreas de atuação: “Normalmente o mercado, ele é controlado por quem tem uma visão capitalista bem apurada. O mercado taí e amanhã, logicamente, onde você faz sucesso, tem um vizinho que já quer fazer


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Acorda hip-hop!

o mesmo que você, e as pessoas não tão nem aí, porque você tá num mundo capitalista, e o capitalismo é isso: selvagem! E cada um vem te engolindo da maneira que der! Há 15 anos, quando começou a vender alguma coisa de hip-hop, ninguém acreditava nele. Hoje todo mundo grava um disquinho, e é um comércio. As gravadoras tão abertas pra você fazer mil cópias, 50 mil, 100 mil, 200 mil, um milhão de cópias como alguns artistas de hip-hop já venderam. Ao mesmo tempo, há 10 anos não havia roupas! Hoje tem 20, 30 marcas nacionais. Eu acredito que dentro de cinco, dez anos, o hip-hop vai ‘tá’ no padrão que deveria ‘tá’ hoje: razoavelmente bom! Daqui a uns 20, 30 anos, com a força de periferia, eu acredito que o rádio vai ‘tá’ aí, a televisão vai ‘tá’ mais aberta pra nossa cultura, e o mercado vai abrir cada vez mais! Pra isso, tá precisando de mais rádios, canais de TV, mais marcas, as pessoas pararem de usar o surfwear, porque aqui [São Paulo] ninguém anda na praia e surfa. Nós somos urbanos, com exceção de algumas pessoas que moram no litoral, mas, apesar de a gente ter a segunda ou a terceira maior orla do mundo, isso não quer dizer que todo mundo é surfista! Então, eu acho que a gente pode usar uma roupa de hip-hop mesmo na praia. Pode ter um bermudão louco, uma viseira louca e um camisão florido, e você não vai deixar de ser o que é! E, por enquanto, ainda não temos profissionais do hip-hop. Precisamos de modelos pra capas de disco, estilistas pra fazer desenhos de roupas, desenhistas, um bom produtor musical; o espaço tá aberto pra todo mundo! Acho que você pode inventar aquilo que quiser. Se quiser criar um boneco no estilo do hip-hop, vai vender pras crianças, e todo mundo vai comprar, com certeza”, acredita. “Se você entrar no site da Melissa,1 ela desenvolveu um sapato escrito ‘Hip-hop’, aí, tem uma bonequinha preta deitada e um rádio-gravador ao lado dela...! Então, o mercado taí! Você tem que abrir o olho e comprar aquilo que você sabe a procedência, de quem é do hip-hop, pra poder gerar dinheiro dentro dele mesmo.”

Para Rooney, a desarmonia entre produtor e consumidor é uma das causas de um progresso limitado:

1

Marca de calçados femininos.


O hip-hop nacional no mercado aberto

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“Tá faltando sensibilidade dos dois lados: tanto de quem compra quanto de quem faz! Principalmente de quem compra, porque, normalmente, quem compra, compra qualquer coisa”, lamenta. “Mas você poderia pensar duas vezes antes de adquirir qualquer produto. Você não entra no supermercado sem saber a data de validade, comparar preço e ver se o produto é bom, já começa por aí. No consumo do hip-hop, tem que ser a mesma coisa, e ver se o fabricante tá investindo na sua comunidade realmente!”

Suave também lamenta que ainda não tenhamos descoberto o nosso potencial no mercado: “É outra coisa de que o pessoal tem que se conscientizar: ver o hip-hop como indústria, e não só indústria musical. A partir do momento que você tem a sua música numa novela, indo pra um comercial, com pessoas fazendo propagandas como foi o caso da C&A, que pegou um grupo de rap [Doctor MCs] pra fazer um comercial, você tem a Brastemp, a Telemar [empresa de telefonia], ou seja, o capital que vai ser gerado. Porque, hoje em dia, o problema do hip-hop é o seguinte: quem quer comprar, não tem dinheiro pra consumir; quem quer ir ao show, não tem dinheiro pra pagar ingresso. Então, nunca vai ter capital de giro dentro do movimento hip-hop”, critica. Aí eles falam: ‘mas eu não quero que o meu rap atinja a classe média!’ A classe média vai ter que começar a consumir, você vai ter que começar a fazer com que ela consuma o seu produto, seja em forma de CD ou de roupa. Porque o skate faz isso, o rock faz isso, o reggae faz isso, então, por que o rap não pode fazer? Por que o rap não pode começar a pensar em abrir a sua gravadora, que já tem a 4P? Isso vai gerar emprego! Você vai ter gente trabalhando em gravadora, em distribuidora, fazendo música. E isso tudo é um mercado, eu tô falando de coisas básicas. Você não pode imaginar desde o cara que vai fazer o marketing do seu CD até aquele que vai pintar a sua camiseta”, ressalta. “Você vai ‘tá’ gerando emprego e, aí sim, você vai ‘tá’ gerando capital pro resto, não ‘tá’ fazendo dinheiro pra ninguém. Não é aquele cara que tá chegando de fora, e tá colocando dinheiro aqui, e você tá pagando a ele. Não! É o mercado interno. É você, sim, gerar empregos pras pessoas do Brasil que é como a idéia da FUBU: For Us By Us. Gerar um capital interno pro


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Acorda hip-hop!

movimento. Isso é um grande mercado. Quando a gente começar a perceber isso, a gente vai ver que rap é um mercado que nunca foi explorado no Brasil. No entanto, tem que dar dinheiro pra quem é do movimento, e não pra quem tá do lado de fora.”

Suave acredita que, para que o mercado do hip-hop se expanda, é necessário que o próprio se dê valor em qualquer parte do Brasil, e não se restrinja a bairrismos: “É a mesma coisa que a gente falar da divisão do capital interno no Brasil: você vê que tem gente muito rica, e tem gente muito pobre. Eu continuo achando que, dentro do rap, você tem um ou dois fazendo sucesso ou bem de vida, dando certo, e tem a maioria desistindo do movimento”, ressalta. “Isso tem que acabar, e a gente tem que se unir porque não tem só rap em São Paulo, no Rio. Você vê que tem programa de rap lá no Sul, o Hip-hop Sul da TVE, que é um dos programas, que fora a MTV, é rap na televisão. E vê se alguém fala muito disso? Por quê? Será que é porque tem muito branquinho lá no Sul? É muito loirinho de olhos azuis? Isso incomoda? Mas tem muito preto lá também que faz a coisa dar certo, mas mesmo assim ninguém fala disso, e isso é um outro problema interno: ninguém quer se unir”, critica. “Só querem falar de si, e acham que São Paulo é a capital do rap, e tem que ser tudo aqui.”

Talvez “despreparo” seja uma palavra quase uníssona dentro do ponto-de-vista daqueles que participam dos capítulos deste livro quando se busca a causa dos nossos erros, enquanto membros do hip-hop. E com relação ao fator mercado aberto, o termo se faz presente mesmo que no formato sinônimo. Para o rapper Magno C-4, o hip-hop deve, antes de mais nada, atingir a sua auto-suficiência profissional para depois competir no mercado aberto: “Necessita-se de uma profissionalização de quem faz parte da cultura. Por exemplo, o b-boy: eu vejo muitos fazendo capa de revista, fazendo propaganda de grife. Seria muito interessante esse b-boy se profissionalizar, criar a grife dele, em vez de pedir roupa pra qualquer patrocinador”, sugere. “Isso ia gerar emprego pro pessoal do hip-hop”, afirma. “Os próprios rappers e DJs


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podem se tornar produtores de eventos, técnicos de som, produtores musicais, e isso só vai crescer quando o hip-hop deixar de ser amador aqui no Brasil”, afirma.

Magno reconhece que, além do nosso despreparo profissional, o hip-hop sofre o reflexo da crise econômica do país, o que acaba retardando o nosso progresso: “Não depende só de nós no momento. O país atravessa uma crise, uma recessão, e por isso o prejuízo é de todos”, justifica. “Se pra quem tem alguma coisa tá difícil, pra quem tem só um sonho, tá pior ainda! Mas não tá impossível! Precisamos lutar e nos especializar!”

Gabriel se declara otimista quanto ao crescimento do rap no mercado aberto: “Cada dia tem uma novidade aparecendo e a gente vai aprendendo a lidar com as oportunidades que vão surgindo. Todo mundo vai querer ver o hip-hop crescer ainda mais. O que vale é querer saber tomar conta desse crescimento da melhor forma possível. Tem coisas que, de repente, uma gravadora vai e cria um produto meio esquisito em cima do rap ou a linguagem fica meio desgastada em alguns comerciais, mas acho que isso também não afeta tanto. O rap sobrevive quando vem essa febre. Eu não tenho medo desses efeitos colaterais. Acho que dá pra crescer mais ainda e esse crescimento pode ser mais positivo pra quem faz essa música de coração e acredita no poder que ela tem.”

Bonga acredita ser ainda prematuro acreditar que o nosso hiphop possa despontar no mercado aberto: “Nós vivemos num país que só em São Paulo já tem pelo menos dois milhões de desempregados, e o hip-hop dentro disso produz CDs e vende, monta a sua própria grife, colabora para suprir a necessidade desse mercado de trabalho que tá tão enfraquecido hoje”, justifica. “Mas o que eu quero dizer com isso? Eu acredito no sistema de autogestão, ou seja, a gente pela gente. Os grafiteiros podem confeccionar as camisetas e vender dentro da cultura ­hip-hop, confeccionar revistas, e até quem sabe, futuramente, as suas próprias tintas? As bandas de rap, e isso já acontece, con-


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feccionarem os próprios CDs. É claro, ninguém é uma etiqueta, e não se deve adotar um monte de marcas que não se importam com você e só querem ganhar dinheiro, isso não! Ainda falta muita coisa, o hip-hop não tá preparado do jeito que deveria ‘tá’ pra atingir o mercado aberto dentro do Brasil, mas eu acho que a autogestão seria o melhor caminho. Atrair primeiramente uma rotatividade entre nós pra coisa no futuro ter crescimento”, acredita. “Qualquer publicitário pensa no seu público específico. Por exemplo: o cara, quando ele tá vendendo uma logomarca, um produto, ele quer atingir o público jovem, ele vai trabalhar isso pro público jovem. Quando um cara tá vendendo um tipo específico pra mulher, ele vai trabalhar esta divulgação na medida pro público feminino. Pro público do hip-hop, não seria diferente. Será que o público além hip-hop vai consumir hip-hop? Pode ser! Por exemplo, a revista de grafite, ela não vai atingir só os grafiteiros, ela vai atingir os skatistas, os tatuadores, ela vai abrir, ela vai ser além. Mas será que quem consome a música rap vai ser só o pessoal do rap? Vai ser o pessoal do rock? Vai ser o público comum também? Quem veste o street wear vai ser só o pessoal do hip-hop e do skate ou mais gente? Então, tem que ver até onde é interessante o marketing em cima dessa questão do hip-hop no mercado aberto, e a autogestão daria o tom dessa coisa.”

Mano Brown acredita que o rap pode crescer e ser comercializado no mercado aberto, mas que, ao contrário do que parece, o estilo nunca será manipulado: “A música, o vento não me proíbe de carregar ela pra outros cantos! Outras pessoas, de vários lugares do Brasil e do mundo, vão querer ouvir o que você tá falando se a natureza conspirar a favor. Contra a verdade não tem arma, não tem barreiras! O que acontece é que você pode ir pra qualquer lugar do mundo, mas quando você voltar, volta pro lugar de onde você veio”, acredita. “É meio frustrante pro mercado, porque tudo indica que o rap vai vender muitos discos pra engordar as contas bancárias dos bacanas Mas aí, de uma hora pra outra, acontece alguma coisa e o rap volta pra sua origem e começa a vender de novo no mercado do submundo, nos becos, nas pequenas lojas. Eles não têm controle sobre nós, e nós ainda não somos números pra eles.”


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Mano Brown acredita na força e na auto-suficiência do rap: “Nunca no Brasil, os negros tiveram tanto poder como agora! O rap é poder! Você poder vender o seu disco aonde você quer! Falando o que você quer! Fazendo a capa do disco do jeito que você quer! Pra tocar onde você quer! Isso é poder! E esse poder a gente só conseguiu porque a gente fala não! A gente consegue criar o nosso próprio destino! Isso é o que importa pra mim!”

O DJ Johnny acredita na relação entre hip-hop e mercado aberto, mas não no atual momento. Na opinião dele, o hip-hop precisa primeiro desenvolver seus profissionais e capacitá-los. Ter sensibilidade para lidar com a periferia: “Os ícones do hip-hop não se conscientizaram ainda de que não é só porque você é favelado que você tem o dom de cantar rap. Rap não é só sentimento. Você tem que ter feeling pra fazer qualquer coisa. Se você quiser ser um advogado e não tiver feeling, você não vai ser um bom advogado. Então, você não vai ser um bom DJ, um bom rapper, um bom músico (...)”, afirma. “No underground, existe uma máscara pra falta de profissionalismo. São acordos mal feitos, contratos assinados na hora errada, a informação que não chega e a informação que não é absorvida. Então, o hip-hop no mercado aberto ainda corre risco, por quê? Quando você vai para uma gravadora grande, por exemplo, o seu olho brilha! Você acha que nesta gravadora não precisa fazer mais nada, porque ela vai te dar tudo e isso é uma mentira! Por mais que exista uma estrutura que você nunca viu, você não tá preparado pra ter toda essa estrutura, porque você nunca viu nada! E aí, você se f... Então, o hip-hop precisa ter seus profissionais. A periferia precisa ter seus profissionais, contador, médico, advogado (...). Para poder ajudar os caras que estão ali cantando”, ressalta. “Alguém que fale a nossa língua!”

Em nenhum momento Johnny descarta o crescimento do hip-hop ao lado do mercado aberto, mas não deixa de afirmar que precisamos de competência e estratégia para mantermos uma relação comercial com ele, e cita o exemplo do rap nesta realidade:


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“A abertura tem que ter! Sem expansão não tem jeito! Mas todo mundo que foi, se machucou. Isso começou com o DJ Raffa e os Magrellos.2 O Xis também foi e se arrebentou. Quem foi pra gravadora Trama, que tinha um dinheiro para investir, se arrebentou. Porque o mercado fonográfico é muito perigoso”, adverte. “Se ele for agora, ele tem que ter consciência. Ele tem que continuar fazendo shows baratos na periferia, por exemplo. Não adianta ele fazer show só em lugar bacana, que ele vai se afundar. O boy3 é consumista e só! E, seis meses depois, ele não vai mais lembrar de você”, alerta.

Big Richard vê as possibilidades comerciais do hip-hop com otimismo: “Eu acho que isso tá amadurecendo. Por exemplo: no break, no grafite, já existe esse mercado. Hoje, em São Paulo, você vê muito empreendimento de loja com grafite. Existem também aqui agências, empresas que vendem trabalho de grafite, de break. Existe a Quixote, que vende os trabalhos das meninas que eles formam na Escola Paulista de Medicina. O rap precisa acordar pra alguns aspectos, inclusive o critério de contrato com as gravadoras, e pra aqueles que querem fazer um trabalho independente montando os seus selos, entender que não é brincadeira, e que precisam aprender como funciona o mercado e o que é necessário fazer pra que o trabalho alcance seu sucesso pleno.”

A educação será nossa forte aliada, e devemos conquistá-la passo a passo, até atingirmos seus níveis superiores. Nossa cultura precisa de professores, advogados, contadores, administradores etc. Profissionais dispostos a conduzir os rumos do hip-hop. Parece impossível? Difícil talvez, mas se não tentarmos, nunca teremos uma receita eficaz para nossa juventude, e para a nossa causa. Não podemos nos dedicar totalmente ao hip-hop sem ter uma atividade paralela para ajudar a manter nossa vida social, e se o dinheiro do trabalho não for o suficiente para sustentar os estu2 3

Grupo de rap nacional de estilo comercial que emplacou nos anos 80. Playboy.


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dos, procuremos os projetos de ajuda comunitária como o PréVestibular para Negros e Carentes, promovido pela ONG Educafro (www.educafro.org.br), presente em muitas cidades do país. O que não podemos é nos entregar às armadilhas do sistema e permanecer desqualificados pelo resto da vida, colocando em risco o nosso crescimento e o do movimento que fazemos parte. A exemplo do que acontece nos Estados Unidos, a Dra. Irma McClaurin, pesquisadora de cultura hip-hop, antropóloga, professora da Universidade da Flórida e membro da Ford Foundation, declara o seguinte: O rap e o hip-hop foram apropriados pela cultura mainstream. Estão em trilhas sonoras e em comerciais, jingles do McDonald’s são tirados do hip-hop e do rap, astros do rap vendem produtos. Ninguém acha ruim quando uma grande celebridade vende um carro, tipo Celine Dion.4 Ninguém fala dos milhões de dólares. Mas quando é a juventude negra, que as pessoas acham que está fora do lugar, que não tem o direito de estar lá, surge a pergunta. Acho que eles estão fazendo exatamente o que a cultura mainstream pede. Estão sendo empreendedores, aproveitando o seu apelo, e capitalizando em cima dele, portanto, estão realizando o sonho americano, quer nós gostemos disso ou não.

Como se pode notar, temos a possibilidade de galgar degraus ainda não imaginados pelo movimento, mesmo no Brasil. O que ainda não ocorreu talvez foi a percepção do ambiente em que vivemos. Todo e qualquer movimento necessita de capitalização para manter sua causa erguida. Participar do lado mainstream não é má idéia, desde que o seu compromisso com seu povo não seja esquecido. 4

Cantora canadense de pop.


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14. Rappers pretos vs. Rappers brancos



Quando um irmão se sobressai em sua arte com categoria, rapidamente a “sociedade dominante” elege o seu representante, patenteando os nossos feitos, de modo sutil, nos dando a noção de que não temos nada e não sabemos de nada; seja na música, no esporte, na moda e, principalmente, nas demais áreas profissionais. O rapper que se aprofunda junto à história do nosso povo em todo o mundo acaba se deparando com a realidade de que os brancos sempre controlaram os nossos passos, e é inevitável que as nossas ações se tornem radicais face a isto. Para muitos pode parecer grotesco e até soar como uma atitude racista, mas de certa forma, vejo isto como uma reação natural por parte de alguns pretos aos brancos O jazz, o blues e o rock foram alguns dos ritmos criados pelos pretos e “patenteados” pelos brancos. Embora o rap não se prenda a um único formato, ele está muito mais voltado nos EUA, nos países africanos, e no Brasil, para a contestação dos negros e exaltação da raça negra; enquanto que o grafite e o breaking estão equacionados às demais raças, onde a adesão também é maior. Mesmo assim, ao contrário do que se pensa, nossa cultura foi criada para unir e beneficiar as quatro raças através do respeito e da sabedoria. Por isso, não podemos proibir a sua prática pelas demais raças. O que podemos e devemos exigir é que todos tenham consciência e, sempre que inter-

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rogados, digam que o rap é um ritmo criado por negros; com conceitos negros em toda a sua base. Negros que, ao contrário dos sectários da supremacia branca, preferiram compartilhar seus conhecimentos com outras raças do que centralizá-los somente nos afrodescendentes. Big Richard encara a discussão da cor do rap como algo atrasado: “Isso aí é uma polêmica que tem há muito tempo, não só no Brasil, mas no mundo. Só que eu hoje tô bem light, mas na época da ATCON, eu achava que o rap era de preto e que o branco tinha que se f.... Exceto se ele tivesse conceito, tivesse conhecimento daquilo que ele fazia e entendesse que era uma cultura de origem negra, e que ele não tivesse se apropriando disso, como era o caso do Gabriel, que era um cara que eu apoiava. Só que hoje eu acho que é uma grande bobagem. Porque, independente de ser preto ou branco, você pega um preto aí que faz uma pá de m... através do rap, que fala uma pá de besteira, que ridiculariza as mulheres, que muitas das vezes ridiculariza o seu próprio povo, ele vale extremamente menos do que, de repente, um rapper branco, que faz uma parada maneira, e você vai tirar com o cara, só porque ele é branco? Não é a cor que decide o caráter da pessoa, independente até de ser hip-hop, mas sim suas atitudes e sua forma de enxergar o mundo, que vai lhe dar créditos, status ou não.”

O rapper Magno C-4 considera que existe muita demagogia por trás do discurso reivindicativo do hip-hop quanto à nossa ancestralidade musical. Para ele, em muitos casos no hip-hop, essa reivindicação está relacionada àqueles que, por não terem a real competência na área, se utilizam de um jargão depreciativo para ferir os outros artistas, que, por serem brancos, se encaixam em suas justificativas: “Engraçado, né? O pessoal fala que o preto criou o blues, aí o branco foi lá e dominou. Criou o jazz, e o branco foi lá e dominou. Criou o samba, e os branquinhos estavam tentando dominar um dia desses aí. Criou o rap! Aí vai ter uma pá de branquinho querendo minar”, ironiza. “Eu acredito que a música é universal! O rap foi a única música em que o preto teve a oportunidade de


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falar: ‘isso aqui é meu! Isso aqui sou eu que faço!’ Qualquer branquinho que vier, vai ser tirado, porque a quebrada é nossa, e não tem pra ninguém! Só que isso não tira o direito de alguns brancos, que se identificam com a cultura, de ficarem impedidos de fazer”, justifica. “A gente fala mal dos MCs branquinhos só quando eles incomodam. Muita gente fala mal do Eminem,1 porque o cara é branco! O cara é branco, mas o cara é bom!”, afirma. “Ninguém fala, por exemplo, do MC Surk, lembra dele? Do grupo 3rd Bass...?! O cara é branquinho, mas ninguém fala mal dele porque o cara bate no Vanilla Ice no clipe de ‘Pop goes the weasel’. Ninguém fala mal dos Beastie Boys, por quê? Eram os Beastie Boys e o Run DMC os f... (bons)?!, exemplifica. “Aqui no Brasil tem o Paulo Napoli, o De Leve, o Suave [rappers brancos]. Mas o pessoal fala mais mal do Suave, porque no meio dos branquinhos todos um dos poucos bons é ele”, considera. “O Gabriel também é bom! Falam mal dele, entendeu? Todo mundo fala mal de quem é bom, não de quem é ruim. O ruim não faz sucesso”, ironiza. “Vai falar mal de quem já tá mal falado? Todos somos músicos, e o rap só vai crescer a partir do momento em que ele respeitar a si mesmo, e os outros estilos musicais.”

Mara procura justificar a atitude do preto para com o branco no hip-hop: “É uma polêmica de que, às vezes, a gente prefere fugir, prefere não discutir, tanto pretos como brancos. Mas a gente precisa dialogar, sim! Porque, queira ou não, o caráter racial do movimento hip-hop é intrínseco, não teve e não tem um papel fundamental na auto-afirmação do povo preto”, justifica. “A gente precisa partir daí, da realidade histórica, pra que a gente não faça uma análise simplesmente de um parcial que seria muito pequeno. A gente precisa partir, primeiro, do que é o racismo. Onde está o poder dos pretos, aqui nesse país, pra que ele seja racista. Mais do que isso: qual é o papel que cumpre uma manifestação, que dá possibilidade de que o povo preto se manifeste? De novo, a gente não vai poder desconsiderar a realidade que tá em torno da gente. A gente não vai poder simplesmente dizer como se dá a participação de 1 Rapper dos EUA, que se revelou no início dos anos 2000 por contestar a sociedade e ironizar os artistas pop, os movimentos gays e até a própria mãe.


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brancos e pretos no hip-hop, não que eu ache que o hip-hop venha a ter a participação somente de pretos, mas que a gente precisa analisar isso de uma forma com que a gente perceba que o hiphop precisa continuar tendo um papel fundamental na discussão, e na construção de ações, no que diz respeito à questão racial e que tanto brancos quanto pretos vão ter responsabilidades nisso”, critica. “Eu não abro mão disso, porque o nosso povo teve inúmeras de suas manifestações arrancadas, deturpadas e apropriadas. Então, a gente teve toda uma repressão à capoeira de angola, às religiões de matrizes africanas, e isso sem falar da grande perda que se dá ao povo afro no seqüestro que teve pelos séculos XIV e XV”, ressalta. “Nada disso pode ser deixado de lado, pra entender qual o papel que o hip-hop brasileiro cumpre. A gente sabe muito bem que, por mais méritos que o movimento negro tenha nesse país, ele não consegue chegar até a juventude preta como o hip-hop chega. É o hip-hop que vai fazer com que essa juventude preta, essa geração de hoje, se auto-afirme: ‘eu sou preto, sim, de contestação!’ Sendo um preto visto pela sociedade não como um pobre coitado, mas como um agente transformador. E é o hip-hop que fez isso! Foi o hip-hop que fez a gente ler, e começar a entender o que foi a história desse país, e atiçou esse questionamento na gente. Se a gente abrir mão disso, eu acredito que a gente vai ‘tá’ abrindo mão de um p... meio de sustentação, e de resistência a esse aparelho de dominação ideológico racista que a gente tem até hoje”, explica. “E aí, quando a gente vai discutir pretos e brancos no hip-hop, esses dias mesmo eu ouvi uma fala do tipo: ‘os brancos só estão aqui, porque eles têm algum interesse!’ Aí, eu acho muito complicado, porque a gente também passa por muita coisa em comum, brancos e pretos. Ao mesmo tempo que não dá pra gente desconsiderar as diferenças gigantescas que há entre pretos e brancos, a gente também não vai poder desconsiderar a realidade do branco que tá na favela. E aí, eu insisto: entre o branco e o preto que tá na favela, é lógico que o preto é o que vai sofrer mais! Mas como é que a gente entende tudo isso?! Porque não dá também pra querer dizer que só o preto é que tem que entender tudo isso, e o branco tem que ficar afastado de tudo... Pelo contrário, ele tem que entender essa realidade em que tá inserido, até pra que ele possa, primeiro, enxergar e assumir que, de fato, ele tem certas vantagens nessa sociedade, mas que se,


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de fato, ele não é racista e tá no hip-hop a fim de construir algo junto com os pretos, um movimento engajado e de transformação, ele vai ter que entender qual o papel que cumpre nessa sociedade, e ele vai ter abrir mão de certos privilégios e perceber que, às vezes, ele tá cumprindo um papel de opressor!”

Marcelinho vê esse conflito apenas como uma desculpa por parte de alguns rappers pretos que não admitem a competência de ninguém. E já que esse rapper é branco, nada melhor que usar um argumento do estereótipo racista branco contra o artista do hip-hop que não é preto: “Eu acho que não acontece rapper branco contra preto, porque ele foi a referência pro branco, isso é óbvio. Então, a treta vem mais do preto pro branco, menos pela cor e mais pela capacidade que o cara tem de rimar, produzir, compor, principalmente em se tratando de Brasil”, considera. “Tudo bem que o movimento por aqui sempre cresceu nas mãos de pessoas negras; a grande maioria, porque também não é todo mundo. E essa história do rap sempre vir com a temática do racismo e da escravidão, fica meio que uma afronta o rapper branco querer ser rapper, como se o rap tivesse dono”, ressalta. “Que nem no pagode: se fosse assim, também não poderia ter artista branco”, exemplifica. “Eu acho que é até uma banalidade discutir isso, mas é uma real que existe. A minha opinião é essa, eu acho que é mais em cima da capacidade do outro, independente da cor. Se tem um rapper preto bom também, os outros posam de amigo, mas fica sempre aquela ciumeira”, critica. “Seria a mesma coisa a gente falar, por exemplo, de futebol, que a gente teve um Pelé, e falar que a gente não pode ter um craque branco, porque o jogador bom é o preto. Isso não quer dizer também que o rap branco é melhor ou pior, cada um tem a sua qualidade, e a cor independe nisso. Ninguém pediu pra nascer branco ou preto. Então, isso é só reforçar uma parada errada de desunião”, acredita. “Eu não vejo um porquê. Não consigo ver um motivo real, concreto pro cara falar mal dele só porque ele é branco.”

Suave admite que o rap sempre será a música dos pretos. Ele também ressalta que o rap tem sido um veículo importante no


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combate de discriminação racial, e que se ele faz rap, é porque além de ter recebido um dom de Deus, ele também faz parte dessa luta: “Eu acho que rap vai ser sempre uma coisa da cultura negra, sem dúvida. O rap foi criado pelos negros, são os negros que têm o ritmo e isso ninguém nunca vai tirar do preto”, admite. “Quando você tem um branco no rap, lógico que você tem hoje em dia nas favelas não apenas os pretos, então, quando você fala as palavras ‘preto’ e ‘favela’, você tá ali jogando uma imagem que é de uma pessoa sofrida na favela, não que necessariamente seja da cor preta. Eu conheço muito branco que vive uma vida difícil dentro da favela e curte rap. Então, eu acho que você vai ter aquele branco talvez que sobressaia por ele ser um dos poucos no movimento, que é a coisa que acontece comigo. Eu sou um branco, e aos 12 anos eu conheci o rap através de um amigo meu, negro, ele foi quem me mostrou, eu me lembro até hoje, foi a música do 2 Live Crew, em 85, e depois dali, eu comecei a ouvir LL Cool J, Run DMC, conheci também Beastie Boys, e foi aí que eu vi: ‘p..., então, tem branco também fazendo rap?’ E eu comecei a escrever e vi que eu tinha essa coisa de gostar de rap, que eu tinha o dom, e o dom é uma coisa que Deus te dá e ninguém tira”, reconhece. “E por que hoje tem um preto se sobressaindo no golfe? Por que há duas irmãs se sobressaindo no tênis? Por que aqui no Brasil o maior jogador na história do futebol é um preto? Você quando tem dom de alguma coisa, você tem que aproveitar e saber usá-lo. No rap, eu nunca falei uma mentira quando eu canto, eu sempre fui realista no que eu falo, e é uma coisa que não dá pra tirar de mim. Eu gosto de rap, eu até brinco e tem uma frase que eu costumo falar: “‘Eu vim do rap, Eu tô no rap até o fim do rap, A minha mãe quando me teve tava ouvindo rap...’” “Eu acho que isso é independente de cor, de raça e de classe social, de idade, de religião, enfim, rap é música, e música é universal. Ele foi criado pelo negro, a gente deve isso ao negro, e eu vou continuar sempre achando que rap é coisa de preto! Mas isso não justifica, eu sendo branco deixar de fazer uma coisa que eu acho que faço relativamente bem e adoro, também foi uma forma


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de conhecer um pouco a realidade dos pretos de favela aqui do Brasil, e foi ouvindo. Como foi o caso do rap americano, eu adorava o Public Enemy, e foi uma forma de conhecer a realidade deles lá, como eu conheci a de alguns aqui; outros, tudo bem, eles tentam falar de uma realidade que não é a deles, mesmo sendo pretos”, critica. “O rap, ele atinge os brancos, e isso é uma coisa boa. Daqui a 20 anos, você vai ‘tá’ vendo cada vez menos discriminação racial. Por quê? Porque o branco tá ouvindo o som do preto e eles tão se entendendo. Então, não vamos quebrar isso, porque eu acho que a única música que vai trazer isso de volta é o rap”, acredita. “Então, por favor, não vamos estragar isso!”

Para Bad, o rap, ao contrário do que muitos rappers pretos sustentam, é algo que sempre esteve presente no mundo, inserido nas práticas culturais de diversas civilizações, até mesmo européias. Acredita também que esses rappers assumem um papel um tanto racista de não querer que os brancos o utilizem e deixa evidente o seu desdém ao próprio rap: “Esses rappers de hoje, aqui de São Paulo pelo menos, eles vêm de uma cultura importada dos EUA, com mentalidade de Malcolm X, que se você for ver bem, não passa de um Hitler negro, na minha opinião. Eu mesmo já desafiei vários rappers que me conhecem, inclusive alguns rappers que eu ensinei a cantar, porque as bases do rap electro funk são as mesmas, e perguntava: “de onde vem o rap?’ É negro! A questão é a seguinte: todo o povo nativo de qualquer região do mundo, Melanésia, Micronésia, Austrália, Noruega... Todos os povos nativos de uma determinada região, eles já tinham a sua língua falada”, conta. “Música falada, em 1959, Ray Charles já cantava rap. Pergunta pra ele se ele escuta rap? Ray Charles odeia rap!”, afirma. “Entre os músicos, eles não consideram rap como música. Se eles querem dizer que o rap é uma música negra, é lógico que eles odeiam o branco”, afirma. “Pra mim não faz mal, qualquer um que cantar falando, tá cantando normal. Agora, que seja de um povo ou de outro, eu não sou contra ou a favor, pra mim qualquer um pode cantar. Se eu fosse escolher, preferiria que só os que soubessem cantar e escrever dissessem alguma coisa, mas infelizmente não é assim”, lamenta. “Esse rap de hoje deixa pros negros, fica com eles. Pra


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mim, eu acho uma música decadente, deprimente e estressante. Se foram eles que desenvolveram o rap dos anos 70 pra cá, e tomaram conta, beleza! Podem ficar com ele. Por mim nenhum branco cantaria. Por mim, se for cantar, pelo menos seja alguém que saiba cantar.”

Por sua vez, Mano Brown apresenta em seu discurso o repúdio que tem pela presença branca no rap: Eu não acredito que tenha uma facção branca no rap! O cara que quiser levantar uma bandeira de branco no rap, ele tem que ser expulso! Não existe lugar pra cara que se diz branco no rap! Se é branco, tem que ficar no sapato, e se achar negro, porque o rap é música negra, de um povo negro, que foi escravo. Se o cara tá se sentindo branco e tá levantando uma bandeira de branco, ele tem que cantar música de branco, então! Tem que ficar quieto! Se o cara é branco e canta rap, ele tem que ficar quieto! Não pode se ofender!

Gabriel O Pensador acredita na universalidade do hip-hop e alega nunca ter sido vítima de preconceito dentro do movimento nesse sentido: Nunca vi esse tipo de coisa acontecer, pelo menos comigo. Acho que enquanto o rap for música, ele sempre será universal, à disposição de quem tem algo pra manifestar e é isso!

Quando instituiu o hip-hop, Afrika Bambaataa o fez para usufruto de todas as raças. Mano Brown discorda dessa atitude, defendendo o elemento do qual faz parte, o rap: “No dia em que o japonês dividir o dinheiro dele com nós, no dia em que os brancos da Europa dividirem com nós o que eles têm, espalharem pela África, pelo Nordeste do Brasil, a gente divide o rap, e tudo mais”, ressalta. “Por enquanto não! O rap é nosso, dói, tem certas realidades que doem! Só que pra quem é negro, sabe que ouvir não já é normal a vida toda! A gente cresce ouvindo não, vendo as portas fechadas. Então, não é um nãozinho que vai deixar as pessoas que se intitulam branca infelizes. Eles têm que entender que o negro é um povo muito sofrido, que teve poucas oportunidades no Brasil, no mundo e que o rap, ele é a emancipação do negro no mundo. É uma porta que abriu, e foi Deus que


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abriu! Foi o Mar Vermelho dos pretos! Então, eles não podem ‘tá’ reivindicando uma parcela do rap, porque isso não é justo!”

Vale ressaltar que faixas como o remix de “Walk this way” serviram para unir dois públicos que não se ouviam – os pretos e os brancos – pelo simples fato de a música ser metade rap, metade rock. Em cima dessa questão, Erik Parker, colunista da revista Vibe, explica: “‘Walk this way’ abriu as portas do mainstream e foi uma enxurrada. Outros discos surgiram logo depois. Fight for your right to party, dos Beastie Boys, fez muito sucesso. É um disco de rock pesado, mas não é de hip-hop. Mesmo assim, eles faziam rap. Então, abriu as portas para uma colaboração entre o rap e o rock, e também fez com que a juventude branca começasse a entender o rap e a aceitá-lo. Antes havia a divisão racial. Agora, o rap transcende a divisão racial. Passamos a ver qualquer raça fazendo rap. Há rappers de todas as cores e em todos os continentes...”

Compete a nós refletirmos e discutirmos ainda mais todos esses pontos-de-vista, certo?


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15. Rap polĂ­tico vs. Rap marginal

15. Rap polĂ­tico vs. Rap marginal



No gangsta rap americano, muitos artistas posavam de perigosos, se apropriando da dura realidade de seus bairros, para consolidar seus nomes no mercado. Analisando essa situação, vemos que a mesma postura paradoxal se aplica ao Brasil, onde o clima de terror dos guetos americanos se torna, muitas das vezes, brincadeira de criança comparado à nossa realidade. Para o DJ Marcelinho, o que deve permanecer acima de qualquer suspeita é o respeito pelo trabalho de cada um. E já que existe a distinção de estilos, cada um deve sustentar aquilo que defende em suas letras: “Tem espaço pra todo mundo. Quem tá fazendo um rap marginal, com certeza, a referência do cara sempre foi um rap marginal também, e aquilo se tornou uma linha de trabalho. E não muda. É difícil um cara que faz esse tipo de rap ter outra visão das coisas. O cara que faz rap político, na maioria das vezes, é um cara que vai aos problemas concretos. Tem aquele que se liga no problema concreto mesmo, e aquele que só viu o tiroteio, escreveu a letra e fala que mora no pior bairro do mundo. Muitas vezes o cara que mora no mesmo bairro que ele pode escrever de outro jeito, dar um ponto de vista diferente sobre aquele lugar. Um falar mal do outro, eu já acho totalmente errado porque tem gente que ouve um rap mais marginal, enquanto outros ouvem um rap mais político, e tem quem goste dos dois. Tem que haver é respeito mesmo”, defende. “Se a gente ficar falando mal de tudo de que a gente não

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Rap político vs. Rap marginal

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gosta, e principalmente do nosso ambiente de trabalho, a gente não convive com ninguém. Cada um faz o que acha certo. Vai fazer rap marginal ou político? Então, segura a onda e sustenta o que tá falando”, adverte.

Marcelinho aproveita a oportunidade para traçar um paralelo entre o gangsta americano e o que se reproduz no Brasil: “Em comparação ao povo de lá, entre o gueto americano e o gueto brasileiro, a gente é miserável. No gueto americano eles têm casa, o cara é pobre mas pode ter um carro, pode trabalhar. Aqui o cara é pobre e não tem nada, nem trabalha”, compara. “O cara escreve um rap, coloca uma bandana na cabeça, fala que é gangsta. Aí, ele tá se vestindo que nem o cara de Los Angeles. Coloca uma corrente no pescoço, só que a corrente do cara de Los Angeles é uma corrente de ouro. E o gangsta lá veio de gangue. O rap é a cultura deles, e eles ouvem desde pequeno, e das gangues inevitavelmente vai sair um rapper. O que acontece aqui é o seguinte: o cara, às vezes, quer ser preso pra depois ser gangsta. E lá não: o cara já é rapper, mas ele não é um rapper gangsta, quem rotula o rap gangsta é a mídia. Aí ele tem a oportunidade de gravar um rap e estourar, e aí vira gangsta. Mas aqui não, o cara que se diz gangsta, ele vai ser gangsta no bairro dele e só.”

Big Richard deixa evidente a sua postura política, e considera que neste caso, entre nós, existe mais aquele que faz pelo impulso do gangsta americano do que aquele que faz pela realidade brasileira: “Eu acho que o pessoal se interessa mesmo é por um rap bandido, supostamente bandido, porque eu não conheço bandido de verdade que faz rap. Bandido pra mim era o Eazy-E, o Notorious BIG... Os caras ganharam dinheiro com a droga, e foram lá e fizeram sucesso com o som e saíram do negócio sujo. O Ice-T também. Agora esses caras que ou não moram no morro e dizem que moram, ou que não são nada daquilo e dizem que são... ou o cara que, quando você tá num lugar com ele e começa a sair teco (tiro), ele é a primeira perna a tremer e a correr, e é o que mais tem


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Acorda hip-hop!

no rap brasileiro, isso não é rapper, isso é comédia”,1 critica. “Fiz uma letra que se chama ‘Hip-hoplogia’, você já até viu num show que eu fiz, a introdução dela é assim: ‘Se liga homem, não importa o meu nome, mas o que eu vou dizer Veja o que eu fiz pra você Sou movido a Neston e Tubaína Eu prefiro cevada, uma brejinha À cocaína... Desculpa aí, mas você se enganou, me julgou Mas não sabe quem eu sou Respire, inspire, fume o hip-hop Você também pode O meu som não é de drão, é de revolução Venha junto, me dê as mãos Somos a nova onda do hip-hop, hip-hop-uha-aha! Trazendo novos ares Ressuscitando os ideais de Palmares O povo que pensa sabe, o crime não compensa A gente tenta Inventa novos caminhos E na batalha da vida não estou sozinho Por isso agora vou apresentar minha rapaze Gente que chega e vem pra arregaçar...’” “Acho que já deu pra explicar mais ou menos. Aí a gente volta na coisa do comercial: o pessoal tentando vender, por outro lado, sem criatividade, começam a copiar, e não é de agora, o NWA, os OGs [Original Gangstas americanos] sem analisar que você vive no Brasil, um país totalmente diferente culturalmente e politicamente em sua formação dos Estados Unidos”, compara. “Então, fica uma pá de comédia falando que é isso, que é aquilo, que faz rap de bandido e na maioria das vezes sequer faz uma base instrumental boa, uma base de funk [funk original dos anos 70] decente pra cantar em cima. Pra mim é lamentável essa coisa do rap gangsta brasileiro, e o que tem hoje pra mim é comédia. Os poucos que eu conheço, eles sabem quem são, eu respeito muito, a gente anda lado a lado, são os caras que vieram do crime, se fizeram no rap, estão aí. Ou, como muitos, já se foram, como o 1 Impostor.


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meu mano Sabotage, que era um cara nota 10, merece ser considerado e era um cara simplesmente verdadeiro. Mas 99,9% são uma pá de comédia querendo ganhar um qualquer dizendo que é bandido, e não é p... nenhuma.”

Bonga não esconde a sua predileção pelo rap político, que julga ser mais real do que o marginal. Para ele existe muita fantasia naqueles que fazem um rap meio marginal, pois a grande maioria não viveu sequer aquilo que canta: “O microfone tem um poder muito grande. A molecada é muito influenciável. Todo mundo que tem seus ídolos se deixa influenciar por eles. Então, o poder da palavra, ele é muito forte. A questão do gangsta... Será que existe gansgsta no Brasil? Será que não é uma parte da cultura que vem dos chicanos? O que eu questiono é o seguinte: pra falar do cotidiano você tem que ter base. Se você quer falar de crime, de marginalidade, você tem que vivenciar, fazer parte disso. Você não pode ser hipócrita, falar de cadeia e nunca ter visitado um camarada seu dentro de uma cela”, critica. “A hipocrisia é derrubada assim, quando você fala de onde você vem realmente, a essência que você vive. E se você vive isso, então, você tem razão de falar. Se você não vive, então, isso é uma grande mentira e você tá criando uma situação que é equivocada pra você e pros outros”, ensina. “O rap político é positivo em termos de construção, algo que passe uma mensagem. Não é só você reclamar da situação do sistema, do governo, porque a gente culpa o sistema e o governo mas grande parte da culpa é da própria população”, ressalta. “Será que o problema não tá muito entre a gente também? Quem passa a mensagem tem que passar uma mensagem positiva, não só criticar, mas mostrar uma saída, um caminho, mostrar uma construção. É muito fácil você falar de um montão de coisas, criticar um montão de coisas, falar que dá tiro, e nunca deu tiro. Falar de preto e nunca foi preto. Falar de cadeia e nunca foi preso. Aí é que tá: seja verdadeiro! Seja você mesmo! Enquanto você fala um montão e critica alguém, e você tá na sua casa com as pernas pra cima, alguém que abraçou a sua idéia vai ‘tá’ sofrendo por isso”, adverte. “Se você fala pro moleque dar tiro, o moleque vai dar tiro e vai morrer, e você vai ‘tá’ na sua casa. Pensa nisso!”


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Para Rooney, há o perigo de o público interpretar mal as identidades projetadas por alguns rappers: “Bem-vindo à realidade virtual! Hoje em dia a gente precisa tomar muito cuidado com o que tão vendendo pra gente. Muitas vezes a gente compra um CD, e a postura de alguns artistas acaba dando a entender que no Brasil existe o gangsta rap. Agora eu vou lembrar de uma história. Eu tava sentado na São Bento, aí um tal de MV Bill chegou e falou assim pra mim: ‘tu é gangsta mesmo? Porque gangsta pra mim tem aquelas mansões, aqueles carros, aqueles seguranças armados!’ Só que a minha idéia na época, eu nem gravei disco, com tanta bandidagem que existe hoje, e rappers falando da bandidagem, era bem mais leve”, conta. “Mas eu quis interpretar que a informação no Brasil era proibida. Então, qual era a do Gangsta Rooney2 em 89, 90 e 91? Mostrar pras pessoas que passar informação era uma coisa proibida, como vender droga. A informação é proibida, o colégio é fraco até hoje, então, a gente não tem uma escola padrão, com um modelo educacional bom”, ressalta. “Com o passar dos anos as pessoas acabaram interpretando errado, e eu resolvi trocar o meu nome pra uma coisa mais suave e fazê-las entenderem que eu sou uma pessoa de entretenimento e que transmite muita informação. O que acabou dando certo, até mais que ser indireto como antes! As pessoas compram aquilo que elas tão vendo e não querem saber da história, não querem ter trabalho de estudar aquilo que é adquirido”, lamenta. “Acredito que a gente tem que tomar cuidado na hora de rotular o artista. Tem muito artista aí fazendo rap político, que é o rap falando a verdade, as coisas que acontecem, falando de autovalorização. Eu nem digo rap político: rap verdadeiro! O rap marginal seria o gangsta rap. Eu acredito que muita gente acaba vendendo uma imagem do que realmente não é. Eu acredito que o rap político é aquele que tá no caminho mais certo. É o mais doloroso porque é o que vende menos, mas é o caminho certo. Nem sempre o caminho mais fácil é o caminho mais correto ou o mais gostoso de trilhar”, adverte. “As pessoas interpretam o rap de uma pá de maneiras. Tudo é rap, só que você rotular exatamente o gangsta rap afirmando que o cara é bandido, saiu da cadeia e começa a cantar é errado, nem 2

Nome assumido por Rooney entre a década de 80 e início de 90.


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todo mundo é bandido! Nem todo mundo que canta o gangsta rap, se é que eu posso dizer assim, é o ladrão, o bandido, o traficante. Eu conheço muitos grupos de rap que nunca cometeram nenhum delito. A gente tem que prestar atenção nessa idéia também, porque o rap é muito cineasta: faz o filme, mas nem sempre você tem que interpretá-lo. Então, vamos prestar atenção ao conteúdo de cada letra, e à história de cada artista, porque nem todo artista é o personagem real da sua letra.”

Rooney fala ainda sobre os efeitos nocivos do rap marginal: “Depois de 20 anos escutando rap, infelizmente eu acabo ouvindo justificativas de alguns cantores: ‘mas no final da música o bandido morreu! Eu morri no final!’. Então, quer dizer que a violência não leva a nada?! Mas você fica induzindo 99% dos seus ouvintes a falarem que: ‘ah, eu vou assaltar, tirar a vida de fulano etc. Aí no final da música entram os policiais, aí morri!’ Isso não é uma música positiva, na minha opinião. Nela, você torce pro bandido. E eu não acredito que alguém torça pro bandido, mesmo quem escreveu a letra. Só faz isso por um impulso momentâneo”, admite. “Você não pode usar a desculpa que a sociedade não te dá oportunidade, porque ela tá aí. Eu conheço um monte de preto pobre que não tem onde dormir, que não tinha o que vestir e nem o que comer, que venceu na vida, conseguiu estudar e que andava de 13 km a 14 km por dia. Isso vai muito da força de vontade de cada um”, acredita. “Acho que você tem que influenciar as pessoas com uma música através da qual você pode contar a verdade, sim, mas prestando atenção ao jeito que conta essa realidade, e ver quem vai ouvir essa letra”, adverte. “Todo mundo ouve! A partir do momento que tá na rua, o teu filho pode escutar. Ele pode virar bandido, achando que aquilo é a coisa certa, e não é por aí.”

Suave evidencia a sua indisposição com o rap marginal: “A mensagem do rap, ou de qualquer segmento musical, é importante. Porque muita gente tá escutando essa tua música, e você não sabe. Eles absorvem aquilo e, às vezes, se identificam com aquilo, acham aquilo interessante, vão querer fazer. Eu, quando escutava algumas músicas, queria sair na rua e pregar aquilo que tinha acabado de escutar”, conta. “Às vezes, você não tem


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noção de que público é esse: se é uma criança de 12 anos, se é um cara de 30... Então, é muito complicado você saber o que você vai direcionar, a quem você vai atingir e que mensagem vai dar. Não sabe o efeito daquilo”, adverte. “O rap político realmente teve aquela questão de conscientizar as pessoas. O Public Enemy, lá fora; você, TR, aqui no Brasil, que também tem essa preocupação mais política. E depois surgiu a vertente gangsta. Aqui no Brasil, se a gente traduzir tudo como rap marginal, você entra em outro debate que é um pouco perigoso. ‘o que você quer fazer com esse teu rap? É mostrar a realidade, que eu acho que já tá na cara de todo mundo com esses programas sensacionalistas e as novelas que mostram a realidade nua e crua da violência?!’ Será que o rap precisa fazer esse papel também de mostrar ainda mais a violência? Será que isso não incita mais violência? Você acha que os americanos, quando eles fazem esses clipes de violência... será que eles são realmente gangsters? Será que o Snoop Dogg é um gangsta realmente? Por que ele veio pro Brasil aparecer ao lado de um monte de modelos, se ele é um gangster? Isso é o que eu não sei: até que ponto é marketing e até que ponto é realidade”, questiona. “Quantos gangstas estão realmente fazendo música no Brasil? É isso que a gente tem que começar a ver. É muito complicado e perigoso você se autodenominar gangsta, dizer que mata, porque tem gente aí fora escutando essa tua música, e talvez queira se espelhar em você; é o que eles chamam lá fora de role model, ou seja, as pessoas se espelham no que você está falando. O Ice-T já teve problemas com isso e muitos outros rappers também: de a justiça achar que a pessoa ouviu a música dele e matou alguém ou causou pânico por causa da letra. Eu sou contra esse gangsta rap! É gostoso de se ouvir, você não tá entendendo a letra, tem um ritmo legal! Agora, pára um pouquinho e começa a pensar um pouco na letra, e traduz. Se não souber, pede pra alguém que sabe, e você vai ver que o que eles estão falando é abobrinha, e você tá dando moral pra um cara que vem pro Brasil, faz clipes com as nossas meninas, e tá explorando é a prostituição”, adverte. “Então, cuidado com o que você fala quando o assunto é gangsta rap!”

É aquela velha história: você pode ser diplomado, trabalhador, chefe de família. E é negro, taí o motivo para estar à margem


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da nossa sociedade brasileira. Baseado neste conceito, Mano Brown apresenta a sua posição diante desse estilo de rap adotado no Brasil: “O meu rap é marginal, é político, e é tudo ao mesmo tempo! O rap no Brasil ainda é marginal! Só que tem hora que as pessoas começam a procurar outros caminhos e tentam colocar rótulos nos caminhos que encontram. Não existe essa diferença ainda no Brasil! Todos somos marginais! Até os que se dizem políticos são marginais também. É rap marginal! Mesmo você não falando de arma, de drogas, briga de quadrilha, é marginalizado! Tá à margem da sociedade! Então, esse gangsta rap de que os caras falam, se existe no Brasil, ele não é nem um terço do que é nos Estados Unidos”, acredita. “O mau-caratismo que os caras têm lá, aqui não é aceito! Lá, o mau-caratismo deles vende muito, aqui, só gera paletó de madeira.3 Não acredito nessas diferenças no Brasil!”

Na opinião do rapper Magno C-4, além da necessidade de uma democracia interna entre os estilos de rap, cada um deve buscar o compromisso com a informação que é passada à periferia, já que a influência do rap nos jovens dessa camada é forte: “Eu creio que narrar a realidade do seu povo é muito importante! Você homenagear seu parceiro que morreu, falar da polícia, dos problemas que o seu povo atravessa”, apóia. “Mas acho importante também apontar a solução pros problemas que acontecem na sua quebrada. Mostrar pro povo que ele também é um vencedor”, explica. “E o povo pode ser vencedor! O rap é uma música original da periferia. Então o rapper deve aprender não só a rimar, mas a falar também”, critica. “Devido à ascensão do rap gangsta, muitos caras que eram politizados acharam que o trabalho deles foi em vão e acabaram se bandeando”, comenta. “Acredito que isso tenha acontecido por falta de personalidade”, afirma. “Os poucos que restaram, não fazem quase nada pra mudar esse padrão. Ou seja, não batem de frente, ficam no meio termo”, critica. “Cada um tem a sua linha, cada um tem que respeitar a linha

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Caixão funerário.


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do outro e fazer a sua parte pra informar, não importa se é político ou gangsta. Na realidade, o gangsta é um rótulo colocado a quem canta falando da quebrada. A tradução da gíria gangsta, é ‘pistoleiro’”, define. “Quem é pistoleiro? Não existe aqui! Tem o cara falando sobre a violência do cotidiano, mas gangsta mesmo não existe”, afirma. “Dos políticos, a gente tem muito pouco: o Gog, o DMN, o SNJ, o Apocalipse XVI... Agora o que tem mais por aí, são grupos como o Facção Central, Realidade Cruel e o Face da Morte. A gente tem 10 caras falando besteira e dois falando coisas interessantes. A gente tem dez falando só de problemas e dois falando de soluções”, compara. “Eu acredito que daqui a algum tempo essa nova tendência que está surgindo no underground, venha a apontar mais soluções do que simplesmente problemas. A gente liga a televisão e tem o Cidade Alerta, Repórter Cidadão, Brasil Urgente e Linha Direta [programas policiais exibidos, respectivamente, pelas emissoras Record, Rede TV, Band e Globo]. Seria mais interessante a gente começar a apontar o caminho da escola, o caminho do livro, o caminho da dança, da cultura, da música, em vez de apontar o caminho da arma”, considera.

Num país onde a anestesia da desinformação vem fazendo efeito há 500 anos, é sempre um choque quando um rapper retrata em seus versos a verdade da favela. A maioria da população dessas comunidades, com medo de represálias, prefere não analisar nada (formar opinião, infelizmente, não se tornou prática do nosso povo), e ficar do lado da opinião da sociedade dominante: nossa música é visto como “som de marginal”, preferem outros estilos mais adocicados de música. Essa é uma luta que o rap vai travar até o fim em nosso país, mas uma pergunta persiste: existe realmente o gangsta rap no Brasil? A meu ver, não. O gangsta rap foi uma linguagem muito própria dos guetos afro-americanos, e não se compara à nossa linguagem. Alguns rappers, de estilo mais político, tendem a se confrontar com grupos que assumem um estilo similar ao gangsta por aqui. Analisando mais detalhadamente a postura destes artistas, entendemos que procuram uma visão mais geopolítica diante


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da realidade que vivem. É muito mais fácil a população assimilar um pouco de política e a proposta de conscientização do rap entendendo a realidade de suas próprias vidas retratadas nas rimas. Podemos até afirmar que criamos um estilo próprio, baseado na nossa realidade e com letras mais fortes e mais contundentes do que o gangsta rap original. É claro que existem grupos que tentam confundir a imagem ativista do rap com o caráter homofóbico, machista e sexista do gangsta: será por autopromoção baseada na influência pesada do gangsta americano ou por que eles têm uma realidade cultural semelhante aos jovens afro-americanos?


16. Ativismo pesado ou excesso de realismo?

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Precisamos nos questionar sempre se estamos no hip-hop por militância convicta ou interesses próprios, e se for pela segunda opção, eu lhes pergunto: interesse em quê exatamente? Talvez muitos de nós estejamos no movimento errado, pois alguns querem ganhar muito num curto espaço de tempo e sem medir as conseqüências, que podem prejudicar o companheiro. Quando Malcolm X disse que a violência deveria ser praticada com inteligência, ele talvez não tivesse atentado para a má interpretação que muitos poderiam fazer de sua frase. Alguns de nós confundimos “violência inteligente” com “sensacionalismo barato”, colocando em risco as poucas conquistas do rap nacional. Big Richard não acredita no peso da militância do hip-hop brasileiro. Segundo ele, estamos mais perto do sensacionalismo do que da realidade. Na concepção dele, o excesso de realismo é mais uma forma encontrada por alguns rappers para se destacar de modo singular e diferenciado dos demais: “Eu não sei se é ativismo pesado, porque eu não vejo tantos ativistas assim no hip-hop. E também não sei se é excesso de realismo. Penso em até que ponto isso aí não é história em quadrinhos, que neguinho fica empolgado, e começa a criar uma pá de coisas, e a se achar super-herói”, ironiza. “Eu lembro de uma música do Raul Seixas [‘Cowboy fora da lei’] que é assim:

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‘Eu não sou besta pra tirar onda de herói Sou vacinado, sou cowboy Cowboy fora da lei Durango Kid só existe no gibi E quem quiser que fique aqui Entrar pra história é com vocês.’” “A violência fere e tá aí, pesada, mas quando se ouve a letra dos Racionais, por exemplo, e até mesmo do MV Bill, que eu gosto das letras dele, os caras conseguem colocar uma coisa ali que dá até pra curtir. Se você não quiser dar muita atenção pra letra, você tá até curtindo um som, de alguma forma consegue se envolver com o negócio”, explica. “Agora, tem uns outros caras que parecem que estão numa história em quadrinhos. Você sente que aquilo ali não é a realidade que eles vivem”, ressalta. “É que eles quiseram botar uma pimenta, e saíram umas coisas de outro mundo. Mas é como eu digo: cada um é cada um, e cada um faz a sua história. A minha história eu quero que continue por um longo tempo. E quem inventa, quem cria uma história, sabe que a história termina cedo, né?”

Na visão do DJ Marcelinho, o que mais acontece é o excesso de realismo, pois, segundo ele, virou negócio expor a imagem do rapper que conta uma realidade sangrenta da periferia, o que resulta num exagero da realidade: “Eu prefiro comparar um pouco com o caso de você assistir à TV: um programa de jornal que mostra a periferia é sempre com o helicóptero sobrevoando, carro da polícia rodando como se aquilo fosse todo dia. O rap sempre teve essa linha mesmo de machucar, e o cara que ouve o rap nem sempre tá preparado pra ouvir, porque, às vezes, ele ouve uma realidade que nunca conheceu. O rap é uma música que bate dentro da cabeça, mexendo com a imaginação. Então, quanto mais pesada a letra, mais a pessoa vai ter medo de ouvir rap”, explica. “O ativismo sempre esteve no rap, isso já vem da matriz [EUA], mas eu acho que o excesso de realismo é onde tá o problema: você tem que pintar o negócio de sangue pra chamar a atenção. Quanto mais pesado, mais se cria polêmica, e daquela polêmica você pode estourar e o seu trabalho continuar. É o famoso tratamento de choque: tem que chocar o público pra


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você ser conhecido, e dali você seguir essa linha. Isso não é bom, porque fica rotulado logo da primeira vez que te ouvem”, adverte. “Então, você vai ter que ser pesado pelo resto da vida. Se amanhã você mudar, você não é ninguém, é um mentiroso. Com certeza, é excesso de realismo. Aí a gente cai naquilo: ‘essa é a realidade que eu vivo! Essa é a realidade da periferia!’ Não dá pra gente falar que todo mundo que mora na periferia vê um presunto por dia. A periferia é muito grande. Há os focos de violência que todo mundo sabe onde são, mas também não é assim como contam nas letras. Tem gente de bem que morou na periferia a vida inteira, e nunca foi assaltada”, exemplifica. “Então, não podemos generalizar e dizer que é isso e acabou.”

De acordo com Bonga, os dois aspectos são bem vivos em nossa cultura. Existe aquele que posa de ativista político, mas nem sequer tem uma base sólida pra defender aquilo em que acredita; e existe aquele que vive como em uma história de cinema, fora da sua própria realidade: “Tem cara que pensa que tá num filme ainda. Tem cara que pensa que tá vivendo Colors, tem cara que acha que tá vivendo Juice [filmes americanos que mostram a cena gangsta]. É um pouco de hipocrisia falar de uma coisa que você não vive. E se a questão é ativismo pesado, pra falar politicamente, você precisa conhecer o que é política, tem que fazer parte de uma militância. Você tem que ler ou pelo menos ter um embasamento daquilo que você fala. Você tem que ter não uma formação acadêmica, mas política”, explica. “Saber o que é política, viver o que é política. Pra você criticar ou falar mal do político ou do sistema, tenha base, leia, estude, decore, pense no que você vai falar. E saiba que, pra você falar sobre algo, tem que ter um posicionamento coerente, não digo correto, sobre aquilo de que tá falando. Dentro da outra questão, se é excesso de realismo, tem cara vivendo um filme: não vive aquilo, não mora lá dentro, não participou daquilo, e, às vezes, nem conhece ninguém daquilo. É como diz um comercial de guaraná: alguma coisa tem que ser original!”


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Rooney acredita que muitos de nós, por não conhecermos ou não vivermos a realidade abordada nas músicas, preferimos criar uma certa ficção que pode ser negativa: “Ativismo pesado! Vamos pegar uma seguinte idéia; vou até falar de mim... Muitas vezes eu falo: ‘vamos fazer e tal!’ Por exemplo, o breaking. Você elabora toda a situação, chama as pessoas pra trabalhar, faz e acontece. Você faz uma festa e todo mundo fala: ‘foi da hora!’1 Aí vem outra pessoa e fala: ‘vamos fazer isso também?!’ E faz o maior estardalhaço. Mas você chega na festa e não tem um som adequado, não tem um bom DJ. E onde tá o hip-hop nessa história? Ou seja, muita gente acaba querendo fazer aquilo que não tem know-how pra fazer. Muitas vezes as pessoas querem saber cantar uma música, falar de um tema que não dominam e acabam vendendo um peixe errado. Eu quero ouvir uma música falando da verdade, e aí acabo comprando um disco que tem um monte de tiro... Não tá falando mentira, mas tá vendendo uma idéia que não é exatamente o que procuro como algo positivo”, explica. “O hip-hop nasceu pra ser positivo”, diz. “Então, você tem que tomar cuidado com a maneira com que fala, pra você não vender o seu peixe da maneira que não é real. Isso vai acabar trazendo conseqüências sérias na sua vida, porque você acaba desgostando do hip-hop”, adverte. “Se você for à raiz dessa cultura, vai ver que o hip-hop não é bem essa realidade toda que a galera tá passando pra você. Hoje em dia existem livros, revistas, jornais, internet e muito se fala do rap. Só que o hip-hop é uma coisa muito ampla, e você pode ‘tá’ comprando o produto errado, então, acaba caindo naquela idéia de que você tá sendo enganado. Você tá sendo enganado por você mesmo, porque você não tá sabendo exatamente o que você quer. É como se você estivesse entrando no mundo de Matrix!”2

Rooney aproveita para discutir a questão do rap e toda a cultura; segundo ele, o ativismo pesado e o excesso de realismo têm a mesma proporção de culpa:

1 Excelente. 2 Filme de ficção científica lançado em 1999, dirigido por Andy e Larry Wachowski.


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“Hoje o profissional do hip-hop tem que ser um bom profissional. Você tem que entender o que tá fazendo, e isso existe no grafite, no rap, entre os DJs. Tem cara que fala que toca demais e não sabe nem fazer uma virada,3 não tem conhecimento musical, então, acaba rolando uma utopia. Eu não danço mais, não posso falar como dançarino, posso falar do que eu já fui. Mas tenho conhecimento pra falar quem é e quem não é bom hoje, porque eu tô estudando a dança, o DJ, letra de música. Eu sei o que é verdade e o que não é”, justifica. “Você sabe quando acerta e quando sai de raspão. Dependendo do que o consumidor tá querendo, entretenimento ou conhecimento, ele tem que garimpar bem, porque hoje tem muito produto na rua, e nem sempre é aquilo que você tá procurando.”

Bad diz que o rap tem levantado uma violência fictícia que só se encontra no imaginário de quem o faz: “Na minha opinião, os dois, o ativismo pesado e o excesso de realismo, têm o mesmo peso nesta questão. Têm povos que sofrem muito mais que o povo negro, e não choram tanto. Por exemplo, os judeus sofrem até hoje. Só que, em 50 anos, eles criaram uma nação superpoderosa. Já os negros não criaram. Não tiveram oportunidade? Tudo bem, foram escravizados há pouco tempo pra que pudessem reagir”, admite. “Eu nasci num bairro perigoso como a maioria das pessoas. Se fosse o tanto de tiro que o pessoal canta nas músicas, o chumbo não valeria nada. Os caras falam que acordam de manhã, e é tiro que mata o outro. Só tem morte ou eles resolveram fazer igual a um jornal policial? Só contar desgraça? Quem é que vai ficar escutando só desgraça? Tudo bem, tem quem goste! Então, continua cantando, continua ouvindo. Mas que realmente pra mim é um exagero, é um exagero. Ouvir tiros, todo mundo ouve, mas do jeito que estão cantando é apologia mesmo”, acredita. “Eles falam do crime, do tráfico, mas eu ainda não vi ninguém ter a moral de falar o que é bom ou ruim. Ficar falando, falando, falando, é só divulgar desgraça mas ninguém tá dando opinião em cima”, declara. “Todo mundo fala que dá tiro, que é o bambambã, mas não vi ninguém cantar

3

Transição de uma música para outra com o auxílio de dois toca-discos.


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numa música que tiro dói! Que tiro aleija! Que tiro mutila! Por quê? Tá com medo de algum mutilado chegar e cobrar a bronca?4 Estão poetizando muito a marginalidade”, critica. “Tão pintando o quadro da violência, mas pra deixar bonito e não pra deixar real mesmo do jeito que é.”

Johnny é a favor do ativismo, mas procura ter cuidado ao apoiá-lo: “O ativismo hoje tem que ser direcionado à população sem preconceito de cor, porque na periferia não tem essa de preto ou branco. Então, o ativismo tem que continuar, mas, às vezes, é um excesso de realismo e, às vezes, é um realismo até mentiroso”, critica. “O cara que tá numa boca-de-fumo 24 horas, trocando tiro com a polícia, ele não fala disso. Quem canta isso é o amigo do amigo do amigo do cara da boca-de-fumo...”, ironiza. O cara que quer plantar uma semente boa: ‘p... cara, em vez de você vender droga, vai lá estudar’, esse é o ativista! Ele tenta tirar você de onde você tá f... E o outro não, ele acha da hora, porque ele ganha dinheiro com a miséria”, compara. “Ele não é diferente de um político. Cada um faz a sua política mediante o seu interesse”, respeita. “Se você quer o bem, é muito difícil você fazer sozinho esse bem. Você acha que um cara vai fumar um baseado, se dez pessoas oferecem o bagulho pra ele ou ele vai pra escola, se tiver duas pessoas oferecendo uma vaga? Ele vai fumar o baseado!”, afirma. “De cada dez caras, um só talvez saia dessa marginalidade pra se tornar alguém mesmo. Ser marginal é ter coragem, mas se tornar um cidadão de bem é ser corajoso! ‘Eu tenho coragem de matar, mas eu não sou corajoso o suficiente pra trabalhar.’ Infelizmente, o cara que procede errado no rap, também é responsável por essa atitude”, exemplifica.

Mano Brown acredita que o que torna as coisas negativas no rap é a falta de verdade de muitos de nós: “Eu penso da seguinte forma: você tem a oportunidade de falar as coisas boas através de uma música. Você pode esclarecer fatos, histórias mal contadas, histórias da nossa história, do nosso país,

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Tirar satisfações.


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da nossa raça. E você pode juntar tudo isso à realidade do seu dia-a-dia e da expectativa de um futuro. Tudo isso é político! É a realidade! Você não pode ser amargo”, ressalta. “Essas definições, ‘ativismo pesado e excesso de realismo’, podem atrapalhar. A realidade já é pesada. E o ativismo não é pra todos. É pra quem sente mesmo que é disso aí que pode passar alguma coisa. Quem não tem isso no coração, não tem isso como essência, não se meta a falar, porque vai atrapalhar. Os seres humanos são diferentes, e os negros são seres humanos diferentes uns dos outros!”

“Retratar a violência” não pode ser confundido com “incitar a violência”. Precisamos estar antenados com os acontecimentos políticos, geopolíticos, sociais, raciais e históricos, a fim de que possamos ter bons argumentos para calar a boca de um determinado segmento tendencioso da imprensa. Sabemos que as leis de nada servem para pegar os “grandes tubarões” do poder, mas você também não acha que as coisas podem se tornar mais difíceis para o nosso lado se desconhecermos as leis do país, e não as utilizarmos a nosso favor? Como podemos ter a fama de conscientizadores se desconhecemos as nossas próprias limitações e também não medimos nossas próprias atitudes? Pense nisto!


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404 CAP.17

17. Hip-Hop contr


ra as drogas


A campanha antidrogas é parte da base de sustentação da cultura hip-hop. Porém, o que dizer sobre artistas que fazem apologia às drogas? Essa é a hora em que a imprensa pega no nosso pé e exige uma “explicação”. Talvez tenhamos encontrado um dos motivos pelos quais muitos rappers evitam as perguntas desconcertantes dos repórteres e, por isso, não querem encarar a televisão. O fato é que cantar sobre drogas, fazendo sua apologia, é um calo no dedão do movimento em todo o mundo. Muitos de nós dizemos que tratar desse assunto em nossa música é exercitar o direito de “liberdade de expressão”. Isso explica... Mas será que justifica? A cultura hip-hop foi criada para que a juventude do gueto pudesse enfrentar seus problemas com sabedoria, inclusive as drogas. O artista que se afirma como um apologista da droga, na luta pela liberdade de expressão para todos, acaba se tornando contraditório, caso se assuma como membro do Movimento Hip-hop. Não podemos confundir liberdade de expressão com abuso de expressão. Somos uma referência para uma juventude de periferia que não tem objetivos nem ideais. Deveríamos ter cuidado com o excesso de liberdade, onde nossas predileções pessoais podem se tornar influências destrutivas para as pessoas que buscam sua afirmação positiva na sociedade.

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hip-hop contra as drogas

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No hip-hop, o uso da maconha tem sido constantemente o estandarte da liberdade de expressão, algo insustentável na opinião do DJ Johnny, que questiona continuamente o grau de conscientização em nosso movimento: “A droga se popularizou, seja ela sintética, maconha ou cocaína. Alguns acharam da hora quando viram nos shows, clipes e filmes americanos os caras fumando um baseado. Só que ninguém procurou saber o motivo daquela exposição da maconha. Como 99% de nós do rap não entendemos inglês e mal sabemos o português, só absorvemos a imagem”, ironiza. “Algumas pessoas acharam da hora falar que fuma maconha. Cada um faz a revolução da sua maneira. Só que eles vão pagar, porque eles vão ter filhos, que vão saber o que eles fizeram e que induziram pessoas ao uso de droga”, adverte. “E todo o cara que tem o microfone na mão é responsável pelas suas palavras. A propagação da droga também é culpa de muitos desses caras!”

Só Calcinha é contra as drogas, e acha que o hip-hop também deveria ser: “Eu acho que o hip-hop, ele tá e não tá contra as drogas. O rap tem muito disso, como é o caso dos caras do De Menos Crime.1 Mas eu vi a realidade um pouco dos caras do De Menos: essa música, ‘Fogo na bomba’, eles até não queriam que estourasse. E no caso do grafite, eu não vejo apologia às drogas, mas também não vejo uma posição contra. Eu não vejo muito essa discussão no grafite”, admite. “Tem muito usuário, tem muita gente que não usa, mas acho que o hip-hop deveria ser contra. Até como educadora, aí a gente tem que ter uma outra posição também, porque essa coisa de beber não deixa de ser o uso de um tipo de droga, a droga legalizada. Como aqui é meio pequeno [Santo André – SP], todo mundo aqui é meio que uma referência”, explica. Você vê o cara que pinta bebendo! Eu não sei até que ponto isso influencia outra pessoa. Pô, você acaba de sair de uma oficina e tem um debate legal, e ensina um monte de coisas legais praqueles adolescentes, e chega no bar da esquina e toma uma com os seus amigos. 1 Grupo de rap paulistano que trata abertamente da questão do uso da maconha.


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Eu acho que a gente tem que ter uma certa postura também, se a gente é referência para a maioria dos adolescentes que estão formando a sua identidade. No entanto, sou contra chegar e falar: ‘drogas, blah!’ Esse chavão aí é coisa de burguês, e eu acho que não tem nada a ver com a nossa realidade. A droga tá na nossa cara, na nossa porta. Como passar essa história sem parecer certinho demais? Tendo a postura mesmo de referência e mostrando pra molecada que a gente é contra, mas porque prejudica mesmo! Isso aí foi colocado pra gente se f... e ficar f...no mundo mesmo!”

O rapper Nelboy acredita na destruição em massa de toda uma geração influenciada por alguns de nós, que promovem uma pseudo-liberdade de expressão: O hip-hop, como manifestação cultural de um povo, não ficou imune à influência devastadora das drogas. Deixou claro o seu posicionamento avesso a esse fenômeno social, fazendo campanhas de intervenção social com palestras e discursos articulados nas líricas dos raps... Mas é do nosso conhecimento que os hábitos da sociedade influem, mesmo que sem intenção, vários setores que não seguem seus passos. E é o caso de alguns membros do hip-hop que passaram a assumir um discurso, postura e comportamento contrários às premissas que regem o nosso movimento. Mostraram um grande nível de despreparo, falta de responsabilidade e maturidade para encabeçar a fileira do nosso movimento.

Deste modo, concluímos que o hip-hop, embora contestador, tem em sua composição pessoas que não conseguiram despir-se das influências geradas por uma sociedade minoritária e dominante, que nos rotula como marginais. Nelboy também ressalta as contradições que existem na defesa da “liberdade de expressão” para maquiar o uso das drogas em massa: “Quando nos entregamos aos prazeres das drogas alucinógenas, nos colocamos em pé de igualdade com a mesma sociedade que criticamos, a sociedade que nos coloca às margens dos nossos direitos. A mesma sociedade que tem sua parcela beneficiada com


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a distribuição de drogas nas comunidades. A mesma sociedade que nos rotula de bandidos, vagabundos, ladrões e drogados!”

A droga mais comum utilizada em nosso meio é a maconha, chegando até a existir um certo paradoxo aí: o rapper que faz apologia à maconha abomina o uso de drogas “pesadas”. Mas droga é droga em qualquer circunstância ou proporção, e traz ao ser humano conseqüências desastrosas, seja a curto ou a longo prazo. O rapper que tende a influenciar pessoas em suas músicas e discursos ao uso da droga é digno do mesmo tratamento atribuído a um dependente químico, requerendo cuidados e acompanhamento médico. Nelboy acredita que os valores sustentados pelos que pregam a liberdade de expressão estão invertidos: “Se nos autoproclamarmos independentes, fora do domínio e do controle do sistema que tanto repugnamos, por que, então, usamos e fazemos apologia aos venenos que o próprio sistema cria? Por que não fazer e massificar a apologia à refeição diária no seio das famílias carentes? Com estas perguntas, não é minha intenção caçar a ‘liberdade de expressão’ de nenhum mano, pois vivemos num país soberano onde todos, de certo modo, têm direito à opinião”, ressalta. “Mas se nós do hip-hop, que empregamos a voz da liberdade para quebrar as correntes que nos prendem ao passado de sofrimento e dor, nos desviarmos desse intuito com comportamentos ingênuos e contraditórios, jamais encontraremos o caminho para a liberdade... Vestiremos e encarnaremos a pele do capitão do mato, a ajudar o sistema a estabelecer uma nova forma de escravidão, com outros moldes e maquiagem barata, levando nosso irmão às valas e às cadeias. Enquanto estivermos doidos de fumo, pó ou seringas, eles estarão a privatizar os hábitos e costumes da nossa cultura bem debaixo do nosso nariz, e entregando-os aos seus herdeiros bem nutridos para assumir os nossos papéis dentro daquilo que construímos com tanto sacrifício!”

Big Richard lembra o papel do álcool nessa discussão:


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“Antigamente rolava uma coisa que era mais verdadeira. A gente tá fazendo uma entrevista aqui, e eu tô bebendo uma cerveja. Neguinho sequer bebia uma cerveja”, conta. “Álcool? Álcool era o ópio, era o vício que levava o povo da favela pro saco.2 Só que isso também era muito aquela fase, igual a gente andou falando aqui: final da adolescência, excesso de radicalismo, de revolta, puberdade, hormônios florescendo, essas coisas. Hoje a mensagem é boa. A mensagem que o hip-hop leva de ‘não às drogas’. Talvez eu não seja a pessoa apropriada pra falar sobre isso, porque eu não uso droga. O máximo que eu faço, é beber uma cerveja.”

Magno C-4 vê o hip-hop como uma forma de resgatar jovens que enveredaram por um caminho de perdição. Considera também que os que utilizam o hip-hop para fazer apologia às drogas não têm engajamento nele e não se importam com as conseqüências negativas que podem surgir em seu meio: “Eu, como fui um dos fundadores do Jabaquara Breakers, palestrei muito sobre isso a dez anos atrás. Quando eu lembro do Edi Rock [rapper do Racionais MCs] cantando ‘Beco sem saída’, eu reflito: ‘se não fossem essas idéias, o que eu seria hoje?’ Então, a cultura hip-hop foi muito importante! Muita gente que dança, grafita e canta rap, poderia ‘tá’ preso ou internado, ou mendigando como eu vi pessoas que largaram a cultura se bandear pro mundo das drogas”, lamenta. “A música não deveria ser usada para fazer apologia à droga”, afirma. “O Planet Hemp e o Cypress Hill pedindo a legalização da maconha. Eu acredito que o objetivo da cultura não é esse”, contesta. “A partir do momento que o cara usa a cultura para isso, ele não tá engajado nela. O papel da cultura seria de levar a informação que a droga faz mal! O jovem se liga no ídolo dele. O rapper é o ídolo do jovem de hoje, principalmente do jovem da periferia”, adverte.

Magno também questiona o conceito de “liberdade de expressão” que sustenta a apologia à maconha: “As pessoas confundem liberdade de expressão com libertinagem. A liberdade de você se expressar na música, pra mim, é você

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O saco utilizado pela polícia para recolher o cadáver.


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se expressar sobre algum problema social, político. Você chegar na rampa do Planalto, e meter um flair, um moinho de vento [passos dos b-boys]. Isso que esses caras tão fazendo, não é liberdade de expressão. É pura babaquice! Coisa de quem não tem o que fazer”, critica.

Rooney considera o rap a música mais eficaz no combate às drogas: “O rap, hoje, é como diz Ice-T, é o único estilo de música no mundo que tem vários artistas falando que droga é ruim! O rap mostra também alguns exemplos de que a droga leva pro caminho da morte. As pessoas só entram nas drogas porque tão perdidas”, admite. “Mas o hip-hop é o estilo de música que mais fala contra as drogas no mundo”, garante. “A música ‘Fogo na bomba’ realmente incita o cara a acender um baseado. A música é linda, maravilhosa, eu gosto da música, só que eu não acho politicamente correta. Ela deve ser uma música pra poucos escutarem”, admite. “Então, nem tudo que o rap fala é do hip-hop, e nem tudo que é do hip-hop o rap consegue falar. Nem tudo que o rapper fala com a melhor das boas intenções é considerado por alguns do hip-hop. Isso vai de cada um interpretar da maneira que quiser. O hip-hop é uma coisa livre e solta, leve e cada um faz da sua maneira. Tanto é que é uma filosofia positiva. O artista pode fazer o que ele quiser. Só que nem todo artista precisa utilizar letra ou música pra poder vender hip-hop. Tem vários artistas vendendo de várias maneiras, então, vai muito de cada um.”

Mara também questiona a tão pleiteada liberdade de expressão em nosso movimento: “A idéia de ‘liberdade de expressão’ é uma conquista. Com tantas limitações que a gente tem, mas a liberdade de expressão, entre aspas, que a gente tem, ela precisa ser usada. Ela vai ser o reflexo do que são as pessoas nesta sociedade. Mas tem uma coisa que também a gente precisa trazer pra discussão: quando a gente fala de liberdade de expressão é a responsabilidade que cada membro do hip-hop vai ter. A partir do momento que você passa a se expressar, seja através do hip-hop ou de outros meios, é importante saber que muitas pessoas vão te ouvir, vão ver o seu




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grafite, enfim, que a sua expressão vai chegar a outras pessoas, inclusive a jovens da sua comunidade”, adverte. “Então, eu acho muito prejudicial, quando se incentiva o uso da droga, mesmo entendendo que esse cara que fala é reflexo do que já está aí. Ele também já passou por um processo que fez com que ele usasse drogas. Ou, às vezes, até não, porque a gente sabe muito bem que tem muita gente que traz um discurso de que usa droga, que é do crime, e que na verdade é puro marketing”, critica. “Mas, partindo dessa coisa da droga, eu acho que o que falta quando se fala dela no hip-hop é tentar entender essa estrutura também”, ressalta. “Eu vejo grupos que falam pra caramba da maconha, mas quando a gente vai discutir: ‘e aí, legalização ou não?’ Os caras não querem ir pro debate! Se você acha que a molecada do seu bairro tem que fumar maconha porque é legal, mas tu sabe que aquela molecada tá apanhando da polícia todo dia porque tá com maconha, como você não quer discutir a legalização? Se você acha que a molecada deve usar a maconha, então, vamos discutir a legalização! A gente sabe muito bem o nível de responsabilidade que é, principalmente, no caso do rap, como que ele passa a ser uma referência pra molecada da comunidade. Eu acho um desleixo muito grande quando simplesmente o cara incita o uso, e, por um outro lado, não quer discutir e nem mesmo tem uma posição do que deve ser aquilo na sociedade de que ele faz parte”, critica. “No caso de drogas mais pesadas, a gente sofre um moralismo muito grande, e a gente precisa saber lidar com isso, porque ao mesmo tempo que a gente tem que ter essa responsabilidade toda, a gente não pode cair no moralismo, porque a juventude já sofre muito com ele”, lamenta. O moleque, se ele estiver usando droga, ele não vai falar isso pros pais ou pro professor, porque aos olhos da sociedade ou ele é um criminoso, ou ele é um doente, ou ele é um rebelde. Enfim, o cuidado pra não cair nesse moralismo é pra gente não se distanciar desse jovem, e virar os ‘paizões’ que vão dizer: ‘você é criminoso! Você é pecador!’ E f...!”

Para Marcelinho, o hip-hop deve distanciar o jovem da droga e muitos de nós estamos, inspirados em ídolos americanos, dando uma carga negativa ao discurso do hip-hop:


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“O movimento hip-hop nasceu como um movimento para tirar a rapaziada da droga, criando o lazer e o entretenimento. É como eu acho no caso do ativismo: que se você criar as casas de cultura, vai tirar a molecada da rua pra aprender sobre a cultura hip-hop, história e outras coisas importantes. E a questão de alguns grupos falarem de droga é como o caso do gangsta. Só não inventaram um nome pra isso: o rap maconheiro! O rap drogado! Porque como tem o gangsta, o gospel, o político, tem o drogado também. Depois do Planet Hemp viu-se que falar de maconha dava retorno, nem que fosse barulho. Tanto que as letras falam maconha, ninguém tá falando que cheirar é bom”, ressalta. “É perigoso mesmo assim, porque a molecada que tá ouvindo vai achar que não tem problema experimentar. E aí experimenta um baseado, depois a cocaína, fuma um crack, assalta e morre. O rap tem esse compromisso de atingir o povo da periferia, que é um povo que tá mais em contato com isso. A gente sabe até que nos shows de rap agora a molecada tá enchendo a cara de pinga na porta, entra, fuma maconha, assiste a dois shows, e se joga no chão. Então, isso é um efeito errado que o próprio rap tá causando, e não é um grupo de rock que tá indo lá falar de maconha”, ressalta. “Isso é também em função dos americanos. O Snoop Dogg fuma maconha no palco nos shows dele. O Snoop é milionário, se vierem processar ele, ele tem dinheiro pra sair da cadeia. Aqui, se um grupo subir no palco e fizer isso, é preso e não vai pagar nem o policial ali na hora”, compara. “Eu também tenho filho, e não vou botar ele pra ouvir certas músicas. Meu filho de quatro anos pergunta pra mim o que é ‘Fogo na bomba’, vou explicar o que pra ele? A gente vem num processo contra o combate à droga, mas o público-alvo ouve a música que faz apologia à droga, que funciona até mais que campanha de TV. O cara fuma? Então, fume, beba, cheire, mas faça na dele.”

Bonga sintetiza em poucas palavras a posição da cultura hiphop sobre o assunto: “Tem um pensamento que é assim: tudo que você joga de ruim no mundo volta pra você. Cada um tem um posicionamento, cada um pensa de uma forma. Tem cara que acha que tem que usar, tem outro que acha que tem que legalizar. Mas eu acho assim: pensa


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no próximo! Pensa pra quem você tá passando isso! Porque isso é jogar merda no ventilador!”

Como representante legítimo da Universal Zulu Nation no Brasil, Nino Brown declara que o hip-hop é contrário ao uso de drogas: “Ele é totalmente contra as drogas! Sofri muito com isso! Não sou contra quem fuma o seu baseado. Já levei muita fama de maconheiro, sem nunca ter fumado maconha. Quem tá no hip-hop, sabe que ele foi um modo utilizado por muitos pra se distanciar desses problemas. Pra você dançar ou grafitar, se você estiver drogado, você não vai realizar nada! Também têm aqueles que cantam pra caramba, mas têm vários filhos jogados por aí, não assumidos, que estão sendo criados só pelas mães. Se eles não cuidam dos seus próprios filhos, como vão cuidar de toda uma geração? Eles falam contra as drogas, sendo que os seus filhos não assumidos estão se drogando por aí! Eu cuidei da minha geração, então, posso falar com rigor! Se eu cheguei aos 41 anos, morando onde eu morei, eu acho que ganhei muitos prêmios”, considera. “Eu tô falando isso porque é muito fácil falar em drogas, mas depende do lugar onde você mora. Eu queria falar o que os jovens do rap falam hoje naquela época, ter a mesma oportunidade. Só que a gente soltou várias pombas da paz que foram exterminadas!”

Bad mostra respeito à vontade de cada um, desde que o nome hip-hop não sofra com isso: “Em Nova York, os mais respeitados do hip-hop usam maconha. Faz parte da cultura deles lá. Nos bairros aqui de São Paulo a gente fala: ‘não usa! Se você usa, problema é seu e não dê o mau exemplo!’ Então, o hip-hop como cultura, como arte, é direcionado contra as drogas”, afirma. No caso dos b-boys, vai incentivar a pessoa a zelar pelo corpo pra ter condições de dançar ou, então, a droga vai afetar o condicionamento físico do dançarino. Já no lado do grafite, é problema de cultura. O artista no Brasil criou aquela idéia de que para pintar ele tem que ‘tá’ muito louco. Ele tem que ser surrealista e fazer tudo na loucura. Isso é uma influência hippie dos anos 70, e é hora de acabar e provar que a pessoa pode criar, e criaria melhor ainda sem a droga na cabeça”, considera. “Já o rapper, a grande maioria faz apologia à droga. A


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imagem que ele espelha pra população é de violência, apologia aos traficantes, ao banditismo e à droga. Acredito que na casa deles, eles não fazem deste jeito. Então, pra fora de casa, é mais fácil de falar, mas não é a realidade”, declara. “Na rua, eles ficam se exibindo como se fosse grande coisa fumar maconha ou cheirar cocaína.”

Um polêmico argumento se desencadeia através do rapper Suave. Para ele, a questão é mais grave por conta do governo que reprime o uso da droga e não faz o devido recolhimento dos impostos através dela: “Isso é engraçado! As pessoas que conheciam o trabalho do Jigaboo se lembram da música ‘Doideira’, que é uma música que, na verdade, faz uma sátira à droga. Eu, o P.MC e o DJ Deco, nós três somos super caretas, e muita gente não acreditava nisso. Viam o meu estilo, a cara do P, e diziam: ‘esses caras devem dar um teco!3 Devem ser muito loucos!’ Eu acho que o rap deveria dar uma certa importância a isso. Tirar muita gente da droga. A maconha, por exemplo, pode ser prejudicial como o cigarro e o álcool são. Só que tem que haver o ‘despreconceito’ que existe contra as pessoas que fumam, porque o que existe no Brasil hoje é aquele preconceito: ‘pô, o cara fuma um baseado, ele é marginal!’ Eu não fumo por opção, mas se talvez eu gostasse de um cigarro, eu ia fumar maconha, porque eu acho que não tem nada de anormal nisso. Isso já foi usado antigamente como remédio tranqüilizante. A própria cocaína, isso sim, eu acho que é uma droga mais pesada, não se poderia estar também incentivando as pessoas a cheirarem”, justifica. “Agora, o rap poderia passar um pouco das suas experiências: ‘olha, eu já fiz isso e só me dei mal! Não vai nessa!’ Então, se você for ver, o único problema que se tem com a maconha, é que ela não paga as taxas pro governo. Porque a partir do momento que ela der grana, como o cigarro e o álcool dão, aí o governo vai liberar aquilo. A questão é unicamente esta”, esclarece. “Não tem uma fábrica deles gerando isso, eles ficam p... e colocam a culpa somente no tráfico. Eu não tenho preconceito contra quem fuma maconha; outras drogas pesadas, é diferente.

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Cheirar cocaína.


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Mas eu acho que o rap deve alertar àquelas pessoas que se excedem, e isso vale pra qualquer coisa. Eu tomo a minha cerveja no final de semana, mas não sou viciado em álcool. Até mesmo o rap: se você ouvir muito ele, pode ser prejudicial à saúde”, ironiza. “Então, cuidado, vocês que ficam as 24 horas do dia ouvindo raps de má qualidade!”

Mano Brown admite que o hip-hop e a droga não combinam: O que prende o homem à terra é o vício! Vários ídolos do mundo da música pregam a liberdade, alguns através até do uso de drogas. Drogas leves, drogas pesadas... O hip-hop é pela vida! E tudo o que prejudica a vida, o hip-hop é contra. Não só a droga em si, a cocaína, a maconha, a heroína, o álcool, a novela. Os seres humanos são passíveis de fraqueza.

Para Mano Brown, o que acontece é puro impulso pela moda, e devemos ter cuidado com o que falamos, por causa das influências negativas que podem ser geradas: “Acho que existe um certo modismo! A questão da maconha é muito mais ampla e profunda do que o rap canta! O rap canta a maconha de uma maneira muito rasa, não se aprofunda muito, também não se preocupa muito com isso. Talvez seja até bom! Ninguém entra muito no assunto, e também passa logo, e ninguém vai ‘tá’ falando mais sobre isso”, acredita. “A maconha sempre existiu, sempre vai existir. Se o rap influenciou o seu uso, quando parar de falar vai deixar de influenciar, e aí vai ser outra onda. Eu acho que as pessoas têm que ter responsabilidade sobre aquilo que falam, porque as crianças, elas vão ouvir. Tem que pensar nas crianças! Cada um tem que ter responsabilidade sobre o que fala, porque elas são o nosso futuro. O que a gente fala agora será usado contra nós no tribunal logo mais”, afirma.

O filme Panteras Negras, de Mario Van Peebles, retrata a luta dos afro-americanos para se articular politicamente contra o racismo e o descaso social dentro dos guetos durante a década de 60, cujo fundamento principal era o resgate da auto-estima entre a população negra dos EUA. Em determinado episódio do filme, o sistema americano recorre à ajuda da máfia italiana


para introduzir drogas e armas nos guetos na intenção de desmantelá-los, e acaba conseguindo. A história dos Panteras Negras não é tão diferente da nossa: como podemos ser os responsáveis pela chegada das drogas e das armas em nossas favelas, se não trabalhamos em aeroportos, não controlamos fronteiras e nem temos navios? Quando um usuário de drogas da favela é detido pela polícia, não recebe um tratamento diferenciado ao de um traficante. Um viciado em drogas, por mais que queira se libertar, não dispõe de recursos financeiros para cobrir os custos de sua reabilitação numa clínica especializada. Muitas vezes acaba optando pela vida do crime para manter o seu vício, destruindo mais rápido a sua vida. Portanto, não usemos o nosso rap simplesmente como veículo para nossos interesses pessoais. Mas, se assim o fizermos, desvinculemos as nossas atitudes da nossa ideologia. O hiphop agradece!


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. Estamos confrontando o sistema ou a n贸s mesmos?

18. Estamos confron


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ntando o sistema ou a n贸s mesmos?


Em visita a outros estados, pude notar a força quantitativa dos movimentos do hip-hop, mas pouco qualitativa em muitos casos. Existiam lugares em que as diferenças entre os grupos eram tão visíveis que eles não se contentavam simplesmente com o confronto verbal, chegando a ultrapassar a barreira do limite do respeito, partindo para o confronto corporal. Grupos que subiam no palco com garrafas de bebida alcoólica, e, em vez de pregar consciência, pregavam a desordem, incitando a violência entre si. Uma pergunta: será que estamos levando realmente a sério o que tanto defendemos? Se eu fosse pai, não iria concordar com o meu filho se envolvendo com essa turma, você não acha? Responder em nome do Movimento Brasil, atualmente, é muito complicado, porque embora não seja a maioria de nós, a notícia ruim corre muito mais rápido do que a boa; todo argumento contundente a favor do hip-hop pode ser questionado devido aos diversos erros já avistados em nosso meio. Antes de falarmos de política em nossas letras, devemos nos politizar. Antes de falarmos de educação, devemos nos informar. Antes de tentarmos conscientizar alguém, devemos nos conscientizar. Antes de pregarmos a paz e a união, devemos nos respeitar. Antes de cobrarmos a responsabilidade do nosso próximo, devemos amadurecer.

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Mano Brown deixa transparecer com nitidez a situação de estarmos unicamente agredindo a nós mesmos, na maioria das vezes: “É uma guerra geral! A guerra do bem contra o mal! O bem tá em todo lugar e o mal também! A gente não pode fazer vista grossa aos nossos defeitos! Fingir que tá tudo certo dentro da nossa casa também não é o caminho. Se tiver errado, tem que resolver. É lógico que a gente perde tempo, quando a gente se apega a coisas pequenas e leva até às últimas conseqüências, por vaidade, por rivalidade barata, por ambição, por inveja, sentimentos baixos. Existem sentimentos nobres e sentimentos baixos. Os nobres te elevam! Os baixos te derrubam! O hip-hop não pode ser refém dos sentimentos baixos, da inveja”, adverte. “Eu costumo falar nos shows: ‘no coração que tem inveja não pode brotar sentimento! Ele é um coração deserto! No deserto ainda nascem cactos, mas no coração que tem inveja não nasce liberdade, não nasce vitória, não nasce revolução, não nasce nada!’ Então, a gente tem que saber que a nossa maior guerra não é contra nós, é contra o sistema! Agora, que existem problemas que têm de ser resolvidos entre nós, existem! Mas de preferência com ética, com hombridade, com lealdade, com respeito, com caráter, e não de forma leviana, baixa, invejosa, suja, mesquinha, covarde, como é feito às vezes! Isso nos coloca na verdade, no lugar que nós somos: seres humanos! Quando acontecem essas coisas, é bom que a gente lembre de onde nós saímos”, ressalta. “Seres humanos têm esses sentimentos baixos também! Quando a gente tá agindo dessa forma, a gente não pode querer ser mais que o ‘Zé Povinho’ da rua. Se somos iguais, então, vamos baixar a bolinha, parar de querer dar muito conselho, porque estamos agindo igual. Tamos errando igual, com as mesmas falhas. Se tá essa m... do jeito que tá, é porque nós temos os sentimentos iguais. Então, a gente não tem moral. Essa moral pra falar e dar conselho pros outros”, admite. “Vamos nos colocar no lugar de humanos errados.”

Big Richard considera que estamos perdidos em nosso próprio discurso, quando, em vez de nos prepararmos de maneira consciente para fazer jus ao que defendemos, preferimos atacar quem faz parte do nosso meio:


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Acorda hip-hop!

“Num primeiro momento a gente acredita que está confrontando o sistema, mas no fundo estamos confrontando a nós mesmos. Estamos confrontando o sistema com a nossa imaturidade. Imaturidade em relação a lidar com a política que é praticada pelo chamado sistema, a nossa inserção nesse meio, a nossa repugnância a coisas que o sistema traz, como é o caso da mídia. Então, essa imaturidade não faz com que a gente atinja de maneira alguma o sistema, e sim a nós mesmos”, explica. “E quando você atinge a você mesmo? Quando quer criticar aquele tipo de mulher que é chamada de cachorra, você não vai conseguir atingir com essa crítica aquelas que assumem a postura desse tipo de mulher. Aquelas que de repente ficam ricas, que são modelos de mulher vagabunda, porque modelo de mulher vagabunda são essas minas: ‘o que você faz?’ ‘Ah, eu sou modelo.’ A profissão delas é sair pelada nas revistas masculinas. Aquela que o sonho dela é participar de um Big Brother,1 uma Casa dos Artistas, só pra depois sair na Playboy. Aquela que não tem conteúdo nenhum”, critica. “Porém, são essas pessoas a quem a gente não atinge, que vendem essa imagem da cachorra pras nossas mulheres nas periferias, nas comunidades negras da vida. Só que esse jeito que o hip-hop no Brasil tem de se excluir, de não querer crescer dentro da sociedade, dessa modinha que tem de não ir à mídia, como eu já falei, que muitas vezes o cara sabe que não tá preparado pra ir, essa falta de perspectiva, isso faz com que a gente não atinja aqueles que a gente quer atingir, e fique aquele joguinho de gato e rato entre a gente.”

Na opinião de Magno C-4, esse confronto é interno. Ele não vê uma briga com o sistema, já que ainda não conseguimos dar um basta às nossas próprias diferenças. Magno acredita que a partir do momento em que soubermos lidar com os nossos problemas, teremos também a capacidade de usufruir do sistema através de estratégias: “O cidadão tá inserido no sistema. O hip-hop é uma cultura inserida no sistema, aliás, tudo tá inserido no sistema”, explica. “É como eu havia falado antes: o rap é a única música que critica a

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Reality show exibido pela TV Globo.


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si mesma e critica os outros estilos musicais. Aí o rap critica também o break; o break critica o grafite. Eu acho que o confronto tá entre nós. A gente, em vez de trazer coisas boas pra nós, fica criticando um ao outro. A inveja e a vaidade é que fazem o movimento não crescer”, justifica. “A cultura hip-hop tem tudo para crescer no mercado e se tornar uma veia comercial e política muito forte, se deixar suas diferenças de lado”, acredita.

Para Mara, enquanto estivermos utilizando o hip-hop unicamente para o nosso bem individual, e não em caráter coletivo, estaremos lutando somente contra nós mesmos: “Infelizmente, muitas vezes, continuamos nos confrontando com nós mesmos num jogo de ego, pelo fato de enxergarmos o hip-hop apenas como uma saída individual, e não coletiva. A partir daí, a gente passa a reproduzir a idéia de que o hip-hop vai transformar a minha vida, mas dane-se o que tá ao meu redor e se o sistema vai continuar o mesmo, se a sociedade vai continuar racista, se a burguesia vai continuar lucrando em cima da miséria de um monte de pessoas, se milhões de pessoas vão continuar passando fome. O que a gente vai ver, então, é muita gente lucrando com discurso da miséria e nenhuma preocupação de como transformar isso! Mesmo entendendo que essa transformação vai ser um trabalho de formiguinha, que não é de hoje pra manhã que a gente transforma, e que não dá pra ter um pensamento mecânico e dizer que amanhã a gente já vai ter mudado tudo e feito a revolução sem condições objetivas pra isso”, ressalta. “Mas a perspectiva que a gente pode enxergar, pra que a gente passe a confrontar o sistema e não a nós mesmos, é exatamente essa: perceber que o hip-hop não vai ser uma saída individual. Ele pode, sim, mudar a vida de muita gente e muda, porque, a partir dos questionamentos que traz e das contestações, de fato, pode mudar a vida de muitos, mas, em primeiro lugar, o hip-hop não é o salvador da pátria”, afirma Mara. “Mais uma vez, a gente tá andando em círculos, em cima de coisas muito pequenas. E aqueles milhões de pessoas passando fome de que você fala naquela música? Como você muda essa situação? Pra mim, essa sociedade baseada no lucro de poucos sobre a desgraça de milhões, a gente não muda! Mas se a gente também simplesmente achar


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que pelo hip-hop a gente vai garantir emprego pra todo mundo, e não vai, a gente também não muda nada, a gente vai continuar confrontando a nós mesmos”, admite. “A partir do momento que eu achar que é o hip-hop que vai trazer emprego pra todo mundo, por exemplo, eu vou começar a tretar com você, porque você conseguiu um trampo ali e eu não!”

Marcelinho volta seu ponto de vista para o mercado musical em torno do rap. Segundo ele, existe um confronto desnecessário por parte dos grupos quanto à questão do sistema das gravadoras: “Quando a coisa tava começando os grupos tinham uma outra visão e muita gente não imaginava que o rap ia crescer, tanto lá fora como aqui, em questão de uma dominação de mercado mundial. Mas a partir do momento que aconteceu isso, você já entrou automaticamente no sistema. Qual sistema? Você gravou um disco, você tá no sistema também. Não adianta criar um único meio de venda só do rap, um único meio de divulgação só do rap, não tem estrutura pra isso”, afirma. “Então, os grupos começaram a bater cabeça por causa disso. Quando começou a tocar o rap no rádio, com programas de rap todos os dias, que começou a tomar uma forma de artista, com shows todos os fins de semana e com suas músicas tocando no rádio, aí a coisa foi afunilando pra história da competição: quem tocava mais ali, quem fazia mais show, e essa competição, ao invés de se tornar sadia, começou a trazer divergências”, conta. “O rap não quis o sistema, só que ele acaba entrando e não tem como fugir dessa história. A gente tem que gravar o nosso CD, a gente tem que distribuir, nós temos que fazer tudo. Mas em algum momento, você vai precisar de um parceiro pra você expandir o seu trabalho. Você tá fazendo o seu livro, mas você vai precisar do cara que vai fazer a capa, o outro que vai lançar, então, você não vai bancar isso tudo sozinho”, explica. “E no rap é a mesma coisa se a gente não se juntar com quem tem grana, porque não é todo mundo que tem grana que não liga pra gente. Tem aquele que tem grana, e é contra esse sistema que tá aí. Então, o que tá acontecendo na realidade é o individualismo, porque o sistema não fechou a porta. A oportunidade tá aí pra todo mundo, só que o rap já tem um impasse formado. E aí vai


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ser muito difícil todo mundo se posicionar numa maneira igual. Mas o movimento hip-hop brasileiro deve chegar a um consenso, porque a gente não pode achar que um grupo é melhor do que o outro, porque rap é uma coisa só, tem segmentos mas é um estilo só. Então, se você não usar o sistema, o sistema não te usa, mas também fica mais difícil pra você se sobressair”, adverte. “Então, você tem que saber utilizar o sistema mesmo, principalmente na hora de você gravar um disco, procurar uma gravadora e divulgar o seu trabalho. O lance é você se relacionar com as pessoas, não só do meio do hip-hop, mas fora dele também, pra você progredir no seu trabalho e no momento, a gente tá batendo cabeça.”

Bonga acredita que, na intenção de atacarmos o sistema, devido ao nosso despreparo, terminamos por ferir a nós mesmos: “Tem cara falando de política sem ter base para isso. Confronta o sistema sem saber quem é o sistema. Pra falar mal do inimigo, tem que conhecer ele. Às vezes, a gente acaba criando um confronto de falar um montão e acaba atacando a gente mesmo, fica numa linha de tiro circular e não vai atacar ninguém”, critica. “Eu acho que tem que incentivar de uma forma inteligente aquilo que você acredita realmente que será de transformação, e parar de ficar atacando e achando que sabe mais do que os outros. Leia, estude, decore.”

Rooney lembra a importância do respeito mútuo para que confontos internos e externos funcionem em benefício do hip-hop: “No caso de nos confrontarmos a nós mesmos, a gente tem que fazer com respeito, consciência e com objetivo”, considera. “Se a gente tá confrontando o sistema, direta, indireta e objetivamente? Sim, com certeza, a gente tá confrontando o sistema. Mas que sistema? É isso que as pessoas precisam realmente analisar! Quando você quer combater o sistema, você tem que ser objetivo: ‘eu não quero que a polícia me pare na rua sem eu ter feito nada, porque eu não sou marginal, eu sou trabalhador’. De uma certa maneira, assim você tá combatendo um braço do sistema”, afirma. “Mas existem milhares de pessoas que andam na rua de maneira suspeita. Eu mesmo já participei de situações em que eu gostaria de incitar a polícia e andar de uma maneira suspeita,


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fui parado e eu quis jogar na cara do policial que eu era trabalhador, mas isso era uma época onde você tá em meio a uma busca de afirmação”, explica. “Hoje eu tô muito ciente daquilo que eu quero, então, eu não preciso provocar ninguém pra pessoa chegar em mim, pra eu poder falar a verdade pra ela. Hoje eu sou muito mais objetivo. O hip-hop, no geral, existe de duas maneiras: confrontos internos, sim, porque existe muita gente que quer mostrar um montão2 daquilo que não sabe; e existe nos confrontos com o sistema também, de uma maneira positiva, de direito.”

Só Calcinha acredita que está havendo um conflito geral, decorrente da falta de afirmação de muitos de nós no hip-hop: “No hip-hop já rola essa parada de ‘tá’ confrontando a nós mesmos e confrontando o sistema também. Mas, no caso do grafite, rola muito essa coisa: ‘eu sou contra o sistema e é isso aí e pronto!’ Tá, você é contra o sistema por quê? Ele te prejudica? O que o sistema faz que você é contra? Por que a gente é contra o sistema? Então, a gente tá defendendo tanto essa idéia a ponto de excluir o outro, a ponto de: ‘eu tô confrontando o sistema e a você também, porque você é folgado, ou então, porque você é uma mina cheia de querer ser.’3 Até que ponto a gente tá se digladiando? O objetivo da gente é o mesmo, só que os passos são diferentes. Cada um vai buscando os seus objetivos de várias formas”, acredita. “Uns pela discussão de raça, gênero e etnia; outros através do grafite ou do break, e é aí que eu acho que nasce um pouco desse conflito! No grafite, eles têm aquela idéia de, por exemplo, ser socialista ou de esquerda, ou de não ser nada e ser underground, mas esse underground nem sabe o que é ser underground. Um morador de rua não é underground, então, o que é ser underground?”

Na visão de Bad, o confronto com o sistema é algo abstrato e está longe de uma solução: “Ficar jogando culpa no sistema é desculpa de incompetente. O Brasil tá saindo ainda de uma ditadura, não reagiu ainda. Então, você tem um sistema que ainda domina e oprime, e isso aí tá pra

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Donos da razão. Convencida, soberba.


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ser mudado. Cabe a nós mudar. A gente tem todo o espaço daqui pra diante pra mudar esse sistema e não ficar parado reclamando, só dizendo que é culpa dele a gente ‘tá’ nessa situação”, critica. “O mundo se tornou civilizado justamente nas guerras, porque um povo tinha que mostrar mais poder que o outro. É isso que a gente tem que fazer: se o sistema é contra a gente, então, a gente tem que lutar contra isso”, declara. “Mas cabe a gente arregaçar as mangas e fazer. Falar é fácil, mas vestir a camisa é difícil.”

Gabriel O Pensador deixa evidente sua desaprovação quanto às confusões geradas por algumas pessoas do movimento e aproveita para citar alguns exemplos negativos: “Eu não gosto de criticar a postura dos rappers como um todo, porque depende do caso: tem gente que sabe ser mais objetivo e correr atrás do seu e outros que perdem tempo com besteira mesmo, provocando rixas. Acho que isso não leva a nada. Se me pedissem algum conselho a partir do que eu vi durante a minha carreira, eu diria que essa postura de racha é só atraso mesmo. Desde pessoas desconhecidas, que de repente querem tocar idéias em grupo, e aí tem um e outro no meio que não se dão bem e ficam colocando no meio problemas pessoais,, até um racha que se torna público, por coisa pequena e que, em vez do cara dar uma entrevista sobre isso, as pessoas acabam ficando curiosas querendo saber o que um acha do outro. O cara tá perdendo o tempo dele pra falar coisas de outra pessoa. O objetivo do rapper não é esse,” lembra. “Acabei de me lembrar de uma história: uma vez, eu tava batendo um papo com o Thaíde e outras pessoas sobre música, e a gente tava comparando o rap do Rio com o de São Paulo, e era um comentário meio que em off, porque eu não sabia que entraria na reportagem. Então, eu comentei sobre uma música de um rapper, só pra dar um exemplo de que eu não gostava de tudo que era feito aqui ou lá em Sampa. A matéria foi publicada, virou uma coisa que incomodou o cara e aí trouxeram a resposta do cara pra mim. Tudo por causa de uma besteira, só porque eu não gostei de uma música. Então, eu acho que não vale a pena; aprendi com isso. O que der pra somar, deve-se somar. O que der pra unir, deve-se unir.


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E o que não tiver muito a ver, deve seguir paralelamente e com muito respeito.”

Vivemos num país onde todos os dias crianças são entregues ao abandono nas ruas da cidade, famílias negociam seus filhos para o mercado da prostituição; jovens são entregues à vida do crime por uma questão de sobrevivência; a falta de informação e o racismo se tornaram parte da nossa cultura. O rap não é uma música comum. Ele tem o poder e a ousadia que outros ritmos não têm e se limitam por temerem não assinar um contrato com uma gravadora. Mesmo diante de tantos assuntos que merecem a nossa atenção, como encontrar tempo para implicar com o trabalho do irmão? Talvez a imaturidade de alguns de nós dentro do hip-hop, seja a melhor resposta.


19. UniĂŁo, serĂĄ que entendemos o verdadeiro sentido dessa palavra?

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Uni達o

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Muito se prega e muito se cobra dentro do nosso movimento a respeito de “união”. No entanto, vemos que na maioria das vezes ela não acontece. Será que entendemos o seu verdadeiro significado? Na década de 60, nos EUA, quando o sistema estava neutralizando as forças dos afro-americanos, impossibilitando-os de se mobilizar contra o racismo, dois grandes líderes de visões opostas – o pastor Martin Luther King e Malcolm X – esqueceram suas diferenças religiosas e se uniram por um só ideal: a liberdade do povo afro-americano. Atitudes como estas são um excelente exemplo para mostrar que a união se faz presente baseada no respeito e na plena consciência de nossos ideais. Não precisamos andar juntos uns dos outros, nos abraçarmos e nos beijarmos para demonstrar nossa união. Não precisamos concordar com tudo e com todos cegamente. Precisamos, sim, respeitar as opiniões diversas do movimento para sermos igualmente respeitados. Nossas críticas contrárias deverão ser apresentadas de forma construtiva, e não sob o calor das emoções que, na maioria das vezes, não considera as conseqüências drásticas contra nós mesmos. Vivemos quase sempre uma “união de aparências”, regida pela conveniência. Um bom exemplo para tal postura é a elaboração de uma coletânea musical: enquanto todos parecem estar no mesmo grau de oportunidade, a amizade, o companheirismo

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e o respeito se projetam de modo espantoso por entre nós. Mas quando um de nós se destaca um pouco mais, atingindo o sucesso, os demais se afastam acusando-o de traidor. Será que não conseguimos entender que, quando um companheiro se sobressai em seus trabalhos, é motivo de alegria para todos nós? Só o fato de que esteja acima de nós, nos representando, é motivo suficiente para acreditarmos que também podemos chegar lá, se só nos concentrarmos em nossos empreendimentos e trabalharmos mais. Se por acaso esse colega estiver vacilando em sua representação, devemos mostrar que ele não está só e que tem uma responsabilidade. Mas alertá-lo de forma construtiva. Por outro lado, quem está de pé que tome cuidado para não cair. O problema não se encontra tão somente na base. Ofertas indecorosas nos tragam a ponto de negligenciarmos nossas origens, e a usamos somente no intuito de autobenefício e não dentro de um conceito coletivo. Se tentarmos passar por uma porta ao mesmo tempo, vamos reparar que nenhum de nós vai conseguir entrar. Agora, se entendermos que a oportunidade de um não é igual à do outro, estaremos dando o primeiro passo a favor da união. Talvez dessa forma a união deixe de ser algo fictício para se tornar algo praticável em nosso meio. “Eu acho que entendemos! No que diz respeito a favorecimento próprio, sim! Por exemplo, se você estiver na guerra com 20 pessoas e uma delas é o seu irmão, se você tiver que livrar a cara de alguém, você vai livrar a cara dele! Então, no que diz respeito à união dentro do rap, eu vejo mais ou menos assim: é unido, mas é unido setorizado”, considera DJ Deco. “Eu acho que a falta de união do rap hoje faz com que o rap não ande, e faz com que algumas pessoas tenham medo de se envolver com o rap”, lamenta. “Já aconteceu caso de a pessoa gostar de um trabalho de rap só até saber quem fez. Quando ela descobre quem é o nome por trás


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da música, ela passa a não gostar mais. Eu acho que isso é falta de união e de aprendizado, falta de profissionalismo. Falta muita coisa pro rap como música e pras pessoas que fazem o rap. Pras pessoas também que têm a responsabilidade de divulgar o rap, falta muita coisa em em termos de união!”

DJ Deco “Acho que a gente acredita que entende. Mas se de fato entendemos como gostaríamos que fosse, isso é outra coisa. É o livrearbítrio, cada um entende o sentido das coisas do modo que lhe convém, refletido o meio em que vive, enfim, as séries de coisas faz com que você raciocine de forma determinada, muitas vezes diferente de mim”, explica Big Richard. “É muito polêmica essa sua pergunta, justamente por isso, porque se tem uma coisa de que todo mundo dentro do movimento reclama é de falta de união. Não existe um que não reclame que falta união. Só que aí quando você vai desmembrar o que é essa falta de união de que falam, é uma série de coisas: é união pra ganhar dinheiro, é união pra dar o golpe no próximo, é união pra chegar a determinado lugar, união pra formar a sua panela e lutar contra a panela do outro, enfim, é muito ampla essa coisa”, considera. “É como eu disse: cada um formula o sentido de união de acordo com a sua própria história. Porém, se você quiser falar de união, a gente quando vê o rico, o capitalista, a história deles todos, esses quatrocentões que há anos exploram o Brasil, a história deles é igual. É história de ter união, primeiro pra colonizar e dominar o Brasil, e agora pra explorar o Brasil”, explica. “Então, são diferentes conceitos de união, entendimentos do que é união. É fácil, por exemplo, o burguês estar unido com outro igual a ele. Agora, é muito ruim quando um preto, quando alguém que sai do nosso meio ganha dinheiro e acaba a união justamente quando aquele que foi explorado agora quer virar o explorador”, lamenta. “Isso é muito ruim e acontece dentro do hip-hop: o cara melhora um pouquinho e vira o explorador.”

Big Richard


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“Geralmente dentro de um grupo [de rappers] não existe união. Então, por exemplo, se o bote tá flutuando e tem gente remando, você pode ter até a falsa impressão de que tem união. Mas a partir do momento que o bote começa a afundar, a união acaba”, diz Magno C-4. “A partir do momento que você coloca dinheiro, poder e fama, não só dentro do hip-hop... Num time de futebol, quando sai na imprensa que o meia-esquerda ganha cem mil reais, e o resto do time 20 mil reais, ninguém passa mais a bola pro cara no jogo. Quando se coloca fama e dinheiro na frente da lealdade, da honra e da amizade, você acaba com a palavra união.”

Magno C-4. “Falar de união é voltar pra aquela idéia de que a gente não é só indivíduo. Porque a gente sempre vai ser condicionado a se enxergar só como indivíduo e que precisa garantir as próprias necessidades. Quando os problemas se intensificam, o seu ego vai lá pro alto e você vai dizer: ‘não! Sinto muito, mas eu vou garantir primeiro o meu e depois eu penso no resto!’ É a partir daí que a gente passa também a não ter união. União pra mim é de quem tá ligado à miséria, de quem sofre, ou seja, a união de quem é explorado e quem é oprimido, e logicamente, de quem tá no hiphop”, afirma Mara. “Aí novamente temos que perceber onde está de fato o inimigo, e enxergar que a gente só destrói isso, que a gente só consegue transformar essa sociedade se a gente se enxergar como um todo. Mas, por outro lado, se enxergar como um todo também não é abrir mão das nossas posições. Porque eu já ouvi, inclusive, as pessoas falarem: ‘com essa posição que você tem, já que você tá divergindo de tal grupo, você diverge de uma parcela do hiphop, então, você não tá fazendo pelo hip-hop!’ Peraí, fazer pela união não é abrir mão das nossas posições! E não é abrir mão das nossas iniciativas, dos nossos projetos, senão a gente vai acabar enfraquecendo”, ressalta Mara. “Se, de repente, o que prevalecer, por exemplo, for o pensamento de que a gente não deve se engajar, e que a gente deve simplesmente fazer música, ou dançar, ou grafitar, pra mim essa união não fortalece nada. Que a gente se una, de fato, por um engajamento na perspectiva de transformação


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do povo pobre, do povo preto! Precisamos perceber que somos um só, mas que vamos ter diferenças e que precisamos debater”, afirma. A gente precisa enxergar, de fato, onde é que a gente tem pensamentos semelhantes, o que a gente pode construir a partir deles, mas também continuar trazendo essas divergências que são saudáveis, que fazem com que a gente possa argumentar, com que a gente possa entender qual a força que a gente tem, e o papel que a gente pode cumprir nessa história toda. O hiphop não é simplesmente a ‘festinha do momento’, a bola da vez de quem quer simplesmente se apropriar do que a gente faz, tirando todo o potencial transformador que a nossa cultura tem!”

Mara “União é respeito. Primeiro: respeito próprio. Se você não tiver respeito próprio, você não vai conseguir respeitar outra pessoa. Então, essa pessoa nunca vai te respeitar. Tem que ser positivo, não importa a sua etnia, se você é africano, europeu, asiático ou nativo. Só assim a gente vai chegar ao equilíbrio, mano. E chegando ao equilíbrio, sim, a gente vai ter a união”, acredita RDO. “Porque a gente vai conduzir a questão política e social, e vai chegar ao ponto crucial que é a igualdade. Vou te respeitar enquanto preto, e você vai me respeitar enquanto branco, nós vamos respeitar nossas mulheres, e os pretos vão respeitar as mulheres pretas, e os brancos as mulheres brancas. Respeito étnico, a gente tem que ter isso! A gente só tem vibrações ruins como drogas, bebidas alcoólicas e pessoas com mentes conservadoras; o movimento hip-hop, principalmente, é um criticando o outro; é o cara que fuma maconha... Se ele fuma maconha, que guarde isso pra ele, isso é o pessoal dele, não precisa ficar colocando na música. Mas tá certo? Aí ele vai dizer: ‘eu tenho que fazer apologia ao que eu acredito, ao que eu faço... Se você faz coisas boas, então, faça apologia das coisas boas, e das ruins não fale disso”. Porque, de repente, pode ser bom pra você, mas não é bom pra outra pessoa”, adverte RDO. “Mano, o livro... A gente tem que falar de livro, falar de escola, unir as pessoas num local e discutir idéias políticas, étnicas, ter respeito um pelo outro. Isso pra mim é união! Somos seres humanos, mas não somos iguais. Temos diferenças de pensamentos e a gente precisa respeitar os pensamentos diversos. E


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a partir do momento que a gente respeitar isso, a gente vai chegar a uma unidade. Vamos estar passando, um pro outro, uma energia positiva”, explica. “A gente tem que botar fogo nessa Babilônia, porque ela destrói o nosso povo, e destrói a mente do nosso povo. Conforme ela vai destruindo a mente do nosso povo com conservadorismo, a gente nunca vai chegar a uma unidade”, afirma. “Me respeita que eu te respeito, e essa é a união.”

RDO “A palavra união tem que vir sozinha pra que todos entendam o sentido dela. Se vier com ganância, dinheiro, vaidade e outras coisas negativas, porque hoje é normal falar ‘vaidade’, que virou uma expressão bonita, não é união. A inveja mata!”, afirma DJ Johnny. “Se um cara se destaca, ele já não faz mais parte da banca.1 A gente tá em sete aqui,2 se um chegar a ganhar dinheiro, ele vai ter compromisso. Por ele passar menos tempo com a gente, nós vamos falar que ele debandou. Então, a união é a maior mentira do rap!”, desabafa. “Ninguém é unido! Todo mundo quer para si! O egoísmo impera! Aquela história: ‘eu tenho, eu ajudo.’ Ajuda por obrigação, pra não ficar mal. Isso quando ajuda, quando não mente também”, critica. “Então, é um bando de safados e mentirosos. Os caras que ajudam, dá pra contar nos dedos, e os que contam nos dedos, ajudam porque outros dão dinheiro (...). São poucos que ajudam de coração. A união não existe, é inveja”, desabafa. “Se você tá fazendo seu CD no estúdio tal: ‘tá virando boy!’ ou ‘tá com dinheiro e não anda mais com a gente!’ Você tem que ser um eterno viciado, pobre, zoado, morando mal e longe, sem carro, sem emprego, sem dinheiro, sem p... nenhuma, pra ter respeito no hip-hop. Aí você é aliado, mano, você é o cara”, ironiza DJ Johnny. “A união, pelo menos por aqui, evita o crescimento.”

DJ Johnny

1 Expressão usada pelos rappers para designar um grupo de amigos que agem e pensam do mesmo jeito. 2 Havia sete pessoas no momento da entrevista.


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“A união, pra mim, ficou na época em que todo mundo tava começando, não tinha disco, todo mundo fazia show no mesmo lugar. Ali tinha uma união”, reconhece DJ Marcelinho. “Aí o tempo passou, o pessoal envelheceu, criou família, então, cada um teve prioridades diferentes e a união vai ficar mais difícil mesmo. O que existe mesmo é a união de interesses. Mas uma união de pensamento, eu acho que não. O interesse de todo mundo é mais ou menos parecido, mas o pensamento é diferente.”

DJ Marcelinho “Tem gente que ainda tá achando que o hip-hop é dele. O hip-hop tem dono, tem pai, tem padrinho, tem tio, tem sobrinho. Tem gente que acha que é o cabeça do hip-hop. Respeito a velha escola sempre. Se não fossem os caras, não teriam essas portas abertas até hoje pra cultura hip-hop”, ressalta Bonga. “Mas tem gente achando que é dono do hip-hop, e ele não é meu, não é seu e não é de ninguém. O hip-hop é rua, ele nasceu pra rua, ele é criado na rua. Então, ele é pra ser dançado na rua, pra ser cantado na rua, ele é pra ser tocado na rua. A essência do hip-hop é essa! O hip-hop é rua!”

Bonga “Todo mundo tem ego, todo mundo quer fazer do seu jeito. Por exemplo, o meu parceiro de 20 anos de hip-hop, DJ Ninja, a gente não se entende mas a gente tá unido! Ele quer fazer do jeito dele, eu quero fazer do meu, a gente briga, a gente faz! Cada um faz do seu jeito! A gente se respeita. Quer dizer, nós nascemos diferentes, todo mundo é diferente”, afirma Rooney Yo Yo. Se existe união? Acredito que não! A idéia de ter união é única, mas pra poder fazer isso valer, primeiro, tem que respeitar os limites de onde o seu direito começa e o do outro termina, e assim vai. A gente tem que ter respeito pelo próximo! Já é um bom passo! Pra ter união vai demorar muito, porque todo mundo tem que pensar igual, todo mundo tem que fazer as mesmas coisas e cada um faz o que quer, como quer”, explica. “As pessoas precisam fazer aquilo que elas têm vontade. Entre dez, um só fazer é uma coisa; agora, você, os seus DJs, dançarinos, grafiteiros, todo mundo pensar igual, e cada um dominar o mesmo setor de uma maneira


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única, fica difícil. Não acredito que tenha união! Mas todo mundo tá caminhando por coisas parecidas, e isso acaba tendo um sentido positivo em algum ponto.”

Rooney Yo Yo “Eu consigo conviver com vocês aqui numa boa, mas há pessoas que não sabem viver em união! Porque as pessoas estão estrelas demais. Não pegam nem na tua mão. Esse negócio de ir pra show e falar que tem que sair fora porque tem grupo famoso, pra mim isso não é união! O James Brown, quando ele fazia o show dele, ele queria que as pessoas saíssem do show com energia positiva, com garra, e não com a sua auto-estima baixa. Não tem união, mas têm aqueles poucos que lutam por ela. Então, vamos nos juntar àqueles que querem o mesmo que a gente! O hip-hop tem o sentido de família. São 20 anos de hip-hop no Brasil. Ele tá engatinhando ainda. Nós ainda não temos uma data definitiva pra comemorar e nem local. Mas eu acho que precisamos ter ao menos maturidade, humildade para conhecê-lo, porque até eu mesmo não o conhecia como movimento”, confessa. “Eu quero ser verdadeiro! O hip-hop não pode morrer por erro de muitos!”

Nino Brown “É estranho falar de união, porque desde que entrei na cultura hip-hop, uma coisa que sempre ficou de fora foi a união. Por exemplo, entre os b-boys isso não vai adiantar, eles vão rachar mesmo. Já entre os grafiteiros é muito mais fácil se ter união, e você vê isso nos painéis de pintura, onde muitas vezes são vários artistas contribuindo pra fazer um único trabalho. Mas ainda assim vai ter diferença entre eles, devido às suas regiões ou até mesmo entre os mais próximos, de quem se esperava alguma afinidade. No caso da música, é completamente desunido mesmo, o rap é uma música que não é pra dançarino da cultura hip-hop dançar numa performance”, afirma Bad. “Então, a questão de ter união ou não é o respeito. Porque cada um não faz o seu trabalho, não luta pelo seu trabalho, não procura saber o que é melhor e mais importante pra ele? Porque pra ele, o negócio é ter um resultado imediato. Eu já vi muitos grupos que tinham como chegar longe, despontar


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na cultura hip-hop, e não só nela, mas no mercado mesmo, se tornando financeiramente bem-sucedidos e que não continuaram assim por causa da desunião. É como se a gente nascesse numa cultura de mortos de fome, onde, se tiver oportunidade, a primeira coisa que o outro vai fazer é passar a perna no outro pra poder garantir o dele”, critica Bad. “Sendo que seria muito mais fácil, melhor e inteligente, eles se unirem e continuarem unidos num determinado espaço onde todos pudessem usufruir do que simplesmente na hora que aparecer uma porta, uma janela, todo mundo querer pular de uma vez. União realmente vem da educação. O problema da união já vem dos nossos pais e avós, que já diziam nos seus ditados: ‘farinha pouca, meu pirão primeiro!’ Então, já é uma cultura egoísta [a cultura brasileira], não vai permitir ter união. Se pelo menos cada um fizesse o seu trabalho e apresentasse direito, sem se preocupar com o outro, a cultura hip-hop seria mais ampla, e não essa coisa de panela. Quem sabe até desse pra sobreviver disso.”

Bad “A palavra união, a palavra movimento, eu acho que é um grupo de pessoas lutando pelo mesmo ideal. Hoje você tem o movimento negro, o movimento gay e vários outros. Eu só não vejo movimento mesmo é no rap”, lamenta Suave. “Eu acho que o rap tá longe de ser um movimento, uma união. Muita gente tenta fazer isso, mas é sempre impedida, e sempre vê dificuldades. Acho que você, TR, através desse livro, tá lutando pra que isso aconteça, pra que exista essa união. E você também é uma pessoa que já visitou várias cidades, e você sabe que em cada estado acabam falando a mesma coisa. Acabam tendo os mesmos problemas, e cada um faz e fica ali, naquele cantinho dele. Só São Paulo consegue, às vezes, se sobressair, mas os outros estados não entram aqui”, afirma Suave. “Tem aquela velha rixa de Rio-São Paulo. Quantas pessoas eu conheço daqui de São Paulo que não conhecem o Rio e vice-versa. Então, eu acho que a gente não entende esse significado de união, e isso não é só no rap, eu tô falando de tudo: nas questões de cor e raça, da mulher. Quantas mulheres sofrem preconceito pra entrar nesse movimento? Quanta mulher talentosa você tem aí, que pode passar algo de positivo pras pessoas e


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são deixadas de fora disso por causa do preconceito, machismo? Então, não é só racismo: é machismo da nossa parte! Eu acho que tem que haver união também no grafite, entre os b-boys, os rappers, e tem que parar com essa coisa de um falar mal do outro. Se a gente for ver, o único estilo musical que só tem gente falando um mal do outro é o rap”, critica. “Agora, vamos ser pelo menos inteligentes: vamos começar a falar mal um dos outros, mas como uma forma de marketing. Você pega um artista, e faz uma rixa marqueteira em cima disso, e vê se isso não vai fazer com que teu rap venda! Se você quer promover uma desunião, seja pelo menos esperto. Use essa coisa de não ser unido ao outro, mas faça um marketing em cima disso, e aproveite e venda o seu CD através disso”, sugere. “Vamos utilizar essa união que a gente precisa pra gerar cada vez mais uma seriedade dentro do rap, porque do jeito que ta... Não é só porque eu sou branco e tão me excluindo, ninguém mais preto pra mim que o P.MC, que viveu dificuldades e parece que até hoje ninguém quer ver ele lá em cima”, ressalta. “Então, as pessoas não apoiam aquele que tá um pouquinho lá em cima pra também chegarem onde ele tá. Não, querem derrubá-lo. É que nem aquela brincadeira do argentino e do brasileiro: o brasileiro só visita o argentino quando o argentino tá na pior. A mesma coisa é o argentino, que só nos visita quando a gente tá na pior! Então, vamos cada um ajudar o outro, porque só assim a gente vai crescer.”

Suave “União é união de várias coisas, né? Mas e na prática? É na prática que começam a surgir as intrigas. Até que ponto a gente se une? Até que ponto a união significa pra cada um? É uma união a formação de uma crew? Não deixa de ser, mas essa união é pela massa, por algum objetivo? Eu me pergunto sempre: o que se entende por união? O que a gente busca com a união? Até por ter essa diversidade muito grande da arte, a dança, a poesia, o ritmo e serem coisas tão diferentes e estarem todas juntas! Eu acho incrível essa parada! Não tem como não ter atrito, no grafite tem, no rap tem e no break também. Então, a gente entende o que é união, e ao mesmo tempo, não”, explica Só Calcinha. “Quando eu lembro de união, eu lembro de pessoas construindo coisas juntas,


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exigindo as coisas e fazendo a força. É como aquele ditado idiota que não é idiota: ‘a união faz a força’. Você organizado e unido, você consegue bem mais resultados. Foi o que aconteceu aqui em Santo André, no caso do grafite: a gente tem porta livre pra um monte de coisas, porque a gente conseguiu muita coisa com a união. A gente conseguiu fazer mais de dez mostras de grafite. A gente uniu vários países e vários estados brasileiros. A gente uniu pessoas de diferentes segmentos do grafite. A gente teve muito resultado bom, muito, muito mesmo”, admite. “A gente viu que a gente não tem que olhar pro umbigo e dizer: ‘eu sou o cara, e eu sou o rei! E só existe eu!’ Não só existe o carinha que a gente conhece na esquina, não! Existe um monte de gente, que faz um monte de coisas, que tem um monte de coisas pra passar, e que sempre vai existir e que sempre vai ter mais. Acho que com a união aqui em Santo André, a gente descobriu a diversidade. E com a diversidade, a gente descobriu a humildade. E com a união, a gente também teve várias coisas legais que foram esses objetivos que a gente alcançou de ‘tá’ fazendo um monte de debates. Não fazer só as mostras. A gente discute também o porquê de a gente fazer isso e querer isso, qual o nosso papel na sociedade... Então, a gente faz política, discute tudo. A gente conseguiu esse resultado de fazer com que uma pessoa que pinta na rua e que conhece a rua, tem grafiteiro que conhece a cidade melhor até que um office-boy, discutisse outros assuntos que também têm a ver com ele. No grafite é muito difícil se discutir essas coisas, porque o grafiteiro é ligado a outras coisas, web, animação e ele acha que o grafite é o hobby dele. Em muitos lugares tá ficando assim”, lamenta. “E se unindo a gente tá mantendo essa história, e conseguindo pessoas que não eram a favor pra tentar fazer essa nova história do grafite.”

Só Calcinha “União, em todo o tipo de trabalho, é uma coisa que tem que ser conquistada aos poucos. Depende só da vontade do grupo. A gente tá falando de um movimento que envolve muita gente. Não é fácil transformar isso numa coisa que tenha realmente uma união sólida. Indiretamente, tá todo mundo junto, um contribui com o outro. Normalmente eu vejo pequenas ações isoladas de cada um, o sucesso isolado de cada um também, como uma coisa que, mesmo que indiretamente, fortalece a todos. É claro que quanto


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mais puder se unir na prática, principalmente quem tá começando, e assim ajudar um ao outro, vale a pena. Porque o mercado é difícil e a troca de idéias é até importante nesse caso pra desenvolver a mente de cada um. Então, não adianta você se fechar sozinho e ficar com o seu discurso muito individual, porque se você trocar idéias, for mais aberto, você vai conseguir enriquecer ainda mais o seu discurso. E como a gente tá falando também de uma música que precisa de discurso, que precisa de conteúdo, é legal ter uma postura mais aberta em relação às idéias dos outros”

Gabriel O Pensador “A união é um sonho! É uma palavra bonita na boca! Eu não tenho uma visão negativista, nem pessimista disso. Pelo grau de desunião que tá o mundo, geral, até que o rap, ele é unido. Apesar dos pesares, é unido! Se você for pelo tanto de gente que é unido, pelo tanto de gente que ouve, pelo tanto de vaidade que é mexido, pelo tanto de dinheiro que é envolvido, ainda existe uma união”, considera Mano Brown. “Porque o mundo externo, ele é muito mais desunido que o rap, se você for olhar. Ainda tem muitas coisas que nos une: a periferia, a nossa raça, o rap, que foi a primeira coisa que nos prendeu,; se você pegar as pessoas da rua, dificilmente você encontra três andando com os mesmos ideais como o rap. O orgulho da raça, a melhoria de vida pra periferia, e o amor pela música rap, esses três ideais unem a gente. Dava pra ser mais unido? Dava! Mas o ser humano quando nasce a célula já vira duas, já separa, e ao mesmo tempo multiplica! O rap é assim também! É uma extensão do mundo, mas a gente ainda conseguiu conservar um pouco da essência. Alguma coisa naturalmente vai perder mesmo: perde aquela ingenuidade da criança! Mas o rap no Brasil ainda é uma criança.”

Mano Brown


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20. Unificação do Hip-Ho


op. E a profecia se fez como previsto...


“E este Rei fará conforme a sua vontade, e levantar-se-á, e engrandecer-se-á sobre todo deus; e contra o Deus dos deuses falará coisas espantosas, e será próspero, até que a ira se complete; porque aquilo que está determinado será feito.” (Daniel 11:36)

“E se fortalecerá o seu poder, mas não pela sua própria força; e destruirá maravilhosamente, e prosperará, e fará o que lhe aprouver; e destruirá os poderosos e o povo santo.” (Daniel 8:24)

“Têm estes um só pensamento e oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem.” (Apocalipse 17:13)

Existe um velho provérbio – “Unidos, resistiremos; divididos, cairemos” – que se aplica muito ao nosso caso, e que talvez seja a razão pela qual muitos em nosso movimento se enganam e fragilizam a ponto de acreditarem numa farsa apropriadora de nossa cultura hip-hop. Um só reino, uma só ideologia, uma só nação. Os anticristos do hip-hop estão à solta, bramindo como leões a fim de nos tragar. Não se trata de um mal-entendido

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Unificação do hip-hop

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causado por um erro de comunicação, mas claramente de uma ação deliberada contra o hip-hop. Pelas aparências, muitos de nós imaginamos que seguimos uma proposta justa, pois somos conduzidos a acreditar numa prosperidade através da democracia em nosso meio. Pouco se pode criticar em relação aos surpreendentes progressos alcançados nos últimos anos a respeito do nosso padrão de manifestação – em especial no eixo Rio-São Paulo. E os remanescentes da Primeira Escola1 que o digam, pois, há 20 anos, poucos sonhavam com uma exposição tão tremenda do nosso hip-hop. O conforto que gozamos, o pouco do que alcançamos hoje, era inconcebível há algum tempo. Quem no passado imaginaria gravar sua obra numa multinacional, divulgando seu trabalho tanto nacionalmente quanto internacionalmente? Quem imaginou que teríamos acesso aos principais programas de TV para expôr em horário nobre nossos sentimentos e realidades? Quem um dia pensou em se tornar capa de uma revista ou jornal de grande porte deste país? Quem um dia previu estar ao lado de dinossauros da música brasileira, em participações em palco ou em CD e DVD? Quem poderia prever que teríamos nossa própria mídia através de programas de TV e rádio, revistas, jornais, sites etc.? Isto tudo foi possível – embora os constantes conflitos de alas adversas – graças a uma certa unidade mantida em nossa micro-sociedade, que reagiu diante da necessidade de sobrevivência. Este espírito de unificação é irresistível e ilimitadas são as facilidades oferecidas atualmente. Tratarei esse fenômeno como uma espécie de “Globalização do Movimento Hip-hop”. No entanto, devemos ter muito cuidado com determinados padrões pregados em prol de uma “união demasiadamente utópica”. Devemos atentar para o fato de que “globalização” e “unificação” são sinônimos, e que na história da Humanidade, a busca para se obter êxito só se deu através da guerra. Em nosso 1

Primeira geração de hip-hoppers brasileiros.


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Acorda hip-hop!

caso, a guerra é baseada num mundo faraônico que é colocado em sua frente, lhe trazendo um sentimento de inferioridade, e, ao mesmo tempo, a necessidade de estar ali fazendo parte dele, caso contrário você não é ninguém, você não é um autêntico hip-hopper! Deste modo, a unificação do hip-hop será o próximo passo para uma espécie de “nova ordem globalmente democrática” – com visões futuras para algo “globalizado” – dentro de uma intenção de prosperidade pacífica. É neste momento que entra em cena a figura do “anticristo do hip-hop”: um líder que fará valer sua inerência à custa da consciência de uma juventude ofuscada pelo desejo de sucesso imediato. Aliás, não me surpreende o grande sucesso de algumas ditas representações do movimento que apresentam o objetivo de unir as demais ramificações do hip-hop por todo os lugares, pois, depois de conseguido isto, o desejo ardente destes membros se voltará a um único líder. É importante salientar, então, que a perfeita união das variadas representações do hip-hop nacional não se fará por sobre uma linha ideológica alicerçada em convicções pessoais – que nada têm a ver com os verdadeiros preceitos do hip-hop instituídos pela Universal Zulu Nation. Isso acontecerá pelo respeito mútuo, que permeia a harmonia entre as muitas manifestações proferidas de acordo com as culturas e os costumes respectivos de cada estado... Todavia, à luz destes fatos, o que os autênticos hip-hoppers devem fazer para não serem enganados por esse ouro de tolo?! Primeiramente, busquem o real conhecimento sobre a cultura hip-hop, que possibilitará um maior discernimento entre o que convém e o que não convém. Em segundo, não se iludam com os jogos de holofotes que ofuscam os outros caminhos a serem trilhados para o sucesso pleno e honesto de todos. Em terceiro, o verdadeiro hip-hop não rima com capitalismo, ideologia que incita uma concorrência altamente desenfreada entre os seres humanos, onde a vitória a todo preço – sem medir conseqü-


Unificação do hip-hop

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ências – é o único ponto relevante nesta “corrida do ouro”. Por último, ninguém melhor que o próprio Afrika Bambaataa para transmitir bons conselhos: À minha família brasileira de hip-hop e ao povo brasileiro: paz, união, amor e diversão. Sejam seres pensantes, não zumbis. Façam coisas boas e observem o que está acontecendo com o nosso planeta, interior e exteriormente, e no universo. Paz! “E o Deus de paz esmagará em breve a serpente dos vossos pés...” (Romanos 16:20)



Sobre o autor TR é membro do movimento hip-hop há 15 anos. Nascido na Cidade de Deus, iniciou sua carreira como DJ, acompanhando o rapper MV Bill por quase 10 anos. Paralelamente, dedicou-se a pesquisas sobre o hip-hop, palestrando em escolas dentro de favelas, centros culturais, universidades, fóruns, simpósios etc. Ingressou na carreira de escritor no extinto jornal Afroreggae Notícias, do grupo Afroreggae. Escreveu por dois anos para o jornal Estação Hip-hop (SP). Foi coordenador da extinta ATCON (Associação Atitude Consciente). É membro da organização Zulu Nation Brasil. Colaborou na pesquisa das obras Abalando os anos 90 e Funk e hip-hop invadem a cena, do professor da UFRJ Micael Herschmann. É também membro fundador do COMDEDINE (Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro). Atualmente é colunista dos sites “Rap Nacional” (rapnacional.com.br), “Enraizados” (enraizados.com.br), “LUB” (lub. org.br), “Zulu Nation Brasil” (zulunationbrasil.com.br) e “Rio Festa” (riofesta.com.br). Por último, é pesquisador do “Projeto Geração Hip-hop” (SESC-RJ/ FINEP), e Educador Social da Prefeitura do Rio, onde atende moradores de rua.

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Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema 250g/m2, Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m2 Impresso pela gráfica Imprinta Express LTDA. em novembro de 2007. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



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