Bagunçaço

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Bagunรงaรงo Joselito Crispim

Programa Petrobras Cultural

Apoio


Copyright © 2010 Joselito Crispim COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfico CUBICULO BAGUNÇAÇO produtor gráfico SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão CINDY LEOPOLDO MARINA VARGAS revisão tipográfica CAMILLA SAVOIA LETÍCIA BARROSO

C949b Crispim, Joselito Bagunçaço / Joselito Crispim. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010. il. — (Tramas urbanas) ISBN 978-85-7820-045-9 1. Crispim, Joselito. 2. Bagunçaço (Projeto cultural). 3. Artistas Brasil - Biografia. 4. Música - Aspectos sociais - Bahia (BA). I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. III. Série. 10-3377.

CDD: 927.0981 CDU: 929:7.034(81)

14.07.10

21.07.10

020297

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401 LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 22.440-030 TEL: 21 2529-6974 TELEFAX: 21 2239-7399

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, suas condições socioeconômicas e a afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.


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Favela toma conta


Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e um claro projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Agradecimentos

Quando Ecio Salles me falou do projeto, achei fascinante. Ainda mais quando ele disse que eu era um dos indicados a participar. Com esse irmão, estou em dívida por essa e tantas outras oportunidades de aprendizado. Ao nosso amigo e educando em comum, Jonas Michel (Pikucha), falecido tão prematuramente, mas, que na sua sabedoria inocente, nos ligou a toda a família AfroReggae, de onde se originou todo esse encontro. Aos meus antepassados, mestres na transmissão das tradições orais, espero que minhas narrativas escritas possam, mesmo que de longe, honrar esse legado ancestral. Tenho que agradecer ao amigo jornalista, João Paulo, e meu educando e também amigo, Fernando Teles. Ambos foram importantes no embrião do processo, o primeiro ao analisar e corrigir o esboço da história, e o segundo ao se disponibilizar voluntariamente para organizar o material inicial. A todos que formam ou já formaram a equipe Bagunçaço. Infelizmente não foi possível citar todos nas narrativas, mas, sem dúvida, são parte de nossas conquistas pedagógicas. A todos citados nas narrativas desse livro, espero que recebam essa menção como um “muito obrigado!” e a certeza de que enriqueceram — em confraternizações ou enfrentamentos —, com suas contribuições, os fatos que desembocaram no meu crescimento como ser humano e no surgimento do Bagunçaço. Agradeço também aos educandos do projeto S’oba’s Princedom, no bairro Ilha Amarela (Parque São Bartolomeu), em Salvador, e o Instituto Juvenil Bagunçaço, de Moçambique, em Catembe, Maputo, pois são as novidades dessa


história que continuam. Aos nossos parceiros históricos e/ou atuais: POMMAR, USAID, CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço), Coelba, Embaixada do Japão, Embaixada da Espanha, CONDER, Fundação Bagunçaço Suécia, Lapa & Góes e Góes Advogados e Consultores, Sesc Mesa Brasil, Criança Esperança, Unesco, Faiveley Transport S.A, Enter-Jovem, entre outros. Aos meus amigos da vida e do Bagunçaço: João Reis, Urs Wirth (Marcolino), Zaca de Oliveira, Emílio Agostinho Jamine, Benjamim Agostinho Nhumaio, Mila Petrillo, Rayssa Coe, Cristina Raposo, Sylvia Johnson, Daniel Miracle, Sofia Lundi, Luciana Marques, Osvaldo Souza, Wilson Café, Lon Bové, Chocolate, Margareth Menezes, Carlinhos Brown, Angelique Kidjo, Mel King, Nicodeme, Alice e David Cavallo, Sérgio Machado, Mônica Simões, Mariza Soares, Meire e Jorge, Gabriela Goulart Mora, Ana C. Mascarenha (Coelba), Tânia Andrade, Patricia Teles, Lennart Kjörling, Frida Lundquist, Dimitri Ganzelevitch, Paula Rezende, Nena Lentini, Rita Ippolito, Isael Barros, Kassira Bomfim, Padre Clóvis, Laura López, Alicia Sanabria, Luis Orlando (em memória), Veronica Baruffati e Monica Hernandez. Claro que sempre nos esquecemos de alguém, mas se seu nome deveria estar aqui ou nas histórias narradas e, por imperfeição humana, você não o encontrar, minhas sinceras desculpas. Aos meus familiares de sangue e de santo, principalmente, minha mãe D. Jove, meus irmãos, meus sobrinhos e meus filhos Elvis, Josinan e Jan. Finalmente, em memória dos adolescentes Dendê, Bilota, Larzinho, Mole, João da Metron, Junior Cabeça, Jonas (Menino Sariguê), Buiu, Isidoro, Danilo (S’oba´s), Bibiu, Nadison, Sandro, Kisuque, entre outros tantos que perderam suas vidas em tenra idade nas águas da violência, além de nos denunciar que muito ainda se tem a fazer pela infância e juventude do Brasil. A todos os meninos e meninas do Bagunçaço, de todos os tempos.



Sumário

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Cap.01 Tumba do Mar

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Cap.02 Vida nos Alagados

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Cap.03 Alagados sem água

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Cap.04 Assinando a carteira

80

Cap.05 Corações e anjos

94

Cap.06 O mundo sem Zé Bofeia

100

Cap.07 Um homem da lei

108

Cap.08 Nascimento do Bagunçaço

130

Cap.09 Primeiros shows

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Cap.10 Uma casa para o Bagunçaço

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Imagens: índice e créditos

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Sobre o autor



Cap.01

Tumba do Mar

Cap.01

Tumba do Mar


Dia 19 de outubro, logo pela manhã, a negra de dijina Unguelê, que era a Kaiai Kairi no terreiro Tumba do Mar, começou a sentir as contrações, presságio de que o dia prometia. A velha Gamo, que é o mesmo que Kavua, parteira experiente e irmã de santo da grávida, logo ficou alerta, assim como todas as outras muzenzas.1 O que mais preocupava era o fato de que a Mameto de Inquice de dijina Senameã,2 nome de batismo Nair do Santos, estava fora em obrigação no terreiro de sua mãe de santo Deré Lubidí, o Tumba Junçara, na Vila América. Logo, por volta das 11h15, Unguelê pediu força a Kavungo3 e se entregou ao trabalho de parto. Momentos depois, nasceu um menininho, trazido à vida naquele micro-mundo africano encravado na periferia de São Salvador da Bahia. Aquele nascimento — pensou Unguelê — dava ao marido José e à mãe de santo a vitória na aposta, pois seu Cachoeira, o avô, queria menina, logo esse desejo diferenciado virou aposta, que foi dividida com os moradores, frequentadores e admiradores do terreiro. A brincadeira se espalhou por todas as pontes dos barracos-palafitas onde reinava o terreiro Tumba do Mar. 1  Recém-iniciadas no candomblé. 2  Nome adotado por Nair dos Santos, avó do personagem Pim, após ter se iniciado no candomblé. 3  Orixá das endemias e epidemias, porque tem grande poder de cura sobre as doenças.

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Jove, como também era chamada Unguelê, registrada como Jovelina Maria Cesaria dos Santos, apesar de exausta pelo esforço do parto, estava tomada por uma enorme felicidade. Ela agradecia aos seus inquices pela dádiva e também pedia vida e saúde para criar seu filho, pois, após a morte de sua mãe, Maria Jacinta de Jesus, no parto, Unguelê padecera muito por ter sido criada por parentes. Seu pai, Romualdo Teles dos Santos, somente após uns meses de banzo se refez. E então voltou a participar da organização do Negro Fugido, manifestação popular histórica que encena toda a luta dos nossos antepassados escravizados, suas fugas e capturas pelos capitães do mato. Embora os historiadores não encontrem vestígios de quilombos por aquelas bandas de Acupe de Santo Amaro da Purificação, a encenação folclórica do Negro Fugido mostra o sangue quilombola daquele povo. Jovem e de sangue quilombola, Jove não fugiu ao destino reservado a sua gente. Sessenta e cinco anos depois do fim legal da escravatura, ela, aos 12 anos, foi levada no porão de um saveiro,4 entre bananas, sacas de farinha, cabras e outras mercadorias, em uma viagem de pelo menos oito horas no mar agitadíssimo de abril, que varou a noite e a madrugada na baía de Todos os Santos até chegar ao Mercado da Conceição, em Salvador, onde as crianças negras ainda eram escolhidas por senhoras para trabalhar em suas casas no velho estilo escravista. Todo mês, o dinheiro do seu trabalho era levado para sua família pelo mestre saveirista. Jove se considerou sortuda, pois a senhora que a escolhera a tratava como uma filha, embora tivesse que ser esperta para escapar das tentativas de cantadas e investidas do patriarca da família. 4 Barco estreito e longo, tradicional e pouco usado hoje em dia, mas muito utilizado como transporte de pessoas na baía de Todos os Santos.


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Ao retornar de seus pensamentos e agradecimentos, Jove percebeu que Gamo estava barrufando seu charuto daquela forma que ela sabia que significava que alguma coisa não saíra bem. Assim, logo indagou a irmã parteira, que, com um aceno, indicou-lhe que continuasse deitada no chão de tábuas, por cujas frestas podia ver pequenos peixes na água verde transparente. Gamo estava preocupada porque não via a placenta, logo algo estava errado. Mas evitou comentar o fato, pois não queria preocupar a irmã, já sabendo do histórico dela. Em pouco tempo, o entusiasmo de Jove foi diminuindo e o medo de ter o mesmo destino da mãe foi deixando-a angustiada. Gamo continuava a fumar daquele jeito e as outras muzenza ou iaôs, depois de receberem instruções cochichadas da preocupada parteira, recomeçaram os preparativos como se algo fosse acontecer. Após uma hora em trabalho de parto, a alegria de Jove tornou-se desespero. Ela pedia chorando que alguém fosse chamar sua mãe de santo. Porém, ao se agitar, novas contrações a acometiam. Sem entender nada, pediu aos prantos para as irmãs em volta que tomassem conta de seu filho caso algo lhe acontecesse. Foi aí que Gamo lhe disse que ela teria que se transformar em duas, pois o que ia lhe acontecer era outro parto; ia ser mãe de mabaços5 e precisaria de coragem para cuidar das crias. Jove, entre assustada, surpresa e aliviada, esforçou-se bastante e não demorou a raiar uma menina. Agora, ela era mãe de mabaços, uma dádiva que os inquices/orixás concediam a poucos. Os mabaços trazem boas notícias às tribos sobre sua fertilidade e são comemorados. Os apostadores de plantão estavam decepcionados porque 5 Nomenclatura usada pelo povo do candomblé para denominar gêmeos.


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não haveria ganhadores entre os que ficaram do lado do pai das crianças e da mãe de santo ou do lado do marido dela, seu Cachoeira. Mas de uma coisa tinham certeza: um caruru6 bem gostoso estava garantido naquela comunidade daquele dia em diante. A menina ganhou o nome de Joselina Crispina dos Santos de Assis, e o menino, de Joselito Crispim dos Santos de Assis. — O local onde se passou essa história ficava na rua Dom Sebastião Leme, número 78. Era a penúltima casa do lado esquerdo, depois vinha a casa de dona Damiana, exímia vendedora de acarajé. Ambos eram barracos-palafitas e ficavam sobre o mar da pequena enseada dos Tanheiros, com suas águas verde-claras e calmas. Nessa pequena enseada havia uma grande diversidade de coisas: centenas de barracos-palafitas, três pequenas ilhas com esplêndido manguezal, uma praia muito bonita ao lado da fábrica de óleo de mamona — que eu me lembro chamar-se Sambra —, o Estaleiro Mario Bakeman e, claro, meu saudoso Tumba do Mar. Esse terreiro de candomblé era atípico, com certeza. Como a própria palavra já diz, os terreiros de candomblé são sempre áreas verdes, com muita vegetação e contato com a terra. Uma coisa que os inquices jamais fariam com seu povo seria abandoná-lo, e já que a sorte os trouxera para cima do mar, para lá também foram seus encantados ancestrais. O Tumba do Mar como templo religioso necessitava ser bem maior que os barracos-palafitas comuns, então acredito que equivalia a uns cinco barracos-palafitas 6 Comida típica da Bahia, de origem africana, geralmente oferecida para comemorar um aniversário, um milagre ou como oferenda a orixás. É comum quem tem filhos gêmeos oferecer caruru no aniversário deles.


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médios. Era uma construção curiosa, pois, como a maioria dos terreiros tem seu sacerdote maior morando neles, era preciso muito espaço. Lembro-me de uns sete cômodos, da sala principal, do quarto de minha avó, do quarto do santo, do roncó, da segunda sala, da cozinha, dos banheiros e do grande barracão para as festas. José Damasceno, mais conhecido como Zé Bofeia e chamado de painho por mim, nunca foi bem localizado nas narrações de minha mãe, avó e tias quando, nas rodas de bate-papo, relembram aquela manhã de 19 de outubro. E eu nunca tinha percebido isso até me sentar para escrever essas narrações. Mas tenho certeza de sua felicidade por ter marcado um gol de placa, fazendo gêmeos no mesmo ano em que a seleção brasileira trouxe a Copa do Mundo. Meu nome, Joselito, é justamente uma homenagem dupla ao pai e ao país da moda naquela época: o México. Posso adiantar que, de acordo com minhas lembranças de infância, ele era bom marido e bom pai. O coitado não podia ser o típico pai mandão, que batia na esposa, talvez pela sua própria índole ou porque com as filhas da mãe de santo Senameã as coisas fossem diferentes; o homem tinha seu lugar. Sendo assim, soube por meio de minha mãe que durante o meu nascimento ele também teve o dele, coitado, sentado a uma certa distância, nervoso, com um jornal dormidíssimo na mão, tentando desesperadamente saber o andar da carruagem. O certo é que ele sabia estar numa comunidade matriarcal e, embora nunca tenha entrado para o candomblé, sempre ajudou e aceitou os preceitos de minha mãe. Meu pai era o caçula de oito irmãos, — três mulheres e cinco homens. Seu apelido familiar ilustra bem isso:


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Amorzinho. Era assim que, mesmo já sendo pai de quatro filhos, ainda era chamado pelos irmãos e demais. Pelo que sei, teve uma infância bem parecida com a de minha mãe, pois ficou órfão de mãe ainda menino e foi criado pelo pai e pelos irmãos mais velhos. Por ser de família pobre, teve que se virar e, às vezes, quando estava sentado com minha mãe na frente de nossa televisão Philips preta e branca, ao som das dobradas das ondas embaixo da casa, ele dizia: “Eu já fui capitão da areia.” Sei também que quando se conheceram minha mãe ainda trabalhava no bairro da Calçada, na casa da mesma senhora que a encomendara no Mercado da Conceição, uma senhora muito bondosa que manteve laços afetivos com minha mãe até sua morte e que sempre nos ajudava com alimentos, roupas e dinheiro, mesmo doze anos após minha mãe ter deixado de trabalhar para ela. Eu a chamava de avó e até hoje tento entender essa herança escravista, que torna ainda mais complexas as relações humanas, mas posso garantir que ambas nutriam um amor muito bonito uma pela outra e eu sentia no olhar dessa senhora um carinho de avó por mim. Naquela época, minha mãe tinha descoberto com a empregada da família vizinha o candomblé de Senameã, que passou a frequentar nos finais de semana de folga — na verdade, não existia folga; eram permitidas umas saidinhas. Meu pai ela conheceu quando teve que ir comprar coisas no açougue ou coisa assim. Diz que um rapaz que vendia balas ficava falando gracinhas para ela, mas que ela nunca dava ousadia. Ainda bem que em algum momento ela deu, senão eu não estaria escrevendo estas linhas. Provavelmente, minha mãe demorou muito para ceder aos apelos do baleiro da Calçada. E quando foi falar com a família da moça, ele não se dirigiu ao casarão


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da Calçada e sim ao terreiro Tumba do Mar, pois nessa época minha mãe já estava morando mais no terreiro que na casa dos patrões. O mais incrível de tudo é que o Tumba Junçara, terreiro mãe do terreiro Tumba do Mar, nasceu também em Acupe de Santa Amaro em 1919, fundado por irmãos de santo cujos nomes eram: Manoel Rodrigues do Nascimento (dijina: Kambambe) e Manoel Ciriaco de Jesus (dijina: Ludyamungongo). Depois foi transferido para Salvador e passou por alguns lugares até se firmar na Vila America. Com a morte dos seus fundadores, em 1965 assumiu a liderança espiritual aquela que viria a ser minha bisavó de santo: Deré Lubidí. Depois de seu falecimento , assumiu a direção do Tumba Junçara minha tia de santo Iraildes (Mesoeji sendo sua dijina), que permanece no cargo até o presente momento. Minha mãe nunca tinha ouvido falar do Tumba Junçara quando morava em Acupe. Além disso, a sua prima carnal Elza era iniciada no Tumba Junçara. Quando minha mãe se iniciou no Tumba do Mar, elas se tornaram parentes também de santo e eu herdei, ao nascer, parentes sanguíneos e de santo ao mesmo tempo. Meus primos segundos Dilma, Deilton, Decival, Derival, Dilcelia e Dilza passaram a ser primos de santo também, então na minha cabecinha de criança no final todo mundo era parente da gente de alguma forma. Milhares de parentes espalhados por aí, mesmo fora da Bahia, já que o Tumba Junçara deu origem não só ao Tumba do Mar, mas a centenas de outros terreiros pelo Brasil. Não é à toa a música: É Junçara Tumba...


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Cap.02

Vida nos Alagados


Talvez querendo usufruir um pouco de seu direito de cantar de galo de quando em vez, logo após o nascimento do terceiro filho, o douw,7 que manteve a tradição do J e se chamou Joseval dos Santos de Assis — dois anos mais novo que os mabaços —, juntou um dinheirinho e, como era o costume da comunidade, fez um adjutório8 regado a feijoada e cachaça. Todos ajudaram a fazer seu barraco-palafita nas proximidades do terreiro — nem longe o bastante para perder os laços, nem perto o bastante para perder a autonomia. A vida nos Alagados era muito difícil. Muitas vezes fomos alertados por nossos pais e pelos mais velhos de que nunca deveríamos andar olhando a correnteza da maré, pois poderíamos ficar tontos e cair. Mas como criança é curiosa, certa vez eu e meus dois irmãos saímos da casa de minha avó em direção a nossa casa, todos de mãos dadas para um amparar o outro caso ficássemos tontos ao fitarmos a corrente da maré que vazava. De repente Val, o caçula, ficou tonto e, ao cair, arrastou minha irmã e eu. Naquele dia foi um alvoroço 7  Nomenclatura dada pelo povo do candomblé ao filho que nasce depois dos gêmeos. 8  Forma popular de falar quando alguém precisa de ajuda para fazer algo, geralmente casas, poços e lajes. Também usa-se o termo mutirão.

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só, iaôs, ekedes,9 e ogans10 vizinhos se jogaram na água e conseguiram nos salvar. Era muito duro para os pais que saíam para trabalhar deixar seus filhos naquele emaranhado de ponte, com uma maré ávida para tragar os desprevenidos. Porém, para nossa meninice, aquele universo de água verde e vidas marinhas era curioso e fascinante. Esperar a maré vazar e perseguir baratas do mar, vaza-marés, aratus, toda sorte de crustáceos e peixes era realmente maravilhoso, embora meus pais e também os das outras crianças recomendassem que nunca entrássemos na água, ou melhor, nos ameaçassem com uma surra se chegássemos perto dela. Era só nos certificarmos de que eles não voltariam para pegar algo esquecido na pressa de sair para o trabalho e já começávamos o planejamento das aventuras do dia. Aprender a nadar era uma questão de vida ou morte. Porém, deixar seu pai ou sua mãe descobrir que você sabia nadar era certeza de uma surra. Na verdade, as mães sempre davam um jeito de descobrir suas aventuras do dia simplesmente lambendo atrás da orelha. Se estivesse salgada, ela já sabia que você tinha nadado naquele dia. Não adiantava lavar bem as orelhas, pois mãe não tem pudor e, se ela desconfiasse, lamberia qualquer lugar que acreditasse que os filhos não lavariam bem, ou seja, não lavávamos bem as orelhas para evitar maiores constrangimentos. Aprender a nadar era mais que necessário, mas para isso era preciso entrar numa organização clandestina. Esse grupo, que envolvia em média mais de uma dezena de meninos e meninas da vizinhança, era realmente de 9 Filha de santo a quem não é dada a possibilidade de possessão. Serve de auxiliar às irmãs que entram em transe. 10 Filho de santo a quem não é dada a possibilidade da possessão. Serve como tocador dos atabaques e em outras funções auxiliares no culto do candomblé.


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grandes nadadores e tinha regras claras: gente chorona não podia entrar, pois começava a chorar e se debater só por causa de uma queimadurinha de água-viva e chamava a atenção de todos os adultos. Filhos de pais escandalosos também não, pois alguns pais, se soubessem que seus filhos estavam indo nadar debaixo das casas, iam fazer escândalos nas portas dos outros meninos maiores, o que poderia resultar na descoberta da organização inteira e numa surra coletiva na comunidade. Quando isso acontecia, o causador era banido do grupo. E sempre nas outras brincadeiras, quando todos os meninos e meninas estavam juntos, um gaiato lembrava como sicrano tinha gritado, como fulano ficou todo marcado e como ele mesmo, enquanto apanhava, teve que rir ao distinguir um grito aqui e outro acolá de seus companheiros que apanhavam em suas casas. A turma se dividia em pequenos subgrupos: os grandes, que se supunham “grandes nadadores”, os médios e os pequenos. Mas a faixa etária era menos importante para pertencer a um dos subgrupos do que a habilidade na natação. Quanto mais ausentes e menos vigilantes os pais, mais habilidosos os filhos. Eu e meus irmãos nunca nos tornamos bons nadadores, porque primeiro havia a vigilância do terreiro. Nós éramos muito populares pelo fato de sermos os mabaços do Tumba do Mar e, mesmo no mar, não podíamos nadar debaixo de certas casas, pois ali morava gente conhecida. Havia uma tradição que dizia que, se uma família separasse um dos gêmeos e o levasse para sua casa, proporcionando a ele um dia com carinho e regalias, toda boa sorte entraria naquela casa. Minha mãe conta que eu e minha irmã éramos disputados até os 4 anos de idade pela vizinhança. Como a turma não queria mudar o itinerário mais perigoso e aventureiro por nós, nem sempre podíamos ir muito longe. Lembro da maior distância que fizemos:


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saímos de nossa casa e fomos até o quintal de minha tia Elza — claro que sem deixar que ela notasse. O itinerário era fácil para os que eram “grandes nadadores”; bastava nadarem em linha reta uns 50 metros e chegavam à prainha do quintal da casa de minha tia. Mas nós, que não tínhamos essa habilidade, íamos nos projetando de estaca de barraco-palafita a estaca de barraco-palafita, que ficavam no máximo a dois ou três metros de distância umas das outras. Isso aumentava a distância até o estaleiro em mais de setenta metros. Até que fomos bem, mas para voltar foi muito duro, pois a maré estava enchendo e estávamos contra a correnteza. Eu e meu irmão, Val, íamos conseguir, mas minha irmã estava tendo dificuldades, por isso abortamos a operação de volta e saímos por um local mais próximo e à vista de pessoas que não deveriam nos ver. A surra foi certa. Além disso, passamos a integrar o grupo dos supervigiados e dificilmente éramos aceitos em aventuras perigosas. No estaleiro consertava-se navios de porte médio. Cada vez que chegava uma embarcação nova havia uma expedição para explorá-la. Essa expedição não precisava ser feita pelo mar e também não fazia parte das ações dos “grandes nadadores”; eles achavam aquilo coisa de quem não sabia nadar, pois navio mesmo só era bom ser visitado quando estava boiando no mar. Navio no seco era igual às casas dos que moravam no seco, nem balançava nem nada, que graça havia de ter numa coisa assim? Tínhamos sido praticamente expulsos do grupo dos grandes nadadores. Assim, eu passava a tarde jogando bola ou capoeira na frente do beco onde ficava minha casa. Era surreal a chegada de um navio. O beco da minha casa ficava em diagonal em relação ao canal por onde eles passavam e era impressionante ver aquela coisa de proporções enormes se movendo por trás das nossas pequenas casas. Já sabíamos que levava uns dias até o navio estar




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fora da água e poder ser visitado. Era sempre melhor no final de semana, pois não havia funcionários e o vigilante não parecia se incomodar com as nossas incursões. Claro que esse grupo era mais unido, havia a cumplicidade de sermos os exilados do grupo dos “grandes nadadores”. Não íamos muito nos porões dos navios, pois era tanta porta e escada que tínhamos medo de nos perder. Como já faz muito tempo, posso confessar que na verdade era muito escuro e fazia eco... Portanto, a grande façanha era ir até a parte de cima e ter uma visão privilegiada da comunidade, localizar sua casa e tudo mais. Infelizmente, muitas crianças morriam afogadas, principalmente as que não nasciam lá ou que se mudavam já com mais de 7 anos, ou os filhos de parentes que iam visitar de férias. Como uma família vizinha da nossa, que sofreu uma tragédia nas férias de dezembro. Seus parentes vindos do sertão, onde não tem mar e os rios também são escassos, perderam uma filha de 10 anos logo no primeiro dia. A garota ficara impressionada com o mar e sua vastidão e, num momento de distração após o almoço, ficou sozinha mirando a correnteza da maré que enchia, provavelmente ficou tonta, caiu no mar e se afogou. Por isso, tratamos de ensinar logo nosso irmão Rildo a nadar. Ele já chegou com 5 anos, trazido por uma cegonha. Isso mesmo: nossa mãe trabalhava como doméstica nas casas de alvenaria lá de cima, e um dia disse que não ia mais trabalhar e que a gente se preparasse que ia chegar um menino. Um novo irmão que a cegonha ia trazer. Já eramos três: eu, Pina e Val. E um belo dia chegou Rildo. Estranhamente, ele era branco, mas isso nos chamou menos a atenção do que o fato dele já ter 5 anos. Mas, como escrevi antes, ensinamos ele a nadar logo, e só já maiores descobrimos que Rildo era filho


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de uma patroa de nossa mãe que, deixada pelo marido repentinamente, ficou sem nada, nem para pagar o aluguel. Não lhe restou alternativa a não ser deixar o filho para a babá. Para nós, que tínhamos parente de santo que descobríamos ser de sangue e parente de sangue que virava de santo também, ter um parente de cegonha foi fichinha; até hoje somos cinco irmãos muitos unidos. Lembro de ter medo das chuvas de abril, quando sempre desabavam casas num morro que ficava em frente aos nossos barracos-palafitas. Não sei o motivo do medo, pois o morro ficava do outro lado do mar, a uns 5 quilômetros, e nunca nos atingiria, mesmo que desabasse inteiro. Talvez eu tivesse medo de nossa casa desabar, mas nunca tive notícia de uma casa desabar pela fúria do mar ou pela chuva, pois, embora parecessem frágeis, eram bastante seguros os barracos-palafitas. Só não suportavam festa de aniversário, casamento, batizado com muita bebida e dança... Sempre desabavam no meio da comemoração. Nunca morria ninguém, mas se perdiam os móveis e tomava-se um bom banho, às vezes de lama, se a maré estivesse vazia. No dia seguinte, entre gozações e anedotas, os homens da comunidade se juntavam, recuperavam as madeiras e refaziam a casa. Por incrível que pareça, no Tumba do Mar havia festas enormes, que duravam vários dias, e ele nunca caiu! Meu avô Cachoeira era mestre construtor de barracos-palafitas, barcos e também era pescador; acho que ele aplicou toda a sua maestria ao construir o Tumba do Mar. Os anos se passaram e; para nós, crianças, nada era tão maravilhoso quanto aquela vida em cima da maré. Porém, as condições de salubridade iam se deteriorando à medida que um maior número de pessoas, fugindo de aluguel, buscava a vida num barraco-palafita como solução.


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A água já não estava tão verde e a violência começava a despontar. E, como sempre atrasado, o governo resolveu intervir, criando a Amesa – Alagados Melhoramentos S/A. — O projeto da Amesa previa o aterramento hidráulico dos Alagados, o remanejamento dos moradores para adjacências e a erradicação dos barracos-palafitas. Esse projeto era financiado pelo governo dos Estados Unidos, porque na época, pelo que se sabe, um dos Kennedy vira aquele aglomerado de centenas de casas sobre o mar quando, numa visita a Salvador, o avião taxiou sobre Alagados para pousar no antigo Aeroporto 2 de Julho. Comovido com a situação, ele articulou uma ajuda. Alagados também era ponto turístico; várias vezes saltamos no mar sob a mira das câmeras dos gringos. Gostávamos deles, pois pareciam com a mulher e o homem biônicos ou a Mulher Maravilha, nossos seriados prediletos. O projeto era cheio de boas intenções, mas, como diz o ditado popular, o inferno também. Aquela boa vontade internacional e a política pública nacional caíram como uma bomba na nossa vida já sofrida. Para alguns, era um milagre, mas para outros, ter que deixar suas casas por uma ordem dada pelo governo criava incertezas, pois ninguém pagava água nem eletricidade nos Alagados — tudo era informal —, e agora teriam que pagar isso tudo e ainda se especulava que viria uma taxa mensal para as casas novas e um tal de IPTU. Não se sabia bem para onde seríamos levados ou se, depois do aterro, as casas seriam feitas no mesmo lugar de antes. A sensação era de que o governo era um pai que havia sumido durante toda a infância e agora, no final da adolescência, aparecia impondo regras e deixando tudo fora do lugar.


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Minha avó, assim como muitos outros, não queria se mudar. Até a polícia foi chamada, mas ela não arredava pé da decisão, pois se os orixás tinham escolhido aquele espaço de maré para ser o Tumba do Mar quem era ela ou o governo para mexer nisso? Veio polícia, engenheiro-chefe, e ela não fez acordo. Então, eles preferiram não criar conflito com uma liderança e a fizeram assinar um documento que eximia o governo da responsabilidade pelo dano causado ao imóvel e a ela, pois deixara claro que não sairia do terreiro nem durante a perigosa operação de aterro feita pela draga, máquina quimérica que puxava areia das profundezas do mar e jogava nas partes a serem aterradas. No dia do aterro, me neguei a ir para a escola e me enfiei dentro do terreiro junto com minha avó. Minha mãe e os técnicos queriam que eu saísse, mas eu não quis sair e os trabalhos começaram. Era um som ensurdecedor e a casa trepidava muito. Eu e minha vó ficamos no quarto dela durante cinco horas — um barraco que aguentava samba de caboclo não ia ceder a uma fera máquina. Ao final de três dia de batalha contra o dragão que cuspia areia, o Tumba do Mar estava um pouquinho torto, mas ainda firme. Porém, o resto da comunidade não teve a mesma sorte e, querendo ou não, as pessoas iam sendo mudadas à medida que a quimera cuspidora de areia avançava; e logo chegou a nossa vez. — Numa manhã, chegaram os caminhões para fazer a mudança de todos os moradores do beco em que morávamos, exceto da minha família. Os técnicos disseram que meu pai tinha feito um bom trabalho de aterro na ponte e elogiaram nossa casa, falaram que era bastante




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forte e suportaria o aterro hidráulico. Nós ficamos felizes, mas minha mãe, desconfio, ficara desejosa de ganhar uma daquelas casas que mostravam no portfolio da Amesa. No entanto, por toda a luta de minha avó, ela resolveu não se manifestar. Eu até acredito que os técnicos chegaram a essa conclusão de casa forte por receio de minha avó... Nós, as crianças, não queríamos nos mudar, amávamos nosso mundo aquático, principalmente eu e meu irmão, que tínhamos um fogão velho na ponte do lado de fora da casa onde guardávamos toda sorte de brinquedos, centenas talvez, a maioria trazidos pela maré e uns poucos que tínhamos ganhado de presente — era o nosso grande tesouro. Mainha havia saído para o trabalho, meu pai estava no Rio de Janeiro vendendo chá-mate nas praias de Copacabana e minha avó, que a essa altura estava experimentada na luta contra as dragas, era nossa protetora e se encarregava de nos fazer ir para a escola. Depois de mudarem os demais moradores, começaram as demolições de suas respectivas casas. Por “engano”, os demolidores, que não buscaram fazer um cursinho rápido com os “grandes nadadores” e não sabiam onde terminavam as estacas de um barraco-palafita e começavam as de outro, erraram e danificaram uma estaca da nossa casa. Foi um susto danado que infelizmente comprometeu toda a estrutura da construção. — Com a abalo na casa, nossa vitrola, cuja caixa de som ficava presa na parede juntamente com um quadro do Esdras, caiu. Depois de ajudar minha avó a tirar a peça da parede lateral, fui mandado a contragosto para a escola. Deixei minha casa meio torta, mas nada que meu pai não pudesse consertar, pois ele aprendera com


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meu avô Cachoeira a fazer casas. Meu pai não estava, mas ia voltar. Tem coisas que a gente deseja que só o pai da gente resolva... Estava uma confusão quando saí, mas minha avó estava lá e sabia botar o povo da Amesa no lugar deles. Ao cair da tarde, retornei da escola. Bem antes de chegar na rua em que morava, fui advertido por um menino que morava na mesma rua, mas nas casas de alvenaria da parte seca, em tom de chacota: — Você não mora mais aqui, você não mora mais aqui!

Achei que fosse apenas uma brincadeira do vizinho, mas, ao entrar na rua onde morava, outro menino me disse que todos do meu beco haviam sido levados pelos caminhões da Amesa. Eu sabia que do meu beco só eu não mudaria, e isso era bom, ainda mais porque tinha ouvido o elogio que o engenheiro fizera a meu pai. Eu estava ansioso para chegar em casa, estava com saudade do meu pai, que todos os anos no verão ia vender chá mate nas praias do Rio de Janeiro. Vinha pensando nisso... Já eram seis horas e a Ave-Maria ainda era cantada nos rádios das casas quando me deparei com o beco onde morava. Estava escuro e sombrio; adentrei mais um pouco e encontrei um cemitério de estacas de barracos-palafitas a perder de vista, inclusive onde antes existia minha casa, verde e bonita, a mais bonita do beco, que meu pai fizera e que fora elogiada pelo engenheiro. Caminhei pela alvenaria que meu pai construíra com lixo e pedra e que avança na maré até a porta da minha casa. Como a maré estava vazia, avistei lá em baixo meu baú de tesouros, o fogão velho destruído e sem os brinquedos. Sentei ali e uma grande tristeza invadiu meu espírito ainda tão jovem.


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Uma sensação de vazio. Onde estava minha família? Meu ninho aquático não existia mais. Para onde levaram minha mãe? Ali permaneci chorando por mais de uma hora. — Até que um vizinho que passava viu minha silhueta na escuridão do cemitério em que se transformara meu beco e foi avisar a minha tia Elza, que morava no começo da rua, na parte seca. Eu fiquei muito assustado e ansioso, pois o que quer que tivesse acontecido também fizera minha avó se ausentar do terreiro... Só fui encontrar minha família, seu novo endereço e meu novo destino muito depois das 22h daquele dia. Só então fiquei sabendo que assim que fui para a escola outra estaca da nossa casa foi derrubada erroneamente, e a casa quase veio a pique. Os responsáveis da Amesa perceberam que teriam que mudar minha família e foram buscar minha mãe no trabalho. As coisas da casa condenada foram colocadas num caminhão e no meio da confusão esqueceram o fogão velho. Val, meu irmão, nada podia fazer, pois, como o erro dos demolidores comoveu a comunidade e a polícia foi chamada, minha família aguardava o resto da mudança numa viatura e foi retirada às pressas para que o incidente não atrapalhasse a imagem da empresa já sem credibilidade na comunidade. — A mudança da rua Dom Sebastião Leme, na Massaranduba, onde nasci, além de dramática, me separou definitivamente da vida romântica nos Alagados. Embora distante não mais de 2 quilômetros em linha reta do meu local de nascimento, tudo era novo. Não havia mais a solidariedade dos vizinhos, pois nas casas provisórias no bairro do Uruguai (como eram chamadas as casas para onde fomos mandados) havia gente de todas as localidades, e


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a pobreza se mostrava, pela primeira vez, violenta. Eu e meus irmãos quase não podíamos sair às ruas. Esse conjunto habitacional era de cimento. Embora com boa salubridade, faltavam a alegria, a boa vizinhança, os grandes nadadores, o sentimento de pertencimento... Eu e minha família tivemos que nos acostumar aos novos tempos. Ali ficaríamos por um ano, agora longe de minha avó, que perdera de uma vez quase todas as filhas e filhos de santo e simpatizantes. Como cada um foi mandado para um canto, a rede de solidariedade que dignificava nossas vidas foi seriamente abalada; não havia mais os rodízios para levar as crianças ao colégio, o escambo de gêneros alimentícios, a vigilância e a educação comunitária. Ainda sem meu pai e com minha mãe trabalhando, a tristeza que invadiu meu espírito naquele dia em que perdi minha casa não me largava e fiquei em depressão durante muito tempo. Também longe do Tumba do Mar e de nossa família de santo, as nossas economias tiveram um grande abalo e então comecei a vender bolo e outros quitutes na rua. Perto do Natal, mais ou menos um ano depois de termos sido expulsos do nosso lar, recebemos nossa casa definitiva. Todas elas eram iguais entre si e bem diferentes das casas do portfólio da Amesa, que eram de alvenaria, assim como as provisórias. As casas que recebemos eram de qualidade inferior; em vez de cimento e bloco, eram feitas de madeirite11 de péssima qualidade. Eram embriões sem divisória; havia somente uma pequena cabine, também de madeira, que era o banheiro. Aquelas casas sobre a maré não durariam um mês. 11 Folha de madeira de baixa qualidade usada pela Amesa para fazer as casas das pessoas dos Alagados.


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Meu pai chegou a tempo de conhecer a casa nova, mas dois dias depois teve que voltar para o Rio de Janeiro para vender chá-mate. Assim, eu e minha família estávamos novamente num novo bairro, o Jardim Cruzeiro, numa casa frágil e, o pior, a violência que já se tornara conhecida da minha família nos apresentou sua companheira: a droga. O consumo era feito no beco da nossa casa, pois os usuários sabiam que ali o chefe da família não estava. Com meus 14 anos, estudava num colégio público, de boa reputação: era considerado uns dos melhores da região. Lá fiz amizade com adolescentes de uma situação social melhor que a minha e, assim, passei a conviver em dois mundos. Um era o dos meus colegas do bairro, que me entristecia, pois os via enveredarem no caminho do crime. O outro mundo era o dos meus colegas do colégio, da mesma idade, com roupas de marca, videogame, carro na porta. Esses colegas me convidavam para ir num tal de shopping center, mas eu não tinha roupa nem sapato e, em muitos sábados, para não ficar na companhia de meus colegas em situação de risco social do bairro, ficava sentado na rua de meus colegas do colégio esperando que voltassem do shopping para conversar. Havia uma falta do que fazer, e surgiam convites interessantes para participar de pequenas delinquências, que afinal davam um pouco de alegria àquela pobreza violenta e sem perspectiva. Eu me lembro de que, quando vínhamos da praia com fome, nossa diversão era quebrar telefones públicos. Muitas vezes tocávamos os interfones das casas ricas pedindo lanche. Muitos davam: ficavam um pouco intimidados com aquela turba de pivetes. Eu inicialmente sentia raiva daqueles meninos branquinhos que tinham videogames, bermudas e


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tudo que queriam. Algumas vezes encontramos uns de vacilo e arranjamos brigas, mas, claro, eles nos temiam e nunca nos enfrentavam, sempre corriam, mas não sem antes levarem uns catiripapos para aprenderem a não nascer com sorte, por terem a pele diferente da minha, por tantas coisas que eu não sabia explicar. Nosso grupo se protegia; não havia nenhum discurso ideológico, mas sabíamos que tínhamos que nos proteger uns aos outros, pois nossos pais o máximo que conseguiam eram trazer um pouco de comida. E isso custava muito caro: custava a presença deles na nossa vida.


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Cap.03

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Algo muito estranho começou a acontecer quando entrei para essa escola. Havia poucos negros e nós de certa forma éramos unidos, mas de repente, de forma bem tímida, comecei a me aproximar dos brancos. Lembro que a primeira vez foi no meio da 6ª série, quando entrou um menino chamado José Carlos que era carioca e cujo pai era caminhoneiro. Ele era mestiço — o pai era negro e a mãe branca —, e tinha um forte sotaque carioca, que fazia muito sucesso entre as meninas. Ele era da turma dos pobres, mas por ser de fora entrava em qualquer turma. Fiquei curioso, queria saber se ele sabia onde era Copacabana, pois meu pai vendia chá-mate gelado lá. Estava tão curioso que nem temi ser exposto como filho de um vendedor de chá-mate. Bem, Zé Carlos não deu a mínima para meu pai ser ambulante. O fato de que eu tinha saudades do meu pai que estava trabalhando no Rio e de que ele tinha saudade do Rio porque seu pai estava trabalhando na Bahia foi como se partilhássemos um sofrimento que nos fazia cúmplices; era como se já fossemos amigos havia anos e ele logo me chamou para almoçar em sua casa. Eu ia passar o dia lá para que ele pudesse fuçar meu caderno e se inteirar dos assuntos escolares. Ele, a madrasta e os dois meios-irmãos falavam bem diferente, e rimos uns dos outros quando usamos palavras diferente dos nossos vocabulários locais. 48


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Eu me sentia muito à vontade com Zé Carlos e sempre fui metido a engraçadinho, mas, claro, só depois que deixava cair minha capa de tímido. Parece que por isso conquistei a madrasta dele, que era simpática e fazia uma comida gostosa, embora eu nunca tivesse visto tanto alho para fazer um arroz! Retribuí levando ele à minha casa no domingo; era o barraco de madeirite da Amesa, que com o tempo só piorava. Bem, Zé Carlos era a novidade na escola e ser amigo dele me fez frequentar outras tribos. Nem sei como fui convidado a fazer parte de um grupo de meninos e meninas que eram os melhores das salas. Esse grupo ficaria junto até o final do ano, fazendo diversos trabalhos, não lembro bem por que, mas convencionou-se usar só três casas para esses trabalhos; coincidência ou não, eram exatamente as casas dos três mais abastados. Nesse grupo conheci o André e o Ricardo, que eram simpáticos e pareciam me dar uma atenção verdadeira, independentemente da minha amizade com Zé Carlos. Eles moravam em casas bonitas e para mim qualquer casa que não fosse de madeirite e tivesse divisão interna entre os cômodos era sinal de riqueza, e ambas ultrapassavam esse meu parâmetro em muito. Logo eu passei a frequentar a casa deles e, como moravam na mesma rua, acabei fazendo amizade com toda a rua. Imaginem que esses eram os riquinhos que eu odiava com a turma da minha rua! Eu só entrava nas casas deles e de outro carioca chamado Robson, o loiro, que tinha dois anjos como pais. Eu era muito bem tratado na casa de André e Ricardo, mas na casa de Robson, o loiro, eu era um filho. As mães deles sabiam de onde eu vinha e acredito que no caso das mães do André e do Ricardo pode ter havido algum receio de início, mas os olhares maternos e afetuosos delas faziam com que eu me sentisse bem.


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Fiquei muito confuso, pois não tinha por que odiar aquela gente. Eles eram legais. Mas eu não sabia como misturar todo mundo, sem as diferenças de cor e classe social. Não sabia como explicar isso para o pessoal dos Alagados nem para meus colegas da escola. A verdadeira amizade nos ensina muito. Naquela época, eu queria muito um rádio FM, pois todo mundo na escola sabia as músicas do momento. O Ricardo era irmão de um cantor, Robson, da banda Mel, que tinha ficado famoso; a canção dele tinha sido a melhor do verão. Uma vez a mãe dele me perguntou se era verdade que eu queria muito ter um rádio FM; eu fiquei envergonhado, porque era uma coisa que eu tinha falado só entre a gente. Então ela foi ao quarto e voltou com uma radiola portátil que era tudo: toca-disco, toca-fita e rádio AM e FM! Isso era algo inimaginável para mim! Ela pediu para que eu tomasse conta, pois tinha sido naquela vitrola portátil que o famoso Robson tinha começado a cantar. Como eu disse, a mãe e o pai de Robson, o loiro, logo no primeiro dia me mandaram entrar, me abraçaram e me fizeram perguntas. A cada resposta minha eles se olhavam; pensei que iam pedir para eu não andar com o Robson, mas depois da conversa a mãe dele fez batatas fritas e disse que eu podia ir lá sempre que quisesse. Aí foi um inferno! Os meninos da minha comunidade falavam mal dos branquinhos lá de cima e prometiam que quando encontrassem com eles na praia, local democrático que gente de todas as etnias, gangues, religiões etc. frequentava, iam quebrá-los na porrada. Eles ficavam irritados quando eu não concordava, e alguns diziam que eu teria que me decidir, que era para eu tomar banho de água sanitária e me mudar para a parte de cima. O mesmo acontecia quando os meninos de cima se reuniam e acusavam os meninos de baixo de serem maus,


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brigões, ladrões; também se irritavam quando eu dizia que não era bem assim. Tinha um deles que se declarava racista e nazista. Ele dizia que meu povo fedia, que se tivesse uma bomba jogava lá embaixo. Alguns amigos retrucavam, dizendo para ele me avisar para eu correr, e todos riam. Era doloroso, mas eu conhecia bem os dois grupos. Eram pessoas boas, companheiras, se pudessem se desarmar de tanto ódio, tanto preconceito. Eu sabia que minha turma lá de baixo era de companheiros para tudo; a gente se ajudava. Se o pai de alguém era cachaceiro e o espancava era normal poder ficar na casa do outro por uns dias. Alguns de nós trabalhávamos pegando compras no supermercado e na feirinha local com carros de mão feitos de caixotes velhos de madeira. Para isso, tínhamos que fazer os carros em mutirão, cada um trazendo escondido as ferramentas de casa. Eu não era muito habilidoso com essas coisas e todos me ajudavam. Lembro de que quando comecei a vender picolé, um deles, o Gil, me acompanhou todo o tempo, mesmo já sendo experiente e vendendo duas vezes mais que eu. Sempre que ele tinha que me deixar para ir buscar mais uma guia de picolé, me aconselhava a não ir a certos lugares e a nunca vender para turmas grandes, além de marcar um lugar para a gente se encontrar e depois voltar para casa. Uma vez, eu estava com o grupo dos novos amigos da rua de André, Robson e Ricardo jogando bola na praia e aconteceu o que eu mais temia. De repente apareceu a turma lá da minha rua, dizendo que agora o futebol era deles. O time adversário do meu era formado por meninos da Boa Viagem, bairro que dá nome à praia onde estávamos, e também eram brancos de classe média. Com a turma da minha rua querendo terminar o futebol, formou-se uma grande confusão. A intenção era clara:


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os meninos da minha rua não queriam jogar bola e sim brigar, estragar a brincadeira dos outros. Gil, o do picolé, e Nem, vizinho de frente da minha casa, que eram meus mais chegados, me cercaram, como que para me proteger. A turma da minha rua estava em menor número, mas havia tanto ódio no olhar deles que parecia multiplicá-los. Era bem clara a coisa: negros contra brancos, pivetes contra mauricinhos. Mas eu já sabia a maneira de agir daquela turba; pertencia àquela pivetada e já tinha participado de muitas confusões iguais àquela, então gritei para André e Robson não falarem nada, não responderem aos palavrões. Nisso, Boi, que era o líder da turma da minha rua, mandou eu calar a boca ou ele ia me pintar com a cal do campo para eu ficar branco e apanhar também. Enquanto a discussão piorava, eu convenci Gil e Nem, que eram caras legais, de que um dos times era todo de gente minha e que dois ali eram amigos-irmãos que nem eles. Contei sobre a radiola portátil, falei que tinha sido a mãe de um deles (todos aqueles brigões lá da rua curtiam minha radiola), falei de como as mães de André e Robson me tratavam como filho, e que eles, mesmo com dinheiro de transporte, iam andando comigo para a escola. Gil e Nem meio que amoleceram e me disseram que quando o cacete começasse no centro a gente não devia correr para a praia, pois, embora parecesse o mais sensato, havia outra parte da galera lá para quebrar os branquelos no pau; disseram que eu deveria pegar os meus branquelos, subir o forte do Monte Serrat e dar a volta na península para levá-los para casa. A briga estourou e eu não pude fazer muito pelos meninos do outro time, pois mesmo quando eu gritava “venham por aqui” eles me confundiam com os meninos da minha rua e corriam para longe de mim. Foi uma briga feia. Os meninos lá da rua tinham pedaços de madeira, e eu vi cenas muito tristes; os que correram


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para a praia desmaiaram de tanta porrada. Quando a briga começou, Gil e Nem foram logo ajudar os outros, e eu fiquei livre para socorrer os que apanhavam. Na confusão, os da minha rua me chamavam de Pim e os da escola de Joselito. Consegui levar sem um arranhão André e Robson, outros oito do nosso time e um do time adversário chamado Fabrício, pois ele era muito amigo de Robson e felizmente correu para a direção que eu indicava no meio da confusão. Ficaram um pouco arranhados mas inteiros. Os do time adversário que moravam no bairro e conseguiram fugir foram chamar ajuda; chamaram os caseiros, pedreiros, porteiros dos prédios para socorrer seus patrõezinhos. Os meninos da minha rua recuaram ao ver chegarem adultos para ajudar os meninos do bairro, e eu comecei minha odisseia para levar meus dez branquinhos para casa, porém tivemos a infeliz ideia de voltar para deixar Fabrício. Ele era franzino e estava muito assustado; devia ter uns 12 ou 13 anos. Claro que nós, que éramos mais maduros, com 14 anos, não o deixaríamos sozinho. Mas foi só a gente despontar na rua que fui cercado pelos meninos de classe média, que estavam vermelhos de raiva e de pancada. Começaram a me acusar de pertencer ao outro grupo, e nesse momento quase fui espancado. Quando fui revidar o empurrão que levei de um deles, a coisa piorou. Eu era magro e alto, tinha as pernas bem compridas, já estava pensando em disparar quando Fabrício, que ao chegar perto de casa tinha disparado velozmente (pensei que talvez quisesse ir ao banheiro), voltou e disse que eu tinha protegido ele e a turma do André e do Robson. Depois me cercou, dizendo que para bater em mim tinha que bater neles. Ia ser uma verdadeira briga de brancos, e eu no meio daquilo, mas ao final os ânimos se acalmaram e pudemos começar a aventura de voltar para casa.


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Na turma da minha rua havia uns dois que não se davam bem comigo: um se chamava Daniel, com quem eu já brigara uma vez porque ele dera um cascudo no meu irmão Bira, o caçula; e o outro era o Doido, que sempre me provocava; a gente simplesmente não simpatizava. Ele era muito perverso, gostava de matar gatos. Eles convenceram Boi de que eu tinha ficado do lado dos meninos e de que tinha ido para o lado da Pedra Furada, então estava claro que eu estava dando a volta na península para proteger os filhinhos de papai que moravam na rua de cima. Já tínhamos dado a volta e estávamos bem perto da rua dos meus amigos de cima quando, de repente, avistei minha turma vindo na nossa direção. Não tinha muito a fazer. Boi chegou com muita raiva, batendo o peito conta o meu (eu era mais alto, então na verdade ele bateu o peito dele bem na boca do meu estômago), era como se eu tivesse desafiado a liderança dele. Como ele era baixinho e troncudo, tombei para trás e também o olhei com raiva. André, Robson e todos os outros ficaram em posição de defesa, enquanto Gil e Nem tentavam acalmar. Daniel e Doido não estavam muito interessados na minha troca de farpas com Boi, pois sabiam que isso a gente podia resolver em casa, mas Doido em particular não queria perder a oportunidade de cacetar alguém; ele era doido mesmo. Depois de me provocar, Boi decidiu liberar a galera, mas antes ficou me chamando de Jaspel e super-herói; logo eu, um dos mais frouxos, ia defender aquele bando de bichas brancas. Assim, minha turma, que perdia o amigo mas não a piada, estava satisfeita por poder “zoar” o fato de eu tentar brigar com todos por uma meia dúzia de mauricinhos. Mesmo tempos depois, eles ainda me chamavam de Jaspel e riam muito daquele dia... André não entendeu nada; ele não sabia que Boi seria incapaz de me bater. O mais importante


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é que, depois disso, consegui levar todos os meus novos amigos para um uma partida de futebol, que chamávamos de “baba”, na escola perto da minha rua, da qual a mãe de um deles era diretora, por isso podíamos usar no fim de semana. Às vezes, Boi e a galera participavam. As duas turmas nunca se uniram, mas nunca mais houve confusão e muitas vezes ouvi meus amigos da rua de André falarem que tinham estado em apuros com meninos da minha área e depois foram liberados com a seguinte frase: — Ih, é um daqueles filhinhos de papai do Pim. — A paróquia de São Jorge era responsável pelo bairro do Jardim Cruzeiro e, por incrível que pareça, ela ficava exatamente na divisa dos dois lados daqueles bairro. Bem ali, logo atrás da rua Rosalvo Barbosa Romeu, a última rua de classe média baixa do bairro, fica a rua Anísio Gonçalves, onde realmente começa o que outrora eram barracos-palafitas, mas que hoje é o aterro da nossa Amesa. O pároco Clóvis é um homem franzino, de pele branca, nascido no interior da Bahia, mas educado no seio da Igreja Católica do Rio de Janeiro. Homem culto, amoroso e uma espécie de herói, pois também lutou na guerra do aterro, assim como minha avó. Ele criou muitos problemas quando apoiou os moradores do Jardim Cruzeiro que não queriam sair de suas casas; foi preso e deu muito o que falar nos jornais. Antônio Carlos Magalhães e o arcebispo primaz do Brasil, Dom Avelar, tiveram muito trabalho para resolver o furdunço que rolou depois da prisão do padre que defendia a permanência dos moradores em suas casas com o fim do aterro. Seria fantástico se ele tivesse encontrado minha avó naquela época, pois padre Clóvis, com toda a sabedoria da Teoria da Libertação, e minha avó, com a prática ancestral quilombola, seriam imbatíveis atacando a Amesa.


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Bem, voltando do meu devaneio, não sei se eles se conheceram, acho que sim, nunca perguntei a ambos, mas sei que padre Clóvis, com a ideologia da libertação, faz um trabalho muito importante na comunidade. A paróquia de São Jorge, além de ter uma escola primária, desenvolvia várias oficinas de arte e educação para a comunidade. Assim, um dia, ao passar pela fronteira ao encontro dos meus amigos lá de cima, os “branquinhos”, como meus amigos de baixo os chamavam, vi uma faixa que falava das diversas oficinas oferecidas pela paróquia. Já havia feito a oficina de capoeira no semestre anterior, mas sempre fui cismado com os cristãos, principalmente os católicos; ainda não havia estudado História por conta própria como iria a fazer anos mais tarde, quando aprendi sobre a Santa Inquisição e outras coisas, mas ficava desconfiado. Não sei de quê; aquelas imagens tristes, aquela negação do corpo... Eu morria de medo das imagens com cara de sofrimento; elas eram diferentes dos orixás, que viviam, erravam, eram como a gente e ainda eram felizes. Preconceitos meus, mas a vida iria me ensinar a ser mais tolerante, até porque o preconceito já tinha me machucado bastante. Cheguei na roda de conversa de meus amigos falando do curso e alguns se interessaram, entre eles Branca, pois nesse tempo começamos a admitir meninas na nossa turma. Mas só na turma dos meninos de cima, pois lá embaixo mulher não entrava — elas só atrapalhavam as coisas. Para mim, era algo novo ter meninas que ousavam andar em turmas de meninos. Elas eram legais, e aos poucos comecei até a pensar em sugerir lá embaixo que admitíssemos meninas, mas fiquei só no pensamento, pois cada paradigma tem seu tempo para ser descoberto e eu, após convencer alguns de cima a fazer o curso de teatro, agora tinha que explicar para os de


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baixo por que um negão que jogava capoeira e era safo na comunidade iria fazer teatro. Eu mesmo não sabia; era só para preencher o tempo. Mas que eu ia passar de Jaspel, o herói, para Capitão Gay eu ia. Era inadmissível um menino da turma de baixo fazer teatro, mas também percebi que meus amigos de cima só tinham aceitado a proposta de descer até a paróquia porque eu estava no grupo. Ainda era perigoso para meninos frequentarem a rua da fronteira; suas mães iam à missa, mas eram mães, que é como ser da Cruz Vermelha; os meninos nunca iam para baixo sozinhos. Bem, ao final, tive que contar para Boi e a galera que estava fazendo teatro na paróquia e explicar que as mães dos amigos lá de cima só deixariam eles fazerem o curso se fossem comigo e eu os levasse pelo menos até o pé da ladeira. Gil e Nem não disseram nada, mas Boi disse: — Por mim, aqueles viadinhos podem vir aqui a hora que quiserem. Acho até que você devia entrar no curso de balé com eles.

E todos riram, riram muito. Boi tinha uma inteligência acima do normal e sabia que eu queria fazer teatro, mas não ia perder a chance de gozar da minha cara. Ufa! Aceita a minha nova aventura. Assim, entrei para o teatro e, para minha surpresa, o professor era um rastafári, negro como eu, e dava aula de teatro para jovens de boa situação. Além disso, o professor Lula, como era conhecido, era bem-humorado e falava de uma tal de Babilônia, que era a culpada, era o “sistema” que privava todos dos Alagados da possibilidade de uma vida melhor. Pela primeira vez, eu ouvia uma explicação para a pobreza que não era castigo de Deus ou culpa do próprio pobre. Minha avó me contava que antes a gente vivia


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em outro lugar com nossos reis e rainhas. Ela falava que isso era lá pelas bandas da África e que fomos pegos e escravizados, mas que alguns de nós eram até príncipes. Eu era o príncipe do Tumba do Mar, pois nascera lá dentro, como os meninos africanos que não vão ao hospital e nascem entre os seus. Pode parecer besteira, mas minha avó me disse isso por toda a minha infância e foi exatamente essa responsabilidade de ser o príncipe do Tumba do Mar que me livrou das grandes confusões. Essa coisa sempre vinha à minha cabeça quando eu me metia em alguma confusão e também quando alguém me tratava com preconceito, como no dia em que a mãe do Robson, o loiro, me chamou para sair com ela. Fomos eu, ela, André e Robson, todos bem brancos, e, quando chegamos numa casa da classe média alta, a empregada, ao abrir a porta e dar acesso à casa, toda sorridente, perguntou à mãe de Robson: — Quem são esses dois meninos?

A mãe de Robson respondeu: — São meus filhinhos também.

Nesse momento, a empregada, que era negra como eu, seguiu pelo corredor rindo e disse: — Vixe! Não sabia que a senhora tinha barriga suja, não.

Um dia, quando eu tinha uns 10 anos, minha avó foi convidada para a inauguração do Museu Afro, na antiga Faculdade de Medicina da Bahia, no Pelourinho, um evento com autoridades africanas. Fiquei muito triste porque nenhum príncipe presente me reconheceu, então resolvi que não seria mais príncipe. Em casa, quando voltamos, ela me explicou que não era para eu ligar, pois fazia muito tempo que a gente tinha saído da África e nossos irmãos de lá não se lembravam, mas que um dia iriam se lembrar, pois muitas coisas importantes de lá nem mais existiam, só aqui, e eles teriam que vir buscar.


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As dinâmicas de teatro me desinibiram, além de terem me permitido, mesmo que por meio das metáforas do professor Lula, ter uma formação política, na qual rastafarianismo e socialismo se fundiam. O primeiro espetáculo seria no dia 1º de maio e contaria com a presença de Dom Lucas Moreira Neves, o cardeal e arcebispo primaz do Brasil. Seria numa área onde a paróquia iria posteriormente construir um auditório. O espetáculo seria uma homenagem aos trabalhadores, e coube a mim homenagear os garis. Eu pedi a roupa emprestada; era o uniforme de um vizinho, que, ao saber do que se tratava, resolveu espalhar para todo mundo. Eu estava apreensivo, pois temia a chacota dos colegas da rua. Eu sabia que Boi e a galera inteira estariam lá, e seria um vexame certo. Assim, no momento do espetáculo com a presença do santo padre Clóvis, do cardeal Dom Lucas, da mãe de santo Senameã (vóvó como sempre a chamei) e Jove, minha mãe, alguém foi avisar que o professor tinha sido preso, pois a polícia o confundira com um marginal — os rastas eram muito discriminados... Todos ficaram nervosos, e eu percebi que a Babilônia não brincava — o sistema tinha conseguido estragar a festa das pessoas dos Alagados. Assim, quando o padre se dirigiu para a delegacia, eu fiquei com muita raiva e, como o espetáculo tinha hora marcada para acontecer, por causa da presença do arcebispo, nós do teatro resolvemos começar a coisa sem o professor. Sabíamos que ele ia gostar e que ficaria orgulhoso da gente. Eu estava muito nervoso, pois, além da minha família, estava lá minha turma de baixo, pronta para fazer a maior gozação. Mas a peça falava da pobreza, da dureza do trabalhador, dos maus-tratos da polícia, e, não sei como, quando olhei para meus amigos da comunidade, eles estavam vibrando. Não era eu que falava


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para eles, e sim o gari que eu representava. E eles torciam pelo gari, riam com o gari e estranhamente vieram todos dizer que tinham gostado e queriam saber quando teria outra. Nunca houve uma gozação com a peça. Eles ficavam até sérios para falar do assunto, e o mais incrível foi que meus amigos de cima representaram meu povo de baixo e passaram a ficar cada vez mais conscientes de que a questão social é una. O professor chegou antes do fim com a cara um pouco quebrada, mas muito feliz com nossa força de vontade. O curso terminou, e, junto com a turma, montamos uma companhia de teatro chamada “Etc e tal”.


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Alagados sem รกgua

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Cap.04

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Vivíamos um momento paradoxal lá em casa. Por um lado, eu tinha ficado muito feliz, pois meu pai, após a morte de sua irmã que morava no Rio, resolvera que não voltaria mais a trabalhar lá nos verões seguintes; por outro lado, ele não tinha emprego, tinha 44 anos e já ficava difícil conseguir algum. Após muito tempo, Zé Bofeia passaria as festas de fim de ano com a família. Depois de muito procurar emprego, ele começou a dizer a minha mãe que, como mais velho, eu também teria que ajudar. Não que eu não ajudasse em nada: eu tinha só 15 anos e já tinha sido doméstico na casa de um árabe, ajudante de marceneiro, ajudante de amolador de alicate, carregador de compras no supermercado, vendedor de osso para sopa na feira do bairro e vendedor de picolé; mas ele queria que eu arranjasse um emprego de carteira assinada e estudasse à noite. Um dia, meu pai, num golpe de sorte, encontrou um amigo do Rio de Janeiro que estava administrando uma empresa de prestação de serviços de limpeza. Embora eu desejasse um emprego de office-boy num banco ou algo do gênero, fui com meu pai me inscrever nessa empresa. Esse conhecido devia ter muita estima por ele, pois saímos os dois empregados como faxineiros naquele dia.

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Fui prestar serviço na empresa de abastecimento de água, a Embasa, onde descobri que os espertos, prontos para tirar proveito da gente, estavam à espreita em todos os lugares. No primeiro dia de trabalho, ainda com 15 anos, o cabo de turma (pessoa que era a líder), um homem bem simpático e de fala mansa, me levou ao local onde ficavam todos os funcionários da limpeza. Era um sótão, um lugar legal, parecia um esconderijo... Lá havia uma sala com sofá, frigobar, máquina de café e fogão; havia também um banheiro para a gente. Tudo na sala tinha a logomarca da empresa, mas eram equipamentos velhos, que os serventes tinham recuperado para fazer daquele um local decente. Havia uma mesa de baralho e dominó e a maioria estava ali jogando. Fui apresentado a eles, e logo um gaiato já foi gozando: — Aqui virou uma creche agora, foi?

E todos riram. Em seguida, outro me pegou pelo braço e me levou para mostrar meu serviço. Esse rapaz me mostrou alguns banheiros, uns dois jardins, entre outras coisas. Era uma segunda-feira e, embora eu trabalhasse oito horas por dia, na sexta não tinha chegado nem na metade dos lugares que eram da minha responsabilidade. Por isso, eles me ameaçavam, dizendo que eu era muito mole e que não ficaria ali. Na semana seguinte, esqueci algo no esconderijo e voltei para lá antes do horário do almoço. Cheguei sem eles perceberem e descobri que tinham me dado todo o serviço e ficavam lá em cima jogando cartas, dominó, pauzinhos, dormindo ou assistindo a uma televisão velha que também havia no local. Eu era só um menino e achava que os adultos não fariam uma coisa dessa, mas vi que estava sozinho; fiquei tão triste que eles pediram para eu não contar na empresa e me fizeram vários mimos. Ao final, me mostraram a área que era realmente da minha responsabilidade. Era uma área pequena; eu


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dava conta dela em apenas um turno e, no outro, como um bobo, ainda ajudava alguns nas áreas deles. Não sabia dizer não e chamava todo mundo de senhor e senhora. Em pouco tempo, me deram o setor da chefia para limpar. Era muito divertido, pois era com um aspirador de pó que parecia um robô enorme. Logo fiz dele um amigo, até conversava com ele! Nessa época, eu não via muito meus amigos da rua, e muita coisa triste começou a acontecer. Um deles, Daniel, que era um dos mais violentos, morreu; seu parceiro, o Doido, matou um cara; e outros estavam se envolvendo com o tráfico de drogas... Nos víamos poucas vezes, mas havia sempre cordialidade na relação. Parece que por motivo da perda de um contrato a empresa me mandou para o hospital naval da Marinha. Lá eu trabalharia limpando as enfermarias. Nessa época, os ventos da adolescência eram verdadeiros furacões em mim. E eu estava causando muita confusão lá em casa. Para começar, recebia aos domingos alguns fiéis da igreja Testemunhas de Jeová, porque achava que eles explicavam melhor o Deus cristão. Lembro que eu tinha 13 anos quando li pela primeira vez a Bíblia; foi lá no Tumba do Mar. Eu a encontrei no meio das frutas na cabana do meu avô Caboclolinho, que era uma das entidades que minha vó recebia e que eu considerava a figura masculina de avô, já que seu Cachoeira foi embora no meu primeiro ano de vida. A Bíblia tinha sido um presente de minha prima, Dilma, filha de minha tia Elza, que havia se convertido ao protestantismo. Não sei como a bibliazinha foi parar no meio do santuário, que era tipo um presépio montado com palhas de dendê na sala principal, onde, além de uma imagem de um caboclo de joelhos atirando uma flecha, havia também todas as coisas que tinham relação com essa entidade brasileira: uma cabaça onde eram servidos jurema, charutos, caxixis e muitas frutas, com destaque para o melão da


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índia, que tem um gosto e um cheiro bem peculiares. Era um lugar com um astral muito bom. Mesmo já morando no Jardim Cruzeiro, quando ia visitar minha avó, eu costumava deitar aos pés do caboclo numa esteira de palha e dormir à tarde. Um dia encontrei a Bíblia por ali, li o Gênesis e o Êxodo. Do Gênesis eu gostei até da trama, mesmo com a tragédia da expulsão do paraíso e do fratricídio de Caim. Mas quando li o Exôdo fiquei decepcionado com Jeová, pois achei que ele tomou partido de um certo povo e matou os outros. Como me senti confuso ao discordar de Deus, preferi não continuar. Afinal, não sabendo o que ele tinha feito, não precisava discordar, pois, como diz o ditado popular: “O que os olhos não veem o coração não padece.” Então, nada como uma testemunha para me esclarecer aquela impressão que tive na minha breve pesquisa religiosa! As Testemunhas de Jeová tinham toda uma capacidade de discutir de forma até antropológica a Bíblia, e isso me fascinava. Não havia mais festas no Tumba do Mar, e minhas pesquisas cristãs estavam causando certo desconforto à minha mãe. Não que ela me proibisse, mas eu não queria mais ficar dentro de casa quando ela ia incensá-la. Também havia briga quando eu recebia o salário, pois nunca chegávamos a um entendimento de quanto deveria dar a meu pai para ajudar nas despesas. Ele achava que deveria ser tudo, pois eu comia todo dia, e eu achava que deveria ser no máximo 15%. Acho que estava buscando construir meu eu, e provocar meus pais nas suas convicções era um caminho. Isso é normal nos adolescentes, mas minha mãe e minha avó sempre demonstraram uma sabedoria assustadora, mesmo quando eu estava implicando com todos os preceitos do candomblé.


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No dia em que fui fazer um teste de oratória no salão do reino das Testemunhas de Jeová, lá estavam elas no terreno inimigo, com seus melhores vestidos, torcendo por mim. Visivelmente emocionadas ao me ver com roupa social. Aceitei Jeová mesmo com sua ira e sua predileção pelo povo de Judá e tentava cumprir todos os preceitos da minha nova fé. Não comia galinha ao molho pardo, não andava mais nem com meus amigos de cima nem com os debaixo, mas uma coisa me incomodava: o fato de que, segundo meus instrutores, tanto os orixás como os caboclos do povo do candomblé eram demônios. Isso era como dizer que minha própria mãe era um demônio. Eu era muito apegado ao caboclo de minha avó; ele se manifestava sempre no dia 7 de setembro, data do seu aniversário, e eu esperava esse dia como nunca só para ver meu avô Caboclolinho. Mesmo quando pequeno ficava acordado até tarde durante a grande festa de seu aniversário... Como contei antes, na época de meu nascimento a aposta de minha avó, meu avô e meu pai mobilizou a comunidade, mas eu não conheci meu avô Cachoeira — ele se separou de minha avó no meu primeiro ano de vida. Conta minha mãe que a última vez que o viram foi no dia do meu aniversário de um ano. Assim, o único avô que tive foi Caboclolinho, que quando chegava me chamava ao pé de sua tenda e lá me perguntava se eu estava comportado, dava baforada de charuto na minha cara, me dava o abraço e os passes dos caboclos... Era sempre para mim que ele dava seu arco e flecha para segurar, e durante a festa me fazia sambar. Eu adorava meu avô Caboclolinho! Agora imaginem vocês se Freud explica um menino que tinha na avó, uma vez por ano, a figura masculina do avô. No auge de minha adolescência eu estava dividido entre uma religião que me estimulava a pesquisar sobre a história judaico-cristã e a minha religião de berço, com a qual tinha toda uma relação emocional, além da história


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de meus antepassados. Também estava apaixonado por uma menina na escola. Ela era da turma dos Filhos da Marinha. Estudavam muitos deles lá, geralmente vindos do Rio de Janeiro. Eles iam para a escola no ônibus da própria Marinha, pois moravam longe, na Base Naval. Eram legais e não se dividiam por classe social nem étnica. Eu era muito próximo dessa turma, e já era a segunda menina dos Filhos da Marinha por quem eu me apaixonava. Eu estava em apuros, pois, trabalhando como faxineiro no hospital da Marinha, temia dar de cara com ela na hora da visita. Ainda mais porque tinha inventado toda uma história para explicar porque eu estava deixando de estudar no turno da tarde para ir estudar à noite. Todos os meus amigos tinham planos, alguns só ficariam naquela escola até a oitava série ginasial, depois mudariam para uma escola particular. Eu também tinha o meu. Eu e André queríamos ser psicólogos, já tínhamos feito um acordo, mas veio o emprego... Só poucos sabiam o verdadeiro motivo da minha mudança de turno. Aquilo era uma tortura para mim. Só pensava na menina, chegava a ter visões dela vindo toda arrumada e me flagrando naquele uniforme azul de faxineiro... Bom, com o tempo fui relaxando. Já fazia três meses ou mais que não via a turma da escola, exceto André e o pessoal que morava ali por cima, pois era perto do salão das Testemunhas de Jeová. André, Branca e Paulo, como eram os amigos-irmãos, eram pacientes e aceitavam esse meu novo estilo. Às vezes ainda tínhamos uns papos legais, pois em outras épocas eu e André éramos ateus e Branca e Paulo, católicos. Eu ficava feliz por revê-los, mas depois batia um sentimento de culpa por ter parado para falar com meus melhores amigos. Uma coisa que ganhei nessa aproximação com a fé ocidental foi a culpa, muita culpa, mas é a vida. Por todo lugar em que passamos, levamos e deixamos alguma coisa, e isso é simplesmente viver.


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Um dia, estava indo limpar um banheiro quando de repente saiu do elevador, junto com mais dois adolescentes e alguns adultos, minha paixão. Eu tive que ser muito rápido: corri e me tranquei no banheiro que devia limpar. Acho que fiquei bem mais de uma hora lá. Depois desci do andar em que estava e troquei com Zaza, uma senhora cinquentona que limpava o segundo andar. Só disse a ela que era um favor e que ficaria devendo a ela. Porém, uma semana depois, não tive a mesma sorte. Estava eu com o rodo e o pano de chão limpado arduamente o piso do corredor quando ouvi sua voz: — Joselito, é voce? Menino, você sumiu!

Eu fui levantando o corpo e os olhos com muita vergonha. Tinha dois rapazes ao lado dela — primos, eu acho —, eram da minha idade. Por um instante pensei que seria ótimo Boi e a galera lá da rua aparecerem ali e quebrarem a cara deles... Os dois bem arrumadinhos ali ao lado da menina mais linda do mundo só para me humilhar... Mas ela parecia não ver o uniforme, estava com um sorriso lindo e tratou de me apresentar a seus pais e aos dois rapazes. Eu tirei a luva e o pai dela apertou minha mão, em seguida os primos também, depois a mãe me beijou carinhosamente. Conversamos um pouco, e ela me explicou que um tio, também da Marinha, estava ali internado. Nunca a namorei nem contei sobre minha paixão por ela, mas em momento nenhum nas três ou quatro visitas que ela fez ao hospital houve indícios de que, se eu realmente quisesse, minha posição de faxineiro fosse atrapalhar. Nunca mais a vi, mas seu sorriso era realmente lindo. A vida no hospital militar era diferente da Central de Abastecimento, pois havia mais disciplina, e o pessoal da faxina era mais cobrado. Tudo era bem organizado, por isso ninguém podia explorar ninguém. Eu também estava mais esperto.


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Como disse, fui posto para cuidar do terceiro andar, onde havia alguns apartamentos individuais e quatro enfermarias, cada uma com uns seis leitos, se não me falha a memória, a sala de enfermagem e os banheiros dos visitantes. Fui colocado para trabalhar com Josefá, uma senhora de uns 30 e poucos anos, e foi simpatia à primeira vista. Ficamos muito amigos; lembro que chegamos juntos e fomos apresentados ao serviço juntos. Josefá ficaria principalmente com os apartamentos em que houvesse mulheres e com a enfermaria feminina; eu ficaria com a enfermaria masculina e com os apartamentos em que houvesse homens. Lembro que, embora estivesse com saudade do meu robozinho aspirador de pó, estava muito motivado, pois o pessoal dizia que a comida da Marinha era melhor do que a de muitos restaurantes por aí. Infelizmente, minha primeira limpeza foi na enfermaria, onde um curativo era feito em uma senhora meio maluca que deixara uma ferida na perna apodrecer. Embora isso tenha acontecido na enfermaria feminina, tive que ir substituir Josefá, porque a pobre coitada saiu de lá botando os bofes para fora. Ao entrar na enfermaria, curioso e assustado, me deparei com o enfermeiro despejando creolina na perna da senhora, de onde, como nos filmes de terror, muitos morotós pulavam. Percebi, ao ver essa cena, como somos frágeis. Fiquei aterrorizado, mas não podia correr como Josefá, pois o enfermeiro, aos gritos, me mandava limpar aquilo. Lembro-me de que, ao chegar no refeitório, horas depois, para almoçar a famosa comida da Marinha, encontrei Josefá saindo correndo de novo com os bofes saindo pela boca, entrei e, para minha infelicidade, mesmo vendo o arroz graúdo que tinha para comer, fiquei ali sem querer comer nada. A pobre Josefá ia ter que se controlar; não ia poder ficar vomitando em cima de tudo. Mas logo depois descobrimos que ela estava grávida.


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Eu e Josefá saímos limpando tudo. Eu, aos 16 anos, muito curioso, queria entender as doenças, conhecer pacientes, e fui fazendo amizades. Fazia pequenos favores aos pacientes, ganhava elogios, presentes e dinheiro de seus parentes, mas a coisa mais valiosa que me davam eram os conselhos. Tínhamos todo o tempo do mundo; eu terminava rápido e ficava de bate-papo. Um senhor que eu chamava de tio e que tinha senso de humor chamava Josefá de comadre e dizia que iam parir no mesmo dia, pois ele tinha barriga d´água e ela estava grávida. Josefá dizia que sabia quem era o pai do filho dela e que ele era sem-vergonha porque não sabia quem era o pai do dele. Era incrível, ele ali deitado doente e me fazendo rir, rir muito. Era um tio maravilhoso! Ele se internava, recebia alta, mas voltava. Também havia outro que tinha um problema que os médicos tiveram que fazer um buraco na garganta dele, e ele falava e comia por ali. Ninguém entendia o que ele falava, então comecei a ler para ele um livro de histórias bíblicas infantis que as Testemunhas de Jeová me emprestaram. Com o tempo, os enfermeiros me chamavam para traduzir o que ele dizia, e ele, mesmo sem voz, me contou que era racista, prepotente, que tratara a empregada muito mal. Ele me deixava dar aulas do livro, pois sabia que eu queria ser instrutor das crianças no salão das Testemunhas de Jeová, e assim eu treinava com ele, que se dizia ateu, mas foi mudando, foi ficando com dúvidas. Sua família ia visitá-lo só aos domingos, mas ele dizia que as filhas que tinham a minha idade não tinham paciência para entendê-lo. Também havia uma senhora que ficava num apartamento e que tinha câncer ginecológico como precisavam de meus favores para comprar coisas no mercado, me aproximei dela e do marido, por meio de Josafá. O marido estava sempre ali; todo dia ia ver a esposa, e ficamos próximos também. Ele me disse


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uma vez que quando eu encontrasse a mulher da minha vida que eu a levasse de seis em seis meses para fazer exames ginecológicos. Não era para ser assim, mas aos poucos fui ficando próximo de muitos pacientes e de seus familiares. Fazia as ligações telefônicas dos pacientes para as famílias quando pediam, fazia operações ilegais como levar absorventes para as mulheres, pois elas não gostavam do que o hospital fornecia. Havia muita cumplicidade com os outros faxineiros, dona Zaza, Seu Zé, Djalma, um rapaz de seus 20 anos, Deci, meu primo, filho de minha tia Elza, também de 20 anos, que trabalhava em outro setor, o pessoal da cozinha, da lavanderia, os fuzileiros e os marinheiros que tinham mais ou menos a minha idade — era como se fossemos colegas. Certo dia, logo pela manhã todos os faxineiros foram para o terceiro andar, para combinarmos um protesto na empresa, pois já estávamos com o salário atrasado havia quinze dias. Mas, mesmo com as agruras da pobreza, éramos bem-humorados. Eu era o caçula, mas tinha uma rebeldia e, juntando isso à maturidade de Josefá, conseguimos fazer a reunião-relâmpago na enfermaria, onde estavam apenas o tio, o senhor com o buraco na garganta e um velhinho que não se mexia nem falava. Foram o tio barrigudo e o da garganta que me incitaram a reclamar do dinheiro atrasado. Assim, fizemos a reunião e combinamos de ir juntos à empresa de tarde para saber o motivo do atraso. Foi tudo rápido, dez minutos, pois logo os enfermeiros chegariam e iriam querer saber o motivo de estarem todos os faxineiros do hospital naquela enfermaria. Bem, o tio fez piada com todo mundo, e dona Zaza, bem velha mas bem desbocada, ficou insistindo para o tio apontar quem era o pai do filho dele. Gastamos mais uns cinco minutos naquela galhofa, até que um enfermeiro chegou e dispersou aquela reunião imprópria.


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Um dia, lá pelas 11 horas, eu já tinha estado com o tio e já tinha rido como sempre, então fui limpar a enfermaria. Era sempre assim; embora eu e Josefá tivéssemos demarcado alguns lugares para cada um, eu limpava mais que ela, pois estava grávida e tinha algumas complicações. Às vezes ela ia trabalhar e a gente deixava ela numa enfermaria. Quando isso acontecia, alguns dos outros faxineiros iam me ajudar, mas naquele dia eu estava limpando a sala de enfermagem e ela, a enfermaria feminina, que ficava ao lado da enfermaria onde ficava o tio barrigudo. De repente, o alarme tocou informando alguma anomalia na enfermaria masculina. Eu não liguei muito, pois aquele alarme disparava toda hora, mas minutos depois avistei Josefá se desmanchando em lágrimas em frente à enfermaria do tio. Vi que algo muito ruim tinha acontecido... Foi muito duro; era a primeira vez que alguém muito próximo morria. Eu tinha falado com ele havia pouco tempo, ele estava alegre, animado... Como agora estava imóvel, coberto com um pano branco? Fui até Josefá; ela estava muito mal. Os enfermeiros cuidaram dela e pediram que parasse de chorar, porque a gente não podia se comportar assim, e avisaram que se isso se repetisse eles iriam pedir nossa transferência. Eu não estava chorando, mas estava triste e assustado. Estava muito assustado com como tudo pode mudar de repente. Então, na hora do almoço, não fui para o refeitório e sim para o alojamento. Eu, Djalma e Deci tínhamos recuperado e limpado o antigo necrotério e ali fizemos um alojamento onde trocávamos de roupa e tirávamos um cochilo durante a hora do almoço. Éramos chamados pelos soldados novos de os três vampiros. Pasmem, mas nossa cama era mesmo na pedra de mármore onde outrora ficavam os defuntos. Mas nem parecia, porque arrumamos um colchão, pintamos as paredes e colocamos um sofá velho, um rádio... Era um cafofo e tanto!


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Lá vivi minha tristeza e chorarei meu amigo sem deixar os enfermeiros verem. Outras mortes vieram, e Josefá chorou escondida como eu fiz na primeira vez. Dessa amizade com os pacientes — às vezes simples marinheiros, outras, de alta patente —, surgiram muitas oportunidades de trabalho fora do hospital, e também muitos presentes. Ao final, com a influência de um deles, fui transferido para o rancho dos sargentos e suboficiais, que era o paraíso em termos de alimentação, e logo fiquei amigo do Fiel, um 3° sargento responsável pela liberação da comida. Havia três ranchos: o rancho dos recrutas até cabos, depois o dos sargentos e suboficias e o das patentes de oficial para cima.


Cap.05


Cap.05

Corações e anjos


Um dia Zaza me chamou durante o horário do almoço para visitar um amigo que estava internado no hospital ao lado, o grande Santa Isabel. Com nossa farda podíamos entrar no outro hospital tranquilamente; ficavam um ao lado do outro. Chegamos à enfermaria e descobri que se tratava de um coroa e que havia alguma coisa entre Zaza e ele. Então resolvi deixar os pombinhos sozinhos e desci para um jardim interno. Estava com o livro de histórias bíblicas infantis — que agora era meu, pois o outro era emprestado, então um dia o tio que não falava me deu um com dedicatória. Ele dizia que ainda não sabia se Deus existia, mas que era só uma questão de tempo, pois já estava perto de descobrir. Para mim, que tinha certeza da existência Dele, aquele livro serviria para eu alegrar outras pessoas com aquelas histórias. Ele já havia morrido e eu sempre levava o livro comigo, pois estava muito novinho e por muito tempo quisera ter um daquele. Estranhamente, havia muitas crianças ali brincando, e eu observei que um menino tinha uma coisa muito estranha perto do peito, algo pontiagudo que estava dentro do seu corpo e que parecia tentar sair. Fiquei muito curioso e perguntei o que era aquilo, e fiquei sabendo que era um marcapasso. Ainda fiquei sem entender... Ele me perguntou se eu trabalhava ali. Quando eu disse que trabalhava

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no hospital ao lado, logo outro menino perguntou como eu trabalhava num hospital e não sabia o que era um marcapasso... Eu até sabia, mas não tinha ouvido falar de menino com isso. Ele tinha no máximo 11 anos. Eles, como se fossem uma junta médica, começaram a me explicar sobre o marcapasso, a doença específica de cada um e as diferenças entre elas, a situação política do Brasil e a razão de Fabinho estar fora do jogo e da conversa — ele tinha tentado trapacear, só queria brincar se fosse a polícia, e eles já estavam cansados disso. Esse Fabinho tinha chegado outro dia e sempre queria tudo para ele. Um deles notou o livro, que era discreto como um pavão com sua capa dura amarelo-ouro com letras vermelhas cintilantes, e logo uma grande roda se formou e eu estava realmente ensinando as tradições judaico-cristãs aos pacientes do setor pediátrico do departamento de cardiologia do Santa Isabel. A Zaza chegou, e estávamos todos empolgados. Tive que ir, porque minha hora de almoço já estava acabando, mas prometi voltar no dia seguinte, e voltei! Sempre depois das 17 horas. Eles estavam espalhados em umas quatro enfermarias; eu visitei cada uma delas e fiz novas amizades. Lembro que minha mãe ficou preocupada e até chegamos a brigar, pois ela temia o motivo pelo qual eu estava matando aula. Muitos daqueles meninos eram do interior. Fabinho foi o único com quem eu não consegui estabelecer uma empatia, talvez por ter ficado sugestionado pela antipatia que o grupo sentia por ele no nosso primeiro encontro. Mas era verdade que ele se comportava de um modo diferente; eu nunca soube direito de onde ele era, mas sempre estava me pedindo coisas, merendas, dinheiro. Era um assédio inconveniente, primeiro porque eu não tinha dinheiro e segundo porque era só bate-papo que


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eu tinha para oferecer. De início, falamos muito do livro bíblico, mas nesse período minha fé abraâmica estava em crise. Eu estava enfeitiçado pelos tambores do Olodum, que emplacou um sucesso nas rádios de Salvador chamado “Protesto Olodum”. O incrível, além disso, foi que um dia, saindo para pregar de casa em casa, numa determinada rua, ouvi que em uma das casas tocava bem alto uma canção dedicada a Bombonjira, Exu para o povo de Ketu. A canção era mais ou menos assim: “Bombonjira de amogongue aia, Oyere, Bombonjira abõmicom...” Não sei como, mas, enquanto falava a boa-nova a uma moradora acompanhado de um membro da congregação, marcava o tempo da música com o pé. O irmão discretamente me repreendeu e depois disse que o diabo estava marcando a música com meu pé. Naquele dia, voltei para casa incomodado. Como vocês já sabem, nasci no terreiro e aquela música foi parte do meu cancioneiro infantil, me trazia paz, me trazia boas lembranças. Não poderia colocar tudo que meus antepassados tinham me dado na conta do diabo! Aquilo não era diabo, era família, era herança! A música do Olodum era herança, o professor Lula era herança, meu avô Caboclolinho era herança, uma herança maravilhosa da mistura dos meus ancestrais africanos e indígenas nos escambos de sangue e cultura que a escravidão e a luta pela liberdade lhes proporcionaram. Como eu poderia dizer que isso tudo simplesmente era coisa do diabo? E Deus seria os colonizadores destruindo, pilhando e escravizando África e América? Eu lia muito na época e estava convicto de que o Deus abraâmico, ou qualquer deus, só poderia ser amor, não ódio, preconceito e vingança. Dias depois desse episódio de Satanás tentar se apropriar do meu pé para marcar uma música, me reuni com os anciões e comuniquei que estava deixando a congregação. Dessa convivência com as Testemunhas de Jeová


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aprendi muitas coisas, como a busca da ética acima de tudo, uma maneira melhor de me vestir e uma boa oratória. Infelizmente, quando alguém se desliga ou é desligado, não tem mais permissão para falar com ninguém de lá de dentro. Mas ainda hoje encontro pela vida essas pessoas que fizeram parte de um momento tão intenso de descobertas e amizades. Alguns transgridem e falam comigo; outros não falam, mas olham com um carinho e uma cumplicidade que são como um abraço; outros simplesmente me ignoram. Eu já tinha aprendido a dar adeus, e não demorou muito para eu perceber que a vida é uma eterna despedida, mas isso não é negativo, pois só nos despedimos daquilo que alguma vez encontramos. Eu prosseguia com minhas visitas ao hospital. Tinha ficado amigo de um rapaz da minha idade, também portador de doença cardíaca, com o qual eu tinha uma proximidade mais adolescente, pois trocávamos revistas pornôs, falávamos de mulheres, ele torcia para o Flamengo e eu simplesmente, Bahia. Não queria ser Fluminense. Os outros meninos diziam que quando eu estava com o Flávio ficava de segredinhos, mas eles tinham entre 9 a 14 anos na maioria e não gostavam ainda de falar de mulher. Bem, ele tinha uns segredos. Um deles, que eu não devia contar para ninguém, era que ele se masturbava de vez em quando, mesmo desobedecendo recomendações médicas. A gente ria muito. Eu dizia: — Rapaz, se eu chegar aqui e te encontrar estatelado segurando a rola, não vou te ajeitar, não, viu? Vão chegar as enfermeiras e vão ver você assim... Acha que só porque você morreu eu vou pegar na sua binga, é? Aí quando eu morrer também e chegar lá no céu, vou ter que meter a mão nos anjos que estiverem cochichando porque você já vai ter espalhado para todo mundo!


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A gente ria e depois batia na madeira da janela, dizendo “Deus me livre”. Éramos adolescentes e a palavra morte, mesmo ali, não parecia crível. Bem, o outro segredo do Flávio não tinha nada a ver com nossas brincadeiras sacanas de adolescentes. E sim com a surpresa que ele queria fazer para o cirurgião que o operaria nos próximos dias. Eu tinha a missão de comprar uma camisa do Flamengo para ele presentear o médico. Era sempre uma angústia quando eu chegava e não encontrava alguém. Às vezes, iam fazer exames e ficavam em observação. Ficávamos todos preocupados. Lembro-me de que depois de um tempo entre altas e retornos, estavam na mesma enfermaria meus melhores amigos. Os outros meninos me conheciam, mas era impossível ficar amigo de todos. Basicamente, fiquei mais próximo de um grupo de uns doze pacientes que se revezavam entre alta e internação. Agora alguns estavam ali. Fernão, meio índio, de cabelos lisos “cortados cuia”, como dizem, tinha 14 anos e morava na Perovaz, em Salvador. Junior também tinha 14 e morava em Coaraci, interior da Bahia. Leonardo tinha 13 e morava em Camaçari; ele tinha febre reumática, às vezes ficava todo molhado, era franzino e tinha a fala por um fio, se esforçava muito para manter o timbre firme, parecia bem doente. E Flávio. Faltava o Maurício, de 13 anos, que tinha o marcapasso querendo sair do corpo, o Fabinho, entre outros. Bem, comprei a camisa. Mas quando cheguei para entregá-la ao Flavio ele tinha ido fazer exames. Procurei saber com a enfermeira o que tinha acontecido e ela me explicou que ele ia ficar por lá para se preparar para a operação. Sempre que eu chegava à sala os outros me olhavam com certa curiosidade e medo de uma notícia ruim, então eu disse que ele estava bem e que logo voltaria.


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Era uma sexta-feira. Fui para casa e não me lembro se foi feriado segunda-feira ou se não fui trabalhar por outro motivo, mas na terça, no fim da tarde, quando cheguei, o leito de Flávio ainda estava vazio. Leozinho, quando me viu, virou para a parede. Fernão baixou os olhos. Só Júnior me olhou fixo. Fui até ele, sentei ao seu lado, ele me ofereceu o suco dele, como sempre fazia, e ficou calado. Todos estavam calados. Eu olhei para a cama de Flávio, Júnior também olhou e continuou calado. Não comunicavam aos meninos quando algum deles morria; as enfermeiras diziam que tinham tido alta, que estavam se recuperando... A certeza só vinha quando as mães se conheciam e, depois de um tempo, comunicavam aos filhos caso eles insistissem em saber, ou quando se internavam novamente e nunca mais reencontravam o amigo. Então, naquele silêncio cheio de perguntas, eu me levantei e fui buscar respostas. Fui à sala de enfermagem e procurei uma enfermeira mais simpática, porque a minha intrusa presença tinha que ser discreta. Ela mandou que eu esperasse, depois pediu que eu fosse falar com o serviço social, mas, quando eu já estava me dirigindo para lá, me chamou. Voltei, e ela me disse que eu precisava ser forte, pois meu amiguinho não tinha resistido à cirurgia. Fiquei atônito, com a camisa na mão. Não podia voltar para a enfermaria — o que iria dizer aos outros? Então fui para casa e só voltei na sexta-feira. Eles não perguntaram, mas pareciam já saber, e dessa vez o motivo de não perguntarem era mais para me poupar. Nos seis meses seguintes, entre altas e internações, perdi mais dois amiguinhos no hospital e sobre os outros fui recebendo as notícias aos poucos. Quando, por último, Junior morreu, não tive mais coragem de seguir Leozinho, e Fernão se mudou para o interior. A última vez em que estive lá foi quando morreu Maurício, pequeno que conhecera na tarde no jardim e que tinha


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o marcapasso externo. Fui todos os dias ao hospital durante os três dias em que ficou em estado grave na UTI, mas infelizmente ele não resistiu. Fui até o seu leito e peguei o dominó que às vezes jogávamos todos. Fui até a enfermaria do Fabinho; não sei se era o momento, mas o senti sereno, os olhos dele brilharam quando viram o dominó na minha mão. Saímos e sentamos no jardim; eu chorava, mas tentava não mostrar a ele. Ele estava tão curioso com o dominó que não percebeu muito; jogamos uma mão, depois me despedi e dei a ele o dominó. Ele me agradeceu e eu fui embora. Meus amigos anjos me ensinaram que a vaidade é uma armadilha perigosa, e eu tenho tentado não esquecer essa lição. Voltei a estudar à noite, mas sempre lembrava de meus amigos. Também voltei a encontrar os amigos da rua de cima, reorganizamos o grupo de teatro e aos poucos voltei a frequentar candomblés de parentes. Para eles, ainda era estranho; acho que não entenderam como eu tinha arranjado tanta briga por outra religião e agora estava ali. Mas eu estava tão feliz, e buscava cada vez mais, além dos ensinamentos práticos, ler livros de antropólogos sobre as religiões de matriz africana. Eram tão emocionantes quanto as histórias judaico-cristãs e ainda eram mais vibrantes por se tratarem das lendas e histórias dos meus antepassados. Sim, pessoal, não falei, mas a leitura sempre teve um papel importante em minha vida. Minha avó lia um pouco, sempre tinha algum folhetim popular por perto, inclusive cordéis. Meu pai lia jornais, claro que sempre dormidos. Só minha mãe não lia e escrevia muito mal o próprio nome. Desde os meus 9 anos eu escrevia cartas para meu pai no Rio de Janeiro quando ia com minha mãe retirar o dinheiro que ele mandava mensalmente pelos


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correios. Sempre gostei de ler. Um dia, no ano de 1983, quando já morava no Jardim Cruzeiro, vinha de um baba, sem camisa e descalço, e quando estava passando pela rua principal uma moça branca sentada próximo a uma Kombi com um toldo branco me chamou. Olhei em volta para me certificar se era comigo mesmo, atravessei a rua pronto para correr se ela tentasse me amarrar e me colocar dentro da Kombi, pois durante toda a minha infância ouvira notícias sobre pessoas que eram sequestradas nos bairros pobres e tinham os órgãos roubados. Um amigo meu, filho de minha madrinha, aceitou bombom de um estranho e sumiu por mais de um ano! Ele era muito próximo a mim, embora fosse dois anos mais velho, e por isso sempre tive muito medo dessas coisas. Bem, me aproximei da moça desconfiado e ela me perguntou se eu não queria um livro emprestado. Foi uma decepção e um alívio ao mesmo tempo. Ela com certeza não ia me sequestrar, mas oferecer livro a um pivete que vinha de um baba; parecia um conto meio sem graça. Eu agradeci e disse que estava indo para casa; ela disse para eu ficar despreocupado, pois não ia ter que ler tudo ali, que eu poderia levar para casa e entregar na semana seguinte. E a situação se transformou em um alívio e em uma oportunidade! Primeiro, porque não ia ter que ficar ali parecendo um besta e servir de bobo para os outros meninos. Segundo porque havia livros bonitos. Quem sabe eu não podia pegar um bem caro e vender? Ela era sedutora; deveria haver uma bibliotecária assim em todo canto. Falava manso, era bonita e dizia que ler um livro era como assistir a televisão, mas as imagens eram bem melhores porque eram coloridas — naquela época isso era uma vantagem e tanto dos livros! Atraído pela simpatia da moça, fiquei olhando os livros; ela me indicou um tal de Tonico, eu acho, de uma coleção chamada Vaga-lume, e disse que era de aventura. Mas eu estava


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buscando um que tivesse um valor comercial maior, até que vi a Bíblia mórmon bem encadernada, com nomes dourados em alto relevo, gordinha e dourada nas bordas das folhas, uma belezura. Eu disse: — Gostei desse!

Ela tentou disfarçar a estranheza e tentou me oferecer outro, mas li o disfarce em seu rosto e insisti que queria aquele. Ela perguntou a minha idade, eu disse que tinha 13 anos. Ela ainda tentou me persuadir com duas ou três revistas em quadrinhos, mas eu estava certo de que ela estava tentando salvar aquele livro porque estava na cara que era um dos mais caros. Ameacei ir embora, e ela acabou aceitando que eu o levasse. Fiquei eufórico! Mas sempre que a gente vai se dar bem algo acontece... Em seguida, ela explicou que para levá-lo eu teria que trazer minha identidade e dar meu endereço. Isso não me amedrontou, fiquei até feliz, pois desde a 5° série já tinha meu documento de identidade, mas nunca alguém havia me pedido. Fui para casa esbaforido, pois, antes da minha aproximação, ela e sua Kombi estavam às moscas. Depois ela começou a ser discretamente observada por outros meninos e meninas, que viram eu me aproximar e não ser devorado. Daí começaram a se aproximar, alguns perceberam imediatamente minha esperteza e todo mundo agora queria um livro de capa dura com as bordas douradas, geralmente livros complexos, sobre temas que não entendíamos. Corri para casa para pegar minha identidade, e minha mãe quis saber para que era, afinal, nunca nenhum menino ali tinha precisado da identidade. Contei tudo atropeladamente, e ela logo veio com uma desconfiança, dizendo para eu ter cuidado, que aquilo era coisa errada... Até hoje é assim nos meios mais pobres, desconfia-se de qualquer um que peça a identidade que não seja policial. Bem, tive que usar


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minha lábia e depois a teimosia para sair como minha identidade de casa. Coloquei um camisa limpa no corpo sujo e nem procurei meu chinelo, saí em busca do meu livro dourado. Quando retornei, já havia meninos retirando livros de capa dura, mas para minha sorte o meu estava lá me esperando. Dei minha identidade e inverti os números da quadra e do lote da minha casa. Saí com a sensação de que tinha me dado bem... Em casa, ensaiei uma leitura do livro dourado, mas fiquei assustado, pois havia uma história que dizia que durante um incêndio alguém havia fugido com aquelas escrituras e era um livro paralelo a outras escrituras. Não sei por que um amiguinho meu cismou que era um livro de bruxaria. Tentei mostrar que não. Nós concordávamos que ele era bonito e que deveria valer alguma coisa, mas, fora meu pai, que lia jornais atrasados, e minha avó, que lia cordéis e uma revista popular com romances picantes, quem do nosso universo saberia o valor daquilo? Bem, Zé Roberto falou demais e logo outros meninos sabiam que eu estava com um livro de bruxaria na mão. Então, antes de a Kombi ir embora, fui lá e troquei pelo Tonico. Costumava ser muito difícil ler aqueles livros feitos para meninos da minha idade. Eu ainda era um analfabeto funcional na escola, mas, não sei como, li em três dias, pulando o que não entendia, fazendo suposições, pois tinha preguiça de ir ao dicionário e, além disso, não tinha um. Na semana seguinte, a moça me fez perguntas sobre o que eu tinha lido e elogiou meu entendimento; acho que ela fez isso só para me incentivar. Enquanto conversávamos, choviam devoluções de livros de capa dura, e a maioria nem queria pegar outro livro, ainda que ela tentasse. Na verdade, houve uma decepção geral, pois não conseguimos nada com os livros. Imaginem se desse um tango no mango e nós conseguíssemos vendê-los! Talvez hoje a comunidade tivesse tráfico de


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livros e não de drogas, mas o fato é que passei a ler muitos livros e depois comecei a entender cada vez mais, usava a intuição e muitas vezes o contexto. O fato narrado dava pistas do significado das palavras, e aos poucos comecei a pesquisar em um dicionário que consegui. Faltava uma parte dele, mas resolvia. Só posso agradecer àquela moça da biblioteca. Hoje em dia, vejo a luta das ONGs para se plugarem na internet, mas acho que uma boa biblioteca ainda faz a diferença.


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Cap.06

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Cap.06

O mundo sem ZĂŠ Bofeia


Entre os 15 e os 17 anos tudo mudou muito rápido para mim, pois de estudante passei a trabalhador de carteira assinada. Lembro que um dia o prédio do IBGE alagou e a nossa empresa colocou todo seu efetivo para ajudar. Nesse dia, pela primeira e única vez, trabalhei com meu pai; depois ele saiu da empresa. Era uma firma muito esperta, dessas que nunca recolhem a contribuição do INSS e depois vão à falência deixando os funcionários na mão. Como meu pai começou a ter problemas de saúde e isso poderia denunciar a falta de contribuição deles caso ele precisasse ficar afastado sob os cuidados do INSS — acho que a essa altura o amigo dele não trabalhava mais na empresa —, e ele foi demitido. Meu pai era muito corajoso. Mesmo com problemas de saúde, ele comprou uma caixa de picolé e passou a vender todos os dias. Então nessa época todos lá em casa trabalhavam um pouco: eu com carteira assinada, meu irmão de 14 anos em um ferro-velho, minha irmã gêmea como manicure e minha mãe lavando roupa e fazendo faxina. Não havia mais espaço para eu brigar pela porcentagem da minha contribuição; eu entregava todo o meu salário à minha mãe. Meu pai também sempre agiu assim. Até meu vale-transporte eu dava. Saía de casa às 4h50 e andava do Jardim Cruzeiro até Nazaré. Eram uns 8 quilômetros, mas a economia servia para o café da manhã. Para mim era até legal, só era ruim quando chovia. Eu tinha que chegar no hospital às 6h40, e precisava andar ligeiro — aliás, isso é algo que

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herdei de meu pai: ando muito ligeiro. Certo dia, despertei com minha mãe me chamando desesperada. Pensei que tivesse perdido o horário para ir andando, mas ela gritava e eu, ainda despertando, não entendia. Até que entendi que ela dizia algo sobre meu pai: — Pim, meu filho, corre pelo amor de Deus que seu pai tá mal!

Corri para o quarto e ainda tentei ressuscitá-lo com massagem cardíaca. Eu estava em cima dele, minha mãe e minha irmã gritando, e mandei meu irmão correr para a casa de meu tio que morava nas proximidades, mas percebi que ele dera um suspiro forte e não se mexia mais. Minha mãe e minha irmã gritavam desesperadamente e eu vi meu pai ir embora ali nas minhas mãos; não consegui ajudar. Fiquei olhando aquilo, parecia um pesadelo. Vizinhos chegaram, a casa ficou cheia, uma confusão, minha mãe passando mal. Eu tive que cuidar de tudo. Meu tio não estava em casa, então saí com o vizinho para cuidar do enterro. Voltei mais tarde, eu mesmo o vesti, coloquei um conjunto quase cáqui do qual ele gostava — ia sempre aos sábados ao Baile dos Coroas com ele —, penteei seu cabelo e, com a ajuda de meu irmão de 14 anos, de alguns vizinhos e do agente funerário, coloquei ele no caixão e fomos na Kombi com o corpo para o velório. Não saí de perto dele até o momento do enterro. Eu achava que era um felizardo, pois, mesmo com toda a pobreza, tinha minha mãe e meu pai por perto. Ele era tão engraçado, sempre estava de bom humor. Lembro que, quando eu era menor, ele teve uns problemas gastrointestinais e, quando ia ao banheiro de nossa minúscula casa nos barracos-palafitas, corríamos os três para ficar bem perto e rir das sonoras flatulências que ele soltava. Ele ria e dizia que íamos ficar velhos cedo, pois era o que acontecia com quem ria do peido alheio. Era


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tão divertido. Ele sempre trazia presentes do Rio para a gente e, claro, cadernos e canetas de lá. Eu adorava quando ele penteava meu cabelo para eu ir para a escola; eu sempre fazia um escândalo, mas gostava. Ele segurava meu queixo com força e desembaraçava o danado. Uma vez, teve de viajar às pressas para o Rio, saiu de madrugada, e quando acordei fui falar com minha mãe: — Mainha, sonhei que meu pai entrava no quarto, me dava um beijo e saía.

Então ela me contou chorando que ele teve que viajar às pressas para o Rio por motivo de doença de uma de suas irmãs. Eu estava com medo, estava inseguro, me sentia com o mundo nas costas, pois todos os homens adultos da rua sempre me diziam que eu não era mais um menino, era o homem da casa. E me tratavam assim. Era estranho ver aqueles homens me olhando com tanto respeito, mesmo quando eu ia conversar com seus filhos coisa de adolescente em suas casas. Meu pai deixou como herança a caixa de picolé, o dinheiro exato para o ônibus do dia seguinte e o sentimento muito forte de que eu tive um pai, algo de que nunca tinha me dado conta, mas que a maioria dos meninos lá da rua não tinha. Alguns tinham pais cachaceiros que talvez fosse melhor não ter, ou tinham pais birrentos, violentos, espancadores. Meu pai foi simplesmente um pai, coisa para medalha no velho Alagados. — A vida já era dura com Zé Bofeia, porém sem ele tudo ficou desequilibrado. Ficamos muito unidos, minha avó ajudou muito e foi morar com a gente. Ela, sozinha e doente, acabou vendendo a Tumba do Mar para minha prima adventista, que a dividiu em várias casas para alugar.


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Quatro anos após a morte do meu pai, eu havia experimentado a vida dura de ter que sustentar a família e já tinha tido diversas profissões. Seis meses depois da morte dele, deixei o trabalho no hospital e fui trabalhar como balconista numa loja de eletrônica. Fui vendedor de revistas como Isto É, garçom numa pizzaria, padeiro e confeiteiro numa empresa de massa folhada. Inicialmente, parei de estudar. Estava no segundo ano de administração de nível técnico, o que equivale ao 2º ano do ensino médio hoje, mas tinha que ganhar dinheiro, então lavava os carros dos tenentes da Marinha, mesmo depois de ter deixado o trabalho. Com o tempo, as coisas foram se normalizando, reencontrei os amigos do teatro, reabilitamos o grupo, e agora havia pessoas da parte de baixo também. Pelo menos três dos meus amigos de baixo haviam morrido como consequência do envolvimento com o tráfico, outros estavam virando pais precocemente, alguns eram só desocupados largados à própria sorte e apenas um número bem reduzido estava, como eu, sobrevivendo. Simplesmente sobrevivendo.


Cap.07

Um homem da lei



Uma boa notícia dessa época foi que voltei a estudar. Fazia um supletivo. Esse curso ficava no centro da cidade e, um dia, quando me dirigia para lá, ao passar na Praça da Piedade, encontrei um senhor com algumas crianças de rua pedindo dinheiro para iniciar um curso profissionalizante. Ao receber o cartaz da mão de uma criança, perguntei do que se tratava, e ela me explicou que morava na rua e estava junto com aquele senhor e outras crianças. Eles haviam invadido um galpão velho na cidade baixa e tentavam reformar o local para as crianças de rua terem um futuro. Naquele dia, eu tinha o equivalente a 120 reais para efetuar o pagamento da mensalidade da escola, mas fiquei comovido com a situação e a desenvoltura do menino, doei 60 reais àquelas crianças e prometi passar lá, pois poderia dar aulas de teatro e ensinar a fazer pão. Contei ao dono do curso o que acontecera e ele foi compreensivo, porém me advertiu de que havia muitos picaretas se aproveitando das crianças para ganhar dinheiro. Como as instalações eram perto de onde morava, eu poderia dar um pulinho lá para verificar a veracidade da história. E me deu quinze dias para eu levar os 50% que faltavam da parcela daquele mês.

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Eu estava trabalhando, estudando e com umas paqueras. Assim, não sobrava muito tempo em casa e, infelizmente, por isso não acompanhei a educação de meu irmão Bira, o caçula, que meu pai deixara com 7 anos e que já estava com quase 11, mas fiquei sabendo que minha mãe o matriculara num curso profissionalizante oferecido por um homem que passou pelo bairro. Ela temia muito pela sorte do caçula, pois não havia o pai para discipliná-lo e também não existia mais o terreiro Tumba do Mar, onde as crianças eram criadas na coletividade, só havia pobreza, violência e muita droga. Num domingo, meu irmão caçula reclamou que no curso algumas crianças estavam fumando um cigarro diferente e cheirando cola. Isso me preocupou e resolvi visitar o tal curso profissionalizante em que minha mãe o matriculara. Para minha grande surpresa, o curso era o mesmo para o qual eu doara os 60 reais, e um dos fumantes do cigarro diferente era exatamente o menino que me convencera a fazer a doação, apelidado de Dendê. O que eu encontrei funcionando não era bem uma escola e sim um antigo mercado municipal abandonado que um senhor chamado Luis Antonio havia invadido e enchido de meninos de rua. Numa ideia inusitada, ele os tinha misturado com meninos das comunidades adjacentes. Quando me identifiquei como o rapaz da doação da praça e como irmão mais velho de um dos alunos, deixei claro que primeiro teria que tirar meu irmão dali imediatamente, mas que estava me voluntariando para aos sábados e domingos ajudar no que fosse necessário para o projeto. Nunca consegui fazer um pão naquela estrutura inadequada; não havia cozinha no local apenas um fogão improvisado. As aulas de teatro tampouco aconteceram, pois os meninos eram tão inquietos e dispersos que o máximo que eu consegui foi ser um monitor da escola




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de quando em vez para que o senhor responsável tivesse um descanso. Porém, nesses momentos, os meninos me contavam histórias, histórias fantásticas de assalto, estupro, morte, vida familiar, fugas, transas, meu Deus, que intensidade, que liberdade havia entre eles! Ao final, resolvi escrever uma peça para nosso grupo de teatro, que àquela altura estava meio moribundo. Daí surgiu o espetáculo Balada dos pivetes que contava a trajetória de duas crianças desde a saída do lar até se tornarem realmente meninos de rua. O objetivo do espetáculo era apontar as múltiplas situações que levavam as crianças à, de rua. Em uma das apresentações feitas no bairro do Uruguai, havia uma equipe da filial da Rede Globo, a TV Bahia, que foi fazer uma matéria sobre a violência no bairro. Ao ser entrevistado, um dos moradores se referiu ao espetáculo, que tinha visto um dia antes e que estava sendo reapresentado naquele momento. Então a equipe de reportagem resolveu cobrir o espetáculo, e ele acabou sendo exibido no jornal local, visto em toda a Bahia. Assim, de uma hora para outra, fomos chamados para apresentar o espetáculo em instituições, associações de moradores e até no interior da Bahia. Na vida, às vezes acontecem coisas e não sabemos explicar como, só podem ser resultado do acaso. Eu continuava a ajudar o seu Luis, que não era nada ortodoxo na forma de atuação com os meninos. Ele mesmo tinha sido um menino de rua e, como acabou aprendendo vários ofícios e se tornou razoavelmente bem-sucedido, acreditava que trabalho e disciplina transformariam aqueles meninos. Havia muito amor nas ações dele, mas algumas coisas que podem ser empregadas numa época são complemente condenáveis em outra, e ele insistia em aplicar os métodos que aplicaram nele mais de 40 anos antes, e,


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sentou a mão num menino. O menino se queixou no juizado e eu, que era voluntário na instituição, fui chamado para depor. Fiquei assustado, mas, antes mesmo da data do meu depoimento, recebi um convite do departamento social do juizado para ir falar um pouco da peça teatral. Ao final das duas coisas, depoimento e entrevista, surgiu uma relação de cordialidade com alguns funcionários. Um dia, recebemos uma doação de 1.000 peças de roupa da ACBEU (Associação Cultural BrasilEstados Unidos) e, após a apresentação da peça, acionei o juizado para buscar uma parte das roupas para o CEAMAC (Centro de Apoio ao Menor e Adolescente Carente), pois, a essa altura, eles já haviam notado que, embora fosse durão, seu Luis era boa gente e só precisava de capacitação para poder ajudar melhor nas questões das crianças e dos adolescentes. Uma das coisas marcantes foi que só havia uma Kombi disponível, então a chefe do setor, doutora Sara, o motorista da Kombi, seu Paulo, e eu tivemos que subir três lances de escada carregando todas as roupas. Fiquei muito feliz por me deparar com aqueles funcionários públicos que ainda estavam comprometidos de verdade com seu trabalho. Eu, que na maioria das vezes tivera experiências que reforçavam a ideia de indiferença, aos 21 anos passei a ser comissário de menores da comarca de Salvador. Foi como se me nomeassem delegado no bairro! Tudo que envolvia crianças ia parar no meu frágil barraco de madeirite, que estava cada vez mais longe daquele lindo portfólio da Amesa. Então eu agora trabalhava como padeiro, à tarde era comissário de menores e fazia teatro na comunidade.



Cap.08

Nascimento do Bagunรงaรงo


No final de 1991, eu seguia minha vida, trabalhando pela manhã na empresa de massa folhada, à tarde no juizado de menores e mantinha o grupo de teatro ativo. Estava preparando um espetáculo chamado O julgamento de Papai Noel que tratava da questão das muitas crianças que não recebem presente no Natal. Um dia, ao retornar do trabalho no juizado, uma vizinha muito próxima chamada dona Teresa me contou a novidade, como acontece sempre entre vizinhos quando há algo novo, quer seja uma coisa pública, quer seja melhor ainda, quer seja da vida particular de alguém da proximidade. Fiquei interessado e curioso, então ela passou a falar sobre uma meninada que se juntava havia alguns dias e tocava latas nas tardes e noites. Como eu era quase da família e vivi toda a adolescência na casa de dona Teresa com seus filhos, era certo passar na sua casa primeiro, antes de chegar na minha, e assim a cada dia eu ficava atualizado do desenvolvimento da coisa. Lembro que um dia o som da banda parecia ter triplicado; eu estava sentado no barraco de dona Teresa e assistia a sua agonia tentando assistir à novela das 19h. Soube no outro dia que durante o Jornal Nacional e a novela das 20h a coisa ficou feia, pois o som aumentou mais, e eles estavam tocando até depois das 22h. Por se tratar de um bairro horizontal, com casas de madeirite, o som se propagava para bem longe. 108


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A coisa foi piorando e, por meio de dona Teresa, fui acompanhando. Segundo ela, não se falava de outra coisa. Alguns, embora se sentissem incomodados, achavam melhor que eles estivessem ocupados, mas a maioria queria mesmo seu sossego de volta. Assim, à medida que o sucesso deles foi aumentando, as atitudes de intolerância também foram crescendo. Um dia, dona Teresa me contou que uma senhora, desesperada, havia jogado água de roupa suja neles. Depois uns meninos maiores, provavelmente a serviço do senhor da quitanda (agindo como jagunços), haviam passado em duas ou três bicicletas atirando ovos podres neles. O que mais me impressionava era a persistência daqueles meninos, pois nada diminuía a assiduidade nem a pontualidade dos ensaios. Uma vez, novamente minha informante me contou uma história inusitada: a banda já entrava pela novela das oito, tocando sem parar, quando a vizinha ao lado, morrendo de dor cabeça e desesperada, pediu ao filho que fosse lá e comprasse o silêncio da banda com uns trocados. Foi uma medida eficaz: eles interromperam o ensaio, respeitando a dor de cabeça da vizinha, e receberam seu primeiro cachê. Não vamos nos fixar no detalhe de que foi para parar de tocar, pois detalhes são apenas detalhes... Mas um dia comecei a me preocupar, pois soube de minha competente informante, enquanto tomava um café e comia um pão com manteiga (o que era mais que chique, pois na maioria das casas havia apenas margarina, quando não era pão seco mesmo — minhas passagens na casa de dona Teresa eram regadas a um lanchezinho antes de chegar em casa), com certa tristeza, que houve distribuição de cascudos, tapas e pedradas quando um grupo mais exaltado de moradores tentou interromper o ensaio antes da hora. Parece que os meninos revidaram


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com violência à tentativa truculenta de interromperem sua sagrada atividade e continuaram a batucada metros adiante para mostrar que não aceitavam desaforo. — Verdade seja dita, não acho que dona Teresa tinha legislado em causa própria quando, com todo cuidado, sugeriu que eu interviesse, pois eu era um agente do poder judiciário, e ela temia que o tempo fechasse por aqueles dias. As mães dos meninos já vociferavam: “Ai de quem tocasse num fio de cabelo do filho delas”, e as pessoas incomodadas já se organizavam para fazer alguma perversidade contra a turma da lataria. Claro que eles já haviam sido ameaçados por alguns vizinhos que disseram que chamariam o juizado de menores. E a conversa que tive com dona Teresa, e que foi assuntada por Neves, vizinha que morava ao lado, logo se espalhou, naturalmente, com versões variadas, a maioria com pitadas de ação da SWAT, pois na cena eu chegaria com a “Galinha Preta” (apelido que meninos de rua davam à Kombi de cor preta que pertencia ao juizado) e recolheria eles para um reformatório qualquer. Naquele período eu senti que, ao voltar do trabalho, as pessoas nas mesas de dominó e as vizinhas que varriam suas varandas me olhavam com cumplicidade, pois, como me tinham me visto assuntando, espreitando a molecada de longe, estavam certos de que a solução viria através de mim — eu seria o remédio para o calvário deles. Realmente, na fase mais tensa da contenda, passei a observar os meninos. Eu passava rapidamente na casa de dona Teresa e logo me dirigia para um poste apagado do outro lado da rua, perto do portão da Escola Santa Bárbara. Dali podia observá-los com tranquilidade, pois, como disse antes, os poucos vizinhos que me viam


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naquela situação tinham uma atitude cúmplice, ansiosos pelo momento em que eu daria o “bote”. Após alguns dias de observação, logo identifiquei os componentes da batucada. Percebi que um deles, Leilson, parecia liderar e que meu irmão caçula, o Bira, então com 12 anos, às escondidas também participava daquela confraria músico-marginal. Dava para notar que as latas, como os tambores de candomblé, levavam os tocadores a uma espécie de transe e os transportavam daquele terreno baldio e fétido para um palco bem iluminado. Acendiam neles a luz da beleza ofuscada pela pobreza. Faziam com que encontrassem seus ancestrais nas tribos africanas e/ou indígenas — nos seus dias mais belos de agradecimento. Rapidamente os projetavam para o futuro, para uma sociedade igualitária, humanista e com uma percepção jamais imaginada, na qual os seres humanos teriam a consciência bem desperta em relação ao nosso ecossistema. — Numa dessas observações, eu, que já estava encantado com os sonhos deles, com sua capacidade lúdica de ter tantos sonhos em meio a tanta pobreza material, fui tocado pela força da percussão. O som também me fez transcender e fui abduzido para dentro daquele sonho de menino, vestido de branco, com aqueles “êres-tata” e seus ancestrais (que vieram da África, de Cuba, do Haiti, de todos os lugares para onde os negros foram levados como escravos) que ali foram festejar e me passar o Decá. Da mesma forma que era costume nos terreiros um(a) filho(a) de santo ser escolhido(a) e emancipado(a) por pai ou mãe de santo e assim sair para criar seu próprio terreiro, ou como numa colmeia, que, ao crescer, precisa deixar nascer outra rainha para dividir o enxame e dar continuidade ao ciclo da vida.


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Pois ali estavam os “tatas-mirins” que tiravam as cantigas para os inquices e caboclos. Assim, ao atravessar a rua, soube que meu pai Ogum me pegara pela mão e me levara até aquelas pequenas criaturas encantadas, maltrapilhas e bagunceiras. E naquele momento eu soube que, como irmãos, deveríamos cuidar uns dos outros. Porém, os olhos comuns naquele entardecer de verão iriam narrar que, após observá-los por alguns minutos, eu simplesmente atravessei a rua, e que, ao me ver, os meninos pararam de tocar, engoliram a saliva e pensaram: “Reformatório, aí vamos nós.” Cada um escolhe a versão que melhor lhe convier. Enquanto isso eu, que não tinha tempo a perder, tratei de me apresentar, quebrar a tensão, explicar que, embora fosse do juizado, não havia problemas, pois o nosso trabalho, longe de ser caçar menino, era proteger. Na verdade, eu estava ali como vizinho, queria me reunir com eles para explicar melhor e deixei escapulir que sabia que Bira, meu irmão, também andava com eles. Nós precisávamos de um local para uma reunião, mas quando as pessoas ficavam sabendo que seriam os meninos da batucada, educadamente arranjavam uma atividade para a mesma data que eu estava solicitando. Qual não foi a decepção do povo do dominó e das varredoras de varandas, que davam sorrisinhos agradáveis e acenos gentis e que por um tempo guardaram em absoluto segredo as minhas observações discretas atrás do poste de iluminação apagado da Escola Santa Bárbara. De certa forma, foram traídos ao ver a lei, ou melhor, o homem da lei, passando acompanhado daquela pivetada barulhenta, com uma lata e uma descarga plástica de banheiro, procurando um lugar para se reunir. Acredito que o alívio imediato de não acontecerem mais os ensaios das 18h até altas horas me livrou de uma incredibilidade irrecuperável.


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Foi aí que eu lembrei da paróquia de São Jorge, do padre Clóvis, e o procurei. Posso dizer que a recepção não foi muito empolgada, pois padre Clóvis estava ocupado escrevendo um documento importante e teve de fazer uma pequena concessão para me receber, embora continuasse a escrever seu documento e só depois de me ouvir explicar tudo tenha levantado a cabeça, olhado fixo nos meus olhos e dito: — Tudo bem, desde que não seja na hora da missa, pode trazê-los.

No 20 de dezembro de 1991, os meninos e eu nos reunimos na sala três do centro comunitário da paróquia de São Jorge às 19h. Notei que havia mais meninos do que o número que eu contara na rua durante minhas observações, mas tudo bem. Compareceram Leilson, Tata, Folha, Mar, Jorginho, Sergio, Caboco, Zé, Babau, Fau, Nildo, Nego e Jean. A reunião transcorreu normalmente. Bem, é melhor falar a verdade: os meninos, embora respeitassem a minha posição como comissário de menores, acho que já sentiam que na verdade estavam diante de um irmão mais velho, de um vizinho comum ou de um colega dos irmãos mais velhos deles. Eles estavam muito à vontade — à vontade demais, para ser claro —, faziam brincadeiras e muita gozação. Acostumado a essas atividades com crianças chamadas “difíceis”, não me incomodei com a desordem e consegui administrar bem a reunião, durante a qual fizemos uma votação para escolher o nome da batucada, que, depois de calorosas discussões, passou a se chamar Bagunçaço. Bem, sou obrigado a falar mais sobre a escolha do nome, pois era normal que as crianças absorvessem os nomes pejorativos que a comunidade dera a eles. Assim, depois de me apresentar, comecei tentando entender como tinha começado a batucada.


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Segundo os meninos presentes, Leilson havia assumido a liderança depois que Sinval fora preso por furto e recolhido num reformatório. Ele e Sinval tiveram a ideia de pegar uma descarga velha, uma lata e começar uma batucada. No início, eram, Sinval e mais três, pois, como ele era considerado um garoto-problema sem recuperação, as mães não deixavam os outros se juntarem a ele. Quando Sinval foi preso, Leilson ficou sozinho, pois o outro menino que era parceiro de Sinval na atividade “alternativa” que culminara na prisão estava foragido. Leilson herdara de uma hora para outra uma lata de querosene velha e uma descarga sanitária, e logo chamou Osmar, mais conhecido com Mar, que morava na casa ao lado da sua, e continuaram a banda, ou melhor, o duo, pois antes era um trio. Com a saída dos mais desprestigiados pelas mães, outras crianças foram se chegando, e já eram uns oito no momento em que comecei a observá-los. Com a explicação dele, fui entendendo por que no começo a coisa foi tratada como pitoresca pelos vizinhos, afinal, três meninos não faziam tanto barulho assim. Mas, com a saída de Sinval e a liderança de Leilson, a coisa cresceu e passou a ser um incômodo. Naquela reunião, entre uma brincadeira e outra, fiquei conhecendo mais ou menos a vida deles, pois costumam debochar da família uns dos outros: tinha pai alcoólatra, mãe solteira amasiada com vizinho já casado, pai preso... Tudo vinha à tona nas brincadeiras. Então, como dizia antes, eles queriam se chamar “Bagulhaço”, “Badamaço”, “Morre de fome , mas não trabalha” e toda sorte de palavrões com que eram xingados pela comunidade. Eu fui colocando os nomes sugeridos no quadro-negro e, por fim, vendo aquela algazarra, sugeri Bagunçaço.


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— Na votação, Bagunçaço começou a tomar distância dos outros nomes, houve um começo de confusão, pois uns três achavam que a maioria tinha escolhido o nome que eu sugerira para puxar o meu saco, mas eles mesmos contornaram a situação e Bagunçaço foi eleito com maioria esmagadora. Outras reuniões foram marcadas, e a cada reunião o número de meninos aumentava. Estava claro para mim que eles precisavam de muita atenção para terem disciplina e aprenderem a produzir em grupo. Algo muito bom aconteceu quando resolvi ler um pequeno livro infantil e os convidei para criarmos uma peça teatral baseada na história. Embora seduzidos pela história, ficaram se entreolhando como se soubessem de algo que eu não sabia. Depois, em casa, meu irmão me contou que eles estavam receosos de fazer a tal peça, pois teatro não era coisa de menino e sim de bichinhas e meninas. Na verdade, havia um encantamento mútuo entre mim e eles. E, depois de muitos argumentos, consegui convencê-los. Eles, com cara de quem estava indo para a câmara de gás, resolveram fazer a peça com a condição de ninguém do grupo comentar com outros meninos e de nunca se apresentarem em público. Nas três semanas seguintes, as crianças foram expostas aos exercícios de teatro que os ajudaram a ter uma forma mais afetiva no contato uns com os outros, e seus personagens, lua, sol, lenhador, carneiro, entre outros, foram sendo adotados por eles, que já não estavam tão resistentes, a ponto de comentarem que era uma brincadeira legal aquela coisa de teatro e já estarem entusiasmados para mostrar aos pais e a outros moradores. Estavam mais concentrados e tranquilos, mas notei também


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que já havia três semanas que eles não tocavam mais nas latas. A comunidade sentiu a ausência dos meninos. Dona Teresa, como sempre, era meu termômetro, e até ela, que havia me induzido àquela situação, veio me perguntar o que afinal eu tinha feito com os meninos. Foi então que percebi que tinha quase matado a banda de lata, pois a transformara numa companhia infantil de teatro. Mas foi um desvio proveitoso. De qualquer forma, solicitei que eles trouxessem a lata e a descarga, e, dentro do espaço da paróquia, muito baixinho, retomamos os ensaios da banda. E, claro, a peça se transformou num musical. — Organizamos depois uma ida ao lixão da cidade, pois precisávamos de mais latas e descargas, já que na formação deles ainda se mantinham a lata e a descarga herdadas da gestão Sinval. Não fomos todos, foi feito um sorteio, assim, além de vivenciar uma realidade cheia de moscas no meio do lixão, conseguimos catar latas e descargas sanitárias plásticas para cada componente da banda. — Já havia uma aceitação da vizinhança, pois era mais que notável a mudança. Eles só tocavam na rua com hora marcada, geralmente entre as 17h e as 18h, mas a banda sofria uma dura implicância das meninas da mesma faixa etária. Elas chamavam eles de bagulhaço e eram muito boas em desviar dos objetos arremessados por eles, acho que por conta de jogarem baliô. Mas não jogavam pedras tão profissionalmente como eles, acho que por causa do baragandão. Explico: nessa idade as meninas brincam muito de baliô, que consiste em ter dois times que tentam acertar uma bolada no adversário, e os meninos, de baragandão, que consiste em uma pedra


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presa a uma linha. O jogo pode ter dois ou mais participantes, que atiram suas pedras no ar simultaneamente e tentam cortar a linha do adversário quando esticam suas linhas novamente, usando para isso a força do esticão e o peso da pedra. Dessa vez, dona Tereza não teve nada a ver com a informação, os próprios meninos me informaram da guerra de xingamentos e pedras que causou baixas em ambos os lados. Reuni a banda e soube da insatisfação deles em relação à forma jocosa com que as meninas tratavam a banda. Depois falei com algumas meninas. Thyá, irmã de Mar (seu nome verdadeiro era Eunice), e Leide, que chamávamos de Dengo, eram as lideranças femininas. Embora não tivessem uma explicação para tratar daquele jeito a banda, disseram que o som até era bom, mas que eles eram muito chatos. Então marquei uma reunião entre todos. Inicialmente, os meninos resistiram muito, e quando, ao final da reunião, as meninas foram admitidas como dançarinas da banda, alguns ameaçaram sair do grupo. A chegada das meninas, embora a contragosto de alguns, foi muito importante, pois trouxe mais candura às nossas reuniões. Os meninos deixaram de brigar entre si, pois tinham que se unir contra as meninas, tentavam ter o mesmo nível de concentração que elas, passaram a tentar cuidar mais dos instrumentos... Virou uma espécie de gincana para ver quem era mais organizado. De início, elas ensaiavam secretamente na casa de uma delas e não iam muito às reuniões que não fossem ali mesmo na rua, às vistas da família. Os meninos tinham a vantagem de estarem soltos e poderem ir aonde queriam. Nas reuniões, eu discutia vários temas antes do ensaio. Os temas eram escolhidos pelas demandas do cotidiano. Lembro que uma vez um dos meninos chegou todo quebrado, o rosto arranhado, um braço fraturado,


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hematomas por todo o corpo. Perguntei se tinha caído da bicicleta, e todos riram e logo me explicaram que a bicicleta era o braço da mãe dele. Nesse dia, acabei discutindo violência e o novíssimo Estatuto da Criança e do Adolescente. Expliquei que violência daquele jeito não era possível, que ele poderia ter batido a cabeça, e um colega em tom de gozação, disse que foi o que ele mais fez. Outro logo soltou uma gracinha, dizendo que a mãe do pobre coitado tinha até ritmo. Minhas palavras sobre o estatuto ecoaram nos quatro cantos. Os meninos chegaram em suas casas dizendo que agora tinham direitos e que se apanhassem poderiam dar queixa, que eu era polícia e por aí vai. A coisa virou boato e começou a tomar proporções inimagináveis. O irmão de um menino veio me avisar que era para eu parar de falar besteira para o irmão dele, pois o pai já havia advertido que não só continuaria castigando o filho, como também quebraria a minha cara. Nas reuniões seguintes, alguns meninos deixaram de ir e foi a maior confusão. Fui a algumas casas e tive que falar pouco e ouvir muito; os pais estavam indignados, a mãe do menino do braço quebrado nem falava mais comigo, nem deixava ele ir ao projeto. Eu tive que ir reconquistando os meninos aos poucos e suas famílias também. No meio dessa confusão, estava eu, um dia, esperando eles para uma reunião quando uma moça linda apareceu, uma deusa de ébano, de sandálias lilases, cinto lilás e prendedor de cabelo lilás. Era a irmã mais velha de Osmar, o Mar, que tinha ido me conhecer, pois Mar não estava mais comparecendo às reuniões depois que chegara em casa falando da nova lei. Ela era uma graça, eu tinha 21 e ela 19, estava se formando professora e, depois de conversarmos um pouco, expliquei o que dissera e que talvez tivesse exagerado por ter ficado indignado com o estado em que se encontrava o menino.


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Falei da dificuldade com as meninas, e ela ficou tentada a ajudar, pois gostava de dançar e poderia orientá-las. Ao final, prometeu me ajudar com a preparação das reuniões para saber como abordar alguns temas sem exagerar. Em pouco tempo, eu e Claudia — Bia era seu apelido — estávamos juntos trabalhando com as meninas e os meninos. Bia estava saindo de um noivado, e eu já com os quatros pneus arriados por ela. Como ela estava saindo de uma relação, tentava ser o mais formal possível, mas as meninas e alguns meninos notaram e resolveram dar uma de cupido. Eles sempre olhavam para a gente com um risinho no canto da boca e às vezes faziam desenhos de corações com nossos nomes; ficávamos sérios, mas todos riam no final. Bem, as crianças, na sua infinita luz, têm a generosidade de anjos, e sempre me traziam notícias sobre o noivado de Bia e, claro, como Osmar e duas irmãs, Thyá e Tita, também estavam no grupo, acredito que tornaram a vida do ex-noivo um caos. Por fim, namoramos e cuidamos do Bagunçaço. Ela, sem dúvida, trouxe a organização pedagógica de que precisávamos! Agora, com uma mocinha formada professora, as famílias deixavam as meninas participarem mais das atividades. Acho também que a fofoca de que ela havia terminado um noivado e estava me namorando substituiu a de que eu ficava colocando ideias absurdas na cabeça dos meninos. Como não havia sede e a casa de Bia era umas das poucas de alvenaria e de dois pavimentos, no andar de cima fazíamos o reforço escolar e guardávamos os instrumentos. Então, aquela tornou-se a nossa sede informal.


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Cap.09

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Aconteceria em Salvador um Congresso Internacional da Igreja Anglicana, Alagados foram colocados como pauta para um turismo social. Parte dos congressistas faria uma visita aos Alagados e algumas entidades locais se organizaram para recebê-los. Assim, ao final, a comissão organizadora sugeriu que nossa bandinha fizesse uma recepção para eles. Apesar do entusiasmo, percebemos que não tínhamos figurino e que as nossas latas estavam muito velhas. Assim, tratamos de buscar latas e descargas sanitárias plásticas mais novas, mas, como tudo vinha do lixo, o aspecto ainda não era dos melhores. Além disso, tocávamos sentados no chão, e não sabíamos que lugar na área externa da igreja seria mais adequado para nossa primeira apresentação de gala. O grupo de dança das meninas ainda não se apresentava conosco; elas até ensaiavam com os meninos, mas as famílias não deixariam que apresentassem em outra localidade, longe de seus olhos. Fizemos uma reunião e chegamos à conclusão de que tínhamos que pintar os instrumentos e inventar um figurino. Logo veio a ideia de todos usarem bermuda jeans, pois todo mundo tinha uma calca jeans velha em casa, e conseguir uma camisa branca velha (geralmente de propaganda política). A reunião foi na noite de quarta-feira

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e a apresentação seria no sábado seguinte, às 10h. Marcamos então uma atividade na manhã seguinte já com as bermudas e camisas velhas, pois íamos fazer uma fogueira com madeira velha e tinturar tudo. Naquela mesma noite, ciente da minha pouca desenvoltura em artes plásticas, fui procurar um antigo parceiro da época do CEAMAC, José Carlos Pimentel, mais conhecido como Pimentel, que morava nas adjacências e era uma espécie de Professor Pardal, um mestre em criatividade. Ele, quando menino, fora aprendiz de seu Nelson Maleiro, grande carnavalesco da Bahia. Expliquei tudo ao Pimentel e pedi para ele ver se era possível fazer alguma coisa pelas latas e descargas. Na manhã seguinte, todos nos reunimos na frente da casa de Jorginho, mais conhecido como Tripa, por causa da magreza gritante, e ótimo tocador de repelique (lata de manteiga). Cada um levou suas ex-calças já abermudadas e com toques de criatividade que deixariam mortos de inveja os rapazes da Avenue des Champs-Élysées, em Paris. Camisetas de toda sorte de candidatos e partidos políticos, madeiras velhas para fazer o fogo já recolhidas e tinturas baratas compradas no armarinho, notou-se a falta de Jorginho, que já havia colocado a cabeça na janela umas duas vezes e, lá de dentro, repetia a batida da sua lata. Alguns dos meninos já resmungavam que Tripa era fominha por tocar em vez de ir logo se juntar à turma, estava na fome, tocando dentro de casa. Quando a insatisfação pela demora de Jorginho se acentuou e suas frases na lata já eram um desaforo, ele apontou na porta com um sorriso de uma ponta da orelha à outra. O mais estranho era que enquanto sua silhueta se definia na mudança de luz da escuridão da casa para a luz estourada do sol de verão das 10h, o som de seu repique-lata não parava. Assim, quando ele se fez brilhar ao


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sol, foi um zum-zum-zum, pois o danado do Tripa trazia consigo uma novidade que mudaria a performance da banda daquele dia em diante: sua lata estava amarrada na cintura e ele vinha tocando sorridente e andarilho. O sabido usara as sobras da calça para fazer um cinto e amarrar o instrumento na cintura. Logo, todos debandaram correndo para casa atrás das sobras de suas respectivas calças para fazer o mesmo. Também nessa época a afinidade com as meninas melhorava, pois nessa coisa de preparar o figurino elas ajudaram muito. Pronto; estava inventada a roda. — Pimentel fez sua parte, pintou e fez retoques que deixaram nossas latas elegantes. Assim, no sábado pela manhã, partirmos para nossa primeira apresentação, na Igreja Nossa Senhora dos Alagados, a mesma que o papa João Paulo II inaugurara anos antes. A apresentação foi maravilhosa e as anglicanas até se balançaram desengonçadamente, e eu, com minha imaginação fértil, digo que elas estavam dançando. Provavelmente era isso. Era uma manhã de verão, um dia lindo, e elas não pareciam nada com um grupo de mulheres em pleno ataque de nervos. Aquilo era alegria, sim! Mas a única mulher negra do grupo ficou parada olhando. Havia um misto de admiração e certa tristeza nela. No final da atividade, ela procurou um dos meninos e disse: — Congratulation!

Mas ele não entendeu nada do que ela disse e ainda gritou para os outros: — Xi, ela é gringa também!

Eu, por intuição, achei que congratulation era um elogio... Enquanto falava, ela também escrevia num pedaço de papel. Depois meteu a mão no bolso e, muito emocionada, me entregou o bilhete com uma nota de dinheiro


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verde e saiu enxugando as lágrimas em direção ao ônibus da excursão. As outras mulheres continuavam nos olhando e distribuindo congratulations e thank you very much a torto e a direito. Pelo sim, pelo não, abri logo o papel e me deparei com uma pequena carta na qual as palavras congratulations e thank you very much se repetiam e com uma nota de 100 dólares. — Ai, ai, ai! Ao ver os 100 dólares, os meninos se precipitaram na minha direção. Todos admiravam aquele dinheiro tão raro nos Alagados. (Por essa via, claro. Muitas vezes já tinham chegado a ver, mas de forma, digamos, alternativa... Espero que vocês me entendam.) Foi a maior confusão! A banda quase terminou no seu primeiro show com plateia amistosa, pois a ideia de receber para parar de tocar já nos era familiar, mas dinheiro para tocar nos pegou de surpresa. Os meninos, que não conheciam o valor real da moeda americana, começaram a fazer seu câmbio por conta própria e valorizaram o dólar, que já era forte, uns mil por cento; acreditavam ser muito dinheiro. Na verdade, era mais do que seus pais poderiam ganhar em um árduo mês de trabalho, mas eles imaginavam muito mais do que isso. Alguns queriam construir suas casas, outros, comprar uma bicicleta, alguns pensavam em viajar para o exterior. A cena é fácil de reconstituir: os organizadores e as anglicanas entrando no seu ônibus chique e partindo enquanto eu ficava rodeado de piranhas enlouquecidas. Foi difícil conter a “rebelião”. Por mais que eu explicasse, eles não entendiam que o dinheiro era pouco, e eu já sabia que os pais não entenderiam também. Toda a carência e expectativa de nosso povo simples afloraram nesse momento e os companheiros mais fortes se enfureceram pela ignorância. O nosso país não conseguiu até hoje dividir bem o bolo, e coitado de mim que,


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aos 21 anos, tinha que traduzir e convencer de que aquilo ali ainda não era o bolo. Alguns, mais exaltados, mesmo depois das minhas explicações, queriam simplesmente que eu dividisse o dinheiro e desse a parte deles. O irmão de um deles, que já tinha participado de ações que levaram 30 dólares para a comunidade de forma alternativa, como falei anteriormente, saberia muito bem o valor do dinheiro. Pensei em desistir, pois pareciam por um momento não confiar em mim, afinal, era muito dinheiro para uma pessoa só dos Alagados. Argumentei que com 100 dólares até se compraria um barraco-palafita, uma bicicleta, mas que para uma passagem para o estrangeiro faltava muito e que, dividido por treze, que era o número deles, daria pouco mais de 7 dólares para cada um, o que não daria para nada. Mesmo assim, ainda muito excitados, eles não estavam muito crentes nessa verdade e queriam levar seus 7 dólares para casa. Então, no meio daquele tumulto em cima da Igreja Nossa Senhora dos Alagados, eu fiz um sermão de pelo menos uma hora. Até hoje não sei se foi pelo conteúdo apresentado ou pelo cansaço dos meninos, mas ao final acabaram chegando a um consenso: o dinheiro seria socializado de forma que todos, incluindo as meninas, fossem beneficiados. Uma parte do dinheiro seria usada para fazer um grande e delicioso bolo acompanhado de refrigerante, outra parte para alugar os instrumentos da banda de sucesso no momento na Cidade Baixa, a Bandaço (para realizar o sonho deles de tocar com instrumentos convencionais). Todos eles sonhavam em crescer e tocar na Bandaço, que por sua vez sonhava entrar pro Olodum. As meninas organizaram toda a festa, fizeram o bolo e na laje de Leide fizemos a primeira e última apresentação com instrumentos convencionais. Também pela primeira vez o corpo de dança se apresentou com a banda. Olhem as meninas aos poucos ocupando espaço!


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Deixando os sonhos de lado, com o restante do dinheiro, fizemos um belo figurino e preparamos nosso próprio grito de carnaval, para o que a criatividade de Pimentel foi fundamental, pois, além de criar uma iluminação usando balde de galão de tinta, fizemos uma gambiarra na rua e todas as crianças participaram. Mais uma vez as meninas dançaram e Thyá, a Eunice, foi admitida como vocalista; porém, inicialmente, só para ensaios e shows na própria comunidade. Um tio de Leilson, que era amigo meu, cedeu o barraco-palafita onde instalamos nossa primeira sede. O boca a boca é o melhor marketing e logo estava espalhado pela comunidade que tínhamos dólares que pareciam inextinguíveis. Em abril, na Avenida Tiradentes, faz-se uma grande festa (Festa do Herói Nacional Tiradentes). A banda de lata Bagunçaço já tinha um release razoável para se candidatar a tocar naquele evento, afinal, tinha tocado para gringos e recebido em dólares, alugado instrumentos da Bandaço e tocado na laje da Leide numa festa privada de alto nível. Tinham seu próprio grito de carnaval, figurino... Agora iríamos ao topo tentando nos apresentar na Lavagem do Tiradentes. Chegara o período eleitoral e, como político precisa de miséria para vender seu peixe, procurei os cabos eleitorais da comunidade e ofereci a banda de lata. Claro que eles rejeitaram a ideia imediatamente, pois ganhariam a eleição os candidatos a vereador e prefeito que apresentassem as melhores atrações musicais em seus showmícios. Então, usei um argumento muito sedutor: — Eu acho que seu candidato vai poder falar que crianças tão pobres e talentosas vão ter instrumentos quando ele for eleito.


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Claro que os políticos acrescentavam que dariam alimentação e aulas de música para aqueles meninos tão magrinhos. Mas o fato foi que o Bagunçaço tocou para todas as inclinações políticas, realizando uma grande turnê interna nos Alagados. Não havia bairro, praça, beco, ponte ou bar por onde eles não houvessem passado. Todos sabiam da banda de lata, e logo outras crianças resolveram imitar a receita tão fácil: lixo + crianças pobres. Não foi difícil conseguir espaço na prestigiosa Lavagem de Tiradentes, na qual os grupos mais bem apadrinhados podiam tocar. Era a maior festa das adjacências, e o Bagunçaço tocaria num sábado às 17h. No dia da abertura do evento, chegamos às 15h já de figurino para saborear a popularidade, que não faz mal a ninguém. Nosso figurino amarelo e aquela meninada inquieta com suas latas foram o centro das atenções. Buiú, de 5 anos de idade e irmão de Sergio, era o nosso mascote e atração, pois ainda usava chupeta e já tinha pegada na sua latinha. Deu 17h, 18h, 19h, 20h e o evento não começava; os grupos mais importantes começavam a chegar, ficando claro que a tão sonhada grande estreia talvez não acontecesse. Havia impaciência e decepção nos rostos dos meninos. Eu estava um pouco mais distante, tentando resolver a questão com um dos organizadores do evento. Eu tentava sem muito sucesso convencê-lo de sermos encaixados na programação do domingo, mas não tirava o olho dos meninos, pois sabia bem as peças que tinha. E, mesmo de longe, avistei um senhor branco e alto se acercando dos meninos; parecia que ele tomava informações e verificava cada instrumento. Num dado momento, um dos meninos apontou para a minha direção, veio acompanhando o senhor e logo me disse: — Esse gringo tá perguntando de onde somos.


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Eu, que ainda pelejava com o organizador da festa, fiz uma pequena pausa para me apresentar ao senhor, que ao falar confirmou a afirmação do menino, era um gringo chamado Dimitri. O segundo nome, Ganzelevitch, nem mesmo o organizador metido a intelectual sabia pronunciar. Seus elogios imediatos ao trabalho dos meninos fizeram o organizador mudar de forma rápida, inédita e inexplicável de atitude, afinal, aquele mesmo que nos descartara havia pouco instantes, agora era só elogios. Porém, não dirigia a palavra a mim e, sim, ao gringo. Eu era um observador passivo da nova opinião dele sobre a banda de lata e, observando com atenção, tive notícia de que a banda era maravilhosa e umas das coisas mais criativas das adjacências, e que ele, o organizador, estava exatamente naquele momento se desculpando pelo atraso na programação. Assim, serviria um lanche para os meninos, e o gringo poderia voltar no domingo às 15h, porque nós estaríamos abrilhantando a abertura do evento já que naquele dia já estava tarde e não era correto deixar aquelas criaturas pequenas esperando tanto. Nada como um observador internacional; não me esqueceria daquela velha expressão “para inglês ver”. O senhor gringo voltou no domingo e de fato assistiu a uma apresentação descontraída, que enfatizou a música e a empatia da banda de lata da comunidade. Ele pegou meu endereço e sumiu na multidão. Dona Teresa, a vizinha, que, ao se queixar para mim do barulho da banda, fez com que essa história esteja sendo contada, se mudara para Candeias, no Recôncavo Baiano, mais precisamente para o pequeno distrito de Passagem dos Teixeiras. Eu era muito ligado a essa família, que eu conheci no início da minha adolescência, na minha conturbada mudança dos barracos-palafitas, na Massaranduba, para as casas provisórias no Uruguai. Foi com


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seus filhos George, Jeová, Patrícia e o pequeno Jonas que redescobri a alegria de viver, mesmo longe do meu mundinho aquático e do Tumba do Mar. Eles também estavam meio perdidos, pois estavam também longe de sua comunidade de barracos-palafitas de origem, já que a Amesa, na sua santa sabedoria, misturou todo mundo de localidades de barracos-palafitas, desarranjando toda uma rede de solidariedade sedimentada em anos de convivência nas pontes e fazendo florescer a violência de uma forma assustadora. George era meu amigo inseparável, embora fosse três anos mais novo do que eu. Éramos parceiros para toda obra! Ele era mais valente e mais ousado, assim, se vocês tivessem a possibilidade de nos ver agindo achariam que ele era mais velho, inclusive porque era fisicamente mais desenvolvido. O descarado com o passar dos anos se tornou muito boêmio, tocava violão e tinha sempre muitas moças em volta, e eu, mais tímido, ficava ali por perto, pois se sobrasse alguma coisa na rede dele eu catava. Agora estava ali, descobrindo aquele lugarejo e matando as saudades de meus amigos de infância. Claro que, em se tratando de George, tinha que ser num clube de seresta, onde acontecia um concurso de jovens seresteiros — ou vocês acham que o Arrocha nasceu em Candeias por coincidência? Eu estava acomodado em uma das mesas, sob o olhar de curiosos, pois George, muito garboso, havia espalhado que seu amigo era comissário de menores da comarca de Salvador e, assim, talvez eu fosse a maior autoridade presente no festival daquele lugarejo encantado. No meu papel de autoridade, observei com muito respeito os candidatos, e um especialmente me chamou a atenção: um jovem de 14 anos, Jackson, apelidado de Jaquinho, que tocou e cantou de uma forma admirável e, claro,


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venceu o festival. Jaquinho foi apresentado juntamente com um amigo que também participara do festival, chamado Diosmar, mas apelidado de Poquito. Eu não perdi tempo: convidei Jaquinho para visitar Salvador e tocar junto com a banda de lata. Acho que ele nem prestou atenção se a banda era de lata ou não, pois ir a Salvador para um menino do interior era como ir a Hollywood. Num sábado Jaquinho foi com George conhecer a banda. A afinidade foi imediata, mas não por causa da música, e sim pelo futebol, pois rapidamente iniciaram uma partida. Achei estranha essa forma de se aprovar um músico, mas os meninos depois do baba já contavam com Jaquinho na banda e Jaquinho já elogiava a banda também. Vai saber, mas deu certo. Agora tínhamos violão, que logo passou para uma guitarra velha emprestada, e a banda de lata se tornou elétrica. Como Jaquinho estudava, ele ia aos finais de semana para o Bagunçaço e os tambores, agora acompanhados de uma guitarra, balançavam o barraco-palafita onde era nossa sede, e isso me lembrava muito meu Tumba do Mar. Então veio o maior convite que a banda sonhara em receber. O Olodum, a mais famosa e mais admirada banda afro-percussiva do Brasil, nos convidou para seu festival, o Femadum, no qual estariam presentes cantores e compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Nem os pais acreditavam nisso, e os meninos, embora felizes, estavam meio nervosos e até desanimados, pois achavam que as descargas sanitárias plásticas e as latas não dariam conta. Particularmente, quase dei um sermão. Como vocês já sabem, e todos os cubanos também, depois de uma hora ninguém sabe mesmo qual é o motivo do discurso e é melhor aceitar o que o orador quer ou a penitência continuará. Achava que eles, na primeira oportunidade, já estavam querendo se livrar da originalidade.


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Falei essa palavra mesmo, e eles se entreolharam, acho que alguns acreditavam que eu esta baixando o nível de tão retado, pois dificilmente eu usava um palavrão desse com eles. Mas Jaquinho, com aquele jeitinho de menino do interior, veio todo respeitoso e sussurrou perto de mim: — Eu acho que a gente não deve perder essa palavra que o senhor disse, mas os timbres das latas e das descargas não estão bem com a guitarra. Tá tudo muito agudo, precisamos de graves.

Mantive o tom da oratória, mas fiquei preocupado. Era um sábado e, no domingo pela manhã, fui com Jaquinho e Nido na feira do rolo, lugar onde se encontra de tudo, tudo mesmo. Não quero aqui entrar no mérito da procedência das mercadorias, mas continuo afirmando que encontramos de tudo, e acho que isso é o mais importante para essa narração. Eu já havia passado várias vezes na loja de música com Jaquinho, pois os pais dele só o liberavam se eu fosse buscá-lo. Então quase todo final de semana eu tinha que acordar bem cedo e viajar de ônibus uma hora e meia para ir e o mesmo tempo para voltar com ele. Durante a viagem, eu conversava muito com ele e tomava minha aula particular de música. Jaquinho era músico de ouvido, mas tinha seu jeito de me explicar a musicalidade. E, assim como cachorro na frente de açougue, sempre passávamos na loja de instrumentos aos sábados pela manhã, e enquanto ele ficava nas guitarras, eu ia para a seção de percussão. Aprendi muito com um vendedor que me explicava os nomes e, mais ou menos, a função dos instrumentos, por isso, na minha caminhada pela Feira do Rolo, eu sabia muito bem o que procurava. Bem, saber mesmo eu não sabia, mas pressentia que quando achasse saberia que era aquilo que procurava, mesmo que essa coisa


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estivesse entre bicicletas, televisores, passarinhos, bermudas, absorventes, vasos sanitários, filhotes de cachorro, ratos brancos, um camaleão... Um pequeno tonel de papelão! Não sabia bem para o que servia, mas tinha o tamanho de um tambor grande de diâmetro pequeno... Meu bipezinho acendeu a luz vermelha e achei que era aquilo. Quase por telepatia, Nido pegou o tonel e experimentou o som, Jaquinho franziu o rosto e, deitou a cabeça lateralmente em direção ao som, pois, acreditem, um tambor na Feira do Rolo faz o mesmo som que um alfinete quando cai num tapete. Se o Jaquinho não fosse bom de ouvido, não chegaria à conclusão que chegou ao sacudir negativamente a cabeça, pois para ele o som ainda não era o grave de que precisávamos. Eu contestei, dizendo que era grave, que eu sentia grave, mas Jaquinho contra-argumentou que precisava ser um pouco mais grave, e Nido, bom percussionista, concordou com ele. Chegamos à conclusão de que seria ótimo se o tamborzinho pudesse ser afinado, mas logo vimos que nem Pimentel poderia pôr afinador num tonel de papelão. Eu, ainda relutante, abandonei o tonelzinho e continuamos olhando as coisas. Já quase desistindo, pegamos o caminho de volta pelo outro lado da feira, a essa altura já perto de terminar e meio vazia. Ao passar por um amontoado de volumes, Nido esbarrou neles, foi um barulhão, pois eram tonéis de latão de vários tamanhos, que rolaram para todo lado. Para não dar confusão, saímos imediatamente, como que por reflexo, catando os tonéis e nos desculpando com o vendedor. Quando o susto passou, um estalo coletivo nos fez fitar os tonéis e em seguida uns aos outros. Esse gesto desembocou numa risada de cumplicidade: estava ali o que procurávamos havia tempos. Ainda com um pouco dos dólares, compramos três tonéis e mais tarde uma lata de manteiga cilíndrica, pois


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latas cúbicas já tínhamos bastante. Com Pimentel, levamos tanto a lata de manteiga quanto um dos tonéis para a loja de instrumentos para descobrir qual pele se encaixaria melhor ali. A ideia era fazer um tambor com aspecto mais convencional, inclusive no som, mas mantendo a tal originalidade, que àquela altura não era mais um palavrão e sim um lema dos meninos. Seus pais e demais vizinhos não sabiam muito do que se tratava, mas já que nós lutávamos por tal palavra, deram um voto de confiança. Até porque não parecia uma palavra feia e com sentido perigoso, só era difícil de falar. Provavelmente, achavam que era uma palavra que tinha vindo junto com os dólares... Ao final, tínhamos três tambores de tonéis, uma caixa emprestada de uma fanfarra, um repique de lata cilíndrica de manteiga, uma guitarra velha, nossas velhas descargas sanitárias e latas cúbicas, figurino e muito nervosismo. O Olodum mandou um ônibus nos buscar, os caras da Bandaço estavam até nos admirando, e lá fomos em direção ao Pelourinho. Foi um momento muito especial. O palco, tudo de primeira linha, todos os instrumentos foram amplificados e equalizados enquanto o locutor falava um pouco da história do projeto, e na hora dos meninos entrarem, fui chamado para explicar um pouco mais sobre o projeto. Eu estava muito nervoso, pois, mesmo com a experiência do teatro, falar para 60 mil pessoas era algo que eu nunca tinha imaginado. Os aplausos, a banda tocando com guitarra elétrica... Só o Araketu havia feito essa proeza, tanto Olodum como Timbalada eram só percussão. Além disso, o Bagunçaço era autodidata, pois minha musicalidade era duvidosa. Mas, o entrosamento no baba havia se estendido para a música e eles deram show. Aplausos e surpresa do público. Foi extasiante ver a negrada bailando ao nosso som, no mesmo lugar que antes era destinado a nos castigar.


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Ao final do show, a produção do Olodum queria nos colocar numa espécie de camarote, onde também estariam mais tarde Caetano e Gil. Eu queria muito, mas as crianças preferiam ficar em frente ao palco, pois queriam assistir a banda das bandas: o Olodum. Então, ficamos num espaço bem em frente do palco, isolados por seguranças do Olodum. Estávamos todos ali felizes por assistir o Olodum e também por estarmos sendo observados pelo público, que sempre que entrava em contato parabenizava a gente. Num determinado momento, me afastei para fazer uma foto das crianças tendo o palco com a banda Olodum como fundo, e para isso fui até bem próximo do cordão de isolamento, chegando bem perto do público. Victor, apelidado de Buiú e o mais novinho da banda, deveriam ficar com Claudia (Bia, minha namoradinha e irmã de um dos meninos), mas ele era muito apegado a mim e veio meio que segurando nas minhas calças. Eu andava de costas para pegar o melhor ângulo e Buiú vinha de frente segurando minha calça na altura do joelho, mas de repente ele soltou minha calça e se afastou assustado com algo atrás de mim. Eu não tive tempo de saber o que o assustara, pois alguém puxou com muita forca minha pequena mochila, me fazendo desequilibrar. Para não cair, girei de frente como qualquer um que já tenha feito capoeira. Para meu espanto, era um policial enorme que, para tirar a bolsa de mim, me deu um empurrão ao mesmo tempo que calçava com um dos pés meu calcanhar. Mais uma vez, no reflexo da capoeira que aprendera na rua e na paróquia, saltei para trás e caí na negativa, um golpe que era só para não despencar no chão. Logo voltei a ficar em pé e ele olhou para mim com raiva, perguntando de quem eram a mochila e a máquina que estava na minha mão. Eu respondi que eram minhas essas coisas, e ele com truculência novamente me segurou pela camisa e chutou com muita força meus


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dois tornozelos. Um deles torceu na hora, eu pude escutar o som do osso como se tivesse partido, e nesse instante a população se precipitou, gritando para o policial parar, e os meninos que estavam de costas para a cena se viraram e correram em meu auxílio. O mais curioso é que eles não se intimidaram com o policial e tentavam me tomar da mão dele. Logo chegou o restante da patrulha com mais uns cinco policiais, e a essa altura a população, que me identificava como o rapaz da banda de lata, xingava e jogava latinhas de cerveja no policial. Quando a patrulha chegou, as crianças do Bagunçaço recuaram um pouco, esperando o desfecho, numa espécie de trégua momentânea, porém o policial disse para um que parecia ser o sargento ou superior que eu havia desacatado ele e que excitara a população contra ele. Como eu disse, era um policial enorme, eu tentava argumentar com ele enquanto ele apertava o colarinho da minha camisa, como se quisesse me enforcar. Eu parecia um passarinho na boca de um gato se debatendo desesperado. O sargento olhou para mim como quem pergunta: “Você tem algo em sua defesa?”. Eu até tinha, mas enforcado pela gola da camisa e tomando socos nos rins não consegui mais falar; sentia um dos tornozelos sem firmeza e os socos curtos já me faziam sangrar pela boca. Estava tonto, mas vi que, quando o sargento mandou me algemar, a banda Olodum parou de tocar. O vocalista foi enfático com os policias e as crianças começaram a arrancar o calçamento do Pelourinho e partir para cima da guarnição; o espírito de grupo e as leis duras de um bairro violentado já tinham temperado a natureza daqueles meninos. Eles estavam prontos para a paz e era isso que reafirmávamos no Bagunçaço, mas guerrear era exatamente no que eram melhores. Foi um deus-nos-acuda, as pedras eram lançadas sem pudor na direção dos polícias, que já estavam de armas em punho. Eu sacolejava



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na frente do que me segurava tentando evitar que uma das pedras pegasse na guarnição. Temia que eles atirassem nos meninos, mas os meninos, que são muito bons em pedradas, já atiravam com efeito, tentando não acertar em mim. A população continuou jogando latas, guardanapos, a direção do Olodum já estava por ali, mas os policias não deixavam ninguém se aproximar. Assim, algemado com as mãos para trás e preso pelas calças, fui arrastado ladeira abaixo. Os meninos a essa altura já berravam e choravam, minha namorada tentava segurá-los e ao mesmo tempo me seguir, pois temia minha sorte nas mãos dos PMs. No meio da ladeira, minha carteira, não suportando a pressão do policial que me levava dependurado pelas calças, caiu aberta e lá estava minha identidade funcional do Poder Judiciário — meu distintivo do Juizado de Menores da comarca de Salvador. Os policias debocharam, dizendo que eu ia apanhar mais ainda por estar portando documentos falsos do Poder Judiciário. Uma guarnição da Polícia Civil, vendo a confusão, veio dar apoio aos PMs, mas ao averiguarem meus documentos, atestaram sua autenticidade e começou uma nova confusão, pois eles reclamavam a minha guarda, e o sargento negava. Não sei de onde, mas o Olodum arranjou um advogado. A procissão da minha via crucis, que deveria seguir para uma delegacia, por determinação do sargento desviou-se para o quartel da Polícia Militar, onde ele tentou dizer que eu estava errado ao incitar a população contra eles. Ainda no pátio, ele fez uma roda, e outros policiais mantiveram as crianças e a diretoria do Olodum a distância. Só eu e o advogado podíamos ver e ouvir o que se passava. Nesse momento, a coisa mais amena que ele ouviu de mim foi que eram criminosos fardados e que eu iria sair dali e ir direto a uma delegacia prestar queixa. O sargento, tentando manter sua autoridade, disse que se eu


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não me calasse iria me levar para dentro do quartel para me encher de porrada, e eu retruquei dizendo que ele até que se achava homem, mas não era tanto para isso. Os policiais civis pediram para eu me acalmar, enquanto um tenente se desculpava e pedia para o sargento se conter, pois éramos colegas e aquilo não ia levar a nada. Logo, foi dada a ordem para me desalgemar, e eu saí para acalmar os meninos. O ônibus já nos esperava e durante todo o trajeto até o Alagados eles não disseram uma só palavra. Ainda naquela noite, voltei para dar queixa e seguir o processo até ser informado que os responsáveis seriam chamados na junta disciplinar da corporação deles. Naqueles três dias de Femadum, eu não fui o único a apanhar. Outros policiais civis e militares apanharam, e a população, mais ainda. Toda essa pancadaria no Pelourinho deu na música “Haiti”, de Caetano e Gil. Ao ouvir essa música, não se esqueçam de mim. — Passados o susto e a depressão em que a gente entra depois de uma coisa assim, seguimos nossa trajetória. A notícia era de que haveria um encontro de meninos e meninas de rua e de que o MNMMR (Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua) tinha covidado a comunidade para participar. Iriam crianças da Escola Luiza Mahim, da Associação de Moradores da Mangueira e do Bagunçaço. — Essa notícia chegou a nós com uns oito meses de antecedência, pois a comissão de crianças e adolescentes do Alagados que faria parte do encontro nacional deveria ser escolhida pela comunidade e, ao final, seriam só cinco meninos do Bagunçaço. Nessa época, as meninas já participavam de atividades fora da comunidade, mas viajar


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para fora era complicado. Fomos escolhidos eu, Adson na caixa e no vocal, Jaquinho na guitarra e no vocal, Bira no repique, Nido na marcação de frente e Bobo na marcação de fundo. Eles eram bons no que faziam, e a meninada queria estar bem representada, então não foi difícil escolher, havia um consenso entre eles. Era a primeira vez que eu e os meninos saíamos do estado. Os adolescentes das outras entidades foram acompanhados por Leninha, companheira de luta e cofundadora da Escola Luiza Mahim, e por uma professora da Associação de Moradores da Mangueira. Foram cinco dias de encontro, e nós só nos apresentaríamos no terceiro dia, porém, logo no primeiro, um grupo de Recife não chegou e fomos chamados para substituí-los. A maioria dos grupos era formado por muitas crianças, que tocavam, dançavam, faziam coisas de circo e tinham figurinos exuberantes. Nós já não tínhamos mais aquele figurino e usamos a camiseta recebida no evento. Fomos levados por uma van e quando vimos estávamos na Esplanada dos Ministérios, e um trio elétrico nos esperava. Ironia da vida, era a primeira vez que aqueles baianos subiam num trio elétrico. Fomos apresentados como meninos da delegação da Bahia, e o locutor ainda explicou que estávamos ali para ajudar, pois a banda que estava prevista para o trio não chegara de Recife; ele mal sabia que aquele quinteto estava mais que preparado. Após afinação e equalização, Adson explicou que éramos dos Alagados e que o Grupo Cultural Bagunçaço, a Escola Luiza Mahim e a Associação dos Moradores da Mangueira formavam a comissão que representava a Bahia. Assim, Jaquinho soltou os acordes e cantaram Abolição, uma música gravada por Margareth Menezes e Elba Ramalho que falava do povo pobre e negro da cidade. Depois improvisaram a canção tema do encontro, e a Esplanada inteira cantou com eles. Estava tudo bem organizadinho,


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deveríamos cantar três músicas, os adultos fariam os discursos e talvez no final mais uma música. Mas onde já se viu dar um trio elétrico a um baiano e tentar ter algum controle sobre o que acontece? Os meninos e o público se empolgaram e fizemos uma minimicareta. As letras eram sempre engajadas, e daquele dia em diante eles ficaram conhecidos como “meninos da Bahia”. Eram chamados para tudo que tinha música no meio. No encontro, havia muitas oficinas, crianças de comunidades periféricas de todo o Brasil, e nós, educadores, fomos distribuídos como monitores de diversas atividades. Então ficávamos juntos com nossos educandos nos alojamentos e nas refeições. Nas atividades, éramos bem pulverizados, e isso foi importante, pois nos deu a oportunidade de conhecer um pouco da realidade das crianças no Brasil inteiro. Lembro que, monitorando uma certa oficina, conheci uma menina de 14 anos de Manaus. Seu biotipo era indígena e ela morava numa comunidade ribeirinha. Aprendi muito sobre as dificuldades do povo dela. Não havia tiroteio, drogas nem policiais corruptos, mas havia briga por terra, dificuldade de atendimento médico e muita mortandade infantil. Também conheci um gauchinho loiro de olhos azuis, muito bom menino, que se chamava Leandro (faz tanto tempo, mas veio esse nome na minha cabeça). Ele teve sangramento nasal por conta da baixa umidade de Brasília. Isso aconteceu logo no primeiro dia da oficina e, como havia um oficineiro e dois monitores, fui incumbido de levá-lo até a enfermaria. Sem achar seus educadores, fiquei lá umas três horas com ele e daí nasceu uma amizade. O que mais me marcou foi que no último dia, nas trocas de endereço, Leandrinho me deu o contato da prefeitura. No momento eu brinquei: — Sua cidade é tão pequena que é o prefeito quem recebe as cartas?


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Ele me chamou no canto e disse: — Tio, eu moro na rua, mas os educadores são desse projeto da prefeitura.

Eu confesso que perdi o chão, negro baiano vivendo numa cidade com 80% de população negra nunca imaginaria um loiro de olhos azuis menino de rua. Eu estava aprendendo sobre o Brasil, sobre meus próprios preconceitos, sobre minha própria autoestima. Os meninos do Bagunçaço, negrinhos anis, que, por mais pobre que fossem, tinham casa e família, e um menino que parecia mais com os atores mirins da Globo era morador de rua. Vivendo e aprendendo... Ao final, abracei todos os meus amigos, abracei mais minha educanda índia, e pedi a meus ancestrais, que aqui chegaram e foram tão bem acolhidos pelos ancestrais dela, que a iluminassem. Dei um abraço bem forte no gauchinho, pedi que Kaiala (Iemanjá), mãe dos rejeitados, o guiasse, pois, mesmo tendo sangue dos que escravizaram, vivia como os netos dos escravos. Meses depois, o MNMMR disponibilizou duas vagas para um curso popular de pedagogia. Entidades locais se reuniram e decidiram enviar Leninha e Fafá (Maria de Fátima). Fafá era funcionária pública do centro cultural que o estado mantinha na nossa comunidade e, como era assistente social e militante dos movimentos populares, era a grande incentivadora do florescimento e da regularização das organizações comunitárias. Vinda de Belém, menina ainda participou da ajuda aos estudantes no Araguaia, e, já assistente social, participou do Projeto Rondon. Na sua sabedoria de ativista madura, abdicou de sua vaga para me dar essa oportunidade, pois sabia que eu ainda era um menino. E disse que, se eu tinha escolhido cuidar de outros meninos e meninas


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tinha que ter alguma formação. Não tenho como agradecer a Fafá, pois foi nessa formação que realmente me descobri educador, que encontrei um sentido social e político para que até então eu fazia, mas não sabia explicar o porquê e nem como. O curso aconteceu entre Sergipe e Alagoas, o que ampliou meu conhecimento sobre meu país. Foram quatro módulos no decorrer de um ano; cada encontro durava duas semanas. O primeiro módulo se chamava “Quem somos”. Psicólogos e terapeutas nos deram a oportunidade de nos confrontarmos com nossa infância e de questionarmos o que nos motivava a desenvolver nossa ação social. Dos vinte participantes, seis se desligaram, e quatro deles escreveram carta aos remanescentes agradecendo o convívio e reconhecendo que realmente não era aquilo que queriam. No segundo módulo, fomos apresentados a pedagogos famosos, a tudo que se tinha estudado ali sobre o assunto. Além de Rousseau e Piaget, eu descobri Freire, por quem me apaixonei. Ele falava coisas em que eu acreditava, coisas que eu via que podia aplicar e que, de certa forma, já aplicava sem saber. Acho que se o tivesse conhecido antes, não teria exagerado no famoso discurso sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. O terceiro módulo foi sobre política e história do Brasil. Tive vontade de processar o Estado, pois a escola não tinha me ensinado a verdade, e os fatos estavam ali. Pude entender a dívida externa brasileira, os partidos e suas origens. No quarto e último módulo, fomos conhecer organizações similares e colocar em prática aquilo que tínhamos aprendido. Posso dizer que fiz uma universidade popular, comprimida, mas de qualidade excelente. Claro que fiquei louco para saber mais e passei a devorar livros sobre o assunto. Hoje sou grato ao MNMMR e


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sinto falta de cursos tão abrangentes em conteúdo e que possam juntar no mesmo espaço gente de vários “brasis”. Voltando de Brasília e não podendo ficar mais no barraco-palafita (meio cedido e meio alugado na época dos “dólares inextinguíveis”), o grupo precisava encontrar um novo local para ficar. Além disso, estávamos crescendo; crianças de outras localidades no vasto Alagados estavam formando suas bandas de lata e me procurando. Agora já havia a Big Surf, a Futuro do Mundo, a Futuro da Criança, a Futuro dos Alagados e, claro, a Bagunçaço. Os meninos, entrando na adolescência propriamente dita, já não tinham tantas brigas com as meninas, e, sim, paquera. Eu, que já tinha deixado o trabalho de padeiro logo no começo do Bagunçaço, decidi que, já que estava no inferno, abraçaria logo o diabo, e me desliguei do juizado, pois não suportava o assédio na comunidade — era acordado de madrugada para ir ao modúlo policial resolver problemas com meninos! Agradeci muito o aprendizado lá e mantive a parceria, sempre intercambiando ações das crianças dos Alagados e do Poder Judiciário. A Futuro dos Alagados era formada por meninos que ainda moravam em barracos-palafitas. Eles moravam bem no fundo da comunidade, bem perto das ruínas do Cine Teatro Alagados. Espero que ainda lembrem que fui parar no Uruguai na trágica mudança de casa, quando o aterro dos Alagados acontecia, nas casas provisórias, que, ao final, eram bem mais salubres que as definitivas que recebemos. Pois bem, a casa provisória onde tinha morado por mais ou menos um ano, onde tinha conhecido dona Teresa e seus filhos, ficava bem no pé da Igreja Nossa Senhora dos Alagados. A igreja havia sido inaugurada um ano antes, quando eu, ainda na ponte lá de casa, que ficava na margem oposta ao Uruguai, assisti João Paulo II chegar de helicóptero. Hoje posso entender


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a grandeza do evento, um papa a tão poucos metros de mim, logo ali do outro lado! Mas na época o helicóptero chamou mais a minha atenção. Além do papa, da santa (que tinha um pé no seco e outro na lama e uma lata de água na cabeça) e do helicóptero, a novidade foi a inauguração do Cine Teatro Alagados. Na minha primeira ida ao cinema, assisti a um filme dos Os Trapalhões. Em pleno verão, quase 40 graus, e meninos, senhoras, pescadores, todos vestidos de agasalhos para um frio glacial numa fila enorme. Era o efeito do ar-condicionado central, um novidade que colocou o Alagados em rebuliço, acho até que a maioria ia para ver o ar-condicionado e descobria o cinema. O governo mantinha o cinema funcionado gratuitamente. Havia muitos filmes bons, e também toda sorte de atividade artística; muitas crianças eram atendidas. Como era de se esperar, mais tarde o teatro foi abandonado e sucateado, e nunca mais abriu, tornando-se uma ruína. Metrô, Isael, Jamira e Luis, na época crianças atendidas no grupinho Sapinho Colorido, são hoje expoentes da luta por uma vida digna nessa comunidade. Lourdinha, Leninha, Hélio, Raimundo e Jaciara, entre outros, envolvidos no grupo jovem da igreja criada na época, também são militantes da mesma luta por dignidade. — O governo tem uma dificuldade de aprender que dar oportunidade a uma comunidade faz diferença. O cinema estava em ruínas, mas os adultos que, quando crianças, foram beneficiados por ele por meio de ações arte-educativas, são hoje, de longe, uma nata de pessoas comprometidas com a luta social. Bem, como eu vinha dizendo, a Futuro dos Alagados, que era formada por meninos de ali de perto do cinema


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abandonado, estava ensaiando lá dentro. O lugar era insalubre. Não tinha telhado, era cheio de lixo, e o mato era uma espécie de banheiro público. Não sei como aqueles meninos conseguiam tocar ali. Como não tínhamos mais o barraco-palafita, tivemos uma reunião no Espaço Cultural de Alagados, que era um anexo mantido pelo governo — isso depois de anos de lutas dos personagens que descrevi anteriormente. Um deles, Isael Barros, foi eleito pela comunidade gestor cultural do espaço, numa eleição inédita até então, pois esse tipo de cargo sempre fora ocupado por indicação política. Na reunião com todas as bandas, foi exposta a situação e, a banda Futuro dos Alagados sugeriu limpar o Cine Teatro e usá-lo como sede. O local era bem grande, mas naquela época já éramos umas 70 pessoas. Quero dizer, eu, Bia e 68 meninos e meninas. Então num sábado, com carrinho de mão, pá, enxada e muito suor, começamos a limpeza. Gastou-se também o domingo e ainda trabalhamos durante a semana, nos revezando com os horários disponíveis, pois queríamos que no final de semana seguinte estivesse tudo limpo. Mas após uma semana só 20% do local estava limpo. Ainda assim, só o lixo mais leve, ainda havia sofás velhos (o lugar era um cemitério de sofás) e muita terra. Decepcionados, paramos o trabalho e recorremos à Limpurb (empresa de limpeza pública da cidade). Quando os técnicos foram analisar e viram o tamanho do trabalho que havia sido feito pelas crianças, abraçaram a nossa luta. Eles limparam e lavaram toda a ruína com espuma perfumada e 15 dias depois do início da apropriação das ruínas do Cine Teatro fizemos a inauguração com os ensaios das bandas. No Cine, ficamos um ano mais ou menos, e foi nesse período que Dimitri reapareceu e disse que uma TV de fora do país estava fazendo um documentário na Bahia com personagens famosos e que ele tinha falado do


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Bagunçaço. Eu não achei que eles viriam, pois Caetano Veloso, Magareth Menezes, Gilberto Gil, Carlinhos Brown, entre outros, eram seus entrevistados, então não via muito onde nos localizar, mas eles vieram. Eram da BBC de Londres. Segundo Dimitri, uma TV bem conceituada. Filmaram a banda e depois disseram que queriam me filmar falando da comunidade. Fui mostrando tudo pra eles e falando, mostrei os barracos-palafitas, falei da vida na comunidade. O certo é que eles não pagavam, pois era um documentário, mas fizeram uma vaquinha e doaram 1.000 dólares para o grupo. Olha os dólares voltando aí, gente! Dessa vez, não houve briga e logo marcamos uma reunião para decidir o que fazer. Se reunir para decidir já era trivial... Decidimos usar o dinheiro para estruturar melhor o grupo. Compramos uma máquina de escrever, fizemos mais instrumentos reciclados, alugamos um espaço mais perto do Jardim Cruzeiro, pois não podíamos guardar coisas de valor no Cine, mesmo depois que, com esse mesmo dinheiro, colocamos portões. — As ruínas do Cine Teatro eram um lugar maravilhoso, pois já havia um palco, o espaço para a plateia sem as cadeiras... Era uma perfeita casa de show! Mesmo sem o teto, a acústica era maravilhosa, e havia a sala onde ficava o projetor, no primeiro andar, que era bem grande. Usamos esse lugar para ensaios menores e reuniões, e o palco e a plateia, embaixo, para apresentações que aconteciam todo final de semana. Durante um ano ficamos ali, o grupo foi crescendo e precisávamos muito de continuar o reforço escolar e outras atividades, como dança, teatro, reciclagem... Essas coisas não caberiam na casa de Bia, mesmo porque agora tínhamos uma superaparelhagem de som emprestada por meu amigo Ró, máquina


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de escrever, ventilador, microfones, fichários das crianças, e essas coisas não podiam ficar na ruína, pois não era seguro. Então tínhamos que levar tudo no carrinho de mão do depósito que alugamos perto da casa de Bia até as ruínas. Era muito trabalhoso, levar toda a estrutura pela manhã e trazer tudo de volta à noite. Éramos uma ONG itinerante sobre carrinhos de mão... O trajeto era do Jardim Cruzeiro até o fim de linha do Uruguai, 1,5 quilômetro, mais ou menos. Certo dia, encontramos padre Clóvis na rua, e ele, ao ver uma carreata de quatro carrinhos de mão, perguntou se estávamos nos mudando. Na conversa que se seguiu ele foi informado de que fazíamos essa viagem quase todo dia. Com sua santa calma, disse que achava aquilo uma via crucis e que talvez, se quiséssemos, ele pudesse arrumar um lugar na Paróquia. Não uma sala do centro social, como era antes, disponibilizada só para reuniões, mas um cantinho no novo auditório. Ficamos empolgados, mas quando fomos lá olhar vimos que não dava, pois era apenas um dos camarins do auditório. Não cabiam nem os instrumentos e o resto de toda nossa tralha. Curiosos, como sempre, os(as) meninos(as) foram explorando o espaço e descobriram uma porta no primeiro andar, na parte de trás da construção, que estranhamente não tinha escada de acesso. Perguntamos ao padre Clóvis como se chegava lá, se a entrada era por dentro, e ele explicou que aquele anexo no primeiro andar na parte traseira do prédio não estava na planta, mas ao construírem viram que era possível e o fizeram. Durante a obra, uma das salas lá em cima servia de depósito de material, pois o difícil acesso era uma proteção a mais, mas agora precisavam rebocar e construir uma escada para lá. Os meninos conseguiram uma escada e fomos dar uma olhada. Lá de cima, tínhamos uma vista da parte de trás da comunidade e, logo abaixo havia um grande terreno baldio — as ruínas


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da creche Anísio Gonçalves, que agora, porém, eram mais usadas por drogados, e o local acabou sendo apelidado de Cracolândia. Ao ver aquele terreno todo ali e aquele prédio enorme abandonado, eu percebi como a vida era irônica, pois tempo estávamos nos alojando num espaço pequeno que só nos cabia por conta do coração de padre Clóvis, que era enorme. Padre Clóvis não fez objeção e em um mês, com uma perigosa escada improvisada, estávamos, mais uma vez, num cantinho também improvisado. Eu tinha um amigo chamado Roi que emprestava um poderoso equipamento de som para os ensaios de domingo, mas agora na paróquia só precisávamos carregar o equipamento. Uma vez no espaço, a Paróquia foi reformando o local, chamado de Casa do Bagunçaço. O espaço em forma de L se dividia em cinco pequenos cômodos: um escritório, uma sala de convivência, um banheiro, uma cozinha e um estúdio. Exceto o banheiro, que era bem menor, cada cômodo não excedia 18 metros quadrados. Era uma ONG quitinete ou ongnete, como chamávamos. Com o tempo, fomos ocupando outras partes ociosas da Paróquia, quase favelando aquele espaço tão bem arquitetado, além de usarmos o novíssimo auditório para batucadas memoráveis. Para continuar contando esse “causo”, preciso voltar ao dia em que Jorginho reinventou a roda, amarrando sua lata de manteiga na cintura com um pedaço da calça jeans que ele transformara em bermuda. Aquela saída apoteótica da escuridão da casa dele para o sol de rachar da rua foi realmente arrebatadora para todos, porém naquele dia, enquanto os meninos rodeavam ele na quentura da descoberta, eu logo perdi o interesse pela novidade. Além de ser um pouquinho mais velho, eu


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já tinha 21 anos, um menina muito bonita saiu rindo da confusão. Achei que ela o tinha ajudado na descoberta. Era sua irmã mais velha, tinha entre 17 e 18 anos, nos olhamos, fiquei um pouco distraído, mas a urgência da apresentação me trouxe de volta à realidade. Eu soube depois que ela tinha um namorado, mas ainda assim não nego que fiquei caidinho. Ela não sabia, aliás ninguém sabia, mas ela estava grávida de três meses do namorado, e como resultado uma grande confusão se armou na família de Jorginho. Eu fiquei triste, pois ela era tão bonita, tinha tanta coisa para viver, e grávida assim na adolescência... O desenrolar da coisa acompanhei de longe, mas quando o menino nasceu ela já havia sido colocada para fora de casa e tinha ido morar num pequeno barraco ao lado do meu. Eu já tinha 22 anos e ela, 18 ou 19. Sua vida era muito difícil, mãe solteira tão novinha! Um dia, o vizinho que alugara o quarto para ela me disse que a criança estava chorando sozinha em casa. Fui lá. Era um menino, um menino lindo, e estava molhado. Eu não sabia muito bem o que fazer, mas tirei aquela fralda molhada e o enxuguei com um pano que encontrei. Ele devia ter uns seis meses, lembro como se fosse hoje. Ele me olhou de uma forma que eu não consegui deixá-lo sozinho, então fiquei brincando com ele até ela chegar. Já nos conhecíamos de bater papos rápidos, ela me agradeceu, se desculpou e eu fui embora. A partir daquele dia fomos ficando mais próximos e tivemos um envolvimento, desses muito fortes, durou um mês, mas foi intenso. Só que tinha a pressão da minha família, que não achava certo por ela não morar com a família, essas coisas que se vê em todas as famílias independentemente da classe social. Por fim, ela não quis mais seguir, embora estivéssemos bem envolvidos e se mudou para outro lugar. Eu fiquei triste, já me sentia pai do pequeno Elvis desde aquele primeiro olhar


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dele, sabia como era a comunidade e sabia que sem pai aquele menino teria dificuldades e provavelmente seria um pai precoce e irresponsável. Um mês depois, conheci Bia, como consequência do meu famoso sermão sobre o ECA. Até aí, tudo bem, eu era jovem e a vida estava só começando no que dizia respeito aos relacionamentos; eu estava me apaixonando por Bia quando uma notícia bomba ecoou nos Alagados. Bem antes de a bomba ecoar, eu, passando pela rua, notei que senhoras que antes me cumprimentavam agora me olhavam com certo desprezo. Claro, como as mulheres são muito solidárias, elas imaginavam que eu tinha me aproveitado da menina mãe solteira e estava desfilando com a menina de família, não sabiam como a coisa tinha se dado. A própria Ana foi me chamar na casa da Bia e me deu a notícia, falou e saiu sem deixar eu processar a informação. Confesso que não fiquei feliz nem triste. No primeiro instante, não sabia se era verdade, não sabia se contava para Bia, mas assim que voltei, contei tudo para ela, que nem sabia que pouco antes de conhecê-la na paróquia eu tinha tido um relacionamento com outra menina da vizinhança. Ao chegar em casa, contei para minha irmã; dividimos um útero, não havia porque esconder. Minha família adorava a Bia e não gostava da Ana, e logo questionaram a paternidade da criança, mas eu, sabendo como a Ana era desaforada, sabia que ela não diria que era meu filho sem ser e já me imaginava jogando bola com ele. Estava em êxtase, me sentia homem, me sentia reprodutor, me sentia um sacana, um irresponsável, mesmo não tendo me relacionado com as duas ao mesmo tempo, me sentia um traidor, me sentia pai de Elvis de novo, pois ambos teriam que crescer juntos, sendo meninos do bem. Questionava-me como podia ter feito aquilo com aquela


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menina, como podia transformá-la novamente em mãe solteira? Sentia-me confuso, e isso era premonição da confusão que vinha pela frente. Éramos todos vizinhos, e eu falava tanto de responsabilidade com os meninos e as meninas que tive que fazer uma reunião para explicar tudo. Foi um período turbulento e tentei manter meu relacionamento com Bia. Ana, com a gravidez e talvez o medo de mais uma vez ser abandonada, pintou o sete, o quatorze e o vinte e um na minha vida. Por três vezes foi preciso intervenção policial. Sua família curiosamente me ajudou muito, pois eu cumpri com todas as obrigações de pai, mas claro que à distância. Quando a criança nasceu, coloquei o nome de Josinan, a mistura de Joselito e Ana; um filho é um presente sagrado, não importam as circunstâncias. Ao vê-lo pela primeira vez no berçário, Josinan teve o dom de me transformar para sempre, pois algo nasce junto com a paternidade que nos transforma para melhor. Dois meses depois que meu filho nasceu, Lúcia, mãe de Jorginho e Ana, entregou o menino na minha casa e eu me tornei pai solteiro. Acho que fui o único caso de pai solteiro com um filho de dois meses em todo o Alagados. Aos poucos, Ana foi se reaproximando, pois tínhamos um filho para criar, mas toda a confusão nos deixou bem distantes para um relacionamento. O Bagunçaço não acabou, e as crianças me ajudavam. Jorginho tirou tudo de letra e foi meu cúmplice durante todo o processo. Josinan era levado para todas as atividades, as crianças adoravam cuidar dele, era o novo mascote do Bagunçaço. Quando Josinan estava maiorzinho, eu sempre dormia na paróquia quando o grande equipamento de meu amigo era emprestado para a gente. Josinan, como primeiro neto, agora tinha toda a atenção da avó, da tia e dos tios,


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e eu sempre trazia Elvis para ficar com ele, e, como ele via Josinan me chamar de pai, já me chamava de pai também. Um dia fui chamado na escola para ajudar a resolver um problema do sumiço de dinheiro na bolsa de Ivonete, pedagoga e coordenadora da Escola Comunitária Popular de Alagados, que funciona no prédio onde fizemos a primeira reunião, na fundação do grupo. Minha experiência no juizado de menores ajudava muito nessas situações, porém, ao localizar o furto e identificar o adolescente, fomos à casa dele. Eu, Ivonete e uma professora conversamos com a mãe do garoto, e ela, embora decepcionada, pareceu compreensiva. Fomos embora e, ao entardecer, tivemos notícia de que a mãe havia espancado o adolescente e colocado ele para fora de casa. Um colega dele mostrou onde ele estava; nós o encontramos com o braço muito machucado, e quando me avistou com a diretora nos olhou com muita raiva. Tínhamos feito o que era correto, falamos para a mãe porque era importante ela estar a par do comportamento do filho, e depois de muito conversar levamos ele a um posto médico. Seu braço foi imobilizado e agora não sabíamos o que fazer com o menino. Por fim, como eu ia dormir na paróquia, resolvemos que ele ficaria ali mesmo e na segunda-feira resolveríamos. Assim, ele inaugurou o que chamaríamos mais tarde de Casa do Bagunçaço, um espaço que acolhia, com o apoio da paróquia, que não tinham onde morar, porém só jovens dos Alagados. A nossa ideia era que, embora a criança estivesse com o laço cortado com a família, ela não devia ter os laços cortados com a comunidade. A coisa, mesmo experimental, funcionava, pois, com o apoio da escola comunitária e podendo manter o cotidiano na mesma comunidade, os pais depois da raiva apareciam e não acreditavam que aquele mesmo menino rebelde estava disciplinado, com o tempo faziam as pazes e a criança voltava para casa.


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— Muitos jovens passaram pela Casa do Bagunçaço, e, além de mim, houve vários outros adultos que, em épocas diferentes, moravam ali e acolhiam as crianças e os adolescentes. Alguns dos jovens que ali chegaram com 15 anos se tornaram maiores de idade e, assim, ficavam responsáveis pelos demais. Uma lembrança gostosa foi a chegada de Jane na Casa do Bagunçaço, pois o que o toque feminino não fizer nada mais faz. Jane era merendeira da escola e, depois de muito sofrer violência doméstica, fugiu de casa levando apenas um dos cinco filhos. Durante muito tempo, ela teve que se esconder do marido violento, mas acalentava a ideia de reunir os outros quatro que ainda sofriam nas mãos do perverso. Um dia, com problemas de aluguel, ela decidiu aceitar meu convite e ir morar na Casa do Bagunçaço. Logo seus filhos vieram e se juntaram aos quatorze que já moravam ali. Essa época foi muito boa, pois Jane tinha um coração enorme e conseguia acolher todos debaixo de sua asa. Josinan já completara 3 anos quando recebi uma ligação de Dimitri. Nesse tempo eu trabalhava algumas noites na sua casa como garçom dos saraus promovidos por ele, assim minhas responsabilidades de pai podiam ser cumpridas. Na ligação ele marcou comigo um almoço, pois iria receber uma delegação de estrangeiros e queria uma pequena apresentação dos meninos no Teatro da Estrela, no seu Solar Santo Antonio. Quando cheguei lá, havia uma moça estrangeira, e eu achei que ela fosse a responsável pela delegação do evento, mas não era. Era uma conhecida de Dimitri que chegara da França e ia almoçar com a gente. Fomos apresentados; ela se chamava Birgit — bem, eu não acertei chamar logo de cara, Brigite era mais fácil. Acertadas as coisas para o evento, Dimitri me perguntou se era possível eu levar a Birgit para conhecer o Bagunçaço.


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Eu estava um pouco atarefado, mas não podia negar esse favor. Então já voltei do almoço com ela, e descobri enquanto falávamos em portunhol que ela era alemã. Perguntei de que Alemanha ela era — eu sempre gostei de ler, vocês sabem disso, assim sabia um pouco da história recente europeia —, e acho que isso a impressionou, pois ela respondeu que da Oriental, mas que já estava havia dois meses no Brasil e ninguém havia perguntado isso. Eu queria saber muito sobre sua cultura; era uma pessoa criada no comunismo e isso me fascinava. Da visita ao Bagunçaço, fomos à praia da Boa Viagem. Eu estava celibatário desde a confusão das irmãs dos meninos do Bagunçaço; acho que ter perdido as duas namoradas e ficado com as crianças me deixou traumatizado. Mas aquela alemã tão linda e inteligente e com modos e sotaque francês me impressionou! Sem a pressão de Dimitri, eu e Birgit nos encontramos outras vezes. Ainda bem que Salvador é uma cidade turística e lugar não falta para você levar os visitantes! Ao cabo da rota turística, estávamos namorando e claro que a novidade nos Alagados era eu e uma loira de olhos azuis para cima e para baixo. Ela ficava por lá e todos já a conheciam. Uma vez, na lavagem do Bonfim ela se perdeu nas imediações dos Alagados, e foram levar ela lá na porta, entregaram para minha mãe dizendo: — Os caras não roubaram ela porque viram que era a gringa de Pim.

Quando a Birgit foi embora, voltei à minha vida normal. Nos correspondíamos por cartas, fax e ela me ligava toda semana. Numa dessas ligações ela me chamou para ir a Paris conhecer seu mundo. Fiquei assustado; gostava dela, mas tudo que ficava depois de Feira de Santana era longe. Imagine pegar avião! Precisou que o padre Clóvis e o Dimitri, que nunca haviam se encontrado, mas eram meus conselheiros, me convencessem a ir.


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Metade do Alagados estava no aeroporto, era tudo uma novidade. Eu nunca tinha pegado avião e meu portunhol vinha do LP dos Los Panchos que meu pai ouvia todo fim de semana. Voei até Recife e de lá até Bruxelas, depois de Bruxelas para Paris em plena primavera. Deixei a casa do Bagunçaço sob o regime de Fidel, pois minha amiga Alicia Sanabria, cubana e psicóloga, que estava por um tempo em Salvador e ficou tomando conta dos meninos. Nós a tínhamos conhecido na segunda viagem a Brasília, além de ter contado com outra amiga Paula Rezende, na época, para organizar toda a viagem. A Birgit diz que fiquei uns cinco dias em choque, mas de Alagados a Paris assim direto era demais. Eu achava que as ruas ou o mundo estavam com a inclinação acentuada, e as ruas também eram muito silenciosas; eu conseguia ouvir o som do estômago de todo mundo. Não podia tomar três banhos por dia e não entendia nada que ninguém falava. Birgit trabalhava na Casa das Culturas do Mundo como produtora cultural e quando eu avisei que estava levando uma fita cassete da banda Bagunçaço ela me advertiu de que lá na Europa tudo tinha que ser planejado antes e que não sabia bem a quem mostrar aquele monte de meninos batendo lata. A fita tinha sido gravada pelos próprios meninos. Era daquelas de se gravar o chão, o céu, se ouvir o áudio, mas não se conseguir ver o que estava acontecendo. Para eu não ficar enchendo o saco, ela transcodificou a fita cassete e eu a levava para tudo que era lugar. Numa dessas reuniões de trabalho, havia um homem que produzia em Paris um encontro de crianças francesas, e Birgit falou para ele que eu trabalhava com crianças. Ele perguntou se tinha fotos e eu tinha; ele perguntou se eu tinha áudio, e eu tinha, tinha uma fita de videocassete. Ele


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nos levou para uma sala e gostou muito, perguntou se era possível levar as crianças ao seu evento no próximo mês, mas infelizmente não, por causa de passaporte. As crianças e seus pais muitas vezes não tinham documentos. Ele disse que tinha um amigo que faria algo uns três meses depois e que seria bom conhecê-los. Uma semana mais tarde, conhecemos um casal de produtores que, ao final da reunião, acertou de ir ao Brasil imediatamente para conhecer o grupo e, se gostassem, os levariam para a Europa. Enquanto eu vivia meu clipe romântico em Paris, a banda seguia para Brasília para participar do Fórum Internacional da Luta Contra o Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes. Outros educadores acompanhavam os meninos. Lá encontraram o AfroReggae e um carinho recíproco nasceu entre os grupos. Mas um incidente quase maculou a reputação do Bagunçaço. Todas as delegações brasileiras estavam hospedadas no Estádio Manuel Garrincha. A delegação do Bagunçaço era de maioria masculina e lá ficaram muito amigos da delegação do Ceará, formada só por meninas bailarinas. Assim, com uma filmadora e máquinas fotográficas, os meninos dos Alagados passavam muito tempo no dormitório das meninas cearenses, e uma das monitoras do corpo de baile denunciou que eles haviam fotografado e filmado as meninas nuas. Não se tratava de abuso sexual, porque todos tinham a mesma idade, entre 13 e 15 anos, mas os mais conservadores formaram uma comissão investigadora e só não foi dada uma queixa na polícia para não comprometer a imagem do fórum internacional. Pessoas como Nena Lentini, responsável da USAID, e Rita Ippolito, coordenadora do POMMAR, saíram em defesa dos meninos do Bagunçaço. Essas mulheres maravilhosas foram responsáveis pelo primeiro financiamento de um projeto do Bagunçaço. A Nena, antes mesmo da implantação do projeto,


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em uma visita a Salvador, nos conheceu e acreditou que aquele movimento espontâneo poderia aportar um projeto financiado pela USAID. Sobre a denúncia, só sabemos que foram ao nosso alojamento e levaram todas as máquinas fotográficas e a filmadora para perícia. Eu fui despertado na madrugada parisiense com o problema e quando me contaram a história fiquei muito indignado. Mesmo por telefone, afirmei que, conhecendo bem os meninos, sabia que eles jamais se comportariam desse jeito, mas que talvez tivessem se enamorado das meninas o que era natural entre adolescentes. Dois meses depois, o material fotográfico e a filmadora do Bagunçaço foram devolvidos com um pedido de desculpas, pois não havia nada de pornográfico nas fotos nem no vídeo, e sim bate-papo de adolescente, desfile de moda e demonstração de afeto e amizade. Quando voltei de Paris, tinha muita novidade, não parava de contar para todo mundo que os garis lá eram loiros de olhos azuis. Trouxe até fotos para não me chamarem de mentiroso, mas trouxe uma notícia que era ainda mais inacreditável: em um mês chegaria uma produtora de lá para nos conhecer e, se ela gostasse, em julho daquele mesmo ano iríamos todos para a Europa. Quando a produtora chegou, já estávamos preparados, tínhamos gravado uma demo com mais qualidade e organizamos um ensaio na quadra da paróquia. Havíamos convidado amigos e a comunidade sempre vinha. A produtora só passaria três dias em Salvador, dois para gravarmos quatro faixas num estúdio e para eles assistirem um ensaio da banda na comunidade. Quanto ao estúdio foi tudo bem, mas no domingo do ensaio uma chuva atrapalhou. Nossos parentes tinham ido e, como não dava para saber quem era parente e quem era conhecido, ainda me lembro do comentário da produtora:


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— Poxa, eles gostam mesmo de vocês, estão dançando na chuva!

Não sabendo que ali havia uma quantidade quase absurda para os padrões europeus de irmãos, irmãs, primos, cunhados e toda sorte de achegados da família... Só os meninos da casa do Bagunçaço eram quase vinte! Produtora satisfeita, era hora de organizar a viagem. Seriam 45 dias entre julho e agosto na França, em Luxemburgo e na Bélgica. Eu já era o mais experiente e já dizia o que podia e não podia fazer. Por exemplo, não podia coçar o saco na hora que bem entendesse. Lembro do meu saudável Sem Freio me olhando como se perguntasse: “E faz o que então?” A turnê consistia em participar de dois festivais e fazer intercâmbios com várias escolas públicas, asilos, orfanatos, fazer um carnaval infantil em Luxemburgo. Os preparativos aconteceram sem muitas delongas, pois os produtores franceses bancaram a melhoria dos instrumentos, a confecção de figurino e, o mais importante, a regularização dos documentos. Muitas vezes tínhamos que regularizar toda a documentação dos pais para só depois regularizar a da criança. Se na minha primeira viagem foi metade dos Alagados, agora que estavam indo 17 jovens e 3 educadores e que até as televisões haviam noticiado, realmente uma multidão compareceu ao aeroporto. Estávamos decolando com nossas latas para ganhar o mundo: eu, Bira, Sergio, Leo, Paulo, Adson, Thyá, Serginho (Capacete), Sem Freio, Gessy, Nido, Moises, Robson, Astrogildo, Irlan, Nominho, Sayonara (pedagoga) e Luis Amado (educador). Chegamos à Bélgica. Eu já conhecia aquele aeroporto e já sabia que portunhol funcionava, mas também arriscava em francês. Ao sairmos do aeroporto, três vans bem


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modernas nos esperavam, pois todo o sobe e desce pela Europa seria feito nelas. Seguimos da Bélgica direto para Luxemburgo, onde ficaríamos um terço da viagem, quinze dias, pois daríamos oficinas para várias escolas, asilos e orfanatos para depois fazermos um carnaval. Estávamos alojados num internato, mas não havia alunos, pois eles estavam de férias. Era uma escola muito grande; num só dormitório havia dezenas de camas. Ficávamos todos juntos, mesmo quando ofereciam espaço separado para as duas meninas e a pedagoga. Não tinha jeito, todos queríamos ficar juntos, estávamos num mundo diferente e nos sentíamos mais seguros juntos. O Bagunçaço fora fundado havia cinco anos, e aqueles meninos e meninas estavam em plena adolescência, mas havia um senso de pertencimento e uma sinergia que contagiavam por onde passávamos. Quando não conhecemos o outro, quando não sabemos o que esperam de nós, somos espontâneos e isso é uma raridade na Europa. Lembro que, na primeira escola em que fomos, o professor fez as apresentações formais e ficamos abismados, pois todo o material que tínhamos pedido — alicate, tesouras, martelo — havia sido separado em kits. Eram 20 alunos, havia um kit para cada um e um kit para cada um de nós também! Era incrível; a gente até esquecia e ia pegar uma coisa do outro, mas o professor não entendia e dizia em espanhol que cada um tinha o seu. Tudo muito individualista. Ainda assim os jovens, sem falar luxemburguês nem outra língua qualquer, se entrosavam e até riam não sei bem de quê. Só sei que ao final do dia os do Bagunçaço sabiam dizer as coisas mais feias em luxemburguês e francês e os de lá sabiam cada palavrão em português que faria corar qualquer mulher da montanha. Adolescentes… No dia seguinte, ao chegarmos à escola, os alunos já estavam perfilados ao lado de seu kits nos esperando. Lembro que Sergio Comida, Buguelo, Sem Freio e Sergio


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Capacete, que eram os mais novos — tinham em média 14 anos — ao se depararem com os amigos com quem tinham trocado tantos palavrões, ao final da saudação de toques de mão próprios da juventude, tacaram um abraço nos seus respectivos novos amigos. Estes, além de ficarem com os braços esticados e imóveis, ficaram vermelhos como camarões, mas não tinha jeito: no quinto dia eles já sabiam que seriam abraçados, que levariam tapa na bunda, que lutariam, e já pareciam gostar da forma dos brasileiros. Na despedida, quinze dias depois, um português que trabalhava no espaço cultural disse que fizemos milagres, pois nunca tinha visto tanto luxemburguês chorando. Foi muito comovente ver aquelas crianças que pareciam robôs correndo atrás da van e mandando beijos. Estávamos descendo para o sul e, à medida que parávamos num determinado lugar, éramos visitados por famílias dos lugares por onde passamos e era sempre o mesmo chororô na hora de partir. Ao final, chegamos em Arles, uma cidade milenar, para o Festival de Arles no Teatre Antigue, uma ruína de 2 mil anos, onde tocaria, um dia depois de nós, o Santana. Lá encerramos nossa missão. Estávamos intercambiando com uma comunidade árabe. Eles eram considerados violentos, e os organizadores nos preveniram, porém foram os que de cara nos receberam melhor. Eles também gostavam de pegar, abraçar, brigar, foi uma simbiose. Na despedida, vans ligadas, abraços, beijos e eu gritando para que, por favor, não chorassem, porque já tinham chorado demais naquela turnê. Mas, naquele momento, tocava o Tambores do Burudi, era um som forte, contagiante e era o som do final da festa. Dessa vez, nem eu pude conter as lágrimas, aquela gente do Trebom, marroquinos, árabes, tunisianos, africanos de toda parte sabiam o que era discriminação. O Trebom era o Alagados de lá. Choramos


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muito, e eu tinha um motivo a mais, já que estava voltando para o Brasil e deixava Birgit grávida de quatro meses. A primavera de Paris e seus efeitos... Daí as viagens não pararam. Nos anos seguintes o Bagunçaço não parou mais de conhecer o mundo: Suécia, Alemanha, Espanha, Itália, Suíça, Ilha de Malta, México, Moçambique, Estados Unidos etc.


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Cap.10

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As coisas estavam acontecendo, agora já éramos internacionais, começávamos a buscar financiamento e editais para apoiar nossas atividades, e contávamos, de início, com o apoio da USAID por meio do projeto POMMAR. Tínhamos muita frequência na mídia local e, de repente, muitas pessoas nos ligavam querendo saber mais do projeto, eram pessoas do país todo e diziam que souberam da gente via Legião Urbana. Era algo muito estranho, mas depois soube que o disco “A Tempestade”, do Legião, fazia uma menção ao nosso trabalho. Nem acreditamos, corremos para comprar o CD, e lá estava mesmo, pena que o Renato morreu logo em seguida e não deu tempo de lhe agradecer. O grupo tinha crescido muito e já ultrapassara a marca de mais de 350 componentes. O espaço cedido pela paróquia já não era suficiente. Além disso, a movimentação, os ensaios de percussão e as batucadas para receber visitantes já incomodavam os setores mais conservadores da Igreja. Por conta disso, vários conflitos foram acontecendo. Toda vez que algum som de percussão se excedia um pouco, vizinhos e integrantes da paróquia reclamavam. Às vezes, até a Sucom (órgão da prefeitura que, entre outras coisas, monitora a poluição sonora) era chamada. O grupo poderia ser multado e ter todos os equipamentos apreendidos. E só não o faziam porque os fiscais e o próprio departamento eram simpáticos ao Bagunçaço, mas advertiam que nem sempre poderiam mediar a situação. 186


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Em meio a essa insatisfação com a nossa presença, de repente havia uma crescente pressão da Arquidiocese para mudar o padre Clóvis, e nós sabíamos que nossa presença aumentava ainda mais as forças de quem estava por trás disso. Talvez fosse uma questão interna da Santa Igreja, mas uma pessoa como padre Clóvis, que tanto ajudou a todos sem distinção, merecia nosso apoio irrestrito. Como o grupo sempre funcionou com as crianças e adolescente assumindo as atividades, eles sempre foram protagonistas. Um dia, após uma aula de cidadania com histórias africanas, eles decidiram decorar a sala de arte que ficava numa sala do auditório da paróquia com um grande Oxalá. Não posso dizer que foi isso que inflamou ainda mais as coisas, mas a insatisfação com a nossa presença cresceu tanto que foi marcada uma reunião com moradores, membros da paróquia e o Bagunçaço. Eu e uma comissão de jovens fomos a essa reunião. Foi muito tensa e um pouco dura, pois, na verdade, não se alegou nenhuma insatisfação religiosa, e sim o comportamento das crianças e dos jovens. Disseram que nós atraíamos jovens da parte mais perigosa da comunidade, mas isso era claro; disse que essa era nossa clientela e que, apesar disso, nunca houvera nenhum prejuízo ou práticas ilegal das crianças contra os moradores, mas que já haviam ocorrido tentativas de filhos dos moradores de bater em jovens que moravam na Casa do Bagunçaço e que um vizinho tentara me agredir porque eu estacionara o ônibus do Bagunçaço num espaço da paróquia e isso o atrapalhava na hora de estacionar os dois carros que ele tinha. As pessoas, algumas inclusive da paróquia, mesmo estando numa reunião com jovens da idade dos filhos delas, falavam da meninada do Bagunçaço com um certo desdém, com uma distância que fazia parecer que éramos de outro planeta. No ápice da reunião, quando seus argumentos não convenciam padre Clóvis, disseram que


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as crianças se comportavam como pessoas promíscuas, pois usavam o espaço à noite para namorar. Eles não se referiam ao espaço físico usado pelo Bagunçaço, mas à área do entorno da paróquia, onde muitos adolescentes marcavam encontros, pois a outra opção que tinham era ir namorar na ferinha, um lugar muito perigoso e deserto, onde com certeza seriam de alguma forma violentados. Eram namoricos, e claro que não era uma coisa consentida por mim ou por outros educadores, mas, embora a paróquia fosse fechada, qualquer morador poderia adentrar seu espaço até as 22h sem ter que explicar o que ia fazer, pois lá funcionavam diversos cursos, um auditório, um posto de saúde e o Bagunçaço, onde moravam pessoas 24h. Os jovens se aproveitavam disso e marcavam seus namoricos num espaço seguro. Para mim era como se eles demonstrassem confiança naqueles adultos que estavam ali, pois sabiam que estavam protegidos. Na comissão havia três meninas, que tinham entre 15 e 17 anos, e a forma como a pessoa falou, como se os namoricos fossem prostituição, as machucou muito, mas, como eram adolescentes, não sabiam se defender. A pessoa falou meio olhando para elas; foi muito constrangedor. Então eu pedi a palavra. Vinha calado até o momento, pensando comigo mesmo que só usaria minha arma de destruição em massa contra eles se realmente fosse necessário, mas eles tinham ido longe demais, e mais uma vez usei e abusei do discurso. Falei da sexualidade, coisa inerente à pessoa humana, falei de suas filhas e de seus filhos, que eu conhecia bem. Será que por namorarem também seriam prostitutas? Falei que o próprio Cristo, em nome de quem eles estavam ali, fora tolerante com Madalena e falei que o amor, o amor que ele difundia, o amor defendido e efetivado por padre Clóvis, nos acolhia, mesmo sabendo que eu não era cristão e tinha uma matriz religiosa diferente. E perguntei: Se cada um fosse contar seus namoricos de juventude, será que seria uma


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coisa toda certinha? Namoro, noivado e filhos só depois do casamento? E, como sempre, não sei se por causa dos mais de 45 minutos durante os quais tagarelei sem parar, olhando cada um nos olhos, ou se por causa do cansaço, consegui colocá-los em seus devidos lugares. Padre Clóvis, que também não fala pouco e ainda fala bem pausadamente, tomou a palavra e explicou que, como muitos ali tinham dito, realmente o Bagunçaço não estava nos planos da paróquia quando 20 anos antes decidira que naquele vasto terreno seriam construídos, além da igreja, um centro comunitário, uma creche, um abrigo para velhos, um posto de saúde e uma escola comunitária. Foi então que surgimos como filhos adotivos, mas nem por isso menos amados, ou talvez até mais amados, pelo fato de termos sido rejeitados pelos outros filhos. Ao final, bombardeados pela dupla infernal — que me desculpe padre Clóvis, mas “dupla angelical” não teria o mesmo apelo dramático —, os presentes naquela reunião decidiram que, juntos, procuraríamos uma solução para o incômodo sonoro e que poderíamos realizar o Bagunfestlata, mas depois só teríamos percussão quando uma solução a respeito da acústica aparecesse. Para aquele momento, foi interessante; não queríamos deixar padre Clóvis mais contra a parede do que ele já estava e, pelo menos o Bagunfestlata, nosso festival de música em lata, estava garantido, mas eu particularmente pressentia que insistir em permanecer ali não seria saudável para nosso bom padre Clóvis. — Para piorar a situação, o grupo também passava por um aperto financeiro, pois estava sem apoio naquele momento e já devia muito no supermercado, no açougue, na papelaria, e o telefone já estava cortado. A equipe não recebia havia dois meses.


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Nesse período, Dimitri, o anjo da guarda vindo lá das bandas do deserto do Saara (os gringos são de onde são suas famílias e não de onde nascem, ou mais ou menos isso. Então, como sua família russo-inglesa-francesa morava no Marrocos quando ele nasceu, ele é um francês pied-noir, termo que pode parecer pejorativo, mas que eu aprendi dele nas aulas de cultura e vida que ele sempre me regalou) ligou para o Bagunçaço dizendo que um casal de franceses estivera em sua casa e, entre a compra de um quadro e outro, havia demonstrado o desejo de ajudar uma obra social. Falou que foram muito simpáticos, que tinham comprado uma casa no Brasil, que tinham uma sensibilidade social e gostariam muito de conhecer uma entidade e saber como ajudar. Geralmente, aceitamos todos os visitantes; essa é uma atitude espontânea do Bagunçaço, não importa o credo, a nacionalidade ou o poder aquisitivo. E sempre estamos com uma novidade. Assim, Dimitri marcou uma visita, e o casal chegou umas duas semanas antes do Bagunfestlata, que, àquela altura do campeonato, estava ameaçado de não acontecer. Não porque fosse caro, pois o festival não custava muito, e sim porque, havendo tantas dívidas, não seria sensato fazer festa; isso deixaria os credores muito ouriçados. De fato, o casal Attal era muito simpático. A mulher tinha uma voz muito suave, uma leveza espiritual e fazia perguntas bastante inteligentes. Já o marido era muito observador, porém não falava muito e não ria. Isso me deixou um pouco tímido. As perguntas dele pareciam que eram de uma auditoria. Mantinha a expressão de um jogador de pôquer, que não permite que leiam seu estado emocional, mas tinha uma energia muito boa, parecia esconder uma montanha de generosidade naquele semblante misterioso.


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Ao se despedir, o casal deixou um cheque comigo, que educadamente dobrei e agradeci. Não prestei atenção no valor. Acabei esquecendo-o na gaveta da minha mesa, me ocupei com outras coisas e, só mais tarde, quando conversava sobre as dificuldades de manter o projeto e, sobretudo, se teríamos ou não o Bagunfestlata, me lembrei do cheque e fui conferir o valor. Liguei imediatamente, muito assustado, para Dimitri, porque eu acreditava ter havido um erro de preenchimento. Só podia estar errado, pois o cheque deixado era de 10 mil dólares! Mais uma vez voltava a lenda dos dólares inextinguíveis... Então o IV Bagunfestlata aconteceu tão animado que os meninos nem perceberam que era uma despedida da vida na paróquia. A fórmula foi a mesma dos anos anteriores: as bandas de lata eram separadas em faixas etárias e também eram convidadas bandas de lata do interior do estado, que se hospedavam nas instalações da paróquia. Cada banda que chegava de um interior distante trazia uma novidade em seus instrumentos feitos de lata e havia um intercâmbio de tecnologia. Durante quatro dias, a comunidade sabia que o Bagunçaço era um festejo só. Havia oficinas de instrumento de sopro, teatro, corte de cabelo gratuito, circo (e até espetáculos), fabricação de papel reciclado e de brinquedos com sucata. A paróquia era embandeirada, aconteciam palestras sobre temas variados, havia uma missa ecumênica na igreja na qual a música era feita com as latas do Bagunçaço... As bandas concorriam numa grande harmonia, valia tudo, pois a intenção era que todos saíssem ganhando alguma coisa: melhor cantor, melhor banda, melhor figurino, melhor isso e aquilo. O prêmio mais disputado era o de melhor participação familiar, então iam mães, tios, avós, vizinhos, todos levavam faixas e, em uma torcida


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familiar dessas, foi até o cachorro de um dos meninos, um vira-lata que, coitado, talvez tivesse tomado o primeiro banho da vida dele, dava para notar pela tristeza do bicho; mas foi uma graça vê-lo vestido com o figurino da banda do seu dono. Após o Bagunfestlata, o grupo deu uma parada de quinze dias para as festas de fim de ano e, quando retornou, em meado de janeiro, eu não sabia o que fazer, pois tinha que cumprir o acordo com a comunidade. Era triste ver aqueles meninos e meninas perambulando pela sede, proibidos de tocar seus instrumentos. Passados dez dias dessa situação, marquei uma reunião com os líderes das bandas de lata e com as pessoas da equipe. Essa reunião aconteceu fora da comunidade e lá eu exibi o filme Vida de inseto. Embora as crianças gostassem de desenho, não entenderam por que tinham ido tão longe para assistir a um desenho animado. Os maiores achavam que eu estava ficando louco, porque tinha passado aquele mesmo desenho para eles uns oito meses antes, e deviam estar curiosos, pois na época, depois de assistir ao desenho, eu convidei um grupo restrito e tivemos uma reunião ultrassecreta por mais de uma hora. Então era normal que os que não ficaram para a reunião e agora estavam vendo o filme pela segunda vez estivessem com a pulga atrás da orelha. Em 2000 convoquei os jovens mais velhos e mais militantes do projeto, como os membros da equipe, que geralmente eram jovens oriundos dos projetos, salvo os serviços técnicos, para uma reunião no Projeto Sobas Princedom, lá no Parque São Bartolomeu. Já sentia as mudanças de ares, pois em diversas conversas com padre Clóvis e com algumas beatas simpáticas ao Bagunçaço sentia que, cada vez mais, estava sendo difícil controlar a insatisfação de muitos com a nossa


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presença. Então, tratei de criar um plano B. Era algo difícil, precisava de muita organização e total sigilo, mas tínhamos que tentar. Uma vez exposta a situação àqueles escolhidos após a primeira exibição do filme Vida de inseto, os jovens, bem mais criativos que eu, decidiram forjar a ruptura de um dos grupos do Bagunçaço. O grupo de dança, formado por meninos e meninas entre 16 e 18 anos, alegando ter se desvinculado do Bagunçaço, foi procurar a associação local (proprietária da creche em ruínas) e pedir que pudessem usar o espaço nas ruínas da creche para ensaiar, e, com o tempo, eles conseguiram a confiança dos diretores da associação e a chave da parte utilizável do prédio abandonado. Voltando a fevereiro de 2001, a equipe e os que não participaram da reunião secreta depois do filme deviam ter pensado que, após tantos anos expostos ao som da percussão permanente do Bagunçaço, eu tinha desenvolvido alguma dependência química e, como agora estava privado de meu vício, tinha surtado, e por isso aquele desenho animado de novo. Depois do fim do filme, fizemos um círculo e começamos a analisá-lo. Falamos bastante da situação-problema das formiguinhas, do medo de reagir, do medo do desconhecido, dos desafios, dos aprendizados e das diversas formas de liderança dos indivíduos daquela comunidade para finalmente conseguirem vencer os gafanhotos. Expliquei que naquele momento o Bagunçaço precisava dos esforços de todos para superar o desafio. Lembrei a reunião que tivemos no ano anterior na paróquia, as coisas que ouvimos e a situação de padre Clóvis, que lutava para não ser afastado do trabalho que criara, e que nossa presença o deixava mais vulnerável. Falei que tínhamos de tentar encontrar uma sede nova, um espaço na comunidade, e que o jeito era invadir. Expliquei que,


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depois de pesquisar, tinha identificado quatro espaços que estavam abandonados: dois do governo e dois privados, mas em fase de desapropriação. Fiz uma consulta à legislação e, segundo a lei, não era crime usar um espaço público para fins coletivos. Estávamos com o mesmo problema das formiguinhas: tínhamos medo. Fora eu e um punhado de adultos, o grupo era formado por crianças e adolescentes; não podíamos reagir a intimidação física, pois éramos fracos nesse sentido, então tinha que ser um plano e tanto. Assim, revelei que o grupo de dança rebelde era na verdade nosso espião em território do inimigo; o líder do grupo estava do meu lado, que, até então, era olhado atravessado pela assembleia, que não entendia minha simpatia por ele e os nossos cochichos de vez em quando. Expliquei que na reunião em abril um grupo seleto tinha se reunido depois do filme e ali traçamos uma estratégia. Expliquei que, embora eu tivesse pesquisado outros espaços, já havia escolhido o mais seguro. Era a creche abandonada ao lado da paróquia, aquela mesma que ficava de frente para a gente e que fora apelidada de Cracolândia pela comunidade. Da nossa sede, era a primeira vista que tínhamos, e várias vezes já havíamos solicitado da associação vizinha o consentimento para ocupar aquele prédio vazio. Aqueles que estavam ali eram de extrema confiança e não podiam comentar nem com suas sombras sobre o assunto. Foi difícil, pois instruímos as crianças a sempre partilharem tudo com seus pais, mas alguns deles tinham pais envolvidos de alguma forma com a outra associação, então era melhor não comentarem nada. Alguns ponderaram que eu mesmo sempre dizia para não terem segredos para os pais, então cheguei ao meio-termo: quem achasse que falar para o pai ou para a mãe não poria o plano em risco que falasse, mas que ao menos me avisassem quem falou.


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Então, olhei para Alex, o rapaz que forjara ter rompido com o Movimento de Bandas de Lata, e lhe perguntei: — Você trouxe mesmo?

Ele disse que sim. Meteu a mão dentro das calças, como geralmente fazem os adolescentes quando querem esconder alguma coisa, e me entregou. Eu passei a explicar que aquela era a chave da parte utilizável das ruínas, pois, de um total de doze cômodos, só três estavam com telhados originais e eram usados por grupos de boxe, capoeira e dança. O restante estava em completa ruína, salvo a recepção, que era ocupada por uma família que havia perdido sua casa e estava provisoriamente usando aquele local. Eram um local inabitável, mas na necessidade era o que valia... O restante era usado por drogados. Havia uma área atrás do espaço, do tamanho de um campo de futebol, que era usada como depósito de lixo por toda a vizinhança. Ao entenderem todo o plano, os jovens espiões foram aplaudidos, e eu comecei a explicar o passo seguinte, que era mobilizar todos os integrantes do Bagunçaço na ocupação. Mas não podíamos contar onde seria e, além disso, eu precisava de mais dinheiro, pois devíamos muito. Com a grana deixada por Bernard e Anne Attal (o casal francês) pagamos todas a dívidas e fizemos o festival, trazendo bandas de lata do interior e tudo. Então, lembrei de um amigo americano, Douglas Simon, muito gente boa, dizendo: “Vocês sabem como são os americanos, gostam de invadir, né?” Pois é, quando contei a ele a ideia ele doou 3 mil reais para a causa. Eu esqueci de contar que em agosto do ano anterior havíamos ficado uma semana num assentamento do MST no sul da Bahia com 27 crianças e adolescentes. Fomos participar com nossas bandas do encontro da juventude deles. Pois bem, agora que tínhamos apoio de um americano e know-how do MST — a coisa só podia dar certo.


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Os jovens líderes conseguiram fazer sua parte e, assim, no dia 13 de fevereiro de 2001, na Igreja de São Jorge (no auditório era perigoso vazar, pois nas imediações moravam muitas pessoas; na igreja fechada era mais seguro), fizemos uma assembleia com todas as bandas. Cada menino que fosse líder de sua banda tinha ficado incumbido de levar todos da banda e, assim, seria conferido se eles tinham mesmo essa liderança toda. Os danados mostraram toda a força! Um até levou dois primos! Ninguém entendeu nada, mas ele tentou justificar dizendo que a banda dele era pequena e os primos eram de confiança, não moravam na comunidade, estavam de férias. Na assembleia, já conduzida pelas lideranças, e na qual eu, estrategicamente, só falaria no final, o assunto foi tratado diretamente. O problema foi exposto e foi criado um quadro de sugestões. Primeiro se deveríamos sair ou ficar na paróquia, então foi decidido que deveríamos sair, mas manter a relação com padre Clóvis. Depois a sugestão sobre locais abandonados: em primeiro lugar veio a creche, depois a ruína do Cine Teatro, o estaleiro Mario Backer e a antiga fábrica Toster, perto da Igreja do Bonfim (assim quase íamos para a área nobre da Penísula Itapagipana). Claro que o lugar mais votado foi a creche ao lado, mais perto da paróquia e da casa da maioria deles. E, por último, sugestões das necessidades para a ocupação: um caminhão de mudança, material para arrumar o local, um carpinteiro, um pedreiro, um eletricista. Alguns meninos queriam seguranças, mas eu intervim, expliquei que assim o outro incomodado poderia revidar, e se fossem só crianças e educadores seria mais difícil, pois na comunidade não se registrava violência contra educadores populares e crianças no projeto — porém, é estranho que não respeitem da mesma forma professores de escolas públicas, mas não trataremos disso aqui.




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Lembro como se fosse hoje de que nesse momento em que alguns se sentiam inseguros e não conseguiam entender minha lógica, ficou um falatório na reunião — todos falavam ao mesmo tempo e um pequenininho, que tinha problema com a fala, educadamente levantou a mão, mas naquele momento ninguém observava mais esse requisito de pedir para falar. Ele continuava a levantar a mão e tentar dizer algo. Vendo suas tentativas sem sucesso, eu comecei a tentar ler seus lábios. Meu esforço chamou a atenção de outros, que gradativamente foram parando a confusão e tentando entender o que ele dizia. Os mais próximos dele, que achavam que tinham entendido, repetiam alto, o, que ele desaprovava, sacudindo a cabeça. Outros se esforçavam para entender e repetir alto, mas não acertavam. O silêncio foi tomando conta da igreja e a voz dele, mesmo fanha, foi ficando mais audível, mas não compreensível, e, como sempre acontece, dois ou três na atudiência mataram a charada ao mesmo tempo e gritaram: — Um advogado!

E todos riram, riram muito. Então pedi que colocassem na lista um advogado, até porque, como ele explicara, e se a polícia aparecesse? Nas comunidades violentadas desse Brasil as crianças têm mais medo da polícia do que de qualquer outra coisa. Lembro do meu amigo irmão Júnior, do AfroReggae, que escreveu em um livro que, havendo um tiroteio na comunidade, deve-se correr sempre para o lado do bandido. Eu estava apreensivo, pois, mesmo com todos rindo, aquele menino chamara a atenção para algo importante: por mais confusão que os líderes da outra associação fizessem, não havia perigo de violência física, mas a polícia, sim, essa poderia ser imprevisível. Então a sugestão do advogado já estava bem acolhida. Tínhamos Doutora Kassira Bomfim, minha amiga-irmã e nossa


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admiradora, que na época estava ajudando no projeto do Parque São Bartolomeu, porém me lembrei do acontecido no início do Bagunçaço e chamei Dimitri (francês), Alicia (cubana), Douglas (americano), Lennart (sueco), além de amigos brasileiros formadores de opinião. Também liguei para o jornal Correio da Bahia, falei com um jornalista e prometi que iríamos fazer algo no bairro que seria um furo para ele. O jornal pertencia à família de Antônio Carlos Magalhães, que estava no governo. Na minha fala final, expliquei aos meninos que tudo aquilo dependia de dinheiro. Fiz um pouco de suspense sobre como conseguiríamos e, depois do suspense, disse que um amigo chamado Douglas Simon havia doado o dinheiro. Foi uma festa! Já não importava a algazarra dentro da igreja, afinal, no dia seguinte iríamos embora e nossos desafetos não poderiam fazer mais nada mesmo. Quanto a padre Clóvis, ele amava a garotada daquele jeito, e São Jorge, que enfrentava dragões, devia tirar de letra meninos peraltas. Expliquei que, embora o espaço escolhido fosse a creche ao lado, não poderia dizer com certeza que ocuparíamos ela, pois ainda faltava uma confirmação de sua situação legal, mas que no dia seguinte, a partir das 14h seria a ocupação e ninguém poderia comentar o fato, só ir tocar e se juntar ao movimento. Pedi um voto de confiança, pois no momento da marcha musical eu anunciaria o local da ocupação. Todos, já mais que excitados — “menino adora uma folia”, como diz minha mãe —, concordaram, e alguns foram pedir a seus pais para dormirem no projeto, pois queriam ajudar nos preparativos. A ocupação não podia dar errado, pois o Bagunçaço não tinha para onde ir. Então trabalhamos a noite toda arrumando as malas para a grande mudança. Pela manhã, fomos atrás de pedreiro, encanador, eletricista, caminhão para mudança; geralmente, os parentes das


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próprias crianças, que cobravam um preço barato. Havia muito nervosismo no ar, era um passo ousado, mas não tínhamos escolha. Tudo estava planejado para começar às 14h, mas o caminhão tinha quebrado, a carroça com alguns materiais de construção se atrasara e quando as bandas, os integrantes, os amigos nacionais e os observadores internacionais estavam a postos, o jornal não chegava. Já eram 14h50! Então subi para ligar para a redação do jornal, e eles avisaram que o jornalista já tinha se deslocado para o local e que era para aguardar. Sabe como são os jovens, querem ação. Já estavam impacientes! As pessoas da rua da paróquia não entendiam o que estava acontecendo, acho que no máximo acreditavam que estávamos voltando para a ruína do Cine Teatro Alagados. Para acalmar os(as) meninos(as), autorizei Táta (um dos maestros da percussão) a fazer uma pequena batucada. Poquito circulava pela rua da frente para ver se o jornalista estava perdido por ali quando finalmente o carro chegou. Poquito me olhou, o jornalista desceu correndo com o fotógrafo, e já foram fotografando tudo. Fotografavam banda, faixas, carroça, gringos etc. Devolvi o olhar para Poquito, que subiu para chamar o resto do nosso povo que ainda estava espalhado dentro da paróquia e na sede. Quando Poquito retornou, Táta, que era o maestro da banda Sucata’mania e também já havia morado na casa, comandava o exército mirim. Munidos de latas, descargas, tonéis e muita euforia, ele, à frente de seu batalhão, olhou para mim, que estava um pouco mais ao fundo sendo abordado pelo repórter. Olhei fixamente para ele e, ao levantar e abaixar a mão, ele entendeu que era o sinal de atacar: puxar um toque e fazer a banda andar. Já havia a essa altura muitas outras crianças e pessoas em volta, simpatizantes do grupo, curiosos, entre outros.


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— Ogum, que vinha acompanhando o Bagunçaço lá da terra de Aiucá, percebeu que seus filhinhos estavam em apuros e partiam para uma guerra desproporcional. Imagine que crianças e adolescentes tomavam uma atitude extrema simplesmente para terem acesso ao direito básico de lazer e de cultura! Como guerreiro que não tolera injustiça, Ogum imediatamente tomara a causa para si e não deixaria aqueles erês sozinhos. Com certeza, ali estavam meus antepassados, liderados por Senameã, minha avó, que era de Oxumaré, e Zé Bofeia, meu pai, que nunca foi da coisa, mas foi apoiar a ocupação. A tropinha musical não marchou nem 50 metros, pois a rua onde ficava nosso provável futuro novo endereço era paralela à paróquia, então só pegamos uma transversal e, paramos bem em frente à Associação União Comunitária, que detinha o controle do espaço. Também nesse prédio funcionava uma escola pública, e a diretora era filha do presidente da associação. A banda parou na frente da rua; para entrar nela precisaria fazer uma conversão para a direita, mas, antes disso, Táta fez a percussão parar. Eu segui para a frente da multidão, ao lado de Leide e Poquito, agradeci a confiança que me fora depositada, apontei para a rua e disse: — Vamos, nossa nova sede será ali.

Embora a diretora estivesse na janela, como em toda escola, o zum-zum-zum, a falação e acredito que Exú, que adora uma confusão, não permitiram que ela entendesse o que eu dizia. E ela continuou lá na janela vendo a banda virar para a direita e entrar na rua. Literalmente, ela ficou vendo a banda passar...


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Num grande rufar de tambores, andamos uns 40 metros e paramos numa porta improvisada na lateral do prédio. O silêncio tomou conta de todos; já havia muitos curiosos. Fui até a porta, retirei a chave que havíamos copiado e abri o cadeado. Novamente o rufar dos tambores, os gritos de aclamação e as crianças se precipitando para dentro do espaço. Poquito, Leide, Fabiana e outros cuidaram de descarregar nossa mudança. Ainda estávamos deslumbrados, pois caminhávamos pela parte utilizável do espaço, e sabíamos que o grupo de capoeira, o de boxe e alguns grupos de dança usavam aquele espaço, mas isso seria assunto para resolvermos depois. Estávamos no deslumbramento quando uma voz alterada chegou da sala principal por onde entramos. Então corri até lá e, ao chegar, uma senhora meia descabelada apontou na minha direção e disse: — É aquele ali!

Três mulheres bem-arrumadas olharam para mim e uma delas veio com o dedo em riste perguntando: — Quem o autorizou a entrar aqui?

Eu respondi que ninguém, que estava ali à revelia, pois era um espaço público e abandonado. A mulher se indignou e, bem irônica, gritou no meio da sala que o marido dela era comandante da polícia e que eu ia ver uma coisa já, já. E saiu falando ao celular. Os meninos e as meninas ficaram assustados com aquele bate-boca de adultos; sabiam que ela era a diretora da escola e que sua família era influente. Vendo que eles estavam apreensivos e, solicitei que a banda, agora com um microfone, fizesse um show na porta e que todos que tocavam se revezassem para não deixar o som parar. Estávamos arrumando as coisas quando, uns vinte minutos depois, um som de sirene foi ouvido na rua, os policiais chegaram e saíram todos ao mesmo tempo do carro


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depois de uma parada brusca. Eu estava perto da banda, que ensaiou parar de tocar, então olhei para o menino que fazia as vezes de maestro naquele momento e disse que não parassem de tocar e se mantivessem tranquilos. Logo apareceu a diretora, que me apontou para os policiais, e eles vieram na minha direção. Imaginem que já existia uma multidão em volta do acontecimento. Um policial me pegou pelo braço e saiu me puxando para um canto longe da banda, mas a criançada toda foi atrás. Os policiais tentaram encontrar outro lugar longe da meninada, que não arredou o pé, algumas crianças seguraram meu outro braço como se tentassem me soltar da mão do policial. Minha amiga Kassira, que estava lá dentro com os amigos estrangeiros e brasileiros, chegou. O policial ordenou que eu dissesse às pessoas do grupo para desocuparem o espaço. Ao mesmo tempo, um grupo de pessoas que jogava dominó e que fazia parte da associação entrou no prédio e tentou evitar que Lennart, nosso amigo sueco, filmasse. Léo, como é carinhosamente chamado pelos meninos, não entendeu o que eles falavam, então eles tentaram tomar a câmera. Léo, do alto de seu 1,98 metro, embora seja uma pessoa muito tranquila, não permitiu a aproximação e isso fez com que os homens se exaltassem. Três crianças saíram correndo e foram até a outra extremidade do Alagados, lá no Uruguai, no módulo policial perto da Igreja Nossa Senhora dos Alagados, e pediram ajuda. Fizeram uma narração atrapalhada, os policiais foram com as crianças e chegaram da mesma forma espalhafatosa. Abordaram Poquito e perguntaram se estava acontecendo algo. Poquito, nervoso, disse que não; temia que mais viaturas viessem contra a gente, mas as crianças apontaram para o Léo, que a essa altura já estava perto de mim do lado de fora do espaço. Os policiais chegaram e começou uma discussão entre as duas viaturas.


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Os policiais que chegaram acharam que a iniciativa era boa, porque aquele local era usado para consumo de drogas e prostituição e eles conheciam o trabalho do Bagunçaço. A outra viatura estava lá a mando do comandante, que atendia ao pedido da esposa. Discussão, empurraempurra, então decidiu-se que era melhor ir para uma delegacia. As duas viaturas disputaram o direito de me levar, mas Kassira disse que, como era minha advogada e até aquele momento eu não tinha sido acusado de crime nenhum, eu iria no carro dela. Ao me dirigir ao carro de Kassira, pedi à banda que não parasse de tocar e passei o comando para Poquito. — Bem, posso dizer que escrevi este relato, livro ou causo da nossa nova e permanente sede. Iluminação para todos!


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Imagens: índice e créditos

P.21

Eu, minha irmã Joselina e minha vó Nair (Senameã), em 1974 foto: Arquivo pessoal

P.21

Eu, minha irmã Joselina, meu irmão Joseval, minha vó Nair e minha tia Nildes (Ekede) foto: Arquivo pessoal

P.26

Casa palafitas foto: Arquivo Bagunçaço

P.27

Minha mãe, Jovelina, e minha avó, Nair, na entrega do Decar foto: Arquivo pessoal

P.30-31

Casa palafitas foto: Arquivo Bagunçaço

P.36-37

Casa palafitas, Oficina Bagun’imagem Sylvia Johnson, em 2006 foto: Arquivo Bagunçaço

P.39

Casa palafitas, em 1997 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Joselito Crispim

P.45

Acampamento na Ilha do Rato, em 1994 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Joselito Crispim

P.54

Visita a Ilha do Rato, em 1999 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafa: Alicia Sanabria

P.62-63

Bagun’fest’lata, em 2002 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafa: Mila Petrillo


P.91

Assembleia Bagunçaço, em 2000 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling

P.102-103 Limpeza da nova sede, em 2001

foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling

P.112-115 Batucada na área verde, nova sede

foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling P.119

Jonathan e sua descarga foto: Arquivo Bagunçaço

P.125

Bagunçaço de Moçambique, em 2003 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafa: Rayssa Coe

P.126-127 Banda Atitude, Paróquia, em 1998

foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling

P.132-133 Instrumentos da Sucata’mania

foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling

P.142

1° Bagun’fest’lata, Igreja Nossa Srª dos Alagados, em 1995 foto: Arquivo Bagunçaço

P.148

Marca Olodum foto: Arquivo Bagunçaço

P.153

Bloco Bagunçaço, Circuito Campo Grande, em 1997 foto: Arquivo Bagunçaço

P.160-161 Limpeza da nova sede, em 2001

foto: Arquivo Bagunçaço

P.166

Limpeza da nova sede, em 2001 foto: Arquivo Bagunçaço

P.174-175 Cartaz de intercâmbio na Suécia, em 2004

foto: Arquivo Bagunçaço

P.179-183 Viagens diversas: Malta, Suécia, Suíça e Dinamarca

foto: Arquivo Bagunçaço

P.191

Workshop de sopro com Tom Black e Tobbe, em 1999 foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling


P.192-193 Gravação do Clip Vaza Maré, em 1999

foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Sergio Machado

P.194-195 Bagun’fest´lata, em 2002

foto: Arquivo Bagunçaço

P.196-197 Ensaio Cia. Bagunçaço, Paróquia, em 1998

foto: Arquivo Bagunçaço

P.204-205 Ruínas da sede nova recém-ocupada, em 2001

foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Diosmar Filho

P.210

Bagunçaço X Balé Tradicional do Japão, Carnaval, em 2000 foto: Arquivo Bagunçaço

P.214-215 Sede nova recém-ocupada, em 2001

foto: Arquivo Bagunçaço

P.216-217 Banda mirim do Bate-Estaca, em 1998

foto: Arquivo Bagunçaço

P.222

Joselito Crispim foto: Arquivo pessoal



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Sobre o autor

O soteropolitano Joselito Crispim é cineasta e estudante de Direito. Viajado pelo mundo, de onde se sente parte ativa, codirigiu os curtas de ficção “Ilha do Rato” (película), em 2003, e “29 Polegadas” (película), em 2004. Também fez a codireção do documentário “Sim Não Mau Conduto” (HDV), em 2007. Como ator fez, em 2007, uma participação com Carlinhos Brown, no Festival de Verão de Salvador, ao interpretar o personagem símbolo do festival, apelidado por Brown de “Fever”. É produtor-executivo e sócio da Santa Luzia Filmes Empresa, do Grupo Trapiche Barnabé. Pai solteiro e coruja, observa o fim da adolescência de Elvis, 18, e Josinan, 17, ambos militantes do Bagunçaço, e acompanha ansioso pela internet a entrada na adolescência de Jan, 13, que vive na França, com a mãe Birgit. Segue nadando contra as correntezas da vida para continuar apoiando as “travessuras” pedagógicas do Grupo Cultural Bagunçaço. Para quem desejar mais informações sobre o Bagunçaço, ver no Blog du Pim (http://blogdupim.blogspot.com/) e no site do TV LATA (http://tvlata.org/).


Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m². Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m². Impresso pela Imprinta Express em setembro de 2010. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



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