Devotos 20 anos
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Devotos 20 anos Hugo Montarroyos
Programa Petrobras Cultural
Apoio
Copyright © 2010 Hugo Montarroyos COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfico CUBICULO ilustrações da capa e da quarta capa a partir de fotos de MICHELE SOUZA DEVOTOS 20 ANOS produtor gráfico SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão BEATRIZ BRANQUINHO CAMILLA SAVOIA ELISA ROSA revisão tipográfica CAMILLA SAVOIA M765d Montarroyos, Hugo Devotos, 20 anos / Hugo Montarroyos. – Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010. il. – (Tramas urbanas) Apêndice ISBN 978-85-7820-035-0 1. Alto José do Pinho (Recife, PE). 2. Movimento da juventude - Recife (PE). 3. Música - Aspectos sociais - Recife (PE). 4. Rock. I. Programa Petrobras Cultural II. Título. III. Série. 10-0165
CDD: 306.4842 CDU: 316.74:78.067.26
13.01.10
14.01.10
017123
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401 LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 22.440-030 TEL: 21 2529-6974 TELEFAX: 21 2239-7399
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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte dessa percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, suas condições socioeconômicas e a afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a Internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como seu objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas deste novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
Heloisa Buarque de Hollanda
Agradecimentos
Era um sonho antigo do autor escrever um livro sobre o Alto José do Pinho. E tal sonho só pôde ser concretizado graças ao Neilton e à Heloisa Buarque de Hollanda. O primeiro, por ter me indicado à segunda. À Heloisa, por ter acreditado em um autor de primeira viagem. Seu conselho, de “escrever curtindo, se divertindo”, foi dos mais sábios: foi uma delícia escrever o livro. Muito obrigado aos dois, de coração. Meu agradecimento especial ao Alto José do Pinho, que sempre me recebeu de braços abertos, desde os tempos em que subia o morro para curtir os shows de rock até os mais recentes, de gravador em punho, para as várias entrevistas que coletei para este livro. Ao jornalista José Teles, pelo apoio e pela disponibilidade para compartilhar informações com o autor. Ao Guilherme Moura, pelas imagens cedidas e apoio incondicional nesses tantos anos de convivência no mundo roqueiro de Pernambuco pelo site Recife Rock! Não posso deixar de agradecer ao Adilson Ronrona, ao Ailton Peste, ao Cannibal, ao Celo, à dona Detinha, ao Neilton, ao Tiger e ao Zé Brown. Eles foram de uma paciência infinita durante todo o processo de feitura do livro.
Alguns deles já me brindavam com sua amizade ao longo dos anos, fato de que muito me orgulho. Ao Paulo André Pires e ao Gutie, pela atenção e paciência. À Ana Maria Ezcurra, pela generosidade em ceder para consulta do autor sua excelente dissertação de mestrado As fugas musicais, que, assim como este livro, tem o movimento musical do Alto José do Pinho como objeto de estudo. À Neide Mendonça, eterna professora e querida amiga, pela revisão e preciosas dicas que enriqueceram muito este trabalho. Não tenho palavras para expressar o quanto sou grato e como foi importante sua ajuda. À Camilla Savoia, da Aeroplano Editora, pela atenção e paciência. Seu trabalho foi crucial para a feitura deste livro. À jornalista Juliana Moreira, que, da Suécia, me honrou com uma prévia leitura e valiosos conselhos, meu muito obrigado. Aos jornalistas Mirella Martins e Marcelo Pereira, agradeço pela atenção e pelo interesse. Finalmente, à minha mãe, Selma, uma verdadeira guerreira que quase levo à loucura durante a concepção deste trabalho. Ao meu pai, Fred, também jornalista, pelo apoio incondicional e experientes conselhos de quem já passou três vezes pelas agonias e delícias de publicar um livro. Ao meu irmão, João Augusto, pelo carinho e incentivo.
Sumário
Prefácio
A revolta pode ser de paz
Parte I 16 Cap.01 Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver O começo Tem de tudo O Alto hoje 36
Cap.02 Do metal ao mangue
48 Cap.03 Viva a vida que você me deu O encontro Brincando do jeito que dá Professor Pardal Cap.04 O Leonardo da Vinci da guitarra 76 O estúdio de Lee 88
Cap.05 Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
Cap.06 Deus, abençoe a todos 96 Deus, abençoe meu povo 106 Cap.07 É no banheiro... Aborto masculino: pare de jogar menino fora ou 5 x 1
Parte II 120 Cap.01 Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho Espelho dos deuses Demos Tem afoxé, tem punk rock, tem rock’n’roll, tem samba e tem pagode Anos 1980 148
Cap.02 Não somos marginais
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Cap.03 Quero até sua mulher
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Cap.04 Nós faremos que você nunca esqueça
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Cap.05 Homens fardados, eu não sei, não
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Cap.06 Goticar
188 Cap.07 Me ajude a ser humano Eu tenho a fome de viver Nasce um artista Carisma 204
Cap.08 Críticas e críticas
208 Cap.09 Coletânea Preconceito 214
Cap.10 Faz parte do cotidiano
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Cap.11 Faces na França
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Cap.12 Quem é o pai?
232 Cap.13 Luta pacifista
Parte III 238 Cap.01 A arte de Neilton Amp 252 Cap.02 A fundação da ONG “Alto Falante – gravando o show” 270 Cap.03 Tudo que eu queria O núcleo hoje Discografia Coletâneas Videoclipes Trilhas Sonoras Livros Festivais
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Anexo – Entrevista Devotos 20 Anos
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Imagens: índice e créditos
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Sobre o autor
Prefácio
A revolta pode ser de paz1 A revolta pode ser de paz. A incongruência da frase cai como uma luva para ilustrar a atitude de toda uma geração de moradores do Alto José do Pinho. Jovens que, entre o final da década de 1980 e início dos anos 1990 do século passado, sem maiores perspectivas de ascensão social e tendo a criminalidade como um vizinho onipresente, resolveram trilhar o caminho mais difícil: o de canalizar toda a revolta que sentiam em expressão artística. Gente que teve a coragem de pegar em instrumentos musicais em vez empunhar armas, mesmo sem ter a menor noção de como tocar, sem dinheiro para comprar instrumentos e tampouco para pagar aulas de música. Cansados de atuarem como coadjuvantes na história da violência que marcava o lugar em que viviam, utilizaram a música como fonte de escape. Em vez de seguirem a triste estatística que impregnava as páginas policiais dos jornais locais, em que moradores do Alto José do Pinho só eram noticiados como assassinos ou vítimas de assassinato, traficantes ou usuários de drogas, esses jovens mudaram a realidade local. No início do processo, de forma inconsciente; em um segundo momento, de forma completamente engajada, transformaram o cotidiano não apenas de sua vida, mas também de sua comunidade. 1 Trecho de letra extraído da música “Canção para mudar”, do quarto álbum dos Devotos, Flores com espinhos para o rei, de 2006.
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Esta poderia ser apenas mais uma história de superação entre tantas vividas por muitos brasileiros nas inúmeras favelas espalhadas pelo país afora, não fosse um pequeno detalhe: a transformação ocorreu de dentro para fora. Não houve quem os ajudasse no começo de tudo. Ao contrário, até o Alto José do Pinho discriminava aqueles adolescentes de calças rasgadas, cabeleiras exóticas e cabeças raspadas. Gente que começava a transitar em uma contracultura roqueira inimaginável até então para um morro, local que costuma sempre ser associado com outros gêneros musicais, jamais com rock, punk, hardcore e metal. Ou seja, na caminhada desses jovens havia o duplo preconceito: o interno, vindo de seus vizinhos que não entendiam o que aquela cambada de malucos queria dizer, e o externo, das pessoas dos bairros mais abastados da capital pernambucana, que ignoravam a existência do Alto José do Pinho. Ou, pior, só relacionavam o local à criminalidade. Se hoje a reputação do Alto José do Pinho é outra, motivo de orgulho para os cidadãos recifenses, é graças a esses garotos que, literalmente, aprenderam a fazer música, na marra, na vontade, com uma teimosia que beirava o quixotesco. Se atualmente o Alto José do Pinho é tema de trabalhos acadêmicos, reconhecido no país inteiro e procurado por pesquisadores e sociólogos até de fora do país, é porque lá atrás, no final dos anos 1980, garotos como Cannibal, Neilton, Celo, Tiger, Zé Brown, Adilson Ronrona, Ailton Peste, Marcelo Massacre e tantos outros cismaram de fazer arte. E, mais importante, meteram na cabeça, a partir de certo momento, que sua arte poderia servir para mudar a imagem que as pessoas tinham do Alto José do Pinho. Ainda mais relevante, para que os moradores do Alto José do Pinho mudassem a concepção que tinham do bairro onde moravam. Sentimento que foi da vergonha por morar em um local tão violento ao orgulho de residir em um bairro que produzisse tamanho
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número de artistas. Esta é a história de um grupo de moleques que superou todas as limitações pessoais, físicas, sociais, financeiras e psicológicas. Garotos que passaram de malvistos por sua própria comunidade a músicos cujo talento é reconhecido nacionalmente e até no exterior. E que, na condição de artistas, transformaram-se em agentes sociais ao fundar a ONG (Organização Não Governamental) Alto Falante. É a trajetória, também, de um garoto que acabou se transformando em um artista plástico e designer gráfico de renome internacional, além de guitarrista, eletricista, engenheiro de som e produtor de disco. Tudo na base do esquema punk do it yourself, sem professor, sem qualquer pessoa que facilitasse o caminho das pedras. A narrativa de Neilton, guitarrista da banda Devotos, é, de certa forma, uma síntese de toda a história recente do Alto José do Pinho.
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seus vĂŁo viver e vocĂŞ vai viver
Cap.01
Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver1.
1 Trecho de letra de “C.O.S.”, faixa de Agora tá valendo (1997), primeiro disco dos Devotos do Ódio
No dia 21 de setembro de 2008, milhares de pessoas ocuparam a rua principal do Alto José do Pinho. Um enorme palco fora erguido no local. Jornalistas de rádio, televisão e publicações impressas dividiam o espaço sem esconder um certo nervosismo e uma boa dose de emoção. Pessoas de classe média transitavam tranquilamente, misturando-se aos moradores do morro. Havia também gente de outros Estados, de Maceió, de João Pessoa, de Natal. Entre os convidados, Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado, e Clemente, vocalista dos Inocentes e da Plebe Rude, esperavam na casa de Cannibal, localizada a poucos metros do palco, pela hora do show. A economia informal se encarregava de faturar uns trocados com a ocasião. Dois bares, várias barracas de churrasquinho, vendedores de amendoim e de pipoca transitavam naquele domingo, que parecia bom para o comércio local. O número de câmeras chegava a ser assustador. Das televisões, dos documentaristas, do público consagrado definitivamente como cinegrafista amador em tempo integral e em era digital. E uma enorme grua à direita do palco registrava todos os lances, todos os olhares, todas as reações de todos os presentes. A cena, por sua estrutura imponente de palco e quantidade de público, poderia perfeitamente ter como cenário qualquer lugar do mundo.
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Mas os Devotos, que, um dia, foram do Ódio, escolheram o Alto José do Pinho como local de gravação de seus CDs e DVDs, em comemoração aos seus vinte anos de carreira. O bairro, outrora conhecido e divulgado aos quatro ventos como um dos mais perigosos e violentos da região metropolitana do Recife, era, naquele domingo, palco de um programa em família. Ao saírem da casa de Cannibal para o backstage, um longa-metragem começou a rodar nas cabeças de Cannibal (baixo e voz), Neilton (guitarra) e Celo (bateria). Certamente, ao começarem a brincadeira que sempre levaram muito a sério, há exatas duas décadas, não sonhavam que o roteiro incluísse um capítulo como aquele que estavam vivenciando. Vestindo a camisa do Alto Falante, feita por Neilton, e um lenço azul na cabeça para disciplinar seus dreads, Cannibal sentia novamente o gostinho da primeira vez no palco. “Galera, eu nunca estive tão nervoso em toda a minha vida. Até parece que é a primeira vez que a gente toca.” Se alguém ousasse dizer, há alguns anos, que seria possível realizar tal evento no Alto José do Pinho, seria tido como louco. Por essa ninguém esperava. Nem seu Biu, o guarda. Tampouco seu Antônio, o ferreiro. Talvez a única que imaginasse algo parecido fosse dona Maria, mãe adotiva de Cannibal. Porém, assim como o ferreiro e o guarda, já não estava mais viva para testemunhar o momento máximo da carreira da banda que o filho fundou. Pois, entre os vivos, nem dona Detinha, responsável pela desapropriação das terras do Alto José do Pinho e pela implantação do sistema de água encanada no local, era capaz de imaginar tamanha façanha. Que o diga então o próprio José do Pinho.
O começo
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Boa parte da área dos 41,5 hectares do Alto José do Pinho pertencia a duas famílias: Vieira da Cunha e Cesário de Melo. Elas alugavam os terrenos para as pessoas construírem suas casas de taipa, cobertas com capim. Existem duas versões sobre o senhor que dá nome ao Alto. Uma diz que José do Pinho seria um velhinho que, no início do século passado, animava as festas do pequeno povoado, tocando violão embaixo de um pinheiro. A versão que consta no documento “História do Alto José do Pinho contada por seus moradores”, registro de 1987 com o relato dos habitantes mais antigos do bairro, é mais saborosa. Segundo essa fonte, José do Pinho, além de fabricar violões de pinho, era proprietário de algumas terras no Alto. E, ao contrário das famílias Vieira da Cunha e Cesário de Melo, que possuíam administradores de terras responsáveis pela cobrança dos aluguéis de suas terras, o próprio José do Pinho ia cobrar o aluguel das suas. Boêmio, José do Pinho era presidente-fundador de uma troça carnavalesca chamada Inté MeioDia. Em um ano de dificuldades financeiras, José do 2 As informações deste subcapítulo têm como base o documento “História do Alto José do Pinho contada por seus moradores”, idealizado e realizado por dona Detinha no ano de 1987. Ela reuniu os moradores mais antigos do Alto José do Pinho, gravou o depoimento deles e mandou transcrever o material gravado.
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Pinho teria pedido emprestada uma quantia de dinheiro à família Vieira da Cunha para poder colocar seu bloco na rua. O carnaval daquele ano estava garantido, mas a dívida acabou não sendo paga, e José do Pinho, proprietário de terras que fabricava violões de pinho e dono de troça carnavalesca, foi obrigado a vender a parte que lhe cabia no latifúndio do Alto para a família Vieira da Cunha. Restaram-lhe o violão e a lenda. Aos poucos, o Alto José do Pinho foi se modernizando. A iluminação pública só chegou ao local nos anos de 1950. Até então, a população vivia na base do bom e velho candeeiro, e o rádio de pilha ligava os moradores do Alto José do Pinho ao mundo. Como em todos os locais, o Alto também contava com certa divisão de classes sociais. Aqueles que possuíam uma renda um pouco maior do que a dos outros se estabeleciam no centro. As ruas, naquela época, eram numeradas por ordem de importância e conveniência. Assim sendo, a rua que oferecia melhor infraestrutura era a rua 1, depois a rua 2 e assim por diante. Os mais pobres habitavam os arredores do Alto, ou seja, a periferia da periferia, em regiões que, ainda hoje, são conhecidas por lá como Mangubas. Mas o principal problema que a comunidade enfrentava era a falta de água encanada. A líder comunitária dona Detinha, 75 anos, chegou ao Alto José do Pinho em 1972. Naquela época, luz elétrica era um privilégio de poucos. Água encanada, de ninguém. Era preciso buscar água nos chafarizes do bairro vizinho da Bomba do Hemetério, e carregá-la em baldes na cabeça até o morro. Pelo menos, o eterno sobe e desce na busca da água já era feito com as ruas calçadas, benfeitoria implantada no bairro entre o fim dos anos 1950 e o início da década de 1960. A situação continuou assim até 1985, quando dona Detinha criou o
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conselho de moradores do Alto José do Pinho e começou a desenvolver um trabalho comunitário no morro. Dona Detinha era a encarregada de apresentar o Alto (e suas carências) aos governantes locais. Em 1986, ela fez um abaixo-assinado que pedia água para a comunidade e o levou até a Companhia Pernambucana de Saneamento – Compesa. A ideia de dona Detinha era construir um poço, mas não havia lugar viável para a obra no morro. A solução não poderia ter sido melhor: no primeiro governo de Miguel Arraes (1987-1990), todo o Alto José do Pinho foi cavado, e cada casa passou a ter torneira no quintal, “luxo” impensável antes de dona Detinha comprar a briga. Mas a maior vitória de dona Detinha ainda estava por vir. Ao saber que o então presidente João Figueiredo vinha visitar o bairro de Brasília Teimosa para desapropriar umas terras por lá, ela não se fez de rogada: escreveu uma carta em que relatava o histórico de abusos das famílias “proprietárias” do Alto — àquela altura, representadas por imobiliárias —, foi até Brasília Teimosa e conseguiu entregar a carta ao próprio presidente da República. Oito dias depois, em um domingo, chegava um telegrama na casa de dona Detinha. O remetente: João Baptista Figueiredo. O assunto: pedir que dona Detinha procure o então governador de Pernambuco, Marco Maciel, para resolver a questão. O resumo da história: as terras do Alto José do Pinho foram desapropriadas, e dona Detinha, junto com o conselho de moradores do bairro, distribuiu seiscentos títulos de posse com o povo. Além de água encanada, todos, a partir de 1985, passaram a ter casa própria no Alto José do Pinho. Como dona Detinha gosta de dizer, do alto da sabedoria de seus 75 anos de idade e três décadas deles dedicados ao trabalho comunitário, “Isso aqui (o Alto) virou uma cidade”.
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Tem de tudo
O Alto José do Pinho sempre teve tradição musical. Boa parte dos primeiros habitantes do bairro vinha da zona rural de Pernambuco, e trouxe com eles suas principais tradições folclóricas: caboclinho, maracatu e afoxé. Nos anos 1940 e 1950, ficaram conhecidos os caboclinhos Tupinambás e Tabajaras, que animavam os carnavais do bairro. Os maracatus Estrela da Tarde e Estrela Brilhante não ficavam atrás e, por muitos anos, foram dois dos mais conhecidos e concorridos blocos carnavalescos do Recife. Também é grande, ainda hoje, o número de terreiros de umbanda. Com população predominantemente negra, o Alto, ainda hoje, conserva tradições de seus antepassados, tanto na religião quanto nos folguedos. O afoxé Ylê de Egbá, fundado em 1986, é um dos mais respeitados do Brasil, e participou da gravação do CD e do DVD em comemoração aos vinte anos de carreira dos Devotos. Curioso notar como isso foi decisivo para a formação cultural dos músicos que criariam o novo movimento musical do Alto nos anos de 1990: é grande o número de bons bateristas surgidos no Alto José do Pinho. Boa parte deles cresceu ouvindo os tambores de maracatu e do afoxé, transformando a força das batidas desses ritmos em influência para a música que viriam a fazer anos mais tarde, como punk e hardcore.
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O Alto hoje
O conselho de moradores do Alto José do Pinho calcula que a população atual do bairro esteja na casa dos 20 mil habitantes. O Alto é dividido em 72 ruas, levando-se em conta escadarias, becos e vielas. O centro conta com uma pequena praça, onde se destaca uma imagem de Cristo crucificado, feita de cerâmica branca. Nesta praça, funciona o terminal de ônibus que atende à população, ligando o bairro ao centro do Recife. Ela abriga, ainda, um posto policial e uma lanchonete, e está cercada de pequenos bares por todos os lados. É comum, mesmo nos dias de semana, ver gente sentada nos bancos jogando dominó e conversa fora. Em frente à praça, fica o mercado municipal. Nos fundos dele, está o minúsculo estúdio da rádio comunitária Alto Falante, inaugurada em 2002 pela ONG de mesmo nome, formada pelos músicos das bandas do Alto José do Pinho. Ela é veiculada a partir de caixas de som colocadas nos postes do bairro. A programação vai das oito da manhã às sete da noite, com intervalo de meio-dia às duas da tarde. A rádio leva ao ar prestação de serviços, programação musical variada, do samba de Cartola ao punk do Sex Pistols e até um programa dedicado à literatura, produzido por estudantes de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Do lado do mercado público, funciona uma banca de jogo do bicho, bem em frente ao posto policial! Logo atrás da banca de jogo do bicho, fica a sede do boneco Zé do Pinho, que desfila nos 30
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carnavais do bairro. O animado Brega do Bolinho, clube que serviu de palco para vários shows de rock das bandas do Alto, também fica a poucos metros da praça. Há duas escolas públicas no bairro: a Maria Tereza, inaugurada em 1955, e a Santa Maria, aberta em 1968 e também conhecida como colégio das freiras. E, por ironia do destino, uma de suas salas de aula serviu de cenário para a gravação do clipe da música “Os peitinhos”, da não exatamente religiosa banda Matalanamão. Na esquina da rua principal está a sede do Bonsucesso Futebol Clube, time de futebol desativado, fundado em 1 de abril de 1949, e que chegou a disputar a terceira divisão do campeonato pernambucano. O clube, que hoje abriga as oficinas de break de Zé Brown, do Faces do Subúrbio, e reuniões do grupo de terceira idade do bairro, foi palco do primeiro evento roqueiro organizado pelas bandas do Alto, o Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll. Eclética por necessidade e por obrigação, a casa também abriga bailes funk, shows de brega e as oficinas periódicas da ONG Alto Falante. O clube serviu, também, como local de várias reuniões organizadas por dona Detinha, e todos os prefeitos do Recife e governadores de Pernambuco que passaram pelo poder desde 1979 se reuniam com a líder comunitária no Bonsucesso para discutir os problemas do bairro. O convívio religioso é democrático. Existem, pelo menos, quatro templos evangélicos e duas igrejas católicas em funcionamento hoje. Fora os terreiros de xangô e umbanda localizados na Manguba, a periferia do Alto, “cidade” que dona Detinha ajudou a construir.
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metal ao mangue
Cap.02
Do metal ao mangue
O Recife era uma cidade cruel com os jovens que gostavam de rock no final dos 1980. Minoria absoluta na terra do frevo e do maracatu, restava a esses jovens conformarem-se com o confinamento dos guetos, a dependência do que se tocava no rádio na época, os escassos shows do gênero realizados no Recife e a troca de informações com os amigos que moravam no sudeste do país. Vivendo ainda sob o impacto da invasão metaleira, que teve na primeira edição do Rock in Rio seu ápice, surgiu, no centro do Recife, mais precisamente no Beco da Fome — conglomerado de bares e lanchonetes que não prezavam muito pela higiene — uma contracultura formada por verdadeiras hordas de jovens vestidos de preto, a maioria de fãs de thrash metal e de punk rock. Essa garotada, que cultivava enormes cabeleiras e andava de coturno, reunia-se no centro da cidade para tomar cerveja e trocar ideias. Carentes de shows dos estilos que tanto apreciavam, contentavam-se com as poucas vezes em que os Titãs, ainda em fase pesada, davam as caras no Recife. Até mesmo em shows do Legião Urbana, de sonoridade mais suave e tendo a poesia de Renato Russo como base de todo seu trabalho, era possível detectar a presença desses roqueiros mais radicais. O tempo mostrou que ali se formava um belo
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mercado consumidor, e foram surgindo fanzines, como o Recifezes, lojas especializadas de discos, como a Vinil, Discossauros e Blackout, estúdios de tatuagens e, mais importante, os shows do gênero finalmente começaram a ser produzidos na capital pernambucana. Mas o primordial mesmo foi o seguinte: os frequentadores do Beco da Fome passaram a formar bandas. Nascia assim o Arame Farpado, a bateria trazia Éder, o Rocha, futuro percussionista do Mestre Ambrósio, e a guitarra era tocada por Oni, que, depois, tocaria na banda de rap Faces do Subúrbio, do Alto José do Pinho. Outros grupos, como Cruor, Euthanasia, Câmbio Negro HC, Decomposed God e Herdeiros de Lúcifer, seriam formados na mesma época. Essas bandas passaram a fazer shows na periferia do Recife. A maioria deles era realizada nos Centros Sociais Urbanos, espalhados pelos subúrbios da capital pernambucana. Boa parte terminava em briga, e conflitos entre polícia e público eram uma “atração” à parte. Outro palco importante para esses eventos era o Clube dos Rodoviários, no bairro da Imbiribeira. Era comum uma tribo de skinheads, surgida sabe-se lá de onde, terminar a festa na base da porrada. Entre os espectadores desses shows, estavam três figuras que seriam fundamentais para a consolidação da nova cena musical recifense, e, posteriormente, do Alto José do Pinho: o jornalista José Teles, que, a partir de 1986, começou a escrever sobre todo esse pessoal no caderno de cultura do Jornal do Commercio, Cannibal e Paulo André Pires, futuro produtor do Abril Pro Rock. Paulo André acabava de voltar de uma temporada nos Estados Unidos. Fã de metal, abriu uma loja de discos no bairro das Graças, a Rock Xpress1. Um dos balconistas 1 Essas informações foram registradas primeiramente no livro Do frevo ao manguebeat, do jornalista José Teles (Editora 34, 2000).
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era Cristiano, guitarrista da Paulo Francis Vai pro Céu, uma das 12 atrações pernambucanas que tocaram na primeira edição do Abril Pro Rock, em 1993. Paulo André começou a investir na carreira de produtor. Produziu, em 1992, nos Aflitos, o show da cultuada banda de thrash metal alemã Kreator, e uma apresentação da também alemã Morbid Angel, no Sport Club do Recife. Os espaços para as bandas locais começaram a ser ampliados. O Sepultura, orgulho nacional e, na época, um dos maiores nomes do metal no mundo, teve show agendado no Recife, no Sport Club Recife, pouco depois de a banda ter se apresentado na segunda edição do Rock in Rio, no Maracanã. E com o disco Arise recém-lançado em todo o mundo. Esse episódio merece um registro especial do autor: comprei meu ingresso, feliz da vida, com um dia de antecedência. No dia do show, passei a tarde ouvindo os discos do Sepultura com amigos meus em Olinda. Com duas horas de antecedência, pegamos dois ônibus que nos levariam até o local do show. Eu não acreditava no que estava vivenciando. O Recife, finalmente, entrara para o primeiro mundo no roteiro dos grandes shows internacionais. Os shows do Sepultura lotavam em todos os lugares. A banda dos irmãos Cavalera estava em plena fase de ascensão, e o Recife era uma das poucas cidades brasileiras a ter o gostinho e o privilégio de conferir isso ao vivo. Descemos do ônibus. As hordas de cabeludos e de skatistas já estavam por lá. Assim como os evangélicos, a pregarem e proclamarem que aquilo tudo era coisa do demônio. Quando comecei a subir a rampa que dava acesso ao local do show, um grupo de cabeludos veio em minha direção e disse: “Nem suba. Não vai ter show!” Retruquei, atônito: “Como é que é? Vim de Olinda, peguei dois ônibus para chegar até aqui e não vai ter show?” E um dos cabeludos me disse que eu ainda era sortudo, pois o grupo dele tinha vindo de Natal
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para assistir ao show. A banda havia tocado em Salvador e ficou por lá mesmo. A solução encontrada pela produção do show foi a seguinte: devolver o ingresso inteiro, ou metade do valor para quem quisesse entrar e assistir aos shows das bandas locais que abririam para o Sepultura. Optei por entrar e, depois de quase levar duas garrafadas de metaleiros enfurecidos com o show cancelado, rumei, triste, de volta para casa. Fato curioso é que os Devotos do Ódio haviam sido convidados para fazer um dos shows de abertura, mas foram dispensados sem nenhuma justificativa. Não era fácil gostar de rock no Recife. Alheio a toda essa movimentação da cena pesada pernambucana, o jovem Francisco de Assis França frequentava bailes black para ouvir James Brown, ao mesmo tempo em que se apaixonava pelas batidas do maracatu. Outro jovem, Fred Montenegro, legítimo punk da periferia, começava a expandir seus horizontes musicais descobrindo a obra de Jorge Ben entre um disco e outro do The Clash. Enquanto seu Mundo Livre S/A existia desde 1984, a Nação Zumbi de Francisco de Assis França, aos poucos, ia sendo moldada. De Olinda, surgia o Eddie, grupo comandado por Fabio Trummer. Alguns dos antigos metaleiros começaram a se interessar por cultura popular e folclore local e criaram, em 1994, o Mestre Ambrósio. Percebendo toda essa movimentação, Paulo André criou, em 1993, o Abril Pro Rock, evento que, em sua primeira edição, contava com 12 atrações. Todas de Recife. E todas absolutamente desconhecidas do grande público. Apesar disso, cerca de mil pessoas compareceram ao evento. Os Devotos do Ódio não foram chamados para tocar nessa primeira edição do Abril pro Rock, porque a produção do festival considerava o som da banda muito pesado para o perfil do público esperado.
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Enfim, do casamento entre Lamento Negro, Loustal e Nação Zumbi, nascia Chico Science & Nação Zumbi. Em uma das primeiras aparições em rede nacional na TV, a banda foi tema de matéria no programa Vídeo Show, da Rede Globo, que mostrou imagens do grupo em estúdio, gravando sob a tutela de Liminha, que já havia trabalhado, nos anos 1980, com os Titãs e o Ultraje a Rigor. Empolgado com uma matéria que tinha feito para a retransmissora do SBT no Recife sobre mangue, o jornalista Fred Montenegro redigiu um release sobre o movimento que batizariam de manguebit. O release, intitulado Caranguejos com cérebro, foi confundido com manifesto2 pela imprensa nacional. Daí em diante, ninguém mais conseguiu controlar o alcance da parabólica fincada na lama. Em 1994, Chico Science & Nação Zumbi lançavam, pela Sony Music, o álbum Da lama ao caos. No mesmo ano, o Mundo Livre S/A, liderado pelo jornalista Fred Zero Quatro, testemunhava o nascimento de seu primeiro disco, Samba Esquema Noise, bancado pelo selo Banguela (criado pelos Titãs), uma perna da gravadora Warner. Estavam fincadas, a partir de então, as duas pedras fundamentais do movimento Mangue, batizados por seus criadores como Manguebit, e erroneamente nomeado pela imprensa nacional de Manguebeat. Recife passou a ser a bola da vez. Jornais como a Folha de S.Paulo diziam que a capital pernambucana era a Seattle brasileira, em alusão ao movimento grunge que gerou, por aqueles lados, nomes como Nirvana, Mudhoney, Pearl Jam, Alice in Chains e tantos outros. Um séquito de fãs, denominados mangueboys e manguegirls pelo próprio Chico Science, passaram a frequentar os shows dos grupos locais e a se vestir como seus ídolos, que, tanto no 2 Como relata o jornalista José Teles no livro Do frevo ao manguebeat.
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palco como fora dele, adotavam um visual bem camelô: chapéu de palha, óculos escuros, camisas floridas, calças largas. Desenvolveram um vocabulário peculiar cheio de novas gírias. “Sair com minha turma”, a partir daquele momento, na boca dos mangueboys e manguegirls, ganhava nova nomenclatura: “sair com minha corda”, em referência aos caranguejos que eram vendidos em cordas, cada uma contendo dez unidades deles. Ao perceber a intenção estética e literária de Chico Science, o jornalista José Teles, do Jornal do Commercio, apresentou a Chico a obra do escritor Josué de Castro. Era só o que faltava para o ícone do mangue, a partir dali, construir um novo repertório linguístico, tendo como base os livros do escritor de A geografia da fome. A sonoridade de Chico Science & Nação zumbi “brincava” de transformar o regional em universal, de criar o diálogo entre elementos à primeira vista tão díspares como tambores de maracatu, guitarras pesadas e vocais falados na mesma linha do rap e do hip-hop. O Mundo Livre S/A não era menos ousado: misturava cavaquinho com guitarra distorcida, dando camadas de peso ao samba e o balanço da música brasileira ao punk. À época, a jornalista Bia Abramo escrevia sobre o grupo de Zero Quatro: Essa geração (a dos anos 90) já produziu pelo menos um grande disco. Samba Esquema Noise é candidato certo a melhor disco de música brasileira do ano. Em relação ao Mundo Livre S/A, é injusto falar de mistura ou de qualquer coisa do gênero para explicar o tipo de música que eles fazem. Não se trata de uma mera justaposição de samba e de guitarras, de rock e de influências regionais3.
3 “Geração 90 já tem seu grande disco”, de Bia Abramo; Folha de S.Paulo, 25/10/1994.
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E Abramo concluía, logo a seguir: “É samba, sim, mas feito com uma atitude roqueira. E rock também, mas feito a partir da ‘Cidade Estuário’.”4 Chico também era bastante festejado pela imprensa paulista, que, literalmente, carregou o movimento mangue no colo e o elegeu como a cena musical brasileira mais importante a surgir na década de 1990: Mais do que letras – algumas muito diretas e cruas, outras, como as de Chico, por exemplo, mais elaboradas –, o que chama atenção nessa nova safra é o desenho de uma iluminada globalização rítmica e sonora, unindo orgânica e antropofagicamente forró e rock, maracatu e rap, xaxado e toast, embolada e funk5.
Um ano antes do lançamento dos discos de estreia de Chico Science & Nação Zumbi, era realizada, no Circo Maluco Beleza6, a primeira edição do festival Abril Pro Rock. Em seu primeiro ano de vida, o evento apostou em uma programação só com bandas recifenses. Começava a surgir, naquele momento, um real interesse pela formação de um mercado consumidor de música jovem pernambucana. E, acima de tudo, uma rica vitrine que atraía as atenções e curiosidades da mídia especializada de todo o país. Além de Chico Science e do Mundo Livre, outros nomes começaram a despontar nacionalmente: de Olinda, o grupo Eddie. De Boa Viagem, bairro de classe média alta do Recife, surgiam Jorge Cabeleira e O Dia em Que Seremos Todos Inúteis. As diferenças entre as sonoridades individuais das bandas deixavam todo mundo intrigado. Eddie fazia um rock mais cru, enquanto Jorge Cabeleira trilhava um caminho psicodélico ao injetar experimentalismos à fórmula criada por 4 Idem. 5 “O país dos oráculos musicais”, de Marcos Augusto Gonçalves; Folha de S.Paulo, 17/12/1995. 6 Principal casa de shows do Recife na década de 1990.
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Alceu Valença, Zé Ramalho e Lula Côrtes nos anos 1970. Ou seja, o movimento mangue acabou despertando a curiosidade da mídia nacional em conhecer todo e qualquer som novo que viesse do Recife. As bandas se multiplicavam, a cena começava a se profissionalizar, grupos assinavam com grandes gravadoras. O Recife era o centro das atenções, tema de matérias sem fim dos cadernos culturais de jornais de todo o país. Grupos surgiam aos montes: do rock escrachado de Paulo Francis Vai pro Céu ao funk rock do Dona Margarida Pereira e Os Fulanos. Do metal dos Conservados em Formol ao regionalismo rabequeiro do Mestre Ambrósio. Do coco eletrificado do Cascabulho ao rock de pegada anos 1970 do Querosene Jacaré. E, no meio desses grupos todos, dois se destacavam por um peculiar fator geográfico, além do som que faziam: os Devotos do Ódio, com o seu punk rock hardcore, e o Faces do Subúrbio, com seu rap embolada. Ambos saídos de um morro chamado Alto José do Pinho, local cuja história roqueira já vinha sendo escrita desde 1985, mas que acabou ganhando visibilidade somente a partir do estouro do mangue, no início dos anos 1990. Porém, seja estética ou temporalmente, o Alto José do Pinho sempre abrigou um cenário à parte de tudo o que foi descoberto a partir — e por causa — do manguebit. Chico Science acabou perdendo a vida em fevereiro de 1997, vítima de um acidente automobilístico. Um ano antes, porém, deixava seu testamento artístico: Afrociberdelia, disco que, ainda hoje, figura em várias listas dos mais importantes da história da música brasileira. A vida de Chico era abreviada justamente no momento em que o Alto José do Pinho vivia seu apogeu.
Cap.03
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Marconi de Souza Santos nasceu em Vitória de Santo Antão, interior de Pernambuco, no dia 2 de novembro de 1970. Filho de um funcionário de uma fábrica de açúcar que não tinha condições de criar o menino, Marconi foi deixado, aos 4 meses de idade, na casa de uma lavadeira no Alto José do Pinho, dona Maria. A família de dona Maria vivia em pequenos quartinhos na rua 10. O marido dela morrera de cirrose. Ela tinha dois filhos, Lindalva e Nelson. Foram eles e dona Maria que garantiram a sobrevivência do garoto Marconi, que, até hoje, não faz a menor ideia do paradeiro de sua mãe biológica. A infância de Marconi foi difícil, embora não deixassem faltar nada em casa para o menino. Tampouco havia espaço para qualquer tipo de regalia. Nunca teve os brinquedos que qualquer criança deseja. Em compensação, descobriu, na rua, sua brincadeira preferida: as partidas de futebol. Estava sempre jogando com os amigos. Rebelde, detestava estudar. Todo dia, Lindalva perguntava se o garoto havia ido ao colégio e, em uma sinceridade assustadora que o acompanharia pelo resto da vida, respondia que não. Sendo assim, Marconi apanhava diariamente. A família se preocupava muito com a educação dele, pois sabia que o menino convivia com todo tipo de gente. O garoto, alheio ao perigo e ao contato tão
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próximo com amiguinhos que já desenhavam sua história no crime, divertia-se soltando pipa, jogando pião e, principalmente, bola. No colégio, Marconi ganhou o apelido que o definiria como artista. Negro, desde moleque ele gostava de enrolar o cabelo, e não demorou para que os amiguinhos do colégio passassem a chamá-lo de Canibal. Curiosamente, o apelido não pegou naquela época. Marconi tinha consciência de que boa parte de seus amigos de pelada roubava. Porém, criança, não tinha a menor noção do perigo que corria ao brincar com eles. Todo mundo no bairro se conhecia, e todos sabiam ali quem fazia parte ou não do mundo do crime. A família de dona Maria morria de medo de que alguma coisa pudesse acontecer com Marconi. Contudo, fora o fato de detestar estudar e de todo dia cabular aula, o garoto parecia já ter nascido com o caráter moldado. Tanto que era incapaz de mentir para Lindalva ao ser perguntado se havia ido à aula. Preferia a surra à mentira. Marconi era tão bem tratado pela família que o adotou que a forma que encontrou de recompensar tamanho amor e zelo foi jamais decepcioná-los. Marconi sentia que era tão querido, ou até mais, que a filha de Nelson, Luciana, que foi criada como irmã dele, mas que, na verdade, era sua sobrinha de criação. Tamanhos zelo e amor pelo garoto deram resultado: a última coisa que o menino Marconi desejava na vida era causar algum mal à família. Assim sendo, continuou jogando bola com seus amiguinhos nas ruas do Alto José do Pinho, mas jamais se envolveu nas mesmas atividades que eles. Conseguiu, assim, desde muito novo, driblar a criminalidade. Alguns desses coleguinhas de pelada já estavam envolvidos com o tráfico de drogas. Vários morreram ainda adolescentes. Uns passaram do tráfico para os assaltos. Outros, como
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Marconi, conseguiam trilhar um caminho diferente, terminavam os estudos, e até viravam professores. O grande problema para a família de Marconi veio com a chegada da adolescência. Absolutamente revoltado com a realidade que o cercava, com a falta de perspectiva e de horizontes para a esmagadora maioria dos moradores do Alto José do Pinho, pelo preconceito que sentia na pele por ser negro e da periferia, por sempre ser abordado pela polícia, que não raro o confundia com bandido, restou ao adolescente Marconi, aos 15 anos de idade, tornar-se punk. Raspou a cabeça. Começou a usar camisetas e calças rasgadas. As camisas traziam a bandeira do Brasil de ponta cabeça e os dizeres “desordem e regresso”. Correntes e cadeados ornavam seu pescoço. Em suma, Marconi não era bandido, mas se tornou vítima constante de perseguição policial. Nessa época, metade dos anos 1980, com o país ainda na ressaca dos tempos ditatoriais, Marconi se iniciou no movimento punk do Recife. Tornou-se engajado. Em tempos de resquícios do regime militar, era comum que a polícia e seus informantes conhecessem todos os elementos considerados subversivos pelo governo. Os punks, que costumavam se reunir numa praça em frente à estação central do metrô, evitavam chamar uns aos outros pelo nome. Sabiam que não eram bem vistos pela polícia. Marconi, então, resgatou seu apelido de infância, e passou a ser conhecido no movimento pela alcunha de Canibal. Mais tarde, acrescentaria mais um “n” ao nome artístico. Cannibal logo descobriu que não era o único no bairro a curtir punk. Marcelo Massacre, jovem músico que futuramente seria baixista do Terceiro Mundo e, posteriormente, do Faces do Subúrbio, começou a andar com Cannibal e a turma dele. Esses jovens não tinham
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boa reputação pelo Alto José do Pinho. A comunidade achava que aqueles garotos não passavam de um bando de vagabundos, maconheiros sem a menor perspectiva de futuro. O pior é que o preconceito não era apenas dos moradores do Alto. Cannibal começou a frequentar os shows punks que aconteciam no subúrbio do Recife. Um episódio reflete bem a perseguição que sofria. Voltando de um show punk no suburbano bairro de Prazeres com Neilton, Cannibal desceu de um ônibus na cidade para esperar o bacurau1, ônibus que costuma sair de hora em hora a partir das duas da manhã no centro da cidade. No ponto de ônibus, notaram que uma viatura da polícia passava devagar por eles. Não deram muita importância para o fato. Três dias depois, Cannibal foi abordado pela tia: — Marconi, você sabia que ia ser preso no sábado de madrugada? — Como é que é? — Você não estava com Neilton na avenida Guararapes esperando um ônibus no sábado de madrugada? — Estava. — Pois teve um tiroteio lá pouco antes de vocês chegarem. Não conseguiram prender ninguém. Só não levaram vocês dois presos, porque Reginaldo estava na viatura.
Reginaldo era policial e morador do Alto José do Pinho. Quando um de seus colegas policiais sugeriu que prendessem os dois para não saírem de mãos vazias, Reginaldo disse que conhecia os dois do Alto José do Pinho, e que eles não eram bandidos. Por essas e outras, era preciso ter muito cuidado naquele tempo. Cannibal era o que o cantor paulista Itamar Assumpção genialmente designou de “isca de polícia”: preto e pobre. E, para piorar, punk. Era o alvo perfeito para preconceitos e generalizações. 1 Um tipo de coruja.
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Para complicar ainda mais as coisas, no próprio movimento punk existia gente que só estava naquela por pura arruaça mesmo, pelo prazer de brigar. Isso acabava estigmatizando os mais politizados, como Carlinhos, editor do fanzine Recifezes, e o próprio Cannibal. Curioso é que, nessa época, Cannibal sequer pensava em montar uma banda. Sentia-se satisfeito em assistir aos shows e participar das reuniões. No Alto José do Pinho, os roqueiros passaram a descobrir que não estavam fechados em si mesmos. Ao contrário, cada um deles passou a perceber que não era o único exótico do bairro a gostar de ouvir rock e tomar vinho. Aliás, já havia bandas de rock no Alto José do Pinho desde 1984. A Egoesmo foi uma das que surgiram nessa época, fazendo covers de sucessos de MPB e do rock nacional da época. Essa banda contava, em sua formação, com Celo (bateria), Lee (guitarra), Wally (baixo) e André (vocal), e foi responsável pela criação de quase todos os grupos do Alto José do Pinho. A casa de Wally servia como ponto de encontro de todos os roqueiros do bairro. Wally tinha um primo que morava em São Paulo, e ele costumava voltar da capital paulista com a mala lotada de vinis. Em tempos pré-internet, foi assim que toda a turma passou a conhecer Iron Maiden, Ratos de Porão, Van Halen e, de forma mais surpreendente, The Cure e The Smiths. Passavam tardes inteiras escutando esses vinis na casa de Wally. E aquilo tinha um efeito avassalador sobre a turma. Todos queriam, ao ouvir aquela música tão diferente de tudo que escutavam até então, montar uma banda. Menos Marconi. Cannibal se contentava com o lado político da coisa toda. Por exemplo, com os Encontros Antinucleares no centro da cidade, que aconteciam, anualmente, no dia 6 de agosto, dia do lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki pelos norte-americanos. Além de ir aos shows,
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não perdia um ensaio das bandas SS-20, Moral Violenta e Câmbio Negro HC, ficando amigo dos seus integrantes. O problema é que faltava identificação. Cannibal gostava de se reunir com a galera para escutar os “Iron Maidens” da vida, mas não cogitava montar uma banda no mesmo estilo. Nessa época, passou a trabalhar como ajudante de pedreiro no Alto José do Pinho para ajudar em casa. Depois, passou a trabalhar em um lava-jato. Nos intervalos, jogava bola no time juvenil do Santa Cruz, mas nunca se imaginou como jogador profissional. Até que começou a desenvolver o gosto pela leitura. O menino que detestava estudar, que apanhava todo dia porque não ia para a escola, sem perceber e aos poucos, estava lendo todo e qualquer fanzine que lhe caísse nas mãos. Assim como as revistas de música. Em uma delas, na Bizz, leu uma matéria sobre um grupo punk de São Paulo chamado Inocentes, liderado por um negro e que falava da realidade do cotidiano da periferia da capital paulista. Ficou tão impressionado com o que leu que decidiu procurar o disco Pânico em SP em um sebo no centro do Recife. Achou, ouviu e a identificação foi imediata. Tudo o que Clemente, vocalista do Inocentes, cantava em suas letras condizia exatamente com a realidade enfrentada por Cannibal no Alto José do Pinho. Ali, naquele instante, Marconi de Souza Santos, para desespero da família, encontrou sua vocação: montar uma banda punk e viver dela.
O encontro
Marcelo Coleta Junior nasceu no Recife no dia 27 de maio de 1970. Filho de um sargento da polícia militar e de uma professora primária, Celo, como viria a ser mais tarde chamado pelos amigos, teve uma infância pobre no Alto José do Pinho, mas extremamente divertida. Apesar de um pouco tímido e muito quieto, o garoto não deixava de brincar de pião, empinar pipa, correr pelas escadarias do Alto e, naturalmente, jogar futebol. E a música, desde cedo, esteve presente em sua vida. Seu pai possuía um grande rádio, daqueles antigos, que vinham dentro de um móvel. O aparelho ficava o dia inteiro ligado, e o menino ia absorvendo tudo que era tocado nele, de Luiz Gonzaga a Djavan. A mãe cantava no coral da igreja. De tanto ouvir, quis aprender a tocar. Tentou o violão, para poder reproduzir as músicas que escutava no rádio. Mas seu casamento com a bateria já estava traçado. Até ali, o conhecimento musical dele se limitava ao que tocava na rádio, já que não tinha acesso a vinil, um luxo para o padrão de vida da família. Em suma, Celo ouvia muita MPB e pop rock dos anos 1980, carros-chefe das AMs e FMs na época. Aluno um tanto disperso, a mãe, professora, encontrou a solução para o então relapso menino Celo: alfabetizou-o em casa. A experiência foi crucial para o garoto, que cedo percebeu que poderia, com persistência e dedicação, aprender qualquer coisa em casa. Mesmo que a matéria fosse música. 58
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Um belo dia, quando tinha 12 anos de idade, Celo foi a uma festa com uns amigos no bairro vizinho da Mangabeira. Nela, havia uma grande banda de baile que animava os convidados. Celo ficou a noite inteira com os olhos grudados na bateria, e ali, naquele momento, descobriu o que queria fazer da vida. Passou, a partir de então, a juntar os móveis da sala e batucá-los o dia inteiro, acompanhando as músicas que tocavam no rádio. Percebendo o fascínio do menino por bateria, seu primo, Lee, tratou de improvisar uma. Arrumou várias latas de doce, tirou as tampas, envolveu as aberturas com plástico e colou com borracha. Chamou Celo até sua casa para mostrar a novidade. Apesar de improvisada, a bateria possuía um som interessante, e foi com ela que Celo tocou com sua primeira banda, a Egoesmo, que contava com o próprio Lee em sua formação, e com Wally, o amigo dos vinis. A banda fazia covers de sucessos da época, e se apresentava em aniversários de amigos e até em festivais estudantis. Ao mesmo tempo, Celo ia ampliando seus horizontes musicais nas sessões de audição na casa do amigo Wally. Passou a se interessar por Joy Division e, em especial, pelas batidas de Budgie, na época baterista do Siouxsie and The Banshees. Descobriu que queria tocar como ele. E começou a sentir necessidade de estudar música. Para isso, lançou mão de um expediente para lá de sofisticado. O pai era fã de Luiz Gonzaga. Sabendo disso, Celo disse a seu velho que gostaria de aprender a tocar acordeom no Conservatório Pernambucano de Música. Motivo: poder tocar para o pai as músicas de Luiz Gonzaga de que ele tanto gostava. Empolgado, o velho mandou o filho pesquisar preço para fazer o curso. O filho obedeceu, mas, na verdade, matriculou-se para as aulas de bateria. A farsa durou uns dois meses. A mãe de Celo não apenas acobertava, como ainda comprava algumas baquetas de presente para o filho. O real interesse de Celo era sentar
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em uma bateria de verdade, e ele achou que o Conservatório fosse o caminho mais curto para realizar seu objetivo. Estava enganado. Passou a estudar muita teoria e pouca prática. Nas audições na casa do amigo Wally, começou a filtrar só sons de bateria, fossem dos Ratos de Porão ou do The Cure. Tentava imaginar como executaria aquilo tudo na prática. Como todo bom músico, não pensava em segmentação. Queria ouvir de tudo — ainda que esse tudo fosse limitado pelas programações das rádios, e um pouco expandido nas tardes na casa de Wally — e extrair o que lhe parecesse mais interessante. Celo começava a sentir também que a bateria feita por seu primo já não era suficiente. No conservatório, passou mais de um ano estudando apenas teoria. Só depois veio alguma prática, e, ainda assim, intercalada com mais teoria. Aos poucos, Celo ia se cansando daquilo tudo. No mesmo período, seu primo Lee montou um pequeno estúdio em sua casa, onde as primeiras bandas do Alto começaram a ensaiar: Egoesmo, Flores Negras, Nanica Papaya, O Lírio, Realidade Encoberta. Fora a Realidade Encoberta, que não era do bairro, todas contavam com Celo na bateria. Quando não era ele que assumia as baquetas, Peste, o outro baterista da trupe de preto, encarregava-se de comandar a bateria nos momentos em que Celo não estava presente. E os dias de Celo se dividiam entre a casa de Wally, o estúdio de Lee e o Conservatório. Neste último, recebeu o conselho definitivo. Seu professor, Gilberto, perguntou que estilo o garoto gostaria de seguir. Ao saber que a resposta era rock, perguntou a Celo se o pai dele conhecia jazz. “Professor, meu pai é militar e gosta de Luiz Gonzaga. Nem eu nem ele sabemos o que é isso.” O mestre, então, passou a seguinte lição: ir aos sebos, comprar discos de jazz e ficar em casa ouvindo as batidas e aprendendo com elas. O impacto inicial foi grande. Celo achava-se incapaz de reproduzir a sonoridade daqueles bateristas.
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Porém, aos poucos, foi aprendendo a extrair o essencial daquilo. E, somado ao rádio do pai e aos vinis de Wally, Celo, agora, contava com o reforço dos bateristas de jazz. Nada mau para alguém oriundo do Alto José do Pinho. As trupes de preto aumentavam no Alto José do Pinho. Às turmas de Wally e Celo somavam-se as de Peste e Marcelo Massacre, do Terceiro Mundo, e a de Gilson Gerrard, do A Ostenta, banda de Beberibe2 que foi adotada pelos grupos do morro. E toda essa turma se reunia na praça para beber vinho e tocar violão, sempre estigmatizados como a turma de vagabundos pelos moradores do bairro. Em uma das sessões de audição de vinil na casa de Wally, Celo foi apresentado a Cannibal, que o convidou para ser baterista da banda que ele estava montando. Celo achou Cannibal, com suas calças rasgadas, camisas de protesto, correntes e careca reluzente a própria visão do inferno. Mas como Marconi o convidou com jeito e disse que sabia que a praia de Celo era mais pop, ele resolveu encarar só para ver no que dava.
2 Bairro da região metropolitana de Recife.
Brincando do jeito que dá Ainda sob o impacto da descoberta da obra dos Inocentes, o jovem Cannibal arrumou um violão emprestado e cismou de aprender a tocar sozinho. Não satisfeito com o violão, pediu a sua mãe de criação, dona Maria, um baixo de presente. Ela e o tio biológico de Marconi, Carlos Santos, juntaram dinheiro e presentearam Cannibal com um baixo Giannini, em que ele começou a compor suas primeiras canções. De tanto ouvir de todo mundo que deveria montar uma banda, levou o projeto em frente, e logo recrutou os amigos Ancelmo (guitarras) e Altamir (vocal). Celo foi o último a entrar no grupo. Um dos principais incentivadores para a formação do grupo foi Lael, baixista da SS-20, uma das bandas mais importantes do Recife e de grande influência na formatação do som dos Devotos. Ele trabalhava na Academia Cine-Brasileira, na Avenida Conde da Boa Vista, palco das duas primeiras edições do Encontro Antinuclear, realizados em 1986 e 1987. Lael sugeriu que Cannibal montasse uma banda para tocar na terceira edição do evento. Isso coincidiu com a época em que ele descobriu o som dos Inocentes. Ganhou o baixo da família, compôs as primeiras canções e formou a banda. O amigo Lael sugeriu o nome: Devotos do Ódio, inspirado em livro de mesmo nome, do escritor José Louzeiro. Mas o sentido que eles queriam dar ao nome era outro: como percebiam, em seu cotidiano, que os jornais mais vendidos e os programas de TV de maior audiência eram justamente os que tinham, na violência, seu principal atrativo, constataram
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que o público era devoto de todo aquele ódio amplificado pela mídia. Poucos entenderam a sutileza (ou falta dela) na escolha do nome da banda, e durante anos os Devotos do Ódio foram acusados de fazer apologia à violência. Quando a banda foi formada, ninguém sabia tocar direito. O mais experiente era Celo, por conta das várias horas no estúdio de Lee e do pouco tempo de prática no Conservatório. Cannibal reuniu seis músicas autorais, entre elas, “Futuro inseguro”, sua primeira composição, “Porcos governantes” e “Já é Natal”. A banda passou de janeiro a agosto ensaiando – e aprendendo a tocar – seis músicas, que juntas mal ultrapassavam sete minutos de duração. Celo, apesar de experiente, não conseguia manter a velocidade exigida pelo hardcore. Cansava logo, dizia que aquilo tudo exigia um esforço hercúleo e que seria incapaz de suportar um show inteiro tocando em ritmo tão intenso. Além disso, Altamir começou a demonstrar insatisfação por não gostar do estilo da banda. Sua praia era mais o metal da linha Iron Maiden. Não demorou muito para ele pedir desculpas e pular fora. Como Cannibal conhecia de cor as músicas, pois todas eram dele, assumiu os vocais. E tratou de aprender a tocar e a cantar ao mesmo tempo, ora olhando para as cifras do baixo, ora para as letras. Enfim, após sete meses ensaiando seis músicas que, juntas, mal passavam dos sete minutos de duração, chegou 6 de agosto de 1988, o grande dia. Cannibal, Ancelmo e Celo colocaram os instrumentos nas costas e partiram rumo à Academia Cine-Brasileira. Nervosos, pensaram várias vezes em voltar no meio do caminho. Um frio na barriga, desconfortável, atacava o trio. Celo, mais de uma vez, chegou a sugerir: “Vamos voltar pra casa?” Ancelmo tinha certeza de que não conseguiria tocar uma nota. Cannibal, calado, guardava o nervosismo para si. Mas o
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show transcorreu numa boa. A banda tocou as seis músicas, foi bastante aplaudida e repetiu mais três. Sete meses de ensaio para pouco mais de dez minutos de show. Mas o trio estava satisfeito, com sorriso de orelha a orelha. Após o show, Celo pediu desculpas, mas já tinha compromissos de gravações e de shows com suas outras bandas. Em seu lugar, entrou Nori. Ancelmo também saiu, e foi substituído por Akio. Essa formação chegou a fazer um show em Natal e outro em João Pessoa, e, depois, entrou em férias forçadas por uns seis meses. Foi quando Cannibal foi até a casa de Celo pedir que ele desse uma nova força para os Devotos do Ódio. Neilton, um brother dele, havia entrado na banda.
Professor Pardal Neilton José de Carvalho nasceu em 1971 e foi criado na Bomba do Hemetério, bairro vizinho ao Alto José do Pinho. Caçula de quatro irmãos e filho de um comerciário com uma dona de casa, o garoto teve despertado, logo cedo, seu interesse pelas artes. O pai, Aércio Ribeiro de Carvalho, vendia peças para máquinas industriais. Trabalhava numa lojinha e num depósito, que ficavam na rua Vigário Tenório, no Centro Velho do Recife. Zona portuária e local considerado barra-pesada até a década de 1980, o bairro era famoso pela má reputação que possuía: prostitutas à caça de marinheiros de fora, traficantes, viciados e loucos de toda espécie eram os principais frequentadores da região. E o pai de Neilton, conhecido no local pela alcunha de “pai”, era extremamente querido e respeitado por todos. Boêmio incorrigível, jamais chegava em casa antes da meia-noite. Desde muito novo, Neilton já demonstrava intensa curiosidade pelas carreiras que abraçaria ao longo da vida: música, pintura e engenharia eletrônica. Em seu caso, o espantoso é que ele é autodidata em todas essas áreas. Jamais teve uma aula de música, de desenho ou de mecânica. Punk legítimo, mesmo sem ter feito parte do movimento, elevou à enésima potência as consequências do mandamento punk do it yourself. Tudo que aprendeu e realizou desde então foi sozinho, sem ajuda de ninguém, o que o coloca bem perto do rol – para não dizer que ele próprio é um – daquela seleta categoria de humanos que costumamos designar de gênios.
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Sua inclinação para a música foi despertada por volta dos 6 anos, influenciado por um vizinho que tocava saxofone na Orquestra Municipal do Recife e passava o dia ensaiando em casa. Nessa época, formou, com suas irmãs, sua primeira “banda”. Utilizando o mesmo processo de Lee, primo de Celo, juntou latas de doces, tirou as tampas, envolveu as aberturas com plástico e colou tudo com borracha. Passava tardes inteiras com as irmãs batucando para cima e para baixo dentro de casa. Ao mesmo tempo, começou a tentar desenhar seu super-herói preferido, o robô japonês Spectreman, que aparecia em seriado exibido pela televisão no início dos anos 1980. E passou, simultaneamente à descoberta da música e do desenho, a se interessar por eletrônica. Desmontou, junto com o irmão Nilson, o rádio da casa, pois estava certo que bonecos trabalhavam dentro dele e não queria perder a oportunidade de vê-los em ação. Passaram, então, a abrir todos os eletrodomésticos de casa para saber como funcionavam por dentro. Fizeram isso com um velho gravador do pai, e utilizaram o motor do gravador para a construção de um carrinho elétrico. Começou a fabricar seus próprios brinquedos, nem que fosse para ter o prazer de destruí-los depois. Certa vez, dedicou-se o dia inteiro à construção de uma casinha de massapé. Depois de pronta, colocou fogo nela só para assistir ao incêndio. O pai costumava presentear o filho com um carrinho simples de brinquedo, que trazia da feira. Neilton o reconstruía por inteiro e o deixava igualzinho ao carro do Batman, além de “envenená-lo” com o motor do gravador. Tímido, Neilton sempre teve um comportamento bastante peculiar. Costumava matar aulas para, em vez de ganhar as ruas, voltar para casa para assistir televisão ou se dedicar aos desenhos e à fabricação de brinquedos.
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Quando ficou um pouco mais velho, passou a acompanhar o pai no trabalho aos sábados. Em um desses dias, viu uma turma de motoqueiros gringos, todos trajando jaquetas com estampas de caveiras nas costas. Pareciam com os Hells Angels. Eles, de vez em quando, apareciam para comer em uma lanchonete barra-pesada perto da loja em que o pai de Neilton trabalhava. Ficou fascinado com o visual da turma. E, via televisão, veio o acontecimento que o despertaria para todo o sempre para o mundo do rock: descobriu um tal de Elvis Presley. Decidiu, por influência do Rei, que aprenderia a tocar guitarra. Ficou fascinado com a sonoridade e com o formato da guitarra. Além dos filmes de Elvis, que passavam na TV, Neilton descobriu que o pai possuía uma coletânea com os grandes sucessos do cantor. Escutou o disco obstinadamente a partir de então. Sempre curioso, Neilton pesquisou, por conta própria, quem havia influenciado aquele cara de costeletas de quem tanto gostava. Foi assim que chegou até a obra de Bill Haley & His Comets. Para completar o fascínio, um dia, em um culto da igreja que a família frequentava, ouviu o pastor dizer, em alto e bom som, que o rock’ n’ roll era coisa do demônio e que Bill Haley era o próprio. Na mesma hora, o garoto pensou: “Bill Haley é o cara!” Virou fã de rockabilly. O problema — ou solução — no caso de Neilton foi que ele descobriu a obra de Elvis bem próximo dos últimos dias de vida do cantor. Com a morte dele, a TV tratou de exibir uma série de especiais, shows e filmes estrelados por Presley, que, evidentemente, foram vistos um a um por Neilton. Ainda garoto, Neilton começou a fazer pulseirinhas e camisetas pintadas à mão. Vendia aos amigos no colégio e guardava toda a grana arrecadada embaixo do colchão. Um dia, resolveu contar o dinheiro e viu que tinha o suficiente para comprar metade da guitarra mais barata que havia visto em
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uma loja, uma Sonic. Pediu a outra metade do valor para o pai, que perguntou se o filho sabia tocar. Neilton, na caradura, respondeu que sabia, e o velho deu a grana na esperança de ouvir o filho tocar “Brasileirinho” para ele. Feliz da vida, Neilton foi até a loja e comprou a guitarra. Chegou em casa, foi até o quarto e, antes mesmo de tentar tirar qualquer som, desmontou a guitarra inteira. O pai ficou doido quando viu aquilo. Neilton queria saber onde estavam as pilhas da guitarra. Não as encontrando, passou a fazer uma série de experiências, colocando captadores, incrementando-a de todas as formas. Como gostava de dizer, sua guitarra parecia saída do filme O jovem Einstein. Começou a aprender os primeiros acordes sozinho. Era difícil encontrar um curso de guitarra naquele tempo no Recife. E, quando achava algum, era caro demais. Na mesma época, passou a frequentar os shows de punk e de metal nos subúrbios do Recife. Virou colecionador de vinil também e fã de bandas como Metallica e Slayer. Só que, ao contrário do radicalismo dos fãs dos dois gêneros, que sequer cogitam a possibilidade de ouvir qualquer coisa que não estivesse atrelada a esses ritmos, Neilton sempre teve a cabeça e os ouvidos abertos para tudo que caía em suas mãos. Como já estava mergulhado de cabeça no mundo do rockabilly, passou a pesquisar também tudo sobre metal e punk, mas jamais se limitava a apenas esses estilos. Também considerava burra a lógica punk, que ditava que o bom era ser ruim. Punk que era punk, segundo os próprios, não podia saber mais do que os três acordes básicos. E Neilton se considerava extremamente frustrado justamente por não poder estudar música, e ficava furioso com quem fazia essa apologia à ignorância musical. Passou a ouvir Hendrix e Eric Clapton, e sempre se perguntava quem os havia ensinado a tocar. Em sua imaginação, eles tinham aprendido tudo sozinhos. E, ainda que não
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tivessem aprendido a tocar sozinhos, alguém, algum dia, inventou a guitarra e a forma correta de tocá-la. E, para Neilton, isso bastava. Se alguém começou do nada, ele também poderia. Na marra, sem professor e com muita vontade, foi inventando solos que depois não sabia repetir, criando acordes que não tinha como decorar. E assim foi até entrar em sua primeira banda, a Túmulo. Aílton Peste, amigo de infância e do colégio, um morador negro do Alto José do Pinho que aprendeu a tocar bateria sozinho, convidou o colega para fazer um teste, pois o guitarrista original, Ronaldo, havia saído do grupo. Com cara e pose de quem sabia tocar muito, Neilton improvisou uns solos que, até hoje, não sabe de onde surgiram. Os integrantes ficaram impressionados com sua “técnica”, e Neilton foi aceito na banda na mesma hora. Detalhe: ele ainda não sabia tocar patavinas. Ironicamente, foi o próprio Ronaldo que veio ensinar a Neilton como montar um power cord, um acorde de tônica e quinta que é muito utilizado no rock. Isso foi essencial para os primeiros passos de Neilton como guitarrista. A Túmulo serviu como laboratório para Neilton. Passou a fazer shows nos subúrbios. Essas apresentações eram uma aventura só. Precisavam se deslocar de ônibus pelas periferias da cidade, fazer os shows, e, só depois, pensar em como seria para voltar para casa. Alguns ambientes eram bem barra-pesada e, em algumas ocasiões, eles saíam correndo dos tiros, pegavam o primeiro ônibus que encontravam e se jogavam no chão para não serem atingidos por alguma bala. O interessante é que tanto as bandas quanto o público dependiam do transporte público. Ou seja, o “glamour” só existia na hora de subir no palco. Mesmo que esse palco fosse improvisado em um circo fuleiro, com a banda tocando em cima de um monte de terra que fazia — ou
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tentava fazer — as vezes de palco. Sem contar que a estrutura de som era qualquer nota: vitrolas improvisadas, gambiarras aqui e ali. O importante era tocar. Em uma dessas apresentações, um incidente constrangedor e engraçado marcaria a vida da banda. Em determinada hora, o vocalista, que caprichava no vocal gutural estilo thrash metal, empolgou-se tanto com a performance que sua dentadura acabou caindo no chão. Para mostrar que era roqueiro mesmo, tratou de pegar a peça no chão e colocar novamente na boca, como se nada houvesse acontecido. Aílton Peste ria tanto atrás de sua bateria que sua dentadura acabou tendo o mesmo destino que a do vocalista. Na periferia, era comum que mães de adolescentes preferissem arrancar os dentes da frente de seus filhos quando estavam com cáries e colocar uma “peça” no lugar do que submetê-los a tratamento odontológico, considerado extremamente caro para o padrão de vida dessas famílias. Em shows de rock nos subúrbios da capital pernambucana, todos eram sujeitos da história: bandas e público eram formados por um proletariado pobre e, não raro, desdentado.
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Neilton e Cannibal não andavam com a mesma turma, mas se conheciam de vista desde os tempos de colégio. E Neilton já havia visto boa parte dos shows dos Devotos do Ódio nos subúrbios. Assim sendo, foi natural que Cannibal o convidasse para assumir as guitarras na banda. Neilton também já estava ficando conhecido no meio roqueiro pelas camisetas que pintava à mão. Algumas eram feitas sob encomenda, como uma cuja estampa era o disco Bossanova, do Pixies. Juntos, foram até a casa de Celo para, mais uma vez, convidá-lo para integrar a banda. Desta vez, de forma definitiva. Foi nesse período que nasceu uma lenda. A primeira guitarra de Neilton, utilizada nos tempos do Túmulo, já tinha dado para o gasto. Aos 16 anos e sem grana para comprar uma guitarra nova, Neilton resolveu fazer a sua. No final dos anos 1980, uma rede de supermercados colocou à venda o corpo e o braço de uma guitarra. Foi um fracasso, e o produto encalhou nas lojas, o que barateou bastante seu preço. Neilton, que nessa época trabalhava como vendedor em uma loja de eletrônica, juntou uma grana e comprou o corpo. Depois comprou o braço, lixou as duas partes e deixou tudo bonitinho. Aí, foi até a sucata da loja em que trabalhava e arrumou parafuso e potenciômetro de rádio. O captador foi enrolado à mão,
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utilizando também sucata. Com fórmica de armário, fez a placa. Pegou parafuso de televisão e colou no braço da guitarra. A ponte de guitarra foi feita por Lael, da SS-20, que era torneiro mecânico. Algumas partes da ponte foram trocadas por Neilton, que percebeu que o braço de uma radiola funcionava melhor do que a alavanca original da guitarra. Um dia, a mãe de Neilton estava consertando o fogão da casa, e caiu um monte de molas de dentro dele. Eram justamente as pecinhas que faltavam para o acabamento final. O processo de fabricação durou um ano, e ninguém dizia que aquela guitarra, batizada “A Gorda”, tinha sido feita por Neilton. E muito menos que toda a matéria-prima era constituída por sucata. E, o principal, o som dela era enfezado. Curiosamente, a história da guitarra ganhou tamanha dimensão que, até hoje, incomoda seu criador. Com formação definitiva e repertório que já vinha sendo tocado há alguns anos, os Devotos do Ódio ganharam os subúrbios. A entrada de Neilton na banda foi fundamental para expandir os limites do grupo. Com formação que vinha do rockabilly e do metal, Neilton não se conformava em limitar o punk rock a apenas seus três acordes de costume. A essa altura, já calejado pelos tempos de Túmulo e dedicando todo seu tempo livre a aprender a tocar, Neilton podia ser considerado o músico mais tarimbado entre todos os integrantes de bandas do Alto José do Pinho. O circuito punk de shows do Recife era constituído por bairros das classes menos favorecidas da cidade, como as Unidades Residenciais (popularmente conhecidas como UR), Curado e Prazeres. As apresentações aconteciam nos Centros Sociais Urbanos desses bairros e, não raro, o pau comia solto. Os shows eram uma tosqueira só. Neles, o do it yourself era levado às raias do absurdo. Vassouras eram improvisadas como pedestais
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de microfone. Na falta de vassoura, alguém se encarregava dessa função, e passava o show inteiro segurando o microfone para Cannibal cantar. Em um deles, os Devotos do Ódio tocaram em Ouro Preto, bairro de Olinda, em um show em um clube subterrâneo. Quando o show acabou, o trio ouviu barulhos de tiros, que foram se intensificando e ficando cada vez mais perto. Só deu tempo de entrar no primeiro ônibus que viram e se abaixarem. Em outra ocasião, tocaram no Curado, bairro cortado por estradas federais. E não havia privilégio para ninguém. Banda e público estavam no mesmo barco e disputavam, na volta dos shows, a mesma traseira de ônibus. A banda acabara de tocar e, às três horas da manhã, Cannibal, Neilton e Celo estavam em plena BR sem saber como fazer para voltar para casa. Eles e mais uns trinta punks. Eis que surge do nada um ônibus de viagem, para e abre a porta. O motorista pergunta então se alguém ali queria uma carona até o centro da cidade. E, em cena digna dos filmes de Fellini, a turma inteira de punks, cada um mais mal-encarado do que o outro, entra no ônibus e se aconchega nas cadeiras do expresso. O motorista, que além de fã de rock era extremamente gente boa, ainda perguntou se alguém ia para Olinda, onde ficava a garagem da empresa de ônibus onde trabalhava. Às vezes, a classe operária punk recifense também tinha direito ao seu pedaço de paraíso. Esses shows no subúrbio foram importantíssimos para construir a reputação dos Devotos do Ódio na cena roqueira local da época. Tanto que a banda era escalada para os shows e só ficava sabendo quando via o cartaz com o nome do grupo colado nos postes. Cannibal arrancava, levava para casa, mostrava para Celo e Neilton e dizia “vamos tocar nesse evento”. O “sucesso” da banda acabou estimulando os outros grupos do Alto José do Pinho, mas apenas Terceiro Mundo, de Marcelo Massacre, rodava os subúrbios como os Devotos. Os outros preferiam os ensaios no
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estúdio de Lee, que a essa altura do campeonato, era frequentado até por bandas de fora do Alto José do Pinho. Nascia, naquela época, Nanica Papaya, banda de reggae liderada por André Nanica, que, lá atrás, havia fundado a Egoesmo com Celo. Aliás, o baterista dos Devotos era um caso à parte no meio punk do Recife. Apesar de não apenas ter aprendido a tocar punk, mas a desenvolver um estilo próprio de tocar, a praia de Celo era outra. Ele gostava mesmo era do rock inglês dos anos 1980, como The Smiths e The Cure. Para dar vazão a essa necessidade artística, emprestava seu talento a outras bandas, como O Lírio e O Verbo. Assim como Neilton, Celo se beneficiou do fato de não se limitar apenas ao punk rock. Curioso e sedento de informação, procurava estudar todos os ritmos que, aos poucos, chegavam aos seus ouvidos, via rádio ou na casa de Wally, que continuava servindo de point para toda a trupe escutar as novidades nos vinis que o primo dele trazia de São Paulo. E a pressão e o preconceito no Alto José do Pinho continuavam firmes e fortes. Fora dona Maria, mãe adotiva de Cannibal, que sempre apoiou o filho em seu sonho louco de viver de uma banda de punk no Recife, a história era bem diferente nas outras famílias. Com os meninos perto de atingir a maioridade, era grande a cobrança para que arrumassem empregos normais e passassem a ajudar no sustento da casa. Ou seja, a fama de vagabundos desocupados estava longe de ser dissipada. Para piorar as coisas, boa parte das famílias tinha origens religiosas ou militares. Ou ambas. O pai de Celo, sargento da Polícia Militar, nutria esperanças de que o filho seguisse carreira no Exército. O baterista não estava tão interessado assim em seguir os passos do pai, nem Cannibal em servir a uma instituição que já criticava em suas letras. Assim sendo, foi com muita satisfação que os dois ficaram sabendo, na mesma manhã, que haviam
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sido dispensados do serviço militar, e trataram de comemorar na hora, tomando cachaça às sete da manhã em um boteco em frente ao quartel do bairro de Afogados. Paulo André ficou amigo do pessoal dos Devotos do Ódio, e logo passou a empresariar informalmente a banda, facilitando o trânsito e contato com demais bandas e produtores. Por meio de um contato seu, um repórter da revista Trip subiu o morro para fazer uma matéria com a banda. Até então, nenhum veículo local dava a menor pelota para o movimento punk do Recife e, muito menos, para uma banda do Alto José do Pinho. O repórter da Trip topou a pauta e se encantou com a guitarra de Neilton. Por provocação, Neilton colocava um band-aid para “esconder” a marca dela, que obviamente não existia, já que fora feita pelo próprio. O repórter perguntou qual era a marca da guitarra, pois não conhecia aquele modelo. Em off, Neilton contou que havia feito a guitarra com sucata. O jornalista pirou com a história. Tempos depois, a Trip publicava uma longa matéria que tinha como fio condutor os Devotos do Ódio, uma banda de hardcore do morro, cujo guitarrista fez sua guitarra com pedaços de fogão, geladeira e até de micro-ondas. Uma “mentira da porra”, segundo Neilton, pois ele não chegou a usar peças de geladeira e de micro-ondas. A história da guitarra começou a incomodar Neilton. Em vez de sentir orgulho do invento, passou a ter uma espécie de bronca pela maneira como a mídia abordava o assunto. Para ele, era a coisa mais natural do mundo. Não havia criado uma guitarra de sucata para aparecer, mas porque não tinha dinheiro para comprar uma nova. O “problema” é que todo mundo passou a se encantar pela história, e ainda mais quando conhecia a guitarra pessoalmente. Não foram poucas as propostas de venda que recebeu. Recusou todas. A Gorda, para seu dono e inventor, não tinha preço.
O estúdio de Lee
Além de ser o principal incentivador da carreira de Celo, seu primo Lee foi fundamental para a trajetória de todas as bandas do Alto José do Pinho. Ele montou um estúdio no bairro da Mangabeira, e todas as bandas da Zona Norte do Recife ensaiavam lá. O local era minúsculo, porém confortável. E, mais importante, Lee não cobrava um tostão das bandas pelo uso do estúdio. Predominava um aspecto amador. A estrutura era tosca. As gravações eram feitas em um gravador velho. Mas ninguém ligava para isso. O importante era poder ensaiar e gravar. O estúdio de Lee foi importante também por outro aspecto. Como os meninos passavam o dia literalmente trancados nele, ficavam longe da rua e dos perigos de se envolverem com a criminalidade. Não é exagero dizer que, se não fosse por Lee e seu estúdio, provavelmente a cena roqueira do Alto José do Pinho não teria vingado.
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Uma hora, o inevitável acabou acontecendo. As reuniões na casa de Wally e os ensaios no estúdio de Lee ganharam as ruas. Primeiro, os meninos passaram a gravar em fitas cassete os discos que ouviam na casa de Wally. Com isso, arranjaram um sonzinho e passaram a se reunir quase todas as noites na frente da casa de Celo, munidos de violão e de garrafas de vinho barato. Depois as reuniões passaram a acontecer na frente da casa de Cannibal. Um ator e poeta do Alto, Jailson Leonardo, juntou-se ao grupo. Foi o suficiente para Peste, o mais articulado de todos, ter a ideia de fazer um evento no Alto José do Pinho que juntasse todas as bandas do morro e o grupo de teatro do qual Jailson fazia parte. Nascia assim, em 1991, a primeira edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ roll no Bonsucesso Futebol Clube. A carência de informações dos meninos era tamanha que eles não faziam ideia de que existia um caderno de cultura nos jornais da cidade, e que eles poderiam divulgar os shows nesses suplementos. Peste, ao contrário dos demais, tinha essa consciência, e conseguiu com que o Jornal do Commercio publicasse uma notinha sobre o evento. O que eles não imaginavam, nunca, nem em seus delírios mais extravagantes, é que uma equipe da Rede Globo aparecesse por lá para fazer uma matéria sobre o show. As TVs costumam se pautar a partir dos jornais
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impressos, e foi assim que a Rede Globo apareceu por lá. Era a primeira vez que a imprensa subia o morro para cobrir outra coisa que não fosse ligada à violência. O Alto José do Pinho, finalmente, saía do noticiário policial. Pelo menos, naquela noite. Todas as bandas do Alto José do Pinho tocaram e, fora Devotos do Ódio e Terceiro Mundo, que já faziam shows no circuito punk underground dos bairros periféricos do Recife, era o primeiro show de todos os outros: A Ostenta, Sentimentos Ocultos, O Verbo, O Lírio, Nanica Papaya, Flores Negras. O som era cedido pelo Bonsucesso Futebol Clube, e o baterista de quase todas as bandas era um só: Celo. Quando não era ele, era Peste. Curiosamente, a tônica dominante era o pop inglês dos anos 1980. Era essa a praia de A Ostenta, O Verbo, O Lírio e Sentimentos Ocultos, esta última formada por Peste e com uma menina no vocal. Nanica Papaya se dedicava ao reggae, enquanto Devotos e Terceiro Mundo eram as únicas de punk rock hardcore do evento. O público compareceu, e veio muita gente de outros bairros conferir a apresentação. Como Neilton, Cannibal e Celo estavam acostumados à péssima estrutura dos shows punks que faziam no subúrbio, preocuparam-se em oferecer, pelo menos, o mínimo de qualidade para as bandas do Alto José do Pinho. Foi a partir desses shows toscos pela periferia da cidade que eles passaram a perceber que era possível fazer o mesmo no Alto José do Pinho, só que com uma estrutura um pouco mais decente. O evento correu às mil maravilhas, muito melhor do que qualquer um ali imaginava. Deu público, as bandas se saíram bem e até a Rede Globo veio cobrir. A partir daí, a brincadeira não parou mais de crescer.
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Com o sucesso da primeira edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ roll a turma se animou e resolveu colocar o bloco definitivamente na rua. Os meninos passaram a fazer shows semanais, na rua mesmo, onde imperava a vontade acima de tudo. Juntavam grades de cerveja, colocavam um tablado em cima delas, pegavam emprestada a radiola de alguém, montavam uma bateria e mandavam ver. Com o tempo, essas apresentações foram ganhando repercussão e, coisa inimaginável até então, jovens de classe média começaram a subir o morro para ver esses shows. Peste tinha o sonho maluco de encontrar um lugar no Alto José do Pinho que fosse uma versão no morro do lendário CBGB’S, casa de Nova York que abrigou apresentações memoráveis de Ramones, Sex Pistols, Television, Blondie e Talking Heads. Enquanto não achava tal local, os shows eram realizados na rua mesmo. A fama dos Devotos do Ódio ia crescendo na cena local. Além da música, o trio começou a desenvolver, junto com as outras bandas do Alto, um trabalho social forte. Realizavam shows filantrópicos para arrecadar alimentos e distribuir para a população carente. Ou destinavam toda a bilheteria de uma apresentação a hospitais e entidades. Com o sucesso do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll, decidiram fazer eventos pontuais na comunidade. Assim nasceram o Rockriança e o Natal nas Alturas. O primeiro era realizado no Dia das Crianças. Um mês antes, o trio visitava os dois colégios do bairro e lançava um tema. Esse tema virava matéria na escola, e os alunos faziam redações e desenhos sobre o assunto escolhido. A banda pegava todo esse material e expunha na comunidade no Dia das Crianças. Além disto, fechavam parceria com a Escola Pernambucana de Circo, e as crianças passavam o dia inteiro aprendendo novas brincadeiras. Como o nome indica, tudo terminava em rock, com apresentações no Bonsucesso ou no Clube do Bolinho,
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que, naquela época, já era também palco de shows das bandas do Alto José do Pinho. Ou na rua. Outro evento pontual era o Natal nas Alturas. As bandas organizavam shows em que a entrada era um brinquedo usado. Quando chegava o Natal, reunia a gurizada e distribuía os brinquedos para elas. O Natal, assim como o Dia das Crianças, também terminava em rock. Os Devotos do Ódio se destacavam das demais bandas pelo engajamento e pela organização. Sempre focados nos interesses da banda, faziam tudo visando o sucesso dela. Neilton ficou responsável por toda a parte gráfica da banda. Pintava as camisetas, fazia os desenhos das fitas demo. Criou uma logomarca da banda em que uma cruz e a letra “s” formavam um cifrão. E, com o apoio de Paulo André, a banda começou a participar de festivais e de concursos de banda. O repertório de seis músicas havia sido amplamente ensaiado e tocado com o passar do tempo. Ainda era bem tosco, tudo na base dos três acordes, mas muito bem amarrado. Assim eram “Nova vida”, “Luz da salvação”, “São fatos da guerra”, “Asa preta”, “Pela justiça” e “Futuro inseguro”. O diferencial era um quê de baião em algumas músicas, como em “Luz da salvação” e “Asa preta”. As letras eram simples, até ingênuas demais. Mas algumas acertavam direto o alvo − caso de “Nova vida”: Continuamos nossa vida Mesmo sem aceitar Vamos parar pra pensar Reivindicaremos mudança Sempre vivemos da esperança Isso vai ter que acabar Temos força, não somos fracos Ideologia, passado O Brasil vai ter que mudar Unidos em um só grito
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Com união, sem partido Mudar pra melhorar
E vinha o refrão, direto, cru: Não vamos nos preocupar Em ter o que comer Mesa farta não faltará E uma casa pra você viver
Era, acima de tudo, verdadeiro. Não demorou para que o grupo conquistasse público entre outras camadas sociais do Recife. Carismático, Cannibal impunha respeito nos shows. Fora o apelo natural e a excentricidade de uma banda punk de um morro do Recife comandada por um negro rastafári. Assim como o Natal nas Alturas e o Rockriança, o Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll virou um evento pontual. Em um deles, a novidade era um grupo de hip-hop chamado The Boys of the Rap, que, mais tarde, se transformaria no Faces do Subúrbio.
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José Edson da Silva nasceu no Recife, no dia 18 de outubro de 1974. Ainda recém-nascido, foi adotado por três irmãs que viviam em Nazaré da Mata, na Zona da Mata de Pernambuco. Duas das irmãs eram costureiras e faziam as roupas dos maracatus e dos blocos carnavalescos da cidade. A terceira irmã era cozinheira. A família levou alguns anos para conseguir se estabelecer no Recife, e José passou a infância dividido entre o contato com os mundos rural e urbano. Péssimo aluno, José chegou a ser expulso de dois colégios por má conduta. Porém, guardava um hábito extremamente peculiar: matava aulas para ler na biblioteca. Suas notas eram baixas em todas as matérias, mas, em redação, nunca tirava nota menor que oito. De família pobre, daquelas que precisavam se preocupar com o alimento do dia seguinte, o menino José talvez tenha se divertido mais do que muitos moleques com melhores condições financeiras. Subia em pé de jambo com os amigos, enchia uma sacola inteira com a fruta e levava para casa para comer à noite assistindo televisão. Soltava pipa, jogava futebol e ia de ônibus até o Marco Zero1, onde gostava de tomar banho de rio. 1 Ponto inicial do Recife, onde a cidade começou a ser erguida.
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Suas primeiras lembranças musicais são as dos programas de rádio que escutava em Nazaré da Mata. Neles, ouvia Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, João do Vale e os emboladores de viola, grande paixão de seu avô. Adolescente, teve aulas de capoeira e aprendeu a cantar várias ladainhas durante os jogos. Muito cedo, precisou começar a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Carregava uma enxada nas costas e se oferecia para limpar o quintal dos vizinhos em troca de algum troco. Foi jardineiro, ajudante de pedreiro, camelô e cabeleireiro. Com 14 anos de idade, em 1988, viu uma roda de break na Praça do Trabalho e ficou encantado com os movimentos dos dançarinos. Era o pessoal da Geração 80 e, coincidentemente, um dos dançarinos, Jackson, era dono de uma das casas em que José trabalhava como ajudante de pedreiro. Zé perguntou onde eles treinavam, e Jacó, apelido de Jackson nas rodas de break, respondeu que os treinos aconteciam todos os dias, às 15 h, no Córrego São Domingos Sávio. E o menino passou a frequentar esses treinos religiosamente. Faziam parte uns dez dançarinos, e não havia instrutor. Cada um aprendia vendo o outro dançar. Como Zé já havia desenvolvido certo traquejo por conta da capoeira, tratou de adaptar a ginga já adquirida aos passos do break. Ao mesmo tempo em que aprendia os primeiros passos, passou a desenvolver o ouvido para as batidas que essa turma escutava. Principalmente nos bailes black que rolavam no Clube Atlântico, em Olinda, no Treze, no Conselho de Nova Descoberta, no Clube Ferroviário. As turmas eram divididas por bairros, e faziam “rachas”, disputas de dança. Zé convidou o amigo Tiger para se juntar ao grupo de dança do qual fazia parte, a Breakdance de Casa Amarela, e ficaram famosos os rachas entre eles e os Draks, do Morro da Conceição. E todos esses rachas eram disputados ao som de black norte-americano dos
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anos 1970, com muito James Brown, Jackson Five e coisas mais recentes também, como Run DMC, Afrika Bambata e Public Enemy. Porém, como no caso de Cannibal, o que levou o garoto Zé a querer fazer música foi um vinil: a coletânea de hip-hop nacional Cultura de rua, que trazia vários grupos de rap como O Credo, Código 13 e MC Jack, a seminal dupla paulistana Thaíde e DJ Hum. A partir daí, começou a compor as primeiras letras. Não demoraria muito para o amigo Tiger fazer as suas também.
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Eraldo Tavares nasceu no Alto José do Pinho, em casa e em parto feito por parteira, no dia 26 de novembro de 1973. Filho de um motorista com uma dona de casa, a infância de Eraldo talvez tenha sido um pouco mais dura do que a de seus demais companheiros das bandas do Alto José do Pinho. O pai ganhava um salário mínimo e sustentava duas famílias, a dele e a outra que mantinha fora do casamento. Por conta disso, ainda muito cedo, Eraldo precisou vender picolé para ajudar em casa. Vendia na praia de Boa Viagem ou nos parques da Jaqueira e do Treze de Maio. E um incidente envolvendo o pai o marcaria para o resto da vida. O pai de Eraldo era funcionário contratado de uma empresa de fornecimento de energia elétrica. Trabalhava por escala. Em uma dessas escalas, sem saber, caiu com um pessoal procurado pela polícia por roubar fios elétricos. Como era motorista, apenas levava os funcionários para fazer o serviço onde eles diziam. Ele não fazia a menor ideia, mas, enquanto estava no carro esperando que a turma terminasse o trabalho, o que acontecia, na verdade, era um senhor roubo de fios. A polícia chegou na hora e prendeu todo mundo, inclusive o pai de Eraldo, que ficou detido por cinco meses no presídio Aníbal Bruno até conseguir provar sua inocência. 102
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Por conta dessa experiência, a família de Eraldo sempre se preocupou muito com o futuro do filho. Uma vez, ainda moleque, chegou com uma bermuda nova em casa, que havia ganho de presente de um amigo. Quando o pai perguntou qual amigo tinha sido tão generoso, descobriu que o sujeito era um ladrão conhecido no bairro, e obrigou o filho a devolver o presente. “Se um dia você tiver de ter uma bermuda dessa marca, será fruto de seu trabalho, e não produto de roubo.” Anos mais tarde, a empresa que fabricava a tal bermuda foi uma das primeiras patrocinadoras do Faces do Subúrbio, e o filho chegou em casa orgulhoso com a bermuda de marca, conseguida a partir de seu trabalho. Relembrou a história para o pai, que não conseguiu esconder o sorriso de orgulho. Inteligente, o sonho de Eraldo era ser médico. Jamais havia pensado em ser músico e, caso tivesse cogitado seguir a carreira artística desde novo, hoje, provavelmente, seria um cantor de brega, influenciado por gente como Reginaldo Rossi, Evaldo Braga e Maurício Reis. Os pais gostavam de lambada e, aos sábados, a mãe de Eraldo costumava colocar para tocar os discos de Capiba e de Nelson Ferreira, de que tanto gostava. Até que um dia, o amigo Zé Brown o convidou para dançar break. Eraldo não tinha a menor noção do que era a cultura hip-hop e, assim como Brown, ficou fascinado com a dança e com o som. Quando um amigo em comum mostrou o vinil Cultura de rua, os dois piraram e resolveram ser músicos. E, como toda a rapaziada do movimento roqueiro do Alto José do Pinho, viraram alvo de preconceitos. Principalmente porque se vestiam como os rappers americanos: rasparam a cabeça, furaram a orelha e passaram a usar bonés com a aba virada para trás. Se o autor dessas linhas enfrentou muito preconceito ao usar brinco em terra
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de cabra macho como o Recife no início dos anos 1990, imagina então o que não sofreram Eraldo e Zé ao furarem a orelha, na mesma época, no Alto José do Pinho. O jornalista José Teles lembra que eles eram malvistos pela comunidade, considerados “maconheiros vagabundos”. Ou seja, que baita encrenca foram arranjar. Não bastasse o preconceito externo por virem de uma das regiões mais violentas do Recife, precisavam, também, enfrentar a má aceitação da comunidade em que viviam apenas pelo fato de se vestirem de forma diferente. Eraldo andava para cima e para baixo com um tênis basqueteira da marca Puma, que estampava o felino em sua língua. Os amigos acharam que o animal parecia um tigre, e passaram a chamar Eraldo pela alcunha de Tiger. O fato é que Zé Brown e Tiger resolveram compor. Um dia, combinaram de cada um ir para casa e escrever metade de uma letra. Depois, juntariam as duas partes e criariam uma música. Nascia assim “O Brasil do racismo”, primeira composição da dupla. Os dois ficaram impressionados com a semelhança entre a realidade descrita nas letras dos rappers de São Paulo e a que eles viviam no outro lado do país, no Alto José do Pinho. Passaram a ter, no ato de escrever, um verdadeiro exercício de desabafo, e foram colocando para fora tudo que, durante tanto tempo, estava engasgado em sua vida. Não à toa, temas como preconceito e criminalidade sempre estavam presentes em suas letras. Estimulados por amigos que fizeram na Unidrad — a União dos Djs, rappers e dançarinos do Recife —, começaram a ler Malcolm X e a se interessar pela história da luta negra norte-americana. Dali passaram a pesquisar sobre Zumbi dos Palmares, Che Guevara e Zapata. Escreviam as letras e pediam que os Devotos do Ódio fizessem uma levada para cantar em cima dela. Foi assim que se apresentaram na
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terceira edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ roll, ainda sob o nome de The Boys of the Rap. Com poucas músicas escritas, dançaram mais do que cantaram, mas chamaram a atenção. Agora o Alto José do Pinho também tinha um grupo de hip- hop.
Cap.07
É no banheiro...
José Adilson Ritinto nasceu no Recife, no dia 20 de outubro de 1969. Por conta de um problema de incompatibilidade sanguínea dos pais, Adilson nasceu sem boa parte do braço direito e com o dedão da mão esquerda deformado, parecendo uma pata de caranguejo. Antes dele, a família já havia perdido um filho com problemas no cérebro. Para complicar ainda mais, Adilson nasceu laçado pelo cordão umbilical. O médico que fez seu parto ficou tão nervoso que obrigou os pais a colocarem o nome do menino de José1. A mãe era dona de casa e lavava roupa para fora, e o pai trabalhava com jogos de azar no parque de diversões itinerante de propriedade do irmão. Adilson passou boa parte da infância em hospitais. Só o braço quebrou mais de cinco vezes, pois, como só tinha um braço perfeito, não conseguia manter o equilíbrio e vivia caindo. Quando não estava nos hospitais, dividia os dias entre a escola e a televisão. Boêmio e sempre rodeado de mulheres, o pai de Adilson costumava gastar tudo que ganhava em farra. E chegou a ser preso por se envolver em uma briga num boteco. A mãe 1 Crendice popular que prega que toda criança do sexo masculino que nasce laçada deve se chamar José, para garantir a sobrevivência na infância.
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ficava enfurecida. Praguejava, dizia que o marido seria assaltado se não trouxesse dinheiro para casa. Praga de esposa é fogo e, muitas vezes, ele foi roubado mesmo. Durante algum tempo, a família de Adilson morou no Espinheiro, bairro de classe média alta do Recife. O pai deixou de trabalhar no parque do irmão para ganhar a vida como vigia em uma firma de construção no bairro, e a família morava em uma casa nos fundos da empresa. Até que o pai foi demitido da firma e, com o dinheiro da indenização, a família resolveu comprar uma casa no Alto José do Pinho. Apesar das dificuldades, Adilson teve uma boa educação. Era bom aluno e gostava de estudar. Amava o Sítio do Picapau Amarelo, e não perdia um capítulo da adaptação que a Rede Globo fez da obra de Monteiro Lobato. Chegou ao Alto José do Pinho com 15 anos, e logo ficou amigo de Cannibal, Neilton, Celo, Adilson Moreira e Peste. Ainda nos tempos do Espinheiro, Adilson já gostava de inventar algumas músicas, que saía cantarolando pelas ruas. Quando chegou ao Alto José do Pinho, em 1985, não poderia encontrar terreno mais fértil para explorar sua musicalidade. O principal passatempo dos garotos do bairro era montar uma banda, e logo Adilson foi convidado para ser vocalista de seu primeiro conjunto, Flores Negras, que contava com Celo na bateria, André Dark no baixo e Neilton na guitarra. A banda tocava em festinhas de aniversário ou em bares fora do Alto José do Pinho, porque, no bairro, o preconceito ainda era muito grande. Adilson, além de cantar, tocava teclado, mesmo com uma mão só, e as letras da banda prezavam pela cartilha do absurdo, do tipo “a mãe da virgem que subiu em um carro amarelo”. O som era uma sátira às bandas que faziam uma sonridade mais “séria”, calcada no rock
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inglês da década de 1980, como o Tempo Nublado e Academia do Medo, bandas darks recifenses que chegaram a fazer algum sucesso no final dos anos 1980. Porém, em meio à algazarra das letras, havia espaço para certo “protesto”, como na peculiar letra de “Mata soldado”: Mata o soldado Morra, soldado O sol tá picado! O céu tá picado! Mato sorrindo Morra, seu cabra! Morra! Morra! Morra, seu porra!
Tamanha raiva tinha explicação fácil. Naquela época, todos eram vítimas constantes de perseguição policial. Era um baculejo2 atrás do outro. As revistas eram minuciosas, e os meninos eram obrigados a colocar a mão na cabeça, abrir as pernas, deitar no chão, aquela palhaçada toda. Adilson foi ficando cada vez mais amigo do pessoal. Dinho Corninho, baixista do Flores Negras, também tocava n´O Lírio, e ganhou fama por tocar de costas para o público. Antes fosse estilo. Na verdade, era medo mesmo. Outra banda que fez certo burburinho na época foi a punk O Inexistente, cuja capa da primeira fita demo, feita por Neilton, mostrava um banheiro com o título “Onde todos nós somos iguais”. Nessa época, Adilson conseguiu um emprego, que manteve por volta de um ano, como cobrador de ônibus. Adilson, Micro (vocalista do Flores Negras e futuro guitarrista da Matalanamão) e Celo resolveram montar uma banda, cujo tema central seria masturbação. Pensaram em vários nomes, entre eles Psicodoidos, The Mentes ou As Mentes. 2 Gíria local para as revistas policiais.
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O quarteto costumava passar as tardes no sítio da Trindade, tocando violão e bongô, comendo cocada e vendo as meninas saírem do colégio. Em uma dessas tardes, Micro se encantou com uma menina que acabara de sair da escola e comentou com os meninos: “Olha só que menina linda! Hoje vou matá-la na mão.” Ficou Matalanamão, nome mais que perfeito para a proposta da banda. O grupo já colecionava várias canções, que falavam sobre desejo e masturbação, mas a aceitação no meio punk foi bem difícil. Sofreram perseguições dos punks radicais, que achavam aquilo tudo uma presepada e uma falta de respeito com o gênero, e das feministas, que se sentiam ofendidas com o teor das letras. Uma das primeiras músicas do Matalanamão, ainda hoje inédita, foi feita em “homenagem” a um tarado do Alto José do Pinho, que, vez ou outra, passava umas temporadas no presídio Aníbal Bruno. Seu nome era Mó. Parte da letra: Mó, qual a cor do seu dinheiro? Qual a face do teu terror? Teu currículo é bagunceiro Maconheiro e estuprador
Ailton Peste, um dos maiores fãs do Matalanamão, na época, estava fazendo eventos para arrecadar fundos para os soropositivos do Recife. Os bons e velhos shows de rua, com grades de cerveja servindo como sustentação para o palco improvisado. Algumas pessoas começaram a coletar imagens, que resultou no documentário “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do caralho”, que mostrava a ascensão das bandas do Alto José do Pinho, com depoimentos de todos os envolvidos na cena de lá, inclusive de Neilton, contando passo a passo como havia construído sua guitarra. Reza a lenda que uma cópia do documentário foi parar em Dublin, na Irlanda, e que Bono teria visto e gostado muito. Ninguém
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confirma. Tampouco desmente. Celo, por conta das atividades cada vez mais intensas com os Devotos do Ódio, precisou sair da banda, deixando o lugar vago para Peste, maior fã que o Matalanamão tinha. Adilson logo ganhou o apelido de Ronrona, por conta de um problema de dicção que o faz trocar o “r” pelo “l”. E Peste foi tratando de escrever algumas das canções que se tornariam definitivas no repertório da banda. A que mais dá dor de cabeça para a banda, ainda hoje, é “Os peitinhos”. Eis a delicada letra: Por baixo da blusinha Tão lindo de se ver Depois da bundinha Eles fazem acontecer Tire o sutiã Que eu quero te chupar Passar a linguinha Até você gozar Bicudos ou sem bicos Rosinhas ou pretinhos Das vacas ou das mocinhas São lindos seus peitinhos
Se o destino das bandas do Alto José do Pinho era o preconceito em sua comunidade, qual não seria a reação dos moradores do bairro a um grupo como o Matalanamão?
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Aborto masculino: pare de jogar menino fora ou 5 x 1 Ailton Guerra nasceu no Recife no dia 18 de agosto de 1971. Os pais vieram do interior de Pernambuco tentar a vida no Recife: a mãe de Itambé, e o pai de Nazaré da Mata, onde sempre brincou muito maracatu rural. Durante anos, a casa de Ailton no Alto José do Pinho foi sede do maracatu Estrela da Tarde. Os instrumentos eram guardados no quarto de Ailton, e o menino, desde cedo, mostrou vocação para a bateria. A infância foi pobre de posses, mas rica em brincadeiras: pião, pipa, corridas pelas escadarias e jogos de bola. O pai vivia de bicos como mecânico, e era apaixonado por música. Toda semana ia até a feira de Casa Amarela e voltava com um vinil debaixo do braço. Eram discos de Cartola, Núbia Lafayette, Antônio Marcos. A família possuía uma velha radiola de móvel, e o garoto Ailton adorava viajar no som e no visual daqueles álbuns. Gostava tanto que, um dia, ganhou de presente da irmã uma vitrolinha cor de laranja na qual passou a escutar seus próprios discos. No colégio, Ailton aprontava tanto que ganhou o apelido de Peste. Um dia, chegou até a colocar um gato dentro da merenda. E, durante as aulas, vivia batucando na banca. A mãe não suportava essa inclinação do filho para a música. Achava que tudo aquilo era coisa de maconheiro
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vadio. Com 15 anos, começou, de forma autodidata, a tocar bateria, pegando escondido os instrumentos que o pai guardava em seu quarto. As influências vinham do maracatu do pai, mas o que despertou mesmo a paixão no menino pela música foi o rock. Logo passou a andar com os roqueiros da rua, que, assim como ele, eram muito malvistos pela comunidade. As mães das meninas proibiam as filhas de namorar aqueles rapazes vestidos de preto, com calças rasgadas e cabelos extravagantes. Diziam que eles não tinham futuro. Se duvidar, preferiam até que a filha se envolvesse com um criminoso a andar com algum roqueiro do bairro. Assim como Cannibal, Peste era ativista do movimento punk do Recife. Frequentava os shows nos subúrbios, gostava de trocar informações com a rapaziada dos fanzines e de conversar com os punks do bairro de Tejipió. Em 1987, Peste montou, junto com Neilton, sua primeira banda, a Turbo, que fazia covers das bandas nacionais de sucesso da época, como Titãs, Ultraje a Rigor e Camisa de Vênus. Peste costumava levar um radinho de pilha de seu irmão para o colégio, e os meninos passavam o recreio inteiro escutando a programação veiculada nas FMs. Na Turbo, diferentemente de todas as outras bandas em que tocou, Neilton apenas cantava. Depois Peste foi convidado para tocar na Túmulo, e chamou Neilton para fazer parte dela. A Túmulo nasceu da vontade de fazer um som mais pesado, influenciado por bandas como Slayer, Metallica e Sodon. Aos poucos, Peste foi ampliando seu leque de influências, e decidiu montar A Redoma. A banda já tinha uma tendência a fazer rock calcado em Joy Division, que Peste conheceu pela televisão em programas como o Super Special, veiculado no meio da década de 1980 pela TV Bandeirantes. A Redoma durou uns dois anos, e chegou a se apresentar
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até mesmo no Teatro do Parque, em um festival estudantil. Gravaram uma fita demo em que Peste batucava uma prancheta e dois caras tocavam violões e, para surpresa geral, foram selecionados. Peste nunca havia subido em um palco na vida, e o primeiro que encarou foi logo o do imponente Teatro do Parque — com a casa cheia de estudantes. Na hora do show, a banda estava a postos e Peste bateu uma baqueta na outra para marcar o tempo e começarem a tocar. Um, dois, três... e a baqueta caiu no chão. Recolheu a baqueta e repetiu a operação: um, dois, três... e a baqueta novamente caiu no chão. Outra vez: um, dois, três, até que ouviu o grito do vocalista: “Peste, porra! Deixa de onda.” Não era onda, mas puro nervosismo. Até hoje, Peste não sabe como conseguiu prosseguir o show após deixar a baqueta cair três vezes antes sequer de emitir qualquer som de sua bateria. Peste passou a ouvir muita música pesada. Foi por meio dela que chegou até o movimento punk, e ajudou a formar a Terceiro Mundo. Ajudou também na criação de O Verbo, e montou a Sentimentos Ocultos, com vocal feminino. Mas o Matalanamão já era seu favorito. Não perdia um show deles. Quando soube que Celo ia sair da banda por causa dos compromissos com os Devotos do Ódio, tomou um porre e, bêbado, disse aos caras que queria entrar no Matalanamão. Peste não apenas assumiu as baquetas, como virou principal compositor do grupo junto com Ronrona. E, de tanto procurar, Peste finalmente achou o CBGB, que abrigaria os shows semanais das bandas do Alto José do Pinho.
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Cap.01
Bar do Orlando: o CBGB do Alto JosĂŠ do Pinho
O bar do Orlando ficava na rua Acaiaca, localizada acima da rua principal. Era um boteco minúsculo, onde mal cabiam vinte pessoas. Os roqueiros se encontravam lá para jogar sinuca e tomar cerveja. Um dia, a MTV subiu o morro para fazer uma matéria com as bandas do Alto José do Pinho, e elas pediram ao proprietário, Orlando, que cedesse o local para a locação da reportagem. Percebendo que ali seria um bom espaço para organizar eventos, Peste propôs a Orlando fazer shows semanais no bar. E ele, fã de Djavan, apreciador de rock e boa praça, topou. Não existia palco. As gambiarras eram muitas. A bateria, de propriedade de Peste, vivia no local. O som era emprestado de alguém, normalmente uma radiola. E, mesmo com todas as limitações, o primeiro show foi um sucesso. O banheiro ficava atrás do palco. Quem precisasse dar um pulinho no sanitário tinha de passar pela banda primeiro. Só cabiam umas vinte pessoas no local, e o lado de fora ficava abarrotado de tanta gente. Para que uma pessoa entrasse, era necessário esperar que outra saísse. E lá tocaram Devotos do Ódio, Matalanamão, Faces do Subúrbio e Lara Hanouska – banda liderada pela jornalista paulistana Stella Campos. Os shows aconteciam toda quinta-feira e começaram a ser frequentados por gente como Chico Science, o pessoal do Mundo Livre S/A, o jornalista e produtor Gutie e o jornalista José Teles. Até Nando Reis, que, uma vez, estava no Recife excursionando com os Titãs, apareceu por lá. Mas o preconceito ainda imperava no Alto José do Pinho: o bar de Orlando era considerado reduto de drogados. Algumas
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mães iam resgatar os filhos na base do tapa. E, não raro, muitos punks mal-encarados corriam desesperados do local ao avistar a mãe chegando nas proximidades do bar. Mas a vingança não tardou, e veio em grande estilo: a Rede Globo e a MTV fizeram matérias sobre os shows no bar do Orlando. Foi o ponto de partida para a mudança de reputação do Alto José do Pinho. Isso e a aproximação do pessoal do morro com a turma do manguebit. Aos poucos, a comunidade deixou de ver, naqueles jovens, a figura estampada e encarnada do diabo. Passaram, até mesmo, a sentir uma espécie de orgulho pelo fato de o trabalho deles ser reconhecido por gente da televisão. O grande charme do bar do Orlando era o caráter inusitado. Era comum que algumas pessoas subissem nas mesas e, do nada, começassem a recitar poesias. A necessidade de se expressar parecia infinita. Senão, como explicar o sucesso obtido pelo bar do Orlando? Como eles conseguiam realizar shows em espaço tão pequeno, contra tudo e todos? A resposta é uma só: vontade. E o bar do Orlando arrastou verdadeiras multidões: o público que os Devotos do Ódio haviam conquistado em suas turnês nos subúrbios do Recife, misturados com a classe média — que começava a subir o morro — e com jornalistas, que precisavam conferir aquilo com os próprios olhos para acreditarem em uma história tão pouco plausível. Foi o caso de Fábio Massari, da MTV, que, ao conhecer os Devotos do Ódio em uma edição do Abril Pro Rock e saber que a banda era proveniente de um morro recifense, quis imediatamente conhecer o Alto José do Pinho. Pela primeira vez, desde que começou toda a história, lá pelos idos de 1985, com a formação da Egoesmo e dos encontros na casa de Wally, os roqueiros do Alto José do Pinho passaram, finalmente, a virar o jogo a seu favor e a conquistar o respeito e a admiração dos moradores da comunidade. E o grande culpado era o bar do Orlando.
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O produtor Gutie realizou, em São Paulo, no Aeroanta, uma edição paulista do Rec-Beat1, e levou 12 bandas pernambucanas de ônibus para a capital paulista, entre elas, Devotos do Ódio, Faces do Subúrbio e Matalanamão. Era a primeira viagem do Matalanamão. Os Devotos já haviam tocado em Natal e em João Pessoa, e o Faces do Subúrbio em Garanhuns, interior de Pernambuco. Para arrecadar grana para comer na viagem, Peste organizou um show no bar do Orlando e cobrou cinquenta centavos pela entrada. E fechou o bar com toldos, o que tornou o calor lá dentro insuportável. As pessoas, literalmente, pagaram para ficar do lado de fora, fato que ainda hoje rende gargalhadas aos que estiveram presentes naquele dia. O trabalho dos meninos reverteu o jogo na comunidade a tal ponto que até a bandidagem local dava sua parcela de contribuição. Um dia, dois suecos chegaram na casa de Tiger munidos de máquinas fotográficas e câmeras de vídeo. Foram escoltados, sem saber, por um dos ladrões mais conhecidos do bairro, que fez questão de levá-los até a casa do rapper (e de não assaltá-los, evidentemente). Ponto determinante na história do Alto José do Pinho e sobretudo na mudança da perspectiva com que as pessoas passaram a enxergar o morro, o bar do Orlando teve um final trágico. O proprietário, Orlando, vivia no lugar, e utilizava grades de cerveja como cama. Com medo de assalto, costumava dormir com um revólver na cintura. Um dia, quando Orlando foi acordado de manhã pelo motorista de um caminhão de carregamento de cerveja, sua arma disparou e acertou seu coração.
1 Festival alternativo de música que acontece no caranaval do Recife desde 1995.
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Espelho dos deuses
Foi uma banda de fora do Alto José do Pinho que acabou sendo fundamental para a consolidação da carreira dos Devotos do Ódio. O Câmbio Negro HC conseguiu o que parecia impossível para os padrões da cena recifense na década de 1980: gravou um disco. Tanto que foi o único grupo da época a realizar tal feito. Em 1990, a banda lançou, pelo selo independente Rock Xpress, de propriedade de Paulo André, o disco Espelho dos deuses, verdadeiro marco do hardcore nordestino. O álbum era uma paulada só em todas as instituições que, no Nordeste, são ainda mais fortes que nas demais regiões do país: igreja, exército, governo, polícia. Cannibal, que sempre frequentou os shows do grupo, estreitou relações com a banda. Não perdia um ensaio deles, assim como os da SS-20, que ensaiava em um casarão na Rua da Guia, no centro velho do Recife. Depois, quando a bandas passaram a ensaiar em um estúdio, sempre cediam um pouco do seu tempo para que os Devotos do Ódio ensaiassem. Pagavam quatro horas de ensaio, usavam duas e deixavam as duas restantes para o trio usar.
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Outro local de ensaio era a casa de Lindenberg, baixista do Arame Farpado. Linde (como é conhecido), junto com Lael, da SS-20, tinha uma equipe de locação de som e prestação de serviços para shows urdergrounds chamada “Caatinga Produções”, que foi muito importante para a manutenção da cena roqueira dos subúrbios. Outra pessoa que ajudou bastante e tornou-se um dos maiores incentivadores da carreira dos Devotos do Ódio foi Marcus Asbar. Ele possuía, ao lado do primo, Osman, uma produtora responsável pela fabricação de Fanzines e realização de shows chamada “Maos Contatos”, que era muito ativa no underground recifense. Com o passar do tempo, o que era apenas uma sonoridade de três acordes amarradinhos foi ganhando um contorno profissional. Os Devotos, assim como o Câmbio Negro, destacavam-se das demais bandas de punk hardcore da região. Seus integrantes encaravam a banda com tal seriedade que, quando começaram a receber cachê, por mais miúdo que fosse, o trio dividia por quatro: a quarta parte ia para o banco, e era com essa grana que eles faziam as camisetas, as demos e viabilizavam as poucas viagens da época. O mesmo método é utilizado até hoje. Nesse momento, compuseram seu maior clássico, “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho”. A música começava com ruídos e distorções de guitarra, para, logo em seguida, surgir uma levada de baixo e uma batida seca de bateria, com Cannibal cantando: Punk, rock, hardcore Sabe onde é que faz? Lá no Alto José do Pinho É do caralho! Tem Devotos, Terceiro Mundo Que botam pra fuder Todo sentimento obtido Em seu viver
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Depois toda a banda atacava com fúria um hardcore, que parecia traduzir em som todas as dificuldades e mazelas vividas pelo trio até então. Aí vinha a segunda parte, cantada na velocidade máxima do hardcore por Cannibal: Expressando em suas letras O seu ponto de vista Sem violência lutam Por igualdade de vida
E a parte final: Punk, rock, hardcore Sabe onde é que faz? Lá no Alto José do Pinho... É do caralho!
Ao vivo, a canção ganhava uma dimensão ainda maior. Depois de cantar “punk, rock hardcore, sabe onde é que faz? Lá no Alto José do Pinho...”, toda a banda parava de tocar e o público respondia, em uníssono: “É do caralho!” E o grupo repetia mais três vezes o ritual. A plateia podia ser composta por cem, mil ou 2 mil pessoas. Os shows eram encerrados sempre desta forma. Até hoje são. Gravaram o videoclipe de “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho”, primeiro clipe no Brasil a ser rodado em 35 mm, dirigido por Cláudio Assis, que mais tarde filmaria “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”. O clipe mostra a banda tocando na praça do bairro, tendo, aos fundos, a imagem de Cristo na cruz, que ornamenta o local, e crianças brincando e cantando. O clipe chocava pela pobreza mostrada, e nada mais. Não precisava de violência, mulher sarada, efeitos especiais. A realidade era o mote, a tônica, a matéria-prima da banda. E era mais do que suficiente. Curiosidades: o clipe foi gravado em sobras de rolo de um curta-metragem que Assis estava filmando na época. O diretor pensou em gravar “Nova Vida”, mas a banda resolveu tocar “Punk, Rock,
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Hardcore, Alto José do Pinho”, que acabou tendo empatia imediata com as crianças que participavam do vídeo, embora tenha sido tocada em público pela primeira vez. O fato é que a fama da banda foi crescendo a passos largos, mas a grana não. Não raro, o trio ia a pé, carregando seus instrumentos, até o local do show. Passava pela multidão, ia até o backstage, subia no palco, fazia o show e depois retornava a pé para casa. Na ida e na volta, claro, levava um baculejo da polícia. Uma vez, em 1994, abriram um show dos Raimundos no Circo Maluco Beleza. Os brasilienses acabavam de lançar seu primeiro disco, pelo selo Banguela, um braço da gravadora Warner, de propriedade dos Titãs. O álbum foi um sucesso no mercado independente, e músicas como “Puteiro em João Pessoa”, “Nega Jurema” e “Selim” caíram na boca da garotada. Os Devotos do Ódio tinham, nesse dia, uma outra apresentação em outro local. Foram a pé até lá, fizeram o show e foram andando até o Circo Maluco Beleza. Passaram com os instrumentos no meio da multidão, subiram no palco e fizeram um baita show. Algumas pessoas viram ali, pela primeira vez, um show dos Devotos do Ódio, que pegou boa parcela do público roqueiro de classe média dos Raimundos. A imensa roda de pogo2, tradicionalíssima nos shows do trio, deixou parte da plateia embasbacada. A banda tocou “Caso de amor e ódio”, música inspirada no telejornalismo sanguinolento na linha do Aqui e agora, extremamente popular na época. Um baixo sinistro começava a dialogar com uma batida incômoda, criando, no ouvinte, uma sensação de claustrofobia. Depois entrava a guitarra cortante de Neilton, e Cannibal começava a cantar: Caso de amor e ódio Gil Gomes vai contar 2 Tradicional dança punk em que o público forma um círculo e fica girando em torno dele. Não raro é confundida com briga por policiais.
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Como essa história vai acabar E se puxar tem que atirar E se atirar tem que matar Para a sua honra poder lavar Um caso tão bonito Um amor quase impossível Mas o amor não vence o ódio
Gil Gomes narra o episódio: E a banda entrava em fúria e velocidade máximas do hardcore para explodir no refrão: Matou a mãe, matou o pai, matou a filha Matou a mãe, matou o pai, matou a amiga
Era desgraça pura jogada no ventilador para um público que se acostumara a consumir aquele tipo de noticiário. A banda tocou também “Vida de ferreiro”, porradaria de menos de dois minutos que contava a história de seu Antônio, que “todo dia, o dia inteiro, acorda cedo para no trampo começar...”, pois “esse é meu trabalho, meu amigo, eu tenho mais de trinta filhos, pra comer tenho que trampar”. E a conclusão, simples, direta, objetiva, punk: “Vida de ferreiro é hardcore, seu Antônio, pode crer!” E veio o final com “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho”, com mais de 2 mil pessoas respondendo que o punk rock hardcore feito no Alto José do Pinho era “do caralho”. Para os que estavam presentes àquele show, como eu, é difícil acreditar, mas a verdade é que a banda voltou a pé para o Alto José do Pinho, levando o bom e velho baculejo antes de subirem o morro.
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Demos
Os Devotos do Ódio finalmente iam realizar o sonho de gravar um vinil. Na verdade, era uma coletânea com outras duas bandas, Delinqüentes, do Maranhão, e Karne Crua, de Sergipe. O projeto foi intitulado “Cooperativa do Kaos.” A ideia era colocar no mercado um álbum apenas com bandas punks do Nordeste, mas faltou grana para finalizar a empreitada, e o disco não vingou. Carlos, editor do fanzine “Recifezes”, junto com Marcus Arbar, da produtora Maos Contatos, tentaram lançar as faixas dos Devotos do Ódio que seriam utilizadas na coletânea em um compacto da banda. Neilton chegou a fazer a capa e o fotolito, mas o projeto não foi adiante por falta de verba. Nessa época, Paulo André convidou os Devotos para tocarem num evento chamado “Mangue Feliz”, que seria realizado no Circo Maluco Beleza e contaria com a presença de várias bandas do movimento. O trio fez todo o percurso do Alto José do Pinho até o local do show (cerca de 4 km) a pé, levando os instrumentos nas mãos. Chegaram exaustos, com os pés cobertos de poeira (alguns tinham ido de chinelo, outros, de coturno, calçado comum entre os punks). Subiram ao palco e tocaram “Já é Natal”, composição de protesto ainda hoje inédita em gravação: 136
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Já é natal, dia de alienação Enquanto milhares festejam Outros passam fome Tem mesa farta Tem brinquedo para dar É a burguesia se acabando de alegria Na rua a tristeza Do pobre a mendigar Na casa a miséria Do natal que não vai chegar Pobre do menino DEUS Que não precisa mendigar Para ele tudo tem Para ele nada vai faltar Tem a oração Tem a devoção Tem a alienação De um povo cristão
A plateia, em sua maioria composta de pessoas de classe média alta, ficou atônita, sem saber como reagir, se aplaudia ou vaiava. A banda tocou mais algumas músicas, desceu do palco e fez o caminho de volta para casa a pé. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, os Devotos não desanimaram e trataram de seguir em frente do jeito que dava, na base da raça mesmo. Como ainda não tinham condições de alcançar o sonho de gravar um vinil, coisa extremamente cara na época, os meninos dos Devotos do Ódio nutriam um carinho e zelo especiais por suas fitas demo, que enchiam os olhos de quem as comprava. Bom de desenho, Neilton caprichava na arte das fitinhas. Criava capas com encartes, tudo desenhado à mão. Da matriz, tirava cópia dos desenhos, e todas as fitinhas vinham personalizadas, com o nome do grupo desenhado nelas.
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Nessa época, participaram do concurso de bandas Recife Rock Show, festival produzido pela Arte Viva e realizado no bairro de Boa Viagem, em que os Devotos ficaram em primeiro lugar, superando Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis, que ficou em segundo, e Os Mordomos (que nada mais era do que o Jorge Cabeleira inscrito com outro nome) em terceiro. No júri estavam, entre outros, Chico Science e Paulo André. Curioso é que Neilton não gostou do resultado. Ele queria o segundo prêmio, um amplificador, e ficou bastante chateado quando o amigo André Nanyca deu a notícia. Pouco depois, os Devotos tocaram no Recife Summer Fest, festival que contou com a paulistana Viper na programação. Apresentaram seis músicas: “Nova Vida”, “São Fatos da Guerra”, “Asa Preta”, “Luz da Salvação”, “Pela Justiça” e “Futuro Inseguro”. A banda gravou o show e lançou em fita cassete. Neilton caprichou e fez um capa gigante, estilo mapa, que, aberta, trazia o S e a cruz formando um cifrão e as letras de todas as músicas tocadas. Eram nítidos o carinho e o zelo com que a banda fazia suas demos. A banda então entrou em estúdio e gravou, com cuidado profissional, “Vida de ferreiro”, até hoje, uma das demos mais disputadas pelos colecionadores. Nela apareciam composições um pouco mais rebuscadas, que iam um pouco além do punk rock, como “Fogo cruzado”, que terminava com um verso mortal de Cannibal: “Inocentes e culpados são estilhaçados. Aqui todos são vítimas: fogo cruzado.” Era o retrato fiel do Alto José do Pinho. E de todos os subúrbios do Recife. “Vida de ferreiro” trazia também “Uma bala na agulha”, “Formando opiniões”, “Enganado”, “O homem monstro” e “Faz parte do cotidiano”. “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho” tinha sua primeira versão gravada, a mesma que foi utilizada
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na gravação do vídeo da música que integra o documentário “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do caralho”, aquele que supostamente foi visto e aprovado por Bono, em Dublin. “Vida de ferreiro” teve ótima circulação no Brasil. A troca de fitas entre as bandas era uma constante no país. Quando alguma banda de fora aparecia para tocar no Recife, voltava com a bagagem repleta de demos de grupos da cidade. Assim foi com os Raimundos. E, no caso dos Devotos do Ódio, havia o apelo natural por ser uma banda de punk rock de um morro recifense. E, ainda por cima, tinha a história da guitarra de Neilton. Chico Science mostrou a invenção para os Raimundos, que, obviamente, piraram com a história. Chico até chegou a aconselhar Neilton a explorar a história da guitarra. Mas Neilton tinha claro na cabeça que o instrumento não havia sido fabricado com essa finalidade. O líder do movimento mangue sempre demonstrou interesse em trabalhar com os Devotos. Como, até então, nunca havia tocado na periferia, propôs fazer um show junto com o trio no Alto José do Pinho. O evento teria o nome “Estamos por cima”. Chico também pensava em abrir um selo, e os Devotos era a primeira banda que ele queria produzir. Infelizmente, Chico morreu sem realizar o desejo de trabalhar com o grupo. Paralelo ao trabalho musical com os Devotos do Ódio, Neilton ia se aperfeiçoando na arte de desenhar. Suas camisetas pintadas rendiam um bom dinheirinho, e eram tão benfeitas que pareciam saídas de fábrica. Passou a receber encomendas personalizadas. Um amigo chegava para ele e dizia que queria uma camiseta de determinada banda que contivesse um desenho específico. E o desenho era feito à perfeição por Neilton. O guitarrista via os anúncios das lojas de camisas em revistas gringas
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de música, como a Guitar Player, e copiava todos os desenhos. Foi ficando tão craque naquilo que alguns amigos sugeriram que ele partisse para a pintura de verdade, na tela. Neilton, sempre muito modesto, dizia que aquilo não era para ele, e continuava firme na produção de camisetas e de capas de demos. Fez as capas de todas as demos das bandas do Alto José do Pinho. Generoso, Neilton gravou as demos de boa parte das bandas do Alto José do Pinho em sua casa, sem cobrar um centavo sequer, pois não queria que elas enfrentassem as mesmas dificuldades que ele enfrentou para conseguir gravar. Neilton ainda não sabia, mas começava a construir uma sólida carreira de artista gráfico e plástico, além de designer. Já Celo arrumou um emprego como agente de saúde, trabalho que gostava bastante de fazer, pois envolvia, de certa forma, um exercício de conscientização nas comunidades carentes. Gostava de dizer que fazia uma espécie de trabalho de psicólogo, conversando com as pessoas. Só que as atividades com os Devotos do Ódio foram ficando cada vez mais intensas, as viagens eram muitas, e o chefe acabou encostando Celo na parede: “E aí? Vai continuar trabalhando com a gente ou vai ser artista?” “É, vou ter que sair.” A partir daquele momento, Celo seria músico profissional para o resto da vida, sem tempo ou espaço para exercer qualquer outra atividade. Caminho que tinha escolhido desde cedo, aos 12 anos, ao ver aquele baterista de banda de baile tocando numa festinha na Mangabeira. Cannibal, nas horas vagas, exercitava suas origens negras, tocando baixo na Nanica Papaya, banda de reggae de seu amigo André. Pouco tempo depois, sua figura ficou extremamente conhecida nas ruas do Recife, pois ele ia pessoalmente aos colégios do centro da cidade divulgar os shows dos Devotos do Ódio.
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E os shows nas ruas no Alto José do Pinho, aqueles com grades de cerveja servindo de sustentação para um tablado improvisado como palco, permaneciam firmes e fortes. E, agora, com o aval da Rede Globo e da MTV. Muitos jovens de classe média passaram a subir o morro para se divertir nesses shows, para se juntar aos moradores do Alto José do Pinho nas rodas de pogo, espaço punk democrático onde todas as classes sociais se misturavam. E, para espanto de todos, esses jovens de classe média eram muito bem recebidos pelos moradores do Alto José do Pinho. Não demorou muito, o bairro criou fama por ser um local calmo, onde se podia tomar uma cervejinha por um preço justo e ver shows de bandas punks do bairro e até de fora dele. Os moradores passaram a ter orgulho de morar no morro. E o orgulho era fruto do trabalho justamente daqueles meninos que eram marginalizados em sua comunidade. Ainda hoje, muitos deles, já adultos, casados e com filhos, guardam certa mágoa por terem sido tão discriminados naquele período. Mais do que orgulho para os moradores, o Alto José do Pinho se transformou em referência para as demais periferias, e não havia cidadão no Recife que não se orgulhasse da reviravolta acontecida no bairro. A imprensa, que antes só subia o morro para cobrir assassinatos ou deslizamentos de barreiras, agora procurava o Alto José do Pinho para pesquisar sua cultura. E, mais uma vez, os meninos deram um belo exemplo de generosidade.
Tem afoxé, tem punk rock, tem rock’ n’ roll, tem samba e tem pagode 3
Fato raro na imprensa em todo o mundo, os três jornais da cidade se juntaram para fazer uma matéria sobre as bandas de rock do Alto José do Pinho. O normal é que um jornal queira ferrar o outro, obter matérias exclusivas, furos. Porém, à época, o Jornal do Commercio, o Diário de Pernambuco e a Folha de Pernambuco subiram o morro juntos para uma reportagem conjunta sobre o movimento roqueiro do Alto José do Pinho. Efeito dominó provocado pela Rede Globo e, principalmente, pela MTV, que tratou de apresentar o Alto para todo o país. Além de juntar todas as bandas do Alto José do Pinho, Cannibal e seus amigos fizeram questão de chamar o pessoal do maracatu e do afoxé, que já tinham grande tradição local, mas nunca tiveram espaço na mídia. Assim sendo, 3 Trecho da letra da música “Tem de tudo”, dos Devotos do Ódio, gravada no álbum Agora tá Valendo (1997).
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a mesma matéria e foto que trazia Devotos do Ódio, Matalanamão, Faces do Subúrbio, A Ostenta e Terceiro Mundo reproduzia, também, o pessoal do maracatu Estrela Brilhante e do afoxé Ylê de Egbá. Os meninos sabiam a frustração que era desenvolver um trabalho social e cultural e não ter o reconhecimento da sociedade. E, ainda por cima, ser marginalizado por morar no morro. A história era a mesma, só mudavam a época e os ritmos. Nada mais natural então, para Cannibal, Neilton, Celo, Peste, Ronrona e todos os outros, que chamar a turma do maracatu e do afoxé para tentar sanar uma injustiça histórica. Por essas e outras, os meninos viraram o jogo de forma impressionante na comunidade. Passaram a ser respeitados de tal forma no bairro que ainda hoje tamanha aceitação causa certo estranhamento. Esteticamente, pouca coisa mudou. Quase ninguém no morro, fora os integrantes das bandas, gosta de rock. Em compensação, hoje não há quem não admire o trabalho que eles desenvolveram e ainda desenvolvem na comunidade. E justo “aqueles vagabundos de preto, maconheiros que não queriam nada com a vida”. Às vezes, a vida tem um senso de humor bem punk...
Anos 1980
Bá, um dos amigos de infância dos meninos, tocava guitarra na Egoesmo com Celo. Com o fim da banda, Bá ficou cerca de um ano parado. Celo então juntou o útil ao agradável, e, como já sentia necessidade artística de dar vazão às suas influências do rock inglês dos anos 1980, resolveu criar uma nova banda que trouxesse Bá de volta ao meio musical. Nasce a B.U. (Bond of union, nome dado por Neilton, referente ao quadro de Escher), banda que traz Celo na bateria e nos vocais, Neilton e Bá nas guitarras e Micro no baixo. Todas as composições eram em inglês. Posteriormente, Cannibal assumiu a bateria, deixando Celo com liberdade para se dedicar apenas aos vocais. Luciano, que sempre acompanhava os ensaios e shows da banda, ficou com o lugar de Micro no baixo quando ele deixou o grupo. O B.U. abraçaria a sonoridade dark de bandas como Bauhaus, com letras melancólicas escritas por Celo nas folgas entre um show e outro dos Devotos do Ódio. Esteticamente, nada produzido pela B.U. teria espaço nos Devotos do Ódio. A temática da maioria das composições era sobre amores frustrados e relacionamentos problemáticos. Nenhum dos temas sociais de sua banda de origem. O grupo chamava atenção justamente pelo inusitado. Pouca gente imaginava que aquela banda responsável 146
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por homéricas rodas de pogo em seus shows fosse fã do rock inglês produzido nos anos 1980. Mas os integrantes da banda passaram a encarar a B.U. de formas distintas. Enquanto para Neilton a banda era apenas uma fuga ao hardcore dos Devotos do Ódio, mais uma forma de ampliar seus horizontes como músico, para Cannibal e Celo, a coisa era mais séria. Eles acreditavam que a banda tinha potencial para fazer carreira no grande circuito. Como as pretensões de Neilton eram bem mais modestas, o guitarrista tratou de pular fora e acompanhar tudo de longe. Luciano foi recrutado para ocupar seu lugar. O B.U. existe até hoje e, volta e meia, é escalado para algum show independente no Recife.
Cap.02
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Zé Brown e Tiger criaram o hábito da escrita. Colocaram no papel tudo o que enfrentaram na pele desde que se entendiam por gente. O preconceito que sofreram por serem negros e moradores de uma das comunidades mais violentas do Recife. Haviam nascido para escrever, só não tinham descoberto a vocação até então. Foi quando decidiram que já estava na hora de mostrar seu trabalho. Ou, pelo menos, um pouco dele. Na terceira e última edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll, em 1993, Zé Brown pediu que Cannibal fizesse umas levadas de baixo no estilo funk para ele se apresentar com Tiger no evento. Cannibal disse que não conseguia. Zé Brown apelou então para Neilton e Celo, que toparam o desafio e improvisaram na hora, lá no Bonsucesso Futebol Clube, umas levadas balançadas para a dupla se apresentar escudada por alguns dançarinos. Foi a primeira apresentação deles, que ainda atendiam pelo horroroso nome de The Boys of the Rap. O show foi quase todo de dança, e Tiger e Zé Brown recitaram algumas coisas de improviso. Depois disso, Nilson, irmão de Neilton, foi recrutado como DJ por eles. Assim como o irmão, que fabricou sua guitarra, Nilson também fez sua primeira pickup a partir de sucatas. 150
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O The Boys of the Rap foi tocar no Arte Viva, uma academia de propriedade de uma senhora chamada Lourdes Rossi, que abria o local para shows de rock. Ela é considerada até hoje uma espécie de madrinha do hip-hop, pois foi a primeira a abrir espaço para os grupos locais. Sem contar que o Arte Viva virou um programa de televisão veiculado pela TV Jornal, retransmissora do SBT no Recife. Nesse dia em que o The Boys of the Rap tocou no Arte Viva, havia mais de cem pessoas na plateia, todas ligadas ao movimento hip-hop de Recife. E os meninos se apresentaram no formato tradicional, cantando em cima de bases pré-gravadas. Cannibal havia levado Paulo André para assistir, e ele gostou do que viu. Mais tarde, reunidos com o pessoal do movimento hip-hop, Paulo André perguntou a alguns membros qual seria a reação deles frente a um convite da Sony Music para gravar um disco. A maioria reagiu de forma radical, dizendo que gravar por uma major era coisa de playboy ou de vendido. Paulo André então repetiu a mesma pergunta para Tiger e Zé Brown. Mais antenados e esclarecidos do que a maioria ali, responderam que, se o contrato fosse legal para eles, assinariam sem o menor problema. Paulo André perguntou se eles conheciam o álbum Judgment Night, trilha sonora do filme homônimo — lançado no Brasil como Judgement Night: uma jogada do destino — que trazia bandas de rap tocando com grupos pesados como Slayer. Como os meninos não conheciam, Paulo André emprestou o disco a eles. Os caras ouviram e gostaram. Ligaram para Paulo André para agradecer a atenção. E o último conselho de Paulo André foi fundamental. “Troquem de nome. Esse de vocês é muito americanizado. Procurem achar um que tenha mais a ver com vocês.” Tiveram a ideia de Faces do Subúrbio. Mas o empurrão definitivo para a carreira do Faces foi do Devotos do Ódio. No Abril pro Rock de 1994, os Devotos teriam vinte
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e cinco minutos de show. Cannibal perguntou a Paulo André se daria para acrescentar mais cinco minutos no tempo de apresentação da banda, pois ele queria levar o Faces do Subúrbio para fazer uma participação no show deles. Paulo André disse que era impossível. Mas afirmou que, durante o tempo deles de show, a banda poderia fazer o que bem entendesse. Então Cannibal, Neilton e Celo cederam cinco minutos de sua apresentação para chamar ao palco o Faces do Subúrbio, que foram apresentados ao público como “uma banda nova de rap do Alto José do Pinho”. A plateia, formada em sua maioria por fãs de hardcore, gostou da novidade, e o Faces foi muito aplaudido. Empolgados, gravaram, na casa dos pais de Neilton e Nilson, uma demo intitulada “Ser Negro”, onde Nilson fazia as bases e Zé Brown e Tiger cantavam. A capa, como de costume, foi feita por Neilton, e trazia a figura de Nelson Mandela estampada nela. Nilson, além de DJ do Faces, foi o técnico de som da demo. O esforço deu resultado. Uma cópia dela acabou parando nas mãos de Chico Accioly, diretor de cinema e publicitário que na época cuidava da carreira de Chico Buarque. Ele viu o potencial que existia ali e bancou a segunda fita demo, “Não Somos Marginais”. Como a dupla gostou da fusão que ouviu em Judgment Night, decidiu montar uma banda. Seria o segundo “sacrilégio” cometido por eles no meio hip-hop. O primeiro foi misturar rap com embolada, o que dava ao som que faziam um delicioso sotaque nordestino e os diferenciava dos demais grupos do estilo. A ideia da embolada surgiu após um conselho de Chico Science, que, ao assistir a um show da dupla junto com Paulo André, sugeriu que os meninos mergulhassem na embolada assim como ele, Chico, havia feito com o maracatu. Um baterista de Camaragibe1, fã da banda, 1 Município vizinho localizado na região metropolitana do Recife.
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pediu para tocar no grupo. Era Garnizé, que, mais tarde, ficaria nacionalmente conhecido por ter sua história contada no filme “O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas”, de Paulo Caldas e Marcelo Luna. Garnizé indicou Oni como guitarrista, e, para completar a banda, chamaram Marcelo Massacre, baixista do Terceiro Mundo. Essa formação, mais o DJ KSB, que entrara no lugar de Nilson, gravou a demo “Não somos marginais”, que trazia as músicas “Críticas e críticas”, “O Brasil do racismo”, “Homens fardados” e a faixa-título. Esse trabalho ganhou o prêmio de melhor demo de 1996 pela revista Trip. Foram convidados por Gutie para a edição paulista do Rec-Beat, e o pai de Tiger não acreditou quando o filho disse que viajaria para São Paulo. “Tá pensando que São Paulo é ali em Camaragibe?” Só acreditou quando viu uma matéria na Rede Globo, que mostrava o filho embarcando em um ônibus para São Paulo com as outras bandas do Recife. E as coisas começaram a acontecer rápido para o Faces. Mas eles ainda precisariam superar muitos preconceitos.
Cap.03
Quero até sua mulher
Cap.03
Quero até sua mulher
Com a ascensão de Devotos do Ódio e Faces do Subúrbio na cena local, começaram a circular, no Recife, histórias sobre uma banda punk que cantava sobre masturbação e cujo vocalista era incrivelmente bom de palco. E, de fato, Adilson Ronrona, vocalista do Matalanamão, pode ser considerado um show à parte. Primeiro, por superar todos os limites pessoais: o braço direito é defeituoso, tem problema de dicção e ainda assim é capaz de segurar um show inteiro na base da garra. E da anarquia e da palhaçada também, evidente. Um dia, ainda adolescente, Ronrona descobriu Morrissey por meio do programa Super special, da rede Bandeirantes. Apesar de achar a performance do líder do The Smiths muito “bichal”, viu que tinha algumas coisas interessantes a extrair dali, principalmente a dança, que acabava chamando tanta atenção quanto a música. O garoto ficou fascinado também com o Kiss, com suas roupas e maquiagem extravagantes. Em suma, Adilson nunca conseguiu distinguir música de imagem, tanto que seu passatempo preferido era ver programas de videoclipe que passavam na Bandeirantes e na extinta TV Manchete. MTV ainda era um sonho distante naquela época. Enfim, para Ronrona, não bastava ser vocalista de uma banda que tinha a masturbação como mote principal. Ele queria ir além. E foi.
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É preciso fazer justiça a uma qualidade, muitas vezes, deixada de lado no Matalanamão: o som. A banda criou uma linguagem sonora muito bem definida, própria. “Os peitinhos”, por exemplo, é um cruzamento do rock surgido nos anos 1950 com riffs pegajosos emprestados do metal. “Mim dai” (sic) é outra canção muito bem trabalhada, com uma linha de baixo extremamente criativa. “Priminha” segue a linha de “Os peitinhos”. Porém, no caso do Matalanamão, é compreensível que o som acabe ficando em segundo plano. Não bastassem todas as idiossincrasias da banda, Ronrona ainda cismou que deveria fazer os shows fantasiado. Assim sendo, já cantou vestido de colegial, com minissaia e tudo. De bebê, com direito à fralda. De camisinha, bombeiro, xeque, com pijaminha de cetim. Foram tantas fantasias que um produtor, certa vez, confundiu as coisas e sugeriu que eles seguissem a linha dos Mamonas Assassinas. Ao contrário do humor do grupo de Guarulhos, que tinha um quê de ingênuo e caiu nas graças das crianças, o do Matalanamão era cínico e deliberado até as últimas consequências. E eles chegaram a pagar um preço por isso. Tanto que demorou anos até conseguirem gravar o primeiro disco. E sofriam sérias perseguições por parte da ala mais radical dos punks. A essas perseguições, o baixista Jaiminho costumava dizer: “Vocês não gostam de mulher?” E, ao serem questionados se seriam sexistas ou machistas, a resposta costumava ficar na fronteira entre a genialidade e a ingenuidade: “Podemos até ser sexistas por causas das letras. Mas machistas, não.” Vamos a alguns exemplos do lirismo da banda, como “Priminha”: Chegou uma prima minha Que veio de São Paulo Cheia de sotaque Boa pra caralho Seu nome é Cristina
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Tem um corpo que me atrai Não só a mim como a meu pai Fico sem controle Cheio de tesão Quando estou com ela Assistindo televisão (sic) Cristina, minha filha Prepare-se para ver Eu vou ter um orgasmo Em homenagem a você
Definitivamente, não dava para imaginar isso sendo cantado pelos Mamonas Assassinas. Uma vez, a banda foi tocar em João Pessoa. Umas punks mal-encaradas não gostaram do que viram, e menos ainda do que ouviram. No intervalo entre as músicas, começaram a xingar Ronrona, que devolveu as provocações. Peste, sabendo do perigo da situação, tratou de emendar uma música na outra para que não desse tempo de Ronrona discutir com as punks. Certa hora, cutucou o vocalista com a baqueta e disse: “Meu irmão, você está louco? A gente não está em casa.” Ronrona continuou o show como se nada houvesse acontecido. No final, quando desceram do palco, foram cercados pelas punks. Mal-humorado, de saco cheio, Ronrona foi logo perguntando: “O que vocês querem?” Elas então disseram que não gostaram de “Os peitinhos”, e perguntaram se ele tinha alguma coisa contra mulher. Ronrona apontou para Peste e disse que ele era o autor da letra, deixando a confusão para o baterista resolver. Peste não chegou a apanhar, mas esteve bem perto disso. Uma das lendas que cerca o Matalanamão é que eles teriam sido expulsos do Mauristad, casa de shows que funcionou na década de 1990 no Recife Velho, porque um dos integrantes da banda estava se masturbando ao espiar uma menina trocar de roupa no camarim vizinho. Nada mais com a cara do Matalanamão do que isso.
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Cap.04
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Pintou a possibilidade dos Devotos do Ódio gravarem seu primeiro disco de forma independente, em 1995. A banda ficou amiga de Clemente, dos Inocentes. O contato com o líder dos Inocentes foi feito através de um fã dele de São Paulo, que viu um show dos Devotos e propôs gravar o disco por um selo que estava criando. A gravação seria na capital paulista. Eles encararam uma viagem de carro do Recife até São Paulo. Chegando lá, deu tudo errado. Eles descobriram que o sujeito era apenas um fã, sem a menor experiência em trabalho com bandas e gravadoras. Clemente lamentou profundamente a situação, pois era tão vítima quanto os Devotos. Para piorar a situação, Cannibal sonhou com sua mãe adotiva, dona Maria, pedindo que ele voltasse para casa, que ali não era o lugar dele. Impressionado com o sonho, Cannibal contou para Celo e Neilton, que decidiram voltar imediatamente para o Recife. O fruto positivo do episódio foi a amizade que surgiu entre a banda e o vocalista dos Inocentes. A partir deste episódio, o jornalista Marcelo Pereira, do Jornal do Commercio, um dos primeiros a descobrir, junto com José Teles, o movimento mangue, publicou uma matéria sobre a agonia do trio em gravar o primeiro disco, a demora em assinar contrato com uma gravadora, e como essa espera angus-
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tiava os meninos. A matéria saiu com o título de “Devotos têm pressa de gravar”. Cannibal aproveitou a deixa para compor “Eu Tenho Pressa”, que se tornaria um dos hits da banda e que serviu, durante muito tempo, como música de abertura dos shows do grupo: Eu tenho pressa de vencer Eu tenho pressa de vingar Vencer para me suceder Vingar para me realizar Vivendo assim eu vou morrer Vivendo assim eu vou matar Eu tenho pressa de vencer Eu tenho pressa de vingar
Era a tradução perfeita do sentimento da banda na época. Não parecia, mas o grupo já tinha nove anos de carreira, estava em um nível absolutamente profissional, mas nada de o disco sair. Nessa época, Paulo André era empresário e produtor de Chico Science & Nação Zumbi. Em julho de 1996, a Sony Music lançava no mercado Afrociberdelia, segundo disco do grupo. A banda faria dois shows de lançamento do álbum em São Paulo, no Tom Brasil, e Paulo André aproveitou para levar os Devotos do Ódio como banda de abertura, e instalou o trio em um quarto triplo no mesmo hotel em que ficou hospedada a Nação Zumbi. Fazia muito frio em São Paulo, e Cannibal, Celo e Neilton não haviam levado roupas que os agasalhassem o suficiente. Durante o show dos Devotos, Paulo ficou sabendo que o vereador paulista e atuante da cena rock de São Paulo, Turco Louco, estava na plateia, e disse que era a chance de Cannibal arrumar uns agasalhos. Cannibal não perdeu a deixa, e, no intervalo de uma das músicas, falou
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ao microfone: “Turco Louco, meu irmão, eu sei que você está aqui vendo o show. Descola uns casacos pra gente que nós estamos morrendo de frio aqui em São Paulo.” O vereador foi conhecer o trio no camarim e, no dia seguinte, descolou os casacos para a banda. O fato histórico: os Devotos do Ódio foi o primeiro grupo de rock com guitarra pesada a se apresentar no Tom Brasil. Paulo André, na época, ainda trabalhava de forma informal para os Devotos, mais na base da brodagem. Maurício Valladares, um executivo da BMG, que havia visto os Devotos do Ódio em edições anteriores do Abril Pro Rock, disse a Paulo André que tinha interesse em assinar contrato com a banda, mas que só o faria se Paulo trabalhasse como produtor deles. Foi assim que Paulo André virou empresário oficial dos Devotos do Ódio, e a banda, finalmente, assinou com uma gravadora para lançar seu disco de estreia. Os Devotos do Ódio já haviam conquistado um belo patamar na cena punk nacional. Seus shows faziam sucesso, o grupo ficou conhecido pelas enormes rodas de pogo que provocava em suas apresentações quando assinou com a BMG Ariola, mesma gravadora do Só Pra Contrariar, que, em épocas de bonança da indústria fonográfica, vendia milhões de discos. O contrato com a BMG foi um alívio em um primeiro momento. Recrutaram Lúcio Maia, guitarrista de Chico Science & Nação Zumbi, para produzir o disco, que foi batizado de “Agora tá valendo”. O álbum era um desabafo de 18 faixas. Já na abertura, com “Formando opiniões”, ficava a deixa de como a banda estava engasgada com tudo: “já se foi o tempo de esperar uma solução”, gritava Cannibal. “Dia morto” aparecia como música de trabalho, e chegou a ganhar um clipe filmado em película, em que a banda passeava pelas ruas do centro de Recife, no
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Alto José do Pinho e em Peixinhos, com Cannibal vestindo uma camiseta preta escrita INRI. “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho” ganhava sua versão definitiva, assim como “Vida de ferreiro”, “Luz da salvação”, “Caso de amor e ódio”, “Fogo cruzado” e “Nova vida”. O disco impressionava pela crueza, e, principalmente, pelo trabalho de guitarra de Neilton. “Enganado”, por exemplo, trazia um pouco das influências de fora do mundo punk do guitarrista. E a penúltima faixa do disco era uma canção que parecia traduzir todo o passado, o presente e o futuro da banda: “Mas eu insisto”. O álbum terminava com “Futuro inseguro”, primeira composição da vida dos Devotos. Neilton fez as ilustrações, e o projeto gráfico ficou por conta da Ouriço Designer, empresa de Pernambuco. Todo o trabalho gráfico foi feito no Rio de Janeiro. A capa estampava o desenho, sobre um fundo azul, do rosto de um anjo morador de rua com uma tarja preta cobrindo os olhos. O guitarrista não ganhou um centavo pelas ilustrações. O encarte ainda trazia um longo e emocionado texto de Fábio Massari, que contava como ele havia descoberto a banda e o Alto José do Pinho. A banda não gostou da produção do álbum. Achou que o som ficou chocho, que não reproduzia fielmente a violência sonora dos shows da banda. Para piorar, alguns punks mais radicais chegaram a acusar o grupo de traidor do movimento por ter gravado um disco por uma grande gravadora e por ter feito um clipe veiculado pela MTV. Como gosta de dizer João Gordo, vocalista do Ratos de Porão e apresentador da MTV, punk só dá valor “se você for feio, sujo e comer merda”. O lançamento de “Agora tá valendo” foi no Abril Pro Rock de 1997. O festival crescera a tal ponto que precisou mudar de endereço. Saiu do Circo Maluco Beleza para o Centro de Convenções. Fazia apenas dois meses que
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Chico Science havia morrido em um acidente de carro, e a comoção ainda era grande. Naquele ano, o festival contou, em sua programação, com Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão e Arnaldo Antunes. Max Cavalera, recém-saído do Sepultura, veio dos Estados Unidos para conferir o evento. Os Devotos do Ódio fizeram uma apresentação correta, mas pouca gente ali conhecia o repertório do disco. Emocionado, Cannibal dedicou o show a sua filha recém-nascida, Lais, e disse que o CD estava à venda em um stand ali mesmo, no Centro de Convenções. Foi como adquiri o meu. O disco possibilitou algumas viagens, e garantiu a popularidade da banda, pelo menos, na região Nordeste. Mas os perrengues continuavam. O fato é que os Devotos do Ódio eram contratados de uma grande gravadora, mas recebiam um tratamento pior ao que costuma ser dado a uma banda independente, como lembra Neilton: “A gente ficou num hotel perto da gravadora (BMG). Hotel três estrelas, com uma delas já apagando e caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra tocar e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era pão com queijo, uma banana e café com leite. Aí ficava assim até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia da tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga roncando. A gente entrava naquele puta prédio da gravadora, cheio de seguranças, de bermuda e chinelo para encher nossas garrafas de água. O passatempo da gente era ficar olhando as meninas na praia1.” Entretanto, aos trancos e barrancos, “Agora tá valendo” acabou circulando no circuito punk. A BMG não sabia trabalhar a banda, e esperava que ela atingisse o mesmo patamar de vendas do Só Pra Contrariar. Quando foram 1 Ibidem.
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se apresentar no Abril Pro Rock de 1998, os Devotos já possuíam um séquito de fãs, as músicas do disco já eram bastante conhecidas entre os punks e, até mesmo, por quem apenas simpatizava com o rock, mas não era necessariamente fã da banda. Naquela noite, a grande atração do festival era a banda americana Suicidal Tendencies, que levou uma verdadeira multidão ao pavilhão do Centro de Convenções. O problema é que a banda desmarcou o show na última hora, alegando que a mãe de um dos integrantes havia morrido. A produção ficou desesperada. Temia por tumulto e revolta por parte do público. E Cannibal, Celo e Neilton estavam tranquilos no camarim, e até se divertiam um pouco com a situação. Chegou a hora do show, o trio subiu no palco. Cannibal vestia a camisa da seleção brasileira. Educado, cumprimentou o público: “Boa-noite, Abril Pro Rock! Nós somos os Devotos. Do Alto José do Pinho. O importante mesmo é ter um festival de nossa terra sendo encerrado por uma banda de nossa terra!” E emendou com o berro “EU TENHO PRESSA DE VENCER”. E foi aberta então uma das maiores rodas de pogo de que se teve notícia no Brasil. Poucas pessoas ali pareciam sentir a ausência do Suicidal Tendencies. Cannibal comprovava que tinha um carisma acima do comum. E a banda soube se aproveitar da estrutura de som que serviria aos gringos. Tecnicamente, foi o mesmo show de sempre, mas liberaram toda a mesa de som para eles, o que deu a impressão do som tomar uma dimensão maior e mais alta do que, de fato, era. O público, ainda ressentido com a perda de Chico Science, viu, em Cannibal, a possibilidade de substituir o ídolo tragicamente morto um ano antes, embora essa nunca tenha sido a intenção dele. Os Devotos tocaram ainda duas músicas novas: “Nós faremos que você nunca esqueça” e “O herói”, uma “homenagem” ao policial “Rambo”, famoso na época por ser acusado de atirar e tirar a vida de um inocente em Diadema, São Paulo. O refrão:
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O herói está à solta O herói está fudido E todo mundo viu Que o herói é um bandido
No final do show, Cannibal se despediu utilizando uma frase que seria, dali por diante, sua senha para abrir e fechar as apresentações do grupo. “Voltem para casa na paz e com cuidado, porque alguém que ama muito vocês está esperando em casa.” Talvez isso explique, em parte, por que raramente os shows dos Devotos terminam em violência. Ainda em 1998, os Devotos do Ódio comemoraram dez anos de carreira em show no Circo Maluco Beleza, com direito à abertura da banda americana Man Or Astroman?. O curioso desse show é que um amigo meu perdeu seus óculos na roda de pogo e só os encontrou depois de eles serem esmagados e pisoteados. Apesar de ser quase cego sem óculos, voltou para casa feliz da vida por ter uma história tão boa para contar no show de comemoração dos dez anos da banda de que tanto gostava. Até 1998, a TV Jornal, retransmissora do SBT no Recife, detinha os direitos de transmissão do Abril Pro Rock. Em 1999, a Rede Globo percebeu o apelo nacional que o evento possuía, e resolveu fazer uma cobertura em rede. Como sempre deu mancada nessa área (música, e principalmente música jovem), a Globo escalou a repórter-atriz Cissa Guimarães para cobrir o festival. Em um sábado à tarde, durante a passagem de som, Cissa entrou no ar ao vivo pelo Vídeo Show. Cannibal estava ao seu lado. Assim que entrou no ar, a repórter começou com a verborragia típica do programa da Rede Globo: “Gente, eu estou aqui com Cannibal, dos Devotos do Ódio! Será que ele morde? E aí, Cannibal, você morde?”
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E um triunfante Cannibal saiu-se com essa: “Morder eu não mordo, mas comer eu até posso.” Cannibal diz que, até hoje, recebe os parabéns de muita gente na rua pelo fora dado na global.
Cap.05
Homens fardados, eu n達o sei, n達o
Em 1994, o Faces do Subúrbio embarcou em um ônibus rumo a São Paulo com mais 11 bandas pernambucanas para uma edição paulista do festival Rec-Beat. Do Faces do Subúrbio, apenas Zé Brown, Tiger, Nilson e dois dançarinos foram para a capital paulista. No show, os Devotos do Ódio faziam papel de banda de apoio. Depois do show deles, um paulista do movimento hip-hop de São Paulo fez questão de conhecer a banda recifense que fazia rap. Era Rappin Hood, com quem o Faces do Subúrbio estreitaria relações mais tarde. Com o sucesso da demo “Não somos marginais”, a banda assinou contrato com a MZA para gravar o primeiro disco, “Faces do subúrbio”, com distribuição da Polygram. O álbum abria de cara com dois petardos, “Não somos marginais” e “Homens fardados”. Essa última trazia letra inspirada de Tiger, cujo refrão era: Homens fardados, eu não sei, não Se julgam os tais, os donos da razão Homens fardados, eu não sei não Insistem em fazer justiça Com as suas próprias mãos
A banda foi convidada para fazer um show no Parque de Exposições do Cordeiro, em um evento do governo de Pernambuco chamado “Todos Com A Nota”. O Faces 180
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do Subúrbio começou a tocar “Homens fardados”. O público abriu uma roda de pogo. Assustada e desacostumada com aquilo, a polícia pensou que se tratava de briga, e uns oitenta policiais partiram para cima do público armados de cassetetes. O grupo parou de tocar e, ao microfone, Zé Brown e Tiger perguntaram por que a polícia estava batendo no público. Chegaram até a explicar que aquilo ali não era briga, mas uma dança comum nos shows de punk. Não houve acordo, e o show foi encerrado na mesma hora. A verdade é que a polícia não gostou nem um pouco do teor da letra. Após o show, policiais invadiram o camarim e levaram Tiger, Zé Brown e Garnizé para a delegacia. Cada um levou um tapa no pescoço. Chris Couto, então repórter da MTV, estava no show, assim como Marcelo Yuka, à época baterista do Rappa, e tratou de espalhar a notícia via telefone. A notícia logo circulou. Os rapazes foram liberados e, no dia seguinte, um comandante da Polícia Militar dava uma entrevista à Rede Globo, na primeira edição do NE TV, dizendo que a banda era formada por arruaceiros, que estavam incitando a violência e que tinham ultrapassado todos os limites da liberdade de expressão. Como bem lembrou Zé Brown em entrevista ao autor: “Desde quando liberdade de expressão tem limite?” O caso repercutiu de forma muito negativa para o governo do Estado. O governador na época, Miguel Arraes, tinha um histórico de perseguição política, tendo ele próprio sido destituído do poder na época do regime militar. Ele tratou, então, de solicitar uma reunião com Tiger, Zé Brown e Garnizé no Palácio das Princesas e convocou a imprensa e, em público, pediu desculpas ao grupo. O secretário de Cultura da época, o genial – porém xenófobo – escritor Ariano Suassuna, assistia a tudo calado, ao lado do governador. Na edição noturna do NE TV, o mesmo comandante da Polícia Militar aparecia em nova
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entrevista, mas com discurso diferente, dizendo que houve “um pouco de abuso de autoridade por parte dos policiais”. O caso foi tema de matéria no Fantástico. Uma semana antes, os integrantes do Planet Hemp haviam sido presos, acusados de apologia ao uso de maconha. Tanta celeuma em torno da apresentação do Faces do Subúrbio teve o desfecho que a banda esperava: os CDs venderam como água, e desapareceram das lojas em questão de dias. Foi aberto inquérito para apurar o caso. Alguns policiais perderam o cargo. Era assustador, mas, em 1997, ainda existiam resquícios da ditadura militar. O incidente serviu ao menos para jogar luz na carreira do Faces do Subúrbio. O rap embolada do grupo crescia no universo hip-hop do país. E, algum tempo mais tarde, a banda ficaria internacionalmente conhecida pelo que realmente havia de importante em sua obra: a música.
Cap.06
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1 GĂria criado pelo grupo: o ato de se masturbar no escuro.
O Matalanamão, aos poucos, ia seguindo os passos dos vizinhos Devotos do Ódio e Faces do Subúrbio. Geraldinho, um dos sócios da antiga casa de shows Mauristad, criou um festival chamado PE no Rock, que, em suas primeiras edições, era totalmente dedicado às bandas pernambucanas. O Matalanamão fez uma bela apresentação na primeira edição do evento, em 1998, no Circo Maluco Beleza. Descarados, colocaram uma menina de calcinha e sutiã no palco para gemer enquanto a banda tocava “Priminha”, aquela do “prepare-se para ver/eu vou ter um orgasmo em homenagem a você”. Em um show particularmente hilário numa das edições do PE no Rock, Adilson Ronrona entrou no palco fantasiado de bombeiro, para, segundo ele, “apagar o fogo das meninas”. Ailton Peste já trabalhava na Secretaria de Saúde do Recife e, volta e meia, estava engajado em algum evento beneficente. Passou a descobrir que o Matalanamão era um excelente veículo para fazer campanha de alerta para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Ronrona também se empenhava em fazer trabalhos sociais no Alto José do Pinho. Não parecia, mas os meninos responsáveis por todo o escracho do Matalanamão eram jovens cientes da responsabilidade que possuíam, e engajados em mudar o quadro social – ou pelo menos tentar – das periferias do Recife. Pena que os punks mais radicais e as feministas não conhecessem essa outra faceta da banda. O grupo, enfim, conseguiu assinar contrato com uma gravadora, e lançou seu primeiro disco, homônimo, pelo selo 186
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Candeeiro. A produção ficou a cargo de Pupilo, baterista da Nação Zumbi. O álbum continha 14 faixas que falavam de sexualidade em linguagem crua, por vezes, até chula, mas sempre muito engraçada. Peste escrevia as letras mais pesadas, enquanto cabia a Ronrona a parte mais “romântica” do latifúndio do Matalanamão. E a banda fez história ao ter o clipe de “Os peitinhos” censurado na programação da MTV. Gravado pelo pessoal da Rec, produtora do Recife, o clipe foi vetado muito mais em função da letra do que das imagens, que mostravam Ronrona em uma sala como professor dando aula para um grupo de colegiais. O detalhe saboroso da história é que o vídeo foi gravado no Colégio Santa Maria, também conhecido como “colégio das freiras”. Com o disco embaixo do braço, a banda bancou uma turnê por conta própria até São Paulo. Alugou uma van e, com R$ 4.500,00 no bolso foi se apresentar no festival SP Punk, que trazia 42 bandas do estilo em dois dias de shows. Metade da banda ficou hospedada na casa de Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado. O jornalista Xico Sá tratou de arrumar abrigo para o restante do grupo. Foram para fazer cinco shows e acabaram fazendo sete. Tiveram até convite para tocar em Santos, mas a grana havia acabado e foram obrigados a voltar para Recife. Ironia das ironias, o Matalanamão, perseguido por punks radicais no Nordeste, havia sido aceito de braços abertos em São Paulo, berço dos skinheads e dos punks mais violentos do país. Antes de voltar ao Recife, gravaram uma participação no programa RG, veiculado pela TV Cultura e apresentado por Soninha. Só que o programa não chegou a ir ao ar, pois a apresentadora foi demitida após dar uma entrevista à revista Época em que admitia fumar maconha.
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Devotos e Nação Zumbi uniram forças e criaram, em 1999, o projeto “Acorda Povo”. O evento tinha como metas levar música de qualidade para a periferia da cidade e oferecer oficinas de fotografia, quadrinhos e demais modalidades. A empreitada teve apoio da prefeitura do Recife, e, em sua primeira edição, passou pelos bairros da Bomba do Hemetério, IPSEP, Alto da Bondade e Areias, entre outros. Durante a semana, eram realizadas as oficinas. Aos sábados, shows gratuitos de Devotos e Nação Zumbi, além de uma banda local do bairro. Para a Nação, o “Acorda Povo” foi importante por vários aspectos. Primeiro, porque a banda estava retomando a carreira depois do impacto da perda de Chico Science. Segundo, porque era a primeira vez que o grupo se apresentava nos subúrbios da capital pernambucana, coisa que deixou os integrantes impressionados pela quantidade de gente e receptividade do público, que não parava de pular e cantar durante todo o show. Certa vez, em entrevista para a MTV, o baixista da Nação, Dengue, afirmou que o melhor show da carreira da banda tinha sido na Bomba do Hemetério. Que, em todo o mundo, ele jamais havia visto nada parecido. Para os Devotos, o “Acorda Povo” tinha um gosto especial. A banda voltava a tocar em todo o circuito que já
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havia percorrido ao longo da carreira, mas era a primeira vez que se apresentava nesses locais com palco e som de primeiro mundo, sem a estrutura precária do início de sua jornada. Os fãs mais antigos chegavam a se emocionar nesses shows, pois foram testemunhas da barra que os Devotos enfrentaram na primeira vez que fizeram esse circuito. Muitos levavam seus filhos. Nascia, ali, a segunda geração de fãs da banda. Sem contar com a satisfação dos moradores dessas regiões, que, pela primeira vez na vida, testemunhavam um evento com excelente estrutura em seus bairros. O sucesso foi tão grande que o “Acorda Povo” cresceu e ganhou uma segunda edição no ano seguinte, agora apoiado pelo governo do Estado. Participaram, além dos Devotos e da Nação Zumbi, nomes como Mestre Ambrósio, Mundo Livre S/A, Otto e Eddie. Nesta edição, Devotos e Nação Zumbi tocavam em dias separados. O “Acorda Povo” foi de vital importância para os Devotos, porque ali conseguiram provar (inclusive para eles) que era possível realizar shows de qualidade e com equipamento técnico de ponta no subúrbio. O trio ainda tentou organizar uma terceira edição do evento, que circularia pelas cidades do interior de Pernambuco, mas não conseguiu viabilizar o projeto.
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Eu tenho a fome de viver O segundo disco do Devotos foi gravado em um clima bem melhor do que o primeiro. Dado Villa-Lobos, ex-Legião Urbana, abrigou o grupo em seu selo, o Rock It! Ele havia visto o show do Devotos no Abril pro Rock de 1999, e ficou impressionado com o som da banda. As gravações foram no estúdio Rock IT!, de propriedade do guitarrista. Dado acabou se tornando um dos grandes amigos dos Devotos. Nesse período, Cannibal compôs aquela que ele considera a sua obra-prima, Alien: Eu vim aqui mesmo sem planos Estou aqui não sei por que Me ajude a ser humano Não quero me perder Não quero falar dos meus sonhos Não quero pedir para viver Me ajude a ser humano Não quero me perder Eu tenho o sono dos anjos Eu tenho a fome de viver Me ajude a ser humano Não quero me perder Não quero falar dos meus sonhos Não quero pedir para viver Me ajude a ser humano Não quero me perder...
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A música contou com a participação do próprio Dado nos vocais. A banda gravou também “O Herói” e “Nós faremos que você nunca esqueça”, ambas já conhecidas nos shows. E o disco trazia uma surpresa: uma versão para “Selvagem?”, do Paralamas do Sucesso, que contou com a participação de Herbert Vianna nos vocais. Rás Bernardo, primeiro vocalista do Cidade negra, e Toni Platão também cantam no álbum. Toda a arte gráfica do disco, mais uma vez, foi feita por Neilton. A capa retrata uma Nossa Senhora da Aparecida segurando um anjo branco com um rabo de demônio. E Nossa Senhora da Conceição, também com um anjo negro com um rabo de demônio. As duas santas, no desenho do Neilton, aparecem velhas e cansadas. A contracapa mostra uma santa grávida nua, com a barriga com um certo movimento angustiante. Mas o detalhe que mais impressiona é outro. O pai de Neilton é analfabeto, e a mãe só tem a formação primária. Um dia, o guitarrista pediu que o pai escrevesse o alfabeto em um papel. Como sofre de mal de Parkinson, ele, com muita dificuldade, desenhou um A. A mãe o ajudou com o restante das letras. O resultado ficou bem diferente do convencional, com um certo toque artístico. Neilton aproveitou aquele material para criar uma nova fonte, que batizou de “Fonte Devotos/Pai”, e a utilizou nos créditos das músicas do disco, na contracapa do álbum. Àquela altura, Neilton não era conhecido apenas como guitarrista do Devotos, mas também como artista plástico de talento. Os Devotos foram convidados para tocar em Portugal, e Paulo André colocou o trio em um avião rumo a Lisboa. A banda se apresentaria num evento chamado Palco Sound 6, no Parque das Nações. Era a primeira vez que uma banda do Alto José do Pinho tocava fora do país. Eles dividiram a noite com os portugueses do Trinta e Um, grupo
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que tem um público bem numeroso no circuito punk e hardcore do país. O show foi ótimo, os discos dos Devotos que estavam à venda no local se esgotaram, mas a experiência por lá não foi das melhores. Eles passaram uma semana em Portugal sem ter o que fazer, sozinhos, sem produtor. Chateados, perceberam a oportunidade que estavam perdendo, pois em uma semana daria para agendar vários shows na Europa. Tiveram de voltar para casa com apenas um show na bagagem. A relação dos Devotos do Ódio com seu empresário Paulo André, também produtor do Abril Pro Rock, começou a ficar tensa. A banda decidiu não se apresentar mais no festival, alegando não ter nada de novo para mostrar. Paulo André não entendeu a recusa da banda em participar do Abril Pro Rock, pois era o sonho de 99% das bandas brasileiras tocar no festival. Para piorar as coisas, a banda decidiu suprimir o “do ódio” do nome do grupo, ficando só Devotos. Alguns punks não perdoaram, e viraram as costas definitivamente para a banda, acusando-a de ser vendida e de ter se entregado ao sistema. Mas já era a intenção deles mudar de nome desde o lançamento do primeiro disco. Além de o grupo ser barrado em um monte de programas por causa da força do nome, o trio estava extremamente insatisfeito pela confusão semântica causada pela interpretação do significado de Devotos do Ódio. Muita gente achava que a banda fazia a apologia à violência, o que deixava o trio fulo da vida.
Nasce um artista
As camisetas pintadas à mão foram ficando pequenas para a arte de Neilton. Após fazer todas as ilustrações dos dois primeiros discos dos Devotos e assinar o cenário dos shows, o guitarrista começou a mexer com outras mídias. Neilton chegou a fazer um curso de artes gráficas quando adolescente, mas achava-o insuficiente, e sentia que estava desatualizado. Ainda assim, juntou uma grana e comprou um computador usado. Nele, fez todo o projeto gráfico do segundo disco dos Devotos. Nunca havia trabalhado com Corel ou qualquer outro programa de computador, e aprendeu tudo na marra, sozinho, “cutucando de madrugada”. Dessa forma, fez o site dos Devotos. Neilton se beneficiava de duas coisas: da curiosidade extrema que sempre possuiu e da preguiça alheia. Como não tinha outra pessoa que fizesse, Neilton fez a capa de todas as demos das bandas do Alto José do Pinho, o que não era pouco, uma vez que o bairro chegou a contabilizar 14 bandas trabalhando simultaneamente. Passou a se interessar por animação, e mergulhou de cabeça no assunto. Aos poucos, ia maturando sua carreira de artista plástico, que, mal sabia ele, havia começado aos 6 anos de idade, quando rabiscou os primeiros desenhos do Spectreman que via na televisão. 200
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Carisma
“Alien” tocou, de forma tímida, em algumas rádios, e a banda gravou um clipe para a música, tendo novamente como cenário o Alto José do Pinho. Neilton sempre gostou de trocar ideias com pessoas ligadas ao trabalho com vídeo e, nos bastidores da gravação do clipe de “Alien”, perguntou para a equipe técnica qual era o melhor programa para trabalhar com animação. Já estava pensando, na época, em montar o site dos Devotos. No início de 2001, com o segundo disco recém-lançado, a banda foi convidada para tocar no Rec-Beat, que, naquele ano, contava com programação especial, tendo a banda Mudhoney, um dos pilares do movimento grunge, como atração principal. A rua da Moeda, no Centro Velho do Recife, começava a ficar pequena para as proporções do festival. Não bastasse tudo isso e, às vésperas do carnaval, a Polícia Militar ameaçou entrar em greve. No primeiro dia do Rec-Beat, fechado pelo Ira!, a coisa já havia sido problemática. A banda quase não conseguiu tocar, pois vários skatistas invadiram o palco para fazer manobras e dar moshs1. Na base da boa vontade (muita), o Ira! levou o show até o fim. O policiamento, escasso, mal dava conta do recado. A preocupação maior era com 1 Quando alguém mergulha do palco para a plateia. Muito comum em shows de punk e de hardcore.
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o dia seguinte: os Devotos fechariam a noite. Os punks abarrotaram a rua da Moeda para conferir a apresentação dos Devotos. O Matalanamão tocaria antes, e a banda se divertia já no camarim, com Adilson Ronrona se fantasiando de colegial, com saia azul curtinha, blusinha branca e peruca loira. A banda subiu no palco, começou a tocar e dois sujeitos invadiram o palco para depois, pularem de lá. Aos poucos, uma multidão foi subindo no palco, e a banda não conseguiu dar sequência ao show. O pessoal do Matalanamão considerou aquela invasão uma prova irrefutável de sucesso, e desceram do palco felizes da vida, mesmo tento tocado apenas duas músicas. Gutie, produtor do festival, temia pelo pior. Tinha medo que aquilo terminasse em tragédia, que alguém se machucasse seriamente ou até morresse. Foi até o camarim dos Devotos e expôs seu medo à banda. “Galera, vocês vão ter que subir lá e conter esse pessoal, senão a coisa vai ficar braba.” Gutie apostou todas as fichas no carisma de Cannibal. A banda subiu no palco. Como de costume, abriram o show com “Eu tenho pressa” e, mal Cannibal terminou de berrar as três palavras, três sujeitos subiram ao palco para se jogarem na multidão. A banda parou de tocar. Cannibal começa o discurso, curto e grosso: “Rapaziada, é o seguinte: palco é o espaço da banda. Quem quiser subir nele que trate de montar a sua. O próximo que subir a gente para o show e não volta mais.” Eu estava no palco naquela noite. Logo depois de Cannibal ter falado isso, o roadie da banda abriu um sorriso maroto e me disse: “Não sobe mais ninguém.” Dito e feito. A banda tocou por quase uma hora e meia, e ninguém ousou subir no palco novamente. Era, de fato, incrível o carisma que Cannibal possuía. Após aquele ano, Gutie resolveu não contar mais com a sorte ou com o carisma alheio e, desde então, contrata uma empresa de segurança particular para garantir a integridade do público e dos artistas no festival.
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Com o incidente do show no Parque de Exposições, o primeiro disco do Faces do Subúrbio esgotou sua primeira tiragem e a banda não tinha mais dinheiro para prensar outra. Assim sendo, a mistura de pandeiro e rap do grupo ganhou novo impulso, e o álbum teve boa circulação também fora do universo hip-hop. E, de forma pioneira, o Faces do Subúrbio trouxe a dupla de emboladores Caju e Castanha para o rap. O Faces do Subúrbio foi ganhando cancha, mergulhando fundo em pesquisas musicais, e aprofundou ainda mais o diálogo entre o pandeiro sertanejo e as batidas americanas. Viria à luz, em 2000, Como é triste de olhar, álbum que trazia o grupo no auge de sua força criativa. Não à toa, o disco foi indicado ao Grammy Latino de melhor disco de rap. A poesia do grupo também havia amadurecido. Vide versos como: Como é triste de olhar O sorriso de uma criança Em um mundo sem esperança Sem poder se alimentar. Como é triste de olhar A criança na cidade com a marginalidade Comendo um pão por dia Filho de José e Maria Sem ter como estudar. Aí começa a cheirar cola E na sequência a roubar. Inocentes, sobreviventes que não param de lutar.
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Meu Deus, me perdoe, Mas contra sua vontade eu vou roubar Já que ninguém quer me alimentar. Minha cola acabou E o respeito por mim também, Nesse momento estou pedindo auxílio a alguém.
Com o retrato de duas crianças no lixão da Muribeca1 na capa, Como é triste de olhar é um disco-denúncia, tendo como principais temas a exploração infantil e a violência praticada contra menores. Suas apresentações ao vivo continuavam destoando das dos demais grupos de rap, pois eles mantinham firme a proposta de tocar com banda, o que deixava exaltados os setores mais conservadores do hip-hop. Garnizé, baterista do grupo e morador do município de Camaragibe, na região metropolitana do Recife, tinha sua vida contada no filme “O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas”, de Paulo Caldas e Marcelo Luna. O filme traça um paralelo entre as vidas de Ganizé e de Helinho, jovem justiceiro da cidade, que ganhou reputação por exterminar bandidos. Recheado de imagens do Alto José do Pinho, o filme mostra uma visita de Mano Brown, dos Racionais Mc’s, ao bairro, além de trechos de shows do Faces do Subúrbio. Um dia, Zeca Baleiro, também contratado da MZA, mesmo selo que abrigava o Faces do Subúrbio, quis escutar a mistura de embolada com rap do grupo. Ele estava compondo o material para seu disco Embolar, e acabou gostando do que ouviu. Convidou então o grupo para musicar uma letra sua, “Piercing”. O Faces não só musicou como ainda acrescentou uma parte sua à letra de Baleiro e participou da gravação da faixa. 1 Bairro extremamente pobre da periferia do Recife, que abriga um dos depósitos de lixo da cidade.
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Em 1999, o pessoal do Alto José do Pinho teve a ideia de gravar uma coletânea com as bandas do bairro. Com apoio da prefeitura do Recife e lançado por meio de lei de incentivo à cultura, chegava às lojas, no início de 2000, o disco “Alto Falante”, com as bandas B.U., Nanica Papaya, A Ostenta, Matalanamão, Ataque Suicida e Atitaia. Cada banda entrou com duas músicas. As ilustrações do disco, mais uma vez, foram feitas por Neilton. A capa trazia um alto-falante desenhado sobre fundo branco. Dentro do álbum, uma foto com vista aérea do Alto José do Pinho. No encarte, fotos 3x4 dos integrantes de todas as bandas. Generosa, a coletânea não trazia apenas grupos do Alto José do Pinho. A Ostenta, como já foi falado antes, era de Beberibe e tinha sido adotada pelo pessoal do morro desde o início do movimento. Já a Ataque Suicida é uma importante banda punk do bairro de Peixinhos que, assim como as demais colegas de coletânea, ainda não havia chegado ao primeiro disco. A Atitaia, que faz um pop com enfoque no rock nacional dos anos 1980, também é de Peixinhos. Era a estreia também do Matalanamão, que, na época, ainda não havia gravado o primeiro disco, embora uma faixa deles, “Mim dai”, tivesse ido parar em uma coletânea picareta de FM intitulada Rock da cidade. “Alto falante” ainda trazia bônus com faixas dos Devotos (“Mas eu insisto” e “Pertencer”) e do Faces do Subúrbio (“Acostumados com a violência” e “Os tais”). 210
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A tônica do álbum é o rock nacional dos anos 1980. Bebem dessa fonte B.U., com “Existirá” e “Nada importa” e A Ostenta, com “A relva seca” e “Outro herói”, e Atitaia, com “Verdades e mentiras” e “Ao acaso”. O tiro no alvo acabou sendo mesmo com o escracho punk masturbatório do Matalanamão, presente com “Os peitinhos” e “Amorzinho”. A coletânea ganhou uma versão ao vivo, em evento que será comentado aqui mais adiante.
Preconceito Em 2002, os Devotos foram convidados para tocar em São Paulo, dentro da programação do Da Tribo Festival, evento que reuniria, em três noites, bandas de metal e de punk de todo o país. A primeira noite seria fechada pelos Ratos de Porão. A segunda, pelo Krisiun, e a terceira pelos Devotos. O trio, acompanhado de Wally e Rildo (roadie e técnico de som da banda), ficou hospedado na casa do produtor do festival, na Voluntários da Pátria, área nobre da capital paulista. O terreno ficava em frente à um dos colégios mais caros de São Paulo, e uma de suas partes era formada por um casarão abandonado com uma placa escrita “vende-se” na frente. Os meninos passavam horas tomando banho de sol nesse lugar. Um dia, dois policiais e uma delegada invadiram o local, de armas em punho, e mandaram os meninos encostarem na parede e colocar as mãos na cabeça. Lá fora, todo um aparato policial aguardava o desdobrar dos acontecimentos. O lugar havia sido confundido com cativeiro, e a banda, com sequestradores. Alguém do colégio, desconfiado com a presença de roqueiros cabeludos e de cabeça raspada circulando na área, denunciou os rapazes. Demorou um pouco até o equívoco ser esclarecido. E a delegada ainda perguntou para Celo se ele queria dar um pulinho na delegacia para ver quantos, com a mesma cara dele, estavam presos. Era um recado pouco sutil que queria dizer: corte o cabelo e tire a barba. Infelizmente, roqueiro brasileiro, para a polícia, tem cara de bandido. 212
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Depois de serem mal trabalhados na BMG e de lançarem um disco pelo selo de Dado Villa-Lobos, os Devotos decidiram abraçar de vez a carreira independente. A partir dali, produziriam seus discos e terceirizariam a distribuição. Assim fizeram com A hora da batalha, disco lançado em 2003 e gravado no estúdio caseiro de Cannibal. Os Devotos haviam firmado, com Nilton Pereira e sua equipe, uma parceria com o pessoal da TV Viva, de Olinda, que foi responsável por alguns clipes dos Devotos, como “O Herói” e “Roda Punk”, entre outros. A produção gráfica, mais uma vez, foi assinada por Neilton, e era a mais caprichada de todas até o momento. Neilton já flertava seriamente com as artes plásticas, e o projeto gráfico foi uma espécie de ensaio para sua primeira exposição, realizada no ano seguinte. A capa de “A hora da batalha” é um mosaico de imagens, com destaque para um olho enfurecido no canto esquerdo superior, uma negra carregando o filho pequeno nas costas no lado esquerdo e o D dos Devotos ao centro. O encarte é caprichado, com cada música sendo representada por um desenho. Alguns são bastante pesados, como o de “Se eu falar posso morrer”, cuja ilustração são vários homens que parecem arrancar seus rostos como se fossem máscaras. Em “Dá um sentido para a vida”, um
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diabinho aparece de joelhos, com expressão de súplica, rezando. Machado de Assis surge em um impressionante retrato feito por Neilton, e divide a página do encarte com um desenho do terminal do Alto José do Pinho. Cartunistas da revista Ragu, João Lin, Samuca, Mascaro e Fravão também contribuíram com ilustrações, assim como os novos artistas Izaby e João Luiz. Musicalmente, o disco traz uma crueza que os dois primeiros não foram capazes de reproduzir. Abre com “Roda Punk”, uma ode às rodas de pogo, tão comuns nos shows da banda. Em seguida, “Brincando de Deus”, um petardo ensurdecedor sobre as motivações do ataque de 11 de setembro. Vem, então, o desabafo de “Nosso ninho”: Moramos, não esqueça Esse é o nosso ninho Quem nunca ouviu falar No Alto José do Pinho? Subúrbio de Recife Zona Norte, urubu Se for discriminar Vá tomar no cu!
A surpresa consistia justamente em uma música chamada “Assis”, em homenagem ao escritor negro Machado de Assis. A faixa-título vem com participação especial de Lula Côrtes no vocal, em que ele declara, junto com Cannibal: “Não queremos uma guerra armada/Mas, como já dissemos, estamos preparados.” Outra participação é de uma velha amiga de Cannibal, a cantora baiana Pitty, que, na época em que o álbum foi lançado, ainda batalhava por seu quinhão de espaço na indústria da música e estava longe de ser a estrela que é hoje. Ela divide os vocais com Cannibal em “Faz parte do cotidiano”, música resgatada da fita demo “Vida de ferreiro”. João Gordo, via telefone, berra em “Votou errado”. E tinha mais desabafo, dessa
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vez, ainda menos sutil, com “Só os que não pensam têm a consciência limpa”: Vão tomar no cu Vão se fuder Vão tomar no cu Filhos da puta que estão no poder
E, coisa inédita, o álbum termina com um reggaezinho, “Pra aliviar”. À época, escrevi na revista Zero que “com 15 anos de estrada, sem gravadora, sem produtor, fazendo o que dá na telha, Celo Brown (bateria), Cannibal (baixo e vocal) e Neilton (guitarra) encontraram o mapa da mina. Definitivamente, eles não precisam de produtores1”. Na mesma edição, Cannibal me explicava como a banda procederia dali em diante. “Tivemos que aprender muito. Procurar um selo, mixar. A gente nunca tinha feito isso. Queremos fazer os discos e oferecer às gravadoras. Jamais ceder os direitos para as gravadoras2.” “Hora da Batalha” ganhou, ao lado do Sepultura, que lançava “Roorback”, capa do Caderno 2 do jornal carioca O Globo, cuja manchete dizia que “O Brasil é o país do barulho.” A partir desse disco, os Devotos seriam responsáveis por todas as etapas da linha de produção: da composição das músicas, passando pela mixagem e gravação, projeto gráfico, até a distribuição. A banda prensou 1.500 cópias do disco e distribuiu pessoalmente em algumas lojas, até fechar contrato com uma empresa que bancasse a distribuição. O álbum foi todo produzido com grana própria, a quarta parte que eles separavam do dinheiro que ganhavam com os cachês dos shows e guardavam no banco. Como me explicou Cannibal, “a grana que a gente pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque a gente 1 Texto publicado na revista Zero, número 10. 2 Idem.
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sabia que um dia precisaria dessa grana extra para os instrumentos, pra gravar. É com essa grana que a gente guarda só pra banda que a gente consegue fazer as coisas3”. “A Hora da Batalha” foi resultado de um investimento da banda em si mesma, pois as coisas ficaram complicadas depois que optaram por não lançar mais discos por gravadora. 3 Entrevista feita e publicada pelo autor para o site Recife Rock! (http://www. reciferock.com.br/2008/01/27/entrevista-devotos-20-anos).
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Cap.11
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Se o pai de Tiger só acreditou que o filho ia tocar em São Paulo depois que viu o rapper na televisão, a coisa não foi muito diferente quando ele anunciou que o Faces do Subúrbio tocaria na França. Tiger mais uma vez precisou da ajuda da televisão para provar ao pai que não estava de brincadeira. O pai só acreditou quando, novamente, a Rede Globo exibiu uma matéria sobre o filho, desta vez mostrando Tiger deitado debaixo da Torre Eiffel. A banda foi uma das atrações do Ano do Brasil na França, em 2005, e tocou em Paris, em um teatro com capacidade para 300 pessoas, com lotação esgotada nos dois dias em que se apresentou. “É outro mundo, você fica de cabeça inchada, até mesmo por conta do fuso horário1”, conta Tiger. “As pessoas são educadas. Você sente a diferença. Você não vê ninguém jogando papel na rua. É outro mundo2.” Além das apresentações no pequeno teatro, a banda fez uma participação no palco principal no show de DJ Dolores. Na volta da França, as coisas começaram a degringolar. Garnizé já havia deixado a banda para fixar residência no Rio de Janeiro, onde assumiu as baquetas do F.U.R.T.O., novo grupo de Marcelo Yuka, ex-O Rappa. Em seu lugar, 1 Entrevista ao autor. 2 Idem.
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foi chamado Perna, baterista do Armas da Verdade, grupo de hardcore da nova geração do Alto José do Pinho. O grupo entrou em estúdio para gravar “Perito em rima”, disco que foi lançado via Lei de Incentivo à Cultura e que teve uma circulação bem modesta. Para piorar, a banda começou a ser vítima de calotes de empresários. Fazia shows e não recebia o cachê. O pior de tudo aconteceu em São Paulo, quando um produtor carioca os abandonou em plena turnê, deixando a banda de bolso vazio. Precisaram voltar de São Paulo até o Recife de ônibus, literalmente passando fome. “Voltamos de São Paulo para cá de ônibus sem comer nada, três dias de fome.” No Recife, o circuito de shows foi ficando cada vez menor. Os problemas acarretaram muita discussão entre os integrantes, e Tiger achou melhor dar um tempo do Faces do Subúrbio para não perder os amigos de infância. Hoje a banda está parada. Zé Brown se aprofundou nos estudos da embolada, chegando até a fazer pesquisa de campo na Zona da Mata do Estado. As pesquisas culminaram com o lançamento de seu primeiro disco solo, “Repente rap rapente”, produzido por Skowa, figurachave da música black nacional e ex-líder do grupo Skowa & a Máfia. Tiger também partiu para a carreira solo, e está em estúdio gravando Poder simbólico, seu primeiro disco solo. Tanto ele quanto Zé Brown afirmam que o Faces do Subúrbio não acabou, que a banda apenas está dando um tempo para voltar em breve com nova formação.
Cap.12
Quem é o pai?
Cap.12
Quem é o pai?
Após um intervalo em que alguns integrantes mergulharam de cabeça em projetos sociais, o Matalanamão voltou à ativa com o segundo disco, o igualmente escrachado “Quem é o pai?”, lançado em 2005. A produção do disco gerou um certo desconforto. Percebendo que a banda estava sem perspectiva, Neilton resolveu bancar, de forma independente, a produção do álbum. Celo trabalhou como co-produtor. Peste, em silêncio, inscreveu um projeto para o disco ser financiado através de Lei de Incentivo à Cultura, o que acabou acontecendo. Neilton ficou extremamente chateado com a situação, por não ter sido informado sobre o projeto, e decidiu se afastar. Passou, desde então, a acompanhar de longe a carreira do Matalanamão. “Quem é o pai?” traz várias composições antigas, da época em que Celo ainda fazia parte da banda. É o caso de “Os 3 tabacos”, “Aeromoças”, “Love”, e “Goticar”. Esta última deixa claro que o lirismo do Matalanamão sempre foi o mesmo, desde os tempos de Celo. Eis o refrão: Cabaço vai Cabaço vem É tanto cabaço E eu sem ninguém
A novidade em “Quem é o pai?” é a tentativa do grupo em expandir seus temas para além da masturbação, como em “Bomba”, composição de Jaiminho e de Peste, que 228
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aborda a indústria da guerra. O projeto gráfico, coisa rara, não foi assinado por Neilton, mas por Adriano Leão, que já havia sido guitarrista do Matalanamão. Adriano também é autor de várias músicas da banda, entre elas “Mim Dai”, composta por ele, Celo e Marcelo Massacre, e que aparece creditada erroneamente no primeiro álbum como sendo de Peste e Jaiminho. A capa, toda rosa, traz a ilustração de uma mulher cochichando no ouvido da outra, com o título “Quem é o pai?” acima do desenho e o nome da banda embaixo dele. A faixa-título é um punk direto com letra de Peste: Ela deu sem querer Para o cara que sumiu A gravidez que chegou A família que sentiu Quinze anos perdidos Dois corações partidos O filho vem de mão e vai Minha filha... Quem é o pai?
Apesar da boa faixa-título, o álbum é nitidamente inferior ao primeiro, e teve repercussão bem modesta no circuito roqueiro do Recife. A banda ainda chegou a fazer um bom show de lançamento no festival Pré-Amp, na rua da Moeda, onde, literalmente, lançou o disco, jogando cópias de “Quem é o pai?” para a plateia. Ironia máxima no caso do Matalanamão, seus integrantes não achavam mais espaço em suas agendas para divulgar o disco. Todos trabalhavam em ONGs, e chegava a ser engraçado pensar na dicotomia da situação: uma banda que faz a apologia da masturbação e tem em “Os peitinhos” um de seus hinos, não consegue levar sua carreira adiante por conta de trabalhos sociais desenvolvidos por seus membros. Aqueles mesmos que, no início de tudo, eram apontados como vagabundos e maconheiros sem futuro.
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Cap.13
Luta pacifista
Sem gravadora e sem grana para bancar outro álbum independente, os Devotos inscreveram um projeto para lançar seu quarto disco pela Lei de Incentivo à Cultura. Assim sendo, com o patrocínio da Chesf1, foi lançado, em 2006, “Flores com espinhos para o rei”, trabalho mais maduro do trio. O título logo foi associado a um recado para o presidente Lula, então envolto nos escândalos do mensalão, mas Cannibal tratou logo de desmentir o rumor. Depois de escrever as 15 canções do álbum, o baixista percebeu que muitas delas falavam em flores. À época do lançamento do disco, escrevi o seguinte texto: Devotos expande seu som para novas direções2 Breve passeio pela discografia dos Devotos: Agora tá valendo, álbum de estreia da banda, contém o melhor repertório do grupo, embalado naquela que é a pior gravação dele em estúdio. Devotos, o segundo, empata a coisa: repertório apenas regular para gravação idem. Já A hora da batalha possui um registro perfeito para um grupo de canções apenas regular. Flores com espinhos para o rei deixa algumas questões flutuando no ar: por que a banda não regrava seu clássico álbum de estreia? Se, ao vivo, os Devotos sempre foram inquestionáveis, seus discos sempre pecaram por não reproduzir em estúdio a mesma fúria dos 1 Companhia Hidro Elétrica do São Francisco. 2 Texto publicado pelo autor no site Recife Rock! (http://www.reciferock.com. br/2007/01/11/resenha-devotos-flores-com-espinhos-para-o-rei)
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shows. Saudosismo à parte, fazia tempo que eles não conseguiam reunir um grupo de músicas tão poderosas em um mesmo álbum. A temática (quase mono) permanece a mesma: letras de cunho social, abordando política, desigualdade social, conscientização etc. Musicalmente é que a história muda um pouco de figura. Pois não é que o trio conseguiu ir além dos três acordes viscerais do punk rock? Para ouvidos mais atentos, Cannibal, Celo e, principalmente, Neilton, derramam camadas discretas de jazz, rockabilly e até MPB. A levada de guitarra de “Canção para mudar” é uma pista da diversidade de influências da banda. Parece remeter à surf music. “Sociedade alternativa” poderia entrar em qualquer disco de rap. Em “Luta pacifista”, entram em cena os Devotos dos tempos de “Vida de ferreiro”, só que dialogando discretamente com o metal. Enfim, é música para pogar e bater cabeça. “Rádio comunitária pra informar” mostra a criatividade de Neilton, que mesmo nas limitações dos três acordes consegue injetar influências de outros gêneros. “Espírito guerreiro” é de um balanço inédito na carreira da banda, sem, contudo, abrir mão do peso. Mas a melhor notícia de todas é a seguinte: Cannibal permanece indignado. Enquanto ele estiver gritando inconformado, tudo estará em paz para os Devotos. Até música para as rádios o disco tem (caso elas tocassem rock). E “Por isso não tente calar meu grito” flerta com, veja só, o samba! O álbum só não leva cotação máxima porque Cannibal, definitivamente, não nasceu para cantar reggae, como tenta fazer em “Danças das almas“, música que conta com a participação alucinada de Lirinha. Mas, quando ele berra, na abertura do disco, “brincando do jeito que dá/bala perdida não me acha/vida longa à Polícia Militar/que quando sobe é só desgraça”, a gente até esquece tal tropeço. A produção gráfica, mais uma vez, é assinada por Neilton, que, definitivamente, assumiu suas influências como artista plástico. A capa, branca, traz o desenho de um monstro, com uma abertura redonda no espaço do olho. O CD vem com 12 desenhos circulares no mesmo formato da abertura da capa, e cabe ao ouvinte decidir que forma dar ao disco. O olho do monstro tanto pode ser estampado com a bandeira do Brasil como pela figura de Cristo na cruz ou de uma das torres gêmeas em chamas. Os
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desenhos do encarte ficaram ainda mais pesados que os de A hora da batalha. Fissurado, na época, com sua exposição onde expunha telas gigantes, o encarte trazia apenas três grandes desenhos. O primeiro mostra um grupo de crianças rabiscando o chão. O segundo traz a imagem de três mulheres negras, enquanto o terceiro, o mais chocante deles, mostra uma multidão enfurecida de trabalhadores erguendo suas foices como se fossem armas. O álbum permitiu algumas viagens ao trio. Em Natal, com o disco recém-lançado, a banda tocou na segunda edição do Festival DoSol. Assim como no Recife, o carisma do grupo impressiona bastante, e a roda de pogo, que costuma ser gigante no Recife, não se mostrou diferente na capital potiguar. Sobre a popularidade da banda, Gutie chegou a comentar que “Devotos são muito queridos. São impressionantemente queridos. Uma vez eu estava em Brasília em um festival circulando com Cannibal e eu fiquei surpreso com isso, com o assédio da molecada com Cannibal. O punk rock tem isso”. O disco rendeu o videoclipe de “Tudo faz sentido”, que intercala imagens do Alto José do Pinho com cenas gravadas no cemitério de Santo Amaro. “Tudo faz sentido” foi parar também na trilha sonora do filme Baixio das bestas, de Cláudio Assis. Nos shows, a banda passou a incluir no repertório “Brincando do jeito que dá”, “Canção para mudar”, “Sociedade alternativa”, Luta pacifista” e “Tudo faz sentido”.
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Caso Neilton não tivesse descoberto Elvis Presley nos filmes da TV, certamente ele teria abraçado as artes plásticas como profissão. Porque o menino que começou copiando o Spectremam que via na televisão não parou mais de mexer com desenho desde então. Fã de quadrinhos, Neilton credita aos gibis boa parte de sua influência como artista. Autodidata, Neilton tem, em Santos Dumont, seu ídolo máximo. “O suprassumo da invenção pra mim é Santos Dumont. Ele não era porra nenhuma e entrou pra História.” Neilton é o típico caso de autodidata. Aprendeu tudo na marra, sozinho, sem a ajuda de ninguém. Dos desenhos da infância, passou a pintar camisetas à mão, e era com o dinheiro delas que sustentava seu sonho de ser músico. Logo passou a fazer camisetas encomendadas, copiando os modelos dos anúncios de lojas de discos que via nas revistas de música. Sem perceber, a linha de produção aumentava cada vez mais, e servia como capacitação para o passo maior que daria adiante. “As demos da Armas da Verdade, Terceiro Mundo, foram feitas todas lá em casa, com capa e tudo. Comecei a fazer porque não tinha quem fizesse, e quem fazia cobrava caro. Só que ninguém quis aprender a produzir.” Essa é uma queixa comum de Neilton. Ninguém do movimento das bandas
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do Alto José do Pinho se interessou em aprender os ofícios que ele praticava com tanto carinho. E ele credita isso à boa dose de comodismo e até de preguiça de seus companheiros de movimento. Modesto, não aceita que seja um privilegiado com o dom para o desenho, a música e as artes plásticas. Como aprendeu tudo sozinho, acha que qualquer um consegue. Cheguei a sugerir, em uma entrevista, que eu jamais seria capaz de aprender o que ele aprendeu, pois não sou dotado do mesmo talento que ele. A teoria foi desmentida na hora por Neilton, que, de fato, acredita que qualquer um é capaz de produzir como ele. Mistura de ingenuidade com modéstia, a verdade é que poucos, pouquíssimos mesmo, são capazes de fazer tudo que Neilton faz, e sempre com competência, talento e zelo de encher os olhos. Quando começou a perceber que desenhava com facilidade as camisetas que via nos anúncios das revistas, Neilton decidiu fazer uma série temática para expor no mercado pop do Abril Pro Rock em 1996. Montou uma série de camisas com o tema “heróis e vilões dos quadrinhos”, e era impressionante como as cores e os detalhes saltavam aos olhos. Ainda mais impressionante era o modo de produção seguido pelo guitarrista, que fez uma camisa por dia durante todo o mês de março daquele ano. “Fazia uma camisa por dia, na maior correria, pois também tinha as coisas dos Devotos para cuidar.” O resultado não poderia ser mais gratificante para o artista: vendeu todas as camisetas que expôs. No ano seguinte, repetiu a exposição, desta vez com o tema “insetos e aracnídeos”. Mais uma vez, vendeu tudo. No mesmo ano, fez uma série de aquarelas para as ilustrações do encarte de “Agora Tá Valendo”. Para surpresa de Neilton, todo mundo que via o material ficava embasbacado, e pedia que o artista colocasse preço na obra. Acabou vendendo todos os
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desenhos. Em 1998, fez mais uma série de camisas para expor no Mercado Pop do Abril Pro Rock, agora tendo como tema “répteis e anfíbios”. Todo mundo passou a dizer que Neilton era um artista plástico talentoso, que precisava expor seu trabalho, pois seria um sucesso. Mas Neilton, em atitude tipicamente punk, queria apenas continuar pintando suas camisetas. “Eu tinha uma demanda da porra por camiseta nos anos 1990. Paguei minhas contas todas fazendo camiseta. Até que me disseram para eu passar pra quadro.” E conta uma história em que acaba mostrando certo descaso com a própria obra, típico dos gênios. “Chico Accioly, um produtor que trabalhava com Chico Buarque e com Gal Costa me levou para uma galeria em Boa Viagem e me apresentou a uma curadora. Fiz, mandei, gostaram, mas eu não tava nem aí. Queria pintar camiseta.” De tanto insistirem, Neilton resolveu ver qual era. E se descobriu artista. Passou a fazer telas enormes de Eucatex, pintadas em acrílico e pastel óleo. Suas telas mediam incríveis 120x80cm, e muitos de seus desenhos pareciam vivos. É o caso do quadro em que retrata uma senhora negra que viu no bairro da Linha do Tiro, e que foi comprado por Gutie. Intitulado “Na Linha do Tiro”, o quadro fez parte da primeira exposição de Neilton como artista plástico, a Imagens puras. Polivalente, fez de tudo na exposição. “Eu fiz a iluminação, fiz o projeto gráfico da exposição, pintei os quadros, troquei as luzes dos postes e a parte elétrica do casarão, que estava abandonado. O produtor que estava me ajudando tinha um amigo que ia emprestar duas lâmpadas de poste para iluminar o banner. Aí o cara chegou: ‘cadê o artista?’. E eu do lado dele, todo sujo. Ele pensava que eu era o peão que estava fazendo as obras lá”, conta, divertido, o Leonardo da Vinci do movimento punk do Alto José do Pinho.
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Aos poucos, o nome de Neilton foi circulando no mundo das artes plásticas, o que gerou ciumeira entre os artistas. “Os artistas plásticos se incomodam por eu ser músico e invadir a área deles. E eu acho massa não ser aceito, porque estou fazendo meu trabalho sem ajuda de ninguém.” No ano seguinte ao da exposição Imagens puras, Neilton foi convidado pela MTV para fazer o projeto gráfico do DVD “MTV Apresenta Cordel do Fogo Encantado”. Gutie, que além de produzir o Rec-Beat, também é empresário do Cordel, aproveitou para chamar Neilton para produzir o site do Cordel do Fogo Encantado. Os convites não pararam mais. Foi um dos ilustradores do livro “Detritos cósmicos”, de Fábio Massari. E passou a ser convidado para uma série de debates, mesas-redondas e palestras sobre artes plásticas. E, para irritação maior dos artistas, foi chamado para ser curador de exposições. “E agora, que fui convidado para ser curador, tem artista virando bicho.”
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Uma vez, Gil Vicente, artista de quem Neilton é muito fã e que escreveu o texto crítico do catálogo da exposição “Imagens Puras”, disse para Neilton se concentrar em uma atividade só. Que ele jamais conseguiria se dedicar totalmente à música, à pintura e à eletrônica ao mesmo tempo. Aquela declaração deixou Neilton bastante deprimido. “Eu fiquei mal, cheguei em casa, fiquei deprê. Aí pensei: ‘Gil, vou continuar fazendo tudo ao mesmo tempo, como sempre fiz.’ E ele: ‘você vai acabar como pato: não nada direito, não anda direito, não voa direito...’” Fato é que o “pato” Neilton fundou o Altovolts, um grupo de pesquisas de tecnologias mortas, onde ele restaura, desenha e constrói amplificadores de áudio à válvula. Ninguém melhor do que ele, que fabricou a própria guitarra, para trabalhar com tecnologias obsoletas. Atualmente, Neilton fabrica, ao lado dos amigos Gilson Gerrard e Adriano Leão, amplificadores sob encomenda. Entre seus clientes estão nomes como Dado Villa-Lobos, Siba Veloso, Fred Andrade, e Gabriel Melo, da Academia da Berlinda. Fora, claro, os Devotos, que também utilizam os amplificadores da Altovolts. Neilton passa os dias enfurnado em sua casa de dois andares no bairro da Bomba do
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Hemetério, que chama carinhosamente de castelo de Grayskull, em alusão ao castelo do desenho animado He-Man. No andar de cima, dedica-se aos trabalhos de produção gráfica e desenvolvimento de sites. Embaixo fica a oficina onde produz os Amps, que, como gosta de dizer, “falam alto”. Quando o assunto é tecnologia, o discurso de Neilton é extremamente coerente: “Nós ainda somos bem atrasados em termos de mentalidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as novas tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de uma nova tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela tecnologia que está em desenvolvimento pra partir pra ser ainda mais moderno. A gente, na verdade, precisa reaprender a reutilizar as coisas que ainda têm uma vida útil muito grande. Mesmo que a gente não enxergue1.” Se pensar direitinho, foi este raciocínio que o levou a fabricar sua guitarra. E o mesmo utilizado por seu irmão Nilson na fabricação de sua primeira pickup no Faces do Subúrbio. Tem uma piada que virou rotineira no Alto José do Pinho. Uma vez perguntei ao Cannibal o que Neilton estava fazendo no momento, em que tipo de projeto ele estava envolvido. O baixista me olhou com um sorriso matreiro e respondeu: “Neilton? Está fazendo o céu, a terra, os homens, as árvores...” 1 Entrevista concedida ao autor e publicada no site Recife Rock! (http://www. reciferock.com.br/2008/01/27/entrevista-devotos-20-anos).
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Cap.02
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As bandas do Alto José do Pinho sempre desenvolveram um trabalho social, ainda que, em um primeiro momento, de forma inconsciente. Seja nos shows filantrópicos para arrecadar alimentos para entidades carentes ou nos eventos pontuais, como o Rockriança e o Natal nas Alturas, a preocupação dos integrantes desses grupos sempre foi a de mudar a realidade que os cercava. Ou, pelo menos, tentar mudar. De forma que a criação da ONG Alto Falante foi apenas uma maneira de oficializar uma série de trabalhos que já vinham desenvolvendo. Zé Brown, por exemplo, desde 1996, mantém um projeto chamado Zé Brown Apresenta Talentos. Pegou o Clube Bolinho, que serviu de palco para os primeiros shows do movimento rock do Alto José do Pinho, e começou a dar aulas de break para os meninos do bairro. No primeiro dia, apareceram 15 garotos. No segundo, vinte. No terceiro, a divulgação na base do boca a boca dos meninos foi intensa e nada menos que sessenta guris apareceram na oficina. Hoje o projeto cresceu e tem o apoio do Funcultura. Eu presenciei um dia de aula no Bonsucesso Futebol Clube, onde vários garotos, todos na faixa entre 8 e 10 anos, aprendiam passos de break com um dançarino profissional. O fato é que lá atrás, no início dos anos 1990, essa turma, que era apontada por seus vizinhos como um “bando de maconheiros desocupados”, já se preocupava com o futuro de sua comunidade. 254
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Assim sendo, em 2002, Cannibal, Neilton, Celo, Tiger, Zé Brown, Adilson Ronrona, Ailton Peste, Marcelo Massacre, com a ajuda da ONG Fase, arregaçaram as mangas e decidiram criar sua própria ONG. Nascia a Alto Falante. A intenção principal, no primeiro momento, era montar uma rádio comunitária, que tocasse as músicas das bandas do Alto José do Pinho, já que as rádios tradicionais, envolvidas nos esquemas do jabá, não tocavam. Por meio da Fase, fizeram uma ponte com a ONG alemã DED, que forneceu os equipamentos para a construção da rádio. Lee, primo de Celo e dono do estúdio onde as bandas do Alto José do Pinho tocavam no início da carreira, construiu as caixinhas que ficariam penduradas nos postes. Com sua sede estabelecida nos fundos do corredor do mercado público do bairro, ao lado de bares e de um açougue, a Rádio Alto Falante funciona em um espaço mínimo, em um cubículo onde mal cabem três pessoas. Mas o “estrago” que ela provocou na comunidade é inversamente proporcional ao seu tamanho. Com caixinhas colocadas nos postes das ruas do Alto José do Pinho, a rádio funciona de segunda a sábado, das oito da manhã às sete da noite, com uma programação que privilegia a prestação de serviços e a qualidade musical. “Nossa principal preocupação é levar informação e música de qualidade para a comunidade”, explica Ronrona, diretor-geral da rádio. Cada programa dura uma hora, e é apresentado por voluntários. “Ninguém que trabalha na rádio é radialista. São pessoas que querem aprender a trabalhar com rádio e gostam de música”, diz Ronrona. Vários profissionais que, hoje, estão no mercado de rádio, começaram na rádio Alto Falante, o que é motivo de orgulho para seus idealizadores. Uma das principais bandeiras da Rádio Alto Falante é levar informação e prestação de serviços aos moradores. Nela são anunciadas, por exemplo, campanhas de
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vacinação, dicas de lazer e comerciais de estabelecimentos locais. “É engraçado, pois existem duas lojas de material de construção civil aqui. No dia que uma anuncia na rádio uma promoção de cimento e telha, a outra imediatamente faz questão de cobrir a oferta em anúncio na rádio no dia seguinte. E a gente faz questão de estimular isso”, ri Cannibal. Logo que a rádio abriu, em 2002, Cannibal comandava um programa voltado para o samba chamado Amnésia. “Tocava muito samba de raiz no programa, coisas como Ataulfo Alves, Demônios da Garoa. E abria espaço também para Jorge Ben, Belchior. Você precisava ver o que tinha de senhor ouvindo os sambões antigos”. Celo se orgulha da forma como a rádio entrou no cotidiano dos moradores: “Eu não imaginava que seria uma coisa de tanta utilidade. Eu me abestalhei muito de como eles se apropriam disso e tornam uma coisa muito útil. Uma coisa tão mínima assim. De informação ligada à saúde pública, informação social, cultural, ligadas a eventos. Muito massa ver neguinho dizendo na rádio: ‘Fulano, vai fazer o que domingo? Vai ter evento tal no Sítio da Trindade, é de graça! Leva teus filhos!’ E a galera que cuida da programação é maravilhosa. Sempre tem informações. É legal porque eles se sentem orgulhosos disso.” A participação da comunidade nos eventos pontuais que o núcleo das bandas do Alto José do Pinho realizava foi decisiva para a constituição da Alto Falante. A gente achava que seria legal, por exemplo, ter uma oficina de percussão por um tempo longo aqui na comunidade. Assim como oficina de teatro, de canto, de dança, de artes plásticas. Ter uma coisa mais constante por um período maior. Porque a gente sempre fez aqueles eventos pontuais, Rockriança no Dia das Crianças, Natal nas Alturas, 7 de setembro, 1º de maio, e viu que a gurizada
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respondia muito bem às oficinas que rolavam nesses eventos. Oficinas de capoeira, de break. O empurrão para os meninos se organizarem para fundar a ONG veio da Fase, que já testemunhava e ajudava, há algum tempo, as bandas do Alto José do Pinho na realização de eventos. “Evanildo Barbosa, diretor-geral da Fase, disse que o melhor caminho seria a gente se constituir juridicamente como uma instituição. Até então era tudo muito solto, não tínhamos uma identidade jurídica. A gente mandava ofício pra prefeitura no meu nome, depois no nome de Cannibal. Era assim para todos os órgãos públicos e empresas”, conta Celo. No primeiro momento, quando foi inaugurada, a ONG Alto Falante propôs, em projetos apresentados para algumas entidades, uma estrutura que contivesse 22 oficinas, que comportassem cerca de vinte alunos em cada, em categorias como break, capoeira, maracatu e software livre. “A gente sempre teve muita vontade e disposição para correr atrás das coisas. Sempre tivemos muita garra, mas empacávamos nas questões burocráticas para viabilizar alguns projetos”, conta Cannibal. O sentimento de autoestima da população cresceu a tal ponto que ela se orgulhava em ver carros de gente da classe média subir o morro para participar das oficinas. Porém, mesmo com a assessoria jurídica da Fase e com todo o empenho que sempre marcou essa geração de meninos das bandas de rock do Alto José do Pinho, eles acabaram esbarrando em um problema difícil de superar. Cannibal explica: “Tudo que a gente tenta fazer aqui no Alto tem um período, porque a gente não tem uma sede. Então tudo que a gente faz é na escola ou no porão da igreja, ou na rua. Então é muito difícil pra gente. O que a gente está batendo hoje
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em dia na tecla é de ter uma sede pra gente poder dar oficinas periódicas todos os dias durante o ano todo. E a gente tem projeto pra isso, só não tem o local para viabilizar. Se os projetos forem aprovados, nós vamos fazer onde? Já tivemos visitas de várias entidades que querem ajudar e apoiar as oficinas, como a Petrobras e o Ministério da Cultura, mas a gente não tem uma sede. Esses órgãos que a gente tem de apoio não financiam imóveis. Queremos ver com alguma entidade de fora para viabilizar a compra de um terreno para poder montar uma casa do jeito que a gente quer.” Ele dá um exemplo concreto de como a falta de um local próprio atrasa os trabalhos da ONG. “Temos o oficineiro do afoxé, da percussão. A gente já tem um projeto todo fechado pra ele. Desde a compra dos equipamentos até o salário dele. E é um cara da comunidade. A gente tenta sempre trabalhar com pessoas da comunidade.” E lista outro projeto que está também em fase de captação de recursos. “Queremos trabalhar com corte e costura. A gente sabe que tem o maracatu e o afoxé que desfilam todo ano. A rapaziada daqui mesmo podia fazer a roupa do maracatu e do afoxé e ganhar uma grana em cima disso.” De certa forma, hoje eles vivem uma situação muito semelhante à de quando começaram a fazer os shows no Alto José do Pinho, aqueles em que colocavam um tablado em cima de grades de cervejas e improvisavam um som pela pura vontade de tocar. Essas oficinas existem periodicamente. Funcionam um mês e param. Aí só Deus sabe quando vai ter de novo. Porque o colégio precisa do espaço, o porão da igreja funciona para outras coisas. A oficina de capoeira é a mesma coisa. E ela está parada. É muito chato trabalhar assim. E a gente sabendo que poderia ser uma coisa mais constante.
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Em 2005, entrevistei Cannibal sobre os resultados práticos da ONG na comunidade. Na época, ele me contava orgulhoso: “Conseguimos resgatar a autoestima da comunidade. Hoje, ninguém tem mais vergonha de dizer que mora no Alto José do Pinho. Os índices de criminalidade baixaram muito. Não existe mais boca de fumo aqui. Quem quiser comprar fumo hoje, compra fora daqui. E as gangues, que aterrorizavam o local, foram extintas.” No final de 2008, ao coletar material e fazer entrevistas para este livro, o discurso infelizmente havia mudado. O Cannibal orgulhoso de 2005 dava lugar a um mais realista e preocupado agora: “O crack está invadindo o Alto. Em todo canto é assim. A primeira coisa é diminuir a violência que o tráfico causa. É coisa que se você fizer oficina periódica não vai resolver. É pegar esses guris pra fazer trabalho o dia todo. Pra se cansar de dia e, de noite, ir pra casa e dormir. De não conseguir ficar em pé. Essas coisas você não resolve com oficina periódica. A gente sempre pensa que pode fazer mais, mas e o apoio?” Quando conversei com Ailton Peste, ele mostrou a mesma preocupação de Cannibal. Chegou a frisar que quem conhecia o Alto José do Pinho superficialmente e só visitava o centro do bairro achava o lugar uma maravilha, e dizia até que gostaria de morar no morro. Mas, segundo ele, a realidade que os moradores encaram no cotidiano já não é mais a mesma de quando eles mudaram o perfil do bairro com os shows punks. “Por conta do tráfico de crack, que está muito forte aqui e se aliou com a prostituição. E as meninas, para conseguir o crack, pagam um boquete, transam com o cara. Vira Babilônia.”
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Ailton Peste, o mesmo que escreveu “Os peitinhos”, trabalha, há 12 anos, como arte-educador. Seu discurso impressiona pela crueza e sinceridade. Ele tem consciência de que ele poderia ter sido vítima da criminalidade. Sua fala é contundente porque expressa o esforço de alguém que, desde os tempos dos shows no bar do Orlando, tinha plena consciência de que estava desenvolvendo um trabalho social. Tanto eu como os meninos tivemos essa coisa da violência suburbana em nossa vida. E escolhemos a música como forma de sobrevivência. De tanto que eu participei de movimento, de tanto que lutei por um meio de comunicação fixo, cheguei até a rádio. A gente sabe que há uma carência de informação da porra. É como se a gente estivesse fazendo trilha sonora para a miséria. A gente sabe que a mídia é uma cobra de duas cabeças. Quando a gente surgiu, foi independente da mídia. Era o façavocê-mesmo. Era a atitude punk mesmo. O próprio Peste chegou a me dizer que o pessoal das bandas está se organizando novamente para voltar a fazer shows nas ruas, como no início de todo o processo. Durante algum tempo, uma nova geração de bandas do Alto José do Pinho retomou o espírito punk. Cheguei a escrever sobre o assunto: Nova Geração do Alto José do Pinho1 O processo natural de continuidade é nítido no Alto José do Pinho. Bandas novas surgem a cada dia, e já têm, pelo menos, um lugar garantido para apresentar sua música: o Papillon Bar. De propriedade de André Papillon, a casa, que possui dois andares, é palco, todos os domingos, do festival Rock Zoeira, evento organizado por Adilson Ronrona, Sérgio (integrante da banda punk Terceiro Mundo) e pelo skatista Henrique. A cada domingo, 1 Matéria publicada pelo autor na revista Galpão do Rock em novembro de 2005
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duas bandas se apresentam no local. O repórter acompanhou um desses eventos, protagonizado pelas bandas Conspiração Alienígena e Ataque Suicida. No térreo, uma televisão passando clipes dos Ramones anima o público. No segundo andar, os shows rolam no melhor clima “festa punk”. Ou seja, o espaço para uma roda de pogo e para a banda tocar é o suficiente para garantir a alegria dos roqueiros. Um fato inusitado chama a atenção. Os organizadores do evento tiveram que fazer um acordo com a igreja evangélica localizada na frente do bar, a exatos seis passos de distância. Terminado o primeiro show, é respeitada uma hora e meia de silêncio para que o culto evangélico seja realizado. “Das 19h30 às 21h, nós interrompemos os shows para a realização do culto. Pra gente é bom, pois essa é a hora em que o público para para relaxar e consumir cerveja”, conta André Papillon. E é o que, de fato, acontece. A igreja realiza suas atividades sem maiores problemas, enquanto um público sedento de rock aguarda tranquilamente o segundo show, tomando uma cervejinha gelada e colocando a conversa em dia. Terminado o culto, o rock volta a comer solto, em uma demonstração de respeito mútuo entre bar e igreja, difícil de testemunhar por aí. Particularidades que só mesmo o Alto José do Pinho poderia oferecer. Infelizmente, o Papillon Bar durou pouco tempo e logo fechou as portas, e o Rock Zoeira ficou sem local para realizar suas atividades.
“Alto Falante – gravando o show”
No dia 12 de novembro de 2005, o núcleo de bandas do Alto José do Pinho via, em plena rua principal do morro, a concretização de um sonho. Um palco de proporções tão grandes quanto a vontade desses meninos era armado na rua de Cannibal para abrigar os shows das bandas que participariam das gravações do disco “Alto Falante – gravando o show”. A própria casa de Cannibal servia de base para boa parte da parafernália de equipamentos que viabilizariam o evento. E uma multidão subiu para conferir, ao vivo, os shows de Os Maletas, D’Miopis, B.U., A Ostenta, Nanica Papaya, Terceiro Mundo, Matalanamão e Faces do Subúrbio. Duas delas, Os Maletas e D’Miopis, representavam a novíssima geração de bandas do Alto José do Pinho. A D’Miopis, fato inédito no bairro, é formada só por meninas, e a idade das integrantes variava, na época do show, entre 17 e 21 anos. Se, na primeira edição do Alto Falante, os meninos conseguiram reunir oito bandas em estúdio, sendo duas de Peixinhos (Ataque Suicida e Atitaia), chegara a hora da versão ao vivo e, desta vez, só com bandas do Alto José do Pinho. A estrutura de palco era inimaginável para quem passou os primeiros anos de carreira tocando em um tablado de madeira por cima de grades de cerveja. Mesa de PA, iluminação, roadies, tudo que os grandes festivais
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oferecem nos palcos do Primeiro Mundo estava, naquele momento, à disposição das bandas do Alto José do Pinho. Cada banda fez seu show completo, mas apenas duas músicas de cada entraram na coletânea. A noite transcorreu em clima de harmonia, sem qualquer incidente. Os Devotos faziam as pazes com seu bairro, pois Cannibal havia prometido jamais tocar novamente no Alto José do Pinho devido a uma briga no local em uma das apresentações da banda no carnaval. Entusiasmados com o surgimento de novas bandas, os meninos do Matalanamão convidaram Michelle, vocalista da D’Miopis, para uma participação no show deles. Cannibal dedicou “Nosso ninho” a Marcelo Santana, cantor de reggae do bairro vizinho Vasco da Gama e figura ainda hoje atuante no cenário artístico de Pernambuco. Santana mantém, junto com Marcelo Massacre, a banda MM Dub. Coube ao Faces do Subúrbio fechar a noite. A banda estava lançando “Perito em rima” e foi o primeiro show de Tiger após o falecimento da mãe, poucos dias antes, e o rapper estava visivelmente emocionado, volta e meia olhando para o céu, como quem pedisse a benção a ela. O CD era o primeiro produto da ONG Alto Falante e, claro, a produção gráfica foi assinada por Neilton, que também assinou a mixagem de várias faixas. Jaiminho, baixista do Matalanamão, ficou encarregado da direção de palco. Mas, para eles, o melhor de tudo era ler na contracapa do disco: “Projeto idealizado e realizado pela ONG Alto Falante.”
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Cap.03
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Domingo, 21 de setembro de 2008. Alto José do Pinho lotado. Um palco enorme a poucos metros da casa de Cannibal denuncia que o acontecimento é especial. E, que, de tão especial, merece ser gravado. Uma grua à direita do palco registra todas as reações do público. Volta a fita. Mesma rua, meados de 1988. Um garoto de 18 anos, punk, negro e discriminado em sua comunidade lê na Bizz uma matéria sobre o Inocentes, banda punk de São Paulo que canta, em suas letras, a dura realidade do cotidiano das periferias de São Paulo. Eis que o menino vai ao sebo no centro da cidade à procura de Pânico em SP. Acha. Escuta. E fica sem acreditar em como tudo que Clemente, negro como ele, diz em suas letras é igual ao que o garoto enfrenta todos os dias no Alto José do Pinho, separado de São Paulo por quase um Brasil inteiro. O moleque não sabe tocar. Não tem dinheiro para comprar um baixo. Não tem condições para pagar aula de música. Talvez fosse mais fácil estudar para um concurso público. Ou se conformar com o futuro de pedreiro ou de flanelinha. Encontra outro maluco, filho de militar, que decidiu ser baterista ao ver um conjunto de baile na Mangabeira, quando tinha 12 anos. Para completar o trio, um camarada da Bomba do Hemetério, que fabrica sua própria guitarra e desenha camisetas à mão. Volta ao presente.
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O trio sobe ao palco ainda mais nervoso do que na terceira edição do Encontro Antinuclear, em 1988. Parece não acreditar na multidão que conseguiu juntar no Alto José do Pinho para ver um show deles. Rapidamente, em questão de segundos, passa um curta-metragem na cabeça de Cannibal, Celo e Neilton. Nele, cenas deles, correndo de tiroteios e se jogando no chão do ônibus para não serem atingidos por uma bala, das vassouras improvisadas, substituindo o pedestal de microfone, das vezes que foram e voltaram a pé até os locais em que fariam shows, do primeiro Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll no Bonsucesso Futebol Clube. No camarim, Adilson Ronrona, vestido de pijama, espera a hora de entrar no palco para sua participação especial. O mesmo acontece com Tiger. Ailton Peste acompanha o show da plateia. E Zé Brown não pôde comparecer. Estava na Espanha, divulgando seu novo trabalho. E 2009 tem se mostrado um bom ano para os Devotos. A banda foi indicada ao VMB na categoria “Melhor Vídeo de Hardcore”, concorrendo com clipe de “Tudo Faz Sentido”. E foi convidada para se apresentar no Festival DoSol, em Natal, um dos mais importantes da cena independente do país. Em 2010, os Devotos voltam a Europa para uma turnê que circulará por vários países do velho continente. E pensar que tudo começou com um tablado de madeira em cima de grades de cerveja.
O núcleo hoje
Cannibal Mora no Alto José do Pinho. Toca baixo, é vocalista e autor de todas as letras dos Devotos. É baterista da B.U. e tem um projeto de reggae com o DJ Bruno Pedrosa chamado Canni100. Apresenta o Estereoclipe, programa de TV local voltado para o público jovem. Toda quarta-feira, religiosamente, bate pelada com os amigos. Neilton Mora na Bomba do Hemetério. É guitarrista do Devotos e desenvolve trabalhos como artista plástico, artista gráfico, designer e fabrica amplificadores. Celo Mora em Ouro Preto, em Olinda. Toca bateria nos Devotos e é vocalista da B.U. Trabalha nas ONGs Alto Falante e Bagulhadores do Mio. Adilson Ronrona Mora na Mangabeira. É vocalista do Matalanamão. Está compondo material para o terceiro disco do Matalanamão, ainda sem previsão de lançamento.
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Ailton Peste Mora no Alto José do Pinho. É funcionário da Secretaria Municipal de Saúde e ministra uma oficina de comunicação em um colégio público no bairro de Boa Viagem. Zé Brown Acaba de lançar seu primeiro disco solo, “Repente rap rapente”, e continua com o projeto Zé Brown Apresenta Talentos. Tiger Está gravando seu primeiro disco solo, intitulado “Poder simbólico”. Ministra oficinas de hip-hop para os detentos do presídio Aníbal Bruno. Todos Idealizaram e criaram a ONG Alto Falante, que deu origem à rádio de mesmo nome. A ONG, mesmo sem sede, realiza oficinas periódicas de capoeira, teatro, break, maracatu e software livre. A maior luta da Alto Falante hoje é conseguir um local para construir a sede.
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Discografia: Ao vivo — fita demo, 1994. Vida de Ferreiro — fita demo, 1995. Agora tá Valendo — Plug / BMG, 1997. Alien e Selvagem – SINGLE — Rock It! 2000. Devotos — Rock It!, 2000. Hora da Batalha — independente, 2003. Sobras da Batalha – EP — independente, 2004. Flores com Espinhos para o Rei — independente, 2006. Devotos 20 anos — independente/ Monstro discos, 2009.
Coletâneas: Video Music Brasil 96 — MTV/Epic, 1996. Sucessos Nacional — BMG, 1997. Black Music — Folha de São Paulo, 1997. Abril Pro Rock — Columbia / Sony, 1997. Rock o Ano Todo — BMG especial APR, 1998. CALABOCA JÁ MORREU — Abril Music, 1999. 11 Músicas direto da lama — revista TRIP nº71, 1999. Alto Falante, 1999. REIginaldo Rossi (Um tributo ) — Abril Music, 1999. Musikaos — revista TRIP nº81, 2000 Melopéia ( Sonetos Musicados ) — Rotten Recdords, 2001. Rec-Beat ao vivo — revista TRIP nº89, 2001. Tributo-Garotos Podres — Rotten Record, 2002. Alto Falante 2 — Gravando o show, 2005. Projeto Música de Pernambuco — Música Urbana, 2006.
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Videoclipes: Mais Armas? Não! — vídeo demo, 1990. Devotos do Ódio — direção: Nilton Pereira (TVViva), 1991. Futuro Inseguro — direção: Jobalo, 1991. Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho — direção: Claudio Assis, 1994. Vida de Ferreiro — direção: Claudio Assis, 1994. Fogo Cruzado — direção: Claudio Assis, 1996. Dia Morto — direção: Raul Machado, 1997. Eu Tenho Pressa — direção: Nilton Pereira (TVViva), 1998. Alien — direção: Diego Mezza, 2000. Meu País — direção: Mário Rios (Videotape), 2001. O Herói — direção: Nilton Pereira (TVViva), 2002. Roda Punk — direção: Nilton Pereira (TVViva), 2003. Tudo Faz Sentido — direção: Teta Barbosa (REC), 2008. Luta Pacifista — direção: Teta Barbosa (REC), 2009.
Trilhas sonoras: Maracatus-Maracatus Curta-metragem. Direção: Marcelo Gomes, 1994. Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do caralho Video doc. Direção: Claudio assis, 1995 Baixio das Bestas Longa-metragem. Direção: Claudio Assis. 2007
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Livros: CAVALCANTI, Carlos. “Caminhos da Vida”. Recife, Ed. Bagaço, 1997. TELES, José. “Do Frevo ao Mangue Beat”. São Paulo, ed.34, 1998. ESSINGER, Silvio. “Punk: anarquia planetária e a cena brasileira”. São Paulo, Ed.34, 1999. EZCURRA, Ana Maria. “Fugas musicais: a movimentação das bandas do Alto José do Pinho”. Universidade Federal de Pernambuco, 2002. MURPHY, John. “Music in Brazil: experiencing music, expressing culture (Global Music Series)”. Estados Unidos, Oxford University Press, 2006.
Festivais: 3º Encontro Anti- Nuclear — Recife-PE, 1988. Abril Pro Rock — Recife-PE, 1994 a 1999. Festival da UNB — Brasilia-DF, 1998. Soulfly Tour Brasil — São Paulo-SP, 1998. Man or Astroman? — Recife-PE, 1998 Kildare Festival — Salvador-BA, 1998 FIG — Garanhuns-PE -1998, 1999, 2000, 2004 e 2008 PE No Rock — Recife- PE, 1999, 2000, 2003 Marky Ramone & The Intruders — Rio de Janeiro-RJ – 1999 Mangue em Movimento — São Paulo-SP – 1999 Alto Falante — Recife-PE – 1999 e 2006 Abril Pro Rock — São Paulo-SP – 2000 Palco 6 – head-Line — Lisboa - Portugal – 2000 Acorda Povo — Recife-PE - 2000 e 2001 Recbeat — Recfe-PE - 2001, 2002, 2004, 2008 Da Tribo Festival — São Paulo-SP – 2002 Carnaval Multicultural — Recife-PE – 2005, 2006, 2007, 2008, e 2009 Do sol — Natal-RN – 2006 Bananada — Goiana-GO – 2008 Varadouro — Rio Branco – AC – 2009 Jambolada — Uberlândia – MG – 2009 53 HC — Belo Horizonte – MG – 2009 Calango — Cuiabá – MT – 2009 Aumenta que é Rock — João Pessoa – PB – 2009 Dosol — Natal – RN – 2009 Goiana Noise — Goiana-GO – 2009
Anexo
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27 de janeiro de 2008 — Alô, Cannibal? — Fala, Hugo! Já chegou em casa? — Na verdade, liguei pra dizer que vou atrasar um pouco. O ônibus está demorando. — Tudo bem, eu estou na rua também. Se chegar em casa antes de mim, pode esperar numa boa. Minha esposa e minha filha estão lá. — Falou.
Chego alguns minutos depois no Alto José do Pinho, e começo a perceber alguns indícios de que estarei diante de uma banda com vinte anos de carreira. A filha pré-adolescente de Cannibal atende à porta e pede que eu espere pelo pai. Sua esposa pede que eu fique à vontade e diz que o marido volta logo. Pouco depois, chegam Neilton e seu amigo Gilson. O cara que ficou famoso por fabricar sua guitarra a partir de sucata e por pintar quadros agora investe na fabricação de Amps. Que, de sucateados, não têm nada. Orgulhoso do “filho”, me convida para ir ao estúdio de Cannibal para ver sua cria: um bicho que “fala alto”, segundo ele. Bonito, benfeito, dá até vontade de comprar um. Enquanto engatamos
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uma conversa sobre os mais variados temas, Guilherme Moura, editor do Recife Rock!, liga e pergunta se já rolou a entrevista. Respondo que Cannibal está atrasado e que se ele correr é capaz de pegar a entrevista ainda no início. Guilherme chega antes de Cannibal, que aparece duas horas depois da hora marcada, porque estava pegando as camisas comemorativas dos vinte anos de banda. Educado, parece suplicar: — Meu irmão, me perdoe, por favor! — Tudo bem, contanto que dê a entrevista. — Então já estou perdoado.
E assim foi. O que era para ser uma entrevista séria, com guia estabelecido, acabou se convertendo num delicioso bate-papo entre cinco amigos espalhados no estúdio caseiro de Cannibal. E foram surgindo as histórias mais engraçadas e tristes sobre os vinte anos de carreira da banda, tudo sempre contado com inteligência e um senso de humor que beira as raízes do absurdo. Talvez tenhamos perdido um pouco do enfoque jornalístico, mas ganhamos muito em espontaneidade. E, por que não dizer, assim é mais punk. Punk-rock-hardcore, como a história de uma das mais importantes bandas já surgidas em Pernambuco desde sempre. Confira, abaixo, a íntegra de um bate-papo de quase duas horas com três caras que têm histórias de sobra para contar. Hugo: Vinte anos… Esperavam chegar até aqui? Passou rápido? Celo: (gargalhadas) Demorou pra caralho!!!! Hugo – Se a banda não tivesse dado certo, vocês estariam fazendo o quê hoje? Neilton – Porra, Hugo! Tá pegando pesado…
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Cannibal – É velho… Tem que botar a mão na cabeça e pensar… Hugo – Vinte anos! É hora de parar pra pensar mesmo… Neilton – O problema é esse: parar pra pensar. Cannibal – Aí acaba… Vou entrar naquela: “O que estou fazendo da minha vida?” Neilton – Se for pensar nas broncas todinhas, “Ordem dos músicos”, um monte de merda acontecendo… Cannibal – É melhor nem pensar… Hugo – Vocês vão lançar algum material relacionado aos vinte anos da banda? Cannibal – Não agora no Rec-Beat, mas a gente tem um projeto de fazer um CD ao vivo patrocinado pela Petrobras. A ideia é fazer uma coletânea com músicas de todos os discos da gente e trazer alguns convidados. E gravar aqui mesmo no Alto José do Pinho. Celo – CD ao vivo e DVD. Guilherme – E a história de São Paulo, o DVD que seria gravado lá? Cannibal – Aquela história de São Paulo já está virando lenda. Quando você faz um lance na brodagem, você não tem condições de cobrar, de exigir. E a gente sabe que o trabalho com audiovisual é um trampo muito foda pra ser feito, pra ser finalizado. E a gente tinha dado mais de trinta fitas com material da gente de viagem e aquela coisa toda. E elas (a produtora) tinham toda a boa vontade de fazer. Mas a gente viu que não ia dar. Sem grana, não tem condições. Hoje em dia, mesmo com toda a tecnologia na mão, o trabalho ficou maior para quem faz o trampo. Então, sem dinheiro, não dá pra fazer.
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Neilton – Porque é um documentário, não é um show. Aquele show de São Paulo seria mais um material pro documentário. Guilherme – Teve até a participação do Clemente, né? Como vai ser agora no Rec-Beat? Cannibal – Tem umas pessoas que a gente já sabe que vão participar do DVD, daqui pra lá vai dar pra acertar com todo mundo: Clemente, Pitty, Lirinha, Zé Brown, Adilson Ronrona. Fora outros… Daqui pra lá vai rolar muita ideia ainda. Essa vai ser a comemoração mesmo, patrocinada pela Petrobras. Guilherme – Rola esse ano ainda? Cannibal – Tem que rolar esse ano porque o projeto é para os vinte anos dos Devotos. O nome do projeto é “Devotos – 20 anos”. Neilton – Na verdade, o Rec-Beat é só o início das comemorações. Cannibal – Na verdade, vai ser igual ao fim de Sandy e Junior (risos). Neilton – Vai ter um acústico pra fazer… Hugo – Hoje, com 20 anos de carreira, dá pra perceber qual foi o pior e o melhor momento de vocês? Tem como avaliar isso ou não? Celo – O pior eu apaguei (risos). Cannibal – É muita tosqueira na vida, né, meu irmão? Neilton – Teve fases de você botar a mão assim na cabeça e dizer: “Pô, onde é que eu estou? O quê que a gente vai fazer?” Cannibal – “Vou morrer agora…”
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Neilton – Coisas assim que a gente nem imaginava como ia resolver. E o pior: a gente não estava nem aqui, estava longe, fora de casa, na maior roubada. Coisa muito pesada mesmo. Hugo – Com vocês já estabelecidos no mercado? Neilton – Não, na época que a gente estava começando. Cannibal – Não tem um pior momento específico, mas teve coisas que a gente poderia ter aproveitado muito melhor. Como a gente não tinha maturidade pra isso, deixava nas mãos de terceiros. Tanto que a gente voltou a se produzir. Tanto que as pessoas cobram que a gente toca muito pouco no Recife. E aí tem gente que fica achando que a gente fica esperando os eventos da prefeitura pra tocar. Mas não é. Quando a gente vai fazer um orçamento pra fazer um show aqui, acaba constatando que não temos o suporte de grana pra bancar a coisa se ela der errado. A gente não quer ficar devendo a todo mundo, faz tudo com um pé no chão do caralho. Então, se a gente fizer por conta própria e der errado, a gente vai tomar no cu. Como é que a gente vai pagar a galera? E a gente sempre fica pensando: como é que a gente vai fazer um show só dos Devotos? Hugo – Na verdade, era uma pergunta que eu já tinha engatilhada aqui: por que vocês tocam tão pouco no Recife? Cannibal – A história é justamente essa. Tem muito pouca gente que investe em banda, principalmente em banda do nosso estilo. Até mesmo eventos do governo e da prefeitura, tipo carnaval. A gente só vai fazer um show no carnaval pela prefeitura. A gente vai fazer o Rec-Beat, mas porque Gutie coloca quem ele quiser no festival dele. Mas sempre foi assim. Desde que começou esse carnaval multicultural que a gente só tem um show.
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Enquanto tem banda que vem de Brasília e que toca no carnaval todo. Ontem uma menina do Jornal do Commercio perguntou como a gente conseguiu chegar até aqui (20 anos), e eu expliquei pra ela que toda a grana que a gente pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque a gente sabia que um dia precisaria dessa grana extra para os instrumentos, pra gravar… É com essa grana que a gente guarda só pra banda que a gente consegue fazer as coisas. Mas ainda não é uma coisa que dá para apostar, para arriscar e fazer um show. Você pode apostar na feitura de um disco, mas em um show é muito arriscado. Tem que ter um suporte muito bom. Celo – Até as viagens que nós fizemos foi com o dinheiro que a gente juntou. Cannibal – Com o terceiro disco (“A hora da batalha”, 2003), depois que a gente rompeu com Dado (Dado VillaLobos, do selo Rock It!, que produziu o segundo disco dos Devotos), ali rolou uma doideira… Celo – Ali a gente percebeu que ou investia na banda ou morria. Cannibal – E a coisa boa é isso (pensativo). Não tem como negar, uma das melhores coisas que aconteceu com os Devotos foi o respeito, não só do público que curte o som da banda, mas de pessoas que nem curtem o som mas respeitam a história da banda, dos componentes. Hoje em dia, tem muita gente que vê a banda muito mais como uma realização social do que musical. É uma coisa positiva, legal. Mas não é tudo, porque não dá pra viver só de prestígio. Hugo – E show? Tem algum especial que vocês lembram?
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Cannibal – Pra mim, foi aquele que aquela banda gringa não veio… Hugo – Suicidal Tendencies, Abril Pro Rock de 98. Cannibal – Isso! Aquele ali foi foda, velho! Até porque liberaram o PA todinho pra gente (risos). Nunca tinham feito isso! Pra quem não sabe, a maioria das bandas que tocam antes das bandas headlinners nos festivais, o PA é sempre mais ou menos. Então fica sempre um som chochinho. Aí a galera da técnica libera o PA todo pra banda principal e fica todo mundo pensando: “Porra, essa banda é foda mesmo! (risos)” Aí foi isso. O show da gente foi a mesma merda de sempre, mas liberaram o PA todo pra gente, ficou aquele sonzão (risos). Neilton – O mais legal era a galera da produção. Chegaram pra gente e disseram: “Ó, aconteceu isso, isso e isso.” Tava todo mundo num clima tenso do caralho. Saía um e chegava outro: “Vocês estão bem? Tá tudo certo? (risos. Celo estoura numa gargalhada)” Aí depois chegou todo mundo e disse: “Olha, vocês sabem da responsabilidade que têm.” Cannibal – Quase que eu dizia: “Eu pensei que a gente não ia tocar mais.” Neilton – E a gente tranquilo, dizendo: “Tá beleza…” Cannibal – E o pior é que a gente não tinha noção do que estava acontecendo no show, porque a gente não escuta o PA. Quando terminou, que a gente viu as críticas, caiu a ficha: “Caralho, foi tudo isso? (risos)” Essa valorização, Hugo, é que não tem jeito. Você pode ser a banda que for, você precisa morar fora para as pessoas valorizarem aqui. E a gente sempre fez o caminho contrário. A gente sempre achou que aqui mesmo poderia fazer a diferença. E até hoje a gente não faz (risos). Mas a gente continua.
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Hugo – Vocês são praticamente os responsáveis pela nova reputação do Alto José do Pinho. Hoje o lugar é praticamente uma atração turística de Recife. Até que ponto isso causa orgulho e até que ponto gera desconforto? Cannibal – Desconforto é só quando a gente está na rua e colocam um palco desses (estava sendo erguido o palco do polo Alto José do Pinho perto da casa de Cannibal) aqui e a galera acha que a culpa é nossa (risos). Porque nem tudo que rola culturalmente aqui no Alto é a gente que faz. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem consciência de que fomos nós que proporcionamos isso. Apesar de ser uma coisa independente. A viagem da gente era mostrar a cultura que tinha no Alto. A gente não sabia que as pessoas iam valorizar tanto, o que é uma coisa positiva. De tirar aquela imagem da mídia sensacionalista que o local era ponto de droga, de violência. Então esse foi o lance legal, das pessoas perderem o preconceito com a comunidade. E o lado ruim é justamente esse: a gente leva a culpa de muita coisa que a gente não tem nada a ver. E outra que as pessoas daqui começaram a desenvolver uma autoestima tão forte que passaram a fazer as coisas aqui de forma independente, sem consultar a gente, que já tem certa experiência com esse tipo de coisa. Já falando da ONG Alto Falante: se nem a gente mais pede consultoria às pessoas mais experientes nas coisas que resolvemos fazer, acontece a mesma coisa com as bandas novas. Elas vêm conversar já para querer tocar no evento que vamos produzir. E a ideia da gente não é essa. É ter um diálogo, um papo do porquê o cara estar querendo fazer aquilo, se tem uma irmandade, uma amizade… Porque a gente vê que, se um cara for montar uma banda pra ganhar grana, não vai dar em lugar nenhum. Mas se ele tiver pensando no coletivo, aí sim, a gente consegue colocar todo mundo junto. Hoje tá foda,
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porque isso é resultado da mídia tecnológica na mão de todo mundo. As divulgações estão muito rápidas. Orkut, MSN, as pessoas se comunicam muito rápido e se divulgam muito rápido. Mas o que colocam na cabeça deles não são referências que passam alguma coisa positiva. Podia até citar nome de banda que passa algo positivo. Você vê uma banda tocando em algum site ou numa TV qualquer e você vê que são bandas que seguem a cartilha da mesmice. E são bandas que você nunca ouviu falar, e que de uma hora pra outra estão no Faustão recebendo prêmio. E aí o cara acha que, se o cara chegou ali fazendo mais do mesmo, o negócio então é fazer mais do mesmo. Na época da gente, a gente escutava o cara no rádio, aí ia no show do cara, porque pra ver o cara em algum programa de TV era quase impossível. Pra comprar um disco, tinha que ser no sebo. Então era muito diferente a história comparada com o que é hoje em dia. As pessoas não se preocupam em pesquisar, já que têm toda a tecnologia na sua casa. E isso é um lado negativo pra caramba aqui em cima. Porque a galera aqui também está correndo atrás de mais do mesmo. Todo mundo quer fazer igual, corre atrás de Rec-Beat, de Pré-Amp, e não se preocupa em fazer o próprio show, como a gente fazia antigamente. Hugo – Você sempre fala que tem muita gente que divulga show dos Devotos sem fechar com vocês, usando o nome de vocês. Acontece o mesmo com o Alto José do Pinho? Tem gente que se beneficia da marca Alto José do Pinho sem ter nada a ver com ela? Cannibal – Politicamente, com certeza. Culturalmente, até que não. No início dos anos 1990, no começo do movimento mangue, com certeza, aconteceu muito. Tinha gente que vinha fazer matéria aqui e vinha gente que nunca tinha aparecido aqui, que era de Boa Viagem
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e dizia que era daqui. Mas hoje acabou. Hoje em dia, o nome só é usado politicamente mesmo. Tem muita gente usando o Alto José do Pinho pra isso. Muita gente colocando rádio, até neguinho querendo dar uma força ao maracatu e ao afoxé e ao caboclinho e, em boa parte das vezes, é algo apenas de política partidária. A gente, muitas vezes, paga por isso. A gente não se apresenta nos eventos da prefeitura e as pessoas sabem muito bem o porquê. Basta pensar. A gente não consegue ficar calado. Quando a gente percebe alguma coisa errada, a gente vai e fala mesmo. E, às vezes, é uma faca de dois gumes, porque eu me lembro que, em dezembro, a gente foi no Sopa diário1 e aí eu falei que eu achava um absurdo a prefeitura pagar 3 milhões pra Mangueira fazer uma homenagem ao frevo de Pernambuco, tendo tanta escola de samba daqui que não consegue nem sair no carnaval, tanta agremiação que não consegue desfilar. É uma coisa inaceitável na cabeça de todo mundo. A prefeitura pode dar 3 milhões para quem ela quiser, mas tem que dar também pras pessoas que estão precisando aqui. É a mesma coisa que você cuidar do filho dos outros e não cuidar do seu. E eu sempre falei isso e sempre que vejo alguma coisa que acho errado eu ligo pra falar também. Esse show agora que a gente fez no Burburinho eu liguei pra Beto Rezende (jornalista) pra dizer que foi uma merda, que a prefeitura faz show e não divulga, principalmente aquele. Porque eu não consigo ficar calado. E a gente paga por isso. Fica muito claro depois porque fazem um evento e não colocam a gente. A gente tira leite de pedra o ano todo. As pessoas perguntam por que a gente continua… Deve ser a adrenalina.
1 Programa de TV veiculado pela TV Universitária, retransmissora local da TV Cultura.
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Hugo – Vocês já pensaram alguma vez em parar? Cannibal – Parar os Devotos? Nunca. De jeito nenhum. Ao contrário. Muito antes de a gente gravar, a gente sentou pra saber se era isso realmente que queríamos fazer. Traçamos uma meta e fomos tocando, tocando, tocando, exatamente como o Matalanamão faz. E aí a gente parou uma vez e perguntou: o que estamos querendo com a banda? Queremos levar isso em frente? Porque, se não for, a gente vai estudar, arrumar uma profissão e pronto. E decidimos levar em frente. E tudo que a gente faz é pensando na banda. Pro show agora do Rec-Beat, a gente já fez a camisa em comemoração aos 20 anos. Sempre pensamos em colocar a banda em evidência. Tem que ter alguma coisa pra mostrar que a banda está viva, que a banda está acontecendo. Eu sempre digo isso pra quem está começando. Senta e pensa se é realmente o que você quer fazer, porque ganhar dinheiro com banda não rola. Guilherme – A gente estava conversando sobre essa história da dependência do governo. Vocês não acham que existe uma dependência muito grande das bandas com o governo, que ninguém faz nada, essa coisa das bandas não correrem atrás. Neilton – Acho que existe dependência de tudo. Guilherme – Fica essa história de existir banda que só toca no carnaval, Fig, ao invés de se produzir e correr atrás. Eu vejo o pessoal de Natal, da Paraíba… lá não tem mamatinha do governo. Neilton – É um mau costume. Todo mundo queria aparecer na televisão, todo mundo queria aparecer na MTV e o caminho mais fácil pra isso era tocar no Abril Pro Rock ou em algum evento que fosse transmitido pra fora. As bandas que estão começando se prenderam a esse cos-
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tume de tocar em festival. Ninguém toca mais em buraco como a gente tocava, né, Celo? Celo – E a questão do investimento mesmo que a gente sempre fez. Nós viajamos muito pelo Nordeste e bancamos tudo do nosso bolso. Andando de ônibus, de caminhão, de jegue, da porra toda. A gente sempre se arriscou e sempre foi buscar. As bandas daqui costumam achar que aqui é o começo de tudo. Que aqui é a base para a carreira. Neilton – E o lance é botar a cara, é fazer show. Mas principalmente cair na estrada. E juntar grana pra fazer isso, porque ninguém faz. Cannibal – O governo criou uma história em cima da cultura de Pernambuco, que a turma não entendeu. Acho que aquela coisa de fazer os eventos patrocinados pelo governo e pela prefeitura, a rapaziada entendeu que aquilo ali seria o trampolim. E, na verdade, não é assim. Se você for ver, quando você pega esses produtores que vinham ver os eventos, o cara terminava no Galettu’s (antigo nome do bar Garagem). Terminava indo a lugares em que não tinha banda nenhuma que tocava no Abril Pro Rock. E o cara queria pesquisar aquilo, porque ele via que ali tinha coisa melhor do que o que estava tocando naquele evento. Na cabeça deles, lógico. Aconteceu isso com a gente aqui no Alto José do Pinho. Quando o Fábio Massari foi fazer o Abril Pro Rock, ele quis vir no Alto. Ele queria saber como era possível que num morro tivesse tanta banda de rock. Porque, na cabeça dele, no morro, deveria ter banda de samba, de pagode, de qualquer coisa. Mas de rock? E aí veio aqui e viu um monte de banda de rock tocando junto. E a rapaziada que está começando se esquece disso. Se você não está tocando no Abril Pro Rock, você pode estar lá dentro com o seu CD, com o seu release. E dar na mão do cara. Aquela coisa do
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“nem toquei, mas consegui alguma coisa”. E a rapaziada esquece disso, dessas coisas bem simples, porque fica bitolado em tocar e tocar no evento. Hugo – Vocês chegaram num formato agora que só são vocês três. Acabaram com todos os atravessadores: não têm produtor, assessoria de imprensa, o Neilton está fazendo os Amps agora. A ideia é vocês mesmo fazerem tudo… Neilton – É dominar o mundo (risos). Cannibal – É dominar o Alto… Celo – O Alto a gente já dominou (risos). Cannibal – Aconteceu isso no Showlivre, não sei se vocês viram. O Clemente (Inocentes) perguntou pra gente o que Neilton tava fazendo. A gente respondeu: “Neilton está fazendo tudo. Neilton fez a Terra, as árvores, as pessoas (risos).” Hugo – Mas a gente que acompanha as bandas novas vê muito essa acomodação, da galera não fazer nada. Banda que não tem nem um ano e já precisa de um produtor… Hugo – Mudando de assunto: qual foi o primeiro cachê que vocês ganharam? Cannibal – Foi num show que a gente fez com Stella Campos de versões punks para as músicas do The Doors. Foi uma merda do caralho (risos). Hugo – Falar em punk, vocês ainda levam muito dedo na cara e acusações de “traidores do movimento” porque tiraram o “do Ódio” do nome da banda? Neilton – Esse lance de traidor do movimento nunca pegou com a gente.
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Cannibal – A gente teve um problema desses quando a gente gravou. Quando a gente fez clipe pra MTV. Parecia que a gente tinha feito a pior coisa do mundo. Depois que a gente gravou o primeiro disco (“Agora tá valendo”, 1997), andava na rua e punkzinho ficava enchendo o saco, dizendo: “traidor do movimento”. Faziam panfletos escritos “Devotos traíra” e distribuíam. Mas nunca chegou a incomodar fisicamente. (risos). Neiton – Teve um lance muito doido. Lembro de uma crítica que eu li sobre o primeiro disco da gente dizendo que a banda perdeu a vontade de ir pra eventos como o Abril Pro Rock. Era aquele discurso: “aquela banda sofrida do Alto José do Pinho, mostrando o valor que tinha o subúrbio”. E aí concluía: “agora acabou, eles gravaram” (risos). É sério. Aquela coisa “eles não vão passar mais fome, começaram a ganhar dinheiro”. Cannibal – A miséria é linda (risos). Neilton – Engraçado que a maior luta da gente é justamente pra acabar com isso, com a miséria. E o que a galera mais quer é isso. Na verdade, é um lance que está na cabeça da galera: que você tem que ser fodido e ruim pra ter valor. E, ao mesmo tempo, você é tratado como gueto, por mais valor que você consiga passar pra alguém, você é tratado como gueto por não fazer uma música que venda. Porém, você tem que ser pobre, fodido, magro. Cannibal – A gente sempre procurou fugir disso. A gente sempre tocou para ter um sustento, uma dignidade. Por isso que eu volto para aquela história de darem 3 milhões para a Mangueira, sabendo como é a situação do samba aqui em Pernambuco. Como ele é maltratado, não é tocado nas rádios. Celo tava me contando que viu na TV Lia de Itamaracá pedindo para a Celpe (Companhia
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Energética de Pernambuco) ligar a luz dela, porque eles tinham cortado. E a mulher vai desfilar na Mangueira! Que porra é isso? Onde é que a gente está? Não tem como a gente ficar calado com isso. E a turma paga a luz dela, colocando um showzinho dela aqui e ali. Aí ela vai e agradece ao prefeito João Paulo. Essas coisas revoltam. E eles (prefeitura e governo) sabem que se der chance pra neguinho do morro o neguinho vai falar, velho! E é por isso que os Devotos não tocam nesses eventos. Os Devotos nunca tocaram no Marco Zero. Uma menina da Bahia me perguntou por que a gente nunca tocou no Marco Zero. Ninguém quer colocar uma banda que quer falar dos seus deveres e direitos em evidência. Porque, se der moral pra galera saber o que de fato acontece, vai foder tudo. E a gente não se cala. Não é porque a Prefeitura colocou a gente pra tocar num palco que eu vou me calar. Hugo – Vocês acham que são discriminados aqui em Pernambuco também por fazer hardcore? Cannibal – Total, cara! Não só por causa do hardcore, mas, principalmente, pelos temas. Por ser do subúrbio. Neilton – Porque a gente tem ciência das coisas que se passam ao nosso redor. E a gente tenta passar isso pra galera nas músicas. E, no nosso caso, fica ainda mais difícil porque é muito mais fácil exportar o exótico, o modelo preestabelecido. E não estou falando só da gente. Tem trocentas bandas, aqui em Pernambuco, que fazem um tipo de música totalmente diferente. Na verdade, não tem espaço, a não ser que você adote o modelo exótico. Hugo – É por isso que vocês acham que não saíram do país ainda? Neilton – A gente já saiu. Só que faltou alguém que fizesse o resto do caminho.
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Hugo – Vocês saíram e não tocaram? Neílton – A gente tocou. Fomos até a “atração internacional”. Foi um festival de inverno. Hugo – Eu não sabia disso. Foi onde? Neilton – Em Lisboa. Em 2000. Cannibal – E ficamos uma semana lá sem fazer mais nada. Celo – Comendo bacalhau pra caralho (risos)! Neilton – É muito fácil pegar um produto já pronto. Um produto que o cara sabe que vai vender. É muito difícil hoje os produtores locais encararem uma temporada de estrada num circuito mais alternativo. Eu nem digo circuito muito underground. A gente recebeu proposta de fazer uns shows com uma banda que tinha um público do caramba em Portugal. E tudo que fizeram foi dizer que a passagem estava comprada para o dia tal. Porra, na Europa, cara! Com um monte de coisa pra fazer, um monte de lugar para tocar e explorar. E você voltar pra casa sem ter feito nada. Você lembra, Celo, desse estresse? Celo – Eu não lembro dessas partes ruins porque eu vou deletando. Neilton – Eu guardo algumas coisas para relembrar. Pra não cair no mesmo erro. Hugo – Vocês têm ideia de quanto tempo por ano passam fora do Recife? Cannibal – A gente desce, pelo menos, umas três, quatro vezes. A base é São Paulo. Ano passado, a gente conseguiu fazer Goiânia e alguns shows no Rio. A gente recebe muita proposta para tocar em Minas Gerais, mas
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é aquela coisa amadora. E a gente não está mais naquele lance de pagar pra tocar. Hugo – Já estão com material novo? Neilton – Não. Cannibal – A gente vai fazer agora igual a Sandy e Junior (risos)... Guilherme – Mas vocês pensam em fazer outro CD de nove, dez faixas? Cannibal – Vai ter a coletânea ao vivo. Neilton – A gente vai fazer o ao vivo e depois vai pensar. A gente nunca coloca o carro na frente dos bois. Porque a gente está produzindo muita coisa. Cannibal – E fazer por etapas também. Guilherme – E esse formato de CD? Vale a pena ainda lançar CD? Cannibal – Isso vai, com certeza. Neilton – É o seguinte: eu estava discutindo dia desses sobre o possível fim do CD. Como se pensava que teria o final do vinil. Na Europa, ainda se vende muito vinil. Nós ainda somos bem atrasados em termos de mentalidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as novas tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de uma nova tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela tecnologia que está em desenvolvimento pra partir pra ser ainda mais moderno. Tudo tem que ser feito com equipamento de ponta. A gente, na verdade, precisa reaprender a reutilizar as coisas. Que ainda têm uma vida útil muito grande. Mesmo que a gente não enxergue. O CD como um suvenir não vai acabar. Não vai ser tão fácil trocar uma mídia. Já se tinha o saco de você perder um álbum bonito como
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era o vinil pra pegar uma caixinha desse tamanho que é o CD. Eu sou muito frustrado porque não consegui fazer uma capa de vinil. Quando a gente começou a gravar já era CD. Eu lembro que eu fiz uma capa gigante para colocar uma fitinha demo. Só pra ter uma capa grande. E o lance todo é esse. Eu sou fã da tecnologia, mas eu sou fã da gente explorar a tecnologia até o seu limite. Não dá pra gente pagar sempre pra alguém ficar produzindo e inventando novas tecnologias enquanto ainda não usufruímos o bastante do que temos à nossa disposição. A sonoridade do vinil era melhor. O CD fodeu tudo. O MP3 está fodendo mais ainda. Guilherme – A história toda é o formato. Ainda existe aquela coisa de ter que fechar um CD com 12 músicas? Na Internet, raramente você escuta dez músicas de uma banda. E a gurizada vai baixando a esmo. Hoje em dia, é muito melhor você ter três, quatro músicas boas, que ter 12 meia boca, precisar fazer “coxinha” pra preencher um CD, de ter que colocar remix. E a Fresno, por exemplo, lança uma música por mês na Internet. E você vai nos shows e vê a gurizada cantando tudo. De repente, eles encontraram o formato deles. Neilton – O mais doido dessa história é que a gente está indo para o lado de deteriorar as coisas. Esse lance da Fresno realmente funciona pra eles porque a gurizada tá a fim de consumir rápido. Mas também é uma coisa descartável. E a gente pensa numa coisa mais duradoura. Quem me dera se a gente tivesse a possibilidade de voltar a usar vinil single. A qualidade de áudio seria outra. É isso que se perdeu. A galera está mais interessada em consumir do que propriamente em curtir. A curtição virou outra situação. É um chiclete. Você mastiga e joga fora. Tanto que a gente fica pensando nas possibilidades de não desvincular o CD do encarte. Como a gente estava
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falando antes. Fizemos questão que o nosso último trabalho (“Flores com espinhos para o rei”, 2006) respirasse. Não é só uma discussão nossa, é uma discussão mundial de quem trabalha com áudio. Da música ser valorizada pela gravação, e não pelo mercado. Hugo – Qual o disco dos Devotos que vocês ficaram mais satisfeitos com o resultado final? Todos – “Flores com espinhos para o rei”. Cannibal – O pior é o primeiro. Hugo – Eu costumo dizer que o primeiro tem o melhor repertório com a pior produção. Cannibal – Justamente. Guilherme – Quem foi que produziu o primeiro? Cannibal – Lúcio Maia. Guilherme – Pô, Hugo. Você tá pulando pra caramba. Tem que conversar com essa gurizada que acessa o site. Hugo – A gurizada que se vire e pesquise (risos). Cannibal – Esse negócio que Neilton falou. Teve uma menina que entrou hoje no Orkut e me perguntou onde achava o primeiro disco dos Devotos. E dizendo que queria muito o disco, embora tivesse as músicas já. Ela queria o encarte e tal. E era uma menina que devia ter uns 15 ou 18 anos. Eu disse pra ela ir até a Galeria do Rock (complexo de lojas de discos em São Paulo) que ela acharia entre os usados, embora devesse ser caro. Tem gente que ainda quer o disco. Neilton – Isso é muito doido. O gringo quando é fã é fã mesmo. Aquela galera que curte Jornada nas estrelas (a série de filmes) faz questão de ter tudo sobre o filme, de se vestir igual. Aqui quase ninguém faz isso. E quem faz
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é chamado de doido. Porque essa questão de você pegar o CD e querer o encarte é um negócio que está morrendo. Essa gurizada nova não quer. Ela está sendo mal-ensinada. Menosprezando o papel, o toque, o tato. Hugo – Vocês conseguiram renovar o público dos Devotos ou é só velho que continua curtindo? Neilton – Não, tem muita gurizada. Tem o vovô, o pai e o neto. Celo – Impressionante, cara. Neilton – É massa, cara. Ficam os pirralhos na frente fazendo a roda, os pais tentando proteger e os avós lá atrás só olhando (risos). Celo – Aí é que eu fico pensando: tem muito tempo mesmo que a gente tem a porra dessa banda (risos)... Guilherme – Das bandas que vocês viram nos anos 1990, o que vocês acham que poderia ter vingado e ficou no meio do caminho? Cannibal – Moral Violenta era uma banda que… ixe! Era uma banda que tinha aqui, e ensaiávamos juntos: Moral Violenta e SS-20. Só que SS-20 era tipo Exploited. Era a coisa mais radical que tinha no punk daqui. E o Moral Violenta fazia um estilo meio Cólera. As músicas eram bem pegajosas. Os caras eram do IPSEP. E tudo de temática social. Cada letra do caralho. É uma banda que se ainda tivesse trampando ia dar muito o que falar. Mas é porque, naquela época, nos anos 1980, só quem tinha grana era que conseguia gravar. Tanto que a única banda que gravou na época foi o Câmbio Negro. Foi pra São Paulo, voltou pra Pernambuco e acabou a banda. Mas era a única banda que conseguia gravar disco. Neilton – E a gente escutava pra caralho.
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Cannibal – Eu ia muito pros shows deles. Ia pros ensaios, ficava vendo os caras tocarem. Neilton – Teve uma época que a gente não tinha grana pra ensaiar, e eles liberavam o estúdio pra gente. Nós éramos bem amigos deles. Cannibal – O legal daquela época era a irmandade que rolava entre as bandas. O Alto seguia a cartilha do movimento punk, as bandas eram muito unidas. Todo mundo ensaiava com o mesmo instrumento. Guilherme – O metal era muito maior nessa época, né? Cannibal – Sempre foi e ainda é. O metal ainda é muito grande. E a gente estava no esquema deles. A gente era fodido demais, muito tosco. Tocávamos sem equipamento. Tem uma foto de uns shows antigos em que não tinha nem pedestal pro microfone. Ficava um cara segurando o microfone pra eu poder cantar. E gente pra caralho. E o som tosco. Só escutava o pém, pém , pém… E a gente ia na traseira dos ônibus. Os shows eram no Curado e a gente ia daqui pra lá na traseira do ônibus. Quem tinha grana passava com os instrumentos e o resto pulava aquela gaiola que existia nos ônibus. E voltava do mesmo jeito. Aí, quando chegava no Alto, levava um baculejo da polícia. Toda vez era isso, não tinha jeito. Deitava no chão, abria as pernas, aquela palhaçada toda. E era sempre o mesmo policial que fazia a mesma coisa com a gente. Hugo – Teve um show dos Raimundos em 94, no Circo Maluco Beleza, que vocês fizeram a abertura e estavam tocando em outro lugar e foram até o Circo a pé. Cannibal – A gente tava tocando no Forró Chique. E fomos a pé até o Circo. Naquele tempo, a gente bebia pra caralho.
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Neilton – Ali no Maluco Beleza, todos os shows, todas as cinco edições do Abril Pro Rock, a gente foi andando. Cannibal – A gente passava no meio da galera carregando os instrumentos. Hugo – Do Alto até lá? Neilton – Daqui pra lá, cara! Não tinha ônibus e não tinha van. A gente saia a pé e colocava os instrumentos nas costas. Era do caralho porque tinha uma galera bombadinha que ia de carro. Cada carrão do caralho, e a galera passava gritando pra gente: “Porra, Devotos é do caralho! E vruuuuuuuuummmmmmm (risos).” Teve uma que eu nunca vou esquecer. A gente foi participar daquela premiação da MTV, em 95 ou 96. Aí Cannibal caprichou, pegou um casaco de general, que ganhou do Chico Accioly. A gente foi de ônibus e chegou no aeroporto, foi a primeira vez que a gente viajou de avião. Aí chegamos na MTV, Cannibal vestiu a roupa e a gente animado pra caralho. Entramos na fila pra entrar no local e vimos Frejat no final dela, lá atrás, e a gente todo feliz porque estava na frente do Frejat, Paula Toller (risos). Aí depois da festa teve uns comes e bebes. E na festa colocaram a gente na primeira fila, e a gente achando lindo tudo aquilo. Os caras do Pato Fu sentados e a gente acenando pra eles (risos). Maior goga a gente (risos). Aí, quando a gente percebeu, começou a encher de gente, que é onde a galera coloca gente pra dançar (risos). Cada um de nós foi pra um lado e eu fiquei sentado na escada. No vídeo em que Marcelo D2 está cantando com Falcão, do Rappa, dá pra me ver sentado na escada. Aí no final nós fomos pra um comes e bebes. Arnaldo Antunes gravando clipe, casa cheia de artista. E uma mesa gigante com comida. Ficamos eu e Siba roubando comida porque a gente não sabia se ia ter o que comer no hotel. Aí voltamos, dormimos no hotel, pegamos o voo de volta e
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chegamos no aeroporto do Recife sem um puto no bolso e perguntado: “Meu irmão, como é que a gente vai voltar pra casa (risos) ?” Foi todo mundo na traseira do ônibus. Celo – Esse foi um dos bons momentos (gargalhadas). Cannibal – E foi bom também porque eu lembro que Celo era vegetariano. Quase que virava emo (risos). Aí ia ter que tirar ele da banda, não ia ter jeito (risos). E ele não comia carne. E a gente foi pra um lugar pra gravar o primeiro disco e não deu certo. A gente ficou numa casa em que tomava o café da manhã e guardava o resto pra comer de noite. Uma miséria do caralho. Aí teve um dia que colocaram uma carne lá. Eu e Neílton começamos a nos servir de carne. Aí perguntamos: “Celo não vai querer, né?” E ele: “Não vou querer uma porra (risos)!” Uma fome do caralho, ele acabou com a carne toda (risos). Neilton – Eu tava falando pro Hugo daquela nossa passagem pelo Rio, lembram? Cannibal – Puta que pariu, só bons momentos (risos)... Neilton – A gente ficou num hotel perto da gravadora (BMG). Hotel três estrelas, com uma delas já apagando e caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra tocar e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era pão com queijo, uma banana e café com leite. Aí ficava assim até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia da tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga roncando. Hugo – E vocês passavam por tudo isso sendo contratados da BMG? Cannibal – Contratados! Neilton – Bicho, era foda. A gente entrava naquele puta prédio da gravadora, cheio de seguranças, de bermuda e
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chinelo para encher nossas garrafas de água. O passatempo da gente era ficar olhando as meninas na praia. Hugo – Da nova geração de bandas do Recife, o que tem chamado a atenção de vocês? Cannibal – Rapaz, é difícil. Eu tenho escutado muita velharia, muito dub e outras vertentes do reggae. Mas aqui de Recife (pausa). Eu tenho visto os shows da Plugins, do D’Miopis, duas bandas promissoras. Neilton – Eu só escuto coisa antiga. Cannibal – Eu apresentei a última edição do Pátio do Rock. Essa Júlia Says, que vai tocar no Rec-Beat, pra mim vai ser a banda! Assim que essa galera conseguir gravar e alguém que produza os caras, eu acho que vai ser A banda. Eu vejo uma vida ali. Mas estamos em épocas diferentes. É tudo muito diferente do que era nos anos 1990. Naquele tempo, existia um corpo a corpo maior. Você sentia originalidade entre as bandas. A galera hoje não pesquisa muito, e acaba fazendo uma banda só por fazer mesmo. E acaba ficando tudo muito igual. Tem que achar uma identidade, senão você fica igual a todo mundo. A gente toca muito em São Paulo por causa disso. Porque o hardcore da gente é diferente, muito neguinho já disse isso. E se fosse igual às outras bandas não rolava da gente ir sempre pra lá. Hoje eu vejo, criativamente falando, a coisa muito menor do que era nos anos 1980 e 1990. Criou-se uma peneira de lá pra cá e só ficou quem era original. Teve até gente que saiu, mas por outros motivos, porque arrumou família e precisou arrumar um meio de sustento fora da música. Guilherme – Como é que está o CD de dub que você está produzindo?
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Cannibal – Eu pedi pra fazerem umas oito bases de músicas porque eu tinha umas letras sobrando. Aí quando ficou pronto fiquei com vontade de reescrever as letras. Aí escrevi tudo e entramos em estúdio e gravamos. Mas aí tem umas coisas que ainda não estão legais. Principalmente de voz, coisa que ainda não está muito segura. Tem muito buraco, muita coisa espaçada. Mas basicamente é um CD de dub com participação de Zé Brown, de um poeta de Peixinhos e de Fred Zero Quatro que faz os cavaquinhos. Guilherme – Tem previsão de lançamento? Nome? Cannibal – Não sei. A ideia era só gravar as músicas e colocar na Internet pra galera baixar. Mas não sei se vai ter nome. Eu só sei que não quero fazer show. Vai ser a Enya da Jamaica (risos). É só uma coisa que eu gosto de fazer e que a galera não vai ouvir muito nos Devotos. Guilherme – E o Estereoclipe? Cannibal – Me chamaram pra apresentar o programa. Já tinham me chamado antes, quando China ainda participava. Mas eu disse que não era a minha praia. E disse que não ia fazer o negócio porque eu não sei nem ler! Aí combinaram da gente fazer um piloto. Só que o piloto foi uma armadilha, porque já estava rolando. Depois disseram que ia rolar uma graninha e eu topei fazer. E a história é desconstruir a imagem do apresentador. Na verdade, eu dou um tema e deixo a galera falar. Se você for ver o programa, eu falo muito pouco. E está sendo legal porque o programa está indo muito pra área social, que é um lance que a gente trampa já há algum tempo. Mas eu nem vejo o programa. Eu vi uma vez e achei uma merda. Não o programa, mas o meu desempenho. Aí resolvi não ver mais. E acho que deveria sair daquela emissora, que é religiosa e tal. O programa é gravado nas quartas e vai
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ao ar aos domingos. A emissora não tem nenhum compromisso social. Seria melhor se fosse veiculado na TV Universitária. Guilherme – E como vai ser o show do Rec-Beat? Cannibal – A gente está ensaiando umas músicas antigas do Inocentes. A gente não sabe ainda como vai ser a participação dele no show, se ele vai entrar no meio e ficar até o final. E a ideia é ele fazer umas da gente também. E ele foi a principal influência do estilo da banda. Eu, particularmente, quando pensei em fazer uma banda, foi quando escutei Inocentes, o “Pânico em SP”, que era um single com quatro músicas. Parecia que ele estava falando do Alto José do Pinho. E na época eu andava com a rapaziada do punk mas eu curtia muito metal: Iron Maiden, AC/DC. Mas só fui me identificar com algo mesmo quando ouvi Inocentes. Vi uma matéria sobre eles na Bizz e comprei o disco deles num sebo. Me identifiquei muito com as letras. Daí resolvi fazer a banda. Eu não saco nada de inglês, tudo que escuto é nacional. E a gente é filho do rádio. Não tínhamos dinheiro para comprar discos, então o jeito era ouvir rádio, que naquela época, nos anos 1980, ainda tocava rock. Tá certo que era um rock babaca do caralho, mas era rock.
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Tudo que eu queria
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Imagens: índice e créditos P.23 Praça central do Alto José do Pinho
foto: Guilherme Moura
P.24-25 Fiteiro do pai de Adilson Ronrona e Mercado Municipal do Alto José do Pinho foto: Guilherme Moura P.26-27 Fachada da associação dos amigos do dominó foto: Guilherme Moura P.29 Sede do afoxé Ylê de Egbá foto: Guilherme Moura P.32-33
Muro do Bonsucesso foto: Guilherme Moura
P.34-35 Alto José do Pinho foto: Guilherme Moura P.42-43 Devotos no início da carreira foto: Junior “Petardo” P.54-55
Cartaz do primeiro show dos Devotos do Ódio
P.60-61 Show dos Devotos do Ódio, em 1989, no bairro UR6, região metropolitana do Recife foto: Marcus Asbar P.67
Cartaz de festival punk na periferia do Recife em 1990
P.70-71 Guitarra feita por Neilton e Neilton com seu irmão Nilson e sua
primeira guitarra, uma Giannini Sonic (1988) Arquivo de família P.80 Cartaz de show underground no subúrbio de Prazeres, Jaboatão dos Gararapes, primeiro show com Neilton como guitarrista dos Devotos do Ódio, em 1989
P.85 Devotos no estúdio de ensaio foto: Michele Souza P.86-87
Alguns integrantes de bandas e amigos do Alto José do Pinho reunidos em frente a reforma do Bar do Orlando, em 1993
P.95
Faces do Subúrbio no festival PE no Rock, em 1998
P.101 Capa da coletânea de hip-hop “Cultura de Rua” P.105
Capa do disco “Como é Triste de Olhar”
P.111
Adilson Ronrona foto: Guilherme Moura
P.112
Capa da primeira fita demo do Matalanamão feita por Neilton
P.115
Integrantes do Matalanamão em 2000 foto: Jaqueline Maia (Jornal Diário de Pernambuco)
P.119
Neilton, Celo e Cannibal foto: Michele Souza
P.125
Cartaz da versão paulistana do festival Rec-Beat, em 1994
P.128
Set list de show dos Devotos foto: Fred Jordão - Imago
P.130-131 Devotos e Seu Antônio, inspiração para “Vida de Ferreiro” em 1995 foto: Gil Vicente P.134-135 Capa da fita demo “Vida de ferreiro”, feita por Neilton em 1995 P.140-141 Cartaz do festival “Recife Summer Fest”, desenho feito por Neilton em 1994 e Cartaz do evento “natalino punk” “Não Papai Noel”, em 1989 P.152-153 Neilton, Cannibal e Celo no Alto José do Pinho em 1993 foto: Fred Jordão P.154-155 Show dos Devotos na segunda edição do festival Abril Pro
Rock – Recife em 1994 foto: Fred Jordão P.163
Segunda formação do Matalanamão em 1994 foto: Gil Vicente
P.168 Devotos assinando com a BMG em 1996 foto: Jornal do Commercio P.173
Cannibal eleva a bandeira de PE no encerramento da noite do sábado do festival Abril Pro Rock em1998
P.174-175 Tatuagem de Cannibal com uma estrofe da música “Alien” do CD “Devotos” lançado em 2000 foto: Neilton P.177
Capa feita por Neilton de “Agora tá Valendo”, lançado em 1997
P.182 Faces do Subúrbio em 2007 P.192-193 Cannibal e Dado Villa-Lobos na gravação do segundo CD em 1999 pelo selo Rock It! foto: Maurício Valadares P.196-197 Devotos na cidade de Lisboa (Portugal), outubro de 2000 foto: Paulo André P.198
Capa feita por Neilton do disco “Devotos”, e o single “Alien”, lançado em 2000
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Cenário dos shows dos Devotos feito por Neilton para o show do CD “Devotos” em 2000 foto: Cannibal
P.211
Capa da coletânea Alto Falante, lançada em 1999
P.213
Cartaz do “Da Tribo Festival”, realizado em São Paulo, em 2000
P.219
Capa feita por Neilton de “A Hora da Batalha”, lançado em 2003
P.220-221 Cartaz do show de lançamento de “A Hora da Batalha” no Angar 110, em São Paulo, em 2003.
P.230-231 Capa de “Quem é o pai?”, do Matalanamão, lançado em 2005 P.242-243 Quadro de Neilton intitulado “ALT3” P.244-245 “Imagens Puras 2” e “Na Linha do Tiro” P.250-251 Amplificador Altovolts, feito por Neilton, em 2009 foto: Neilton P.256-257 Fachada do estúdio da Rádio Alto Falante foto: Guilherme Moura P.260-261 Corredor do Mercado Municipal foto: Guilherme Moura P.268-269 Cartaz feito por Neilton do evento “Alto Falante 2 gravando o show” P.306-307 Show dos 20 anos dos Devotos, no Alto José do Pinho em 2008 foto: Michele Souza P.308-309 Capa feita por Neilton do CD “Devotos 20 anos” em 2009 e Primeiro show dos Devotos do Ódio no festival punk 3º Encontro Anti Nuclear, no centro do Recife, em 1988 foto da capa: Michele Souza
Sobre o autor
Jornalista com pós-graduação em Jornalismo Cultural, escreve sobre música desde 2002. Paulistano radicado no Recife, trabalhou na Rádio Cidade, Folha de Pernambuco e colaborou com as revistas Zero, Rock Press e OutraCoisa. Desde 2003 trabalha como repórter e crítico de música do site Recife Rock! Conheceu o Alto José do Pinho na metade da década de 1990, e, desde então, acompanha de perto toda a movimentação cultural de lá. É fã de rock, de samba de breque, de cinema e de literatura.
Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m². Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m². Impresso pela Prol Gráfica em março de 2010. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.