Enraizados

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Enraizados: os hĂ­bridos glocais



Enraizados: os hĂ­bridos glocais Dudu de Morro Agudo

Programa Petrobras Cultural

Apoio


Copyright © 2010 Dudu de Morro Agudo COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfico CUBICULO ENRAIZADOS: OS HÍBRIDOS GLOCAIS produtor gráfico SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão CAMILLA SAVOIA CAROLINA CASARIN ITALA MADUELL revisão tipográfica CAMILLA SAVOIA

D897e Dudu, de Morro Agudo, 1979Enraizados, os híbridos locais / Dudu de Morro Agudo. - Rio de Janeiro : Aeroplano, 2010. il. -(Tramas urbanas) Apêndice ISBN 978-85-7820-053-4 1. Dudu, de Morro Agudo, 1979-. 2. Movimento Enraizados (Projeto cultural). 3. Músicos de rap - Brasil - Biografia. 3. Hip-hop (Cultura popular) - Rio de Janeiro (RJ). 4. Rap (Música) - Rio de Janeiro (RJ). I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. II. Série. 10-5555.

CDD: 927.845 CDU: 929:78.067.26

27.10.10

29.10.10

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e um claro projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda



Agradecimentos

Agradecemos a Heloisa Buarque de Hollanda pela oportunidade. Aos Enraizados do Mundo, quiçá do Universo, e ao nosso patrocinador maior: Deus, pelo milagre de transformar cada barrigudinho melequento das periferias em grandes homens e mulheres, grandes líderes das quebradas e grandes articuladores da cultura de raiz. Aos amigos e familiares, não precisamos agradecer, já que eles existem para nos apoiar mesmo, amigos e parentes são pra essas coisas. É nóis, vagabundo!


Sumário 12

Introdução

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Apresentação

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Prefácio – por Luiz Carlos Dumontt

20 Cap.01 Antes de tudo Um líder mirim Primeiro contato com a arte Trabalho: como conseguir grana? O rap: como conheci e por que pratiquei Cabeça vazia: oficina do diabo Cap.02 Enraizados: como começou? 56 A criação do Movimento Enraizados Portal Enraizados Iniciando projetos Enlaçado pelo Enraizados A imprensa nos descobriu e descobrimos a imprensa 2003: um ano divisor de águas A experiência de mobilizar e entreter O fim do começo… Ousadia: deixe-me ir, preciso andar… O Neoenraizados Level two Cap.03 Seguindo em frente 144 A arte de criar o inimaginável Ousando em novos territórios Cada um com o seu cada um Nossas superproduções Dinheiro: solução ou mais problemas? Comunicação: passeando entre classes Se não sonhássemos, não sairíamos do lugar Algumas luzes no fim do túnel Entre trancos e barrancos


226 Cap.04 Estamos só no início Acionando a Rede Enraizados Um elefante branco nas mãos Núcleo de mulheres do Enraizados: uma questão de gênero Mil fitas acontecendo Articulação internacional O pulo do gato Nossa odisseia pela Europa Voltando para casa 291 301

Anexo - Movimento Enraizados por Movimento Enraizados (Frases no twitter) Posfácio – por DJ Raffa

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Imagens: índice e créditos

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Sobre o autor


Introdução

A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar, e não aceitar tudo que a elas se propõe. — Jean Piaget

Meu nome é Flávio Eduardo, no hip-hop me conhecem como Dudu de Morro Agudo ou simplesmente DMA. Nasci em 1979, em Morro Agudo, um bairro pobre e – para alguns – violento da cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Sou filho de Guilherme, um vidraceiro, que hoje é conhecido como Dico por causa de uma de minhas músicas – “Dico Sequela” –, e de Lúcia, uma ex-vendedora de roupas que trabalha atualmente como merendeira numa escola do município do Rio de Janeiro. Quando eu nasci, minha mãe queria me colocar o nome de Carlos Eduardo, porque na época passava uma novela e o galã tinha esse nome. Meu pai queria Flávio porque ele queria algum nome que lembrasse o Flamengo, a grande paixão dele. Então ele pensou: Fla, fla, Flávio, corta o Carlos e deixa o Eduardo, pronto: Flávio Eduardo. Meu pai é o tipo de sujeito que podemos chamar de boêmio, vive cada dia como se fosse o último de sua vida; por outro lado minha mãe é uma mulher centrada, que tem como maior qualidade a honestidade e dedicou sua vida ao trabalho para me dar uma educação de qualidade. A prova disso é que estudei toda a minha vida em escolas

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particulares até o momento em que entrei para a faculdade e não pudemos mais pagar pelos estudos. Eu acho que sou um misto dos dois. Um cara que ama a noite, a vida, mas que tem uma preocupação excessiva com suas responsabilidades. Em toda a minha família, creio que sou a única pessoa que trabalha com arte. A maioria dos meus familiares começou a trabalhar bem cedo, boa parte em trabalhos braçais, e pouquíssimos conseguiram cursar uma universidade. A arte nunca foi bem-vista na minha casa. É comum nas famílias que vivem na periferia as crianças começarem a trabalhar bem cedo, para ajudar em casa ou para ter sua independência financeira, e para isso quase sempre param de estudar, repetindo a mesma história de vida de seus pais e avós. As escolas públicas de nível fundamental e de nível médio na Baixada Fluminense não têm um ensino muito bom. Na prática eu já sabia, mas resolvi fazer uma pesquisa e fiquei ainda mais surpreso com o resultado. Descobri que das 50 melhores escolas do país 42 são particulares e apenas oito são públicas. Analisando a mesma tabela percebi que no estado do Rio de Janeiro estão 18 das 50 melhores escolas de nível médio do país, e dessas 18, 14 são particulares e apenas quatro são públicas, e das quatro, três são federais e somente uma estadual. Descobri ainda nessa pesquisa que das 18 melhores escolas do nosso estado apenas uma está na Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu, e é particular. Quer dizer, as pessoas de baixa renda jamais vão conseguir estudar em uma escola dessas. Baseado nisso é fácil entender por que minha mãe fez de tudo para que eu estudasse em escola particular, mas nem por isso tive o melhor ensino. Poucos são os que conseguem quebrar esse ciclo social, mas graças a Deus eu sou um desses.


Apresentação

Não existe uma fórmula para o sucesso. Mas, para o fracasso, há uma infalível: tentar agradar a todo mundo. — Herbert Bayard Swope

Resolvi escrever este livro para contar de forma cronológica a história do Movimento Enraizados. A ideia é focar nas principais atividades, baseado naquilo que vivi e vivo dentro da organização. Apesar de eu tê-lo criado em 1999, o Movimento Enraizados é na verdade o reflexo das centenas de pessoas que por ali passam e vivem os mais variados e intensos momentos, dando forma, vida e movimento à organização. Por isso, pela grande quantidade de histórias boas e interessantes, nem todos puderam entrar nesse livro. O Movimento Enraizados é uma organização complexa que me permitiria abordar diversos eixos, mas decidi enfatizar a Rede Enraizados e seus processos de comunicação capazes de agregar pessoas e organizações de todo o mundo para discutir e pensar soluções coletivas para problemas locais, que também podem se tornar soluções globais. Segundo o professor Leonel Azevedo de Aguiar1, em um trecho do artigo “Apropriação das tecnologias de informação e estratégias da ecologia do virtual”, publicado na revista “Rastros”: “Enraizados na rede rizomática: 1 Professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de PósGraduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor e Mestre em Comunicação pela UFRJ. Jornalista formado pela UFF.

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simultaneamente, local e global – ação política local e produção cultural global. Movimento hip-hop, aporte glocal para o ciberativismo político.” Por muito tempo a história da organização se confundiu com a minha, por isso os primeiros textos falam um pouco da minha vida até o momento da criação do movimento. Creio que desta forma será mais fácil o entendimento de como tudo começou. A ideia do livro é sintetizar algumas situações e também relatar os acontecimentos de forma objetiva para que o leitor tire suas próprias conclusões e talvez consiga perceber neste material, após uma leve reflexão, o ponto chave em que uma intervenção cultural pode mudar o destino da juventude brasileira. Então vamos lá!


Prefácio

Se houvesse uma única palavra para designar o que significa o Movimento Enraizados em sua máxima amplitude, seria difícil escolher termo mais exato que a palavra milagre. Uma ação despretensiosa que se desenvolve em um formato de rede-mãe com várias outras redes interligadas, provenientes de ideias tidas anteriormente como improváveis, descabidas e até mesmo impossíveis de acontecerem em um primeiro momento, isoladamente ou em cadeia, dada a sua origem e o histórico de seus criadores, sem conhecimento prévio de outras formas de mobilizações parecidas, nem conhecimentos acadêmicos, nem tutores, nem padrinhos ricos, nem herança alguma de quaisquer outros agentes de fora ou de dentro do Movimento. É complicado falar de si próprio, sem deixar transparecer aquilo que nos impulsiona de forma definitiva para um horizonte desconhecido, desafiador, porém instigador e mola mestra de tudo o que fazemos, a nossa autoestima, nossa força maior; nosso caráter guerreiro, pronto para nos lançar do penhasco e construir as asas no meio do caminho antes que “esborrachemos” de cara no chão; essa força que provém do quase nada e domina toda a nossa alma, mente e corpo e nos possibilita tentar algo novo e inusitado e quase suicida é o que chamamos carinhosamente de militância cultural – interferir localmente com ações culturais em rede para discutirmos 16


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políticas públicas e mudar uma realidade histórica de exclusão sociocultural e econômica em nossas “quebradas” (bairros). Nas próximas páginas o leitor se deparará com a quebra vigorosa de um paradigma presente em todas as comunidades brasileiras e talvez do mundo, o ciclo de repetição a que estamos fadados a viver viciosamente em nossas vidas: se sou de família abastada, também serei abastado, mas se sou de família pobre, continua­rei pobre e deixarei a minha pobreza de herança para a minha prole. Essa noção está bem consolidada nas famílias de doutores, médicos, militares, empresários e, acima de tudo, nas milhares de famílias de operários; sendo que no caso dos operários ou proletários, como queiram chamar, há quase que uma inflexibilidade, é quase impossível para um filho de um proletário ser um médico, um doutor ou um oficial militar, porque o processo de exclusão social seguido de uma forte pressão psicológica nos impulsiona a pensar que as coisas são assim mesmo, que não há nada de mais em repetir a profissão do meu pai e não tentar uma medicina ou qualquer outra profissão que me faça ascender socialmente é uma praga que combatemos com treinamento psicológico na nossa escola de militância, o Cefam – Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância, onde nós, por nós mesmos, interpretamos as várias mensagens diretas, indiretas e até mesmo subliminares dos vários meios de comunicações que nos rotulam, nos cegam e nos condicionam a pensar que todo esse “esquema social” é a vontade de Deus. Nessas páginas não há a verdade acima de tudo, muito menos todos os fatos que aconteceram na história do Movimento Enraizados, mas apenas um ponto de vista de um dos seus idealizadores e um dos maiores líderes que eu tenho o prazer de conhecer e chamar de meu amigo: DMA, Dudu de Morro Agudo, Flávio Eduardo. Não importa


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como o conheça, é mais um sobrevivente e um guerreiro dedicado, sempre voluntário para as tarefas mais difíceis, líder da F.E. – Forças Especiais desse grande exército que se espalha desde os becos mais escuros e sombrios das favelas até o asfalto, chegando até mesmo às praias da Zona Sul. A clareza de ideias, a multiculturalidade e principalmente a vivacidade de uma juventude pronta para a guerra social que se desenrola a todo o instante em nossas vidas arrebanha cada vez mais voluntários, fazendo-nos crescer em número e qualidade em uma taxa de não menos que 500% ao ano, começando com 3 cartas escritas inicialmente para militantes da cultura hip-hop, para a quebra da barreira dos 600.000 acessos únicos mensais em nosso site na Internet. Ganhamos prêmios, status e moral, mas o nosso maior orgulho é ganhar mais um irmão para essa grande família que chamamos de Enraizados. Alguns nos chamam de loucos fantásticos, bairristas lunáticos ou provincianos; nós preferimos nos autodesignar simplesmente de Enraizados; mas a definição de fora do movimento que mais nos deixa felizes é a do professor Leonel Azevedo, um homem fantástico que nos chama carinhosamente de híbridos glocais. Obrigado a todos que nos ajudam das formas possíveis e imagináveis a divulgar, difundir e até mesmo explicar para os outros e para nós mesmos aquilo que fazemos com tanto amor e afinco, simplesmente por ser a nossa razão de viver. Amamos nossa arte, nossa cultura e todos os que nos cercam. Boa leitura. Luiz Carlos Dumontt Às 17h22 do dia 23 de abril de 2010.



Cap.01

Antes de tudo



Um líder mirim

A diferença entre um chefe e um líder: um chefe diz, Vá! um líder diz, Vamos! — E. M. Kelly

Meus pais sempre trabalharam fora, então eu ficava sozinho desde muito novo, tendo que cuidar dos afazeres de casa, tomar banho, ir para a escola, fazer as lições e ficar no sapatinho até meus pais chegarem, sendo frequentemente vigiado pelos vizinhos a pedido de minha mãe. Lembro de poucas coisas da minha infância, apenas algumas ficaram marcadas na memória, como, por exemplo, o dia em que aprendi a andar de bicicleta. Meu pai tirou as rodinhas auxiliares e me levou pra rua, comecei a pedalar e quando eu estava me sentindo seguro ele largou o selim. A partir daí começava a me equilibrar sozinho pelas ruas de Morro Agudo. Lembro também do dia em que meu pai me levou para um campo de futebol. Isso me marcou muito porque meu pai era do tipo provedor, apesar de não me levar muito para passear como os pais costumam fazer com os filhos, porque a principal preocupação dele era não deixar as coisas faltarem em casa, uma atitude muito comum entre os pais da periferia. Quando criança, eu era sempre o primeiro lugar na escola, até que cheguei na sexta série e comecei a desandar. Em 1990, com apenas 11 anos de idade, gazeteei aula por 22


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quase um ano, foi inevitável a reprovação. Minha mãe, que sempre acompanhava minhas presenças na escola através dos carimbos na caderneta escolar, não desconfiava das minhas travessuras porque eu mandei fazer um carimbo de presença idêntico ao da escola. Os diretores do Colégio Luiz Silva, o melhor colégio do bairro na época, enviavam bilhetes para minha casa, querendo saber por que eu não estava comparecendo às aulas, mas eu sempre interceptava os bilhetes e falsificava a assinatura da minha mãe, até que um dia enviaram um telegrama. Foi quando minha mãe descobriu toda a verdade e eu levei a última grande surra da minha vida. A televisão me ensinava a falsificar documentos. Lembro de uma entrevista que vi com um velho estelionatário que dizia: “No Brasil a burocracia dá brecha para a falsificação, todo papel que tem um carimbo vira original.” Eu viajei na ideia do coroa e fiquei pensando onde eu poderia aplicar esse “ensinamento”, até o dia em que fiz na escola. Como deu certo na primeira vez, continuei fazendo até dar errado, e me lasquei. Eu apanhava com frequência, minha mãe não admitia que eu vacilasse, e nesse dia ela me bateu tanto que os vizinhos vieram me socorrer, mas não adiantou, minha mãe colocou todo mundo pra correr e me desceu a porrada. Lembro de um diálogo entre minha mãe e uma vizinha que tentava interceder por mim: — Lúcia, solta ele, você vai machucar o menino! — O filho é meu e eu vou educar do meu jeito. Eu paguei um ano de escola pra quê? Pra ele gazetear aula? Ele tá pensando que eu ganho dinheiro onde?

Nesse momento eu pensei: “Tô fodido, agora ela vai me matar.”


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Com 11 anos, liderei muitos garotos rumo à reprovação. Depois disso tomei gosto pelos estudos novamente. Em 1992 comecei a estudar informática – minha grande paixão – num curso de Morro Agudo. Ainda não existia o famoso Windows, então eu fazia curso de Digitação, MS-DOS, Word Star e Lótus 123. Meus pais não queriam pagar o curso alegando que eu não terminava nada do que começava, mas eles acabaram cedendo porque se tratava de conhecimento para o meu futuro. Nas aulas de digitação eu treinava digitando um funk famoso da época, cantado por MC Mascote e MC Neném, cujo nome era “Rap da Daniela Perez”. Daniela Perez era atriz, filha da autora de telenovelas Glória Perez, e foi assassinada pelo colega de trabalho Guilherme de Pádua no dia 22 de dezembro de 1992. Foi um crime que abalou o Brasil inteiro. Os dois MCs, então, fizeram essa música em homenagem à atriz e ficaram famosos por causa desse rap, a única música que falava da morte de Daniela autorizada por Glória Perez, que ficou emocionada com a homenagem. Foi nesse ano que conheci um dos meus melhores amigos, o Luciano Gomes – que hoje é policial militar. Ele é como um irmão, mas nossa amizade começou na base da porrada. Ele liderava uma galera no colégio e eu liderava outra, até que um dia, por causa de uma garota, a gente se enfrentou. Ele diz que me bateu, mas eu tenho certeza que ganhei a briga. E a fama de vencedor ficou mesmo pra mim porque ele faltou as aulas por dois dias após a briga e me deu tempo de contar minha vantagem para todo o colégio. Tempos depois a gente começou a se falar e juntamos nossas duas galeras. Ficamos então com mais moral na escola do que os caras da oitava série, que eram nossos inimigos.


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Eu fazia curso de informática, mas não tinha computador para treinar. Usava o de um amigo — Marcelo Granja — que tinha um TK85, um computador que ligava na televisão, funcionava com Basic e gravava os programas num gravador cassete. É engraçado lembrar dessas parafernálias porque parece que sou muito velho, mas tenho apenas 30 anos. Depois ele ganhou um CP500, um computador muito esquisito, pois o teclado e o monitor eram colados, uma peça única. Os pais do Marcelo tinham uma condição financeira legal, provavelmente os de mais grana na rua onde eu morava, então os brinquedos eletrônicos caros chegavam primeiro na casa dele. Nesta época eu já arrumava revistas e livros de Basic e fazia pequenos programas de computador, mas não conseguia gravar na fita cassete. Todos os dias eu perdia tudo o que digitava e refazia novamente no dia seguinte, o que serviu pra eu aprender lógica de programação antes mesmo de estudar a matéria na escola e tomar gosto por ela. Tempos depois um outro amigo ganhou um 386 dos pais. É um grande amigo e se chama Marcio, mas é conhecido no bairro como Marcio Periquito, porque ele tem um nariz igual ao do Luciano Huck. A gente troca muita ideia até hoje, ele também é apaixonado por informática e nunca foi apegado a bens materiais, o que permitia que eu estudasse e treinasse no computador dele. A desigualdade social é presente até em Morro Agudo, onde algumas pessoas têm carros importados, casa bonita, condições de colocar o filho em boas escolas e cursos, enquanto o outro extremo não tem nem mesmo o que comer e deixa seus filhos jogados nas ruas. O que separa essas famílias, geograficamente, é, às vezes, apenas um muro. Eu estava no meio dessas duas realidades, conhecendo e transitando de um lado ao outro e colocando essa galera para conversar.


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Primeiro contato com a arte

Não tocamos para agradar os críticos. Tocamos o que queremos, quando queremos e o quanto quisermos. E temos motivos para tocar. — Bob Marley

Em 1993 o funk carioca ficou muito forte e presente na minha vida, e comecei a arriscar algumas composições. Justamente quando ele deixa de aparecer nas páginas culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a produção de arte: fazer letras de música. O processo de criação me fascinou, e depois que vi minha letra de rap pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia muita vergonha. Eu ouvia música desde pequeno, influenciado por meu pai, que gostava de Tim Maia, Jorge Ben, Elis Regina, Carlos Alberto, Roberta Miranda. Ele era – e acho que ainda é – apaixonado pela música da Roberta Miranda, mas não sabe cantar nenhuma, só os refrões e alguns pequenos trechos. Fazia questão de “zoar o plantão” fazendo uns sons esquisitos nas partes em que não sabia cantar. Meu pai colocava o som no último volume pros vizinhos ouvirem também. Hoje ainda é assim, e se bobear é ainda pior. No quartinho que ele tem no terraço de casa, 30


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construído para guardar as ferramentas, e que hoje é o local em que ele faz alguns trabalhos de artesanato, foi montada uma espécie de rádio comunitária. São altofalantes pendurados no telhado do terraço, ligados a um rádio velho – porém barulhento –, em que ele põe as músicas antigas pra tocar e agora também o rap da minha rapaziada. O maneiro disso tudo é que ele gosta de rap. Ele e minha avó foram as pessoas que sempre me deram força pra eu fazer rap, mesmo sem saberem exatamente o que era. Com essa idade eu já curtia os bailes funk no clube Vasquinho de Morro Agudo. Uma época que tinha muita briga, quando quem morava no bairro da Tenda não podia ir pro outro lado da estação de trem porque era o bonde inimigo. Dentro do baile, que supostamente era um local neutro, a porrada era generalizada. Eu era novo, mas estava lá, com os caras mais velhos da minha rua. Era uma maluquice de garotos, a gente ia pro baile pegando carona na porta dos ônibus. Lembro de um camarada chamado Ripe, que apesar de ser novo era o mais alto do grupo. Ele sofreu um acidente quando estava pegando carona na porta do ônibus. O motorista, por pura maldade, jogou a lateral do ônibus num caminhão, e um parafuso entrou no braço dele. Era sangue pra todos os lados. Levamos ele em casa, entregamos pra mãe, e depois fomos pro baile. Também lembro de uma vez que fiquei com medo porque o motorista estava correndo muito e eu pulei do ônibus em movimento. Ele estava descendo uma ladeira, a rua era de paralelepípedo, mas tinha muita areia, e quando o ônibus passava subia poeira como naqueles filmes antigos de faroeste. Eu ainda não tinha a malícia de pegar carona, então pulei e fiquei parado. Meu corpo foi jogado para a frente e só lembro de descer rolando o morro atrás do ônibus. O mundo ia girando cada vez mais


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rápido, eu colocava a mão na frente para não machucar o rosto, e no final deu tudo certo. Não machuquei o rosto, mas em compensação minha mão ficou em carne viva, minha roupa toda rasgada, joelhos e cotovelos ralados, e mesmo assim fui curtir o baile. Quando cheguei dentro do Vasquinho fui no banheiro lavar as pernas, os braços e corri para o “trenzinho” dar meus gritos de guerra. Nas brigas dos bailes e do bairro eu sempre me destacava porque era bom de porrada. Além disso, os garotos da minha idade sentiam certo medo de mim porque eu andava com os caras mais velhos, mais influentes. Quando algum moleque da minha idade vacilava era porrada nele. Eu não costumava praticar as mesmas atividades que os garotos da minha idade, não sabia soltar pipa, até jogava bola direitinho, mas não gostava, e só jogava bola de gude porque a molecada toda estava jogando. Eu gostava mesmo era de trocar ideia, escrever, desenhar e fazer programas de computador. Ao mesmo tempo em que eu deveria ser educado, respeitar os mais velhos, eu também tinha que ser respeitado na rua, senão eu virava “comédia”. Nessa época eu pegava um teclado e um gravador do Marcelo Granja, um microfone com outro camarada, fazia bases de funk e gravava minhas músicas em casa. Foram minhas primeiras gravações de funk. Eu envolvi até o próprio Marcelo nas gravações, a gente fez uns sons zoando uma mina que era ex-namorada dele. Mostramos a fita pra ela, que mostrou pra mãe, e então deu uma confusão danada. Eu tenho certeza que elas gostaram do som, porque ficou maneiro de verdade, mas a gente falava várias besteiras, e a mãe da menina tinha que impor respeito. No final de 1993 terminei o primeiro grau, e no próximo ano eu daria um passo importante: sairia do colégio onde estudei por toda a minha vida e iria estudar à noite, no


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centro de Nova Iguaçu. Pra mim isso significava a minha independência. Minha mãe queria que eu estudasse no colégio Iguaçuano, que pertencia à mesma família da minha antiga escola. Eu não concordava porque no Iguaçuano estudavam uns playboys de Nova Iguaçu e nessa época eu já sentia o preconceito e a discriminação que esse pessoal tinha por mim. Nós conversamos e eu convenci minha mãe a me matricular num colégio chamado Ceni, pois somente lá tinha o curso que eu queria fazer: tecnologia em processamento de dados. Depois que comecei a estudar percebi que o ensino não era muito bom, mas foi a partir dali que dei um rumo na minha vida e comecei a me tornar o cara que sou hoje. Já no primeiro ano conheci o Netinho, que hoje também é policial militar. Ele sempre morou perto da minha casa, mas a gente nunca tinha trocado ideia antes do Ceni. Começamos a vir de ônibus juntos pra casa, até que nos falamos a primeira vez e ficamos logo camaradas. A gente tocava o maior terror no colégio. Ele já era bem funkeiro e me levava pra curtir os bailes em outros lugares da cidade. E eu levava ele para gravar umas músicas comigo.


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Trabalho: como conseguir grana?

Sua profissão não é aquilo que traz para casa o seu salário. Sua profissão é aquilo que foi colocado na Terra para você fazer com tal paixão e tal intensidade que se torna chamamento espiritual. — Vincent Van Gogh

Enquanto estudava, já arrumava um trocado instalando som de carro, pois além de informática eu também gostava de eletrônica e usava os dois como um meio alternativo de conseguir grana. Para os meus pais era difícil pagar meus estudos. Minha mãe trabalhava muito para pagar minha escola e eu não podia exigir mais dela. Aprendi a consertar som de carro com o Mário, pai de um amigo da rua onde moro. Ele ganha a vida consertando aparelhos eletrônicos, e de tanto eu pedir me ensinou essa atividade que já me rendeu uns bons trocados. Mário dizia que som de carro quando para de funcionar quase sempre é problema da saída do próprio som, então eu tinha que trocar o CI (circuito interno). E isso era “batata”: quase sempre era mesmo esse o problema. Ganhei uma grana maneira consertando o rádio dos outros, e a fama ia aumentando, e cada vez chegava mais gente. Meu portão vivia cheio de carros. Com apenas 14 anos já sabia dirigir, era um dos poucos garotos da rua que tinha essa habilidade. Até ensinei outros garotos, 36


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como o César, filho do cara que me ensinou a consertar aparelhos eletrônicos. Quem emprestava o carro era o Marcelo, um cara um pouco mais velho que eu, que morava no final da rua. Meu pai nunca teve carro e até hoje não sabe dirigir, então tive que aprender olhando os outros na rua e pedindo para dar um rolé no carro deles. Para arrumar um dinheiro a mais eu aprendi também a recondicionar alto-falantes, isso também foi o Mário quem me ensinou. Quando as pessoas chegavam à minha casa para instalar um som já vendia o pacote de serviços completo. O tempo foi passando e a grana estava ficando curta com esse esquema de recondicionamento de alto-falantes, então eu e o Netinho decidimos correr atrás de um trabalho de carteira assinada. Compramos o jornal no domingo e fomos atrás das vagas dos classificados. Chegamos até uma agência de empregos em Duque de Caxias, que nos mandou fazer uma entrevista na Comercial Lubi Peças, em Nova Iguaçu. Estávamos confiantes, nosso primeiro emprego estava por vir. Na manhã do dia marcado chegamos à loja, que era uma autopeças, fazia calor, mas eu sentia frio na barriga. Nunca tinha passado por aquela situação antes. Tinha muita gente querendo aquela vaga de estágio. Fizemos uma entrevista com uma senhora chamada Sandra, uma morena de cabelos longos e encaracolados, que estava grávida de uns sete ou oito meses. Ela era responsável pelo setor de recursos humanos. Fez a entrevista comigo e com o Netinho ao mesmo tempo. Eu fiquei desanimado porque ela conversou muito mais com ele, me fez três perguntas e duas dúzias para ele, que ficou muito mais confiante. Surpreendentemente, no outro dia, foi o meu telefone que tocou, quer dizer, o da minha vizinha, pois a gente não tinha telefone em casa. Eu estava contratado, era o meu primeiro emprego.


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Na verdade era um estágio em que eu deveria trabalhar na área de informática, mas me jogaram no setor financeiro. Fiquei três meses por lá, até que tive uma discussão com o dono da empresa. Eu já estava puto da vida porque me tiraram do setor maravilhoso que eu estava trabalhando e me jogaram pra emitir nota fiscal. O rapaz que estava neste setor não dava conta do serviço e era sobrinho de um amigo do meu patrão. No novo setor, além de eu ter que lidar com a pressão dos vendedores, tinha que ir frequentemente trocar cheques por dinheiro na sala do todo-poderoso, que nem sempre estava de bom humor. Eu chegava em casa todo dia muito cansado porque trabalhava e estudava e no trabalho estava um saco. Então parei pra conversar com o meu “coroa”, que me deu um conselho um tanto quanto perigoso para um cara da minha idade. Ele disse: “Filho, não deixe ninguém tirar onda com a tua cara, principalmente patrão, se tu sentir que ele tá abusando, tu manda logo ele se foder, porque tu não precisa dessa merda de trabalho, aqui em casa a gente dá um jeito, de fome tu não morre. Eu quero é que tu estude.” Eu fiquei com aquilo martelando na cabeça. Ninguém vai tirar onda comigo, se o meu patrão meter uma bronca eu meto duas. Até que um dia subi para trocar um cheque e ele estava de mau humor, eu também não estava em um dos meus melhores dias, e o nosso encontro foi fatal. A vontade dele prevalecia porque era dono da empresa e gostava de pisar nas pessoas, então quando ele tentou me humilhar a gente se enfrentou, um garoto de 15 anos batendo boca com um homem de quase 50. Parecíamos gladiadores divertindo os funcionários que ficavam ouvindo através da porta.


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Rolaram uns “puta que o pariu” pra cá, uns “filho da puta” pra lá, e quando eu já estava cansado de xingar, fui embora. Era quinta-feira de manhã quando aconteceu o bate-boca, e voltei ao trabalho somente no sábado, só pra pegar minhas coisas, mas o patrão já estava calmo e queria que eu continuasse na empresa. Ele ainda elogiou meu gênio forte, mas eu não quis ficar. Sabia que ali tinha acabado meu respeito por ele e não via como crescer profissionalmente naquele lugar. Apesar das alternativas que eu tive para ganhar dinheiro, e de ter conseguido emprego logo na primeira tentativa, essa não é a realidade da juventude das periferias do Rio de Janeiro, e quem sabe de todo o Brasil. Paula Martins Salles comenta em sua monografia “Caminhos de Visibilidade para a Juventude da Periferia da Metrópole do Rio de Janeiro”: Os jovens das camadas populares têm oportunidades bastante limitadas de usufruir dessas características juvenis, não só porque precisam começar a trabalhar e construir família mais cedo, mas porque não têm como usufruir um período longo de despreocupação. [p. 9]

Tempos depois, quando o Movimento Enraizados produziu o documentário “E o meu direito ao emprego”, percebemos que existem diversas juventudes no Brasil, e comparando a juventude pobre, que vive nas periferias das grande metrópoles, com a de classe média, concluímos que os jovens da periferia não têm as mesmas oportunidades de trabalho porque não tiveram a mesma qualidade no ensino. Ainda de acordo com Paula Martins Salles: A juventude é uma construção social historicamente determinada, daí que não se pode pensá-la sem especificar de qual juventude se está falando. As condições sociais, culturais, políticas e econômicas em que se encontram esses jovens são determinantes para se


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entender e definir as experiências juvenis. A situação de desigualdade da sociedade brasileira torna esse recorte ainda mais fundamental. (...) É importante ressaltar que a concepção moderna de juventude (adotada pelo senso comum até os dias de hoje) foi calcada principalmente na experiência dos jovens das classes médias. A esses, foi aberta a possibilidade de se alongar na fase de transição ao mundo do trabalho, visando um maior investimento na sua formação profissional. Isso significou uma ampliação considerável no número de estudantes na sociedade (Corti, 2004). Esse alongamento permitiu a esses jovens um adiamento de todas as marcas de entrada na vida adulta: trabalho, matrimônio e filhos. Como essa experiência de postergamento da vida adulta não foi e não é igual para todos os jovens torna-se necessário, ao se falar de juventude, definir de que juventude se está falando. [Paula Martins Salles, pags 5 e 9]



O rap: como conheci e por que pratiquei Ser você mesmo em um mundo que está constantemente tentando fazer de você outra coisa é a maior realização. — Ralph Waldo Emerson

Assim que acabamos o primeiro grau, o Luciano Gomes foi morar em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Nós já éramos muito amigos nessa época, todo fim de semana eu ia pra casa dele, e num desses fins de semana ele me mostrou uma fita cassete com uma música que eu achei bem mais maneira do que o funk carioca, uma fita com o rap do Racionais MCs. Creio que esse foi meu primeiro contato com o rap, e gostei na hora. Para mim era tudo muito novo, as músicas duravam muitos minutos, eram interessantes e inteligentes, e havia também histórias que falavam daquilo que eu vivia. Nessa época eu começava a refletir a respeito da minha vida, a respeito da sociedade, começava a analisar o mundo por outro ângulo, e percebi que toda a angústia que eu já sentia era retratada naquelas músicas. A partir daí, eu e o Luciano começamos a escrever algumas letras de rap do hip-hop. Digo assim porque no Rio de Janeiro tínhamos que falar desta forma – rap do hip-hop – senão as pessoas achavam que era funk, e o funk já estava totalmente demonizado pela sociedade carioca. 42


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Nesse mesmo ano as músicas do Gabriel, o Pensador começaram a tocar nas rádios do Rio de Janeiro. Eu gostava da maneira que ele escrevia e comprei o primeiro vinil dele, em que havia as músicas “Tô feliz (matei o presidente)” e “Indecência militar”, que eu gostava muito. Gabriel, o Pensador colaborou para a disseminação do rap e do hip-hop. Muita gente pode até não admitir, mas tem uma galera boa no rap do Rio de Janeiro que começou ouvindo o rap do Gabriel, que é um puta letrista. Com minha saída da Lubi Peças fiquei “quebrado”, tinha que arrumar outro emprego. Eu lembrei que meu primo Acácio, que tem o apelido de Junior Baiano, trabalhava num lava-jato, e fui ver se ele arrumava um trabalho pra mim. Ele disse que um camarada dele tinha um lavajato no Carmari, um bairro que apesar de ser na cidade de Nova Iguaçu era muito distante de onde eu morava, e que eu poderia arrumar um trabalho por lá. Me passou o endereço e eu fui pedir emprego. Eu já sabia dirigir e isso facilitou na hora da contratação. Chegando ao lavajato fiquei surpreso porque três caras que moravam na minha rua já trabalhavam lá, falei com o dono e comecei no mesmo dia. O salário era R$15,00 por semana. Não tinha folga, não tinha dinheiro de passagem, não tinha dinheiro pra comprar almoço, e o salário mínimo na época era R$64,79. Mas eu estava feliz de estar trabalhando lá, era o meu dinheiro, conseguido, literalmente, com o meu suor. Com o passar do tempo eu comecei a rezar pra chover, pois quando chovia a gente não trabalhava. Todos os funcionários do lava-jato se reuniam, pegávamos uns baldes pra batucar e começávamos a cantar samba, eu sempre infiltrava umas rimas no meio. Mas no outro dia, se fizesse sol, tinha trabalho em triplo.


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Eu passava muito tempo na rua, e não a achava perigosa. Frequentemente via corpos nas esquinas, muitas vezes de conhecidos e até mesmo de amigos. Era costume os pais levarem as crianças para verem os mortos. Minha mãe nunca me levou, ela morria de medo. Quando as pessoas não morriam assassinadas, eram atropeladas na Dutra e a molecada ia ver, esperando o rabecão chegar pra recolher o corpo. A morte estava banalizada na minha área, a vida não tinha valor, e creio que hoje, por conta de muitos fatores, é ainda pior. Amigos de infância se mataram. Todo mundo sabe quem são os assassinos, mas ninguém fala nada. A polícia não investiga e fica tudo por isso mesmo. Eu ficava pensando: “Por que a polícia não investiga as mortes que acontecem nas periferias?” Teve um momento, na minha rua, em que todos andavam armados, inclusive eu. Um dia minha mãe tomou um susto. Ela achou que eu estava meio estranho, entrava e saía muitas vezes do quarto. Ela esperou eu sair e abriu a porta do meu guarda-roupas, foi mexer nos meus livros e caiu um revólver calibre 38 no seu pé. Nunca vi minha coroa chorar tanto. A arma era do meu tio, disse que ele tinha dado pra eu guardar. Ela acreditou na minha versão, porém ficou com um ódio mortal do meu tio. Como eu tinha o costume de andar com os caras mais velhos, às vezes ouvia o que não devia. Sabia das pessoas que iriam morrer, dos assaltos que os caras iriam fazer, mas eu estava ali no meio e eles não se importavam em falar desses asssuntos perto de mim, ficavam tranquilos porque sabiam que eu era confiável. Acho que na época eu tinha ainda 15 anos. E de uma maneira ou


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de outra eles eram minha referência, eu achava maneiro o que eles faziam, apesar de não fazer igual. E isso é o que acontece com os moleques da minha área até hoje, eles acham que vão ter mais respeito dos outros se eles andarem armados, se roubarem ou praticarem outro delito qualquer. Minha sorte era que a palavra da minha mãe era sobreposta a qualquer outra, então valiam sempre os valores que ela me passava. Hoje em dia os valores estão perdidos, e se ninguém intervir para mudar essa realidade, muito garoto ainda vai morrer, porque em Morro Agudo não tem tráfico de drogas igual ao centro do Rio de Janeiro, onde os bandidos passeiam de fuzil na rua. Em Morro Agudo é grupo de extermíno, se as pessoas fumam maconha, cheiram, brigam em baile e roubam, não tem perdão, é morte. Um dia estava saindo de casa, acho que ia pra escola, e dezenas de carros de polícia estavam parados na minha rua, procurando uma galera da área que dias antes tinha roubado um carro-forte. O pessoal do bairro fazia piada dizendo que se alguém chegasse na 56ªdelegacia, Morro Agudo, e dissesse que morava na minha rua, a Turíbio da Silva, ficava preso. Os policiais diziam que toda a bandidagem do bairro morava nessa rua. E tem gente que não entende de onde vinham as inspirações para o rap que eu escrevia. Toda essa história contraditória que eu vivia e testemunhava se transformava em arte através do rap. Ao mesmo tempo que eu estava tão próximo, me afastava cada vez mais. Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque estava pleiteando fazer um estágio na Petrobras Distribuidora. O meu tio Humberto trabalha lá e estava me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época ouvia muito rap, GOG, Thaide, DJ Hum e não posso esquecer do Consciência X Atual. Tudo era na base da fita cassete.


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Lembro que fui numa excursão pra Lambari, em Minas Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá, me emprestou uma fita do CXA (Consciência X Atual). Eu trouxe pro Rio e mostrei pro Luciano, que na época já era o meu irmão, e a partir de então começamos a ouvir somente CXA. Desde 1992 já existia a organização ATCON no Rio de Janeiro, e Gabriel, o Pensador, Def Yuri, TR, Big Richard, entre outros, já estavam no cenário, pensando e discutindo o rap carioca. Mas eu e meu irmão estávamos iniciando no processo sem ter noção da importância que tinha o movimento hip-hop pra essa galera. Hoje tenho orgulho de dizer que todos esses que citei, com exceção do Gabriel e do DJ Hum, são meus amigos, e que isso é uma honra pra mim. O meu irmão conhecia e gostava de rap bem mais do que eu, e ele sempre tinha as novidades. Mas é importante deixar claro que a gente não tinha noção do que realmente era o hip-hop, nem mesmo sabíamos que existiam os famosos quatro elementos: rap, break, DJ e grafite. A gente gostava mesmo de rap, de ouvir e escrever algumas coisas, sempre protestos, seguindo a linha dos grupos que já conhecíamos.


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Cabeça vazia: oficina do diabo O Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los. — Sigmund Freud

O estágio na Petrobras não “virava”, ou seja, não acontecia, e por isso eu tinha que arrumar outra parada pra fazer. Foi então que o Serginho me chamou para trabalhar com ele numa obra, eu seria ajudante de pedreiro. Nunca tinha preparado uma massa em toda a minha vida, mas como eu estava precisando de grana, encarei na boa. O Serginho é mais um dos meus amigos que entrou para a Polícia Militar. Em julho de 1995 comecei a estagiar na Petrobras. Eu pegava o trem em Morro Agudo, descia em São Cristóvão e de lá ia andando. Levava cerca de uma hora até chegar no prédio da BR, como o pessoal chamava. Recebia um salário legal, ainda tinha vale-transporte, ticket refeição e quase sempre vinha um dinheiro a mais no pagamento. Foi nessa época que comprei meu primeiro computador. Era um 486DX4-100, top de linha, os famosos Pentium nem existiam. Fui aclamado por meus amigos que já tinham computador, agora eu estava no bonde dos caras que tinham computador, e não rolava inveja, eles sabiam que eu merecia ter minha própria máquina, que era um sonho e não um capricho, tanto que fiquei usando

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o mesmo computador até 2002. Foi nesse computador que produzi muitos beats pra mim, para o Léo da XIII, para o Ultimato à Salvação, e muitos anos depois nele fiz também o Portal Enraizados e outros trabalhos. Nesse ano o Netinho trabalhava no centro do Rio de Janeiro, nós vínhamos juntos de trem, da Central para Morro Agudo, nos divertindo na viagem. Ele vinha na porta, eu na parte de dentro, tinha uma preocupação porque dois amigos da minha rua já caíram do trem, os caras iam em cima porque o trem vivia lotado. No ano seguinte saí da Petrobras e fiquei novamente desempregado. Estava com 17 anos e provavelmente não arrumaria emprego por causa do quartel, então fiquei só estudando e fazendo trabalhos de informática em casa. O tempo livre para esses jovens está relacionado ao desemprego e à falta de oportunidades, portanto suas consequências são bastante diferentes do tempo livre dos jovens mais abastados. [Paula Martins Salles, pag 9]

Eu fiz tanta merda esse ano que quase fui preso duas vezes. A primeira foi porque os moleques da minha rua andavam armados e um dia bateram de frente com o carro da polícia. Eles saíram correndo, a polícia atrás deles, e no desespero e sem ter onde se esconder, entraram numa casa. A polícia ficou com medo de entrar e os moleques mandarem bala, então a tia de um deles saiu chorando no portão e disse que a arma era minha. Os policiais foram bater na minha casa, meus pais estavam trabalhando, eu estava em casa, mas não abri a porta porque sabia que eles não poderiam invadir. A rua estava cheia de gente. Eles foram embora, mas as fofoqueiras esperaram no ponto de ônibus a minha mãe chegar do trabalho e disseram que a polícia estava me


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procurando porque eu havia roubado o Ciep. Nem preciso dizer que minha mãe quase morreu do coração. Dessa vez eu nem tive culpa. Mas na semana seguinte falsifiquei umas carteiras de um clube aqui da cidade, o Dallas, porque lá tinha uma piscina enorme e a galera da minha rua queria curtir, mas não tínhamos grana pra entrar. A saída era falsificar as carteiras. Um dos sujeitos que andavam comigo conseguiu uma carteirinha do clube e me deu pra eu reproduzir. Fiz 12 idênticas, mas não deu tempo de fazer os carimbos. Eu disse pra todo mundo não alterar a carteira, mas um dos garotos passou uma canetinha em torno da foto para simular o carimbo. Quando nós chegamos no Dallas quem estava na porta olhando as carteirinhas era o dono do clube e o segurança particular dele, que era policial. Quase todas as carteirinhas passaram, mas na última o cara percebeu que era falsificada, justamente porque a tinta da canetinha manchou. Então sujou pra todo mundo. Eles enquadraram a gente na parede, seguraram nossas carteiras de identidade e chamaram a polícia. O dono do clube perguntou quem tinha feito e respondi dizendo que tinha sido eu. Ele me chamou de estelionatário, disse que minha mãe ia me visitar na cadeia. Lembrei do que havia acontecido na semana anterior e tentei argumentar, mas o cara nem deixava eu abrir a boca. Colocava a pistola 9mm na minha cabeça, perguntava se eu era maluco, se eu sabia quantos anos de cadeia eu iria pegar por isso. Eu, tranquilo, disse: “Nenhum, nós somos todos menores de idade.” Então ele gritou que ia matar todo mundo pra gente deixar de bancar o malandro. Com muita argumentação o cara liberou a gente, com a condição de levarmos a pessoa que deu a primeira carteirinha, pois ela seria expulsa do clube. Deixamos nossas identidades com ele como prova de que voltaríamos com o tal sujeito que


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tinha a original. Assim que saímos do clube chegaram três carros de polícia. A gente estava de bicicleta e corremos muito, meu coração estava a mil por hora. No final tudo deu certo, ninguém foi preso e ninguém morreu. No ano seguinte comecei na Unig, uma universidade particular de Nova Iguaçu. Fiquei por lá uns dois anos, cursava Tecnologia em processamento de dados, mas não conseguia pagar. Minha mãe estava desempregada, eu também não arrumava mais grana, então tava tudo na conta do meu pai, que não conseguiu segurar. Ele até disse pra eu ficar que ele daria um jeito, mas eu não quis, porque passava por constrangimentos em sala de aula. Quem estava devendo a mensalidade não podia ter acesso à nota e era cobrado dentro de sala, na frente de todos, e isso me envergonhava muito, até que abandonei o curso.


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Cap.02

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Cap.02

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A criação do Movimento Enraizados

Dou um destino para minha mente e o inconsciente trabalha em cima do caminho que devo seguir! — Israel Ziller

Era tímido, não gostava de conversar com muita gente, nem de ser o centro das atenções, e se eu pudesse até preferiria passar despercebido, mas sempre gostei de ficar por dentro das coisas, saber de tudo o que acontece, como acontece e por que acontece. Assim que recebi minha carta de alforria do Exército, meu amigo Netinho informou que precisavam de uma pessoa no supermercado em que ele trabalhava. Neguei na hora. Não fazia sentido eu sair da Petrobras Distribuidora e entrar no supermercado Alto da Posse, um supermercado de que até então nunca tinha ouvido falar. Porém a necessidade falou mais alto, e eu aceitei. Comecei a trabalhar no mercado no dia 25 de novembro de 1997. Lembro que pensei em ficar somente uns três meses, até eu me estabilizar, por isso aceitei qualquer setor, e caí no de contas a pagar. Meu sonho sempre foi a área de informática e eu havia prometido para mim mesmo que só trabalharia se fosse nesta área, jamais aceitaria outra proposta. Na verdade, eu queria adquirir experiência na carteira e depois voltar para a universidade.

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Quando me dei conta já estava há um ano no supermercado, não era mais tão ligado aos camaradas do meu bairro e ficava muito na casa do meu irmão, que nessa época morava na Abolição, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi nesse ano que conheci minha primeira namorada, a Shirley, com quem namorei sete meses, o namoro mais longo da minha vida até eu conhecer a Fernanda Rocha, minha atual namorada, com quem estou há mais de dois anos. Nesta época eu só ouvia rap, já tinha muitas fitas cassete, então eu e meu irmão, o Luciano Gomes, conhecemos o Arariboia, um camarada que sabia tudo de rap, pelo menos bem mais do que a gente. Depois de algumas conversas surgiu o Humildes Pensativos, nosso primeiro grupo de rap. Escrevi muitas letras nessa época, inclusive a música “Sacolinha”, que gravei no meu primeiro disco solo, “Rolo compressor”, dez anos depois. O Humildes Pensativos nunca saiu do papel, simplesmente pelo fato de eu não conseguir cantar em público e o meu irmão não conseguir cantar no ritmo. O Arariboia foi preso pouco tempo depois da criação do grupo, o que desandou tudo de vez. Terminei o namoro com a Shirley, me afastei da Abolição e voltei para Morro Agudo. Em 1998, já estava muito envolvido com o rap. Escrevia muitas letras, tinha ido algumas vezes ao show do Racionais MCs (grupo de maior projeção no hip-hop brasileiro, chegaram a vender mais de um milhão de cópias do disco “Sobrevivendo no Inferno”), e também conhecia a música de alguns grupos de rap que não eram tão populares no meio do hip-hop. Sentia a necessidade de aprender mais sobre essa cultura. Algum tempo depois passei um mês em Barra do Piraí, cidade do interior do Rio de Janeiro, porque minha namorada estava grávida. Lá os dias pareciam mais


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longos, eu tive tempo de refletir sobre a minha vida e o que aconteceria dali para frente. A minha responsabilidade aumentaria, e muito, com a chegada da minha primeira filha, a Bia. Lembro que meu cunhado também gostava muito de rap. A gente ficou amigo logo na primeira conversa, ele é um cara gente boa, molecão, leva a vida “na vaselina”. Ele disse que me apresentaria a um outro camarada que também gostava muito de rap, e que inclusive tinha um grupo chamado 2ª Via, o Wilson Neném, um cara negro, magro, que usava dreadlocks e que media mais ou menos 1,75m. Conheci o Neném, como o chamam em Barra do Piraí, numa manhã ensolarada. Ele nos atendeu com cara de quem tinha acabado de acordar. Nesta época ainda não existia o Dudu de Morro Agudo, eu era o Flávio Eduardo ou o Cabeça, apelido que me colocaram na infância. O Neném tinha uma visão ideológica, filosofava o tempo inteiro, às vezes muito sonhador, mas eu precisava dessa carga de positividade para ter a ideia de criar o que mais pra frente seria o Movimento Enraizados. Eu já estava de saco cheio de ficar em Barra do Piraí, não tinha o que fazer na cidade. Passava um tempo na casa do Neném conversando sobre rap, ele me mostrando CDs de rap gringo. Lembro que ele me deu um disco do grupo Fugges, e a partir daí eu virei fã da Lauryn Hill. Ele também gostava muito de Thaíde e DJ Hum. Até hoje aprendo muito com ele, nos damos superbem, apesar de nossas personalidades serem bem diferentes. Alguns dias depois o Neném me apresentou o Juninho, que também tinha dreadlocks. Eles pareciam artistas conceituados, falavam bem e conheciam muito de música, os dois já eram integrantes de bandas, o Neném como DJ e o Juninho cantando. Eu me sentia feliz em estar com esses


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novos amigos, então os convidei para o aniversário da minha namorada. Ela, por sua vez, convidou seus amigos e amigas, mas a galera do rap ficava no lado B (entre eles) da festa, bebendo cerveja e fazendo rimas. Nesse dia, talvez por causa do álcool, eu improvisei muito bem, e improvisar nunca foi meu forte, minha parada era escrever letras de rap. Mas nesse dia o Neném se convenceu de que eu era um bom rimador, e, por causa da minha performance, ele me convidou para integrar o grupo de rap 2ª Via. Quando o convite aconteceu, dentro de um ônibus que seguia do bairro de Vila Helena para o centro de Barra do Piraí, eu não acreditei, principalmente porque o Neném me disse que tinha uns contatos na Sony e estava quase tudo certo para gravarmos um disco. Estava cada vez mais eufórico com o rap e o hip-hop, sons que eu começava a entender o fundamento. Andando pelas ruas do centro de Barra do Piraí passei por uma banca de jornal e comprei uma revista de hip-hop chamada “Som na Caixa”. Comprei também canetas, lápis, borracha e um caderno pra escrever letras de rap, porque a inspiração vinha a toda hora. Quando cheguei em casa comecei a folhear a revista e vi algo interessante: o CD que vinha junto, além dos endereços de militantes do hip-hop. Eu pensei em escrever para todos aqueles endereços, mas não sabia o que dizer. Talvez dizer que eu era um cara gente boa, morador de Morro Agudo, no Rio de Janeiro, e que não entendia de rap, mas que gostaria de receber alguns materiais para estudar sobre essa cultura. Isso seria o mais correto, mas achei que as pessoas não dariam atenção a um cara tão sem história dentro do hip-hop como eu. Então decidi escrever outra história, contando que fazia parte de uma organização de hip-hop. Eu precisava arrumar rápido um nome para a tal organização que estava acabando de criar.


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Pesquisando na internet encontrei uma frase do Tupac: “Quanto mais escura é a pele, mais profundas são as raízes.” Achei a frase muito boa, forte. Lembrei também do Juninho, que sempre falava a palavra enraizado. Era uma espécie de gíria que somente ele usava, não sei bem se isso vem do reggae, mas ele falava essa frase com frequência. Eu não tinha mais dúvidas. Fazia parte do Movimento Enraizados, uma organização com o objetivo de interligar pessoas que praticam hip-hop em todo o Brasil. Lembro que enviei apenas três cartas, uma para o Dimenor (Rodrigo de Oliveira), de São Paulo, outra para o Cassiano Pedra, de João Pessoa, na Paraíba, e por último para o Gil BV, de Teresina, no Piauí. Recebi o retorno do Dimenor e do Cassiano Pedra, que me informaram que enviaram meu endereço para alguns militantes de outros estados do Brasil, e que também gostariam de fazer parte do Movimento Enraizados. Os dois foram os primeiros integrantes da organização que acabava de nascer. Quando recebi as duas primeiras cartas senti uma felicidade impossível de descrever. Foi algo que nunca mais senti na vida. Ser valorizado por um trabalho não tem a ver com ego, mas com autoestima. Passaram-se alguns dias e chegaram dezenas de cartas na minha casa. Eu tentava responder a todas, mas com a falta de tempo era inviável retribuir a enorme quantidade de cartas que chegavam. O custo dos correios estava ficando alto e minha mãe começava a ficar preocupada porque eu não saía mais de casa. Era o tempo todo dedicado ao Movimento Enraizados, lendo e respondendo cartas. As histórias que os militantes relatavam eram impressionantes, as pessoas queriam falar, se mostrar para mundo, mostrar o seu mundo, suas músicas, suas ideias e pinturas, mas não havia um canal para escoar toda


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essa arte, essa gana de comunicação. A propagação de endereços, poesias e desenhos foi devida aos fanzines, que eram febre na época. Existiam diversos títulos, em toda carta que eu recebia via um fanzine, às vezes o mesmo em cartas diferentes. Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais propriamente da aglutinação da última sílaba da palavra magazine (revista) com a sílaba inicial de fanatic. Tratase de uma publicação despretensiosa. Engloba todo o tipo de temas, com especial incidência em histórias em quadrinhos, ficção científica, poesia, música, feminismo, em padrões experimentais. No Brasil o termo fanzine é genérico para toda produção independente. Houve uma distinção entre fanzines (feitos por fãs) e produção independente (produção artística inédita), mas a disseminação do termo fanzine fez com que toda a produção independente no Brasil, antes denominada boletim, fosse denominada fanzine. Fonte: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/fanzine)

Atualmente vários estudos tentam conceituar o Movimento Enraizados, e pode ser que estejam certos por alguns momentos, mas somos um organismo vivo, mutante, assim qualquer definição expira rapidamente.


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Portal Enraizados

Muita gente pequena Em muitos lugares pequenos Fazendo coisas pequenas Mudará a face da Terra — Provérbio Africano

Impulsionado por minha dificuldade financeira, resolvi criar uma maneira que evitasse as cartas, foi assim que surgiu a ideia de fazer a versão 1.0 do Portal Enraizados. Por meio das cartas e dos fanzines percebi que meus novos correspondentes tinham necessidade de se comunicar e mostrar sua arte para o mundo. Decidi usar minha experiência com programação para criar uma ferramenta que possibilitasse publicar textos, pinturas e músicas dos novos membros do Movimento Enraizados. A ferramenta ideal seria um site, mas havia um grave problema: eu era formado em uma linguagem de programação que não dava suporte à internet. Teoricamente eu não conseguiria fazer um site. Além disso, a internet não era tão popular em meados de 1999, quando surgiu esta ideia, e talvez o site não tivesse a utilidade que eu esperava. Mesmo com todos os contras, fazer o site era a única solução prática que estava ao alcance naquele momento. Eu já tinha um computador e minha avó havia comprado uma linha telefônica com uma extensão até o meu quarto. A questão da internet estava resolvida, mesmo 68


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sendo uma internet que quando estava veloz chegava a no máximo 46kbps. Coloquei a mão na massa, baixei apostilas da internet e comecei a estudar HTML para poder construir o site. Aprendi também a editar imagens para produzir algumas coisas gráficas, como por exemplo, o logotipo do Movimento Enraizados. Aliás, fazer o logotipo foi uma força-tarefa. Começou com uma vaga ideia que eu tive do que seria o símbolo que representaria a organização. Pedi, então, ajuda para um amigo que trabalhava na mesma empresa que eu, no departamento pessoal, o Luiz Antônio, um camarada que com o passar do tempo se tornou um verdadeiro irmão. Todos os dias a gente parava num bar pra beber umas cervejas e eu ficava o tempo inteiro falando de Movimento Enraizados e hip-hop. Ele, que curtia mais rock, de tanto ficar ouvindo minhas histórias acabou gostando de rap. O Luiz arrumou o desenho que eu comecei a fazer, mas ainda estava muito ruim, longe de ser um logotipo decente. Então liguei para o Neném e pedi ajuda. O Neném, além de rapper, grafiteiro, b. boy e DJ, é ainda um dos melhores desenhistas que eu conheço. Inclusive foi ele quem me ensinou os primeiros passos no Corel Draw e no Photoshop. Já desenhou para marcas como a Redley, a Qix e a Oceano, e hoje ele tem sua própria marca de roupas, a Jah Bless. Ele topou fazer o logo, então enviei pelo correio o esboço que eu e o Luiz criamos. Hoje a gente manda tudo por e-mail e usa algum servidor para baixar depois, mas antigamente era mais difícil. A saída era recorrer aos correios e esperar um tempo até a pessoa receber, fazer o trabalho e enviar de volta. Uma semana depois ficou pronto o logotipo que ficou famoso no Brasil inteiro, totalmente diferente do esboço que enviamos.


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Assim como surgiram conceitos a respeito do nome Enraizados e da forma de trabalho da organização, não foi diferente com o logotipo. Ele tem alma e conceitos próprios, não é apenas um desenho, representa as etnias, o modo como trabalhamos nas comunidades: não vejo, não escuto e não falo. Teoricamente. Em menos de um mês eu já sabia bastante de HTML, e coloquei o primeiro site do Movimento Enraizados no ar, com hospedagem e endereço gratuitos. (www.enraizados.cjb.net). Enviei cartas para todos que se corresponderam comigo e pedi que passassem o endereço do site para outras pessoas, e que também me enviassem textos por meio de cartas ou e-mail para que eu pudesse publicar no site. Como não havia tanta gente com acesso a internet, as cartas continuaram a chegar aos montes, mas eu tinha a vantagem de não ter obrigação de responder a todas, somente publicar no site. O Portal Enraizados foi o primeiro projeto do Movimento Enraizados e está no ar até hoje, no endereço www. enraizados.com.br. Ficava feliz quando comparava as estatísticas iniciais do site, em que havia somente 30 acessos por mês, com as dos meses posteriores, e a cada novo acesso eu vibrava e tentava descobrir quem era. Percebia que a organização dava certo, que as pessoas estavam aderindo e que realmente o Movimento Enraizados se tornava aquilo que eu havia profetizado nas primeiras cartas. Trabalhar para o desenvolvimento do Movimento Enraizados era parte da minha rotina, e a cada dia eu induzia mais pessoas a fazer o mesmo. Meus amigos contribuíam com a organização sem saber ao certo o que era. Alguns achavam que era um hobby, e que mais cedo ou mais tarde eu desistiria da brincadeira.



Iniciando projetos

Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito. — Martin Luther King

O Movimento Enraizados se comunicava com São Paulo, Paraíba e Mato Grosso do Sul. No Rio de Janeiro os locais de maior engajamento eram Nova Iguaçu e Barra do Piraí. Cada vez mais pessoas entravam em contato, enviavam músicas e fotografias. As perguntas sobre os projetos que o Movimento Enraizados realizava no Rio de Janeiro eram frequentes nas cartas, assim como os pedidos para que eu enviasse minhas músicas e as músicas dos outros integrantes. Como o grupo de rap 2ª Via não saía das conversas de fim de semana que aconteciam na casa do Neném, eu decidi gravar meu primeiro rap sozinho. Havia um programa de computador chamado Hip-hop eJay que servia para fazer bases instrumentais de hip-hop. Fiz algumas para gravar uns raps que havia escrito, mas não conhecia um estúdio, e isso era um problema. Trabalhava comigo no supermercado Alto da Posse um senhor evangélico chamado Edson, que era evolvido com música. Ele tinha muitas composições e estava começando a gravar um disco. Perguntei se ele conhecia algum 72


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estúdio onde eu pudesse gravar meus raps, e ele me indicou um em Campo Grande, bairro que fica a quilômetros de distância de onde eu moro, Nova Iguaçu. Mas aceitei ir nesse estúdio, até porque eu não conhecia outro. O senhor Edson se encarregou de marcar a hora para mim no estúdio, me disse o preço, eu juntei o dinheiro e fui com minhas letras debaixo do braço. Quando estava chegando, lembrei que uma das músicas era cheia de palavrões e se o dono do estúdio fosse evangélico poderia haver um constrangimento de ambas as partes, mas graças a Deus não foi o que aconteceu. O cara era super gente boa e até gostou das minhas músicas, que eram quilométricas. Tinha uma com quase dez minutos, seguia o padrão dos raps da época. As músicas que gravei naquela ocasião foram: “Dudu”, “Negra difícil” e “Por quê?”. Gravei as três músicas em duas horas, pois não tinha dinheiro para ficar mais tempo no estúdio, e nem experiência para saber se aquilo estava certo ou errado. Eu queria pegar a fita K7 gravada com minhas três músicas, colocar no walkman e ir para casa ouvindo-as repetidamente nas quase duas horas de viagem de volta. Quando cheguei em casa coloquei o som para minha família ouvir. Era tudo muito diferente para eles, ninguém sabia ao certo o que falar. Na música “Dudu” eu cantava em primeira pessoa. Era um bandido que no final da música morria por causa das drogas, do crime na sua comunidade e da traição de um amigo. Hoje, quando paro pra refletir, percebo que essa letra era o reflexo da minha infância. Essa música pode ser ouvida em sua versão original no site da gravadora Trama (http://tramavirtual. uol.com.br/dudu_de_morro_agudo). Rapidamente eu dei um jeito de copiar algumas fitas e distribuir entre os amigos, principalmente os que trabalhavam comigo e não acreditavam que era eu mesmo


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quem estava cantando. Cada vez mais empolgado com as músicas, decidi enviar algumas fitas para rappers de outros estados, e estes, por sua vez, me enviavam as suas para que eu e todos do Enraizados ouvíssemos. Alguns meses depois fui a Barra do Piraí e contei para o Neném que o Movimento Enraizados estava crescendo, e que já existiam algumas pessoas de outros estados fazendo parte dele. Neném não entendia como isso tudo estava acontecendo tão rápido, mas mesmo assim ficou orgulhoso. Mostrei, então, as músicas que havia gravado. Eu sabia que nosso estilo de cantar rap era diferente, mas mesmo assim senti que ele se surpreendeu com o que eu havia feito em tão pouco tempo. Naquele momento devolvi a carga de positividade que ele me deu quando o conheci. Toda vez que ele criava algo e me mostrava, parecia que eu tomava uma injeção de ânimo e começava a criar também, até mesmo para além da música. Eu estudava para aperfeiçoar o site, por exemplo, entre outras atividades. Em nossa primeira conversa institucional gravamos raps num estúdio em Barra do Piraí, muito mais bonito e equipado do que aquele em Campo Grande, onde eu havia gravado as primeiras músicas. Gravei com o Juninho um rap chamado “O ponto”. O Neném também utilizou o programa Hip-hop eJay para produzir as bases instrumentais. Esse era o único que a gente conhecia e sabia manusear. Quando voltei para Nova Iguaçu enviei as minhas músicas e as do Neném para a galera dos outros estados. Nessa época não dava para colocar as músicas no site porque nas hospedagens gratuitas não havia espaço suficiente. Muita gente gostou das nossas músicas. Eu me empolguei e divulguei que o Movimento Enraizados planejava fazer uma coletânea nacional de rap, e que os interessados deveriam enviar suas músicas por correio ou e-mail.


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A notícia se alastrou como um rastro de pólvora. Fanzines e rádios comunitárias divulgavam a coletânea, e eu fuzilava e-mails pelo site. Essa foi a primeira vez que o coletivo, pessoas com que eu nunca havia conversado pessoalmente, trabalhava a comunicação alternativa – fanzines, rádios comunitárias e internet – para propagar um projeto do Movimento Enraizados. Quase o Brasil inteiro sabia da coletânea que faríamos, menos o Rio de Janeiro, por isso decidi procurar alguns grupos de rap da minha cidade. Lembrei que quando vinha de ônibus do centro de Nova Iguaçu para Morro Agudo, via a movimentação de uma galera que aparentemente era do hip-hop num lugar chamado MAB (Federação das Associações de Bairro de Nova Iguaçu). Um dia, quando saímos do trabalho, por volta das 18h, chamei o Netinho para me acompanhar até o local e verificar se aquelas pessoas eram mesmo do hip-hop, e se eles queriam participar da coletânea. O Neto já estava totalmente envolvido no processo, participando lado a lado. Chegando lá falei com um rapaz que estava em um quarto mexendo na aparelhagem de som. Conversamos através da grade da janela. Ele estava muito tenso porque dias antes roubaram todo o equipamento de sua organização, a M2HBF (Movimento Hip-Hop da Baixada Fluminense). Apresentei-me como Dudu e disse que fazia parte do Movimento Enraizados, uma organização de hip-hop de Morro Agudo. Para minha surpresa ele ficou nervoso e disse que não existia organização de hip-hop em Morro Agudo, a única organização de hip-hop que existia na cidade de Nova Iguaçu era a dele, a M2HBF. Mesmo o achando estúpido e mal-educado, tive que concordar com o fato. O Movimento Enraizados era uma organização mais virtual do que presencial, e até então eu não


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conhecia qualquer integrante do hip-hop em Nova Iguaçu. Aquele era o meu primeiro contato, e não estava sendo muito bom. Todos os integrantes do Enraizados eram de fora do estado do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu a minha rapaziada nem sabia o que era hip-hop. O rapaz se apresentou como B. Boy Gero, nos mostrou as instalações do MAB e disse que fazia eventos ali dentro, mas não tinha dinheiro nem para comprar papel higiênico. Sugeri fazer alguns eventos de hip-hop e cobrar o valor simbólico de R$1,00 de entrada, somente para comprar os produtos de limpeza, que eram uma necessidade. Na época eu procurava eventos de hip-hop como um louco, e se eu pudesse curtir um na cidade certamente pagaria R$1,00. Outras pessoas também, só era necessário encontrá-las. Ele discordou firmemente de mim e disse que não cobraria evento ali de maneira alguma. Realmente o hip-hop tinha dessas coisas, e acho que ainda tem. Você investe do seu bolso, não tem retorno e acha normal. Eu mesmo fiz isso várias vezes, a diferença é que não reclamava. Durante a conversa o B. Boy Gero me apresentou outro camarada que também era MC, a quem tempos depois eu seria apresentado novamente, o SDL, que hoje atende pelo pseudônimo Átomo. Ele era integrante do grupo Ultimato à Salvação, hoje apenas U-SAL, junto com sua esposa, Lisa Castro. Eu e B. Boy Gero não chegamos a um acordo. Já na primeira conversa pude perceber que a gente não tinha muito em comum. Continuei, assim, minha procura por outros grupos de rap da cidade. Apesar de respeitar o trabalho e a história dele dentro do hip-hop na Baixada Fluminense, essa foi a primeira e a última vez que a gente conversou por mais de dez minutos.


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Recebi cartas de muitas pessoas que queriam participar do CD. Naquela época era muito difícil gravar, mas mesmo assim chegaram músicas de oito grupos de rap, de seis estados diferentes (PB, SP, MS, TO, RJ e SC). No começo de 2001 instalei um gravador de CD no computador para gravar a coletânea. Comprei os CDs virgens, fiz a arte-final das capas e comecei o processo de gravação dos CDs. Eu não tinha conhecimento de mixagem e masterização. Do jeito que as músicas chegavam à minha mão elas entravam no CD. A coletânea tinha três objetivos: 1) Divulgar os grupos de rap. Numa coletânea de oito grupos de rap, se um divulgasse o CD na sua cidade, divulgaria a música dos outros sete grupos em lugares a que eles, teoricamente, não teriam acesso. Era um trabalho para ser executado coletivamente, pois quanto mais empenho houvesse mais retorno de divulgação nós teríamos. 2) Gerar renda. O projeto do CD era livre, desde que mantivesse sua forma original, isto é, as músicas na ordem e a capa. Cada grupo, ou qualquer pessoa, poderia vender o CD para gerar renda e, voltando ao objetivo número um, divulgar ainda mais os grupos. Quanto mais gente envolvida no processo de venda, mais longe as músicas chegariam. 3) Propagar as ideias do Movimento Enraizados. Como a ideia inicial do Movimento Enraizados era fazer as pessoas interagirem, esse projeto cairia como uma luva. Dezenas ou centenas de pessoas de várias cidades do Brasil, trabalhando coletivamente por um objetivo, sem gastar grana. Pelo contrário, ganhando grana.

Eu gravava dez CDs por dia e enviava para um dos grupos participantes. Esse, por sua vez, deveria vender os CDs, fazer mais cópias no seu estado e divulgar os outros grupos. Era esse o combinado. O valor dos CDs ficou muito


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alto para eu bancar sozinho. Para cortar custos parei de fazer as capas na gráfica. A ideia era fazer fotocópias em preto e branco, mas chegou num ponto que até a cópia saía caro. Para piorar ainda mais a situação o meu gravador de CD queimou com um mês de uso. Apesar de não haver mais como levar o projeto adiante, a coletânea dava o que falar pelo Brasil afora, as pessoas comentavam que essa era a primeira coletânea nacional de rap. Para o projeto não parar, pedi ajuda aos meus amigos de trabalho, do supermercado Alto da Posse, para produzir mais CDs a um custo mínimo. Na verdade eu só comprava os CDs e tirava cópia das capas na empresa. A gente fazia uma verdadeira operação. Havia apenas uma máquina copiadora no escritório para todos os funcionários usarem. A galera se organizava e cada um tirava dez cópias, para eu não ter problemas depois. Eram uns cinco caras envolvidos no processo para a coletânea continuar sendo reproduzida. Na empresa também havia um gravador de CD, que ficava no servidor. O programador da empresa, responsável pelo servidor, é até hoje meu camarada, Luciano Lyrio. Ele gravava todos os meus CDs na hora do expediente, o que muitas vezes causava lentidão nos terminais. Os funcionários pediam que fosse reiniciado o servidor pelo menos umas 30 vezes por dia, mas ele só reiniciava quando acabava de fazer as cópias. Às vezes os funcionários tinham que esperar vinte minutos até acabar de gravar um único CD, só depois eles podiam trabalhar. Creio que o maior presente que eu ganhei com esse projeto foi presenciar a coletânea sendo negociada durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre. Essa coletânea verdadeiramente cumpriu seu papel. Nos anos seguintes lançamos mais duas coletâneas que fizeram


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muito sucesso. A “Dudu de Morro Agudo apresenta: A Banca”, também nacional, e a “Raiz do hip-hop”, apenas com grupos de Morro Agudo. As coletâneas foram se transformando em marca registrada do Movimento Enraizados, e por meio delas o nome da organização começou a ser citado com frequência nas periferias do Brasil.


Enlaçado pelo Enraizados

Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos. — Martin Luther King

A cada dia que passava o Portal Enraizados se firmava como ponto de encontro virtual dos praticantes do hiphop no Brasil e um eficaz veículo de comunicação. Nesta época, começo de 2001, grande parte dos artistas, militantes e produtores culturais que praticavam o hip-hop faziam seus projetos – CDs, eventos e palestras – com o dinheiro do próprio bolso, isto é, do trabalho formal. E isso não era um investimento, não havia um retorno financeiro, o dinheiro era perdido em sua totalidade pelo simples prazer de exercitar o hip-hop. Com a repercussão da coletânea, muitos convites para participar de eventos começaram a aparecer no Rio de Janeiro. Lembro que foi nessa época que conheci a Veridiana Serpa, da Firma Produções. Ela fazia uns eventos no Rio de Janeiro, na Lapa, e também tinha um site (http://firmaproducoes.com) que divulgava seus trabalhos. Ela me ligou um dia e disse: — Alô, posso falar com o Dudu? — É ele quem está falando. — Oi, aqui é a Veridiana, da Firma Produções. Nós

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vamos fazer um evento na Lapa neste fim de semana e queria saber que se você topa tocar lá. — É evento de quê? De rap? — É, de rap. Um evento beneficente. — Tranquilo, vou ver aqui na agenda e depois te ligo. Qual o seu número?

Eu fiquei apavorado, tinha subido no palco apenas uma vez e estava com o Wilson Neném, em Barra do Piraí. Agora era diferente, eu tinha que fazer um som sozinho, na Lapa. Estava realmente entrando para o cenário. Dias antes do telefonema da Veridiana, eu havia recebido um e-mail de dois caras, Max e Zulu, que trabalhavam no Rio de Janeiro e curtiam hip-hop. Por alguma obra do destino eles encontraram o site do Movimento Enraizados e enviaram um e-mail querendo trocar algumas ideias. Liguei para Veridiana confirmando minha presença e logo depois pros caras, convidando-os para ir ao meu show. No dia marcado eu estava lá, com o CD de base e dois amigos da minha comunidade. E muito medo de cantar. Eu ficava me perguntando: O que eu tô fazendo aqui? Meu telefone tocou, era o Max perguntando onde eu estava. Falei que estava dentro da Fundição Progresso, e então ele conseguiu me encontrar. Estava ele, a noiva e o Zulu. Uma chuva inacreditável caiu, era muita chuva, e o evento começou a esvaziar. Encontrei a Veridiana, que me apresentou seu irmão, Jimmy Luv, que disse gostar do som que eu fazia. Foi o primeiro cara desconhecido a elogiar meu trabalho, o que me deu forças para continuar. A rede do Enraizados começava a crescer no Rio de Janeiro, já havia Wilson Neném, Max, Zulu, Veridiana, Jimmy Luv, e logo depois foram chegando mais pessoas. Todo o trabalho de programação e gerência de conteúdo do Portal Enraizados era feito na minha casa


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e no meu trabalho, assim como as ligações. Por causa da repercussão do Portal Enraizados, muitas pessoas de fora do estado começavam a se comunicar. No Rio de Janeiro essa prática começou por causa do evento Milleniun Rap, que aconteceria no Anhembi, em São Paulo, e estava sendo divulgado no Portal. Eu queria muito ir ao evento, mas não tinha dinheiro. Todo o meu salário estava comprometido com as dívidas de casa. Não tinha esperança de que algo sobrenatural pudesse acontecer naquela altura do campeonato, mas aconteceu. O Max me ligou: — E aê, Dudu, você vai no Millenium Rap em São Paulo? — Não mano, não vou. Tô com uns compromissos aê. — Ah mano, eu e o Zulu vamos, nós vamos de carro e se você quiser pode ir junto com a gente. — Tudo bem, se rolar de eu ir te ligo ainda hoje. Mas caso eu vá, tem vaga para mais um amigo no carro? — Claro que tem, pode chamar mais um irmão que tem vaga. — Então tá tranquilo, vou levantar uma grana aqui porque tô meio quebrado. — Nem esquenta a cabeça Dudu, tu tá comigo, eu banco a tua parte. — Então já é, firmou bonde!

Liguei para o Neném e perguntei se ele gostaria de curtir um evento em São Paulo, expliquei que iríamos de carro com dois camaradas meus, e tudo era de graça. Mas não falei que conheci os caras pela internet. O Neném concordou na hora e então marcamos o encontro na via Dutra, num posto de gasolina próximo de casa. Fomos todos para São Paulo, conversando, cantando e fortalecendo, mesmo que inconscientemente, o Movimento Enraizados. Nos meses que se seguiram mais pessoas se aproximaram do Movimento Enraizados. Eu lidava com isso de forma natural, apresentava uns aos outros. Não tinha


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muito a noção do que estava acontecendo, mas gostava de estar com meus novos amigos, de apresentar pessoas quando eu identificava que tinham algo em comum. Comecei a me surpreender quando passei a receber ligações de outros estados me informando que pessoas do hip-hop estavam chegando ao Rio de Janeiro e se era possível eu dar um suporte, uma atenção para não deixar os caras se envolverem com o crime ou algo parecido. Não conseguia ver perigo na rapaziada do hip-hop, sempre que alguém me procurava pedindo ajuda eu colocava dentro de casa, mesmo quando eram desconhecidos. Essa é uma característica do hip-hop. Muitas vezes viajei pra São Paulo e o tratamento dos caras comigo foi o mesmo. No final de 2001 o hip-hop começava a ser visto pelo poder público como uma ferramenta socioeducativa. Parcerias entre o governo e organizações não governamentais eram frequentes. Foi quando surgiu a parceria entre o AfroReggae, o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Unesco para ministrar oficinas de hip-hop em escolas estaduais situadas em áreas de risco, no estado do Rio de Janeiro. Recebi a proposta para ministrar uma oficina de rap em uma escola no bairro Bom Pastor, na cidade de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Belford Roxo já foi considerada uma das cidades mais violentas do mundo. Como eu não aprendi a cantar rap na escola, achava que seria inviável ter aulas de rap ou de qualquer outro elemento do hip-hop, e fui contrário a isso por muito tempo. Mas por fim aceitei a proposta e fiquei alguns meses na escola. Foi quando conheci o DJ DMC, do grupo Baixada Brothers, o b. boy Luck, do grupo GBCR, e o grafiteiro Chico CH2, da Nação Crew. Assim como eu, todos eram oficineiros. Bom Pastor era um bairro muito violento, dominado pelo Comando Vermelho, mas dias antes de


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começarem as oficinas o morro foi tomado pelo Terceiro Comando. O local era um verdadeiro barril de pólvora. E eu estava lá, querendo fazer o meu papel de militante do hip-hop, mas minha oficina era muito vazia, a molecada queria mesmo era fazer aula de DJ, dançar e grafitar. Certo dia chegaram dois caras, disseram que gostariam de fazer aula de rap e entraram para minha turma. Eles moravam em Brás de Pina, Alfina e Tokaia. Na verdade, o Alfina já era MC e queria conhecer mais pessoas que cantavam rap. Logo entrou pra família Enraizados. Outros Enraizados ministravam oficinas em escolas de São Gonçalo. Lembro que o b. boy Bolinho dava oficina de break. Anos depois estava participando de programas de TV e viajando para países da Europa com uma companhia de dança. As pessoas iam se conhecendo e se enlaçando como peças de um grande quebra-cabeças, que com o passar do tempo dava forma a uma linda paisagem chamada Movimento Enraizados.



A imprensa nos descobriu e descobrimos a imprensa Não há opinião pública, há opinião publicada. — Winston Churchill

No dia 26 de novembro de 2001 aparecemos pela primeira vez num jornal, “O São Gonçalo”, e em 2002 estávamos tocando em rádios comerciais e principalmente rádios comunitárias. O ano de 2002 foi repleto de apresentações artísticas. Nosso nome circulava como nunca no cenário hip-hop brasileiro. Com o dinheiro das minhas férias fiz mais uma coletânea do Movimento Enraizados: “Dudu de Morro Agudo apresenta: A Banca”. A Banca, na nossa gíria, significa os amigos mais próximos. Impulsionado pela venda dos CDs, me reuni com os outros camaradas da organização e propus confeccionarmos algumas blusas do Enraizados. A ideia era criarmos uma sociedade, cada um entraria com uma parte do dinheiro e receberia algumas blusas para vender, uma porcentagem voltaria para a organização, para fazermos mais blusas, e o restante ficava com a galera que investiu. O objetivo era gerar uma renda complementar, pois todos já tinham um trabalho formal, e ainda divulgar a organização. 86


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Deu tudo muito certo, vendíamos muitas blusas e discos, conseguíamos visualizar o Movimento Enraizados nas ruas, principalmente nas noites de sexta-feira na Lapa. Comecei a fazer algumas viagens para São Paulo, ficava hospedado na casa do Rodrigo Oliveira, o Dimenor, primeiro integrante do Movimento Enraizados, e foi nessa época que conheci o maranhense Lamartine Silva, integrante do grupo de rap Clã Nordestino. Fiquei admirado com seu jeito de falar. Ele tinha o dom, ou a prática, da oratória. Logo que nos conhecemos ficamos até de madrugada conversando em uma praça próxima à casa do Dimenor. Bebemos e falamos muito, até que começou a amanhecer e o Lamartine disse que teria que ir embora. Trocamos telefones, ele tinha uma agenda velha, muito velha. Anotou meu número no meio da agenda e eu pensei que ele nunca mais iria achar aquela anotação. Quando menos esperávamos aconteceu o inevitável, a gente começou a aparecer nos veículos de comunicação convencionais. A ONG Viva Rio tinha um site chamado Viva Favela e fizeram uma matéria bem legal conosco. Lembro que eu não tinha muita experiência e eles me ligavam toda hora querendo marcar a entrevista. Só podiam fazer no horário comercial, mas eu não podia porque trabalhava no supermercado. O fotógrafo Walter Mesquita foi até minha casa fazer umas fotos. Na época eu morava num quarto de 9m², com minha esposa e minha filha. Achei que ele não acreditaria na minha história. Como um cara que vende tanto CD e roupa mora num lugar tão pequeno e pobre? Acho que eu também não acreditaria. No final de 2002, exatamente no dia 10 de dezembro de 2002, recebi a ligação do Bruno Porto, do jornal “O Globo”, querendo saber a opinião do Movimento Enraizados sobre o crescimento do hip-hop em 2002. Quando a matéria saiu na revista Megazine, de “O Globo”, vi o nome


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do Movimento Enraizados ao lado de Jorge de Sá (filho da cantora Sandra de Sá) e Elza Cohen (produtora da tradicional festa Zoeira, que acontecia na Lapa), e percebi a importância dessa matéria para a organização, porque muitas pessoas em todo o Rio de Janeiro leriam: O crescimento do hip-hop também pode ser conferido em sites dedicados ao tema, como o do Movimento Enraizados (www.enraizados.com.br). “O hip-hop brasileiro nunca cresceu tanto como em 2002” – diz o rapper Dudu de Morro Agudo, fundador do Movimento Enraizados, da Baixada Fluminense.

Nenhum de nós sabia bem o que estava fazendo, cada um tinha um motivo próprio para estar na organização. Alguns porque gostavam de cantar rap, outros porque queriam estar mais próximos e adoravam a bagunça que rolava todo fim de semana, e ainda outros curtiam filosofar e discutir sobre os mais variados assuntos. Não tínhamos um objetivo claro, éramos jovens que desejavam se divertir e praticar arte. Eu particularmente tinha aversão a tudo o que se inclinasse para política partidária, talvez por isso sempre utilizei o dinheiro das minhas férias ou o décimo terceiro salário para realizar as ações do Movimento Enraizados. Eu era um líder que não sabia muito bem para onde ir, apenas seguia o fluxo e, na maioria das vezes, meu coração. Ainda em 2002 conheci a Giordana Moreira, e ela me chamou para participar de algumas reuniões porque queria fazer, em janeiro de 2003, o Fórum Carioca de Hip-Hop, levantando algumas propostas para o Fórum Social Mundial. Começamos a produzir o Fórum Carioca de Hip-Hop juntos, com reuniões que me tiravam do sério, pois não avançavam. Sempre tinha um que chegava, fazia a reunião regredir e depois ia embora, o que me irritava.


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Eu e a Giordana não concordávamos apenas em um ponto. Ela queria fazer discussões e mais discussões dentro de uma sala de aula e eu queria fazer um evento cultural, com música, dança e grafite. Eu tinha certeza que se chamássemos jovens para discutir dentro de uma sala de aula não daria certo, teria uma grande evasão, mas se mesclássemos com algum divertimento talvez pudesse funcionar. Chegamos num acordo e nos dias 11 e 12 de janeiro de 2003 fizemos o Fórum Carioca de Hip-Hop, no Sesc de Nova Iguaçu e no Colégio Rangel Pestana. O jornal “Inverta” (PC) cobriu o evento e publicou uma matéria falando muito bem. Acho que foi a Giordana quem escreveu a matéria. De qualquer maneira, o evento foi realmente um sucesso, as discussões foram legais e a parte artística ficou ótima. O ano de 2003 marcou a história do Movimento Enraizados. Fizemos um grande esforço para trazer a revista “Rap Brasil”, única do gênero no nosso país, para fazer uma matéria com os grupos de rap do Rio de Janeiro. Conversamos com o Alexandre de Maio e ele disse que seria uma revista especial Rio de Janeiro, com todos os grupos que conseguíssemos encontrar. Foi muito trabalhoso fazer a matéria. Não tínhamos tempo e nem dinheiro para dedicar ao Alexandre. Como todos trabalhavam, havia um revezamento de horários. Eu tentava deixá-lo à vontade, mas não tinha como ficar à vontade com o cara da revista “Rap Brasil”. Ainda mais quando a grana podia acabar a qualquer momento. Fazíamos ligações para marcar com o maior número de grupos possível no mesmo lugar, para não gastarmos com condução. Eu saía todos os dias de Morro Agudo, ia para Vila Valqueire e de lá partia para São João de Meriti, onde ficava o estúdio do DJ Criolo, ponto de encontro para as entrevistas. Não aceitava a ideia de que alguns


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grupos de rap não conseguiam chegar ao local no horário marcado. Se eu conseguia fazer todo esse malabarismo e chegava no horário, por que os outros grupos que muitas vezes moravam próximo não conseguiam? Quando a revista foi publicada o Enraizados fez uma festa. No total 38 grupos de rap foram contemplados: NRC, Fúria Brasileira, Delano, O Bando, P10, Literarua, B32, GBCR, Slow da BF, Força Hip-hop, LC Fidalguia, Nove Balas, Kapella, Kwanza, Poder Consciente, Fator Baixada, Rodrigo RG, Criolo, Tropeço, Aliados 021, Mistura Racial, Reis, Oeste Selvagem, Última Trombeta, Punho Cerrado, Papo Reto, Descendentes da Ralé, Negresoul, Consciência e Verdade, Contenção, Família Tiro Verbal, Re.Fem, Ciência Rimática, Gás-Pa, Don Negroni, B Negão, Inumanos, e nós do Movimento Enraizados. Muitos grupos se desfizeram menos de um ano depois de publicada a revista, mas outros sobrevivem até hoje. Um fato negativo foram os comentários maldosos que fizeram. Mesmo sendo contemplados com a matéria alguns grupos se sentiram prejudicados e tentaram espalhar o boato que a gente fazia panela para favorecer certos grupos. Mas nós nem tínhamos acesso a isso, essa parte era toda com o Alexandre. Ele fazia as perguntas e decidia o tamanho da matéria. No começo isso me deixou chateado, mas depois percebi que à medida que a gente ia crescendo, por mais que tentássemos, agradar a todos seria cada vez mais difícil. A matéria na “Rap Brasil” abriu algumas portas para os que participaram da edição, e nos tornamos mais conhecidos em todo o território nacional. Nessa época a gente só conseguia ver um lado da imprensa, a parte que falava a verdade e nos dava notoriedade. Anos depois, apesar de mantermos bons contatos com alguns jornalistas, passamos por maus momentos quando uma pessoa que


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se dizia amiga publicou inverdades sobre a organização, mostrando o nível do seu profissionalismo. Não tivemos muitos problemas porque o veículo de comunicação que ela trabalhava não atingia um grande número de pessoas, mas mesmo assim esse fato serviu para que nós aprendêssemos a abrir o olho com a imprensa.


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2003: um ano divisor de águas

Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto É realidade. — Raul Seixas

Certamente 2003 foi um ano divisor de águas. Foi nesse ano que conhecemos o escritor Alessandro Buzo, bem no comecinho da carreira, e conheci também um cara superarticulado chamado Fábio ACM. DJ, mantinha trabalhos com rádios comunitárias, trabalhava na ONG Cemina e fazia um som com o grupo de rap Poetas de Ébano. Ele nos convidou para participar do projeto “Hiphop na linha de frente contra o tabaco”. Este projeto reunia artistas do hip-hop para uma discussão sobre os riscos do tabaco. Alguns dos participantes acharam um pouco estranho, pois a maioria fumava, mas ficamos observando para ver aonde aquilo ia chegar. A gente assistia a vídeos e ouvia palestras com estatísticas informando a quantidade de pessoas que morrem vítimas do tabaco em todo o mundo. A ideia era refletirmos sobre o assunto, entender como tudo isso funciona e depois escrever e gravar raps alertando sobre os perigos do tabaco.

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A metodologia deste projeto deu muito certo. Prova disso é que surgiram vários outros com propostas parecidas e nós do Movimento Enraizados éramos sempre convidados a participar. Eu participei de um que era sobre sexualidade, a Lisa de outro chamado “Mulheres do hip-hop pelo fim da violência contra a mulher” e por último participei junto com o Léo da XIII do projeto “Homens do hiphop pela não violência contra as mulheres”. Outro fato importante que aconteceu no ano de 2003 foi a visita do Clã Nordestino, Preto Ghóez, Lamartine e Nando, para nos apresentar o MHHOB (Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro). Como eu já conhecia o Lamartine, troquei ideias com os caras. Reuni alguns participantes do Enraizados, e o Preto Ghóez começou a falar. Eu já conhecia alguma coisa do MHHOB, talvez por isso tenha sido o único a questionar, mas o Ghóez sempre tinha um argumento forte para cada questionamento meu. Ninguém do Enraizados falava, só balançavam a cabeça, o Lamartine às vezes tentava mediar a conversa, mas no fim rolou, o Movimento Enraizados estava filiado ao MHHOB. Enquanto o Movimento Enraizados era um grupo totalmente cultural que se espalhava pelo Brasil, o MHHOB era uma organização que discutia políticas públicas para a juventude. Todas as organizações que faziam parte de MHHOB estavam mais maduras do que nós. Eu não me sentia à vontade em ter que me reportar a outra pessoa – ou organização – sobre o que acontecia conosco no Rio de Janeiro. Mas o Preto Ghóez me tranquilizou dizendo que isso não seria necessário. O Enraizados não teria, de maneira alguma, que se moldar ao MHHOB, e sim o MHHOB se adaptar à realidade do Movimento Enraizados.


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As conversas com o MHHOB eram cada vez mais frequentes. Começaram então as viagens para congressos nacionais, mas por dois motivos eu nunca ia. Primeiro, eu trabalhava no supermercado Alto da Posse todos os dias da semana e não poderia faltar; depois, achava um saco essas reuniões, seminários e palestras. Eu recebia convites para ir para Porto Alegre, mas sempre me esquivava e repassava para outro artista do Movimento Enraizados. Por um lado era legal porque a galera começou a andar de avião e a conhecer diferentes estados e culturas, e andar de avião não passava nem em sonho na cabeça da molecada que morava na periferia. Era interessante porque quando eles retornavam das viagens vinham com novas ideias e até mesmo outro vocabulário. Era um costume nos reunirmos sempre que alguém chegava de viagem, a gente não fazia relatórios, como nos dias de hoje. Naquela época os relatórios eram orais, e eu sempre dizia: “Mano, o que fizeram contigo?” Mas era o processo, a galera ia de um jeito e voltava de outro. Conheciam gente nova, as ideias eram mais maduras e interessantes. Como eu costumava dizer, era papo de futuro. Conversava muito por telefone com o Preto Ghóez, pedia e dava conselhos. Ele começava a entender como funcionava o hip-hop no Rio de Janeiro, pelo menos nas partes em que estávamos envolvidos, e eu entendia a importância de se discutir políticas públicas para a juventude. Trabalhava de segunda a sexta, e na própria sexta-feira fazia shows. Às vezes ficava até três dias sem aparecer em casa. Minhas músicas começaram a tocar nas rádios e os convites para as apresentações eram aos montes, mas o dinheiro era sempre zero. Nos eventos eram pagos os técnicos de som, o palco, o som, o frete, mas nunca os artistas. Por causa da repercussão das minhas músicas


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nas rádios e por meu nome carregar o nome do bairro em que moro, os artistas de hip-hop do bairro Morro Agudo começaram a se interessar por mim. Foi nessa época que o Léo, hoje Léo da XIII, veio, por indicação do meu primo Júnior, até minha casa. O Léo da XIII tentou pelo menos três vezes me encontrar, mas nunca conseguia. Até que um dia ele madrugou na porta da minha casa. Quando levantei para ir até a padaria tomei um susto com o garoto sentado na calçada, em frente ao portão. Eu tinha 22 anos e ele apenas uns 13, mas já estava convicto de que queria fazer rap. Quando a gente começou a conversar reparei que ele tinha algum problema, pois quase não falava. Passava boa parte do tempo lá em casa. Eu fazia umas produções de beat e pedia pra ele escrever as letras. Ele chegava à minha casa e ficava sentado olhando eu produzir, ficávamos horas em casa sem trocar uma palavra. De repente ele levantava e ia embora sem se despedir. Com o passar do tempo essas coisas foram mudando, eu dizia pra ele que não precisava falar comigo, mas tinha que ter educação. Na hora de ir embora ao menos deveria acenar quando estivesse no caminho da porta. Quando começou a se comunicar efetivamente comigo descobri que ele era depressivo porque com 10 anos de idade presenciou o irmão dele, de apenas 11, morrer atropelado na via Dutra. A mãe e a irmã diziam que ele não falava muito, era muito reservado, e que depois do hip-hop começou a ficar mais sociável.


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A experiência de mobilizar e entreter

Os loucos abrem caminhos que logo serão seguidos pelos sábios. — Carlo Dossi

O poder de mobilização do Movimento Enraizados era impressionante, as pessoas queriam estar conosco de alguma forma, e ainda hoje é assim. Nossas aparições em jornais e revistas eram cada vez mais frequentes. Gente de outros estados começava a militar pela organização. O Dimenor sempre dava entrevistas falando do movimento. Muitos coletivos de hip-hop nasciam e desapareciam, e nós continuávamos nossa caminhada. Foi nessa época que o Pevirguladez começou a fazer o evento Ressaca Hip-Hop, em Duque de Caxias, e o legal é que ele está até hoje na pista fazendo seus eventos. Ele é professor, canta rap, e agora está envolvido em um espetáculo de teatro e rap. Sempre esteve ao lado do Movimento Enraizados. Quase tudo relacionado ao hiphop no Rio de Janeiro tinha alguém do Enraizados envolvido de alguma maneira. O Léo da XIII me acompanhava em algumas apresentações pelo Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo que ele pegava experiência como rapper, me auxiliava nos shows. Um dia ele questionou por que eu não fazia um evento de hip-hop

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em Morro Agudo. Eu disse que os eventos de hip-hop não costumavam encher, portanto era inviável a gente desperdiçar energia numa atividade que não daria certo. No outro dia eu estava em casa fazendo um som e ele chegou: — Dudu, posso te pedir um favor? — Claro que pode, fala, o que você quer? — Eu tô querendo fazer uma festa de aniversário e convidar algumas pessoas do hip-hop, gostaria que me ajudasse a organizar isso. — Tudo bem, vamos fazer. Só precisamos ver o local, o som e a comida.

A cada semana o Léo da XIII chegava com uma novidade e a festa de aniversário ia tomando uma proporção gigantesca. Sempre que ele chegava na minha casa o papo era esse: — Dudu, o salão de festas que eu estava vendo não vai rolar mais, mas eu já falei com o Jack e ele liberou o espaço do bar para fazermos a festa. — Tu não acha que essa festa tá ficando grande demais? — Não, acho que vai dar tudo certo. Agora você precisa falar com o Luisinho da Cerâmica pra ver se ele arruma o som.

Luisinho da Cerâmica era um candidato a vereador da época. Ele ajudava a molecada a fazer umas atividades no bairro da Cerâmica, mas eu não gostava de pedir absolutamente nada a políticos. Só que a festa do moleque estaria comprometida se não houvesse o som, então liguei para o tal Luisinho. — Alô!!! Luisinho? — Sim, quem tá falando? — Aqui é o Dudu de Morro Agudo! — Dudu de onde?


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— Dudu de Morro Agudo, acho que o Jack falou de mim pra você. É a respeito de uma festa de hip-hop que eu tô querendo fazer no bar dele, e ele disse que você pode ajudar com o som. — Ah! Sim. Lembrei. E quanto é? — Não sei, é o aluguel de um som que já está lá no bar. É um som que fica fixo por lá e ele disse que você já está acostumado a alugar. — Tudo bem, diz pro Jack que está tudo certo e depois eu passo lá pra acertar com ele.

Estava tudo certo, o cara não pediu nada em troca, mas eu queria que ficasse claro que eu não colocaria nenhuma faixa e muito menos falaria o nome dele durante o evento. — Luisinho, tem um problema, meu parceiro. — E qual é o problema? — Esse evento não tem nada a ver com política, não tem como a gente vincular o seu nome ao nosso. — Eu não vejo problema nenhum nisso. Boa sorte com o evento de vocês e se possível vou aparecer por lá para ver a apresentação. — Valeu então, obrigado pela moral.

A festa de aniversário do Léo da XIII tinha se transformado em um evento, e agora teria que haver uma mobilização dos Enraizados para fazer o flyer, divulgar na internet e fazer ligações para convidar a massa do hiphop carioca a comparecer em Morro Agudo, ou melhor, na Cerâmica. Reunimos os grupos de rap de Morro Agudo, Fator Baixada, Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII e Ultimato à Salvação, e decidimos que o nome do evento seria Raiz do Hip-Hop. Por motivos ideológicos, mas também por causa do nome Enraizados. Fiz a arte-final e divulguei na internet, no Portal Enraizados. Passei a arte pros amigos do Alto da Posse e eles copiaram centenas de cartazes. O Átomo, o Léo da XIII, o Kall e eu colamos os cartazes no bairro inteiro. Do meu



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emprego fiz as ligações convidando todos a comparecerem. Fui trocar uma ideia com o Jack pra saber se realmente estava tudo certo. Ele disse que emprestaria o espaço do bar, mas tinha certeza que não daria certo, porque um monte de preto junto só podia dar em confusão, assim como o funk sempre deu. Mostrei para ele o quanto eu fiquei chateado com seu comentário racista e preconceituoso, mas falei que até o fim da noite a gente conversaria novamente, e talvez ele mudasse de opinião. Eu e o Kall chegamos meia hora antes do evento começar. Para minha surpresa chegaram conosco dez carros de polícia e bombeiros, dizendo que haviam recebido uma denúncia anônima delatando venda de drogas durante o evento. Percebi que nosso trabalho estava indo pelo ralo. Não sabia com que cara olharia para meus amigos que viriam de diferentes partes do Rio de Janeiro para curtir um rap e teriam que voltar para casa. O Jack veio saber o que estava acontecendo. Assim que soube da denúncia ligou para um comandante da polícia e outro “peixe grande” dos bombeiros, explicou que era um evento de hip-hop dos garotos do bairro e que ele se responsabilizava por tudo. Passaram-se cinco minutos e os carros da polícia e dos bombeiros dispersaram. As pessoas começavam a chegar ao evento. Era gente de Duque de Caxias, São João de Meriti, Japeri, Bangu, Campo Grande, São Gonçalo, Barra do Piraí, Maricá, Niterói, Madureira, Petrópolis, Jacarepaguá e muitos outros lugares. Alguns não se gostavam, mas estavam ali, juntos, e alguns até voltaram a se falar naquela ocasião. Isso é uma característica do Movimento Enraizados, unir até os que não se gostam.


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Pessoas que nunca estiveram em Morro Agudo conseguiram chegar na Cerâmica, que era bem mais difícil de encontrar. Apesar de o bar do Jack ser no centro do bairro, o acesso era difícil. A galera da Revista Ocas me ligou perguntando como faziam para chegar no evento. O Cacau se comprometeu em fazer a filmagem. Por coincidência naquele dia ele estava na gravação do filme “Um ano e um dia”, que ele dirigia, e levou toda a equipe, inclusive os equipamentos, para ajudar no DVD “Raiz do hip-hop”. Apesar de não lotar como os bailes funk, nosso evento ficou mais cheio do que os eventos de hip-hop que aconteciam no Rio de Janeiro, e foi um sucesso absoluto. O Jack ficou visivelmente emocionado, gritando a cada movimento do b. boy Bolinho, de São Gonçalo, e a cada rima do MC Papo Reto, o apresentador da noite. Sempre que eu apresentava uma nova pessoa que chegava, o Jack pagava uma cerveja. Quando o evento terminou ele me chamou e propôs fazermos outro, mas ele daria uma estrutura melhor. Eu disse que tudo bem, que a gente poderia conversar mais pra frente, mas alguns meses depois ele morreu. Depois do sucesso de Raiz do Hip-Hop, o mito de que evento de hip-hop no Rio de Janeiro não enchia acabou, e começaram a pipocar eventos do Movimento Enraizados em várias partes do Rio de Janeiro, sempre com as mesmas características. Saindo do padrão dos acontecimentos de hip-hop tradicionais começamos a fazer eventos que uniam o hiphop e o futebol, chamados de Boladão, numa alusão à fisionomia carrancuda que os rappers fazem questão de mostrar, que na gíria carioca é “bolado”. A gente ia às comunidades e jogava uma partida de futebol com os moradores. Sempre acontecia um bate-papo em que as pessoas se integravam e ficavam sabendo o que os outros faziam. O Boladão virou moda no Rio de


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Janeiro e em pouco tempo as pessoas nos procuravam comunicando que gostariam de fazer uma edição do Boladão em sua comunidade. Os moradores se articulavam para conseguir um campo de várzea e uma churrasqueira, nós do Enraizados convocávamos militantes, amigos e informávamos o local. No dia todo mundo levava um pouco de dinheiro e o evento acontecia o dia inteiro.



O fim do começo...

Quem anda com sábios, sábio será. — Salomão

Depois de me esquivar de muitas viagens, resolvi viajar para alguns estados. Eu estava muito envolvido com o MHHOB (Movimento Hip-hop Organizado Brasileiro), mi­ nha experiência com programação web me permitiu ocupar o cargo de gerente de comunicação do movimento, por isso falava diversas vezes por dia com o Preto Ghóez. E o Movimento Enraizados começava a ter um rumo mais sério. Em junho de 2004 aconteceu em Porto Alegre o 1º Encontro Nacional do MHHOB, em que lideranças de vários estados estiveram presentes: Lamartine Silva, Nando e Ghóez (MA), Edjales Fama (RO), Gil BV (Piauí), Fabiana Menini, Saroba e Amarelo (RS), Mano Brown (SP) e outros. A maneira como o MHHOB trabalhava e se articulava para conseguir fazer suas reuniões com as lideranças nacionais me surpreendia. Para o Enraizados fazer as brincadeiras na Baixada Fluminense era um grande sacrifício. Mas fomos aprendendo o caminho das pedras a cada minuto, e sempre buscávamos aprender mais. O escritor Alessandro Buzo, que tinha uma ligação forte com o Movimento Enraizados, nos convidou para o lançamento do seu livro “Suburbano convicto”, em São Paulo. 110


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Por muito tempo ele foi um dos maiores colaboradores do Portal Enraizados, e até hoje mantém uma coluna quinzenal. Por escrever e participar tanto, recebia os méritos de estar com o nome sempre em evidência no Portal. Em setembro de 2004, o jornalista André Caramante escreveu uma matéria com o Alessandro para a revista do jornal “Agora”. Ele apareceu com a blusa do Enraizados, o que fez crescer o nosso nome no estado de São Paulo. Com isso percebi que ele não estava brincando na organização, ali era fechamento pra qualquer parada. Eu tinha a missão de atualizar diariamente o Portal Enraizados, que sempre foi a porta da organização para o mundo. Além de colocar as notícias, ainda deveria estar por dentro das novidades em linguagem de programação para dar sempre um upgrade no site. Baixei muitas apostilas de informática, como a de ASP (Active Serve Pages), uma linguagem de programação proprietária, e pedi ajuda ao analista de sistemas da empresa em que trabalhava, o Jorge, que sempre foi um cara muito gente boa, uma das pessoas mais prestativas que já conheci na vida. O Jorge me passou mais algumas apostilas, mas disse que não sabia muito de programação web, o negócio dele era Cobol. Como ele ajudava a todos o tempo inteiro, eu passava muito tempo no CPD (Centro de Processamento de Dados) trocando ideia com ele e com o meu camarada Luciano Lyrio, que sempre permitiam que eu ficasse nos computadores da empresa programando e testando novas versões do Portal Enraizados. Eu estudava de tudo para colocar o Portal Enraizados entre os portais de hip-hop mais bonitos e acessados do Brasil. Programação, design, marketing e técnicas de redação. Outros integrantes do Enraizados faziam música o tempo inteiro, alguns eram desenhistas e colaboravam com seu trabalho, a gente ia vivendo como dava.


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O Lamartine me ligava com frequência, a gente conversava e ele me passava responsabilidades. Dizia que o Movimento Enraizados era o nome do MHHOB no Rio de Janeiro, e eu deveria assumir isso. Eu pensava a respeito e achava que não poderia ser tão ruim, e a cada conversa com o Lamartine ficava cada vez mais envolvido. Além das atribuições que eu já tinha – pai, marido, MC, programador e produtor – era necessário ainda aprender a fazer projeto, pois descobri que não sabia. Executava minhas ideias com maestria, mas não conseguia enquadrá-las em editais, por exemplo. A Fabiana Menini, do Instituto Trocando Ideia, de Porto Alegre, estava muito próxima do Ghóez, acho que foi ele quem nos apresentou. Ele usava muito o telefone dela e por isso eu ligava pra Fabiana com frequência, tentando falar com Ghóez. A gente se falava tantas vezes por dia que eu sabia que ficaríamos amigos. A Fabiana fez algo por nós, e por mim particularmente, que jamais esquecerei. Um dia perguntei se ela podia me ajudar a fazer um projeto, eu nunca tinha visto um pronto e não conseguia aprender pelas apostilas “Faça você mesmo”. Ela me mandou por e-mail um projeto do Trocando Ideia e um material com endereço, e-mail e telefone de centenas de instituições, do mundo inteiro, que apoiavam e patrocinavam projetos iguais ao nosso. Lembro que ela me disse para não disponibilizar o material para qualquer pessoa, pois aquilo era trabalho de uma vida inteira. Fiquei feliz pela confiança dela, nós ainda nem nos conhecíamos pessoalmente. Eu tinha certeza que o MHHOB daria certo. Muitas pessoas inteligentes estavam comprometidas, era a prática da revolução que os MCs pregavam em seus raps. O Ghóez era o tipo de liderança que a gente não vê nascer todos os dias e ele estava do nosso lado, ou nós do lado


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dele, prontos para mudar a estrutura de tudo. Em uma de nossas conversas o Ghóez me fez entender a importância em estarmos juntos, mas não era eu e ele, e sim todos os pretos, pobres, nordestinos, todas as pessoas que eram discriminadas de uma maneira ou de outra. Ele dizia: — Dudu, a gente precisa criar e cuidar das nossas próprias atividades e empreendimentos, da nossa própria gente e do nosso dinheiro. — Eu sei disso. (respondia positivamente, mas não fazia ideia de como isso poderia acontecer na prática.) — Então a gente tem que conversar com um por um, com as lideranças. — É, mas às vezes as lideranças estão muito ocupadas cuidando das suas mulheres e filhos, deixam a causa em stand-by. E a gente não pode nem mesmo criticar os caras, porque a gente faz o mesmo quando as coisas apertam em casa. — Eu sei, mas não é disso que eu estou falando. — E tem mais!

Interrompi o Ghóez e continuei falando de modo eufórico. — Em minha pouca experiência de vida já percebi que onde tem dinheiro tem traição, tem tumulto, tem guerra de egos. Onde tem liderança tem gente querendo derrubar.

Nessa época eu era bastante cético, meus pensamentos eram sempre radicais, só conseguia expor em reuniões internas do Enraizados, quando havia três ou quatro pessoas. Um dia o Ghóez falou sobre nós do hip-hop termos nossas próprias roupas, nossa grana deveria circular entre a gente. Incentivaríamos campanhas para boicotar as empresas racistas e preconceituosas, pois eles sobrevivem do nosso dinheiro, nós somos a maioria. Ele continuava: — Dudu, imagina tu lançar um disco no Rio de Janeiro hoje e daqui a uma semana o disco já estar vendendo


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em quase todo o Brasil, nas comunidades que tiverem o MHHOB presente? — Seria muito bom, mas é sonho isso, né? — É possível. A gente pode criar um mercado independente, próprio. Não fica pesado pra ninguém e a gente ainda fomenta a produção e o consumo dos nossos produtos. — É verdade!

Eu só concordava. Não conseguia entender como isso poderia funcionar, mas sempre concordava esperando o dia da prática, porque na teoria a gente estava bem avançado. Hoje penso que o Ghóez sempre me enxergou como uma grande liderança ligada à tecnologia e ao empreendedorismo, mas não ao rap propriamente dito. No dia 9 de setembro, em uma de minhas ligações diárias para a Fabiana Menini, veio a triste e dura notícia. Eu disse: — Alô Fabiana!! Cê sabe do Ghóez? — Você não soube, Dudu? — Não, o que houve?

Eu esperava que ela dissesse qualquer coisa, menos que o cara tinha morrido. Isso não era nem a última coisa que passava pela minha cabeça. Definitivamente isso não poderia acontecer. Ela continuou: — Dudu, eu tentei falar com o Ghóez e fiquei sabendo que ele sofreu um acidente de carro, mas não sei de muitos detalhes, tenta ligar para os meninos (do Maranhão) e se souber de alguma notícia me liga pra informar. — Tudo bem, Fabi, vou tentar saber com os caras.

Nessa hora o meu telefone celular começou a tocar, uns querendo saber e outros querendo informar. O Preto Ghóez realmente tinha morrido em um acidente de carro.


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Ousadia: deixe-me ir, preciso andar...

Aos que me perguntam o motivo de minhas viagens, geralmente lhes respondo que sei bem do que fujo, mas não o que busco. — Michel de Montaigne

O ano de 2005 foi um ano de mudanças consideráveis para o Movimento Enraizados, e eu também estava disposto a mudar. O ano começou com muitas propostas, e uma delas foi participar do Trocando Ideia, evento produzido pela Fabiana Menini, em São Luís, no Maranhão. Nós do Enraizados éramos responsáveis pelas artes-finais que sairiam na revista “Rap Brasil”, blusas, cartazes e flyers. Eu nunca fui designer, nem sequer fiz curso de Corel Draw ou Photoshop, apenas aplicava os ensinamentos que o Wilson Neném me passou, com um pouco de criatividade que só pode ser coisa de Deus. Também fomos convidados a finalizar e atualizar o site do Trocando Ideia. Aceitamos, mas eu é que ficaria semanas na frente do computador. Trabalhei pesado e apliquei um pouco daquele conhecimento no nosso Portal. Na verdade não sabia muito bem o que faria, peguei o projeto do site e comecei a analisar os códigos. Como não conseguia começar o trabalho, peguei o recurso que a Fabiana Menini havia me adiantado, cerca de R$800, e comprei um monte de livros para estudar e fazer o site ao mesmo tempo. 116


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Com tudo pronto e aprovado pela diretoria do Trocando Ideia, que era apenas a Fabiana, me prepararei para viajar pela primeira vez para São Luís. Tive que inventar muita história na empresa onde trabalhava, porque eles não me liberariam se eu dissesse a verdade e eu decididamente necessitava fazer aquela viagem. Agora havia chegado a minha vez. No dia de viajar para o Maranhão eu estava muito tenso, era a minha primeira viagem de avião. Não tinha dinheiro nem para ir ao aeroporto. Lembrei que o Marquinhos, irmão do Marcio Periquito, trabalhava em uma agência de locação de automóveis, a Localiza, no aeroporto. Fui à casa dele e toquei o interfone pronto para fazer um pedido quase desesperado: — Marquinhos, posso falar contigo um minuto, meu parceiro? — Quem é? — É o Dudu. — Claro, entra aí. O que tá acontecendo? — Boa noite, meu parceiro. Tô dependendo de sua ajuda e se você não puder me ajudar eu não tenho mais a quem recorrer. — Calma, cara, fala o que você precisa, se eu não puder resolver talvez um outro amigo possa. — Você ainda trabalha no aeroporto? — Sim, trabalho na Localiza. Aquela empresa que aluga carros. — É porque eu tô precisando ir para o aeroporto amanhã de manhã, mas não tenho o dinheiro da passagem e queria ir de carona contigo. — O que tu vai fazer no aeroporto? — Vou viajar pro Maranhão, a trabalho. — Qual o horário do teu voo? — É 10h, mas eu tenho que chegar às 9h. — Dudu, tá tranquilo, meu parceiro, mas só tem um problema.


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— Fala aí, qual o problema? — A gente vai chegar lá às 6h da manhã. — Marquinho, isso não é problema nenhum, o pior seria se eu chegasse atrasado. — Então tá tranquilo, amanhã cedo você brota aqui em casa e a gente vai. — Valeu, camarada, muito obrigado. Tu tá ligado que se precisar de qualquer parada, é nós.

Como ele havia afirmado, chegamos às 6h no aeroporto. Fiquei lá sentado, sem saber o que fazer, até que chegaram meus camaradas Fábio ACM e Def Yuri. Eles me orientaram em todo o processo. Fomos beber cerveja e por pouco não perdemos o voo. Eu achei aquilo muito complicado. Check-in, revista, portões, embarque, e certamente se eles não estivessem ali eu não conseguiria chegar a São Luís sozinho. Para mim tudo era novo. O hotel onde nos hospedamos era lindo, tinha uma piscina gigante e logo depois da piscina era a areia da praia. A maré subia três vezes por dia, em alguns momentos a água do mar quase entrava no hotel, em outros o mar sumia, parecia um deserto, com algumas piscinas naturais. Eu me sentia mal por não poder ficar no sol, na piscina, na praia. Havia dito aos meus superiores no trabalho que estava doente, como poderia voltar queimado de sol? Nessa viagem, além do Fábio ACM e do Def Yuri, estavam Alexandre de Maio (SP), Fabiana Menini (RS), Nando (MA), Lamartine (MA), Edjales Fama (RO), Saroba (RS), Filho (PI), Patrícia (RS), Paulinha (RS), DJ Morcegão (AP), DJ Juarez (MA), e vários outros parceiros que ainda reencontraria no futuro. Durante o Trocando Ideia, houve batalha de break, shows, palestras e reuniões do MHHOB, além de uma apresentação do projeto “Hip-hop na linha de frente contra o tabaco”, mas depois que o Ghóez morreu nada era como antes no MHHOB.


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O ano de 2005 estava apenas começando e eu já tinha envolvido o Movimento Enraizados em muitas parcerias. Já no dia 14 de janeiro outro integrante do Enraizados participaria de um projeto a convite do Fábio ACM, o “Hip-hop mandando fechado em saúde e sexualidade”. O Fábio não queria que eu fosse, porque eu já havia participado do projeto anterior, mas insisti muito e ele acabou liberando. Este projeto foi realizado bem perto da minha casa, em Nova Iguaçu, no bairro Tinguá, eu saía do trabalho e ia direto. Eu deveria chegar na sexta-feira pela manhã, assim como todos os outros participantes, mas estava no trabalho e não poderia inventar outra história uma semana depois da viagem para São Luís, seria muita cara de pau da minha parte. Tinha comprado uma moto YBR, zero quilômetro, e fui com ela para Tinguá. Rolou um bochicho dentro do Movimento Enraizados falando que eu tinha comprado a moto com dinheiro da organização. Mas quem falou isso estava tão distante que não sabia que o Enraizados só me dava lucros de realização pessoal. Sentia-me realizado em fazer as atividades, mas financeiramente era um prejuízo atrás do outro, nem no zero a zero ficava. Tinha comprado a moto em 36 vezes e pagava com o dinheiro da passagem de ônibus. Vendi a moto meses depois porque caí umas três vezes. Chegando na pousada em Tinguá, procurei os amigos. Fiquei impressionado com o lugar, era muito especial, muito verde, pra onde eu olhasse via árvores, grama e cerca. Mais acima, na casa onde comíamos, tinha uma piscina. Eu estava começando a curtir esses encontros, sempre com piscina e comida da melhor qualidade, mas não me encantava muito porque na segunda-feira a vida voltava ao normal, e a realidade era triste.


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Foi nesse dia que conheci o Japão (DF), a gente trocou muita ideia e ficamos amigos na hora. Há tempos ele cantou no grupo do GOG e a história de vida dele dentro do hip-hop é muito importante. Eu não o conhecia, fiquei até envergonhado. Apesar de cantar rap há algum tempo, só conhecia os grupos que ninguém conhecia, os que começaram a cantar comigo e aqueles com quem eu tinha um contato via carta ou e-mail. Mas o Japão também não me conhecia e ficou tudo no zero a zero. Esse projeto foi importante porque eu comecei a pensar sobre a questão de gênero, dar mais valor e atenção para as mulheres. Percebi o quanto eu era homofóbico e o quanto a maioria das pessoas do hip-hop ainda é. Vi que as minas tiravam de letra, mas os caras não. A maioria queria saber se havia algum homossexual dentro do hip-hop, mas só apareceram as minas. Se havia algum homossexual no dia ficou quieto, até mesmo por receio. Não era medo de apanhar, porque acredito que ninguém chegaria a esse ponto, mas a encarnação, as fofocas. Como era costume em outros projetos do Fábio, a gente fez músicas baseadas nos temas propostos. Nenhum cara quis fazer música falando de homossexualidade. Dias depois o Cacau, do grupo Baixada Brothers, me ligou e falou: — Dudu, vamos fazer um som juntos? — Claro, meu parceiro, vamos sim. — Vamos falar de homossexualismo. Vou convidar outros caras pra fazer também. — Por mim tudo bem, cara.

Passaram-se alguns dias e eu não tinha feito a minha parte ainda. O Cacau já estava com a base produzida, me ligou e perguntou:


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— Dudu, a letra da música tá pronta? — Tá sim, Cacau. — É que eu tô escrevendo a parte de todos os participantes pra ver quais se encaixam e colocar em ordem. Tem como você me mandar a sua parte agora? — Claro que tem, mano, me liga daqui a pouco que eu te falo. — Tudo bem, daqui a cinco minutos eu te ligo. — Beleza!

Fiquei doido, peguei papel e caneta e comecei a escrever desesperadamente, mas como iria falar de homossexualismo? Resolvi falar para as pessoas não serem preconceituosas, fiz comparações e alusões. Trinta minutos depois e o Cacau já tinha me ligado umas dez vezes, ele estava me pressionando e eu já estava ficando irritado. Pensei em desistir, mas consegui terminar a letra. Ele anotou tudo e depois me ligou. — Dudu, aqui é o Cacau de novo. — Eu sei, fala tu! — Você já viu a parte do Mad no rap que a gente tá fazendo? — Não! — Esta semana a gente vai gravar e tu vai ver. — Ficou maneira, Cacau? — Sim, ficou muito maneira.

O Mad é um cara que eu conheço há muito tempo, mas não lembro quando foi a primeira vez que a gente trocou ideia. Sempre foi nosso camarada, mas hoje está bem mais próximo do Enraizados. Ele fez parte dos primeiros b. boys e MCs do Rio de Janeiro, cantou funk também. É polêmico e não se preocupa com o que as pessoas falam. O negócio dele é tacar lenha na fogueira. O Mad fez a música em primeira pessoa, dando a entender que era homossexual. Quando eu ouvi, não sabia o que dizer. Achei incrível a atitude e resolvi ligar para ele.


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— E aí, Mad, tudo bem? Aqui é o Dudu. — Fala aí, piranha. — Mano, achei irada a tua letra. — Pô mano, tu gostou mesmo? — Sim, cara, gostei muito. Gostei mais ainda da tua atitude. Expor sua vida assim, falar da sua homossexualidade numa música. — Mas espera aí, Dudu, eu não sou homossexual! — Aaaaaah, é sim! — Não, não sou não.

Então nós começamos a rir muito! E ele indagou: — Você faz música dizendo que dá tiro e nem por isso é bandido. — Mas Mad, uma coisa é você dar tiro e outra é dar a capital da Coreia do Sul.

Nós rimos mais ainda, um provocando o outro. Foi uma letra precursora, que se tornou eterna abordando um assunto jamais falado dentro do hip-hop. E o mais maneiro é que ele teve a iniciativa que nenhum homossexual havia tido, apesar de ele ser heterossexual. Veja a parte do Mad na letra “O julgamento”: A vida passa, o mundo gira e vê que nada mudou E vê que o novo pensamento ainda não se formou A ignorância, o preconceito, sai do escuro e mostra a cara Sua face é violenta e despreparada Que vai no fundo da alma e corta a calma Transforma a luta da igualdade num sonho sem causa O seu olhar de reprovação me traz indignação Torna mais forte a minha posição Vocês não sabem como é difícil enfrentar O julgamento desse seu olhar Quando não quero que me entenda Só quero o seu respeito A opção é minha, eu tenho o meu direito


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Deixe-me em paz, deixe-me sorrir ou chorar Me lambuzar de prazer ou me penalizar A opção é minha, então vamos por parte Respeite a minha individualidade Que movimento é esse que estamos participando Que agride outros seres humanos Que porra de cultura é essa que estamos formando Ao invés de unir estamos segregando

Na semana seguinte, dia 28 de janeiro, eu voava de novo para Porto Alegre, para participar do Fórum Social Mundial e do MHHOB Mundi, evento do MHHOB que fazia parte do calendário do Fórum. Ainda não me sentia seguro em viajar sozinho de avião, por sorte o Def Yuri também estava indo para Porto Alegre, ficaríamos na casa da Fabiana Menini. A viagem foi tranquila. Assim que entrei no portão da escola onde a maioria das pessoas do MHHOB estavam hospedadas topei com o Gilberto Gil, então ministro da Cultura. Na pressa, ele apertou a minha mão e foi embora. A galera olhou a cena e achou que éramos relacionados, e algumas pessoas que nem me conheciam começaram a se chegar. Como participava ativamente do MHHOB, fui convidado para dar palestra sobre Software Livre na mesa “Comunicação popular e cultura hip-hacker” junto com o Cláudio Prado, do Cultura Digital, do Ministério da Cultura, e a Fernanda Weiden, criadora do projeto “Software Livre mulheres”. Apesar de eu não saber absolutamente nada de Software Livre, na época era o cara do MHHOB que mais entendia de tecnologia. Estudei um pouco antes de viajar e preparei um discurso bem básico e superensaiado. Participei de todas as discussões, mas não falava muito, apenas observava, tentando absorver o máximo do que os experientes diziam. Reparei que quando dava uma opinião, uma maioria sempre concordava comigo, e vi que um



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questionamento meu podia mudar algo no rumo da história. Mas não questionava muito porque não queria ser o centro das atenções. Na verdade, minha vontade era passar despercebido. Desejava que ninguém fosse à palestra, ou que ela tivesse sido cancelada por algum motivo. Mas nada disso aconteceu. No dia e na hora marcada, cerca de 20 pessoas sentadas em círculo esperavam as sábias palavras de Dudu de Morro Agudo, Cláudio Prado e Fernanda Weiden. Nunca vou esquecer o que o Cláudio Prado fez por mim aquele dia. Como a Fernanda não apareceu, ele fez questão que eu falasse primeiro, pois certamente se ele começasse não haveria chance de eu falar depois. Meu discurso começou bem técnico, falando das diferenças entre o Windows e o Linux. Depois parti para a discussão ideológica, e de maneira abrupta terminei a longa palestra de dez minutos. Foram os dez minutos mais longos da minha vida. As 20 pessoas me olharam com cara de espanto, sem acreditar que eu realmente tinha terminado a palestra. O Cláudio olhou pra mim e disse a todos os presentes: — A ideia do Software Livre é justamente essa que o Dudu acabou de falar, agora eu vou apenas complementar.

Ele falou durante duas horas, e eu aprendi bastante sobre Software Livre. Depois desse dia estudei muito. Precisaria saber a respeito porque as discussões sobre os Pontos de Cultura estavam aceleradas e eu era a pessoa que participava dos grupos de discussão com o Ministério da Cultura, representando o MHHOB. Nas reuniões do MHHOB durante o V Fórum Social Mundial falava-se muito sobre a Conferência do MHHOB que aconteceria em Teresina, no Piauí, em fevereiro daquele mesmo ano.


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Assim que cheguei ao Rio de Janeiro recebi uma ligação da Fabiana Menini informando que a Conferência seria durante o carnaval, a partir do dia 5 de fevereiro de 2005. Eu tinha acabado de chegar e já me preparava para mais uma viagem, dessa vez para o Piauí. Eu sabia que as discussões teriam dois eixos muito importantes: a aprovação dos Pontos de Cultura e a institucionalização do MHHOB por meio de um braço jurídico chamado Instituto Ruas. Minha participação era muito importante nas duas discussões. Não viajei sozinho, levei mais dois integrantes do Movimento Enraizados, achava importante que essa galera estivesse viajando e conhecendo gente nova. Não poderia imaginar que essa viagem mudaria totalmente o rumo do Movimento Enraizados no Rio de Janeiro. Todos os participantes da Conferência se hospedaram em um hotel perto do Centro de Teresina. Era um hotel duas estrelas, mas era bem confortável e os funcionários muito gentis. Faziam de tudo para nos agradar. Os trabalhos e reuniões aconteciam no Centro de Referência do Hip-Hop, na sede da ONG Questão Ideológica, também filiada ao MHHOB, uma escola abandonada que foi ocupada por eles. Quando cheguei ao Centro de Referência do Hip-Hop e vi de perto a organização daqueles jovens, fiquei deslumbrado. Não somente com o tamanho do local, mas também com os equipamentos que eles tinham ali e mais ainda com a administração. A média de idade era no máximo 25 anos. Eu teria que voltar para o Rio antes de terminar a Conferência. Algumas reuniões foram antecipadas para que eu participasse. Queria mais informações a respeito da ocupação da escola abandonada. Em Morro Agudo havia uma escola estadual abandonada havia mais de quinze anos, onde eu jogava bola quando era criança. O Gil BV, um dos coordenadores da ONG Questão Ideológica e a pessoa com


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que eu mais tinha contato no Piauí, me contou que eles estavam precisando de uma sede e identificaram aquela escola. Organizaram-se e em apenas um dia ocuparam o espaço, colocaram luz, água, pintaram, grafitaram tudo e ainda começaram as oficinas de hip-hop. A imprensa documentou as atividades, e o governo fez um acordo com eles, que permitia que ficassem durante dez anos no local. O Gil BV me disse também que foi muito importante o apoio financeiro da Fase, ONG do Rio de Janeiro, por meio de um fundo de apoio chamado Saap (Serviço de Análise e Apoio a Projetos). Foi o pontapé inicial, quando eles começaram uma nova fase em suas vidas. Uma nova fase também começava na minha vida. Durante as reuniões soube que oito Pontos de Cultura poderiam ser aprovados para o MHHOB, e um deles iria para o Movimento Enraizados. Além disso, as negociações com o Instituto Ruas também avançavam. Fui embora de Teresina feliz, com uma força renovada, louco para chegar ao Rio e compartilhar com os companheiros do Movimento Enraizados as novidades. Em breve teríamos equipamentos novos para fazer nossas próprias produções de música, vídeo, e tudo mais que tivéssemos vontade e criatividade. Depois que fui embora muita coisa ainda aconteceu em Teresina. A Fabiana Menini saiu do MHHOB. Acho que ela não queria, mas talvez tenha sido obrigada a deixar a organização. Isso nunca ficou muito claro, cada um com uma versão diferente da história. Creio que foi uma guerra de egos, mas nada podia ser feito. A Fabiana integrou o MHHOB a convite de Preto Ghóez, e sem ele seria impossível mantê-la na organização. Mas a Fabiana continuou com êxito nos seus projetos na Trocando Ideia, sua organização.


O Neoenraizados

Não estrague aquilo que você tem, desejando o que não tem; lembre-se de que o que você agora possui um dia já esteve entre as coisas com relação às quais você só tinha esperança. — Epicuro

Eu não parava de pensar no Centro de Referência do Hip-Hop. Se aqueles garotos conseguiam ter algo daquele tamanho funcionando em Teresina, por que nós não conseguiríamos fazer o mesmo em Nova Iguaçu? Fui várias vezes ao colégio abandonado pensando o que poderíamos fazer para ocupar o lugar, construir ali a nossa sede e colocar os equipamentos do Ponto de Cultura, que chegariam a qualquer momento. O local é a quadra de um Ciep com mais de 4.000m². O colégio pertence ao Governo do Estado do Rio de Janeiro e está até hoje murado nos quatro lados. Não há como entrar, não existe portão. A diretora da escola, por medo dos adolescentes que usavam a quadra para praticar esportes e usar drogas, pediu que murassem o espaço. Nessa mesma época, o Dinho e o Jack, do grupo de rap Fator Baixada, compraram um transmissor FM e montaram uma rádio comunitária no terraço da casa do Dinho. Eles tinham um programa diário de rap que era sucesso absoluto no bairro. O Kall e o Jack eram os

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apresentadores e o Dinho cuidava da parte técnica. O programa era à noite, das 22h à meia-noite, e todos nós íamos ver a performance deles. Em pouco tempo eles compraram uma linha telefônica e ar-condicionado. Eu achava tudo muito legal, as pessoas ligavam querendo participar e a gente conseguia brindes para eles sortearem. Aos sábados o programa era de tarde. A gente comprava cerveja e ficávamos bebendo enquanto eles trabalhavam. Sempre levávamos algumas pessoas do hip-hop para serem entrevistadas aos sábados. Uma vez convidamos o Alessandro Buzo, que sempre estava no Rio de Janeiro, e fizemos um churrasco na laje do Dinho. Entre uma cerveja e outra o Buzo respondia às perguntas. No dia 31 de março de 2005 saímos tarde da rádio sem saber o que estava acontecendo na cidade de Nova Iguaçu. Somente quando acordei no dia seguinte soube que 29 pessoas foram brutalmente assassinadas em Nova Iguaçu e em Queimados. Meu telefone não parava de tocar, eu não sabia o que fazer. Depois descobrimos que policiais militares foram os responsáveis pelo assassinato das pessoas, e que nenhuma delas tinha passagem pela polícia. Todas as 29 pessoas eram inocentes. Nova Iguaçu entrava para a história de uma forma terrível. No meio desses trágicos acontecimentos chegava a boa notícia de que a data de envio dos kits do Ponto de Cultura estava cada vez mais próxima. Um dia chamei o Léo da XIII e falei: — Léo, tenta reunir as pessoas que praticam hip-hop em Morro Agudo porque eu preciso dar uma informação que vai ser importante pra todo mundo. — Tá bom, que dia eu marco pra eles virem? — Marca no sábado, dia 30 de abril. — Tudo bem, vou falar com o pessoal.


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— Marca no refeitório do Ciep. Eu vou falar com a diretora e é certo de ela liberar. — Tudo bem, deixa comigo.

Falei com a diretora da escola e ela não implicou com a reunião, apenas me disse o que repeti pra todo mundo: não faz barulho, não faz bagunça, e não quebra nada. No dia da reunião fiquei surpreso. Não imaginava que tanta gente praticasse hip-hop em Morro Agudo. Também fiquei feliz com o empenho do Léo da XIII. Cinquenta pessoas apareceram na reunião, que seria a primeira do Movimento Enraizados em Morro Agudo. Há dois anos o Kall, do Fator Baixada, queria me apresentar um cara que morava perto da casa dele. Sempre que a gente se encontrava ele lembrava desse camarada e dizia que eu precisava conhecê-lo, mas eu não dava muita atenção e o Kall nunca trazia o cara. Quando o Léo da XIII convocou o Kall para a reunião, ele viu a oportunidade de levar o tal camarada que ele tanto queria me apresentar. Apesar de estar feliz com a quantidade de pessoas presentes, não demonstrei o sentimento. Apresentei-me, pois alguns não me conheciam. Comecei falando um pouco sobre a trajetória do Movimento Enraizados até aquele momento, e depois da vontade de fixar a sede da organização em Morro Agudo. Mas para isso precisaria da ajuda de todos. Falei das últimas viagens que havia feito e de tudo que tinha visto. Disse que era possível nós, juntos, construirmos algo sólido em Morro Agudo, com base no que a gente sabia fazer de melhor: o hip-hop. Lembro que todos, sem exceção, me olharam como se o que eu falasse naquele momento fosse impossível. Certamente se eu não tivesse visto o Centro de Referência do Hip-Hop, em Teresina, e alguém me contasse que era possível fazer algo parecido, eu encararia a pessoa com


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o mesmo olhar. Mas quando eu comecei a falar do Ponto de Cultura, dos equipamentos que usaríamos gratuitamente, e o que poderíamos fazer com aquilo, todos ficaram animados. Mesmo sem saber o que era o Ponto de Cultura e como isso poderia chegar a Morro Agudo. Por participar das atividades do MHHOB, aprendi a organizar a reunião e a minha palestra. Um dos tópicos era a criação de um zine, um meio de comunicação nosso, criado e alimentado por nós. Fizemos um rápido concurso para saber qual seria o nome do zine, e ganhou “Voz Periférica”, sugerido pelo Short, um grafiteiro que mora no bairro Nova Era e é liderança da Gorgonoyde Crew. Quando acabou a reunião o Kall me apresentou o camarada dele, Luiz Carlos, que era ator e havia gostado da organização. Das 50 pessoas presentes na reunião, 49 faziam parte da cultura hip-hop. Apenas o Luiz Carlos, hoje conhecido como Luiz Carlos Dumontt, era do teatro. Todos foram embora muito animados e comprometidos em lutar comigo por Morro Agudo, aproveitando o que o Movimento Enraizados já havia conseguido e querendo abrir novos horizontes. Mas todos tinham emprego e família, e a evasão foi inevitável. Para ocupar a quadra da escola era necessário fazer tudo como manda o figurino. A realidade em Nova Iguaçu é bem diferente da de Teresina. Se nós ocupássemos a quadra, a vida dos meninos e meninas poderia estar em risco. Em Morro Agudo a polícia ou os bandidos facilmente confundem ocupação com invasão. Sendo assim, dias depois apresentei um documento para a diretora do Ciep, solicitando a quadra. Havia argumentos bem sinceros no ofício que redigi. Ela me deu esperança e pediu que eu entregasse o documento na coordenadoria. Até hoje aguardo um retorno que nunca chegou.


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As atividades artísticas não paravam. Minha casa de quatro cômodos era o nosso home estúdio, o lugar onde produzíamos os beats. O computador ficava no meu quarto e quando a rapaziada chegava minha esposa e minhas filhas tinham que ir para a casa da minha mãe. Um dia o Léo da XIII estava comigo em casa, produzindo beats para o grupo Ultimato à Salvação, quando recebi uma ligação do Luiz Carlos Dumontt. Ele queria trocar algumas ideias, tinha pensado algumas coisas para o movimento. Fiquei um pouco preocupado. Eu sempre tomava as iniciativas dentro da organização e chamava os camaradas para colocar em prática. Esse cara que nem era do hip-hop já estava pensando coisas para o Movimento Enraizados. Esperei ele chegar pra ver o que realmente queria. Quando ele chegou eu e Léo estávamos com um teclado da Cássio muito usado, tentando captar melodias para colocar no beat. O Dumontt olhou aquilo e nem falou o que ele tinha vindo fazer, simplesmente disse: — Vocês estão precisando de um teclado? — Não, não precisamos, não. Esse aqui dá pra usar. — É que eu tenho um teclado lá em casa que não estou usando. — Ah! Se você não está usando então acho que vai servir pra nós, mesmo porque esse aqui não é nosso. — Espera um pouco que eu vou lá buscar. — Tudo bem, a gente espera.

Ele saiu da minha casa e depois de meia hora estava de volta, carregando nos ombros um teclado da Yamaha gigante, supercaro, que eu nem sabia como ligava. O Léo da XIII nem piscava, olhando para o equipamento. Acho que ele pensou: “Se com esse teclado todo ruim a gente faz um som maneiro, imagina com esse jumbo!” Acabamos de usar o teclado e fomos devolver para o Dumontt. Ele disse que o teclado tinha mais utilidade com a gente,


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era uma doação para o Movimento Enraizados. Aceitei na hora. Acho que o Movimento Enraizados, antes deste dia, nunca tinha ganhado nada. Eu e o Dumontt começamos a conversar, ele queria saber mais sobre o Movimento Enraizados, sobre a história da organização, e eu queria saber mais sobre ele. Quem era ele? Expliquei tudo sobre o Movimento Enraizados e disse que era a hora de construir uma história em Morro Agudo. Eu cresci ouvindo que o lugar onde nasci e fui criado é amaldiçoado, que nada de bom sai desse lugar, e isso faz com que as pessoas fiquem com autoestima baixa. Isso mexeu comigo durante muito tempo, mas me fez ter mais força para fincar aqui minhas raízes. Apesar de estar totalmente envolvido com a questão dos Pontos de Cultura do Ministério da Cultura, ainda não me sentia à vontade pra conversar com políticos. Mas já na primeira conversa o Dumontt tentou me mostrar a importância da articulação política. Hoje conversando com os Enraizados, a gente sempre bate nessa tecla: “Se estiver longe da política, será mais fácil os políticos mal intencionados enganarem você e sua comunidade.” Eu e Dumontt conversávamos bastante, mas eu não podia imaginar que nossa amizade fosse durar mais do que as outras. A gente não tinha muito em comum, e até hoje não temos, e parece que esse é o nosso segredo. Não imaginava que aprenderia tanto e ficaria tanto tempo, literalmente, do lado desse cara. Eu nunca fui religioso, mas tenho certeza que algo sobrenatural fez com que eu e Dumontt nos conhecêssemos especificamente naquele momento. Tudo o que a gente passou do momento que nos conhecemos até hoje foi literalmente guiado por Deus.


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Level two

Não há mais que dois tipos de pessoas: as determinadas e as indeterminadas. As primeiras sabem aonde vão chegar; as outras nem sabem onde estão. — Marina Pechlivanis

Depois daquela primeira reunião no Ciep, o Dumontt foi o único que me procurou. Sem contar, claro, os que já estavam enraizados, como o Léo da XIII, o Kall, a Lisa e o Átomo. Eu sabia que não poderia dar muito espaço entre uma reunião e outra. Os garotos não compareceriam. Era união para não evasão. A partir dessa ideia surgiu o evento Encontrão, em que lançaríamos o nosso zine, o “Voz Periférica”. Além disso, era um evento para trocar ideia, conhecer gente nova, trocar CDs e fazer tudo que desse vontade. O objetivo era compartilhar. O Léo da XIII era, como ele mesmo se intitulou, o aproximador. Chamou artistas e militantes para participarem do Encontrão. O primeiro evento aconteceu no dia 28 de julho de 2005, e compareceram aproximadamente 20 pessoas. Pegamos emprestada uma tenda de plástico com o meu tio Humberto, uma caixa de som muito antiga com o Moisés, filho do dono da pizzaria Cyntia, fizemos uma parceria com a Webnetwork (a empresa de um amigo que estudou comigo na faculdade, que disponibilizava

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internet a cabo em Morro Agudo), ligamos a internet e a caixa de som no meu computador, um Pentium 100 com o monitor quase queimado, e fizemos a festa. Cantamos e distribuímos a primeira edição do zine “Voz Periférica”. Disponibilizamos muitas revistas “Rap Brasil”. O Alexandre de Maio enviava às vezes alguns exemplares pra nós, era difícil encontrar revistas de hip-hop nas bancas de jornal de Nova Iguaçu. O evento começou às 14h e terminou depois das 21h. No dia seguinte o Dumontt havia marcado uma reunião com o secretário de Cultura de Nova Iguaçu, que na época era o Roberto Lara. A maioria dos garotos que estava no Encontrão compareceu à reunião, que ainda contava com a presença do coordenador de Igualdade Racial, Geraldo Magela. O secretário perguntou o que nós precisávamos e queríamos. Sempre que acontecia uma reunião desse tipo com a galera do hip-hop, era unânime o pedido de apoio para a realização de eventos de rap, ou dinheiro para gravação de discos. Mas nós queríamos levantar uma discussão a respeito de um fundo para a cultura em Nova Iguaçu, e que essa grana fosse liberada por meio de editais para os grupos culturais da cidade. O Dumontt ainda complementou e disse que o mais importante era uma formação para os grupos culturais aprenderem a fazer projetos. Se os editais um dia saíssem, a maioria dos grupos não saberia como preencher os formulários. Todos, inclusive nós, precisávamos aprender a fazer projetos, captar recursos e prestar contas. O Roberto Lara disse que batalharia por nós, mas logo foi exonerado do cargo. Tudo que acontecia com o Movimento Enraizados, em Morro Agudo, era disponibilizado no Portal Enraizados, e por isso o Encontrão, mesmo sendo um evento pequeno


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e sem qualquer estrutura ou recurso financeiro, começava a ganhar projeção nacional. As discussões com o poder público também chamavam a atenção dos Enraizados de outros estados. Rapidamente o Dumontt inseria o Enraizados em algumas atividades em Morro Agudo, enquanto eu o levava para conhecer os eventos e os meus camaradas do hip-hop carioca. No mês seguinte fizemos a segunda edição do Encontrão, desta vez com mais de 50 participantes. Além da galera de Morro Agudo, compareceram pessoas da Ilha do Governador e de Duque de Caxias. Nessa época conhecemos o cordelista Jota Rodrigues, que mora em Morro Agudo há mais de trinta anos. O Kall foi até a sua casa para fazer uma matéria para o “Voz Periférica”. Enquanto isso o Léo da XIII se envolvia num encontro de Pontos de Cultura, na Leopoldina, centro do Rio de Janeiro, e eu acompanhava reuniões que a prefeitura fazia nas comunidades. Eles traziam arquitetos para conversar com as lideranças do bairro e nos prometeram construir uma casa do hip-hop em Morro Agudo. Também participei, junto com o Dumontt, de mais uma reunião com a diretora do Ciep 117, para tentar resolver de uma vez por todas a questão da ocupação da quadra. Neste dia ela levou um deputado que deu a entender que tinha o poder de liberar a quadra para nós ocuparmos. Tudo me pareceu um jogo político-partidário, em que a conversa mansa dele insinuava que não teríamos liberdade de trabalhar do nosso jeito. Meu lado radical falou mais alto e fomos embora sem fechar qualquer acordo, continuando nas ruas do bairro. Foi quando entendi o que o Antônio Carlos Magalhães queria dizer com a frase “A ocasião faz o aliado”. Mas com a gente não funcionava dessa forma.


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O Encontrão não parava de crescer, a terceira edição foi bem maior do que a segunda. Conversando durante o evento, decidimos que nos encontraríamos uma vez por semana. Como não tínhamos sede, nossos encontros seriam na praça, no centro de Morro Agudo. Nossas reuniões semanais eram engraçadas, o Dumontt trazia dinâmicas de grupo para fazermos durante o encontro. Cerca de 20 pessoas participavam da reunião. Durante as dinâmicas a gente se abraçava, e as pessoas que passavam na rua não entendiam o que estávamos fazendo ali. Acho que só o Dumontt sabia, ele trazia os ensinamentos do teatro e aplicava no Enraizados. Em uma de nossas reuniões, o Átomo, que é evangélico, disse: — O pessoal da minha rua vai passar e me ver aqui na praça e vão dizer que depois que eu virei crente fiquei maluco.

Com o sucesso do Encontrão e a publicação das fotografias no Portal Enraizados, recebíamos muitos e-mails e telefonemas de grupos de rap que queriam se apresentar no evento. Mas eu não permitiria que as pessoas viessem de outros estados para participar de um evento que nem microfone tinha. O Dumontt disse que era quase impossível conseguir um palco a uma semana do evento, mas tentaria uma articulação com algumas pessoas da prefeitura que talvez desse certo. Os Enraizados de outros estados estavam decididos que viriam para Morro Agudo, mas mesmo assim eu não divulguei. Na sexta-feira, um dia antes do evento, ainda não tínhamos confirmação do palco. A calma do Dumontt me incomodava. Às 22h ele recebeu uma ligação, era o pessoal da prefeitura confirmando o palco do nosso evento, mas eles não tinham o som. Tínhamos outro problema nas mãos.


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Na madrugada de sexta para sábado o palco foi montado, e quando os moradores acordaram se depararam com uma verdadeira espaçonave na porta de suas casas. Como não havíamos divulgado o evento, os moradores não sabiam para que era aquele palco gigantesco, e as crianças na mesma hora o usaram como parque de diversões. Começamos a fazer uns contatos para arrumar o som. Eu sabia que o Chico, pai do Dinho, DJ do grupo Fator Baixada, tinha uma aparelhagem, então fomos até a casa dele para conversar. O Chico é muito gente fina e topou na hora, cobrou bem baratinho pra nós. Os moradores do bairro de fato não conheciam a cultura hip-hop, então tentamos trazer os quatro elementos. Convidamos os grafiteiros Tihkin (Penha) e Kajaman (Duque de Caxias) para participarem do evento conosco. A ideia inicial era grafitar o muro de algumas casas da rua, mas os moradores não aceitavam de jeito nenhum. A solução foi comprar um tapume para grafitar. No dia, o César, filho do cara que me ensinou a consertar rádio, cedeu a parede do bar dele para o Kajaman grafitar. Quando os outros moradores viram o resultado quiseram liberar os muros para o grafite, mas não dava mais tempo. O Alessandro Buzo veio de São Paulo para apresentar o evento. Para cantar, além do casting do Movimento Enraizados (Dudu de Morro Agudo, Fator Baixada, Ultimato à Salvação e Léo da XIII), vieram Os Guerreiros e Hórus, ambos de São Paulo, além de alguns grupos do Rio de Janeiro. Mesmo sem entender o que era o hiphop, os moradores da minha rua queriam se vestir e ficar iguais a nós. Toda hora aparecia uma touca ou um boné de lado, em crianças, jovens, adultos e idosos. A força do Enraizados estava ali, materializada.



Cap.03

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Cap.03

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A arte de criar o inimaginável

Ainda não houve homem de gênio extraordinário sem algo de louco. — Sêneca

Eu e o Dumontt começávamos a trocar ideia todos os dias da semana. O Dumontt representava intelectualmente todas as atividades que o Movimento Enraizados executava. A cada dia ele me apresentava planos mirabolantes para serem executados a longo prazo no Enraizados. Eram dezenas de ideias que talvez eu só fosse pensar uns trinta anos depois. Aos poucos ele contava sua história de vida, e a gente começou a se identificar. Ele cresceu gago, mas tão gago que não conseguia se comunicar. Sua infância foi dentro de casa, lendo centenas de livros e vendo TV. Destacavase na escola, foi o primeiro da família a ingressar na universidade. Antes de se formar já dava aulas de matemática. Para conseguir uma bolsa na faculdade entrou para o grupo de teatro, e a partir daí sua vida mudou. Logo depois entrou na Cia. Encena – companhia de teatro – e se descobriu ator. Conseguiu controlar aquilo que o perturbava desde pequeno: a gagueira. Iniciou a faculdade de cinema. A Cia. Encena era um movimento cultural, enquanto Dumontt queria institucionalizar tornandoa uma associação, outros integrantes preferiam montar 146


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uma produtora, o que motivou um racha. Quando a Associação Cia. Encena estava com os documentos em dia, era ele quem “carregava o piano”. Depois de grandes decepções e uma dívida de seis mil reais, a gente se conheceu. Eu estava diante de um gênio, não tinha dúvidas. Sempre o chamei de meu guru. Dificilmente ele toma decisões de forma lógica, por mais que tudo indique que aquele não é o caminho, se ele achar que é, a gente vai conferir. Em uma de nossas conversas me contou que quando participou da reunião no Ciep sua vontade era ajudar aqueles garotos durante um tempo, e depois seguir seu caminho. Mas foi se envolvendo com o passar do tempo, e a cada minuto estava mais comprometido com o Enraizados, até que não conseguiu mais ir embora. Eu e Dumontt nos reuníamos no bar Continental, sempre após os encontros do Movimento Enraizados na praça de Morro Agudo. Quando tínhamos dinheiro, o que não era comum, bebíamos umas cervejas enquanto pensávamos nas estratégias que usaríamos nos próximos meses. Em uma dessas conversas surgiu a ideia de marcarmos a cidade com nosso logotipo. Resolvemos grafitar a cidade e depois fazer blusas do Movimento Enraizados para colocar na rua. Além de nos dar visibilidade geraria uma renda extra para a organização. Outra estratégia era continuar compartilhando poder com os garotos, sempre os enviando para participar das atividades para as quais nós do Enraizados éramos convidados. Ficamos uns três meses fazendo encontros na Praça de Morro Agudo, até que um dia uma senhora passou de carro, viu nossa situação, chamou o Dumontt e ofereceu a varanda da casa dela para nos reunirmos. Acho que ela ficou com pena da gente ou achou perigoso ficarmos ali, e a partir de então passamos a nos reunir na casa dela. Seu nome é Rosinha, uma senhora muito boa, que nos ajuda bastante, e por isso foi apelidada de Mãe do Enraizados.


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O Dumontt conceituou e organizou o modo como trabalharíamos, chamou de Rede Enraizados e definiu como essa rede funcionaria dali pra frente. Foi quando Dumontt participou, em dezembro de 2005, da I Conferência Nacional de Cultura, em Brasília. Chegando lá conheceu pessoas de diversas instituições. Nós sabíamos que trabalhávamos em rede, mas neste dia o Dumontt me ligou e disse: — Filhote, estou aqui em Brasília com muitas instituições que trabalham com hip-hop e juventude. Posso convidar eles pra entrar na Rede Enraizados?

Eu sem saber muito bem do que ele estava falando, concordei: — Pode sim, cara! Claro que pode.

Formava-se naquele momento a Rede Enraizados, com seis instituições. A partir de fevereiro de 2006 nos reuníamos uma vez por semana, à noite, já que todo mundo trabalhava. A Rosinha não se importava com a nossa presença. A gente chegava e já ia sentando na varanda da casa dela, falando alto, mostrando as rimas e dando os informes. Nosso nome já era bastante comentado em Nova Iguaçu, tanto pelos grupos culturais como pelos políticos. Ficamos sabendo que Nova Iguaçu sediaria o Fórum Mundial de Educação, no fim do mês de março. O Dumontt sugeriu que nos inscrevêssemos em uma atividade autogestionada. Ele articulou com a escola municipal Ivonete dos Santos Alvez, e levamos cerca de 50 crianças, mais professores e diretores da escola. Dez Enraizados estavam empenhados, por meio do projeto “A escola é mais hip-hop”, em mostrar oficinas, palestras, bate-papo e debates sobre quanto o hip-hop


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pode contribuir para a formação de cidadãos que respeitam qualquer tipo de diversidade e, acima de tudo, como essa cultura já está integrada à educação. Preparamos uma palestra em que eu contei a história do hip-hop mundial e nacional, o Dumontt falou sobre o Movimento Enraizados, o Léo da XIII, o Kall e o Átomo sobre o rap – a literatura da periferia –, e o Short falou sobre o grafite. As crianças estavam quase dormindo e as diretoras começaram a reclamar. Explicamos que a palestra não era para as crianças, e sim para os adultos. A parte das crianças seria a próxima: o hip-hop na prática. Nossa intenção era levar o hip-hop para as escolas. Teríamos primeiro que convencer os adultos, as diretoras, e depois as crianças. Quando começamos as atividades com as crianças, primeiro trabalhamos com a oficina de rap. Usamos uma metodologia simples. Fizemos um grande círculo em que todos podiam se ver. Os participantes falavam frases e a gente ia escrevendo no quadro negro. Os rappers tinham a missão de fazer com que as frases rimassem. Construímos uma música coletiva, inclusive com direito a refrão, mas sempre com conexão lógica entre os fatos. No final, nós, rappers, selecionamos uma base instrumental e começamos a musicar com a ajuda de todos os presentes. O ponto alto da oficina foi o ensaio, que durou mais de meia hora. Todos aprenderam a música em menos de dez minutos, mas gostaram tanto que não queriam parar de cantar: A escola é mais hip-hop A escola é mais hip-hop, pode crer Lá é o lugar aonde eu vou para aprender Inclusão social, pode crer A escola é o lugar aonde eu vou para aprender


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Vou à escola para aprender, já sei ler e escrever Mas por causa da miséria também vou para comer E quando crescer quero ter uma profissão Para poder trabalhar e formar um novo cidadão Ser um escrivão para andar de carrão Ter inteligência e ser mais um na inclusão E hoje tô no Fórum Mundial da Educação Usando o hip-hop para a transformação A escola é mais hip-hop, pode crer Lá é o lugar aonde eu vou para aprender Inclusão social, pode crer A escola é o lugar aonde eu vou para aprender

Em seguida os b. boys ensinaram para as crianças alguns passos de break e evoluímos até chegar a uma coreografia. Os adultos não resistiram e também entraram na dança. Pessoas de outras salas quiseram participar de nossas atividades, mas a sala de aula já não suportava tanta gente. Com a missão cumprida, fomos comemorar. Quando abria a primeira cerveja em casa, o telefone do Dumontt tocou. Era o Paulô, um grande camarada nosso, que trabalhava na articulação política da prefeitura de Nova Iguaçu, dizendo que por causa da repercussão da nossa atividade no Fórum o prefeito Lindberg Farias gostaria que fôssemos até o Sesc, onde acontecia uma palestra sobre segurança pública, e falássemos da nossa experiência com o projeto. O Paulô pediu que um carro da prefeitura fosse nos buscar. Fui para o Sesc como estava vestido: uma bermuda de basquete, a blusa Black Panters do Movimento Enraizados, calçando Havaianas. Alías, todos os Enraizados estavam com a blusa Black Panters. Causávamos espanto por onde passávamos. Vi ali a oportunidade de falar algumas verdades em público. Participar


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dessa palestra custava uma grana, e quem era professor pagava um pouco menos. Como eu não era professor e não tinha dinheiro, teria fatalmente que ficar de fora da discussão, mas minha oportunidade chegara e eu não poderia deixá-la passar entre meus dedos. Esperamos o anúncio dos organizadores, que não sabiam a hora certa de nos deixar falar. Em uma mistura de pressa e nervosismo nos anunciaram antes da hora prevista. Então entramos, nove Enraizados uniformizados, prontos para falar uma verdade que nem todos queriam ouvir. Lembro que na plateia havia muitos professores e que a maioria morava na cidade de Nova Iguaçu. Conviviam diariamente com problemáticas ligadas a todo o tipo de violência, dentro e fora da escola. A primeira coisa que fizemos quando pegamos o microfone foi desconstruir o que os palestrantes diziam. Eles não moravam em Nova Iguaçu, não caminharam pelas ruas violentas da cidade. Nenhum deles poderia falar com legitimidade como é viver em Nova Iguaçu. Passamos o discurso para as pessoas que estavam na plateia, aquele evento não deveria ser uma palestra em que cinco pessoas falam e 150 ouvem. Aquilo deveria ser uma troca, em que todos falavam e ouviam, todos aprendiam juntos e desse modo buscariam soluções efetivas para os problemas, uns com a experiência de vida e outros com o saber da academia. Logo depois mostramos que as crianças entendiam o que é desigualdade social e recitamos a letra da música “A escola é mais hip-hop”. Todos ficaram perplexos quando dissemos que grande parte das frases foi feita por crianças entre 5 e 10 anos. Cantamos a música juntos, diversas vezes. A mesa foi esvaziando e ninguém mais quis falar. Depois disso foi só festa, todos os presentes queriam saber mais sobre o Movimento Enraizados, de onde


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éramos e como poderíamos fazer uma parceria com as escolas. O prefeito Lindberg Farias veio nos agradecer e nos apresentou alguns políticos ligados à educação. Ficamos em evidência na cidade e fomos convidados a apresentar a música “A escola é mais hip-hop”, junto com os alunos do colégio Ivonete dos Santos Alves, durante a posse dos diretores das escolas municipais de Nova Iguaçu, que aconteceria no colégio Monteiro Lobato, no centro de Nova Iguaçu. O Dumontt ligou pra escola Ivonete dos Santos Alves e falou com as diretoras, que permitiram a apresentação dos alunos no dia 30 de março. Um dia antes o Léo da XIII foi até a escola ensaiar com a criançada, todos estavam com a música na ponta da língua. No dia da posse havia mais de 1.000 pessoas no colégio Monteiro Lobato, mas a quantidade de gente não abalou as crianças. Todos estavam eufóricos e cantavam a música o tempo inteiro. O Léo da XIII e o Faminto, responsáveis pelas crianças naquele dia, envelheceram três anos em uma hora. A apresentação foi uma festa. A acústica do lugar era horrível e acho que ninguém entendeu nada, mas era impossível passar despercebida a felicidade estampada no rosto de cada criança.





Ousando em novos territórios

As riquezas deste mundo pertencem, com efeito, àqueles que têm a ousadia de proclamar-se seus donos. — Georges Duhamel

Em abril de 2006, aconteceria a primeira edição do evento Teia, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. O Teia reuniu os Pontos de Cultura participantes do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O MHHOB estava organizando o Espaço Preto Ghóez, que aconteceria durante o Teia. Todos os integrantes do MHHOB no Brasil enviaram representantes para as reuniões que aconteceriam em paralelo ao evento, e a principal pauta das reuniões era a discussão sobre os Pontos de Cultura, que estavam mais próximos de virar realidade para nós. Alguns ônibus levariam os integrantes dos Pontos de Cultura para São Paulo, mas eu e Dumontt não pudemos ir porque era dia de semana e horário comercial. O Gil BV (Teresina-PI) me ligou dizendo que o ônibus passaria às 9h na rodovia Presidente Dutra para buscar os integrantes do Movimento Enraizados. Porém não havia ninguém para ir, muitos eram menores de idade, outros estudavam e trabalhavam. Rapidamente liguei para o Léo da XIII e disse que tinha uma missão pra ele. No Enraizados, quando há uma missão, é impossível dizer não. 156


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O Léo saiu de casa às 8h30 e o ônibus só passou às 11h da manhã. Ele tinha apenas dez centavos na carteira e ia pela primeira vez para São Paulo, encontrar pessoas que nem conhecia. Para piorar a situação, o motorista do ônibus levou o Léo para o hotel errado, largou ele lá e foi embora. Quando foi fazer o chek-in não havia reserva em seu nome. Eu acompanhava tudo por telefone, ligando para o Gil BV e para o Lamartine, mas eles não tinham notícias do Léo. Por sorte o Léo vestia uma blusa do Movimento Enraizados e a Mary Monteiro, do Núcleo Cultural do América Futebol Clube, em Juscelino, no Rio de Janeiro, começou a conversar com ele pra saber mais a respeito da organização que tanto ouvira falar. Durante a conversa o Léo disse que o ônibus o havia deixado no hotel errado, e ele precisava ir para outro hotel, na rua Augusta. Mary também estava indo para lá de táxi e ofereceu uma carona. Quando chegou ao hotel, todos o procuravam. Finalmente me ligaram, informando que ele estava bem. Dois dias depois fui para São Paulo participar do evento. Quando cheguei ao hotel onde Léo da XIII estava, todos falavam maravilhas dele. Faltavam adjetivos para definir sua atuação na Teia. Rolaram até algumas piadas por causa do seu excesso de vontade de cantar rap. Diziam que ele ajudava todo mundo, mas não podia ouvir um cara martelando um prego na madeira, porque se ouvisse o barulho tum, tum, tum, já começava a rimar. Muitos passaram pelo Espaço Preto Ghóez, e o Enraizados SP estava bem representado pelo Rodrigo Dimenor, presente com sua esposa e filho, pelo Terno e, é claro, pelo Alessandro Buzo, que daria uma palestra. Outras personalidades das periferias brasileiras estiveram ali,


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marcando presença. Os escritores Sérgio Vaz e Dinha, e muitos integrantes do MHHOB, como Adonias Luz (jornal “Estação Hip-hop”), Lamartine, Gil BV, Robson Codó, Saroba e Jackson. Nas reuniões do MHHOB fiquei sabendo que os kits dos Pontos de Cultura estavam no Parque Ibirapuera, e que a gente já poderia levar dali os equipamentos. O Movimento Enraizados era um dos contemplados para receber o kit dos Pontos de Cultura. Apesar de não ter onde colocar os equipamentos, eu queria levá-los para Nova Iguaçu de qualquer maneira naquele dia. A gente se reunia, conversava, tentava imaginar alguma solução, mas nada era possível. O Gil BV disse que talvez pudéssemos colocar os equipamentos no ônibus que ia para o Nordeste, e quando ele passasse por Morro Agudo a gente pegaria, mas não deu certo. Tentei contratar uma empresa para pegar o material no Ibirapuera e entregar em Morro Agudo, mas o valor que a transportadora cobrava era muito alto, cerca de R$800, um valor inviável de a gente arrumar. Liguei para o Dumontt, que era o cara que realizava o impossível. Ele disse que era pra eu arrumar uma transportadora e quando a mercadoria chegasse ao Rio de Janeiro ele dava um jeito de pagar. Tentei de todas as formas, mas não consegui. Fomos pra casa com as mãos abanando e com a promessa de que o Ministério da Cultura entregaria os equipamentos em Morro Agudo no máximo em quinze dias. Eu sabia que os equipamentos do MHHOB do Piauí chegariam com certeza. A articulação da organização local com o Ministério da Cultura era muito grande, e o Centro de Referência do Hip-Hop seria o lugar onde haveria, entre outras, uma formação de metarreciclagem


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(reaproveitamento de computadores velhos) do MinC. Eu não tinha tanta certeza de que o nosso chegaria, por isso queria trazer embaixo do braço. Quando vi a quantidade de caixas, recuei e só tive a opção de esperar os dias que o MinC pediu. O kit do Ponto de Cultura era composto por um computador multimídia, um terminal burro (sem HD), uma filmadora handcam da Sony, uma máquina fotográfica digital, um MD portátil, um microfone lapela, uma impressora jato de tinta, uma impressora a laser, um scanner, uma mesa de som de seis canais, um amplificador, dois kits de três microfones e cabos de rede. Imagina um bando de garotos que produziam com apenas um computador Pentium 100 e um teclado velho emprestado com todo esse equipamento nas mãos? Voltando para Nova Iguaçu contamos as novidades aos nossos camaradas. Eles ficaram felizes, mas não fizeram nenhum estardalhaço. Esses equipamentos já estavam para chegar há tanto tempo que ninguém mais acreditava no envio.


Cada um com o seu cada um

Políticos: somos parceiros, não somos aliados. — Luiz Carlos Dumontt

A Mary Monteiro nos chamou para fazer uma entrevista na Rádio Tropical Solimões. A missão ficou por conta do Léo da XIII, que já a conhecia e que liderou o bonde rumo à rádio. Foram com ele o Elison, o Short, o Faminto e a Kelly. Ficaram realizados, pois a maioria nunca tinha dado entrevista. Nossa vida continuava como sempre. Alguns em seus trabalhos convencionais, família e estudos. Outros sem emprego. Mas todos correndo pelo hip-hop e, consequentemente, pelo Movimento Enraizados. Um mês depois, um repórter do jornal “O Dia”, Helvio Lessa, nos procurou querendo fazer uma matéria para o caderno Baixada. Eu queria marcar em um fim de semana, mas ele marcou numa quarta-feira, às 14h. Eu pedi que pelo menos fosse na casa da Rosinha, e ele concordou. Liguei para todos os companheiros do Movimento Enraizados avisando dia e local da entrevista. Quando saí do trabalho fui direto para casa – tinha o costume de parar em uma padaria para beber umas cervejas – separar os materiais do Movimento Enraizados para apresentar ao Helvio.

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No dia da entrevista compareceram, além de mim, Léo da XIII, Kall, Velho, Lisa, Átomo, Short, Suellen Casticini e mais dois garotos que resolveram entrar para a organização no dia da fotografia para o jornal e depois nunca mais apareceram. O Helvio fez uma matéria ampla, saíram quatro páginas falando de nós. Foi um ótimo presente para nossas mães, o jornal saiu no dia 14 de maio de 2006, domingo de Dia das Mães. Nesse dia acordei cedo e fui direto para a banca comprar o jornal. Quando vi a matéria, fiquei muito feliz porque não sabia que apareceríamos em tantas páginas. Além da organização, cada pessoa envolvida ganhou visibilidade, o Short com o grafite, o Ultimato à Salvação com seu rap de crente, o Kall com o Fator Baixada e eu, liderando o movimento. Quando cheguei em casa entrei no quarto da minha mãe e coloquei o jornal em cima de sua cama. Ela ficou toda boba quando viu a matéria, e nossa autoestima foi nas nuvens. O título era: “O som do pensamento. Cultura hip-hop se consolida em Nova Iguaçu e faz intercâmbio internacional.” Na época o intercâmbio internacional, e até mesmo o nacional, era feito somente de modo virtual. Nós não imaginávamos que os primeiros intercâmbios internacionais presenciais aconteceriam apenas três anos depois. Um trecho da matéria: O hip-hop de Nova Iguaçu está rompendo fronteiras através do Movimento Enraizados. Depois de começar timidamente com um site, idealizado pelo rapper Dudu de Morro Agudo há sete anos, o projeto já tem no currículo a produção de dois CDs coletâneas de artistas nacionais e um só com grupos de Morro Agudo, onde tudo começou. O intercâmbio com adeptos do ritmo nos quatro cantos do mundo está consolidado. Agora o grupo da Baixada troca figurinhas com rappers do Japão, Angola e Moçambique – inclusive produzindo CDs de grupos africanos e exportando projetos. A página na internet está com a marca de 80 mil acessos por mês.


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Para completar o ciclo de conquistas, a sede definitiva dos Enraizados está em fase de negociação com o governo do estado. Equipamento como ilha de edição de vídeo e câmera digital chegam na próxima semana, através de convênio com o Ministério da Cultura.

Realmente tínhamos retomado o contato para conseguir ocupar a quadra do Ciep, mas o Dumontt achou melhor começarmos tudo novamente. Fizemos outro ofício e fomos direto ao governo do Estado, mas a batalha estava apenas recomeçando. Os equipamentos do Ponto de Cultura deveriam chegar na outra semana. Na verdade, toda semana eu ouvia essa desculpa do pessoal do MinC, mas aguardava porque não tinha muito o que fazer. Estávamos confiantes, em alguns estados os equipamentos realmente chegavam, e isso nos animava. Não foi o que aconteceu com o MHHOB do Rio Grande do Sul. O governo prometeu enviar o equipamento deles, mas não o fez. Eles se reuniram e ocuparam o prédio do Ministério da Cultura, passaram a noite nas salas, os militantes levaram suas famílias. No dia seguinte as lideranças nacionais do MHHOB me ligaram para informar o que estava acontecendo. As opiniões estavam divididas, alguns achavam correto, outros que eles estavam sendo extremistas. Eu achava que eles estavam certos. Para acalmar os ânimos, algumas pessoas do MHHOB e outras do Ministério da Cultura pediram permissão para enviar o equipamento do Ponto de Cultura do Movimento Enraizados para o Rio Grande do Sul, em seguida enviariam os equipamentos de outro Ponto de Cultura para nós. Enviaram, então, nosso equipamento para o Sul e os militantes saíram do prédio do MinC. Nossa popularidade aumentava e o portal estava entre os mais acessados, não só dentro dos sites de hip-hop. Muitos convites chegavam e a ideia de descentralizar


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o poder da organização dava certo. Léo da XIII, Elison e Scooby representavam o Enraizados em alguns eventos de dança e de rap na cidade. O grafiteiro Short dava continuidade à ideia de marcar a cidade com o nosso logotipo e nos representava participando de eventos e dando oficinas de grafite. As reuniões ficavam cada vez mais cheias. Em junho de 2006 fomos convidados pela Mary Monteiro para fazermos um quadro dentro do programa do América na Tropical Solimões, uma rádio AM. Entrevistávamos uma pessoa e dávamos informes sobre nosas atividades. As pessoas que entrevistávamos eram sempre do nosso meio, primeiro foi o Short, depois o rapper Kall, e em seguida o Léo da XIII. Um dia o Lamartine (São Luís - MA), quando era Conselheiro Nacional de Juventude, veio ao Rio de Janeiro com o cineasta francês Lahzari e os entrevistamos também. O Lamartine falou de modo muito interessante sobre o movimento hip-hop: Eu queria deixar um recado para as pessoas que não conhecem o movimento hip-hop. É um movimento que hoje trabalha na perspectiva de anular o analfabetismo, anular a violência, inclusive eu estava conversando com a ministra – Matilde Ribeiro – que é necessário uma ação para prever a mortalidade juvenil negra e essa ação em Nova Iguaçu não nasce simplesmente com vocês ouvindo uma pessoa que veio da França e outra pessoa que veio do Maranhão e dizer o seguinte: “É, os caras estão certos, o hip-hop realmente resgata.” Vocês têm uma forma de ajudar, as autoridades aqui têm que se sensibilizar e colar com o movimento hiphop, não do Maranhão, não de Porto Alegre, mas com o movimento hip-hop de Nova Iguaçu. É o movimento hiphop de Nova Iguaçu que está discutindo políticas públicas, que está ocupando os espaços públicos para fazer essas mudanças, esse movimento se chama Enraizados




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No Brasil inteiro a gente vê organizações fazendo política pública, exercendo o papel do estado sem espaço físico, e aqui não é muito diferente. É a forma de ajudar, a forma de mudar, de dar oportunidade de o jovem mudar a realidade de analfabetismo, tráfico, drogas, desemprego e violência em Nova Iguaçu. A juventude não confia em partido, não confia em político, é porque normalmente essas instâncias usam a juventude como massa de manobra, para dar voto, como coisas descartáveis, mas, a partir do momento que você coloca a juventude como ator principal do seu processo de mudança, esse processo de mudança vem, e um exemplo disso é o Movimento Enraizados em Nova Iguaçu.

Cerca de três meses se passaram e nossos equipamentos não chegaram. Eu liguei para o Aldo Rebelo, que me ligou para informar que nossos equipamentos iriam para o Sul, e perguntei o motivo por que nossos equipamentos ainda não tinham chegado.Ele disse que havia acontecido um imprevisto, mas que tudo estava sendo resolvido e quando nós menos esperássemos os equipamentos chegariam. Eu disse: — Aldo, eu sou bastante tolerante, inclusive sou considerado o diplomata do MHHOB, mas se esse equipamento não chegar aqui até amanhã, o que os meninos do MHHOB do Sul fizeram vai parecer brincadeira de criança perto do que nós vamos fazer no Rio de Janeiro. — Dudu, fica calmo que as coisas vão se resolver, não tem como o equipamento chegar amanhã porque ele está na Bahia. — Aldo, amanhã a gente conversa.

Desliguei o telefone e em seguida liguei para o Dumontt. Contei o que tinha acontecido, falei da conversa com o Aldo e disse que tinha certeza que esse equipamento não chegaria no dia seguinte. E se eles só funcionam na pressão, então nós pressionaríamos. O Dumontt deu a


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ideia de enchermos um ônibus de grafiteiros, MCs, b. boys e rappers, além dos militantes do Enraizados e partir para o edifício Gustavo Capanema, situado na rua da Imprensa, no centro do Rio de Janeiro. Enquanto os b. boys faziam uma roda de break no saguão do prédio, nós ocuparíamos uma das salas e ficaríamos lá até que nossos equipamentos chegassem, grafitando uma parede por hora, ou até a polícia nos prender. Eu adorei a ideia. Começamos as articulações para conseguir o ônibus, mas misteriosamente todos os equipamentos chegaram à minha casa no dia seguinte, frustrando as quase 40 pessoas que ocupariam o Capanema. Era tanta caixa que não cabia dentro da minha casa, e nós nem tínhamos ainda um lugar para colocar os equipamentos. Mas aprendi com o Dumontt a não encarar isso como um problema, e sim como um desafio. A partir de agora tínhamos o desafio de conseguir um local para instalar o Ponto de Cultura Fome de Livro, na Quebrada-RJ.


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Nossas superproduções

Quando você não sabe o que está fazendo, e o que está fazendo é o melhor, isto é inspiração. — Robert Bresson

Quando o equipamento chegou eu estava no trabalho, vi somente quando cheguei em casa. Comecei a abrir as caixas, quando olhei a câmera de vídeo e a máquina fotográfica digital liguei para o Dumontt e pedi que viesse até minha casa. A única câmera que tínhamos era uma Samsung de 1.3 megapixels, que eu havia comprado havia alguns meses para o Enraizados. O Dumontt saía pela rua fotografando tudo o que estava à sua volta. Ele disse que quando estudava cinema tinha escrito uns roteiros, mas não tinha filmadora, e os roteiros ainda estavam na casa dele. Quando ele chegou mostrei a filmadora. Hoje sei que era apenas uma handcam, mas na época, apesar de não conhecer, achava que era a melhor filmadora do mundo. Na realidade, era a melhor do mundo porque era a que nós tínhamos. Falei para o Dumontt levar a filmadora e o manual – até hoje a gente não gosta de ler manual – aprender a utilizar a câmera e ensinar para os garotos do Enraizados. Dumontt saiu de casa com a filmadora e a máquina fotográfica parecendo uma criança que acabara de ganhar um brinquedo novo. 170


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Algumas pessoas da Cia. Encena começavam a participar mais ativamente do Movimento Enraizados, como Gil Torres, Samuel Azevedo, Nadir, Eliel e Suelen Casticini. Todos são atores, mas a Gil Torres foi a única que conseguiu uma projeção maior. Ela participou de “Cidade dos homens” – uma série de teledramaturgia exibida pela Rede Globo durante quatro temporadas – em um dos episódios que mais gostei, mas não conseguia me lembrar dela. Por sorte eu gravei este programa e pude conferir a Gil, que teve uma participação enorme. Ela era professora de história do Acerola, personagem do Douglas Silva. Fiquei superorgulhoso. O zine “Voz Periférica” era um sucesso. Começamos a fazer oficinas para produzir o zine. A matéria de capa se chamaria matéria rimada. Primeiro a gente identificava um problema no bairro e depois falávamos a respeito. Uma pessoa redigia e os rappers faziam com que as frases rimassem. Fizemos um bem interessante sobre o rio Botas. O Rio Botas é um rio brasileiro que banha o estado do Rio de Janeiro. É muito prejudicado pela quantidade de resíduos tais como entulhos, galhadas e lixo domiciliar que constantemente são removidos. Nasce na APA de Gericinó-Mendanha, localizada na cidade de Nova Iguaçu e tem aproximadamente 20km de extensão, passando pelo bairro de Comendador Soares, mais conhecido como Morro Agudo. Deságua no rio Iguaçu no bairro de São Vicente, em Belford Roxo. Seus principais afluentes são os rios Maxambomba e o Rio das Velhas. (Fonte: Wikipedia)

Rapensando as bostas que botas no Rio Botas Brota bosta no rio Botas! Não, não brota, jogam! Jogam até carro, onde deveriam brotar flores Rio Botas com bosta, quem gosta? Acho que ninguém, mas se quiser a gente bate uma aposta


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Se a gente bota no Botas, o Botas também bota na gente Prova disso são as enchentes, inclusive a garota aprendeu a nadar na enchente Quando ela passa, o pé atola na fossa, é difícil Não é como a bossa de Tom e Vinicius Na verdade, as crianças de Morro Agudo Nadam no rio como peixinho barrigudo É a alegria dessa gente, que nasce desse afluente Que vive contente com a droga da enchente Nem a dengue quer ficar no Botas porque gosta de água limpa Brotam ratos no meio das mazelas dos detritos que lá jogam Sujeiras e nojeiras são coisas que me incomodam O Botas te devolve tudo aquilo que nele botas Viram as costas e enchentes tomas pelas costas Nas olimpíadas do Botas existem várias modalidades Lançamento de lixo à distância e outras atividades Levantamento de móveis e nado sincronizado Enquanto o povo se diverte com o Pan, a periferia sofre por outro lado Corpos aparecem no Botas, isso é um grande mistério Pois além de outras atividades o Botas também é cemitério Como se fosse um sonho, tipo “De volta à lagoa Azul” Ops! É só mais uma vala negra em Nova Iguaçu Essa realidade não deveria ser vista só pelos povos E sim por aqueles em que as comunidades votam Quem é responsável por este chulé? Vossas excelências, por favor ponham essa bota no pé. Autores: Paulô, Gil Torres, Suellen Casticine, Dudu de Morro Agudo, Anderson Cravo, Dumontt, Léo da XIII, Lisa Castro, Átomo e Short.

No dia 19 de julho estávamos novamente nas páginas do jornal “O Dia”, dessa vez por causa da chegada dos equipamentos do Ponto de Cultura.


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Filmes e coletânea hip-hop em Nova Iguaçu No Morro Agudo, em Nova Iguaçu, jovens que se uniam desde 1999 para gravar suas músicas ampliaram seus projetos com a chegada do kit do MinC. O grupo Enraizados, ligado ao Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB), não ganhou a antena, mas conseguiu conexão banda larga (ADSL) com outra parceria. Eles usam Software Livre e atendem a cerca de 60 adolescentes e jovens. Estão em produção a segunda coletânea “Raiz do hip-hop” e dois documentários, sobre gravidez na adolescência e alcoolismo. “São problemas que afetam diretamente as pessoas daqui”, explica o rapper Dudu de Morro Agudo, 27 anos, fundador do grupo. O CD terá tiragem inicial de mil cópias e será vendido na comunidade e pela internet. Os documentários serão prensados em DVD e VCD e distribuídos para os moradores. “Também haverá sessões gratuitas no Ponto de Cultura”, planeja Dudu. Marlon Mendes, jornal “O Dia”, 19 de julho de 2006

Mais convites chegavam e a gente literalmente não parava de trabalhar. Fomos convidados para um evento no Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, e fizemos uma festa. A gente incentivava e a galera movimentava o zine entrevistando moradores e denunciando problemas graves da cidade. Cópias do zine sempre circulavam pela prefeitura. Eu e Átomo participamos de um programa de rap na rádio Novos Rumos, em Queimados (cidade vizinha a Nova Iguaçu). O Léo da XIII criou um evento chamado “Banca de freestyle”, em que reunia MCs na porta de sua casa, uma espécie de miniencontrão. Participávamos de muitas atividades ao mesmo tempo. Eu já não conseguia me dedicar ao trabalho formal, e o escritório onde trabalhava era na


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verdade uma extensão do Enraizados, mesmo no horário comercial. Só conseguia pensar nas atividades da organização, onde a galera estava naquele momento e o que estava fazendo. O Dumontt dizia que precisávamos dedicar mais tempo ao Movimento Enraizados. Se acreditávamos mesmo no que fazíamos, tínhamos de nos sustentar desse trabalho. Eu concordava com ele, mas não conseguia me desligar do trabalho porque o dinheiro, apesar de ser pouco, era certo, e eu tinha uma família que dependia desse dinheiro. O Alessandro Buzo havia passado pela mesma situação que eu. Nós conversávamos diariamente pelo telefone e o assunto era sempre sobre a vontade de podermos nos dedicar de modo integral àquilo que realmente gostamos de fazer. No dia 14 de setembro de 2006, Ítalo Lopes, o Ita, como era conhecido no hip-hop, foi assassinado em Mesquita por policiais do 20º Batalhão, enquanto participava de uma festa. O crime revoltou militantes do hip-hop e dos direitos humanos. Na semana seguinte ao crime fomos convidados para uma manifestação em Mesquita, em um bar onde aconteciam eventos de rock, ali eu vi que estavam todos unidos por uma mesma causa: a vida. Numa das reuniões do Movimento Enraizados, o Dumontt, portando a handcam do Ponto de Cultura, criara mais uma metodologia. Eu estava em São Paulo fazendo umas articulações com o Alessandro Buzo, e não participei dessa reunião. A metodologia era a seguinte: 01) O Dumontt dividiu o grupo em dois e pediu que cada um criasse uma história; 02) E que cada grupo contasse a sua história para o outro grupo; 03) Em seguida pediu que os grupos se unissem e juntassem as histórias;


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04) Depois que cada um adotasse um personagem da história; 05) E por último avisou que naquele momento iriam gravar.

Entre 9h e 12h eles criaram a história e gravaram. Tudo foi improvisado. Não havia roteiro, figurino e nem mesmo atores, mas o resultado foi surpreendente. A autoestima da galera ia nas nuvens. Quando cheguei de viagem, peguei as fitas e editei. O detalhe é que eu nunca havia editado um filme na minha vida, mas a necessidade me forçava a tentar. O suporte do MinC não viera nem mesmo para montar o equipamento. E como tudo era em Software Livre, a dificuldade era ainda maior. Quando o filme ficou pronto, disponibilizamos um DVD na reunião de sábado e pedimos que todos vissem o filme até o sábado seguinte. Era mais uma estratégia para que eles ficassem juntos durante a semana. No sábado seguinte foram muitos comentários, eu conseguia ver o brilho no olho de cada um. Eles estavam felizes, com a autoestima em alta. Durante a reunião decidimos fazer mais um Encontrão. Dessa vez o alvo seria a praça de Morro Agudo, que estava muito feia. Os feirantes ocupavam a praça com caixas e barracas, que lá permaneciam durante toda a semana. Havia um muro cinza de aproximadamente cinco metros, era uma coisa horrível, inclusive fizemos uma matéria rimada falando da praça. Se liga:

A praça é nossa Praça é uma coisa que não tem perto da minha casa Aqui em Morro Agudo não se vê nem com telescópio da Nasa Se procurar na Baixada talvez encontre alguma Mas se juntar todas elas, acho que não dá uma Na Zona Sul vi gangorra e escorrega


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Mas aqui em Nova Iguaçu só tem viela e beco Na praça dos grã-finos tem quiosque, cê pode crer E as biroscas de Morro Agudo atrapalham nosso lazer Político vai, político volta, com promessa que revolta Mas pra pisar em Morro Agudo tem que vir com escolta Quem destrói a praça não merece ser chamado de animal Porque os bichinhos não destroem seu habitat natural O galante perde a inspiração pra dizer que ama Como o aposentado perdeu seu assento e o tabuleiro de dama Enquanto os pela-sacos vêm quebrando tudo O Enraizados revitaliza a praça de Morro Agudo Não é praça Mauá, Quinze e nem Onze Aqui não tem chafariz e nem escultura de bronze A comunidade divide lugar com a sujeira Pois a praça parece hotel de mendigo e depósito de feira Urinas em praça transbordam em metros cúbicos A praça que era nossa agora é banheiro público Isso não é rebeldia e nem pirraça Porém só vamos nos calar no dia em que tivermos verdadeiras praças Autores: Movimento Enraizados – Núcleo Morro Agudo

A ideia desta vez era fazermos um Encontrão de grafite, para dar um colorido naquele muro cinza e trazer alegria para o lugar. Ligamos para o Helvio Lessa, do jornal “O Dia”, e informamos que faríamos o evento. Ele colocou uma nota na capa do jornal e publicou a seguinte matéria, de uma página: Hip-hop e muito mais Evento vai reunir o melhor da cultura popular na praça de Morro Agudo O Movimento Enraizados de Nova Iguaçu, que promove a cultura hip-hop, vai realizar no próximo sábado a 5ª edição do Encontrão Cultural. O evento acontece a partir das 14h na Praça de Morro Agudo, e vai reunir jovens de


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várias partes do estado para praticar, aprender e ensinar culturas populares, além dos quatro elementos do hip-hop (rap, DJ, break e grafite), para jovens moradores da comunidade. O evento vai pegar uma carona no projeto Cinema nos Bairros, que acontece na praça aos sábados, quando será projetado um filme no meio da rua, além de exibição de clipes de rap nacional e um longa-metragem. O Movimento Enraizados mantém um portal de hip-hop (www.enraizados.com.br), um dos maiores do gênero na América Latina, passando dos 300 mil acessos mensais. Helvio Lessa, jornal “O Dia”, 24 de setembro de 2006

Toda a correria para fazer o Encontrão já tinha sido feita. Como as nossas reuniões estavam cada vez mais cheias, e pela primeira vez o número de homens e mulheres era próximo, dividimos bem as tarefas. A Rosinha cedeu a cozinha da casa dela para que nós fizéssemos a comida para a equipe que trabalharia no evento. Mas a uma semana do evento ainda não tínhamos o principal material: o spray. Foi aí que descobrimos que havia um grupo novo no bairro: o Amigos do Enraizados. Liderados pelo Paulô, vários moradores nos ajudaram doando uma lata de spray. Assim conseguimos uma quantidade considerável de spray, só não sabíamos que os sprays doados não eram apropriados para o grafite. No dia do evento, quando os grafiteiros chegaram (Short, Dante, Kajaman e Tihkin), a gente apresentou as tintas que havíamos recebido como doação dos moradores. Eles nos olharam com uma cara de quem não acreditava no que estava acontecendo. Eu perguntei qual era o problema e eles informaram o tamanho do problema. Tentamos trocar as tintas em algumas lojas de material de construção do bairro, mas não conseguimos. Como todos os grafiteiros haviam trazido tinta, eles misturaram as tintas boas com as ruins e começaram o trabalho.


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Os moradores paravam para olhar. Ficavam dezenas de minutos parados, somente observando, alguns ficaram horas. Outros não resistiam e perguntavam. — Quem é que está fazendo isso aí? — Somos nós do Movimento Enraizados. — É da prefeitura? — Não, é o Movimento Enraizados. — Mas quem tá dando o dinheiro? — É o Movimento Enraizados! — Vocês estão gastando o dinheiro de vocês pra fazer isso aí? Vocês são malucos. — Por quê? Tá feio? — Não, está muito bonito, mas isso é trabalho para a prefeitura fazer.

Dezenas de pessoas vestindo a nossa blusa. Eu comentava com o Dumontt que a ideia tinha sido boa. Quase sempre a gente cruzava com alguém vestindo a blusa, e nem sempre a gente conhecia a pessoa. O tempo inteiro chegava gente ao evento. A chuva ameaçava cair, mas São Pedro a segurava lá em cima. O grupo de rap Família MDG, de Itaboraí, e o grupo O Bando, de Irajá, estiveram presentes, sem contar, é claro, o Ultimato à Salvação, Fator Baixada, Léo da XIII, eu e Marcio RC. Quando começou a anoitecer as pessoas chegaram para assistir ao filme que passaria. Mas, para frustração geral, a empresa que traria o telão não apareceu em Morro Agudo. Dezenas de pessoas ficaram frustradas, homens e mulheres, crianças, adultos e idosos. Eu sabia que havia pessoas ali que nunca tinham pisado no cinema. Quando questionamos sobre o cinema, a empresa respondeu que a prefeitura estava devendo, e por isso eles decidiram não ir. Naquele dia eu disse pro Dumontt que a gente, de uma vez por todas, não poderia mais depender de ninguém, deveríamos ter nossos próprios equipamentos para


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fazer as atividades, e ele concordou. Para compensar o furo, começamos a rimar. Muitos shows aconteceram, os b. boys dançavam na praça, no chão, enquanto a gente rimava. Até hoje, 2010, a praça de Morro Agudo está grafitada. A tinta está meio fraquinha, porque não era de qualidade, mas está bem melhor do que era antes da nossa interferência.


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Dinheiro: solução ou mais problemas?

É de uso dizer-se que o dinheiro é a raiz de todos os males. A afirmação vale também para a falta de dinheiro. — Samuel Butler

Algumas pessoas do Enraizados tinham trabalhos formais, até mesmo para sustentar suas famílias, mas outros não tinham renda, apesar de já pensarem em construir sua própria família. Eu e Dumontt, há tempos, havíamos conseguido a bolsa Agente Cultura Viva, do governo federal, para os participantes do Enraizados que se encaixavam no perfil. Nossa ideia era que pudessem ganhar dinheiro com a arte deles. Surgiram então algumas oportunidades de dar aula no Polo Esportivo e Cultural do América Futebol Clube, onde o Elison e o Léo da XIII dariam aulas e seriam remunerados. Nessa época, acho que por causa das bolsas, nossas reuniões de sábado beiravam umas 100 pessoas. O Dumontt sempre aparecia com uma dinâmica nova. No início era bem divertido, o pessoal do hip-hop não conhecia dinâmicas de grupo porque era uma prática mais comum no teatro. Tinha uma dinâmica, das palmas, que todo mundo pedia pra fazer, toda semana a gente fazia essa dinâmica.

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Apesar de a maioria dos participantes praticar um dos quatro elementos do hip-hop, havia muitas pessoas que nem gostavam de hip-hop, mas estavam lá para ganhar os R$150 mensais do governo. E eu não imaginava que essas bolsas trariam tantos problemas. As pessoas que frequentavam o Movimento Enraizados antes da bolsa pararam de frequentar assim que conseguiram o auxilio. Outros que não estavam no perfil continuavam indo mesmo sem bolsa. Alguns que nunca participaram dos encontros começaram a ir por causa da bolsa e nunca mais pararam. Outros ainda receberam a bolsa e nunca pisaram nas reuniões. Sempre que tinha dinheiro envolvido dava confusão. Um pensava que era mais malandro que o outro e no final todo mundo se enrolava. Antes das oficinas no América começarem, o Dumontt conversou com o Elison e o Léo da XIII, explicou que eles não poderiam fazer feio porque o nome do Enraizados estava em jogo. Mas algumas semanas depois os garotos começaram a chegar atrasados, e depois a faltar. Um dia o Dumontt chegou lá sem avisar, e nenhum dos dois tinha ido trabalhar. Quando o Dumontt perguntou, eles tentaram mentir, mas não havia como mentir naquela altura do campeonato, porque o próprio Dumontt deu aula no lugar deles. Depois de um tempo preferimos interromper as oficinas no América e todo mundo ficou sem dinheiro novamente. O que nos deixava sem entender a situação era que de uma hora pra outra os garotos deixaram de nos ver como aliados que lutavam pela mesma causa e passaram a nos enxergar como empregadores. Aí o caldo entornou de vez. Certa vez o Dumontt foi à prefeitura falar com a Maria Antônia, primeira-dama e coordenadora do programa Bairro Escola, a respeito do nosso problema de espaço. A prefeitura havia prometido alugar um espaço para


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nós instalarmos o Ponto de Cultura, mas por questões burocráticas dependíamos da liberação do procurador. Mas ninguém achava o tal procurador, e a Maria Antônia simplesmente não quis receber o Dumontt. Ele fez um ofício e entregou no gabinete do prefeito. Voltou pra Morro Agudo e lá encontrou o Samuel Azevedo e o Short. Pegaram a filmadora e a máquina fotográfica do Ponto de Cultura e partiram novamente pra prefeitura. Entraram na procuradoria e o Dumontt orientou os Enraizados a filmarem todo lugar que ele apontasse. O Dumontt falava: “Filma ali ó, aqui ninguém trabalha, esse aqui tá no Orkut e aquele no MSN!” Segundo o Dumontt foi uma correria danada na prefeitura, e resolveram atendê-lo, pelo menos para dar uma desculpa. O Dumontt fez outro ofício e entregou no gabinete do prefeito para explicar por que fez tudo aquilo. O prefeito pediu uma reunião com a Maria Antônia e com o procurador-geral. Acabou que eles não alugaram o espaço e a gente continuou sem ter onde colocar os equipamentos, que continuavam na minha casa, alguns ainda dentro das caixas. Todo o recurso necessário para as atividades do Enraizados saíam do meu bolso ou do bolso do Dumontt, sendo que meu salário era a metade do dele e eu tinha dois filhos para criar. Eu sabia que a gente precisava de um lugar como sede, mas essa parceria com a prefeitura não aconteceu, e o processo com o governo do estado para ocupar a quadra do Ciep 117 não andava. Apesar de alguns atritos com a prefeitura a gente tinha uma boa relação com o pessoal da articulação política, o Toninho, o Cláudio Jorge e o Paulô, que sempre que podiam nos ajudavam. O Dumontt me chamou para conversar e falou que precisávamos alugar pelo menos uma sala para receber as pessoas, fazer nossos projetos, ter um endereço de verdade. Eu concordava, mas tinha


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muito medo de não conseguir grana para honrar nossos compromissos, afinal todo aluguel tem contrato de no mínimo um ano. Ele já tinha visto uma sala no centro de Morro Agudo. O aluguel era R$160 e a gente ainda teria que pagar uma taxa de R$20 da água, isso sem contar com a conta de luz. No mínimo, teríamos um custo de R$200 por mês. O Dumontt me chamava de conservador, eu dizia que trabalhava com a realidade. No fim ele me convenceu a alugar o local, mas eu ainda morria de medo de ter que tirar dinheiro da minha família pra pagar aluguel do Enraizados. Era difícil aceitar uma organização em que quase 100 pessoas participam mas quando o laço apertava somente meia dúzia aparecia pra ajudar. Eu e Dumontt conversávamos muito sobre esse assunto. A gente precisava prezar pela qualidade, e não pela quantidade. Baseado neste princípio o Dumontt propôs criarmos o Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância), um grupo de estudos que se reuniria semanalmente. Estava entrando o mês de novembro e os convites para participarmos de eventos não paravam de chegar. Propostas de parcerias eram aos montes. Fizemos oficina de grafite na Casa das Meninas (instituição beneficente Brasil-Itália, situada na Cerâmica, bairro vizinho a Morro Agudo); participamos da organização do Bingo Dançante, produzido pelo Roger Craum; estivemos no Cortejo Cultural dos Pontos de Cultura, na Cinelândia; participamos da Semana da Consciência Negra de Nova Iguaçu; do Dia da Bíblia, na Alerj, além de outras atividades. Recebi uma homenagem do América Futebol Clube, como personalidade negra jovem. Nem preciso falar que fiquei todo bobo. Primeira homenagem da minha vida. E quem entregou o troféu foi o senhor Edevair, pai do


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Romário. Algumas semanas antes a Claudia Perluxo e o Edu, diretores da ONG Casa de Anyê, nos convidaram para participar do seminário “Música pra que serve?”, em que faríamos a filmagem e a edição de um vídeo institucional. Nossa participação no seminário aumentava a cada dia. Estivemos presentes na filmagem, na mesa de palestra, na produção, na curadoria e ainda editamos e produzimos um DVD triplo, com todo o seminário. Tudo feito em Software Livre. Paralelo ao seminário, a gente produzia a sexta edição do Encontrão, em que pela primeira vez fecharíamos cinco ruas no centro de Morro Agudo e misturaríamos os grupos de pagode locais com o nosso hip-hop. Por causa da visibilidade do Portal Enraizados e do crescimento estrondoso da Rede Enraizados, muitas pessoas ligavam querendo participar dos nossos eventos, mas infelizmente não tínhamos estrutura para alojar todos. Cada um que viesse deveria arcar as despesas, como foi o caso dos Realistas NPN, que vieram com um ônibus com 40 pessoas de Belo Horizonte (MG) no dia do 6º Encontrão, 25 de novembro de 2006. Eles chegaram pela manhã e fomos todos para o Ciep 117, onde aconteceria o seminário, que na verdade foi uma espécie de bate-papo em que as pessoas trocaram ideias e falaram de suas experiências de vida. Nesse dia conhecemos o Ice Band, que contou a história mais chocante. Se envolveu com o crime, tomou vários tiros e, segundo ele, foi resgatado pelo hip-hop. O Ice Band comentou que as mães das crianças do seu bairro diziam aos filhos que se eles não as respeitassem ou enveredassem pelo caminho do crime ficariam como ele, com um olho de vidro, manco de uma perna e com várias cicatrizes no corpo. Ele dizia que o crime servia pelo menos pra isso: ele servia de exemplo para as crianças


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não entrarem na vida errada. Neste dia fazia muito calor, acho que uns 45 graus. Os mineiros estavam desesperados, nós também, mas não falávamos nada para não assustar ainda mais nossos amigos. Todos procuravam uma sombra para escapar do sol, mas o calor castigava. O dono do bar Continental, bar onde eu e Dumontt parávamos com frequência para beber umas cervejas, ficava em frente ao palco e vendeu bastante cerveja. Ele também colaborou conosco, liberou todo o estoque de água mineral para nossa equipe e nossos convidados. Conversamos com os grupos que se apresentariam no evento, expondo nossa vontade de gravar os shows e produzir um CD e um DVD para divulgar o trabalho artístico e gerar renda, mas para isso precisaríamos da liberação das músicas para comércio. Argumentamos que todas as músicas que iríamos cantar ali, naquele evento, estavam disponíveis para download gratuito na internet, mas a maioria do nosso público-alvo, pessoas da periferia, não tinha acesso à nossa música justamente por isso. A ideia era a gente disponibilizar as músicas para download nos camelôs. O argumento foi forte, sincero, e todos concordaram. Quando o CD e o DVD “6º Encontrão ao vivo” ficou pronto, enviamos para todos os envolvidos no projeto, disponibilizamos as músicas na internet e fomos para as ruas negociar com os camelôs. Nossa ideia era dar a matriz para os camelôs, que fariam as cópias, e de cada CD ou DVD que eles vendessem voltaria um real para a organização. Eles toparam e no começo até que devolviam parte da grana, que não era muita. Mas nem todos os grupos que participaram do projeto fizeram o mesmo. A iniciativa deu parcialmente certo. Os CDs e DVDs se alastraram por bancas de camelô do Rio de Janeiro. Inclusive a Lisa Castro, do Ultimato à Salvação, foi reconhecida na rua por


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causa do DVD. E essa pessoa comprou o DVD em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Participaram da coletânea os grupos Re.Fem (Duque de Caxias), Ultimato à Salvação (Nova Iguaçu), Léo da XIII (Nova Iguaçu), Família MDG (Itaboraí), Missionários do Rap (Belo Horizonte), Realistas NPN (Belo Horizonte), Wiza (Rio das Ostras), Marcio RC (Nova Iguaçu), RDF (Belo Horizonte), Sindicato do Rap (Belo Horizonte), ainda outros. Quando fechamos contrato e alugamos nosso primeiro espaço, o Dumontt convenceu a proprietária e nós não precisamos de um fiador. Um escritório de 10m² onde muita gente importante passaria no próximo ano, e a gente nem imaginava. Eu, Dumontt, Léo da XIII, Guará e Short pintamos a sala e fizemos a mudança. Montamos todos os equipamentos do Ponto de Cultura. Nem sei como coloquei aquilo tudo pra funcionar. Meu computador e o do Dumontt foram pro escritório também. O Dumontt alugou um apartamento ao lado da sala, ele era o nosso segurança. No mês seguinte eu e Dumontt decidimos deixar nossos empregos para nos dedicarmos em tempo integral ao Movimento Enraizados. No dia 20 de dezembro de 2006 eu e Dumontt pedimos demissão dos nossos empregos formais.



Comunicação: passeando entre classes Ao começar o meu próprio negócio, descobri que você pode ter a maior ideia do mundo. Mas não vai chegar a lugar nenhum se não conseguir vendê-la às outras pessoas. — Roger von Oech

No fim de 2006 fizemos uma festa na casa da Rosinha e entregamos os certificados dos Agentes Cultura Viva que resistiram fortemente até o fim do projeto. Para a nossa felicidade ficou uma menina chamada Patrícia Ximango, que entrou para o Enraizados a convite do Léo da XIII e continuou mesmo depois do auxílio do governo ter acabado. Ninguém imaginava que a Patrícia ficaria no projeto. Ela era roqueira, não suportava rap, chegava às reuniões toda vestida de preto, com piercings e tudo mais. Quem diria que dois anos mais tarde ela trabalharia conosco como auxiliar administrativa. A cada ano a organização crescia mais. O Dumontt dizia que crescíamos uns 500%. A Rede Enraizados estava em dez estados com instituições e nos 27 estados com artistas e pessoas que nos procuravam querendo ajuda, espaço e atenção. Nós nos autoanalisávamos sempre para entender o que realmente éramos. Tudo acontecia rápido demais. Eu e Dumontt trabalhávamos como mentores, financiadores e carregadores. Fazíamos o trabalho intelectual e braçal. 190


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Nosso portal beirava os 600 mil acessos mensais. Dezenas de pessoas no bairro falavam o tempo inteiro de nós. Tínhamos força política na cidade e conhecíamos pessoas do Brasil inteiro, além das que moravam em outros países. Mas não sabíamos nos definir bem, éramos mutantes. Oferecíamos atenção às pessoas que nos procuravam e espaço no Portal Enraizados. Uma de nossas características era tratar todos de forma igual, não importava se o cara era famoso ou anônimo, o espaço era o mesmo. E isso a gente mantém até hoje, é uma identidade. Nós tínhamos muitos contatos. A gente tinha o hábito de compartilhar de tudo, e começamos a compartilhar os contatos também, apresentar pessoas, fazer com que gente que podia se ajudar se conhecesse conforme a necessidade de cada um. Com isso a Rede Enraizados crescia ainda mais. Até hoje utilizamos todas as ferramentas gratuitas de comunicação da internet para particar a Cyber Militância, e ensainávamos os outros a fazer isso também. A partir daí, universitários, tanto alunos como professores, nos procuravam para entender como tudo funcionava. Quando nós contávamos de forma simples e objetiva, a reação deles era de espanto. O ano de 2007 nos preparava uma grande surpresa. Além de militantes e artistas do hip-hop do Brasil inteiro, a gente também teria mais próximo pessoas e organizações bastante influentes, que nos ajudariam a encarar a nova fase da nossa vida. Bem no início do ano, eu e Dumontt conhecemos o Aercio, da Fase. Um dia ele ligou e marcou uma conversa. Fomos ao encontro dele num bar em Nova Iguaçu. Lembro que eu e Dumontt demos uma mancada, pedimos uma cerveja mas o cara não bebia. Todos bebemos água.


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Não lembro muito bem para que o Aercio marcou a reunião, mas sei que a gente queria se aproximar da Fase porque diziam que ela ajudava as organizações que estavam começando. Eu acho que ele nos fez um convite para participarmos de um projeto de juventude chamado “Derechos e direitos”, que aconteceria durante dois dias na Cáritas, em Nova Iguaçu. Participaram deste projeto, além de nós dois, a Gil Torres e o Eliel Garcia. Nesse primeiro projeto encontramos alguns amigos que já trabalhavam com hip-hop. A galera do Setor BF, organização de hip-hop de Mesquita, liderada por Mad, Sebá e Nego Joe, que já eram nossos amigos. Conhecemos também outros jovens, que não trabalhavam com hip-hop, mas com circo, mobilização comunitária, tinha também um pessoal de São João de Meriti que mexia com griot, além de alguns jovens que não eram tão organizados, mas já exerciam uma atividade de liderança em sua comunidade. Depois deste projeto com a Fase o Movimento Enraizados passou a direcionar mais as atividades. A gente entendeu o que significava exigir direitos e o que significava direitos humanos. A partir de então tudo o que fazemos tem como base a exigibilidade de direitos humanos, e utilizamos a nossa arte como ferramenta. A população de Morro Agudo já conseguia enxergar o Movimento Enraizados como uma organização de juventude do bairro. Eles não sabiam de onde vínhamos, nem onde estávamos, parecíamos fantasmas que sumiam, de repente apareciam para balançar o bairro, depois desapareciam novamente e deixavam como marca uma mudança significativa. Como muitos estudiosos, jornalistas e representantes de organizações sociais e culturais começavam a frequentar Morro Agudo para conhecer os meninos que mobilizavam pessoas no Brasil inteiro, os comerciantes tentavam dar informações sobre nós.


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Os visitantes perguntavam: — Você conhece os Enraizados? — Sim, conheço. — Onde é a sede deles? — Ah! Isso eu não sei, senta ali na praça que daqui a pouco passa um deles por aqui, com uma camisa que tem um desenho igual ao daquela pintura que tem lá na praça, é só você prestar atenção. — Tudo bem, obrigado. — De nada.

Quando a gente passava os comerciantes comentavam. — Ei, rapazinho!!! — Ôpa, fala aí! — Apareceu um pessoal do jornal aqui procurando vocês e eu falei pra eles que vocês de vez em quando passam ali na praça. Ele conseguiu achar vocês? — Sim, conseguiu. Obrigado! — De nada.

Era tudo muito divertido. Eu pensava que isso só aconteceria num futuro bem distante, mas já era a nossa realidade. Além disso, outro acontecimento anormal no bairro era a presença de pessoas de outros países. Nós começamos a receber a visita de pessoas de diversos países, como a Audrey, da França, que veio nos conhecer e mostrar sua arte. Ela trabalha numa organização chamada Meninos de Rua, na França. O ano de 2006 foi certamente um ano de muitas atividades, em que nos dividíamos para conseguir dar conta de tantos compromissos. Mas em 2007, como já tínhamos um escritório, começamos a receber visitas de pessoas importantes. O Dumontt mais uma vez tinha razão, era fundamental termos um lugar para receber as pessoas.


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Em meados de fevereiro de 2007 conhecemos algumas pessoas que trabalhavam numa nova secretaria da prefeitura de Nova Iguaçu, a Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Violência. Conhecemos o Tiago Borba e conversamos com ele sobre a quadra do Ciep 117. A gente não desistia da ideia de ocupar aquele lugar. O Tiago foi conosco até Morro Agudo conhecer o local. Pulamos o muro e entramos na quadra. Ele ficou impressionado. Também não entendia como um local daquele tamanho poderia estar sem utilidade, ao mesmo tempo que a comunidade não tinha equipamento público para prática de esporte e cultura. Eu, nessa época, não acreditava mais que existissem pessoas de bom coração. O Dumontt acreditava menos ainda, mas a gente reparou que o Tiago era diferente. O cara tinha um ar de sinceridade, de positividade. Nessa época também conhecemos o Luiz Eduardo Soares, antropólogo e cientista político brasileiro, que era o secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência da prefeitura de Nova Iguaçu. Ele ligou e marcou uma conversa conosco, em nosso escritório. Queria conversar, começaria a atuar na cidade e gostaria de conhecer as organizações culturais e de juventude. Lembro que no dia marcado, meia hora antes do horário, ele ligou para o Dumontt e avisou que se atrasaria um pouco. O Dumontt comentou comigo que havia gostado da atitude dele, nós estávamos acostumados a pessoas que marcavam, chegavam atrasadas e nem sequer pediam desculpas. Conversamos algumas horas com o Luiz Eduardo e percebemos que as pessoas que trabalhavam com ele tinham essa mesma energia positiva. Ele nos tratou de igual para igual, assim como as outras pessoas que passaram por ali. A diferença é que ele nunca foi embora, está até hoje de olho na gente.


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Luiz Eduardo disse que talvez alguns amigos pudessem nos ajudar, mas que não podia prometer nada. Entraria em contato com eles e, se houvesse uma resposta positiva, nos comunicaria. Ficamos ansiosos pela resposta durante algum tempo. Enquanto aguardávamos o contato do Luiz Eduardo, as reuniões abertas realizadas aos sábados na casa da Rosinha deram lugar ao Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância). Conversamos com os meninos e meninas que participavam das reuniões convencionais e explicamos o que era o Cefam. Dissemos que iríamos estudar, conversar e compartilhar tudo o que a gente aprendia com os nossos irmãos, família e amigos, além de identificar a violação de direitos em nosso bairro e colocar em prática a exigibilidade de direitos humanos. Cerca de 15 pessoas toparam participar e todo sábado estavam presentes. Sempre com um ar meio profético, o Dumontt me perguntou o que era importante a gente fazer para evitar que as pessoas se afastassem das reuniões do Cefam. Eu disse que seria legal a gente passar uns filmes, mas lembrei que não tínhamos televisão e nem DVD. Ele respondeu: “Vamos comprar esses equipamentos, eles são necessários. Depois a gente marca as sessões de cinema uma vez por mês.” Eu concordei, mas lembrei a ele que não tínhamos dinheiro nem para pagar o aluguel do escritório. Ele disse simplesmente que a gente compraria o equipamento porque era necessário. Fazíamos muita dinâmica, como nas reuniões convencionais. O Dumontt preparava o material para a aula de um sábado e eu preparava a do sábado seguinte. Junto com o Átomo, selecionamos os temas que seriam abordados ao longo do ano. Uma das dinâmicas deu resultado muito positivo. Li a cópia de um livro de dinâmicas procurando algo que pudesse fazer nas reuniões de sábado.


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Achei uma que era perfeita, mas precisava de algumas modificações. Pesquisei o nome de diversas lideranças negras brasileiras, confesso que da grande maioria eu nunca tinha ouvido falar. Coloquei o nome delas numa folha de caderno. No sábado cada participante do Cefam escolheria um nome, e eu colocaria o nome do participante ao lado do nome escolhido. Uns escolheram o nome mais engraçado, outros nomes parecidos com os deles, mas a missão era pesquisar sobre o nome escolhido, fazer um estudo e no sábado seguinte dar uma aula para os outros companheiros sobre quem era a liderança sobre a qual eles pesquisaram. Eu e Dumontt também participamos. Eu pesquisei Milton Santos e o Dumontt, Luiz Gama. O resultado foi surpreendente. Para pesquisar, os participantes do Cefam passaram a semana inteira no escritório do Enraizados, usando os computadores. Depois de pronta, a pesquisa foi para o Portal Enraizados. O exército do Cefam era formado por: Dudu de Morro Agudo, Dumontt, Átomo, Willian Robson, Rafael, Mailini, Lisa Castro, Sidélia Cantuária, Eliel Garcia, Barraquinha, UR Clau, Marcela, Patrícia Ximango e Léo da XIII.


Se não sonhássemos, não sairíamos do lugar Há dois tipos de pessoas no mundo: os realistas e os sonhadores. Os realistas sabem onde estão indo; os sonhadores já estiveram lá. — Robert Orben

Até então não tínhamos atrasado nem um mês de aluguel, mas era sempre por pouco. Às vezes um dia antes do vencimento a gente não tinha nem um real em caixa. Como um milagre recebíamos uma ligação, era alguém querendo contratar uma apresentação minha, mas a pessoa só poderia pagar 200 reais, que era justamente o valor que precisávamos para quitar o aluguel daquele mês. As coisas foram apertando de tal forma que às vezes eu e Dumontt dividíamos um miojo na hora do almoço e na janta eu ia pra casa da minha mãe e ele pra avó dele. Eu e Dumontt não sabíamos fazer projetos, tínhamos apenas alguma ideia. Numa época um pouco melhor, tínhamos dois mil reais em caixa. O Dumontt me chamou pra conversar e falou sobre a importância de termos uma formação em produção cultural. Disse que havia um curso no centro do Rio de Janeiro que estava com uma turma quase formada. Eu concordei, se era necessário deveríamos fazer. Achei que nós dois faríamos o curso, pois acreditava que custava no máximo uns 200 reais. Quando 198


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ele disse que o valor do curso era justamente todo o dinheiro que tínhamos em caixa, entrei em desespero. Logo agora que estávamos conseguindo dar uma respirada, íamos voltar ao zero novamente. Ele ainda pediu que eu fizesse o curso e depois passasse o conhecimento. Como o Dumontt é bem mais paciente para ensinar do que eu, fez o curso e nos ensinou o que aprendeu. Logo depois conseguimos aprovar um projeto na Peace Child. Era o projeto de um jornal temático chamado “Voz Periférica”. Uma continuação, ou evolução, do zine “Voz Periférica”. Seriam três edições com o objetivo de desmistificar a linguagem jurídica das leis que estabelecem nossos direitos. Uma edição falando sobre o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), outra sobre os Direitos do Consumidor e por último uma abordando partes da Constituição Brasileira. A ideia era que somente os meninos fizessem o jornal, sem que eu e Dumontt interferíssemos. Antes mesmo de escrever o projeto chamamos Patrícia Ximango, Léo da XIII, Short, Willian Robson e Lisa, que assumiram o projeto. A Patrícia Ximango era a coordenadora, o que pra nós era engrandecedor. A gente começava a entender que o Movimento Enraizados tinha como base o hip-hop, mas ia ainda além dele. Até os dias de hoje, a gente presenteia com o jornal as pessoas que nos visitam, e levamos também para as escolas e seminários de que participamos. O ano de 2007 foi um ano de altos e baixos para o Enraizados. Quando a gente estava novamente em baixa, tentando escrever alguns projetos, o Dumontt entrou no site do Governo Federal e viu que o edital para o Prêmio Cultura Viva estava aberto. Ele inscreveu a Rede Enraizados, mas não acreditava que pudéssemos ganhar. Ele passou dias e noites preenchendo dezenas de formulários, juntando e enviando documentos, enquanto eu me ocupava com a


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organização. Pelo menos uma vez na semana ele falava do prêmio, eu concordava e procurava dar uma força pra ele continuar, afinal estava muito confiante. Meses depois ele me disse: “Dudu, estamos entre os 200 selecionados.” E eu disse: “Parabéns!!!”, mas não botava muita fé. A gente estava entre as duzentas iniciativas. Pô, duzentas é muita coisa! Mas o Dumontt continuava na empreitada. Algumas semanas depois: “Dudu, a gente está entre as cinquenta iniciativas.” E eu, como sempre: “Parabéns! Agora vai, hein!” E o Dumontt preenchendo mais formulários, pedindo para eu ler os textos, dar opiniões e ajudar a procurar umas fotografias. Mais algumas semanas se passaram e ele veio: “Dudu, tu não vai acreditar, filhote.” E eu: “Fala tu, o que tá pegando?” E ele: “Estamos entre os dez!” Aí eu já fiquei preocupado. Entre quase 2.000 iniciativas, nós estávamos entre as dez. Eu comecei a ver uma luz no fim do túnel. Algumas semanas: — Dudu, reúne o pessoal porque a gente está entre os três. Agora é à vera. Ruim de tudo a gente tá com 10.000 reais no bolso e dá fazer melhorias na organização. — Como assim entre os três? — Lembra do Prêmio Cultura Viva? — Sim, lembro. — Então, a gente está entre os três primeiros lugares e na próxima semana vai vir um avaliador nos visitar, pra ver se o que a gente escreveu no edital é verdade.

Eu estava meio desnorteado com a notícia, mas disse: — Tá tranquilo, vou reunir a galera.

A gente não tinha um centavo em caixa, mas era necessário alugar um carro pra mostrar a comunidade pro cara, ele tinha que ver como era o nosso dia a dia no bairro. Alugamos o carro com o cartão de crédito. Liguei para a


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nossa galera, e no dia estavam todos presentes no horário marcado, mas o avaliador chegou muitas horas atrasado e o Dumontt cobrou isso dele o tempo inteiro. Algumas pessoas do Enraizados disseram para seus patrões que chegariam um pouco atrasadas no trabalho para poderem estar presentes na avaliação, mas não puderam participar por causa do atraso do avaliador. Ele se apresentou como Alan Arrais, um produtor independente, contratado pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) para fazer a avaliação. Ele começou a fazer algumas perguntas técnicas a respeito da organização para o Dumontt e para mim, mais para o Dumontt. Depois ele começou a perguntar a respeito dos participantes, e o Dumontt respondeu: — Por que você não pergunta pra eles?

O Alan perguntou se realmente podia, porque nas outras organizações avaliadas era sempre uma pessoa que falava por todo mundo. Enquanto ele conversava com a galera, eu e Dumontt tentávamos resolver a questão do aluguel e outros assuntos pendentes que envolviam o dinheiro que a gente não tinha. O Alan também ficou impressionado com o protagonismo feminino presente no Enraizados, e eu nem havia percebido isso. Neste dia estavam Lisa Castro, Suellen Casticini, Mailine, Marcela e Patrícia Ximango, e o Alan trocou altas ideias com elas. O melhor ainda estava por vir. A galera foi embora e nós tínhamos que levar o Alan para dar uma volta pelo bairro e mostrar que éramos articulados com o poder público. A ideia era levarmos ele até o Paulô, que era da articulação política da prefeitura. O Paulô já era Enraizados até os ossos, a pessoa mais indicada para conversar com o Alan e falar bem de nós. Mas o universo conspirava a nosso favor e nos três quilômetros que separavam


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o nosso escritório do local onde o Paulô nos esperava, havia dezenas de pessoas que falavam conosco na rua, nos cumprimentavam o tempo inteiro, paravam o carro que nós estávamos para contar uma história, pediam ajuda, muitas estavam com nossas blusas e isso com certeza mexeu com a cabeça dele. Quando chegamos ao Paulô foi tudo como deveria ser, mas não combinamos nada com ele. Dissemos apenas que viria um camarada avaliar o Movimento Enraizados para um prêmio que estávamos concorrendo, e o Paulô fez bonito. Para fechar com chave de ouro levamos o Alan até o Aércio, da Fase, para mostrar que tínhamos articulação com outras organizações também. Já era noite e o Aércio estava no colégio Monteiro Lobato, nesse dia aconteceria uma reunião da Fase por lá. Quando o Alan começou a conversar com o Aércio a nosso respeito, fiquei perto observando suas respostas e não conseguia entender por que ele falava sobre nós como se o que fizéssemos fosse algo sem importância. Tive essa impressão no início, mas o Aércio sabia muito bem o que estava fazendo e terminou de modo genial usando uma ótima frase de efeito. O Alan perguntou a ele: “O que você acha do trabalho deles?” E o Aércio: “Eu não vejo nada de mais, a Fase já faz um trabalho parecido há algum tempo...” Eu não conseguia acreditar que ele estava tirando o foco de nós. Até que, minutos depois, usou a tal frase de efeito: — Mas tem uma coisa que me intriga nisso tudo. A Fase trabalha com um orçamento parecido com o de uma prefeitura de pequeno/médio porte e tem muitos funcionários, o que torna possível realizar um projeto desses, porém o Dudu e o Dumontt, junto com os outros Enraizados, não têm um tostão e executam perfeitamente a Rede Enraizados, com maestria. Como eles fazem tudo isso sem dinheiro, eu juro que não sei.


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Nessa hora o olho do Alan brilhou e eu abri um sorriso enorme. Depois disso levamos o Alan na estação de trem de Nova Iguaçu, e ele foi embora. Após essa missão nossa vida voltava ao normal, na incessante busca pelo dinheiro para pagar o aluguel. O dinheiro não aparecia, mas continuávamos nas páginas do jornal “O Dia”, graças ao desempenho do Portal Enraizados, que ultrapassara a marca de 600.000 acessos mensais, e nossas atividades. O projeto Enraizadinhos, uma coleção do Movimento Enraizados voltada para o público infantil, com dezenas de personagens usados em desenhos animados, cadernos, roupas, foi idealizado pelo Dumontt e materializado nos papéis pelo Willian Robson, um ótimo desenhista. O CD e o DVD “Sexto Encontrão ao vivo” estavam na boca do povo. E nossas produções audiovisuais, tendo como carro-chefe os filmes no formato Contra Cinema – um filme feito no mesmo dia, por amadores, sem atores, roteiro, figurino, cenário, apenas com ideias – e o documentário sobre o primeiro emprego, dirigido pelo Dumontt. Mais uma matéria no jornal “O Dia”: Cultura negra on-line Oito anos depois de o Movimento Enraizados começar timidamente, em Morro Agudo, a divulgar o hip-hop e culturas afins, como o grafite e o break, a página na internet do grupo de Nova Iguaçu (www.enraizados.com. br) ganhou impulso e hoje ostenta a marca de 600 mil acessos mensais. No rastro do sucesso, as conquistas do grupo encabeçado pelo rapper Dudu de Morro Agudo incluem vários CDs independentes e um DVD ao vivo, produzidos no estúdio de edição de vídeo obtido através de convênio feito com o Ministério da Cultura.


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Na lista de realizações para este ano, destacam-se a produção de três documentários feitos pela câmera digital obtida no pacote do governo federal e a publicação de uma história em quadrinhos, na qual os personagens foram criados nos moldes da cultura hip-hop. “São conquistas que estamos obtendo com muita luta da nossa comunidade. Aprendemos que o mais importante no momento é mostrar o trabalho dessa galera da periferia. Por isso, não nos incomodamos se os CDs vão ser pirateados ou se vão baixar na internet”, disse Dudu de Morro Agudo. O Movimento Enraizados é uma organização que tem como objetivo principal identificar, capacitar e orientar artistas e militantes para o ativismo cultural. “Somos organizados em uma rede presente em quatro continentes. Estamos na Colômbia, Portugal, Espanha, Finlândia, França, Bélgica, Angola, Moçambique e Japão”, contou Dudu. No site, os rapazes do Enraizados expõem pensamentos, atividades e mandam para o mundo músicas de jovens que não têm acesso à mídia. Através do Centro de Estudo de Ativismo e Militância (Cefam), os jovens da comunidade participam ativamente da vida política, social e cultural da cidade. Helvio Lessa, jornal “O Dia”, 20 de maio de 2007

Foram quatro páginas de jornal. Sempre que estávamos nos jornais nossa autoestima ia nas nuvens, por isso quisemos várias pessoas nas fotografias. Dessa vez estávamos eu, Jack, Nadir, Átomo, Kall, Faminto, Rafael, Barraquinha, Erivelton, Elicarlos, Dumontt, Short, Samuel, Willian Robson, Lisa Castro e Ur Clau. As reuniões do Cefam esquentavam, os questionamentos eram frequentes. Numa das reuniões surgiu o assunto da necessidade de uma rádio comunitária para tocar nossas músicas (a maioria dos participantes era MC) e propagar


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nossas mensagens no bairro. A galera participava efetivamente das atividades da organização. Visitávamos outras organizações do bairro, como a escolinha de futebol do Ouro Preto, onde o Cefam foi conversar com a criançada, que adorou, pois chegamos com muitos doces. O Cefam também se preparava para produzir o sétimo Encontrão. Sem que perdêssemos o fôlego, na semana seguinte já aconteceria o sétimo Encontrão. O Dumontt, como sempre, fez toda a articulação para conseguirmos palco e som, eu articulei com os artistas para se apresentarem. Além dos artistas do nosso casting – Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII, Ultimato à Salvação, Fator Baixada e Poetas da BF –participariam do evento o rapper Kapella, de Mesquita, e a banda Nego Kapor, do Maranhão. A nossa rede funcionava perfeitamente, estiveram presentes Enraizados de Rio das Ostras, São Gonçalo, Belo Horizonte, Itaboraí, Rio de Janeiro (Santa Teresa e Jacarepaguá), Duque de Caxias, São João de Meriti, Queimados, Japeri e de muitos bairros de Nova Iguaçu. A LUB (Liga Urbana de Basquete) estava cobrindo o evento, o que para nós foi uma honra.


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Algumas luzes no fim do túnel

Não há maior prova de ignorância do que acreditar que o inexplicável é impossível. — S. Bilard

Como a maioria dos participantes do Movimento Enraizados eram rappers, eles sentiam a necessidade de um meio de comunicação que divulgasse nossos eventos, tocasse as músicas e interagisse com a nossa comunidade. Mas a gente não tinha grana para comprar um transmissor FM pra montar a própria rádio, e nem queríamos. A gente não conseguiria a concessão do governo e a Polícia Federal estava fechando muitas rádios comunitárias no Brasil inteiro. Então a gente soube que o Dinho, DJ do Fator Baixada, estava trabalhando numa rádio comunitária chamada Atitude FM, que era nova no bairro. Fomos até ele tentar um horário para nosso programa de rap. Dinho cedeu a faixa das 22h à meia-noite, de segunda a sexta-feira. Aí começaram alguns problemas, pois a maioria das pessoas que deu a ideia de montar a rádio eram as mesmas que não queriam dedicar parte do seu tempo para fazer o programa. Entramos num acordo e cada dia da semana ia alguém para a rádio, que ficava a dez quilômetros de distância do centro de Morro Agudo. Todos nós íamos de bicicleta e às vezes alguns iam a pé. 208


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Não tínhamos muita experiência, mas o Dinho nos ensinou. Levávamos de boa o programa, com muita música e notícias sobre as atividades do Enraizados. A equipe que trabalhava na rádio era Dumontt, Kall, Léo da XIII, eu, Lisa Castro e Átomo. Com o tempo percebemos que os integrantes do Enraizados que pediram a rádio não ouviam o programa. Começamos, então, a pedir que eles ligassem para a rádio todos os dias e pedissem também para seus amigos ligarem. Não era justo que nós seis ficássemos até meia-noite na rua, passando por lugares perigosos e correndo até mesmo risco de vida, e eles que estavam em casa não contribuíssem de alguma forma para valorizar nosso trabalho. Éramos uma equipe, e deveríamos trabalhar como tal. Continuávamos a fazer pequenas apresentações em troca de 200 reais pra pagar o aluguel e continuar com nossas atividades. Os gringos continuavam nos visitando, cada vez mais frequentemente. Certa vez o Luiz Eduardo Soares trouxe para nos conhecer alguns representantes do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), e dias depois da organização Room to Ritch. Eu brincava com o Dumontt dizendo que se o pessoal do BID desse uma ajudinha eu pararia de comer miojo, que já estava me fazendo mal. Mas as semanas seguintes reservavam boas notícias e um pouco de paz. Certo dia, eu e Dumontt estávamos trabalhando no escritório, eu ia almoçar na casa da minha mãe e ele passaria mais tarde na casa de sua avó. Já não tínhamos grana para o miojo. Fui andando para a casa da minha mãe pensando que tipo de trabalho poderíamos fazer para descolar uma grana. Mas a única forma que a gente conseguia arrumar dinheiro era fazendo shows. Eu pensei em fazer filmagens e edições, mas as pessoas não pagavam. Pensei também em oficinas culturais, mas


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fazer oficina cultural na periferia cobrando mensalidade é tempo perdido, a galera também não tem dinheiro. Chegando em casa, bem desiludido porque não tinha conseguido pensar em nada, recebi a seguinte mensagem do Dumontt no meu celular (usamos o programa Cool SMS, que envia mensagens gratuitamente para celular através da internet): “Dudu, consegui comprar o miojo. Ah!!! O Luiz Eduardo conseguiu aquele apoio pra gente, acho que são cinco mil euros, nosso cineclube tá garantido.” Eu demorei a entender a mensagem. Como assim conseguiu o apoio? Eu não tinha como ligar pra ele, mas queria saber dessa notícia. Comi metade da comida e voltei correndo para o escritório. Ele me contou a história toda, disse que a gente tinha que fazer uma espécie de proposta, mas metade do caminho já estava andado. Nós íamos continuar comendo miojo, mas agora teríamos um cineclube, e isso era o máximo. Compramos um projetor, um sistema de som que também servia para fazermos nossas festas, e uma filmadora Mini DV da Sony, modelo PD170, que a gente nem sabia usar, mas era a mesma que o Cacau, do grupo Baixada Brothers, usou para filmar o evento Raiz do Hip-Hop, três anos antes. Dias depois recebemos a visita de um senhor chamado Robson Aguiar, coordenador social do projeto de telecentros da RITS (Rede de Informações para o Terceiro Setor) em parceria com a Petrobras. Ele nos procurou porque queria instalar um telecentro na cidade de Nova Iguaçu e havia recebido boas indicações de nós. Gostaria que nós administrássemos o telecentro, mas antes faria uma visita e depois traria um representante da Petrobras para visitar o local também.


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Quando o Robson começou a falar dos equipamentos do telecentro, das atividades que deveríamos realizar para dar acesso à comunidade, ficamos animados. Mas quando ele disse que haveria uma grana para duas pessoas trabalharem no telecentro durante um ano, gostamos mais ainda.O ditado, porém, já dizia: “Alegria de pobre dura pouco.” Ele condenou nosso escritório por causa do difícil acesso. Nós teríamos que conseguir um novo local para instalar o telecentro, e não tínhamos muito tempo. Depois desse susto ele nos deu uma boa notícia. Tinha uma verba pra fazer obra e adaptar o local para receber o telecentro. Assim que o Robson foi embora eu e Dumontt saímos pelas ruas de Morro Agudo procurando um novo local para instalar o Movimento Enraizados. Nossa sede seria no mesmo lugar do telecentro. Vimos dois lugares. O primeiro era uma pequena loja no centro do bairro, mas o aluguel estava além da nossa realidade, cerca de R$800 por mês, mais documentação e fiador. O outro local também era inacessível porque era num prédio e o aluguel era alto. Vimos uma casa, mas a proprietária criou empecilhos porque era para um projeto sociocultural. Ficamos andando de um lado para o outro, sem sucesso, até que vimos uma placa de aluga-se. Atravessamos a rua e olhamos através da grade, o lugar era enorme. O Dumontt queria ligar para ver o preço, mas como esse lugar também era no centro, e a primeira lojinha que a gente viu custava R$800, quanto seria o aluguel deste lugar enorme? Ficamos parados em frente ao local durante alguns minutos, um olhando para a cara do outro e para a placa de aluga-se e decidimos que ligaríamos somente por curiosidade. Para nossa surpresa o aluguel era R$1.000. Ficamos animados por uns dez segundos, quando lembramos que sofremos durante um


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ano pra pagar os R$200 de aluguel do nosso escritório. Havia os salários do telecentro, que somavam R$1.000, mas nós continuaríamos a comer miojo. A gente se enganava dizendo que tudo daria certo, que o dinheiro seria suficiente pra pagar o aluguel. O telecentro viria com um recurso para as obras e o local era tão grande que poderíamos fazer nossos eventos, vender nossos produtos e serviços pra levantar uma grana. Como faltava pouco tempo para o Robson voltar com o pessoal da Petrobras para avaliar o local, ligamos para a imobiliária, por sorte era a mesma do outro escritório, e dissemos que estávamos interessados naquele imóvel. No mesmo dia entramos para ver a estrutura de perto. Além do que havíamos conseguido ver através das grades, havia ainda uma outra parte coberta que era enorme. Definitivamente aquele lugar deveria ser nosso. Fechamos acordo e arranjamos de pagar uma semana depois. Passou-se quase um mês e o Robson não aparecia. Nem sozinho e muito menos com o avaliador da Petrobras. A proprietária do lugar onde alugaríamos estava nos pressionando, dizia que havia outras pessoas interessadas no local. A gente sabia que era mentira dela, mas fizemos o jogo, demos algumas desculpas, sempre afirmando que alugaríamos o imóvel. O Robson apareceu e nos deu a pior notícia dos últimos anos. Por motivos políticos – eu diria politicagem – o telecentro não viria para as nossas mãos, mas para um outro bairro de Nova Iguaçu, onde inclusive já existiam alguns telecentros. Nós realmente acreditávamos no Robson, ele estava sendo sincero, e agora nós estávamos bastante encrencados. Dentre as dezenas de pessoas que passavam pelo nosso escritório, recebemos a Helena Aragão, do site Overmundo, que trabalhava, na época, com o Hermano Viana. Ela ouviu falar de nós em algum lugar e veio nos visitar.


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Já estávamos com a história do Movimento Enraizados ensaiada de tanto que a gente contava. Ela ficou bem próxima, e sem saber entrou pra rede. Falava bastante de nós, até que um dia comentou com algum jornalista da revista “Carta Capital”. Quando recebi a ligação da Renata Carraro, da “Carta Capital”, estava muito ocupado tentando resolver os problemas do novo espaço e não pude dar atenção a ela. Na segunda vez que ela ligou estava ainda mais ocupado, mas não pude deixar de atendê-la. Ela queria saber sobre o CD e o DVD “Sexto Encontrão ao vivo”. Contei toda a história pra ela e ficamos mais de uma hora no telefone. No mês de outubro saiu uma matéria especial na revista “Carta Capital” n.º 464. O hip-hop sobrevive Do Alto do Pascoal para o Morro Agudo. É ali, no maior bairro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, que outra rede articulada em torno do hip-hop mostra sinais de vigor econômico. Flávio Eduardo da Silva Assis, o Dudu de Morro Agudo, é uma das lideranças do Movimento Enraizados, cujo chamariz é o portal www.enraizados.com.br, com uma loja virtual e 600 mil acessos por mês. Tudo começou em 1999. “O site era para divulgar a música, não tinha o objetivo de renda”, explica o rapper. Mas os contatos foram crescendo, gente do Brasil inteiro começou a acessar, e hoje o Movimento Enraizados tem filiados em 16 estados. Depois que se juntou ao Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro (MHHOB), Dudu percebeu que era preciso discutir políticas públicas para a juventude e pensar em melhorias para a comunidade. “Agora vamos criar um espaço cultural com loja, biblioteca, telecentro, cinema.”


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O Enraizados tem um esquema de CDs e DVDs. A última coletânea, “6º Encontrão”, foi toda editada em Software Livre. Com o objetivo de popularizar o trabalho, as matrizes são repassadas para os artistas e camelôs. Nas bancas montadas na rua, cada produto é vendido a 5 reais, dos quais 1 real deve retornar para o Enraizados na forma de pagamento de uma licença (Creative Commons), o que rende cerca de 35 reais semanais. Já os artistas podem reproduzir as matrizes e vender pelo preço que desejarem. Viver do hip-hop ainda é para poucos, mas a experiência como a do Recife e a de Nova Iguaçu mostram uma força econômica embrionária que pode revelar novos elementos desse movimento cultural. Bernardete Toneto, Jaqueline Lemos e Renata Carraro, “Carta Capital” n.º 464, 3 de outubro de 2007

Sem ter de onde tirar grana, fomos procurar nosso anjo da guarda, Luiz Eduardo Soares. Nessa época, a Semuv (Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Violência) estava implantando um projeto na cidade de Nova Iguaçu que acompanhávamos de perto por se tratar de um trabalho com a juventude da cidade. Conversamos com o Luiz Eduardo e fechamos uma espécie de consultoria, dávamos palestras e oficinas, e recebíamos uma grana. Assim, depois de um tempo, conseguimos alugar o imóvel. Batizamos o lugar de Espaço Enraizados. Já estávamos acostumados a trabalhar triplicado no mês de novembro, e em 2007 não seria diferente. Por não ter mais trabalho formal eu viajava bastante, principalmente no mês de novembro. Fui a São Paulo para dar uma palestra no seminário Conhecimento e Cultura Livres e de lá voei para o II Congresso Nacional do MHHOB, em Porto


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Velho. O Dumontt estava a caminho da Argentina para participar do projeto “Derechos e direitos” da Fase. O Dumontt nunca tinha viajado de avião, e foi logo pra fora do país. Ele ficou algum tempo sem aparecer em Morro Agudo, pulava de um estado para o outro. O combinado foi Dumontt ir direto de Buenos Aires para Porto Velho, onde ficaríamos até o dia 7 de novembro. No Congresso Nacional do MHHOB as discussões eram sobre a aprovação dos novos Pontos de Cultura, formação em produção cultural e institucionalização do MHHOB. Como éramos a organização do MHHOB que mais crescera nos últimos anos, e a mais bem aparelhada, ficou estabelecido que a nova sede nacional do MHHOB seria no Espaço Enraizados, em Morro Agudo, e que o Dumontt cuidaria da administração do Instituto Ruas, enquanto eu seria o presidente. Estiveram presentes no congresso, entre outros, Saroba (Porto AlegreRS), Jackson (Porto Alegre-RS), Léo Cabral (Brasília-DF/ Fortaleza-CE), Lamartine Silva (São Luís-MA), Augusto (Rio Branco-AC), Dumontt (Nova Iguaçu-RJ), Dudu de Morro Agudo (Nova Iguaçu-RJ), Edjales Fama (Porto Velho-RO), Branco (Macapá-AP), Morcegão (Belém-PA) e Edi Rock (São Paulo-SP). O Américo Córdola que viria a ser nomeado secretário da Identidade e da Diversidade Cultural, também participou. De Porto Velho o Dumontt voou para Belo Horizonte, onde estava acontecendo o Teia, o maior encontro da diversidade cultural no Brasil, que durou até o dia 11 de novembro. Quando cheguei de Porto Velho recebi a notícia de que estava solteiro, minha esposa havia me deixado. Eram tantas as atividades que nem tive tempo de sofrer, deixei pra chorar em dezembro ou janeiro, meses menos turbulentos.


Entre trancos e barrancos

O homem consequente crê no destino; o volúvel, no azar. — Benjamin Disraeli

Isso não foi legal: parte 1 Havia um camarada chamado Valdemar, meu vizinho, que sempre me emprestava o carro dele para eu fazer uns corres pro Enraizados. Era uma Fiat Uno ano 1989, mas muito conservada. Certa vez, no final do dia, alguns amigos que foram conhecer o Espaço Enraizados convidaram a mim e ao Dumontt para uma festa. Entre eles estavam Viviane Torres, Natanael, Thiago e sua noiva, e outras pessoas que não conhecia bem. O Dumontt não queria ir, mas eu insisti. Havia muito tempo que a gente não saía pra se divertir, era trabalho o tempo inteiro. Mesmo contra a vontade ele nos acompanhou. Algumas pessoas foram no carro comigo, eu estava com o carro do Valdemar seguindo o do Thiago. A 100 metros da festa olhei para o lado, tinha umas cinco mulheres sentadas na calçada bebendo cerveja, quando o carro do Thiago freou por causa de um quebra-molas. As pessoas gritaram tentando me alertar, mas já era tarde demais. Quando percebi já estava afundado na traseira do Celta zero quilômetro. Graças a Deus 220


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ninguém se machucou, mas o prejuízo foi enorme. Eu estava a no máximo uns 40 quilômetros por hora, mas o barulho e o estrago foram tão grandes que eu parecia estar em alta velocidade. E o prejuízo não foi somente material. O Dumontt havia me orientado a não ir à festa e eu insisti para irmos. Além disso tinha a Fiat Uno que meu amigo me confiava para trabalho e eu usei para ir a uma festa. Esse carro significava bem mais que uma Fiat Uno 89 pra ele, dificilmente tirava o carro da garagem pra passear, mas todo domingo colocava o carro na calçada, em frente à sua casa, ligava o som e lavava o carro, mesmo quando já estava limpo. Nem os filhos podiam dirigir aquele carro e ele havia me confiado uma cópia da chave. Essa era uma das muitas coisas ruins que aconteceriam nos próximos meses.

Coisas boas: parte 1 No dia 14 de novembro o grafiteiro Dante liderava a Baixada Crew para grafitar o Espaço Enraizados. No dia 15 aconteceria um cortejo cultural para dar abertura à Jornada Cultural, evento que aconteceria no Espaço Enraizados em que participariam dezenas de pessoas de países diferentes. Eu e Dumontt acompanhávamos todo o processo de perto. No dia 14 à noite, eu tive uma apresentação no centro de Nova Iguaçu, da qual saí às três horas da madrugada, tendo a missão de ir ao aeroporto buscar o Alessandro Buzo, que a convite do Aercio também participaria da Jornada Cultural. No dia 15, além do cortejo cultural, eu fiz uma apresentação no Circo Voador pra levantar um dinheiro. O Léo da XIII foi comigo, mas rapidamente voltamos para o


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Espaço Enraizados, onde estavam dezenas de pessoas de vários países, como Alemanha, Uruguai, Paraguai e Argentina. Era o primeiro evento no Espaço Enraizados, e já um evento internacional. No dia 16 eu tive outra apresentação no Sesc de Nova Iguaçu, e no dia seguinte a Coordenadoria de Igualdade Racial nos fez uma homenagem. Colocaram uma fotografia minha na via Light. Por causa disso meu telefone tocou o dia inteiro, eram os amigos nos parabenizando. Com um descanso de dois dias antes da próxima viagem, aproveitamos que o Buzo estava no Rio e fomos curtir uma praia.

Isso não foi legal: parte 2 No dia 20 de novembro tinha uma atividade em Fortaleza, a convite da Ação Educativa, ONG de São Paulo, em que eu participaria de uma mesa e faria uma palestra. Aproveitei que estaria por lá e contactei a Rede Enraizados no Nordeste para saber se haveria algum evento por lá nas datas em que eu estivesse, pois gostaria de fazer apresentações. Fiquei muito animado com o retorno da galera. Muitos eventos de rap estavam rolando naquele mês e eu havia fechado três apresentações. No dia da viagem saí de casa bem cedo. O aeroporto é distante da cidade onde moro e a rodovia Presidente Dutra costuma engarrafar. Eu poderia ter problemas com o horário. Mesmo com todos os cuidados que tomei, a van que me levava para o aeroporto bateu, mas de uma forma que fechou a rodovia e não havia como qualquer outro carro passar por ali. A batida foi tão violenta que eu estava na parte de trás da van e fui projetado para a parte da frente, ao lado do motorista. Por sorte ninguém se machucou, mas todos


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ficaram bastante abalados. Inclusive o motorista, que não sabia explicar ao certo o que havia acontecido. O acidente foi num lugar sem ruas paralelas. Andei quilômetros para tentar achar um táxi ou qualquer outra condução que me levasse até o aeroporto. Depois de bastante tempo caminhando encontrei um taxista que me levou o mais rápido que pôde, porém nem o mais rápido taxista do mundo faria com que eu não perdesse aquele voo.

Coisas boas: parte 2 O pessoal da Fase ligou marcando uma reunião para o dia 11 de dezembro. Pediram para levarmos um projeto, eles tinham um recurso do Serviço de Análise e Assessoria a Projetos (Saap). Comecei imediatamente a escrever o projeto do Cefam.

Isso não foi legal: parte 3 Estava escrevendo o projeto em casa quando meu telefone tocou. Como eu tinha me separado há pouco tempo, o único móvel que tinha na minha casa era a mesa do computador, que ficava embaixo da janela do quarto. Meu telefone celular, que estava na sala carregando, começou a tocar, mas como estava mal-humorado não quis atender. Poucos minutos depois me chamaram no portão, mas eu também não quis atender. Até que minha tia me disse que era meu primo Júnior Baiano quem estava chamando. Pensei que pudesse ser algo importante, pois dificilmente ele ia na minha casa. Fui atender e aproveitei pra ver quem estava me ligando. Meu primo não queria nada importante, e nem era relevante a ligação que recebi. Quando voltei pra casa, a janela do quarto tinha caído em cima da cadeira que eu estava trabalhando. Decididamente a urucubaca estava solta pro meu lado.


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Coisas boas: parte 3 Como nada de grave aconteceu, terminei o projeto e fomos para a Fase entregá-lo. Para nossa surpresa, lá encontramos alguns companheiros de caminhada, outras organizações de juventude que também foram convidadas. Estávamos entre os três primeiros lugares do Prêmio Cultura Viva 2007 e no dia 18 de dezembro seria a entrega do prêmio, em Brasília. Só lá saberíamos nossa colocação. Como eu era uma espécie de porta-voz do Enraizados, o Dumontt queria que eu fosse pra Brasília. Mas, além dos problemas pessoais que tinha pra resolver, achei justo que ele fosse. Todo o processo começou por causa de sua persistência. E eu estava meio receoso com os fatos estranhos que estavam acontecendo, era capaz até de o avião cair. No dia 18 de dezembro o Dumontt me ligou, superemocionado, dizendo que nossa iniciativa havia ganhado o primeiro lugar do Prêmio Cultura Viva, mais de 30 mil reais. Minhas pernas tremiam, eu suava frio e dava pulos de alegria, fiquei eufórico com a notícia. De uma vez por todas, entre trancos e barrancos, fechamos o ano de 2007 com chave de ouro.



Cap.04

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Cap.04

Estamos


Acionando a Rede Enraizados

O mundo se divide em duas espécies de pessoas: aquelas que querem falar com você e aquelas com as quais você quer falar. — Thomaz Souto Corrêa

O ano de 2008 começou com boas expectativas para a organização: nova sede, Prêmio Cultura Viva e o projeto do Cefam aprovado. Abrimos inscrições para o Cefam, mas apenas 12 pessoas poderiam participar, sem contar comigo e com o Dumontt. Inscreveram-se Guará, Binho, Júnior, Léo da XIII, Suellen Casticini, Ualax, Lisa Castro, Átomo, UR Clau, Marcela, Kadu e Kall. A Rede Enraizados funcionava a todo vapor. Precisávamos comprar uns equipamentos, e acionamos a rede. O Big Dáblio, morador do Capão Redondo, em São Paulo, trabalha numa loja de equipamentos eletrônicos e fez um preço camarada. Fui até São Paulo comprar com ele. Na mesma época, o Jackson Brum, de Porto Alegre, acionou a Rede Enraizados para realizar um projeto chamado “Seis direções”, patrocinado pela Petrobras e pela Funarte. A ideia era grafitar painéis de 100m² em seis cidades, partindo de Porto Alegre (RS) e passando por Florianópolis (SC), Curitiba (PR), São Paulo (SP), Nova 228


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Iguaçu (RJ), finalizando em Belo Horizonte (MG). Quatro grafiteiros locais seriam convidados para interagir com os outros seis que vinham com o projeto. Por meio da Rede Enraizados o Jackson conseguiu os contatos que não tinha em algumas cidades, e o Movimento Enraizados foi responsável pela produção do projeto em Nova Iguaçu. Convidamos os grafiteiros Dante e Tihkin e a grafiteira Anarkia para participarem do projeto. O Jackson chamou o grafiteiro Ments, mas por problemas pessoais ele não pôde participar. Fechamos uma parceria com a SuperVia e nos dias 26, 27 e 28 de janeiro grafitamos o muro da estação de trem de Comendador Soares. Este projeto mudou a cara do bairro. As pessoas comentavam que quando passavam de trem para ir pro trabalho, de madrugada, os grafites transmitiam alegria. Realmente era algo bom. Transformávamos o Espaço Enraizados, que antes era uma oficina de carros, em uma opção cultural para a cidade. A intenção era colocarmos, além do escritório, uma loja para escoar nossos produtos e de parceiros, uma lanchonete, uma biblioteca e um estúdio audiovisual. Queríamos inaugurar o Espaço Enraizados o mais rápido possível, por isso precisávamos de voluntários para as obras não pararem. As articulações eram diárias. Estávamos saindo de um espaço de aproximadamente 10m² e indo para um de 350m². Tínhamos que administrar os recursos de modo que conseguíssemos equipar o novo espaço e pagar as obrigações mensais, como conta de luz e telefone. O Dumontt trabalhava incessantemente em suas articulações, e eu correndo como um louco nas minhas. Em meio desse turbilhão de acontecimentos, recebemos a ligação do Écio Salles, um amigo de longa data em quem sempre confiei bastante. Ele me comunicou que estava


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trabalhando na secretaria de Cultura de Nova Iguaçu, a convite do novo secretário de Cultura, o Marcus Vinícius Faustini, e gostaria de marcar uma reunião conosco. Andávamos distantes da Secretaria de Cultura, porque a relação com os últimos secretários não havia sido muito boa. Numa das reuniões de coordenação eu e Dumontt decidimos conversar com Écio e Faustini. Mas estava claro que era apenas porque o Écio pedia. Se desse algum problema, era deles a responsabilidade. Foi justamente isso que falamos com o Écio, que assumiu total responsabilidade por já conhecer o Faustini e confiar nele. Até hoje não tivemos problemas com eles. Pelo contrário, temos uma relação bastante transparente. Não só na Secretaria de Cultura, mas no dia a dia. Convidamos muitas pessoas para participarem da inauguração do Espaço Enraizados, que aconteceu no dia 5 de abril de 2008. Nosso convite era um cartão-postal que mostrava a localização do Espaço Enraizados via satélite. Eu fui ao correio e enviei um deles para meu endereço para registrar o dia, que foi perfeito. Militantes, universitários, políticos, empresários e, o mais importante, a população de Morro Agudo estavam lá, marcando presença. Nossa loja funcionava com muito movimento. As pessoas não conseguiam acreditar no que viam. Aquele espaço enorme, todo grafitado, equipado, tocando rap, no centro de Morro Agudo, era todo nosso, da periferia. Os Enraizados que vieram de outros estados renovaram suas esperanças, como o Terno e o Alessandro Buzo, do Enraizados-SP, que viram como era possível fazer o mesmo nas suas comunidades.


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Dentre as centenas de pessoas que passaram pelo Espaço Enraizados naquele dia, faço questão de citar o nome de algumas: Lindberg Farias, prefeito de Nova Iguaçu (RJ); Juana Nunes, mobilização e articulação de redes sociais do Ministério da Cultura (DF); Écio Salles, subsecretário de Cultura de Nova Iguaçu, com sua família; Vladimir Palmeira, líder da passeata dos 100 mil contra a ditadura militar, em 1968 (RJ); Cida Diogo, deputada federal (RJ); Tiago Borba, subsecretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência (RJ); Edson, do Cefet (RJ); Elicarlos (Japeri-RJ); Def Yuri, do Viva Rio (RJ); Alessandro Buzo (Itaim Paulista-SP); Marilda Borges (SP); Pêvirguladez (Duque de Caxias-RJ); Pinah (Santa Teresa-RJ); Trutty (SP); Andressa Leite (Méier-RJ); Bruno Thomassin e Jane Thomassin (São Gonçalo-RJ); Numa Ciro (Santa TeresaRJ); Mirian Juvino (RJ); Terno e sua esposa, EnraizadosSP (Parque Bristol-SP); Re.Fem (Duque de Caxias-RJ); Luciano Lyrio (Nova Iguaçu-RJ); Erivelton (Nova IguaçuRJ); Jota Rodrigues, cordelista e xilogravador (Nova Iguaçu-RJ); e Dante (Mesquita-RJ). E não poderia deixar de falar dos militantes e ativistas da comunidade: Dico, Short, Samuel, Suellen Casticini, Júnior, Guará, Kadu, Ualax, Léo da XIII, Kall, Átomo, Lisa Castro, Gil Torres, UR Clau e Marcela. Começamos cedo com a festa, que foi até altas horas da noite com shows de rap e apresentação do cordelista Jota Rodrigues, e terminou com uma roda de samba, no melhor estilo periferia.




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Um elefante branco nas mãos

O que separa as pessoas que alcançam seus objetivos das pessoas que não está diretamente relacionado com a habilidade de saber pedir ajuda na hora certa. — Donald Keough

Dias depois da inauguração abrimos o Espaço Enraizados para a comunidade. Usávamos o cineclube para exibir o campeonato carioca, por isso pessoas que não conheciam a cultura hip-hop passaram a frequentar o espaço por causa do futebol. Fizemos as exibições durante alguns meses, mas paramos porque alguns estavam abusando e o local era para ser familiar. Estávamos muito bem equipados, mas também com muitas dívidas. Precisávamos de maneiras diferentes de obter recursos. Chamei alguns produtores de evento pra conversar. Além dos eventos de hip-hop queríamos fazer também outros tipos, dando opção para a comunidade curtir e conhecer a organização. A loja também era uma boa opção para gerar renda. Como tínhamos uma loja virtual, pensamos em integrar com a presencial. Falei com alguns artistas da Rede Enraizados e ofereci a loja para escoar seus produtos. Seria venda através de consignação, uma espécie de comércio solidário, para

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nosso dinheiro circular entre nós. Fizemos uma faixa com programação fixa do Espaço Enraizados, que começava às terças-feiras. Terça-feira Mistureba: sarau de poesias num misto de músicos populares, rappers e poetas.

Quarta-feira Samba de mesa: samba de mesa que começou com o grupo Reflexo do Batuque e depois abriu para outros grupos de samba da comunidade.

Quinta-feira Cineclube Enraizados: exibição de documentários de curta e longa-metragens.

Sexta-feira Charm soul black: o melhor do hip-hop internacional, do charm e do soul.

Sábado Raiz do hip-hop: o melhor do hip-hop nacional.

Domingo Futebol no telão: a partir das 16h, final do Cariocão.

A programação era permanente, além das atividades que aconteciam durante a semana. Alguém sempre queria fazer uma oficina, apresentação ou workshop no espaço. Emprestávamos toda a estrutura do Espaço Enraizados e não cobrávamos nem um real, o que fazemos até hoje. Estávamos confiantes de que com essa programação, e uma forte divulgação no bairro, a comunidade abraçaria a ideia, e todos os nossos problemas estariam resolvidos. Então o que parecia o paraíso se tranformou no nosso inferno particular.


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Nossos pequenos problemas tomaram uma proporção gigantesca, uma enorme dívida se acumulava e a gente estava com aquele elefante branco nas mãos, sem saber o que fazer. Continuávamos a receber muitos convites e a participar das atividades dos parceiros, como o Favela Toma Conta, projeto realizado pela Suburbano Convicto, organização do Alessandro Buzo, filiada a Rede Enraizados em São Paulo; apresentações para o Graal, projeto da Secretaria de Valorização da Vida e Prevenção da Violência; o Dia da Abolição, projeto da Coordenadoria de Igualdade Racial; além dos encontros da Fase. O Mistureba nunca se firmou enquanto evento. Convidamos alguns músicos e poetas da cidade, mas eles não compareceram durante três semanas consecutivas. Justamente na semana que não fizemos o evento, eles começaram a ligar, querendo participar. O mesmo aconteceu com o Samba Enraizados e o Charm, só que no Samba e no Charm quem não aparecia era o público. Mais uma vez, na semana que decidimos parar com o evento o público bateu na porta, mas infelizmente não podíamos continuar com eventos que davam prejuízo. Enquanto de um lado as coisas iam mal, de outro o Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância) fazia muitos progressos. Uma epidemia de dengue assolava a cidade de Nova Iguaçu. Acionamos escolas particulares e públicas, associações de moradores e líderes comunitários para articularmos uma ação para mobilizar os moradores do bairro contra a dengue. Concluímos que a melhor forma seria uma passeata com as crianças das escolas públicas e particulares do bairro, distribuindo folhetos informativos, esbanjando a alegria da criançada e chamando a atenção da população. Enquanto nos articulávamos com as outras organizações para conversar com


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as escolas, trabalhávamos em outros eixos. Estávamos empenhados em identificar violações de direitos em nossa comunidade. Nós, do Cefam, começamos a nos reunir com mais frequência. Identificamos que o direito de ir e vir dos moradores do bairro era violado tanto pelos comerciantes, que utilizavam as calçadas para expor seus produtos, como pelos motoristas, que estacionavam os carros em cima da calçada, o que inviabilizava a locomoção dos pedestres. Eles tinham que disputar as ruas com os carros em alta velocidade, correndo risco de vida. No dia 10 de maio de 2008, eu, Lisa Castro, Léo da XIII, Guará e Júnior fomos para rua e fizemos o documentário “Cefam: pelo direito de ir e vir”, em que entrevistamos alguns moradores que mostraram a sua revolta com a situação e flagramos algumas violações. Algumas semanas depois, esperávamos de cinco a oito escolas para a passeata contra a dengue, com cerca de 50 alunos cada uma. Mas não sabíamos que havia uma espécie de rixa entre elas. Somente uma escola apareceu, com seis alunos, o que causou grande decepção. O Dumontt resolveu adiar a passeata. Quando todos já tinham concordado que adiar seria a melhor opção naquele momento, chegou uma escola com quase 100 crianças, carregando faixas, cartazes e folhetos. Fizemos a passeata, filmando todo o processo e encantando os lugares por onde passávamos. Fizemos um documentário com as imagens captadas nesse dia chamado “Cefam: na luta contra a dengue”. O retorno da comunidade foi muito positivo. Distribuímos 100 DVDs com o documentário, o exibimos no cineclube, e conseguimos centenas de acessos no Youtube.


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Núcleo de mulheres do Enraizados: uma questão de gênero Há dois tipos de pessoas: as que fazem as coisas e as que ficam com os louros. Procure ficar no primeiro grupo: há menos competição lá. — Indira Gandhi

As meninas do Enraizados sempre me cobravam pelo fato de o Enraizados ser uma organização machista. Eu não tinha muito pra onde correr, minha explicação era sempre a mesma: “Eu não posso criar um núcleo de mulheres porque eu sou homem, vocês têm que se organizar para tomar conta e ocupar o espaço de vocês na organização.” A Lisa Castro já era bastante atuante no Enraizados, mas sozinha realmente era difícil conseguir muita coisa. Em 2008, a Janaina Oliveira, mais conhecida no cenário hiphop como Re.Fem, começou a se aproximar do Movimento Enraizados, apesar de eu já a conhecer havia uns cinco anos e ela sempre participar das atividades da organização. A Lisa Castro e a Re.Fem fazem parte de um projeto chamado “Rap de saia”. Elas se juntaram e idealizaram o evento Donas da Arte, cuja primeira edição foi no dia 31 de maio de 2008. Nesse dia circularam dezenas de mulheres pelo Espaço Enraizados, participando de diversas atividades. Eu, Átomo, Dumontt e Guará somente carregávamos o pesado. 242


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O Donas da Arte nasceu para dar visibilidade à arte das mulheres, especialmente as de Nova Iguaçu, de qualquer faixa etária. O importante era ter um dom. O evento deu visibilidade pro trabalho dessas mulheres, permitindo que outras pessoas da comunidade admirassem suas artes, elevando a autoestima da mulherada. Aconteceram sete edições do Donas da Arte, que hoje se transformou no Núcleo de Mulheres do Movimento Enraizados, liderado por Janaina Oliveira (Re.Fem) e Lisa Castro. A ideia é inserir discussões sobre a questão de gênero no dia a dia das pessoas que fazem parte da Rede Enraizados. Financeiramente o Espaço Enraizados ia mal das pernas, mas socialmente estava indo muito bem. A partir de junho fechávamos as portas da organização para nos dedicar somente a escrever projetos. O simples fato de abrir o Espaço Enraizados gerava custos altos, por isso eu e Dumontt decidimos deixar os portões fechados enquanto nos dedicávamos à elaboração de projetos. Nessa época já havíamos nos comprometido com a Fase para fazer um encontro de juventude no Espaço, que rolou num astral superlegal. Participaram organizações de juventude que não eram necessariamente de hip-hop, como a Rede Funk Social, a Pastoral da Juventude, a Arte Jovem, os jovens griots, Anticinema e Com Causa. Eu me sentia realizado toda vez que uma pessoa nova conhecia nossa sede, por isso organizei um churrasco no dia 28 de junho e convidei uma galera da Rede Enraizados no Rio de Janeiro. Como sempre, vieram pessoas de diversas partes do estado, mas algumas nunca haviam estado em Morro Agudo e marcaram presença nesse encontro. O DJ LP, o Eddi MC, que levou seu filho e a rapper Jamile, o que aumentou mais um pouco nossa rede. Compareceram também um pessoal novo de Mesquita e Campo Grande



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que queriam conhecer o espaço, e os amigos de sempre: Mad, Nelinha, Pêvirguladez, Pinah, Slow da BF e Re.Fem, sem contar com os residentes e minha família – minha mãe e minhas tias que ficaram cuidando do rango. A galera se identificou bastante com a biblioteca, muitas pessoas ficaram lendo durante o evento, que terminou às 22h com apresentações de rap de quase todos os que estavam presentes. A convite do secretário de cultura de Nova Iguaçu, Marcus Vinícius Faustini, participamos da Conferência de Cultura de Nova Iguaçu. Dividi a mesa com o próprio secretário e com a Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Apesar de essa não ser nossa primeira atuação numa Conferência de Cultura, sempre fomos bastante ativos na vida política da cidade, era a primeira vez na mesa com pessoas dessa influência.


Mil fitas acontecendo

Quem não é contra nós é por nós. — Marcos 9:40

Eu e Dumontt estudávamos muito para poder sair daquela situação financeiramente incômoda. Estávamos endividados com cartões de crédito e cheque especial, e até pegávamos dinheiro emprestado com nossos familiares para arcar com os compromissos do Movimento Enraizados. O Dumontt sinalizava que o caminho para sairmos dessa crise seriam os editais públicos, eu aceitava sua ideia, mas mesmo assim insistia em abrir espaço para eventos. Foi quando surgiu a ideia de fazermos o evento “Hip-hop (+)”, que durou até dezembro, contabilizando 24 edições que aconteciam toda semana. Passaram pelo “Hip-hop (+)” os rappers Léo da XIII, Ultimato à Salvação, Poetas da BF, Fator Baixada, Realidade, Dudu de Morro Agudo, Marcio RC, BDO MCs, K.A.S, Estilhaço, Marcelo Comuna, Slow da BF, Wr Soul, DJ Pica Pau, Dom Black, Pêvirguladez e Sagat. Fizemos também algumas edições especiais como a do Encontrão e a de b. boys. O “Hip-hop (+)” era um evento de produção coletiva. O artista era convidado, ou entrava em contato com a organização para fazer uma apresentação, e entrava 246


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na programação do mês, que começou às sextas-feiras. Fechávamos quatro artistas por mês, um para cada sexta-feira. O Movimento Enraizados se comprometia em fazer 10.000 flyers com a programação mensal, o que daria 2.000 flyers para cada artista e mais 2.000 flyers para a organização divulgar. Era o mesmo princípio das coletâneas. Se cada artista divulgasse seu próprio evento, estaria também divulgando o evento dos outros artistas. Além disso, a organização entrevistava o artista na semana do show e publicava a entrevista no Portal Enraizados, o que aumentava a rotatividade de matérias do portal. Fazíamos ainda e-flyers que divulgávamos na internet através de sites de relacionamento e do newsletter com mais de 60.000 e-mails válidos cadastrados. A produção do dia ficava por conta dos artistas. Às vezes dava um desânimo muito grande, pois havia eventos em que ia apenas uma pessoa. Com o tempo percebemos que isso dependia muito do comprometimento de cada artista na divulgação e na produção do seu evento. Nem mesmo o mau tempo era capaz de impedir a realização de um “Hip-hop (+)”. Em paralelo aos eventos de rap a gente emprestava o espaço para grupos organizados e artistas da cidade. Foi como aconteceu o Fórum de Juventude Negra e a apresentação artística do Roberto Lara (músico e ex-secretário de Cultura de Nova Iguaçu), que trouxe um outro público da comunidade para dentro do Espaço Enraizados. Tentamos também inserir o forró como opção. Era um evento que estava dando certo. As pessoas curtiam o lugar, o público do forró consumia as roupas de hip-hop, e começamos a enxergar uma luz no fim do túnel, mas infelizmente o produtor do evento vacilou. No terceiro dia de evento, quando o local deveria se firmar como o ponto de forró do bairro, o produtor não apareceu com o grupo e nem deu satisfação. Depois desse


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dia foi um furo atrás do outro, até que numa noite o grupo que se apresentou cantava músicas pornográficas. Foi a gota d’ água. Terminamos o evento na hora e as últimas moedas do Enraizados se foram. O Bruno Thomassin, cineasta francês, e sua esposa, Jane Thomassin, amigos de muitos anos, são pessoas envolvidas na minha vida, tanto pessoal quanto profissional, se é que conseguimos separar uma da outra. Quando os conheci, não lembro bem o ano, estávamos num bar em São Gonçalo, o Bruno fazia uma filmagem para uns camaradas dele que eu também conhecia, e nesse dia tive um embate ideológico com a Jane, mas logo depois já éramos grandes amigos. Dia 8 de agosto foi a minha apresentação no evento “Hiphop (+)”. Muitas pessoas estiveram presentes, foi inesquecível. O Bruno fez um vídeo com depoimentos dos meus amigos e família. Fico emocionado toda vez que vejo. Neste dia até mesmo a primeira-dama, Maria Antônia, esteve presente com sua mãe e filho, e num rápido bate-papo ela me informou que o edital para o Projovem Adolescente seria aberto em breve, e ela achava que a gente tinha o perfil para executar o projeto. Como essa área não era minha especialidade, disse que falaria com o Dumontt. O Dumontt achou legal e começou a trabalhar no projeto do Projovem Adolescente, dentre as dezenas de outros que estávamos escrevendo. Fomos convidados a participar de uma reunião que aconteceria em Brasília no dia 11 de setembro, em que se discutiria como seria a execução do Prêmio Cultura Hip-Hop – Edição Preto Ghóez, uma espécie de consultoria do governo com instituições nacionais e de referência dentro do hip-hop. O governo daria apenas uma passagem e diária, mas era necessário que o Dumontt também estivesse presente. Começamos uma busca louca por outra


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passagem, contactamos dezenas de pessoas, até que um dia ligamos para a Fase e eles atenderam o nosso pedido, conscientes de que era uma ação importante para a organização. Estavam na reunião o Nino Brown, o Fama, o Gil BV, o GOG, a Fabiana Menini, entre outros.


Articulação internacional

O auge do sucesso é o luxo de dar a si mesmo tempo para fazer o que se quer. — Leontyne Price

A Escola de Música Eletrônica, uma organização sediada no bairro da Cerâmica, em Nova Iguaçu, estava com planos de fazer um curso de DJ, mas queriam ensinar com aparelhagem profissional e com ênfase no hip-hop, e vieram nos procurar. Queriam que nós assumíssemos a oficina na sede deles. Chamamos o DJ Soneca, da Cidade Alta, para ministrar as aulas. Nessa mesma época, a Ana Massa, uma mineira gente fina que estudava na França e estava no Rio de Janeiro fazendo uma pesquisa com grupos de jovens que trabalhavam com hip-hop, apareceu num sábado, dia da reunião do Cefam, para nos pedir para acompanhar nossas atividades. Ela havia começado a fazer uma pesquisa com uma organização francesa chamada Talent et Development e agora planejava fazer o mesmo no Rio de Janeiro. Ana disse que havia passado por algumas organizações no Rio de Janeiro, mas não tivera sucesso. Na conversa com ela, estávamos eu, o Dumontt, o Kall, o Átomo e o UR Clau. O Dumontt não viu problemas em ela acompanhar as atividades, e inclusive orientou que acompanhasse o DJ Soneca na Escola de Música Eletrônica. Era lá o local 250


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onde ela poderia ter mais sucesso nas pesquisas, porque além da oficina de DJ daríamos formação de ativismo e militância, um pequeno braço do Cefam no bairro vizinho. Avisei que não poderia levá-la e apanhá-la todos os dias na Escola de Música Eletrônica. Meu tempo estava curto. Eu levaria naquele dia e depois ela teria que ir sozinha. Usei um termo típico de Minas Gerais para explicar onde era o lugar que iríamos naquele momento: “É logo ali.” Andamos cerca de três quilômetros e a Ana já estava desistindo quando falei que realmente estava chegando. Acho que depois desse dia ela nunca mais foi a pé do Espaço Enraizados até a Escola de Música Eletrônica. A Ana estava toda semana conosco, e com o tempo ela começou a ir direto para a Escola de Música Eletrônica. Foi inevitável que entrasse para a rede também. Fez amizade com o DJ Soneca e com os alunos do curso, que também gostavam muito dela. O Ecio Salles me convidou para participar do seminário Antídoto, em São Paulo. Este seminário é uma parceria entre o Grupo Cultural AfroReggae e o Itaú Cultural. Eu faria parte de um projeto chamado “Onda cidadã”, de que já havia participado no Rio de Janeiro. Esse ano o “Onda cidadã” estava inserido no Antídoto, para gerar um conteúdo mais informal e jovem. Eu saí do Rio de Janeiro pensando que o evento não seria muito interessante, o que resultaria em textos com críticas bastante negativas da minha parte. Mas fiquei surpreso com a qualidade do projeto, com a riqueza de informações e com as maravilhosas e inspiradoras histórias de vida que os participantes compartilhavam com o público, formado em sua maioria por universitários e estudiosos da área de ciências sociais – o que me deixou muito insatisfeito. Na minha opinião, o público deveria ser formado também por líderes comunitários.


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Foi nesse dia que ouvi falar do país Burkina Faso. Sentime um grande ignorante por não conhecer a história do país. Fiquei mais surpreso ainda com a história de vida do líder Koudbi Koala. Assisti ao documentário “Sete dias em Burkina”, de Carlinhos Antunes e Marcio Werneck, em que contam parte da história de Koudbi. Quando saí da sede do Itaú Cultural fui abordado por uma menina, estudante da UFRJ, que conhecia a mim e a história do Movimento Enraizados. Sua professora estava fazendo um estudo sobre nós, inclusive já havia nos feito algumas visitas. Começamos a conversar e falei do meu interesse pelo documentário que acabara de ver, ela disse que conhecia o Carlinhos Antunes e que poderia me apresentar a ele. Concordei na hora e fomos até ele. Eu e Carlinhos trocamos algumas ideias. Contei um pouco sobre o Movimento Enraizados e ele me disse que estaria no Rio de Janeiro na semana seguinte. Se quiséssemos, poderíamos articular uma sessão do filme em Morro Agudo. Achei o máximo, na mesma hora liguei para o Dumontt, que adorou a ideia. Quando cheguei ao Rio, fui rapidamente convidando alguns amigos para estarem presentes no dia da exibição do filme. Ainda teriam a oportunidade de conversar com o próprio Koudbi Koala, Carlinhos Antunes e Marcio Werneck. Foi um dia realmente construtivo. Participaram do encontro eu, Dumontt, Bruno Thomassin, Cacau Amaral, Átomo, Re.Fem e Lisa Castro. Nossas conversas passaram pelo festival de cinema de Burkina Faso, o Fespaco, por técnicas de gravação, equipamentos, curiosidades sobre o país, entre outras coisas. Quando Koudbi e os outros que o acompanhavam foram embora, ficamos conversando eu, a Re.Fem, o Bruno Thomassim, o Cacau e o Dumontt e eu falei com


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o pessoal do meu interesse em fazer um documentário sobre o hip-hop, mas não queria fazer um filme clichê, sem história ou com história repetida, eu queria algo novo. Apresentei então a proposta do filme “Mães do hip-hop”. A ideia de fazer esse filme surgiu a partir de uma conversa que tive com a doutora Numa Ciro, que na época fazia sua tese de doutorado. Ela me fez várias perguntas, uma delas a respeito do que minha mãe achava da minha trajetória no rap, e eu não soube responder. Fui dormir com a ideia na cabeça e sonhei com o filme. Acordei com ele quase pronto, inclusive já definidas as pessoas que participariam da produção. Todos ficaram interessados na empreitada. A conversa sobre o assunto durou alguns meses. Três dias depois da visita de Koudbi Koala, recebemos aproximadamente 40 chilenos, de Santiago. Foram conhecer o Espaço Enraizados junto com a Fase. Faziam parte do projeto “Derechos e direitos”, e esse intercâmbio era muito importante para nós. Eles passaram também pelo Setor BF, em Mesquita, e depois foram noutra favela do Rio de Janeiro. Demos uma volta com eles pelo bairro, os levamos na praça de Morro Agudo, na estação de trem, na farmácia, e depois fomos almoçar. Como de praxe, contamos a história do Movimento Enraizados. Muitos ficaram impressionados com a nossa estrutura, disseram que nossa vida era um sonho. Principalmente o Zerta e o José, que pensavam em morar no Brasil porque as coisas aqui pareciam mais fáceis para o hip-hop. Eu avisei que não era bem assim, quando tivesse um tempo eu contaria toda a trajetória do hip-hop, e como nós havíamos conseguido o que temos. Depois dessa correria fomos para Cabo Frio, para um encontro


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internacional organizado pela Fase, em que cerca de 200 jovens dos países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) mais o Chile participariam, durante quatro dias, de uma série de debates, painéis e oficinas, com o foco na exigibilidade de direitos. Além de participar do evento a gente aproveitava para fazer nossas articulações e aumentar a Rede Enraizados. Fomos apenas eu e Dumontt para Cabo Frio, porque já estávamos envolvidos com o projeto. Os militantes do Enraizados (Kall, Lisa Castro, Átomo e UR Clau) assumiram o controle e fizeram sozinhos o evento “Hip-hop (+)” no Espaço Enraizados, sem a nossa presença, o que na época não era comum. Hoje em dia as coisas já são bem diferentes, e o evento bombou. Tudo estava legal, as ligações com a imprensa continuavam firmes. Estávamos trilhando um caminho de sucesso, articulações com o governo, com a imprensa, com a iniciativa privada e com a sociedade civil. Começamos a pensar na possibilidade das articulações internacionais presenciais, mas dessa vez nós é que iríamos para outros países. Ainda não sabíamos como, mas já estava decidido que iríamos. E quando a gente decide uma coisa, ela acontece. Em uma conversa entre a Ana Massa e o Dumont, surgiu a ideia de fazer um projeto de intercâmbio virtual entre o Movimento Enraizados e a organização francesa Talent et Developement. O intercâmbio consistia em fazer uma música e um vídeo coletivos. A metodologia era simples. Escolheríamos juntos um tema, faríamos o beat no Brasil e enviaríamos para os franceses. Todo o processo de produção da letra da música seria gravado e depois o Bruno Thomassin faria um filme.


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Na hora de executar, utilizamos uma metodologia diferente da organização francesa. Decidimos que o Léo da XIII, que é da segunda geração de MCs do Movimento Enraizados, faria uma oficina de rap com dois meninos da terceira geração, o Kadu e o Júnior. Eles escreveriam juntos e o Léo também participaria da música. Foi o Léo quem fez o beat. Fiquei muito feliz e orgulhoso. Vi que o cara que começou me vendo produzir música tinha evoluído e até me ensinava a usar alguns softwares. Ele evoluiu também na maneira de escrever e cantar rap. Alguns garotos começavam a cantar influenciados por ele. O Léo tem uma maneira peculiar de ensinar a fazer rap, parece que ele semeia uma semente no coração da galera e muitos nunca mais param de cantar. A organização francesa trabalhou de modo totalmente diferente. Eles se reuniram num grupo de 15 pessoas e conversaram sobre o Brasil, o que eles conheciam do Brasil. Depois fariam um rap em cima do tema escolhido. O tema do rap era “As nossas cidades”, Nova Iguaçu e Blanc Mesnil. Retrataríamos os problemas sociais e depois faríamos uma comparação entre as duas cidades e os dois países.




O pulo do gato

Qualquer homem pode alcançar o êxito se dirigir seus pensamentos numa direção e insistir neles, até que aconteça alguma coisa. — Thomas Edison

Apesar de continuarmos no osso, sem dinheiro e cheios de dívidas, ainda assim executávamos vários projetos simultaneamente. Era bom fazer isso. Toda vez que eu pensava que perdi dez anos da minha vida trabalhando em algo de que não gostava, me empenhava mais nos trabalhos dentro da organização, mesmo que não ganhasse dinheiro com isso, mas chega um ponto que fica inviável e o dinheiro tem que vir de algum lugar. Somente no final de 2008 as notícias boas começaram a chegar. Durante o ano pulverizamos cerca de dez projetos, para vários lugares, e, por incrível que pareça, aprovamos os dez. Nosso investimento em conhecimento começava a dar retorno. Dentre os projetos aprovados estavam o Projovem Adolescente (Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social), a Biblioteca Enraizados (Casa da Moeda do Brasil), ambos executados durante o ano de 2009; Festival de Hip-Hop VIII Encontrão (Fundo Municipal de Cultura), executado no início de 2010; o filme “Round one Morro Agudo X Comendador Soares” (Fundo Municipal de Cultura); o Pontão de Cultura Digital (Ministério da Cultura) 258


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e o Pontinho de Cultura (Prefeitura de Nova Iguaçu), realizados em 2010. Além dos outros projetos que executamos sem recurso financeiro. Em dezembro começamos a contratar os funcionários que trabalhariam no Projovem Adolescente e na Biblioteca Enraizados. Como não queríamos qualquer pessoa trabalhando para nós, eu Dumontt começamos a trazer pessoas próximas e depois contratamos aquelas que tinham um perfil parecido com o da organização. Fizemos imersão em que explicávamos o projeto que seria executado e falávamos sobre a organização. O projeto deveria se integrar à organização, não iríamos somente executar o projeto, nós viveríamos o projeto. De novo crescemos absurdamente. A cada ano era mais difícil para nós, eu e Dumontt, traçar as metas, as atividades nos atropelavam, mas sempre fazíamos um esforço para colocar nossos pensamentos em sintonia. Fazíamos uma análise do ano que passara e definíamos as metas para o seguinte, mesmo sabendo que iríamos bem além daquilo, era somente para ter uma direção. A organização que devia dinheiro a todo mundo conseguiu pagar todas as contas e ainda contratou 40 pessoas durante o ano. A experiência de lidar com pessoas era nova pra mim, e se o Dumontt não estivesse à frente eu certamente não conseguiria. Conhecer pessoas é muito bom, mas lidar com elas no dia a dia é algo muito difícil que, sinceramente, não me agrada. Por exemplo, não gosto de falar duas vezes a mesma coisa, acho que quando as pessoas sabem de suas obrigações a cobrança é desnecessária. Mas esse pensamento só funciona na minha cabeça, o mundo real é diferente. É administrar, acompanhar, cobrar, elogiar, chamar a atenção e muitas outras coisas que têm que ser feitas a todo momento.


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O Dumontt tem o prazer, e o dom, de desenvolver algumas atividades que eu não consigo, não gosto e não tenho vontade de aprender. Já eu gosto de fazer outras coisas que ele também não tem a mínima intenção de aprender. Acho que esse é o segredo de a gente trabalhar juntos há tanto tempo, alimentando a organização. Além da confiança que temos um no outro. Para executar o Projovem Adolescente, a equipe deveria atrair os adolescentes para as atividades oferecidas pelo Movimento Enraizados. Eles deveriam ter entre 15 e 17 anos, serem moradores do bairro e beneficiários do Bolsa Família (programa social do Governo Federal). Como tínhamos que executar o projeto em dois polos, nos bairros Morro Agudo e Austin, tivemos que alugar outro espaço em Austin, maior do que o de Morro Agudo e com uma piscina enorme. A gente fazia de tudo para atrair os adolescentes. Eu mesmo fiz apresentações no Espaço Enraizados e em outros lugares onde havia meninos e meninas com o perfil do projeto. Até mesmo as oficinas que seriam executadas deveriam chamar a atenção dos adolescentes. Decidimos colocar oficinas de DJ, ministrada pelo DJ Soneca, de cinema, Bruno Thomassin, de rap, pelo Léo da XIII , e de jornalismo, pela Flávia Ferreira. No mês de abril começamos as filmagens para o filme “Mães do hip-hop”. Foi uma correria louca, gravamos tudo e editamos em um mês. A equipe – Dumontt, Re.Fem, Cacau Amaral, Bruno Thomassin, Felipe Ferreira e eu – adorava trabalhar nesse projeto. Marcávamos as gravações com antecedência, pra não pegar as mães de surpresa, e elas arrumavam uns comes e bebes pra gente. Toda filmagem tinha comidinha pra galera.


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Cada um tinha uma função específica nas filmagens. O Bruno era responsável pela fotografia, a Re.Fem e eu estávamos na direção e no roteiro, o Cacau como auxiliar de fotografia, Felipe Ferreira técnico de som e o Dumontt na produção. No meio do projeto o Dumontt já estava na fotografia e eu e a Re.Fem captando o som. No final éramos eu e Re.Fem dirigindo a edição, e o Bruno editando. Foi um processo cansativo, mas muito importante. O filme pronto ficou maravilhoso. O Bruno ainda legendou para francês. Além de pegar pesado no filme “Mães do hip-hop”, o Bruno Thomassin ainda fazia da oficina de cinema uma das que os adolescentes mais gostavam. Lembro que o Bruno ficou um pouco inseguro na hora de aceitar o convite para dar a oficina. Como ele é francês, achou que o idioma pudesse prejudicar o entendimento das aulas, mas o Bruno é o francês mais carioca que eu já conheci. Um fato legal que aconteceu durante a oficina de cinema foi a TV Brasil fazer uma matéria com o Bruno justamente porque o ano de 2009 foi o ano da França no Brasil. Todo francês que eles conheciam eram cheios da grana e faziam um trabalho bem burocrático. O Bruno seria um contraponto, um francês que trabalhava na periferia da periferia. O Bruno preferiu fazer a matéria no Espaço de Austin, assim os adolescentes poderiam ver a semelhança entre os equipamentos da TV e os que eles usavam nas oficinas, além das técnicas, que eram as mesmas que eles aprendiam na oficina. A garotada achou o máximo. Enquanto os profissionais faziam a matéria para a TV Brasil, eles faziam a matéria para a TV Enraizados e ainda tiraravam dúvidas com a galera da televisão.


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Outra oficina que no início eu achei que os adolescentes não iriam aderir era a de jornalismo, mas eles se interessaram bastante e essa foi uma das mais frequentadas, com menos evasão. Parecia um sonho, por causa do Projovem Adolescente cada vez mais gente frequentava o Movimento Enraizados, e aos poucos essas pessoas se envolviam também com a organização.


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Nossa odisseia pela Europa

Viajar é descobrir que todas as pessoas estão erradas a respeito dos outros países. — Aldous Huxley

Desde que meu disco ficou pronto, em abril de 2008, eu tinha planos de fazer o lançamento fora do país. A nossa rede já tinha uma grande articulação com países como Colômbia, Chile, Portugal, Finlândia, Estados Unidos, Japão, França, Alemanha, Espanha, México, Angola, Moçambique e Argentina, mas não sabíamos se estávamos preparados para essa nova odisseia. Eu, o Dumontt e o Kall fazíamos um curso de inglês no Brasas de Nova Iguaçu, um dos melhores, conseguimos bolsas de estudo através de uma articulação. Nós já sabíamos que precisávamos dominar outros idiomas para diminuir cada vez mais o contato com os intermediários. Quando a Ana Massa se despediu de nós, lembro que ela fez uma cara de que nunca mais nos veríamos, e eu disse: “Tchau, Ana, a gente se vê na França.” Ela achou engraçado o que eu disse e começou a rir. Eu então usei a célebre frase do Racionais MCs: “Pode rir, mas não desacredita, não!” Ela falou que botava fé, e rimos juntos.

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Até que um dia o DJ Soneca chegou ao Espaço Enraizados, acho que isso em fevereiro ou março de 2009, dizendo que estava a fim de ir para a França, tinha contatos por lá. Lembro como se fosse hoje, num dia ensolarado, ele chegou meio desastrado querendo falar comigo: — Dudu, cê tá ocupado? — Não, fala aí! — Cara, tô com uns contatos na França. O que tu acha de irmos pra lá? — Acho legal, por quê? Você quer ir? — Sim, quero! — Então vamos!

Ele começou a rir, e eu também. Até que o surpreendi: “Eu tô falando sério. Tá a fim de ir? Ele deu uma gaguejada e respondeu: —Claro que tô, mas como vamos?

E eu disse: — Essa parte você deixa comigo.

Ele voltou para dar oficina de DJ e eu fui conversar com o Dumontt a respeito da viagem que estava decidido a fazer. O Dumontt estava ocupado com a prestação de contas do Projovem e não deu muita atenção quando falei com ele a primeira vez, somente concordou como se eu estivesse dizendo pra ele que nós íamos no bairro vizinho. Perguntou para quando eu estava planejando a viagem, respondi que não sabia ainda, o mais rápido possível. Lembrei que o Gil BV, do Piauí, havia conseguido passagens aéreas para a França através do edital do Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural, do Ministério da Cultura. Entrei no site para ver o edital, baixei e no mesmo instante comecei a escrever o projeto, antes mesmo de acionar a Rede Enraizados na França pra saber a possibilidade de irmos em maio, como o edital sugeria.


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A ideia era fazer um intercâmbio presencial do projeto Iguaçu-Mensil, dando oficinas, palestras, workshops, shows e produzindo um evento em parceria com a organização Talent et Developement. Como a equipe que trabalhava comigo no meu disco, DJ Soneca e Léo da XIII, também estava envolvida no projeto de intercâmbio virtual Iguaçu-Mensil, era tranquilo levá-los para dar continuidade ao projeto, promovendo um intercâmbio presencial. Quando boa parte do argumento já estava preparado, comuniquei ao Bruno Thomassin, que é francês, estava envolvido na primeira parte do projeto e também iria para a França em maio, que estávamos escrevendo um projeto para viajar para lá, e que eu pretendia fazer uns shows além do projeto Iguaçu-Mesnil e gostaria de contar com ele para me ajudar na articulação e para quebrar a barreira do idioma. Ele, como sempre, topou na hora. Depois de acertado com o Bruno, liguei para Ana e contei a novidade. Ela ficou muito feliz, disse que nos ajudaria em Paris e começou a articular com a Talent et Developement para que nossa passagem por lá fosse produtiva. O Bruno, por sua vez, conversava com a Rute – sua amiga, que trabalha numa associação chamada MJC, na cidade de Nancy – sobre a possibilidade de fechar shows por lá. Ela disse que tentaria arranjar, mas já era quase certo de nós tocarmos em maio na MJC. Se nós fôssemos poderíamos ficar num apartamento da MJC exclusivo para os artistas que se apresentam. Terminei de lapidar o projeto e enviamos para o Ministério da Cultura. Fui falar novamente com o Dumontt que já havia mandado o projeto, ele perguntou se eu precisava de alguma ajuda, estava muito envolvido com a prestação de contas do Projovem Adolescente e com a faculdade, quase não tinha tempo. Eu pedi que, se desse, seria bom ele


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ajudar na articulação política. Pouco tempo depois recebi a notícia de que o projeto estava aprovado. Todos deveriam providenciar o passaporte e os outros documentos solicitados. O Dumontt e o Léo da XIII resolveram esse problema rápido, eu ainda precisava do certificado de reservista. Fui na Junta Militar dar entrada no documento e só depois busquei o passaporte. A situação do Soneca era pior do que a minha. Ele não havia se recadastrado na Receita Federal e seu CPF estava inválido. Por pouco ele não conseguiu resolver essa pendência a tempo de viajar. Quando estava tudo certo com o governo, comuniquei ao Dumontt que compraria nossas passagens. Ele perguntou em que dia iríamos, eu disse dia 31 de maio. Ele se assustou, a data da viagem estava muito próxima, e perguntou quanto tempo ficaríamos na França. Quando eu respondi trinta e cinco dias, ele se assustou novamente. Era muito tempo fora. O Projovem consumia muito o nosso tempo. Além disso, ele cursava administração na UFRRJ, como poderia ficar 35 dias longe da universidade? De qualquer modo, Dumontt disse que tentaria resolver, inclusive pediu que eu comprasse as passagens. Em cima da hora a Rute confirmou um show na MJC no dia 29 de maio, comprei a passagem para dia 25. Quando o Dumontt comunicou aos professores que ficaria fora da faculdade por mais de 30 dias porque iria pra França, todos liberaram, pediram inclusive presentinhos, mas disseram que ele deveria estudar. Voltaria em época de provas. Soube que o governo francês mandava de volta todos os brasileiros que chegavam a Paris. Liguei novamente para a agência onde eu havia comprado a passagem e a atendente me orientou a fazer um seguro para cada pessoa que fosse viajar comigo. Pesquisei na internet e vi


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que realmente o governo francês solicitava o seguro, um documento da prefeitura da cidade onde ficaríamos, a reserva num hotel e um cartão de crédito internacional. Eu fiquei preocupado, como pagaria o seguro? A gente não tinha grana pra isso. Liguei para o Ministério da Cultura e perguntei se poderia pagar o seguro com dinheiro do governo. Eles responderam que sim, esta condição estava inclusive no edital. Fizemos os seguros, falei com a Rute e com a Ana sobre a possibilidade de conseguirem a carta da prefeitura, e fui ao banco pedir ao meu gerente um cartão internacional. Graças a Deus estava tudo dando certo, até que a irmã do Léo da XIII foi até o Espaço Enraizados saber sobre a viagem. Ela me questionou, fez muitas perguntas, estava preocupada com o irmão. Eu tentei acalmála, disse que apesar de o Léo já ter 22 anos estava sob minha responsabilidade. Eu jamais deixaria ele passar dificuldade. Essa era uma oportunidade única pra ele. Então eu disse: “Tem certeza que você quer privar ele disso?” Ela disse que não e pediu pra eu cuidar dele. Sabia que o Léo ficaria irritado quando eu contasse que a irmã dele estivera no Espaço Enraizados. Pedi que ela mesmo contasse e explicase que só falou comigo porque estava preocupada. Esteve lá para saber mais, já que ele não falava em casa. Preparamos muito material para a viagem à França. Além de várias cópias do meu disco, levamos muitas blusas do Enraizados. Mas esperávamos maior retorno do filme “Mães do hip-hop”, que estava pronto e com legendas em francês. Então no dia 25 de maio nós quatro fomos pela primeira vez para a França, sendo que para o Léo da XIII e o Soneca era ainda mais emocionante, era a primeira vez que os dois viajavam de avião.


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Quando chegamos ao aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, a Ana Massa nos esperava, junto com a Anne, que é advogada. Se houvesse algum problema na imigração a Anne resolveria, era o que nós esperávamos que ela fizesse. Foi ela também quem nos levou para a estação de trem Gare de l’Est. Passaríamos os primeiros 14 dias em Nancy, cidade que fica a uma hora e meia de Paris, onde a Rute estava articulando alguns shows para nós. Todas as pessoas que conhecemos em Nancy são amigas do Bruno e da Jane Thomassin. Nos primeiros dois dias passeamos pela cidade, conhecemos o centro histórico, fomos a um restaurante árabe, fizemos compras no supermercado, até que chegou o dia do show na MJC, 29 de maio. O combinado foi que faríamos a apresentação e depois o filme “Mães do hip-hop” seria exibido. O Bruno me apresentou ao Henry, um senegalês, de aproximadamente 1,80m, que toca pandeiro com maestria, e eu o convidei pra participar do meu show. A ideia era o Henry entrar tocando pandeiro no meio da música “Não presto”. Ensaiamos algumas vezes, em nenhuma deu certo, mas mesmo assim decidi colocá-lo no show. Na hora que cantávamos a segunda parte da música, o Soneca parou o beat e o Henry entrou tocando o pandeiro. Eu continuei rimando, foi emocionante, nunca tinha experimentado fazer algo assim nas minhas apresentações. O público foi à loucura, realmente foi muito emocionante. Quando fomos assistir ao filme “Mães do hip-hop”, em vez de olhar pra tela fiquei reparando na reação das pessoas para sentir se o filme passava a mensagem que queríamos. Quando terminou, as pessoas vieram nos cumprimentar, e reparei que somente depois de assistir ao filme elas haviam entendido a proposta do Movimento Enraizados. O filme cumpria o seu papel até mesmo noutro país.


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Depois que cantei não vendi muitos discos, mas logo que o filme acabou a galera comprou uns discos e até autografei alguns. O bom era que o disco, que custava R$6 no Brasil, era vendido por €6 na França. Depois que cumprimos a agenda do show, o Bruno nos levou para conhecer um casal de amigos, Hiogy e Vivane, e suas filhas Mimi e Fujiko. Dias depois conhecemos o Poeta, um ótimo músico, que faz parte de algumas bandas da cidade e nos convidou para fazer uma participação num show do Atomic Kids, uma banda de rock liderada por ele, que faz umas intervenções com rap. No dia 31 de maio quando acordamos, alguém ligou para o Bruno perguntando se os amigos brasileiros já haviam chegado. Ele respondeu que sim e perguntou o motivo da pergunta. O interlocutor explicou que um avião da Air France que saiu do Rio de Janeiro com destino a Paris havia caído no oceano. O Bruno disse que nós já estávamos na França há alguns dias, e desligou o telefone. Quando ele me contou o que havia acontecido lembrei que nós estaríamos nesse voo, a sorte é que a Rute tinha confirmado o show do dia 29 de maio, por isso comprei a passagem para o dia 26, e não para o dia 31, como já estava definido. Deu-me uma sensação ruim. Contei para o Dumontt e o Léo, ambos não ficaram muito preocupados, mas quando contei para o Soneca, ele não conseguia acreditar que pudesse ser verdade. Nossa passagem por Nancy estava sendo muito marcante. A vontade e a disponibilidade de conhecer uma nova cultura nos dava a oportunidade de participar de atividades que víamos apenas em filmes, como, por exemplo, um piquenique. Fizemos várias amizades em Nancy e gostamos muito de ter passado por lá, mas no dia 9 de junho tínhamos que ir para Paris começar o projeto com a Talent et Developement.


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A Ana Massa foi para a casa de um amigo e nos emprestou seu apartamento, que é superpequeno, mas acomodou cinco adultos (eu, Soneca, Dumontt, Léo da XIII e Bruno) por mais quatorze dias. Além de fazer a articulação e produzir várias atividades de que participamos, a Ana, a Anne e a Bettina nos proporcionaram momentos únicos. Fazer um piquenique no canal de Lurc, outro piquenique em frente ao museu do Louvre, depois ir ao Louvre, passear pelas margens do rio Sena, fazer um show num Squat e, é claro, conhecer a torre Eiffel. Na primeira vez que estivemos em Blanc Mesnil conhecemos a sede da Talent et Developement, uma sala na sede de outra organização do governo chamada La Maison des Tilleuls. Neste dia somente vimos o local, Marcamos a oficina de DJ, a apresentação do filme “IguaçuMesnil” (sobre o intercâmbio virtual), e um rápido bate-papo com a juventude local. No início a Ana ficou um pouco preocupada. Ela não poderia nos acompanhar no dia a dia, tinha que trabalhar. Nos ensinou a andar de metrô e de trem, e a partir daí começamos a transitar sozinhos pelas ruas de Paris. No dia 13 de junho começaram as gravações de rap nos estúdios da Talent et Developement. A Ana e a Anne tentaram organizar um pouco a ordem da gravação, mas eram muitos meninos e todos queriam gravar conosco. A gente chegou no estúdio e começou a escrever as letras de rap. O Léo da XIII queria fazer som com todo mundo, eu ia na energia dele e as músicas saíam muito boas. Funcionava mais ou menos assim: a gente chegava às 10h, cinco garotos e garotas queriam gravar conosco. Escolhíamos um tema; o Léo fazia 16 linhas, eu fazia 16 linhas e os garotos franceses deveriam fazer também as 16 linhas, mas eles não tinham esse padrão, o que dificultava bastante. Depois das letras escritas a gente


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gravava, sem mesmo ter decorado a letra. E após a gravação, começávamos a escrever outra letra pra gravar com outro cara. Fizemos o som “Respeito”, com uma garota chamada La Peste, que ficou muito bom, na letra, no beat e na levada. A música está no Portal Enraizados (www.enraizados. com.br) disponível para download. Respeito Léo da XIII Com maior respeito tá ligado parceiro, direto do Rio de Janeiro, Léo da XIII e Dudu de Morro Agudo, tâmo envolvido aqui na Europa com a La Peste, se liga como é que é. Eu não gosto de quem leva e traz meu nome, falar de mim pelas costas, isso é coisa de quem não é sujeito homem passando fome, sonhando com a Cherokee tem uma Preta do lado, mas quer tá casado com a Kelly Key Super rimador, MC, direto da favela história e ficção emociona quem vive de novela a vida é bela né truta e curte mais quem tem não quem acorda com o galo cantando e pega o trem vai vendo bem, isso daqui não é viagem é Léo da XIII no mic com a trilha inspirada no Sabotage em alta voltagem, nem por isso de gloc não sou perfeito, meu defeito fez meu hip-hop não por ibope, por amor, assim é verdadeiro visão artística no mundo, quem não quer dinheiro? nem pagodeiro, nem roqueiro, nem superstar apenas um moleque pele parda que veio pra ficar Enquanto o sol brilhar e a lua aparecer enquanto o dom permanecer, meu rap te envolver


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eu vou, e não importa onde eu vou vagabundo não sou o dono da verdade. Filho do dono do mundo Dudu de Morro Agudo Eu vi oportunidade onde ninguém encontrava porque eu passei pela cidade que ninguém habitava eu encarei o leão de frente e ninguém acreditava que eu sairia de pé, enquanto ele se arrasava sou vencedor e já provei mais de uma vez porque eu driblei o terror e acenei pra vocês o neguinho conquistou, o inimigo é freguês a favela tá atuando e dispensando os dublês sou da Baixada, cria da periferia que cria melodia e realiza um sonho por dia. Geral dizia: - Esses malucos são quente! A mente tá carregada, são mais de trinta no pente e consequentemente poesia vira prosa o rap sai da gente a cento e vinte no corsa a gente está contente e minha vida é a prova de que a gente é que cava a nossa própria cova.

Essa letra foi feita como uma espécie de desabafo, para mostrar pras pessoas que dá pra virar o jogo. É uma letra que se relaciona com superação, por mais que você faça correto, nunca vai agradar a todos. Sempre haverá uma âncora querendo te levar pra baixo ou te deixar estagnado em algum lugar. A saída é seguir o seu caminho, fazer aquilo que você acredita, realizar sonhos, essa é a meta. Se você hoje está por baixo e estão pisando em você, não desista. A roda da vida gira o tempo todo, e mais cedo ou mais tarde você vai estar em cima. É como a história do Enraizados ou de vários brasileiros. Eu me sentia muito bem na França. Desde que cheguei sempre fui muito bem tratado e as pessoas se esforçavam para poder ajudar e agradar. Talvez fosse porque já tivéssemos amizade com algumas pessoas, ou


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simplesmente por sermos estrangeiros, as pessoas queriam estar sempre perto de nós. Ali eu percebi que nada é igual a um intercâmbio presencial. Eles nos levavam pra almoçar, arrumaram um show para fazermos no estádio de Blanc Mesnil, trouxeram beats para gravarmos. Além da troca de ideias, a parte mais legal. O DJ Plays deu um mixer que custa R$3.000 para o DJ Soneca horas depois de o conhecer, a Bettina – que é argentina e trabalha num restaurante dentro do museu do Louvre – conseguiu que nós entrássemos de graça no museu e ainda arrumou uma comidinha pra nós no restaurante onde trabalhava, a Anne conseguiu comida e passagem de metrô para nós durante vinte e um dias. Eu e Dumontt éramos os piores alunos no curso de inglês, porque estávamos sempre envolvidos com alguma atividade do Enraizados e não tínhamos muito tempo para nos dedicar aos estudos. Mas foi justamente o nosso inglês que aguentou a barra na França. Era uma salada de idiomas incrível. A Bettina falava espanhol e francês, a Ana português e francês, a gente falava inglês e português e, como diz o Dumontt, no final de tudo o que salvou mesmo foi a linguagem de sinais. Uma vez demos uma volta pelo bairro 212, e conhecemos uma organização muito legal, onde passamos o filme “Mães do hip-hop” para várias crianças. A intenção era exibir o filme para adolescentes, mas naquela região existe uma rixa entre bairros e os adolescentes não apareceram, somente as crianças assistiram. Na hora do bate-papo, muitos deles nem prestaram atenção, mas alguns , especialmente duas meninas chamadas Fanta, que fizeram várias perguntas como essa: “Como vocês dizem que são pobres e têm casas tão bonitas?” E a gente respondia: “Nossa casa está em obras há mais de 20 anos.” Elas riam e faziam outra pergunta ainda mais engraçada, até que chegaram à pergunta que elas


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queriam fazer desde o começo. Apontando para o Léo da XIII disseram: “Vamos fazer uma pergunta anônima. Ele é casado?” Todo mundo riu, elas tinham uns 8 anos de idade. Como o Léo é pequeno, elas achavam que ele era criança e se encantaram com ele, que respondeu o seguinte:“Sim, sou casado e tenho uma filha quase da tua idade.” Nesse momento todo mundo riu ainda mais. Nossa passagem pela França era intensa, a gente quase não dormia. Pegamos uma época boa, no verão, onde o sol nascia às 5h e só ia embora às 22h, então quando dava 22h achávamos que ainda eram 18h, e entrávamos pela madrugada até perceber que o sol estava nascendo novamente. O fuso horário nos deixou malucos. Sempre que dava ligávamos para o Espaço Enraizados para saber como estavam as coisas por lá sem nós. Sabia que quando chegássemos ao Brasil trabalharíamos em triplo. Não sei como o Dumontt faria as provas na faculdade. Ele sequer havia encostado a mão nos livros, nos 35 dias que passamos na França. Eu ligava com frequência para a minha família, que estava bastante preocupada com todos nós desde que o avião da Air France caiu, no dia 31 de maio. No mês de junho um monte de aviões caiu pelo mundo afora. Toda vez que passava esse tipo de notícia na televisão ficavam bem apreensivos na minha casa. Sempre que eu e o Léo ligávamos para o Brasil falávamos também com nossas mulheres, ele com sua esposa, a Kelly, e eu com a minha namorada, a Fernanda Rocha. Tinha dias que o Léo ficava pensativo num canto, outros ele nem saía da cama. Achei que ele estava entrando em depressão, pensei que pudesse ser saudades da mulher e da família. Convidei ele pra fazer uma letra de rap para as nossas mulheres. Escrevemos, então, a letra abaixo, “Pras pretas”, que teve a participação de Hallima e Amel, cantoras francesas de R&B.




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Pras Pretas Léo da XIII Difícil imaginar como seria um cara como eu se eu não encontrasse um dia alguém como você, preciso te dizer Preta, “mó” saudade de você eu preciso te escrever, sei lá, desabafar entre palavras, só uma pode me confortar te amo, é você que eu clamo quando eu deito na cama é você que eu chamo lembro quando a gente se encontrou pela primeira vez um beijo seu arrancando a minha timidez no seu olhar enxerguei o começo de uma nova vida passo contigo na rua, “as mina” duvida ”- O que esse cara tem? Ela é demais pra você!” quer saber, sou romântico sim também curto lazer vinte quatro horas de prazer, eu e você minha Preta te declaro amor eterno através dessa letra Hallima e Amel La femme de sa vie Cette flamme qui n’fait que d’agrandir Fonder une famille Finir ensemble réunies « Saodadje » ma promise x 2 Carinho, Carinho Notre enfant sera mon cado Dudu de Morro Agudo Cê sabe que eu te amo né preta, nem preciso falar Se a gente conta nossa história eles vão duvidar às vezes eu não tinha um “din” pra “nós” se divertir e você ainda conseguia me fazer sorrir eu boladão, travado, cheio dos esquemas e você lado a lado resolvendo tudo quanto é problema tem gente que ainda duvida do nosso amor


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mas um dia eles aprendem, cê vai ver, o tempo é professor sorte grande pra dois amantes o destino garante e a gente segue adiante constante, no fluxo que a vida levar sem luxo, só tendo o bastante pra gente se amar você é a Preta mais linda que já se ouviu falar as outras se contentem com o segundo lugar porque amar faz mais sentido com você pode esperar porque tem muita coisa boa pra gente viver.

Essa letra ficou muito boa também, tem uma energia especial e de lá da França mesmo a gente já disponibilizou na internet. As garotas do rap no Brasil adoraram o nosso som. Mas a letra que eu mais gostei de fazer foi a de “Reencontro”, que eu fiz com a Amel. Parecia que eu estava em transe quando escrevi. Consegui passar para o papel tudo o que estava sentindo lá: Reencontro Dudu de Morro Agudo Não importa o idioma e nem mesmo importa o país O que importa é quem a gente ama e o que faz a gente feliz Amor à primeira vista são amizades que a gente conquista E a cada dia que eu passo em Blanc Mesnil, cresce mais a minha lista Quando rolar o “hasta la vista” meu coração vai partir ao meio e quando eu voltar ao Brasil ele vai se refazer, eu creio, tem gente que dá valor a coisas que não têm valor e não dá o mínimo valor às amizades que conquistou Cê entende? É um lance meio espiritual É bem mais do que a cor da pele, vai além do material


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Isso não sai no jornal, você nunca vai ver na TV E a playboyzada por mais que estude, eles nunca vão aprender Que foi um grande prazer conhecer e estar com você Periferia é periferia, provei na fonte mais uma vez Parecia que eu sentia a energia que iria rolar aqui Consegui achar semelhanças entre Morro Agudo e Blanc Mesnil

Enquanto estivemos na França, passamos por quatro casas, a última foi a casa de Chong e Marie Pierre. Eles são ótima gente. Viveram no Brasil tempos atrás, o Bruno falou que o Chong foi o engenheiro-chefe que fez a linha do trem ou do metrô do Rio de Janeiro. O Chong quis nos agradar de todas as formas. Abriu os melhores vinhos e champanhes, inclusive teve uma história muito engraçada, pois a gente não conhecia esse tipo de bebidas. Um dia o Chong abriu uma garrafa de champanhe que não sei qual é o nome, só sei que era bem famosa, porque ele fez uma propaganda enorme antes de abrir a garrafa, colocou na mesa junto com algumas comidas finas e um vinho também muito fino. Tinha todo um ritual pra comer o que no Brasil a gente chamaria de “tira-gosto”. Toda casa em que o Léo da XIII chegava ele se tornava o xodó da família, e na casa do Chong não foi diferente. A Marie Pierre sempre tentava agradar o Léo de alguma forma. Ele sempre tinha que estar na mesa conosco senão tínhamos que ir buscá-lo. Eu não queria beber o champanhe, mas o Chong fez tanto comercial da bebida que não pude recusar, ele poderia ficar triste comigo. Quando ele encheu a minha taça, bebi e fiz uma cara como se aquele champanhe fosse a melhor coisa que eu já tinha bebido em toda a minha vida. Ele nem precisou perguntar o que eu tinha achado, só pela minha feição deduziu a resposta. Ao encher a taça do Léo da XIII,


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foi sensacional, o Léo bebeu, a cara que ele fez foi a de quem estava bebendo água. O Chong então perguntou o que ele tinha achado da bebida. O Léo respondeu: “É né? Boazinha.” E novamente fez cara de que estava bebendo uma coisa qualquer, tipo um refrigerante Simba. Foi o limite pra todo mundo mudar de assunto antes que o Chong tivesse um troço. Depois que exibimos o filme “Mães do hip-hop” na prefeitura de Blanc Mesnil nosso último compromisso era produzir e participar da Festa das Associações, o que foi enriquecedor para todos nós, uma produção nossa com a Talent et Developement. Depois que terminamos tudo o que tínhamos planejado voltamos pro Brasil, o Bruno e a Jane Thomassin ficariam na França por mais alguns meses.




Voltando para casa

Cada pequena vitória tem de ser celebrada. — Lucília Diniz

Quando chegamos ao Brasil, encontramos o Espaço Enraizados totalmente mudado. O que eu e Dumontt tínhamos definido foi mudado sem que nos comunicassem. Teríamos que arrumar a casa. Já havia convites para participarmos de projetos de parceiros e ainda deveríamos produzir a “Mostra Cultural Enraizados”, nossa contrapartida para o Governo Federal referente à viagem pra França. A “Mostra Cultural Enraizados” foi no dia 26 de setembro de 2009. Aconteceram as seguintes atividades: mostra de resultados do projeto de intercâmbio IguaçuMesnil; apresentação de Capoeira com o instrutor do Projovem Adolescente; tenda estilizada de fotografia; lançamento dos livros “Poesia revoltada”, de Écio Salles, “Acorda hip-hop”, DJ TR, com direito a palestra e debate; exibição do filme “Iguaçu-Mesnil”; exposição de fotografias do projeto Iguaçu-Mesnil; inauguração da Biblioteca Enraizados; teatro e show de rap com os grupos do casting da organização. Cerca de 500 pessoas passaram pelo Espaço Enraizados durante a “Mostra Cultural Enraizados”.

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No dia 15 de novembro de 2009, eu e Dumontt fomos para Santiago, no Chile, participar do projeto Muro Por La Paz, a convite do amigo da Rede Enraizados no Chile, Zerta Rapper, que visitou o Espaço Enraizados em outubro de 2008. Lá encontramos o Dante, grafiteiro de Mesquita (RJ), conhecemos os grafiteiros de Macaé, Muk e Ric, que entraram pra Rede Enraizados, e também reencontramos muitos grafiteiros do Rio Grande do Sul que participaram do projeto “Seis direções”, em janeiro de 2008. Esse evento no Chile materializava bem a nossa Rede Era através dos nossos pontos que a galera se comunicava e se conhecia, a gente colaborava de alguma forma e colocava as pessoas em contato. Quando voltamos do Chile continuávamos com a missão de participar de projetos parceiros, e então logo no comecinho de dezembro participamos do Fórum de Mídias Livres, na Ufes, em Vitória, e da Universidade das Quebradas, na UFRJ, no Rio de Janeiro. Atualmente, executamos o Pontão de Cultura Digital, o Projovem Adolescente, o Pontinho de Cultura, a Biblioteca Enraizados, o Telecentro Comunitário e o filme “Round One: Morro Agudo X Comendador Soares”. Temos também projetos de comunicação que envolvem a Revista Enraizados. Estamos reformulando o Portal Enraizados, a Rádio Comunitária e online, e criamos um núcleo de comunicação para mostrar de modo mais eficiente a evolução de cada projeto e os passos da organização. Faremos mais cópias do meu disco “Rolo compressor”, que esgotou. Prensaremos o DVD do filme “Mães do hip-hop” com legendas em português, inglês, espanhol e francês. Contamos com um quadro de excelentes profissionais, que já conhecemos há muito tempo, que agora trabalham conosco. Alexandre de Maio (“Rap Brasil”, “Folha de S.Paulo” e “Revista Raça”), Bruno Thomassin (La


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Casa Loka), Simone, Re.Fem, Léo da XIII, Lisa Castro, além de todas as outras pessoas que são extremamente importantes para um bom desempenho da organização. Este livro termina aqui, mas vamos aguardar a segunda parte em 2020. Nossa história não tem fim!


Anexo

Movimento Enraizados por Movimento Enraizados

(Frases no twitter)


Augusto (Rio Branco – AC) O Enraizados é família de caboclo! Enraizados é poder contar com a rede que te socorre em qualquer lugar do país onde exista um computador conectado, seja no âmago da floresta ou no meio do fim do mundo.

Verídico (Boca do Rio/Salvador – BA) O Enraizados se concentra na ideia de que podemos mudar de lugar, mas nossas raízes sempre serão as mesmas.

GOG (Ceilândia - DF) Enraizados é o sentimento de transformação arraigado nas comunidades do Rio de Janeiro e nas periferias do planeta se faz atuante.

J3 (Vitória-ES) O Enraizados é mais uma iniciativa louvável que surgiu para fortalecer o hip-hop no Brasil, divulgando a grande variedade de talentos da cena nacional e facilitando o nosso intercâmbio.

Lamartine Silva (São Luiz – MA) Enraizados é a cadeia de comunicação que nasce no Rio, se espalha pelo Brasil e como uma peste benigna se alastra pelo mundão, pregando não a inclusão, mas uma forte e necessária revolução, em que a cultura e a arte sejam o instrumento de solução.

Jéssica Balbino (Juiz de Fora – MG) Enraizados é a raiz da cultura nos becos e vielas do Rio de Janeiro. É arte enraizada no coração dos brasileiros!

Gil BV (Teresina-PI) A frase “Nunca deixe de sonhar” foi seguida pelo Enraizados ao pé da letra. Acompanhei toda a luta na 292


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construção do que é hoje o maior espaço de cultura digital e alternativa do Rio de Janeiro.

Janaina Oliveira (Parada Angélica/Duque de Caxias - RJ) Enraizados é uma rede de pessoas que acreditam na transformação social por meio da cultura e amam construir parte da história hip-hop no Brasil.

O Átomo [U-SAL] (Morro Agudo/Nova Iguaçu - RJ) Lembro da minha adolescência ociosa, das confusões em que me meti. Entre mortos e feridos, cá estou, graças a Deus. Ah se houvesse um quilombo como o Enraizados!

Jana Guinond (Tijuca/Rio de Janeiro - RJ) Enraizados é um espaço para reflexões que rompe a barreira do som, do racismo, da invisibilidade e o principal: conquista o mundo.

Samuel Azevedo (Miguel Couto/Nova Iguaçu - RJ) Enraizados é um campo de batalha mitológica, onde nos faz expurgar a metástase da alma e enxergar o rival cometer harakiri. Um ótimo anticoagulante cerebral.

Numa Ciro (Santa Teresa/Rio de Janeiro – RJ) Enraizados é o macete loko puxado pelo rap de raiz de Dudu de Morro Agudo, que faz da sua autobiografia uma rede que tece, por meio da arte, a história dos seus contemporâneos.

Pêvirguladez (Duque de Caxias - RJ) Ser “Enraizados” é usar suas origens, seu habitat e sua cultura para reordenar a sociedade, mostrando que a “revolução” parte do nosso interior, e não do exterior.

MC Marechal (Niterói - RJ) Enraizados é plantio de futuro... Um só caminho...


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Adriana Facina (Santa Rosa/Niterói - RJ) O Enraizados é a vitória da fé no trabalho criativo e a certeza de que a revolução que construirá um outro mundo virá das periferias.

Luiz Eduardo Soares (Rio de Janeiro - RJ) Enraizados são lunáticos maravilhosos numa salinha apertada em Nova Iguaçu conversando com o planeta e evocando os deuses da paz e da justiça.

Big Richard (Rio Comprido/Rio de Janeiro - RJ) Enraizadamente o Enraizados subverte a ordem e reconstrói a autoestima dos carenciados, reconectando de Sul a Sul a esperança. É tudo nosso!

Hannah Lima (Flamengo- RJ) Enraizados é algo que brota da terra e se expande em direção ao universo. Raízes fincadas e mentes em expansão criativa.

Marcus Vinícius Faustini (Santa Teresa/Rio de Janeiro - RJ) Os Enraizados são um bando de botocudos!!!

Alexandre Taurus (Petrópolis/Natal - RN) Enraizados é um movimento cultural democrático que despertou em mim uma forma de escrever que vai além do rap. Transparência e amor pelo hip-hop.

Edjales Fama (Porto Velho-RO) O Movimento Enraizados é uma inovação no conceito de rede sociais. Ultilizando a internet como meio para essa inovação, consegue articular informação, políticas públicas, cultura, arte, comércio justo e etc. sempre em uma linguagem acessível e jovem.


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Débora Bós e Silva (Bento Gonçalves-RS) O Enraizados é um movimento que se preocupa com seus membros, busca fazer atividades de cunho social utilizando estratégias como a informação e a cultura, de forma a mostrar que a participação popular pode se dar por diversos meios, possibilitando uma transformação na sociedade.

Fabiana Menini (Porto Alegre – RS) Conheço o Enraizados, acredito no Enraizados e tenho certeza da força e do poder de transformação deste grupo, que de sua comunidade muda o mundo.

Noise Dee (Menino Deus/Porto Alegre - RS) Enraizados é ser forte. Ter o conhecimento como alicerce e capacidade de reação. É lutar pela essência e mudar esse mundão.

Dimenor (Parque Bristol/São Paulo – SP) O Enraizados e o hip-hop chegaram para romper barreiras e contrariar o que o sistema burguês impõe. O Enraizados é o sucesso de uma vida de vitórias, estudos e amizades.

Alessandro Buzo (Itaim Paulista/São Paulo - SP) Enraizados é você ser do hip-hop e pensar grande. Se fosse pra pensar pequeno era melhor curtir axé! Enraizados é ser líder!

Jurandir Fernandes (São Paulo – SP) O Movimento Enraizados é como uma grande árvore onde cada galho representa uma história, atitude, opinião, respeito e humildade.

MC Taike (Palmas - TO) Enraizados é a gente poder ajudar a nossa comunidade com o pouco de conhecimento que cada um possui na mente.


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Zerta Rapper (Peñalolen/Santiago – Chile) Son un ejemplo para los jóvenes que sueñan con cambiar su país, porque en sus proyectos si logran beneficios colectivos e integradores. São um exemplo para os jovens que sonham em mudar seu país, porque seus projetos produzem benefícios coletivos e integradores.

Bruno Thomassin (Galo Branco/São Gonçalo - RJ/ Nancy - França) Enraizados é coletivo de hip-hop, grupo de rap militante, rede de autoajuda, Centro de Cultura Alternativa, Pontão de Cultura, Biblioteca Comunitária... O Enraizados cresce na busca de uma sociedade mais justa onde cada um tenha o seu lugar.

MC Kabron (Peñañolen/Santiago – Chile) Movimientos como el de Enraizados son fundamentales en Lationamerica, ya que generan instancias de participacion juvenil, en el ambito del arte y porsupuesto social. Ojala el modelo de Enraizados se pueda copiar en muchos otros paises del cono sur un afectuoso, saludo desde Chile hermanos mios de parte del Mc Kabron, Felix Bezares. Movimentos como o Enraizados são fundamentais na América Latina, pois geram instâncias de participação juvenil no âmbito artístico e, claro, social. Tomara que o modelo seja adotado em muitos outros países da região. Saudações afetuosas do Chile, irmãos, do Mc Kabron, Felix Bezares.

Ana Massa (Paris - França/Belo Horizonte - MG) Tive o prazer de conhecer o Movimento Enraizados, em 2008, em Morro Agudo. Encontrei portas abertas e pessoas inteligentes e comprometidas com uma verdadeira transformação social. Em 2009, estivemos juntos


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na França, quando o Movimento Enraizados fez prova do seu profissionalismo, transformando a experiência em Nova Iguaçu em uma contribuição generosa para a reflexão e a mobilização dos manos, dos frères de Blanc Mesnil. É o Movimento Enraizados fazendo rede, articulando jovens e trabalhando para um mundo onde as relações sejam mais justas e igualitárias.

Edilasio (Cazenga / Luanda - Angola) Enraizados é um espaço de interação cultural mais voltado ao hip-hop, onde podemos dar nossas opiniões, e que nos faz sentir jovens de personalidade firme.

Ecio Salles (Olaria / RJ) Enraizados é um abalo sísmico que propõe o ritmo da dança e mistura os ingredientes; é gente junta, movimento de cardume, melodia de enxame.

Letícia Almeida (Copacabana / RJ) Enraizados é protagonismo revolucionário, resistência, criatividade, coragem, uma linda estória de amor.

Célio Turino (DF) Enraizados é a cultura brasileira sendo escrita por quem a faz.

Def Yuri (RJ) Enraizados é ser integrado. É se ver enquanto parte de uma fonte que integra percepções e ações em prol da transformação em comum.

Queen Odara (RJ) Enraizados redireciona futuros dando novo sentido às vidas!!!





Posfácio

Conheci pessoalmente o Dudu de Morro Agudo em janeiro de 2010, apesar de já conhecer o trabalho do Enraizados há muito tempo. Quando tivemos a chance de conversar um pouco logo vi que tínhamos muito em comum. O respeito por suas ideias veio de imediato e o convite para dar um workshop e conhecer o Enraizados foi maravilhoso. Logo em seguida, estimulado pela cineas­ta Re.Fem, o convidei para se apresentar no 4º Festival de Hip-Hop do Cerrado, em Brasília. A minha maior impressão sobre o Dudu não foi a apresentação maravilhosa que ele fez, mas a humildade que ele teve de, antes e depois do seu show, andar no meio de um público de mais de 15.000 pessoas só para sentir o calor humano das pessoas presentes e descobrir novos motivos para seguir em frente. É impossível não gostar do Dudu. Esse cara humilde, sincero, verdadeiro, idealista e, acima de tudo, um visionário. DJ Raffa (Brasília - DF)

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Imagens: índice e créditos P.26-27

Dudu de Morro Agudo na 3ª série, com 8 anos foto: Acervo pessoal

P.28

Dudu de Morro Agudo na formatura do 1º grau, com os amigos Luciano Gomes à esquerda e Márcio ao centro foto: Acervo pessoal

P.29

Dudu de Morro Agudo na Comercial Lubi Peças, aos 14 anos, quando trabalhava no setor financeiro foto: Acervo pessoal

P.34

Dudu de Morro Agudo em seu aniversário de 18 anos, com os amigos Luciano Gomes, Fernandinho e Bruno foto: Acervo pessoal

P.35

Dudu de Morro Agudo na discoteca “Must”, em Nova Iguaçu, com Fernandinho foto: Acervo pessoal

P.41

Dudu de Morro Agudo com os colegas de trabalho do Lava Jato, no bairro Camari, em Nova Iguaçu foto: Acervo pessoal

P.47

Dudu de Morro Agudo na rua de casa com os amigos Fábio, Alex Pneu e Fernandinho foto: Acervo pessoal

P.52-53

Na Petrobras Distribuidora, onde fazia estágio foto: Acervo pessoal

P.54-55

Dudu de Morro Agudo com os primos Wilson e Felipe e o amigo Dedé Barbosa na festa que fazia na rua de casa foto: Acervo pessoal

P.64-65

O amigo desenhista e rapper Wilson Nenem foto: Dudu de Morro Agudo

P.66-67

Rodrigo Dimenor foto: Acervo Movimento Enraizados

P.71

Portal Enraizados foto: Acervo Movimento Enraizados


P.79

Grafite do Enraizados no bairro Jardim Nova Era, em Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados

P.85

Matéria no Jornal O São Gonçalo foto: Acervo Movimento Enraizados

P.92-93

Matéria na revista Megazine, do Jornal O Globo foto: Acervo Movimento Enraizados

P.94

Matéria na revista do SESC de Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados

P.95

Capa da Revista Rap Brasil foto: Acervo Movimento Enraizados

P.100

Alessandro Buzo e Dudu de Morro Agudo durante o lançamento do livro Suburbano Convicto, no Itaim Paulista, em São Paulo foto: Acervo Movimento Enraizados

P.101

Léo da XIII foto: Acervo Movimento Enraizados

P.105

Lisa Castro e Átomo, do grupo U-SAL, durante apresentação no evento Raiz do Hip-Hop, no bairro Cerâmica, em Nova Iguaçu, em maio de 2004 foto: Acervo Movimento Enraizados

P.109

Matéria com Alessandro Buzo foto: Acervo Movimento Enraizados

P.115

Def Yuri, Dudu de Morro Agudo e Fábio ACM dentro do avião rumo a Porto Alegre foto: Acervo Movimento Enraizados

P.124

Ministro Gilberto Gil durante o Fórum Social Mundial, em 2005 foto: Dudu de Morro Agudo

P.126

Dudu de Morro Agudo e Claudio Prado dando palestra durante o Fórum Social Mundial, em 2005 foto: Acervo Movimento Enraizados

P.127

Estúdio do Centro de Referência do Hip-Hop, em Teresina, no Piauí foto: Acervo Movimento Enraizados

P.136-137 Participantes da primeira reunião do Movimento Enraizados

em Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados P.143

Grafiteiro Tihkin durante o 4º Encontrão, em Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados


P.153

Os Enraizados durante o Fórum Mundial de Educação, em Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados

P.154-155 Matéria na Revista Rap Brasil

foto: Acervo Movimento Enraizados P.164-165 Matéria no Jornal O Dia

foto: Acervo Movimento Enraizados P.168-169 O rapper maranhense Lamartine Silva e o cineatra francês

Lahzari durante entrevista no quadro Janela do Enraizados, na Rádio Trocipal Solimões, em Nova Iguaçu foto: Acervo Movimento Enraizados P.180

Taffarel, Aércio, Sebá, Kapella, Dudu de Morro Agudo e Joe durante tributo ao mano Ita, em Mesquita (RJ) foto: Acervo Movimento Enraizados

P.181

Luiz Carlos Dumontt com as crianças do bairro Nova Era foto: Acervo Movimento Enraizados

P.189

Homenagem do governo do Estado do Rio de Janeiro ao Movimento Enraizados foto: Acervo Movimento Enraizados

P.194

Dudu de Morro Agudo e Tiago Borba na quadra do CIEP 117 fotógrafo: Luiz Carlos Dumontt

P.206

Galera do Enraizados com as crianças do bairro Ouro Preto foto: Acervo Movimento Enraizados

P.207

Galera do Enraizados assistindo ao filme “E o meu direito ao emprego?” foto: Acervo Movimento Enraizados

P.214-215 Primeira fotografia do Espaço Enraizados

foto: Acervo Movimento Enraizados P.216-217 Matéria na Carta Capital

foto: Acervo Movimento Enraizados P.225

Encontro de juventude na FASE foto: Acervo Movimento Enraizados

P.232

Prefeito Lindberg Farias e Luiz Carlos Dumontt durante a inauguração do Espaço Enraizados, em abril de 2008 foto: Acervo Movimento Enraizados

P.233

Terno (Enraizados SP), Big W e Dudu de Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados

P.234-235 Alessandro Buzo, Átomo, Kall Gomes e Lisa Castro

foto: Acervo Movimento Enraizados


P.240-241 Luiz Carlos Dumontt filmando a passeata contra a dengue,

em Morro Agudo foto: Acervo Movimento Enraizados P.244

Re.Fem, Lisa Castro e Marcela (Dona da Arte) foto: Acervo Movimento Enraizados

P.249

Américo Córdola, Edjales Fama, Dudu de Morro Agudo e Luiz Carlos Dumontt durante reunião sobre o Prêmio Cultura Hip-Hop, em Brasília foto: Acervo Movimento Enraizados

P.256-257 Dudu de Morro Agudo contando a história do Movimento

Enraizados para jovens que vieram do Chile para conhecer a organização foto: Acervo Movimento Enraizados P.263

Equipe do Projovem Adolescente, em 2009 foto: Acervo Movimento Enraizados

P.272-273 Luiz Carlos Dumontt, Hyogi, Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII

e DJ Soneca, em Nancy, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.274-275 Dudu de Morro Agudo mostrando o cartaz do seu show nas

ruas de Paris, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.280-281 DJ Soneca, Dudu de Morro Agudo e Léo da XIII durante show

em um Squat, em Paris, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.286-287 Léo da XIII, Bruno Thomassim (ao fundo), Chon, Marie

Pierre, Jane Thomassim, Dudu de Morro Agudo e Luiz Carlos Dumontt na casa do Chon, em Medon, na França foto: Acervo Movimento Enraizados P.290

Dudu de Morro Agudo, em Santiago, no Chile, durante o evento Hip-Hop Por La paz, que entrou para o Guinness Book foto: Acervo Movimento Enraizados

P.298-299 Galera do Enraizados durante o Oitavo Encontrão

foto: Acervo Movimento Enraizados P.306

Dudu de Morro Agudo foto: Alexandre de Maio



Sobre o autor

Dudu de Morro Agudo começou com 14 anos de idade na cultura hip-hop. A identificação imediata com a linguagem da periferia, as lutas de classe, a discriminação social e racial tão cantada nos raps o ajudaram a construir uma consciência crítica e cidadã, retirando-o da margem social para que pudesse ajudar outros adolescentes que, assim como ele, também tinham um histórico de exclusão cultural. A sua eloquência de líder colocou-o cara a cara com aquilo que consideramos o primeiro milagre do Enraizados: transformar três cartas escritas a mão livre em uma rede de articulação multicultural e intercontinental. A Rede Enraizados não foi criada nem inventada, foi descoberta, aprimorada e maximizada sob a inconfundível liderança desse “preto de conceito”, que consegue unir a liderança juvenil, a articulação artística, a coordenação de projetos e a amizade à vida prática. Do Rio Branco a Poá, de São Luís ao Rio de Janeiro. Se militância e superação têm nome, pode chamá-lo de DMA.


Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m². Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m². Impresso pela Imprinta Express em novembro de 2010. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nessa obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



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