Meu destino era o Nós do Morro

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Meu destino era o N贸s do Morro



Meu destino era o N贸s do Morro Luciana Bezerra

Programa Petrobras Cultural

Apoio


Copyright © 2010 Luciana Bezerra COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfico CUBICULO MEU DESTINO ERA O NÓS DO MORRO produtor gráfico SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão CAMILLA SAVOIA ISABELLA LEAL revisão tipográfica CAMILLA SAVOIA

B469m Bezerra, Luciana Meu destino era o Nós do Morro / Luciana Bezerra. - Rio de Janeiro : Aeroplano, 2010. il. -(Tramas urbanas) ISBN 978-85-7820-046-6 1. Bezerra, Luciana. 2. Nós do Morro (Grupo teatral). 3. Diretores e produtores de cinema - Brasil - Biografia. 4. Cinema - Rio de Janeiro (RJ). 5. Teatro - Rio de Janeiro (RJ). I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. II. Série. 10-3376.

CDD: 927.9143023 CDU: 929:791.43.071.2

14.07.10

21.07.10

020294

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história. Heloisa Buarque de Hollanda


Agradecimentos

Aos meus mestres, todo o carinho e dedicação. Quero deixar claro que tudo que realizei até hoje, as ideias nas quais acredito e quem sou, devo a todos que influenciaram de alguma maneira minha caminhada: meus pais, minha família, meus amigos e meus mestres. Dedico este livro a todos que circulam em minha memória e que me ajudam a perseverar no sonho de me tornar artista. À tia Carmem, minha primeira professora. Fiquei na sua turma por dois anos. Não me lembro da sua voz. Não me lembro de ouvi-la falar nada em especial, mas lembro que me abraçava com carinho na entrada da escola e que, quando minha mãe anunciou que nos mudaríamos, me levou para passar seu aniversário na casa dela. E, segundo minhas tias, até hoje pergunta por mim e fica feliz quando vê matérias minhas no jornal. À D. Marly, minha professora de português na quinta e na sexta série, que me obrigou a ler meus primeiros livros de literatura brasileira. “Ler é a chave-mestra da imaginação”, ela costumava dizer em quase toda aula. À Márcia, minha professora de geografia no segundo ano do segundo grau, que foi a primeira a trazer vídeos para as aulas. E em sua primeira sessão exibiu o filme “Muito além do jardim”, com Peter Sellers. Foram três ou quatro aulas de discussões fervorosas sobre o filme. Nessas


aulas o sinal tocava e ninguém se apressava para ir embora, ao contrário, cercávamos a Márcia, que tinha dificuldade de tirar seu intervalo. “Através do cinema podemos ver o mundo”, nos dizia sempre. Claro que não estava se referindo aos blockbusters que costumavam nos levar ao cinema. Descobri isso mais tarde. Ao Irineu Pinto, um professor de inglês, que se apresentava dizendo: “Prestem atenção na aula, porque eu já sei falar inglês.” Ele gostava de mim, nós conversávamos muito. Eu sempre dizia que queria ser atriz. Ele me aconselhou a procurar um curso sério, que, na minha situação financeira, significa procurar um emprego para pagá-lo. Um ano depois eu trabalhava e já fazia parte do Nós do Morro. Irineu me mandou uma carta com meu nome no cabeçalho e a palavra heifer — Bezerra em inglês — ao lado, como sugestão de nome artístico, assim como as grandes atrizes que usavam nomes internacionais. Ainda o encontro de tempos em tempos em alguma exposição, na porta de um teatro ou em um cinema de centro cultural, e ele me parece o mesmo: um amante das artes. Sei que fica feliz em me ver. E fico feliz em vê-lo também. À professora de filosofia, Virgínia do André Maurois, que nos levou textos para serem discutidos. Apresentou-me Platão: “O que mais vale não é viver, mas viver bem.” e Aristóteles: “É possível que o bem da comunidade e o bem do indivíduo sejam idênticos, mas, mesmo assim, o bem da comunidade é um objetivo moral maior e mais perfeito, para o qual se deve trabalhar. Vale a pena conseguir o bem do indivíduo, mas o bem da comunidade, que se compõe de muitos indivíduos, tem uma qualidade superior e mais divina.” Deu-me a oportunidade de questionar a retórica. E nos provocava: “Nós somos aquilo que acreditamos. Vocês acreditam em quê?”


Ao Fred Pinheiro, que me apresentou Stanislavski. A preparação do ator, a criação da personagem, a criação do papel. O método que mais me aproxima da verdade na hora de atuar. “Vocês precisam não só ter emoção no palco, vocês precisam acima de tudo ter consciência, é isso que fará diferença no seu eu ator.” Em exercício prático me ensinou a me posicionar na luz, mesmo quando o refletor desafina durante o espetáculo. Ao Luiz Paulo Corrêa e Castro, que nasceu, cresceu e teve amigos aqui no Vidigal. Formou-se jornalista e dramaturgo e, com total propriedade, sempre nos incentivou a procurar o mundo além dos limites da favela. “Ser pobre é um estado financeiro, não pode ser o fator predominante da sua personalidade. Esse deve ser sempre sua inteligência.” Muitas vezes suas aulas eram nas salas do Nós, no palco ou no boteco. Com Paulo um bom papo é sempre sinônimo de aprendizagem. Ao Fernando Melo da Costa, que me ensinou a me mover cenicamente de maneira que não esbarrasse no cenário. Primeiro passo para uma boa atuação. Apresentou-me “Cartas a Théo”, “O estrangeiro”, “Temporada no inferno” e muitos outros livros que, ao notar meu gosto pela leitura, me trazia ou me recomendava. “O artista não pode parar, para sua cabeça não pode haver descanso a não ser o tempo certo de alimentar o ato criativo.” À Rosane Svartman, que trouxe o cinema para minha vida. Preparou aulas, criou referências cinematográficas que nos ajudariam a desmistificar a sétima arte. Dividiu e guiou muitas vezes processos criativos. E, como boa amiga, ainda me convida a ótimas festas. Foi dela que ouvi a frase que me impulsionou a fazer cinema até hoje: “Cinema se faz em turma.” Está aí toda a graça do negócio. Às vezes me pergunto o que teria sido se esta moça não resolvesse subir o morro em 1996. O processo


de democratização do direito de filmar começou, porque generosamente uma recém-formada cineasta resolveu dar aulas a um grupo de jovens artistas que não tinha nenhuma condição de pagar por um curso desse. Ali nasceu para mim e para muitos a pulsão pelo cinema. Agradeço por compartilhar cada dia desse sonho até hoje. Ao Vinícius Reis, que me apresentou tantos filmes, tantos nomes, tantas curiosidades, que me ensinou que para se fazer cinema era preciso antes de tudo amar cinema. Levou-me a buscar nas locadoras a parede dos filmes cult e a preferir os cinemas de centro cultural e os filmes europeus. Ajudou-me a descobrir que eu também tinha histórias para contar. Todos temos. E que “cinema se faz na cabeça”. A cada dia penso nessa frase e ela me cabe em todos os momentos cinematográficos. Agradeço pela dedicação. Ao Fernando Meirelles, que tem sempre palavras encorajadoras, de quem estive perto durante o processo de oficinas preparatórias para o filme “Cidade de Deus” e que sempre deu valor ao meu saber, porque no momento os saberes da favela lhe eram preciosos. Que me abriu espaço para opinar, que opinou sobre minhas opiniões e que me mostrou que para dirigir bem um filme, devemos escutar. Sentado na sala assistindo em uma TV 14 polegadas uma fita VHS de vários caras em uma improvisação gritada, Meirelles foi indagado se queria ver a improvisação inteira, porque era longa. E ele disse: “Deixa eu perceber o tempo deles, às vezes é preciso reparar bem quem está por trás na cena, é preciso sentir quem sente, e às vezes leva tempo.” A escolha de um elenco mudou para mim a partir desse dia. À Cicely Berry, que veio ao Nós do Morro como um mito. Trabalhando já há muito tempo com a Royal Shakespeare Company, chegou num sábado pela manhã e, mesmo


falando em inglês, se fez entender e nos deu aula durante seis horas, controlando nossa respiração e nossa dicção. Não demonstrou cansaço e, após uma pausa para almoço, nos ensinou durante mais seis horas. Ao final do primeiro dia eu estava muito cansada, e ela em roda nos falou: “Estão cansados, porque não estão se exercitando. Um ator é fundamentalmente respiração. Quando eu for embora, se exercitem diariamente, e, quando voltar em um ano, poderemos pular esta etapa e ir direto aos trabalhos mais pesados. Ah! E não se esqueçam de que para qualquer aula, por mais prática que lhes pareça, deve-se trazer um pequeno caderno de notas.” Praticar a respiração eu tento, juro que tento. Mas o caderno de notas jamais foi esquecido após esse dia. À Camila Amado que entrou em minha vida recentemente. Claro que já a conhecia de papéis na TV. Mas ela levantou-se de trás de uma mesa e fez seu show de palavras durante duas horas e meia, deixando vários apaixonados naquela sala durante as oficinas do 5x Favela – Agora por nós mesmos. E depois pude contar com ela enquanto preparava meu elenco para o filme. Ela dizia: “Quem quiser atender ao telefone, pode atender. Porque a vida moderna é fragmentada.” Frase que fez diminuir a culpa que sentia de amamentar enquanto escrevo no computador e de deixar o celular ligado para qualquer emergência. Ao Carlos Diegues, que era para mim um nome em créditos de filmes a que assistia na TV. Depois ele era o cara que não faltava em nossa plateia. Daí ele passou a ser alguém que citava meu filme como algo novo acontecendo no cinema, e, então, colegas de trabalho. Todo esse processo de realização do projeto 5x Favela – Agora por nós mesmos, longa-metragem dirigido por mim, Luciano Vidigal, Cacau Amaral, Rodrigo Felha, Cadu Barcelos, Manaíra Carneiro e Wagner Novaes, além


de nos proporcionar a realização de um filme, nos trouxe pessoas maravilhosas que nos orientaram e nos ajudaram. Foram inesquecíveis os momentos de conversa com Cacá, em sua produtora. Tardes para a vida. “O brasileiro tem uma vocação natural para fazer cinema.” Ao ouvi-lo falar assim, tenho de acreditar. Guti Fraga andava pelo Vidigal jovem e falante. Sempre nos encontrávamos e ele fazia questão de falar comigo. Toda vez que conversávamos, lembrava da voz que ouvia no escuro do teatro, na abertura da peça “Encontros”. Laçou-me para seu grupo e desde então tem sido meu mestre, amigo e incentivador. Por meio de suas ideias pude me reconhecer cidadã, ter consciência do mundo em que vivo. Fez-me atravessar a linha da favela, acreditar que eu era capaz de ser tão boa artista como qualquer outra se me fossem dadas as ferramentas certas, e me incentivou a procurá-las, a cavar essa mudança. “Não quero de vocês mentiras, quero transformação verdadeira, vocês podem!” O Guti é do tipo pescador de homens e açoitador de sonhos. Agradeço sempre e sigo em frente!



Sumário

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Cap.01 Um ser criativo

44

Cap.02 Eu sou assim ou acho que sou

58

Cap.03 As coisas mais minhas

66

Cap.04 Rocinha do Pai

76

Cap.05 Maricá da Mãe

88

Cap.06 Vidigal, a favela do Papa

116

Cap.07 Meu destino era o Nós do Morro

150

Cap.08 Uma geração de guerreiros

164

Cap.09 Atravessando os muros

190

Cap.10 Cinema, uma nova paixão

226

Cap.11 Hoje venci na vida

258

Imagens: índice e créditos

263

Sobre a autora


Cap.01

Um ser criativo


Cap.01

Um ser criativo


Desde a minha infância as brincadeiras sempre exigiam imaginação extrema: compras no lixão do quintal para montar a casinha (feita apenas com divisórias de madeira no chão, para marcar bem os espaços) — pote de margarina virava prato, lata virava panela, vidros e jarros abrigavam flores para enfeitar a mesa de tijolos — ou descer em caixas plásticas de leite a ribanceira da casa da minha avó e gritar como quem anda de montanha-russa, ou brincar de pique-pantera, em que cada um assumia a personalidade de uma das panteras (do seriado de aventura que passava na TV Globo nos anos 1970/1980). Claro que, por ser a mais nova, raramente sobrava para mim uma das panteras; na maioria das vezes tinha de me contentar em ser um dos incríveis criminosos. Minha cabeça nunca esteve exatamente sobre meu pescoço; ela flutua como um balão. E essa é uma sensação que tenho até hoje, a de andar com a cabeça na lua. Inventiva quando criança, no tempo que morei com minha avó, gostava de sumir para o ponto mais alto do morro atrás da casa e ficar lá por muito tempo imaginando coisas e histórias a serem vividas por mim, minha mãe, irmã, pai e primos. Esses eram os personagens principais das histórias nessa época. Também gostava de procurar formas nas nuvens e podia ficar horas nessa brincadeira. Algumas histórias eram tão fortes, que me confundo se foram imaginadas, sonhadas ou vividas. Algumas estão na minha cabeça até hoje.

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Na roça, em especial naquela época, que tínhamos total liberdade de estar na rua, e só parávamos em casa nas horas de comer e dormir, os brinquedos eram escassos, era preciso mesmo inventar. Havia os da Estrela (marca famosa de brinquedo) e a Gulliver (sua concorrente). Meu pai e minha mãe no Natal sempre vinham com algum brinquedo incrível, que tivesse sido desejado por mim e pela Martha, minha irmã. De todos os primos nós éramos os únicos que tínhamos essa regalia. E também herdávamos muitos brinquedos das crianças que moravam no prédio onde minha mãe trabalhava no Leblon. Escolhíamos os presentes que mais nos agradavam, sempre com o alerta de nossa mãe em deixarmos uma parte para primos e vizinhos. A maioria dos brinquedos, em especial os eletrônicos, já não funcionava; tínhamos de reinventar utilidade para eles. Nossos brinquedos habituais, os comprados pela família, eram o bonecão: um bebê de um ano, de plástico duro, que mexia as pernas, e podia assim sentar e ficar em pé. Vinha com uma fralda de plástico quadriculada, como um para-pedro tamanho grande — outro boneco comum nas mãos das crianças de Maricá —, só que esse sem nenhuma articulação, mas com uma pequena mamadeira. Aos meninos, carrinho e bola. Não sentíamos tanto a pouca quantidade de brinquedos, pois tínhamos a rua livre para brincar. Eram comuns brincadeiras, como pique-bandeira, pular corda e pique-esconde, que costumava agregar os adultos — umas quatro ou cinco famílias vizinhas. Adorava os balanços em árvores. Na casa da minha avó havia um na jaqueira, que era bem perigoso. Já vi um tombo de uma prima que sobrevoou a cerca de arames farpados e caiu viva porque Deus quis. Os banhos de rio e os passeios pelo mato também preenchiam nosso dia e minha cabeça cheia de histórias. Do outro lado do rio, havia um poço de água azul.



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Gostava de ficar me olhando na água e via passar imagens das várias histórias contadas pela minha avó. Suas preferidas eram as que mexiam com o sobrenatural. Tinha a do figo da figueira, sob a qual a madrasta tinha enterrado uma menina viva, a da moura torta que pensava que era bonita, porque estava sendo enganada pela princesa que é transformada em uma pomba, ou a da cachorrinha encantada que protege sua dona de um belo homem, metade monstro. Todas traziam músicas que ainda sei cantar. Neste tempo a TV fazia parte da minha vida. Jantava vendo Jornal Nacional, depois vinha a novela e a hora de ir para cama, mas meus tios Neném e Marco que estavam com seus 18 e 15 anos seguiam assistindo aos seriados ou filmes e — algumas vezes escondido da vovó e do vovô — permitiam que eu e Martha voltássemos à sala e assistíssemos com eles. Víamos “Casal 20”, “As panteras” (meu preferido), “O homem de seis milhões de dólares”, “A mulher biônica”. E filmes de terror: “O cão do demônio”, “A mansão sangrenta”. Vivi nesse ritmo dos 4 aos 8 anos. Depois dos filmes era difícil dormir sem imaginar mil histórias. Na casa da vovó havia um quarto possuído. Mulher nenhuma conseguia dormir lá. Depois de um tempo toda a casa foi possuída: eu mesma vi várias vezes e ouvi mais coisas estranhas acontecerem lá, mas como eu tinha 6 ou 7 anos e a cabeça na lua, não podia ser levada muito a sério. A música também sempre esteve presente. Não lembro de ter músicos na família na época da infância, mas meu tio Sebastião toca acordeão lindamente no conjunto da igreja. Quando pequena, os bailes da casa eram animados por uma vitrola amarela, dessas que o disco fica para fora da base rodando. Demorava a dormir, gostava de ficar sentada na poltrona vermelha e segurar nas mãos a capa do disco que estava tocando ou o encarte, acompanhando a letra da música mesmo antes de saber ler.


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Éramos uma família muito pobre e muito unida. Os Natais eram animados, tinha amigo-oculto e as crianças, além do presente da brincadeira, ganhavam outros que, na maioria das vezes, eram iguais para todos. Era comum também todos ganharem roupas iguais com cores diferentes, e saíamos assim, contrariando a individualidade. Disso nunca gostei. Vivia de forma saudável, mas não me dava muito conta da vida, que assim ia passando por mim. Com a mudança da roça para a cidade, perdi a liberdade da rua, que agora tinha horário e limite físico. Em Maricá entrava no mato em busca de um bom lugar para um piquenique, montava em uma árvore e balançava ao som de alguma parada de sucesso: “Aquela menina em sua cadeira de rodas...” No Vidigal, como o espaço era pequeno, a rua muito acidentada e existia o perigo do tráfico, a coisa foi se agravando. Na favela ou você é bicho solto ou você tem mãe, que neste caso tem que ter moral e respeito do filho. Eu sempre respeitei a minha. Chegava na hora marcada e saía quando tinha permissão. Antes dos 13, claro. Passei a fazer brincadeiras mais solitárias e dentro de casa. A Martha completou 13 anos no ano seguinte à mudança e se enturmou na escola e no bairro. Perdi a minha irmã para as amigas dela. Ela havia passado o tempo todo do meu lado, mas agora preferia um papo sentada na escada a brincar de qualquer coisa comigo. Vieram então os desenhos. Minha mãe trazia rascunho de computador, aquelas folhas coladas, e eu às vezes parecia que ia me afundar em papel amassado na sala pequena. Papel que depois era catado muitas vezes sobre os gritos da Martha, porque se aproximava a hora da mãe chegar do trabalho, e a casa deveria estar limpa. Também vieram o gosto pelas chamadas artes. Alguém fez uma arte hoje: riscou a parede, por exemplo. Eu fervia perfume, como experiência, desenhava as pessoas nos


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porta-retratos com tesoura, normalmente para preencher o tempo vazio deixado pela TV, momento que ainda compartilhava com a Martha, mas que já causava brigas na hora da escolha dos programas. Sonhava em me apresentar em um programa de calouros ou ir até o Silvio Santos participar da brincadeira de dançar, que premiava com uma Caloi novinha. Mesmo depois de já ter ganhado uma bicicleta, como era usada, sonhava com uma novinha. Estava na idade dos desenhos. Podia ficar deitada o dia inteiro vendo desenho. Desde muito cedo também gostava de assistir às novelas. Havia um horário de reprises em que assisti a várias, dentro do “TV Mulher”: “Escrava Isaura”, “Cabocla”, “Feijão Maravilha” e “Dancing days”, que me lembrava durante a reprise ter sido a primeira novela que assisti. Assistia sozinha a programas — que pouco antes eram proibidos por minha avó — no qual as mulheres discutiam separação, sexualidade, o lugar da mulher no novo mundo. Muitas vezes tudo aquilo era incompreensível para mim, mas ficava ali: adorava assistir ao “TV Mulher”. Meu pai estava acostumado a levar cordéis para minha avó. Mas o primeiro livro que ganhei foi presente da madrinha, que morava na Rocinha: “O Pequeno Príncipe”. Li e pulei algumas páginas em busca do final. O que não aconteceu quando o li pela segunda vez, depois de ter conhecido o amor. Sou como a raposa quando amo — “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Tivemos uma primeira grande doação de livros. Minha mãe os trouxe, durante semanas. Veio de tudo: gibi, almanacão, vários exemplares da Agatha Christie, uma coleção do Monteiro Lobato, Cazuza (de Viriato Correa), livro que marcou a minha leitura adolescente. Ia para a rua com os gibis e me juntava aos amigos para ler e andar de bicicleta nos fins de semana.


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Os livros de Monteiro Lobato foram para a estante e, por achá-los bonitos, minha mãe proibiu que fossem levados para a rua. Lia essas histórias e elas me emocionavam muito, em especial, porque me lembravam Maricá. Já tinha amigos no Vidigal, mas tinha saudades do mato. Sofri com isso. E me confortava com “Aritmética da Emília” ou “Viagem ao céu” — minha favorita, que começa com os personagens tentando não pensar. Trama de Monteiro Lobato que inventava o dia em que é proibido pensar, só ele mesmo para bolar uma história dessas! Minha irmã ficava às voltas com folhetins chamados Júlia, Sabrina, Bianca — as meninas da idade dela conseguiam ou roubavam das primas e irmãs mais velhas —, que traziam sempre o mesmo esquema de roteiro e insinuavam cenas de sexo. Lia escondido e permaneci lendo por toda a adolescência. Mudei de casa, e o novo esquema me afastou da leitura. Pequeno e com pouca privacidade, o lugar era muito barulhento, e ainda ouvíamos a televisão do vizinho — que ficava no volume normal. Além disso, durante algum tempo, no espaço livre tínhamos que trabalhar na obra da casa. Fazíamos comida para os homens que estavam trabalhando ou ficávamos como ajudantes carregando material ou lavando e segurando alguma ferramenta. Quando a obra parou já tínhamos um quarto, e, aos poucos, fui retomando a leitura deitada no meu beliche e de portas trancadas. A adolescência chegou e o final dos anos 1980 também — era uma época de transição importante, em especial para a cultura musical, e sinto que fui fortemente influenciada pela música popular, particularmente pelo rock e pelas festas que nos faziam dançar até cair. Martha e eu sempre tivemos o hábito de ter cadernos de música com as letras. Nesta época chegamos a ter mais de 300 músicas copiadas. Todas falavam


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de descobertas, revolta com a falta de oportunidade ou a solidão da juventude, e a maioria era ouvida no rádio. De vez em quando, eram jogados fora pela minha mãe, que julgava ocuparem nosso tempo demais. Era também a geração que começava a receber fortemente as influências do mercado, a geração Coca-Cola. E a música foi importante para questionar nossos valores. Para mim não era possível ter a saia ou o sapato mais desejado pela minha geração, como por exemplo, um Redley da loja Cantão. As roupas vinham do Saara, da banca de promoção da C&A e de herança da patroa da minha mãe. Minha mãe tinha uma máquina de costura, que usava pouco, mas eu a usava sempre que precisava transformar uma roupa. Era engraçado ver as etiquetas das lojas famosas em peças que nunca saíram de suas vitrines. Esse gosto por customizar roupas trago até agora e até hoje me salva. Adorava ver televisão até de madrugada: os filmes e os desenhos de aventura eram os meus preferidos. Ir ao cinema não era um hábito em minha vida. Até começar a estudá-lo, tinha a minha lista de filmes vistos no cinema: “Os trapalhões”, “ET”, Poltergeist”, “Brinquedo Assassino”, “O Exterminador do Futuro” e “Alien”. Mas tinha a sorte de ter uma programação televisiva muito mais interessante nessa época e ter podido ver filmes que mudaram a minha vida como “Conta comigo”, do diretor Rob Reiner, ou “Em algum lugar do passado”, com Christopher Reeve, que assisti mais de mil vezes na sessão da tarde. “De volta para o futuro”, que fez minha geração amar os filmes de ficção, e também os filmes nacionais que passavam na Bandeirantes e eram pouco vistos porque a maioria das pessoas taxava os filmes brasileiros de filmes de puro sexo. Eu gosto de sexo, portanto gostava e gosto de vê-los até hoje.


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Sei que alguns são bastante pesados, mas foi vendo que aprendi a valorizar e gostar do nosso cinema e a sonhar que um dia faria filmes também. Dentre os filmes sensacionais que me lembro de ter visto ainda adolescente está “Um trem para as estrelas”, de Cacá Diegues, que trazia na trilha sonora Cazuza, o que me influenciava ainda mais, por ele ser poeta da minha geração, por cantar as músicas que me traduziam. “Feliz Ano Velho”, de Roberto Gervitez, é mais um dos poucos que havia assistido no cinema e o filme me fez ler o livro. Durante o segundo grau é que me senti mesmo desafiada, ao mesmo tempo que ganhava elementos para alimentar minha cabeça. Lia de tudo e dava preferência aos romances e aos suspenses. E, com a influência de minha irmã que já fazia parte do grupo de teatro nessa época, iniciava-me nos textos teatrais. Na escola as aulas de filosofia e de literatura me apuravam o gosto pela escrita; muitas vezes apressava-me em toda prova para que me sobrasse mais tempo para inventar minhas histórias nas redações. Vieram então, em especial no turno da noite, em que terminei o segundo grau, os amigos um pouco mais velhos, as paixões mais perigosas, os romances desafiadores, os que me faziam cruzar a cidade. Vieram as poesias. Muitas, muito românticas. Sem me dar conta dava início ao tema no qual me debruçaria nesta vida: os relacionamentos. “Canto somente o que não pode mais se calar. Noutras palavras sou muito romântico.” Reconheço que todos o livros que li, os programas de TV, as músicas, toda essa memória que foi acumulada durante esse tempo, comecei a usar e a ter, e a acumular mais e mais a cada dia, a partir do momento que entrei para o teatro do Nós do Morro, porque minha matéria-prima principal era minha capacidade de inventar histórias e acreditar nelas.


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No início não era fácil ter acesso aos livros e íamos até a Urca, na biblioteca da UniRio. Inaugurava-se assim um outro momento: aquele em que era necessário buscar minhas referências para poder aglutiná-las em mim, compará-las, descartá-las. Durante todos esses anos dentro do Nós do Morro, me entreguei a todas as atividades. E senti a minha criatividade ter utilidade: todos aqueles sonhos e aquelas ideias estavam sendo aproveitadas. As peças infantis de fim de ano foram o primeiro canal para a criação de histórias nesse novo período. Cheguei a criar aproximadamente uns cinco ou seis textos que foram encenados com minha direção também. Como atriz, o processo de criação das peças se dava em forma de improvisação, e tinha, então, a oportunidade de indicar muitos caminhos às minhas personagens. Passei a acreditar que era possível realizar sonhos e que podia viver tudo que quisesse por meio das minhas personagens e das histórias que criasse. Todos esses anos que estive no Nós do Morro foram anos de muito crescimento e busca. Os filmes passaram a ser mais uma fonte de pesquisa para mim. Ainda não era fácil ir ao cinema, pois sempre foi um programa caro. No cinema, via os filmes mais importantes, aqueles que não se podia esperar. Contei com a sorte da chegada de um videocassete, que me proporcionou a possibilidade de assistir a mais filmes. E quanto mais os assistia, mais vontade tinha de representar papéis e escrever minhas histórias. Mergulhos profundos para criação de personagens, textos teatrais para as peças de fim de ano e poesias. Vieram então os roteiros para cinema, que crescem a cada dia. Nascem histórias diversas para filmar, como bem aprendi com Vinícius Reis: “Filme se faz na cabeça.”


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“Mina de fé” foi o meu primeiro roteiro a ser superincentivado a trabalhar com afinco, já que Rosane, minha professora de roteiro, acreditava de fato na possibilidade de o filme vir a ser aceito em algum edital. Enquanto trabalhava essa história, nasciam outras, e eu seguia imaginando cenas entre os trajetos que fazia de ônibus entre um trabalho e outro ou a pé — caminhadas sempre me ajudaram a pensar. Esses pensamentos às vezes me levavam tão longe que já andei, sem me dar conta, do Vidigal ao Leme e, já cansada e sem dinheiro para passagem, tive de voltar a pé também. No ônibus, esse caráter inventivo também já me fez perder o ponto muitas vezes. Em uma das vezes — já atrasada para um compromisso com minha mãe —, peguei o ônibus que costumava pegar para ir ao trabalho. A cabeça foi para outra esfera, desci na esquina do trabalho, andei até lá num dia de feriado e, só ao ver o portão fechado, me dei conta de que meu objetivo quando saí de casa não era ir ao trabalho, era encontrar minha mãe. Durante o processo de escrita do roteiro “Mina de fé”, costumava apresentar as cenas e a turma fazia leituras (algumas encenadas) para eu visualizar a fluidez da cena escrita. O filme passou no edital e pela primeira vez iria dirigir um filme. Sabia do desafio que tinha pela frente, ainda mais com esse roteiro em que deveria ser recriada uma atmosfera, com o compromisso de ser muito realista. Havia passado pela oficina do “Cidade de Deus” e a proximidade com o trabalho de criação de Fernando Meirelles e Kátia Lund — com quem cheguei ir ao set como assistente e também como atriz em um episódio da série “Cidade dos Homens” — me deixou herança. O Lucio, meu assistente, havia sido assistente do Lamartine Ferreira no “Cidade de Deus”. Mas com uma experiência basicamente teatral, prezava o texto, e fizemos




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diversas leituras e ensaios em sala, no Nós do Morro. Foi um processo exaustivo, minha cabeça não parava. Às vezes questionava o porquê de fazer o filme. Por que enveredei por aquele tema? Deitava na minha cama e me perguntava onde estavam as lindas histórias que criei. Por que optei por contar essa história? Por volta dos 13 anos, tive uma amiga que tinha uma filha pequena de um bandido já morto. Usei seu nome, Silvana, para a mulher de Maninho, personagem do filme. Belinha, como era chamada, foi o mais próximo que cheguei na vida real do mundo da bandidagem. Quando nos aproximamos, sua filha ainda era pequena e seu namorado havia morrido há pouco tempo. Mas ela ainda conservava amigos da época em que namorava o traficante, que atendia pelo nome de “Mongol” e que não chegou a ter visto a filha. Fiquei na sua companhia uma ou duas vezes na mira do perigo, aquelas aventuras que mãe nenhuma nunca sonhou. Sempre acreditei que as pessoas precisam de uma segunda chance e, por sorte, a Belinha teve e pôde tomar as rédeas de seu destino, que, além dessa filha, anos depois lhe deu uma família: um marido e mais duas meninas. E hoje quando nos encontramos podemos ter saudade do Vidigal e da praia. Minha maior motivação ao defender este romance era pensar que no caso das mulheres que moram nos espaços onde circulam traficantes de drogas, as chances de se relacionarem com eles eram maiores, comparadas àquelas que não moram naquela área. Assim como os homens têm muito mais chances de virarem bandidos. Era por esse ângulo que via esta história. Com os olhos do amor, deveríamos enxergar Maninho, como Silvana o enxergava. Mas como conseguir isso? Tinha então a missão de humanizar este bandido.


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No caso da fotografia do curta, minha principal inspiração era “Um céu de estrelas”, da Tatá Amaral. Mas procurei também ver mais de uma vez “O profissional”, de Luc Besson, filme que Jean Reno faz um matador cheio de sentimentos, que se mete em mais encrencas ao salvar a vida de uma menina cuja família foi morta por policiais. Era assim que deveria tratar Maninho, como Luc Besson tratou Lèon, me fazendo torcer por esse homem, que era um assassino, e eu sabia disso, mas cujo amor pela menina o redimia. Eu precisava que Silvana redimisse Maninho. Santiago (o fotógrafo) foi muito corajoso. Tripé e câmera na mão, muita câmera na mão. Acreditando no movimento livre do ator. Com chuva, gravamos a sequência final três vezes, buscando a visão geral da favela mais clara possível e de cima pra baixo. Conseguimos no final, em uma correria, gravar a sequência. Usamos o recurso de enquadramento de cima para baixo todas as vezes que estivemos na rua, fora dos becos. Na cena da execução do soldado da boca de fumo — sequência que mais sofreu com a digitalização —, havia uma espécie de palmeira que estava com sua copa toda branca e o dia estava muito nublado. A câmera também deveria obedecer à regra de se aproximar de um olhar de dentro da favela para fora, uma mistura do “olhar Silvana”, que, por ter se tornado a primeira-dama da favela, se tornou também sua prisioneira, reconhecendo como seu apenas aquele espaço. Nos becos, optamos por uma câmera que acompanhasse a ação, que se movesse bastante. Dentro de casa, uma movimentação mais lenta que dava um sentido de proteção. De que naquele lugar, na casa de Silvana, ele estivesse protegido por seu amor. É difícil saber se foi a opção acertada. Lia livros, assistia a filmes e projetava imagens descritas nessa história.



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O “Mina de Fé” surgiu a partir da frase de uma música da banda O Rappa: “Até mulher de bandido na hora da dura segura a peteca e nega.” Durante a produção, escrevia em uma máquina de escrever — uma Olivetti portátil — e, aos sábados, quando dava duas da manhã, no auge do baile, ia até lá para ver de perto a diversão favorita dos Maninhos e Silvanas da época. É muito difícil explicar como se dá o processo criativo. Umas ideias vêm no sonho, na vontade de tocar num tema específico. Algumas nascem com títulos, outras não. Há também as ideias que são encadeadas por outras ideias. Um filme, um livro ou uma foto. “Coração amarelo”, livro de Neruda — que só fui conhecer por completo após ler um de seus poemas em um restaurante-livraria —, traz o poema “O Outro” que tem a seguinte frase: “De tanto não responder, tenho o coração amarelo.” Saí meio tonta. Não sabia exatamente como digerir aquilo dentro de mim. Aquela sensação de que teria que vomitar aquilo tudo que essa frase havia colocado dentro de mim, ou morreria. Caminhei desnorteada de volta ao trabalho e confesso que não trabalhei muito bem naquela tarde. Não parava de pensar: “De tanto não responder, tenho o coração amarelo.” Ainda no trabalho veio a primeira poesia (“Sangue de gente/De gente mesmo/fora do corpo esfria rápido e calha!”), depois a segunda, a terceira, e um conjunto de três fotos que se dividia em um coração verdadeiro pintado de amarelo, um prato branco esmaltado de ágata cheio de sangue, um bolo de sangue (imagino que possa ser feito com sangue endurecido) desenformado no formato do prato de cabeça para baixo. Essa obra nunca foi concluída, recentemente ela também se transformou em um estêncil, que será aplicado nos muros, tão logo consiga alguma verba para gravar mais um trecho. Há um trecho gravado e animado do curta que também faz parte do


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fluxo de ideias. Este se chama: “Sobre o coração amarelo de Neruda”, e espero não levar mais o próximo ano sem terminá-lo. Contei essa história para dizer que muitas vezes uma única frase é tão forte que é capaz de gerar mais de uma obra em linguagens diferentes. As ideias que me surgem hoje se manifestam em várias áreas: animação, instalação, filmes de curta-metragem, filmes de longa-metragem, projetos de livros infantis, de poesia, de fazer uma novela para TV, de emplacar um programa infantil de qualidade, de dirigir peças dentro do Nós do Morro, de voltar a encenar na companhia sob a direção do Guti. E agradeço por ter encontrado tantas pessoas que acreditam que é possível realizar os projetos com afinco, dedicação e talento. Se não fosse isso, o que teria feito com tantas ideias que nascem na minha cabeça? Algumas delas devem ser imediatamente trabalhadas e resolvidas. São as que chamo de ideias imediatas. Em mim, uma ideia imediata vira poesia, que é possível fazer e resolver apenas com um papel; e hoje, ampliada pelo e-mail, os blogs e os sites de relacionamento, posso fazê-la chegar rapidamente a um leitor. Outras serão filmes, mesmo que não seja de forma tão imediata: tenho lentamente desenvolvido uma ideias que julgo imaturas para resolver como filme, mas percebo progresso nelas a cada ano. “Numa igreja junto ao mar” é uma fábula sobre a vinda de meus avós, com minha mãe e meus tios, de Minas Gerais até São Vicente, sobre a primeira vez que viram o mar. Já sei que é um longa-metragem. Este nasceu com título, enquanto olhava a Igreja de Saquarema em dia de ressaca. Desci o morro da igreja, entrei no carro para voltar ao Rio e descrevi em um bloquinho tudo o que pude naquele mesmo dia. Tem nome e argumento, mas ainda preciso de tempo e maturidade para desenvolver o roteiro. Mas antes que apodreça, tenho fé que vai virar filme.


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Meu último trabalho, o filme “Acende a luz”, por exemplo, é uma ideia encomendada. Cacá sugeriu que apresentássemos curtas que passassem no espaço da favela, ou de pessoas que vivessem nele. Tinha a preocupação de trabalhar uma temática que fugisse do tráfico, da violência e da miséria. Não como negação, pois acredito que quanto mais expomos nossas mazelas, mais temos chances de curá-las. Mas por querer trazer uma história diferente das quais estamos acostumados a ver sobre a vida de nós favelados. Quis trazer também muito de mim, que embora tenha passado por um bocado de coisas difíceis, escolhi — como muitos brasileiros — ver a vida pelo lado da alegria, mesmo quando vivia um drama. Ainda tenho dificuldades de falar sobre o “Acende a luz”, porque acabou de se completar, ainda é confuso e está achando espaços, porquês, motivações. Um fervilhão de ideias que ainda se transformam. Tive a sorte de estar próxima a pessoas que foram importantíssimas e alimentaram meu ato criativo. As aulas do Ruy Guerra, as indicações felinianas de Nelson Pereira dos Santos, os ensinamentos de Camila Amado, as palavras de incentivo de Walter Salles, o carinho de Fernando Meirelles, o testemunho de Daniel Filho, as referências de João Salles e as muitas conversas com Cacá Diegues, que me ensina não só para a realização deste projeto, mas para a vida. Li uma entrevista com Drauzio Varella em que ele contava os conselhos que nortearam sua vida. Identifiquei-me demais quando ele disse ter recebido o conselho de cuidar de sua criatividade e concentrar-se em um projeto e depois em outro. O que me faz compreender que o ser criativo precisa e depende também de escolher uma de suas criações, realizá-la, e então depois partir para outra e para outra. Isso para mim ainda é uma aprendizagem. Muitas vezes me pego fazendo várias coisas


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e não gosto que seja assim, porque muitas se perdem pelo caminho. Serei mais atenta daqui pra frente e perceberei melhor a hora de investir em uma ideia ou até de abandoná-la. Momento sempre triste, mas que acontece quando você nota que aquela ideia não faz mais parte da sua lista de prioridades. Porque essas ideias que tenho são, para mim, prioridade, são urgências. Elas precisam de um canal de escoamento e, quando não realizadas, morrem em mim mesma. Isso me faz triste. Então, o que posso pensar é que o ser criativo se alimenta de criatividade, mas também de realizações. E ainda tem muita ideia dentro de mim. E é com o intuito de pô-las para fora que trabalho todos os dias. Que não cesse a criatividade e aumente a disciplina.



Cap.02

Eu sou assim ou acho que sou



Chamo-me na certidão Luciana Braga Bezerra. Vim ao mundo sob o signo de Touro, com ascendente em Áries, e lua em Sagitário, o que me deixa menos pirada. Nasci aos nove dias de maio, em ano par, 1974. Ano em que o Brasil perdeu a Copa. Em minha família somos todos de ano de Copa. E usamos isso como um slogan. Minha mãe nasceu em 1950, ano em que o Brasil tinha tudo para ganhar, jogávamos em casa, mas, naquele dia triste no Maracanã, o Brasil perdeu para o Uruguai. No interior do interior de Minas Gerais, em São João Evangelista — brinco com isso, porque ficava a oito horas do interior —, também em casa, minha avó tinha mais sorte que o Brasil, paria com saúde, e passavam bem mãe e bebê. Minha mãe recebeu o nome de sua tia e madrinha: Maria Augusta. Em 1970, morando no Rio de Janeiro desde 1964, minha mãe ganhava a minha irmã, ainda nova e com um casamento que ocorrera após anunciar à família que havia engravidado. Para o meu avô, naquela época era melhor uma filha morta à mãe solteira. Recém-casados e com um bebê recém-nascido, minha mãe e meu pai moravam com a irmã de meu pai, cujo marido era vigia, em uma obra de empreitada no Horto. Após alguns meses do nascimento de Martha, que é de março, a seleção trazia a taça do México após derrotar a Itália, e o Brasil explodia de alegria. 44


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Mais tarde, em 1974, eu nasci. Nossa vida já melhorara um pouco. Meus pais haviam comprado um barraco de madeira de dois andares, o que deixava minha mãe muito orgulhosa, na rua 4, na favela da Rocinha. Segundo relatos, ainda não tinha asfalto até lá, mas já estava perto. Nasci numa madrugada de quinta-feira, debaixo de muita chuva. O medo de me ter em casa fez minha mãe se aventurar e descer os becos de barro até o hospital e, embora estivesse com as mãos na cabeça (o que deu um pouquinho de trabalho na hora de nascer), vim com saúde e dando à minha mãe a felicidade de duas filhas. O Brasil naquele ano não teve a mesma sorte. E foi derrotado pela Polônia, ainda na semifinal. Ganhei o nome de Luciana porque a cantora Evinha naquele ano defendeu uma música com esse nome no festival de MPB. Acredito que, além de mim, muitas meninas também ganharam o nome. Em 1982, ano da derrota para a Itália, nasceu meu irmão, do segundo casamento de meu pai. Alexandre — que viveu apenas dezoito anos, pois nasceu com uma doença degenerativa dos músculos — era amante do futebol e conhecedor exímio de todos os times. Foi uma doença bem difícil. A Carolina, quarto filho e terceira menina do seu Luiz Otílio, também é de ano de Copa, nasceu em 1990. Ano difícil para nós, perdemos para a Argentina antes das quartas de final, e tudo que nos restava era vibrar quando a Alemanha tirou a taça da Argentina. Confesso que nesse dia torci contra meus hermanos latinos e adorei quando minha vizinha deu o nome de Caniggia para seu vira-latas. A minha sobrinha Sofia nasceu quatro anos mais tarde, em 1994, durante a Copa. Vinha ao mundo um bebê tranquilo, enquanto os fogos explodiam. E depois de tanto tempo o Brasil nos trazia a taça novamente e nos tornava tetracampeões. Em 2006, passei todo o meu


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resguardo assistindo aos jogos com João Pacífico, meu filho que, com apenas quinze dias, já podia sentir como dói sair fora da Copa tão cedo. Saímos nas quartas de final, ainda por cima perdendo para a França, que já nos tinha levado a taça em 1998. Mas ele aguentou firme, era um menino de chorar pouco. Depois de tantas mulheres nessa família, talvez tenha nascido um ponta-esquerda, um meia-direita, um centroavante, um camisa 10 ou quem sabe um goleiro, que na maioria dos casos, tem sido nossos verdadeiros heróis, ou quem sabe um diplomata. Por enquanto, minha família em seu círculo menor é composta por essas pessoas, mais o Gustavo, meu marido, e o Antônio, marido de minha irmã. E meu pai, Luiz, que diz também ter nascido em ano de Copa, mas não revela em qual para não denunciar a idade. Sua mulher Graça e dona Rose, avó paterna do meu filho, além de Maurício e Paula, meus cunhados. Durante meu tempo de escola implicaram comigo por causa do meu sobrenome “Bezerra”. Era chamada apenas de Luciana Braga para evitar constrangimentos. O que não adiantou muito, logo veio o apelido de Luciana Praga Bééé. Isso pode traumatizar uma criança. Sobrevivi. Hoje, se alguém me chama de Luciana Braga, eu já identifico que é alguém de meu tempo de escola, e só assino o nome completo em cheques, copiando a assinatura da identidade. Aos 21 anos, quando fui requerer um registro de atriz, me informaram que não poderia assinar artisticamente como Luciana Braga. — Mas como assim? É o meu nome!

Já havia uma atriz com esse nome registrada. Que muito me inspirou a ser atriz. Durante a novela “Tieta” eu costumava imitá-la, sonhando fazer o papel da mais cobiçada


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rolinha do coronel. Teria de inventar um nome artístico. Nunca tive vontade de ter um nome artístico, nem mesmo quando fui ridicularizada na escola. Então disse: — Ok. Luciana Bezerra, então!

Quando falei soou-me bem. Forte. Fiz as contas. Somava 14 letras. — Um mais quatro é igual a cinco. Um número do meio. Número de equilíbrio. E ganho uma letra dobrada autêntica. O RR vale quanto? Vale nove.

Minha mãe ficou um pouco decepcionada, mas entendeu. Ou acha até hoje que inventei essa história do sindicato só para justificar assinar com o nome do meu pai. Ciumenta demais! Com ela, fidelidade sempre foi questão de honra. Herdei meu ciúme dela, mas me controlo. Sou uma pessoa diurna. Penso melhor pela manhã, tenho mais bom humor pela manhã. A noite para mim foi feita para dormir, namorar e ir a uma festinha de vez em quando. No meu caso, de vez em quando é quase sempre. Sou tão carente e dependente de meus amigos que se juntarem as noites que vivi até hoje, posso dormir doze horas todas as noites pelos próximos sessenta, ou com muita sorte, setenta anos que tenho de vida e não serão suficientes para compensar as noites que passei em claro em celebrações de amizade. Em festas, em trabalhos muito legais, trabalhos ordinários. Fazendo nada, tomando cerveja, viajando e aproveitando cada minuto da viagem. Namorando, apenas na praia, na praia lendo revista, na praia nadando, na cama lendo livro, ouvindo som e enchendo a cara, enchendo a cara em silêncio, assistindo a televisão sozinha, acompanhada, em sessões de corujão que varavam a madrugada, e, quando se popularizaram as locadoras, em sessão tripla na casa dos amigos e principalmente




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dançando e jogando conversa fora, que é um dos melhores prazeres da vida. Nasci contraditória. Quero realizar milhões de coisas, mas adoro um feriado! Uma festa! Um bafafá! Qualquer coisa que reúna mais de cinco amigas já é diversão excepcional para mim. Acredito que na vida temos de ter tempo para todas as coisas, às vezes elas precisam acontecer ao mesmo tempo, às vezes não, mas nosso desejo tem de ser saciado sempre. Claro, no limite da precisão e não da luxúria. Nunca pensei em ficar rica, mas busco melhorar minha qualidade de vida, dos meus familiares, dos meus amigos, dos irmãos dos amigos e assim acredito contribuir para melhorar a vida de todos. Afinal cada um tem de fazer a sua parte. E quando me refiro à riqueza, à melhoria de vida, estou falando em possibilidades de acesso. Porque é aí que está toda a diferença. Acesso em nosso país ainda é comprado e se paga muito caro por isso. Quando criança era muito chorona, ainda hoje choro facilmente. Um nó na garganta. Às vezes de emoção, raiva, timidez, desespero, tristeza, alegria e até mesmo de felicidade que é o sentimento mais raro, mas que apesar disso, tenho tido o prêmio de sentir. Nesse ponto, penso que somos todos parecidos e amargamos a vida em busca de pequenos momentos de felicidades. Então o segredo é que nesse meio tempo devemos aprender a sentir felicidade também nas pequenas coisas. Quando adolescente faltava atirar fogo pelas ventas como um dragão. Era um trator, um bicho quando me sentia desafiada, injustiçada. No mais, sempre fui uma criatura da paz. Poucas vezes me meti em confusão e, quando o fiz, lutei apenas pela sobrevivência da espécie. Adulta venho aprendendo a pensar duas vezes antes de falar. Principalmente com a minha mãe. E a desconfiar mais das pessoas. Também a me manter um pouco mais reservada e ter amigos em um


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circulo mais íntimo. Alguns vão dizer que fiquei mais seletiva. Não sei se é bem por aí. Eu digo que mais medrosa. Virei mãe. Muitas vezes ainda tenho rompantes de explosão e jogo todo esse aprendizado fora. É como se tivesse novamente 19 anos. Mas me envergonho disso cada vez mais. Não passo impune pelo meu tempo. Há em mim reflexos da resistência de se socializar ou da superficialidade das relações no mundo de hoje, mas isso não me agrada e me faz lutar contra. Farei a cada dia o caminho de volta. Tomo consciência de que devo ser generosa com o outro e sobretudo amar as coisas. Não posso mentir que já me senti mais acreditada numa mudança ágil, eficaz. Na qual mudaria o Vidigal — bairro onde moro há 28 anos —, e em pouco tempo mudaria o mundo e isso se daria por meio da minha mudança e da minha família. Dizer que não consigo isso com milhões de colaboradores desse sonho, é mentira. Mas os problemas parecem cada vez maiores com a quantidade de gente que migra, que nasce, que empobrece, com o abandono das áreas rurais, o tráfico de drogas, as guerras, o abandono das autoridades. Todos esses clichês da nossa sociedade vão tornando a convivência pacífica entre as pessoas cada vez mais utópica. Enxergamos o outro cada vez mais como nosso opositor, e isso nos torna competidores cruéis. Em uma favela, ou comunidade, que é um termo mais compromissado, é preciso ter generosidade. Esse espaço — por estar em sua origem fora das leis formais da construção de um bairro, ou de uma cidade — precisa se unir, mas a tomada dos morros pelo tráfico intimida todas as iniciativas de coletividade, porque qualquer liderança torna-se uma ameaça. Mas aqui, mais do que em qualquer outro lugar, devemos estar unidos em um ideal de que todos naquele espaço prosperem.


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Nasci na favela, pela necessidade de ter uma casa, perto de onde meus pais, imigrantes rurais, arrumaram trabalho. Acho que os bairros populares precisam existir e não necessariamente estar longe dos grandes centros. Se servirmos aos patrões, nos deixem ao menos dormir por perto da casa grande depois da festa. E não atravessar todo o canavial para deitar na senzala do outro lado do rio. Acredito que uma cidade, quando planejada, deva incluir em seu projeto os bairros populares, apesar de não ser um projeto simples. No campo das ideias tudo é simples. Isso é o que me atrai na ficção. Poder criar e dar solução para tudo. Uma senhora não quer se encontrar no mesmo shopping com sua serviçal e assumir que compra uma bata que custa uns três salários da empregada. Quem me ouve falar assim imagina alguém que fará aqui algum discurso panfletário, mas essa não sou eu. É que em alguns casos as diferenças de condições sociais, que podem ser mais bem traduzidas em financeiras, são vergonhosas. Trabalho desde cedo para o crescimento do país e acredito que você deve contribuir sendo responsável por si e pelos seus. No grupo Nós do Morro me formei atriz, me iniciei diretora, conquistei o respeito artístico de pessoas muito importantes, que é um incentivo para continuar meu trabalho e meu desenvolvimento artístico. Apoiada pela diretoria do grupo, temos como filosofia dar oportunidades às pessoas de se expressarem e de se colocarem no mundo para que gerem uma rede do bem, por meio da arte. Sento-me diante do computador para iniciar a aventura de contar um pouco da minha vida, minha trajetória de mulher carioca, mãe, favelada, artista, agente transformado e transformador, para quem folhear estas páginas. Então comecei assim, me apresentando porque


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sou assim mesmo. Adoro fazer amigos. Desejo por meio de minhas histórias articular mais colaboradores que acreditem ser possível provocar mudanças. Ao mesmo tempo que escrevo em meu quarto, meu filho de 3 anos, Pacífico, pede a mamadeira de leite com chocolate. O pai atende ao pedido. Mas ele continua a me chamar, quer que eu o coloque para dormir. Isso é uma rotina, que ainda me adapto. Levanto-me do computador, não posso suportar ele me chamando, sem que lhe atenda. Vou colocá-lo para dormir e retornar ao trabalho logo depois. Será assim a aventura de escrever. Tem sido assim minha aventura pessoal. Mas espero nas próximas páginas dar meu testemunho reflexivo sobre todo o processo de aprendizado intelectual, artístico e pessoal. Dentro deste grupo que há vinte e três anos ajuda jovens pobres a acreditarem que é possível transformar a sua história. Transformar a história de um lugar e do mundo a partir da igualdade de oportunidades. Transformei a minha vida e acredito ser responsável pela transformação de outras pessoas. Para que a evolução da espécie se concretize.


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Cap.03

As coisas mais minhas



Durante todo o ano de 1979, minha mãe fez a travessia da ponte todos os dias para ver suas filhas dormirem e, pela manhã, antes que acordássemos, ela saía de novo para seu trabalho de doméstica no Leblon. Minha mãe, aos 14 anos, iniciou sua vida de trabalhadora nessa casa. Já teve muitos outros patrões, mas trabalha até hoje com essa família. Acredito que as idas e vindas da Serra do Lagarto– Leblon tenham feito minha mãe chegar ao final do ano bem cansada. Foi então que tomou a decisão de que passaria a semana longe da gente. Passou a sair na segunda e retornar na sexta-feira. Passávamos a semana inteira com os meus avós e durante a semana não tínhamos mãe nem pai. Compreendo que vir somente durante o fim da semana economizava tempo, força e dinheiro, mas era difícil estar sem ela. Não tê-la velando nosso sono todas as noites me fez sentir muita saudade e me apegar muito a minha irmã Martha, que nascida sobre o signo de Áries, sempre foi muito correta e forte. Meu pai é um cabra paraibano, bonitão. Um dia, já na minha adolescência, surgiu um boato de que eu estava namorando um cara bem mais velho, assim bonitão, pois haviam me visto de braços dados a ele passeando em um 58


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shopping. Era ele: seu Luiz Otílio Bezerra, meu pai. Isso, na comunidade, é algo que não dá para escapar. Todos em algum momento da vida caem na boca do povo. É tudo muito perto. Os becos têm olhos e as muretas têm ouvidos. Se você é santo eles vão falar, se é da turma do barulho vão falar também. Meu pai costumava nos contar histórias somadas a canções para nos pôr na cama. Eu, como toda caçula mimada, fingia dormir para ser posta na cama no colo ou carregada de um ônibus para outro, e isso enfurecia a Martha, que dizia: “Pai ela tá acordada, bota ela no chão!” Eu abria e fechava os olhos para ela, me sentindo vitoriosa, pois ele me carregava e era muito, muito bom! Nessa época, minha mãe logo começou a namorar, e nós mudamos para uma casa que apelidamos de Casa Rosa. Ficamos ali nos três anos seguintes: nós e o novo marido da minha mãe. Era nossa casa de fim de semana. Essa casa tinha um quarto, que eu dividia com a Martha, decorado pela minha mãe com umas bonecas de pano de parede, que ganhamos da Ana Clara, filha de D. Matilde, uma amiga do prédio em que minha mãe trabalhava. Era de costume herdar seus brinquedos, sempre incríveis. As bonecas de pano eram lindas, mas a que eu mais gostava era uma bruxa com vassoura e tudo, que, por ser a minha preferida, foi colocada sobre a minha cama. Lá também ganhamos nossa primeira bicicleta e uma vitrola automática que era capaz de tocar vários vinis, que iam caindo uns sobre os outros. Era do Nani, o patrão da minha mãe, que a adorava e era um cara muito especial. Esses sempre foram pessoas especiais: o Nani e a Suely, uma patroa difícil de achar. Essa senhora ajudou a nos criar e nos ensinou e incentivou em tudo que sonhamos fazer, eu e minha irmã. E na sua casa, embora fôssemos as filhas da empregada,


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nosso território não era restrito ao quarto de empregada e a cozinha. Lá circulávamos por todos os espaços e nos sentávamos à mesa com a família. Uma raridade. Nos fins de semana com minha mãe, ouvíamos principalmente Roberto Carlos, que sou fã até hoje. Posso cantar quase todas as letras dos vinis de 1968 até mais ou menos 1986. Tenho uma memória para letras de música que é fantástica, quem dera fosse assim para matemática. Nessa época nasceu da música minha primeira manifestação artística. Naquele ano, que não consigo lembrar qual era, ganhei do Papai Noel um telefone vermelho que fazia um barulho de chamada. Então eu imitava Elis Regina cantando no videoclipe “Alô, alô Marciano”, com direito a viradinhas de olhos e esqueminhas irônicos com a voz assim como a Elis fazia. Só parei de fazer esse número (que era um grande sucesso entre os primos e vizinhos), após a morte da cantora, e a minha irmã colocar na minha cabeça que não era nada bom imitar alguém que já havia morrido. Então aposentei o telefone. Neste mesmo quadro do programa “Fantástico” — que apresentava videoclipes, que talvez ainda nem tivesse essa nomenclatura ainda, em que havia visto Elis cantar — também me lembro de ver Clara Nunes com “Morena de Angola”. A minha avó me proibiu de dançar por considerar ponto de macumba e, com sua educação católica, achar que podia nos causar algum mal. Mas não adiantava, adorava dançar com os pés no chão, principalmente na beira do rio, que me colocava em um cenário igual ao visto no clipe da cantora na TV. Colocava uma saia ou vestido que pudesse simular uma saia até os pés e amarrava penduricalhos no tornozelo. A música fazia tanto sucesso que a moda daquele ano era a tornozeleira. Todas nós ganhamos do meu padrasto, que, por essa e por outras, se tornou um cara muito legal. Era moderno. E também


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porque tinha um corcel 1972, e isso ajudou muito sua campanha comigo para namorado da mamãe. Meus tios, Neném e Marco, que eram ainda muito jovens e não tinham saído de casa quando fomos para casa da vó, me influenciaram muito na infância. A discoteca, o Michael Jackson, o gosto pela cintura baixa e pelo cabelo alvoroçado. O Fantástico — dá para ver que era um de meus programas favoritos — tinha um quadro chamado “Histórias fantásticas”. Algumas dessas histórias me marcaram tanto que lembro de detalhes até hoje. Meus tios, podiam estar namorando, jogando cartas, fazendo qualquer coisa no domingo à noite, que nessa hora corriam para a frente da TV. Na hora de dormir havia sempre algum comentário pela casa, que me fazia fechar os olhos e dormir rapidamente. Mas fazia xixi na cama todos os dias, porque não tinha coragem de ir ao banheiro. Foi bom crescer e parar de ter medo. Quer dizer: ter menos medo. Mas foi bom parar de imaginar coisas tão fortemente, com tanto poder a ponto de visualizá-las acontecendo. Essa criança inventiva vem crescendo e tentando construir um mundo onde se tenha o direito de acreditar nos sonhos. Já tive muitos deles. E são os sonhos que sustentam minha vida, se multiplicam, dão espaço a outros sonhos. Gerados pela inquietação intrínseca à alma do artista. Sem dúvida alguma, desde pequena já carregava o gosto pelas apresentações.


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Rocinha do Pai

Cap.04

Rocinha do Pai


Meus pais, eu e minha irmã Martha vivemos na Rocinha até eu completar 4 anos. Não tenho muitas lembranças desse tempo a não ser do que está registrado em fotos que na época não eram tão simples de se conseguir. Precisava esperar um retratista passar pela rua. Esperar ser aniversário, Natal ou festa junina. Mas ouvi muitas histórias contadas pela minha mãe sobre o tempo em que era bebê, no barraco da rua 4. Em 1971, eles mudaram para o barraco de dois andares. No início, minha mãe, feliz, encerava o assoalho de madeira envernizado. Nasci três anos após a mudança e a casa já apresentava sinais de problemas. Mas vivemos lá por mais quatro. Quando nos mudamos, nos relatos de minha mãe, as tábuas da cozinha já tinham buracos e o esgoto passava aberto embaixo da casa. Ela colocava madeiras e as prendia com o peso dos móveis. Na escada que dava acesso ao segundo andar faltava degraus e suas laterais estavam comidas de cupim. Havia uma parte no quarto do segundo andar interditada, pois o chão furou também comido por cupins. Era preciso que o barraco sofresse uma reforma. A Martha passava o dia inteiro em uma escola em Botafogo — o Educandário da Misericórdia —, e eu ia para o trabalho com minha mãe e adorava o conforto. Só à 66


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noite voltava para o barraco na Rocinha. Minha mãe esperava ansiosa eu completar 4 anos para me colocar na escola. Nos fins de semana, eu ficava em Maricá, na casa da Vó Nazica, ainda mais depois que o casamento passou a ir mal. Algumas vezes não era possível para minha mãe me levar ao trabalho e eu ficava com minha madrinha, que morava em frente a nossa casa. Tinha uma casa que não era barraco, um pequeno quintal e alugava dois quartos para moças solteiras. Quando não era possível, ficava com mulheres que tomavam conta de crianças; tinha uma perto da minha casa. Eram muitas crianças e ela, para entregar a roupa que lavava para fora, nos deixava com sua filha, que devia ter 8 anos. Lá os meus biscoitos eram comidos, não por mim, e também se não quisesse a comida, era melhor que sobrava para o outro. Mas quando minha mãe me deixava lá nunca reclamava ou falava nada. Agarrava-me a ela quando chegava a hora dela ir embora. Depois, esperava ela voltar para me buscar, me mantinha quieta e fazia amigos. Da Rocinha nesta época eu lembro ainda da D. Filhinha, que me chamava para comer bolo à tarde e ouvia sempre a Radio Relógio. Lembro também de correr pelada pelo beco até a casa da minha tia Maria José. Era impossível passar na rua e não olhar dentro da casa dela. Essa lembrança é forte porque a tia sempre fez questão de contar esta história em especial para os namorados que se aventuraram a conhecer a família. Lembro também do Junior, um amigo, que tinha um palhaço colorido não muito grande. Foi um brinde de festa junina, talvez a primeira da qual eu tenha lembrança. Um dia, quando brincávamos na laje, o boneco caiu na beirada para fora da mureta. O Junior, então, pulou o muro para pegar o boneco e se equilibrou em uma mureta estreita. Fiquei olhando e admirando sua coragem. Era perigoso de




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verdade. O Junior voltou. Ele devia ter uns 6 anos. Demos trabalho a nossos anjos da guarda! Depois da separação dos meus pais, continuei a ir muitas vezes à Rocinha. Meu pai morou lá por muito tempo ainda. Construiu no lugar do barraco de tábua uma quitinete de alvenaria. Também na Rocinha continuamos a frequentar durante esse tempo as casas das famílias de nossas madrinhas. Por sentença do juiz, meu pai teria direito de nos pegar nos fins de semana a cada quinze dias. Qualquer outra visita deveria ser previamente avisada. Ele sempre foi nos ver quando quis e minha mãe nunca proibiu isso, mas a distância em que morávamos fazia com que os fins de semana quinzenais fossem a chance de nos ver e não deixar se perder o contato entre pai e filhas. Hoje percebo o esforço feito pelo meu pai e agradeço, porque assim pude tê-lo por perto mesmo com a separação. Eram esses fins de semana de farra. Meu pai preparava passeios como Parque Lage, Parque da Cidade, Feira de São Cristóvão, praia, cinema ou até mesmo um passeio pelo centro da cidade olhando prédios históricos. Em alguns fins de semana, apareciam umas namoradas dele para passear com a gente. A Martha era mais fechada, eu logo fazia amizade com elas e tive até as minhas preferidas. À noite comíamos algo preparado por ele, que cozinha muito bem, e depois ouvíamos música e cantávamos enquanto ele tocava violão. Dele herdei o gosto pela música popular brasileira e regional e a boa mão para comida. Ouvíamos de tudo: Gonzaguinha, Raul Seixas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Elomar, Edgar Mão Branca, Geraldo Azevedo e, de vez em quando, sempre baixo, meio escondido, por medo da ditadura,


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Geraldo Vandré, com sua canção hino da revolução: “Caminhando e cantando”. Ele me deu uma música que jurava ter sido feita para mim e anos mais tarde descobri que era de um cara chamado João Só. Era para outra menina, mas podia ser aplicada a mim também. Menina que mora na ladeira e desce a ladeira sem parar Debaixo do pé de laranjeira tem sempre um alguém a esperar Um silêncio profundo a menina dormiu E esse alguém que esperava por ela partiu Partiu para sempre Para o infinito E um grito se ouviu. Chorando levanta a menina e desce a ladeira sem parar Embaixo do pé de laranjeira, não há mais ninguém a esperar.

Era essa a música. Talvez isso explique meu tom dramático. Meu pai algumas vezes lia para gente canções ou trechos de peças teatrais que ele escrevia. Eram momentos que nos quinze dias que separavam a próxima visita me traziam saudades, mas também conforto de um bom convívio. Quando nos mudamos para o Vidigal pude voltar a ver minha mãe todos os dias e meu pai com muito mais frequência. Ele se casou novamente. Com a chegada da adolescência, as visitas ao pai raras vezes eram para passar o fim de semana ou dormir. Ele já tinha mais dois filhos e uma esposa. A quitinete havia subido mais dois andares tentando abrigar o crescimento da família. A Rocinha crescia a cada dia. A família do meu pai, que veio da Paraíba para o Rio, estava toda ali na Rocinha. Seus irmãos, volta e meia, abrigavam-se na sua casa, desde quando era casado com minha mãe.


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Era uma família numerosa. Os homens trabalhavam em restaurantes e bares e as mulheres eram lavadeiras, donas de casa e empregadas domésticas, todos moradores da Rocinha desde os anos 1960. Meu pai tentou, ao sair de um restaurante que trabalhou durante um tempo, abrir seu próprio negócio na Rocinha. Teve de tudo: birosca de bebida, birosca de sinuca, mercearia. Martha, quando brigou com a minha mãe para continuar fazendo teatro, morou um tempo na Rocinha e dizia não se habituar ao sobe e desce, ao entra e sai, ao falatório que parece que não termina nunca, pode ser a hora que for. Minha mãe que se preocupava com o teatro, quando a Martha se mudou para a Rocinha, passou a se preocupar também com a Martha morando lá, sem estar sobre seus cuidados diários. A Rocinha era muito mais violenta que o Vidigal. Logo a Martha voltaria a morar com a gente, para minha alegria, pois sentia muito sua falta. E para a tranquilidade de minha mãe. Essa briga durou um ano, mas mudou tudo na minha família. A vida do meu pai se complicava na Rocinha, porque foi descoberto que meu irmão mais velho tinha uma doença degenerativa, e aos 7 anos ele já não andava. Meu pai precisava mudar para um lugar com menos vielas e escadas para subir e mudou-se para Jacarepaguá, em 1995. Isso fez com que eu visitasse cada vez menos o lugar onde nasci. Passei a frequentar menos a Rocinha, que para mim se tornou por um tempo apenas a via Apia (principal viela de comércio, até sua esquina com a Estrada da Gávea, mas na Rua 4 nunca mais fui). Meu pai, para quitar dívidas, vendeu as quitinetes da Rocinha. Não acho que agiu certo. Assim que tiver uma casa própria, seja onde for, não vendo por nada. Durante a guerra entre as facções que dominavam esses dois morros, corriam boatos de que nenhum morador do Vidigal poderia ir à Rocinha. Meu pai continuou sempre


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trabalhando por lá. Em resistência, eu ia visitá-lo, só para ter um testemunho que comprovasse que isso não era verdade. Os boatos que inventam durante conflitos como esses são capazes de causar mais mal que o próprio conflito. Meu irmão faleceu aos 18 anos e meu pai, há pouco tempo, voltou para a Rocinha com sua mulher, minha irmã Carol e já com minha sobrinha Julia. Hoje a Rocinha está mudada. Tem banco, clínicas, comércio. Como vendeu sua quitinete, mora de aluguel. Um homem em idade de se aposentar. Isso me preocupa, pois comprar outro imóvel na Rocinha, mesmo do tamanho da quitinete antiga, pequenininha, está cada vez mais caro e mais difícil de se conseguir. Tenho orgulho de ver um bairro de operário tão discriminado se transformar como a Rocinha. Espero ainda ver o Vidigal ganhar essa sorte. Costumo ir hoje à Rocinha, em visitas ao pai, para fazer compras, ir ao banco e levar meu filho para nadar em uma de suas academias, que oferece esse serviço e é a mais barata da Zona Sul. Na Rocinha o pobre tem opção de sentar com sua família e comer uma pizza no dia do aniversário. E me orgulho muito disso — de andar nesse bairro com propriedade, como ando em Copacabana, coisa que poucos cariocas, que não são moradores de lá, fazem. Sinto-me mais carioca e mais brasileira por não precisar ser convidada ou por não ter um guia para entrar na Rocinha. O bairro abasteceu meu jantar japonês de sushi no último aniversário do Gustavo, meu marido. Bairro construído também pela minha família.


Cap.05

Maricá da Mãe

Cap.05

Maricá da Mãe



Chegamos juntos a Maricá — toda a família — para morar perto de meus avós. A casa estava mais bonita. Meu pai havia aberto uma centena de crediários para comprar móveis. Já que o pouco que tinha permaneceria na Rocinha, mas a separação ainda não estava declarada. Era preciso que meu avô acreditasse que a intenção dele não era abandonar a família. Dormiu lá apenas naquele fim de semana e foi embora. Ficou um tempo sem nos ver. Acho que umas cinco semanas ou mais. Era um falatório na família — minha mãe nervosa. Entendia tudo, mas todos pensavam estar escondendo de nós o verdadeiro motivo da mudança. Quando minha mãe conversou com a gente, nós e nossos primos já tínhamos adiantado essa conversa por muitos dias. Todos tinham medo de perder os pais. O ano de 1978 abalou de fato a família. Meus primos, um ano antes, tinham perdido o pai em um acidente de carro. Agora podia ser a nossa vez, pelo menos era o que pensávamos naquele momento. No Natal daquele ano, vi meu pai, mas na virada de ano ele não estava com a gente. Era um direito da minha mãe. Ela estava feliz. E dançava bem bonita em seu vestido vermelho de flores amarelas. Tínhamos uma vida nova em Maricá, eu, minha irmã e minha mãe. Essa enxurrada de pronomes possessivos é porque sou taurina e sofro

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de apego, ciúme e posse. Lá morávamos numa casa na beira da estrada, que era ainda de terra. O bairro se chama Serra do Lagarto. Éramos vizinhos de parede e meia com minha tia Mara José, irmã mais velha de minha mãe, viúva e com seus quatro filhos, que se mudara para Maricá após o tio Lino morrer. Essas casas haviam sido uma antiga mercearia e deram muito trabalho para serem transformadas em residência. Não muito distante, no caminho do rio, que sempre fora a principal atração nas visitas a família nas férias, morava minha avó numa casa que ficava no alto de um pequeno morro. Mais tarde, já adulta, quando visitava o lugar, percebi que era uma casa normal, mas na infância via a casa de minha avó como um lugar muito grande e com seu enorme quintal no alto daquele morro. Não é difícil para uma criança de 4 anos perceber tudo grandioso. Com minha avó, que se chama Judite Flor de Maio, assim mesmo sem sobrenome de família (coisas de Minas), morava minha tia Maria da Conceição, a mais nova das meninas e, por isso chamada por todos de Neném — para nós, tia Neném. O caçula da família era o tio Marco, e meu avô, Geraldo, foi quem escolheu esse nome pra ele e também de todos da família, incluindo mãe e avó, que ele mesmo registrou ao chegar em Niterói nos anos 1960. O sobrenome que ele deu à família foi Acendino Braga. Meu avô era uma figura incrível e tinha sempre uma voz firme ao se apresentar como Geraldo Acendino Braga. Havia escolhido esse nome porque em Minas tinha uma família muito poderosa de nome Braga e ele achava bonito. A nossa família Braga começa em meu avô, que para nós era tão importante quanto qualquer político. Em Maricá, ele ganhara fama após construir metade dos prédios do centro, a Prefeitura e muitas casas nos arredores dali. Fez também a sua parte ao trazer de Minas




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muitas famílias, empregando homens em suas empreitadas de obra ou de roçado. Todos com o mesmo sonho dele: ganhar a cidade grande a fim de dar oportunidade melhor aos filhos. Lembro de um desfile de aniversário da cidade, que meu avô vinha no caminhão da Prefeitura e recebia do prefeito de Maricá a chave da cidade, sendo nomeado cidadão maricaense. Nós ficamos muito importantes nesse dia. Em Maricá, tinha uma rotina gostosa. De manhã frequentava a escola e à tarde estava livre. Minha avó, que é por todos os netos, chamada de vovó Nazica, ficava em casa com a gente e fazia as coisas da casa além de costurar para fora. Ela era vez por outra muito severa, mas fazia o melhor mingau de fubá com pedacinhos de queijo minas que já comi. Ao escrever essas palavras, minha boca se enche de água e posso até sentir o cheiro do leite queimado na leiteira enquanto a vó mexia o mingau. Adorava raspar aquelas leiteiras! Era a primeira a correr para a janela quando uma chuva estava se armando e ficava ali esperando ela chegar e varrer os pastos. Tinham três janelas na sala e cada grupo de netos ocupava uma, os últimos a chegar se acotovelavam querendo garantir um espaço. Quando estava apenas eu, minha vó e minha irmã, cada uma ocupava uma janela. Depois de algum tempo de chuva sempre ia me abrigar na janela da Martha com a desculpa de que estava com frio, mas ela sabia, como boa irmã mais velha, que era mesmo saudades da minha mãe. Abraçava-me e se a barra pesava para ela também, propunha um jogo da memória ou uma adedanha. Até hoje quando chove adoro me debruçar na janela para ver a chuva quando vem se aproximando de longe. É uma imagem linda. Havia dois dias na semana que todos os netos ficavam com a minha avó. Nós, os filhos da tia Maria José — Ana


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Márcia, Rosana Lúcia, Sandro Mauro e Adriana Maria — e os da tia Cacá (Maria das Graças) — Gérson, Gisele, Jesiléia, Jesilene e Marilene. Esta foi a primeira geração de netos dos meus avós, e fomos criados como irmãos. A tia Cacá faz até hoje, em seu fogão de lenha, as melhores rosquinhas fritas e o melhor requeijão duro que já comi. Na minha época de criança, ela morava em uma fazenda, que nos abrigou em muitos fins de semana. Era quando minha tia preparava o requeijão cozinhando em enormes tachos e precisava de muita prática para receber as bolinhas de queijo quente nas mãos. Ficávamos ali rodeando todo o processo de feitura, que demorava. Íamos e voltávamos até que o requeijão estivesse em ponto de puxa-puxa. Esticávamos as mãos um a um, tínhamos que rapidamente passar de um lado a outro para esfriar, fazíamos bolas de queijo e comíamos. Posso, em dias saudosos, sentir o cheiro delas. Na casa da minha avó, quando estávamos todos juntos, eram os dias de hospício. Esperávamos a hora do sono da tarde da vovó para aprontarmos todas, o que muitas vezes resultava em surra ou castigo ou os dois dependendo do tamanho da falta cometida. Durante a semana, a saudade da mãe era confortada por muitas brincadeiras e a deliciosa sensação de liberdade da roça. Mas eu aguardava a sexta-feira como se aguarda dia de festa. Duvido alguém me pôr para dormir antes de subir o último ônibus que normalmente trazia minha mãe. Às vezes acontecia dela perder esse ônibus e depender de lotação, táxi ou mesmo de ir a pé. Nesses casos, eu acabava cochilando, mas ao ouvir sua voz chegando a casa, era a primeira a levantar e ir correndo saudá-la. Abraçava e beijava, ela já muito cansada, e ainda sempre vinha à clássica pergunta: — Trouxe o quê pra mim?


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Ela sempre trazia na bolsa caramelo ou bala de goma colorida, que eram devorados por mim a hora que fosse. Sem nenhuma preocupação de escovar os dentes depois. Nos fins de semana que não eram de meu pai, passeava na fazenda, tomava banho de rio, brincava com os primos. Às vezes tinha festa de algum parente e sabia que teria bolo, fazia compras; eram fins de semana gostosos. Mas também era nos fins de semana que se catava a cabeça para verificar se estávamos com piolho, e, caso fosse constatado que sim, todo aquele procedimento de remédio, escovação, pano branco na cabeça, aquela coceira infernal. Eram os fins de semana de faxina geral, orelha, umbigo, pé, unha, de revisão nos dentes e nos deveres de casa. Claro que a mãe tem de se encarregar dessas tarefas que nós achamos chatas e desnecessárias. Sei também que se ela pudesse escolher, estaria conosco em um passeio, mas enfim alguém tem de fazer esse trabalho. A mãe sempre fez questão de almoços e cafés da manhã fartos e com todos à mesa e de fazer pão doce e bolinhos de chuva em formato de letras onde eu podia escrever meu nome antes de comer. Minha mãe arrumou logo um namorado, e alugaram uma casa distante da casa da minha avó e passamos a ir para lá nos fins de semana. Gostava muito de ir para essa casa onde eu e Martha tínhamos um quarto, que podia me relacionar com minha mãe sem interferência dos meus avós. Ganhava durante os fins de semana uma rotina com a minha família normal. Foram quatro anos de muitas aventuras e descobertas. Fui matriculada e comecei a ir à escola. Era a primeira a acordar. Enquanto a Martha estava escovando os dentes, já tinha tomado o café e me apressava até a casa de meus primos muitas vezes para acordá-los, e algumas vezes era eu quem impedia o ônibus de ir embora, já que se isso acontecesse só haveria outro três horas


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depois. Seu Liba era o nome do motorista que mesmo sendo muito legal de nos esperar para nos levar a escola, não escapava de nossa chacota por ser o motorista mais mole que já conheci: “Seu Liba não é capaz de botar o cento e vinte, lá vai, lá vai, lá vai dos quarenta ele não sai.” Era a nossa diversão preferida na volta da escola, ficar no fundo do ônibus cantando isso para ele. A escola ficava na cidade. Meia hora de ônibus de onde morávamos. Ana Márcia, minha prima mais velha, era a responsável por levar todos nós à escola. Muitas vezes perdíamos o ônibus para voltar e não podíamos esperar três horas. Então marchávamos a pé para casa pela estrada de terra. Com sorte, passava um motorista conhecido e nos levava. Algumas vezes pararam carros que nunca tínhamos visto e nós nos certificávamos se era seguro perguntando se o motorista conhecia o vovô Geraldo e, se ele respondesse que sim, pegávamos a carona tranquilamente. Graças a Deus todas as vezes foram pessoas de bem e nunca aconteceu nada com nenhum de nós. Em Maricá, passamos por uma enchente. Quando a chuva começou, estavam somente as crianças em casa, brincando na casa de uma das tias. Tinha uma prima com coqueluche e arrumamos uma briga, o que fez metade do grupo sair em direção a casa da vó. Estava nesse primeiro grupo, e tivemos muita dificuldade de subir a rua, porque a água em mim, que era a menor, já atingia quase a cintura. Meus primos, Sandro e Rosana, ao nos deixar na casa da vó, mesmo após a briga, acharam por bem voltar e ajudar os outros a saírem da casa, que ao contrário da casa da vó ficava em uma parte baixa. Eles desceram e nós ficamos apreensivos até que voltassem, muito molhados e carregando a Lelene, que estava com coqueluche, enrolada em uma cortina de banheiro. A partir daí, começaram a chegar os adultos


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e a casa não parou mais. Grupos de homens liderados pelo meu avô saíam a todo momento para ajudar mais pessoas a saírem de suas casas. Era uma sexta-feira e, mesmo tendo sido colocada para dormir, os olhos não fechavam, acompanhava toda aquela movimentação e rezava quieta pela chegada de minha mãe, que se deu já na madrugada, contando que teve de atravessar o rio amarrada em uma corda, porque a ponte havia sido levada pela força da água. No dia seguinte bem cedo, a chuva tinha passado, e fomos levados pela minha avó para ver o tamanho dos estragos. A vó Nazica era uma espécie de “Repórter Esso” — noticiário histórico do rádio e da televisão brasileira. Gostava de saber tudo que se passava a sua volta. Uma vez lhe contaram que um homem havia se enforcado do outro lado do rio. Era final de almoço. Ela trocou de roupa e nos ordenou que calçássemos os chinelos para sairmos. Foi uma caminhada longa. Quando chegamos, demos de cara com um homem negro, de aproximadamente 40 anos, pendurado ainda na árvore com a língua muito roxa e inchada para fora e uma cueca vinho saco de batata. Assim que ela chegou, percebeu que não poderia ter ido até lá com aquela criançada toda e começou a mandar a gente voltar. Demos a volta assim que ela conseguiu nos afastar daquela cena e começamos a caminhar de volta para casa. Ninguém falou nada sobre o assunto, principalmente com meu avô; era nosso segredo com a vovó. Essa cena está em um de meus roteiros. Esse é o melhor momento. O de aproveitar suas histórias, suas experiências, para contar outras histórias. Maricá está em muitas das histórias que ainda desejo contar. Aliás, minha família mineira já é por si uma história, minhas tias são do tipo que contam as desgraças da vida e todo mundo ri. Pessoas maravilhosas de quem herdei em especial a generosidade e o gosto por contar histórias.


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Eu e Martha, por conta de nossas viagens quinzenais ao Rio, e o fato de nosso pai morar lá, éramos as cariocas e enchíamos a boca para falar isso. A cada quinze dias trazíamos uma novidade quando visitávamos meu pai. Nós fazíamos passeios que nenhum de nossos primos nem as outras crianças da cidade estavam acostumados. Muitas vezes faziam roda para escutar as experiências vividas em um praia ou em uma sessão de cinema, coisa que em Maricá não tem até hoje. A minha infância, principalmente dos 4 aos 8 anos, foi uma época crucial na minha formação. Foi quando aprendi a falar, o que justifica ter um “s” mais acentuado do que o normal dos cariocas, pela interferência da família mineira. Também foram os anos em que me alimentei de muita brincadeira, que na roça não tinha limites. Quando nos mudamos, todas as vezes que íamos a Maricá em visita, todos faziam questão de nos apresentar como as primas do Rio. Depois que comecei a trabalhar com teatro e tive participação em novelas e filmes, quando chegava lá, passei a ser apresentada como a artista da família. É difícil fazer as pessoas entenderem que você apareceu em uma novela, mas não necessariamente você trabalha na Globo, ou que você não está em novela nenhuma e mesmo assim é atriz. Mas a gente vai levando. Não foi fácil sair de Maricá. Estava acostumada com a proximidade da família, tinha amigos, estava bem adaptada a uma escola. Mas minha mãe decidiu que deveríamos nos mudar. Gosto de voltar a Maricá até hoje, mas a cidade me passa a sensação de que parou no tempo. Minha mãe estava certa quando nos mudamos de lá.


avela do Papa


Cap.06

Vidigal, a favela do Papa


Em 1982, nos mudamos de volta para o Rio, só que dessa vez para a favela do Vidigal. A favela do Papa. Minha mãe só revelara a mudança para a gente naquele momento, mas já cultivava a ideia há dois anos quando foi até a entrada da favela para ver o Papa João Paulo II, que subiu o morro em sua primeira visita ao Brasil. Nesse dia, ela conta ter virado a noite no trabalho fazendo o almoço do dia seguinte para que nada atrapalhasse a hora de ver o Papa. Acabou tudo cedo, mas no repórter da manhã já sabia que não seria fácil chegar perto dele. Foi então para a rua e o mais perto que ficou foi em frente ao Hotel Sheraton, uns dois quilômetros da entrada do morro, de onde pôde ver o carro de João Paulo II e acenar para ele. Ali decidira morar na favela do Papa. Mas guardou consigo esse desejo durante dois anos, até que aparecesse uma oportunidade para se mudar. Para nós, não era uma mudança fácil, pois fizemos no meio do ano, apesar de nos trazer para mais perto do meu pai e poder estar novamente com minha mãe todo dia. Demos adeus à rotina na roça, com meus avós e meus primos, que não preciso dizer, era muito prazerosa. Toda mudança é difícil, precisa de adaptação, coragem, força e a certeza de que a escolha é acertada. No caso da vinda para o Vidigal, cada vez mais percebo ter sido a escolha certa. 88


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Cheguei ao Vidigal havia acabado de fazer 8 anos e a vida começava a se desvendar sob meus olhos. As primeiras descobertas, os primeiros amores. Iniciava-se minha despedida da infância e minha iniciação à adolescência. O Vidigal vivia tempos menos violentos, e era comum, em noites quentes, as mães colocarem suas cadeiras de praia na calçada para assistir ao nosso pique-esconde na rua. O bairro, que ainda não tinha endereço próprio, era pelo correio denominado Vidigal-Leblon. Era dividido em ruas, áreas e galerias. O lado direito da subida da rua principal que corta o morro era urbanizado e chamado de bairro do Vidigal. Já a parte esquerda da rua principal era localizada a favela. Isso também de esquerda e direita só ia até uma determinada altura, depois da esquina acima do Águia Futebol Clube, virava tudo favela. Claro que ninguém que morava a direita da principal se considerava favelado e essa era a divisão territorial mais clara nesse espaço. Isso era difícil de entender. Assim que cheguei foram tempos de introspecção. Não tinha amigos, não saía à rua, brincava apenas com minha irmã em casa. Era mês de férias e ano de Copa. Seu Antônio, pipoqueiro, senhorio do prédio para onde nos mudamos, já era antigo conhecido da mãe, porque seu ponto de pipoca era na pracinha da Aperana, rua que ela trabalhava desde sempre. Ele havia nos emprestado uma antiga, e já bem quebrada, antena espinha de peixe para podermos assistir aos jogos. A imagem ruim não nos impediu de ver a derrota do Brasil e depois do jogo, minha mãe, que tinha chegado cedo para assistir em casa, nos chamou para ir à rua, que estava toda enfeitada, primeira coisa a me chamar atenção no dia em que nos mudamos. Mas ao atravessar o portão não tinha sobrado um enfeite sequer. Os meninos faziam uma grande fogueira e derretiam plásticos. O que fez minha mãe descer de volta com a gente para casa.


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A casa agora era pequena, tinha apenas um quarto e uma janela, que ficava no mesmo cômodo. Tinha saudade de sentar à noite com a Martha na janela do nosso quarto da Casa Rosa, em Maricá. O único quarto agora era ocupado por minha mãe e David, meu padrasto. Na sala haviam colocado um biombo a fim de nos dar um pouco de privacidade, mas, como não havia muita ventilação por depender da janela do quarto, não deu certo. Logo ficamos cheias de alergia e o biombo foi retirado. Também por conta do espaço, muitos brinquedos haviam sido dados, inclusive as bonecas de parede e a bruxa de que tanto gostava. Foi um mês e meio sem sair e só brincando com a Martha. Dona Lídea, a senhoria, ficava atenta, pois se ouvisse muito desentendimento e gritaria vinda da nossa casa viria intervir. Ela o fazia pela área de serviços, que tinha um andar no meio, onde por conta dessa comunicação fiquei conhecendo Gago (Emerson) e Willian, meus primeiros amigos no Vidigal. Eles moravam no andar de cima com os pais. A volta às aulas nos ajudou a formar nossa primeira turma de amigos. A escola é sempre um desafio. Em meu primeiro dia de aula, cursava a segunda série, a professora me colocou ao lado de uma menina chamada Jaciara. Ficamos amigas na mesma hora e assim permanecemos até que sua família voltou para o Ceará, e eu não tive mais notícias dela. Na hora do recreio, ainda tímida, via o jogo de bola e as crianças correndo de um lado ao outro do pátio. E eu ali no cantinho. Jaciara me incentivou a brincar com um grupo que, de cima da pedra, refletia a claridade do sol com pedaços de espelhos. Não me recordo de onde saiu meu pedaço, que mais que depressa mirei para o pátio. Sem querer ofusquei os olhos de Lucinha, uma menina de no máximo 10 anos, mas já temida na escola. Ela veio em minha direção, me ameaçou, e para a minha sorte o sinal tocou, deixando


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a promessa: “Você vai ver na hora da saída.” Voltamos para a sala. Jaciara sentou-se ao meu lado e limitou-se a dizer: “Não vai acontecer nada.” Na hora da saída as pernas nem queriam se mover. Atravessei os portões e ela estava lá. Na minha cabeça já pensava qual seria a desculpa que arrumaria para minha mãe que não deveria saber nunca que eu havia brigado. Ela partiu para cima de mim, mas fui salva por uma xará, a Luciana Soares, que era bem grande, e disse a Lucinha que ela não iria me bater e a ameaçou. Lucinha recuou e eu subi o morro contente com minhas novas amigas. Em casa, quando minha mãe chegou, nada falei sobre isso, nem mesmo com a minha irmã. Foram dois anos nessa rua. Nela moramos em duas casas. No ano seguinte havia vagado uma casa que possuía um pequeno quintal e uma varanda, e fomos para lá. Ainda era só um quarto, mas o fato de ter mais de uma janela, e ter um quintal e uma varanda, já ajudava muito nossa convivência. Minha mãe saía muito cedo e chegava tarde. Martha, desde que nos mudamos para o Vidigal, era responsável por mim durante o dia. Estudava no mesmo colégio que eu, no quarto turno, de 17h às 22h30. Minha mãe não havia gostado nada disso, pois eu ficava sozinha nesse horário, mas a promessa da diretora era que no ano seguinte a escola teria apenas dois turnos, como todas as outras. Durante o horário de escola da Martha, eu vivia os momentos mais difíceis. Minha mãe, algumas vezes, chegava até mais tarde que a Martha. Eram os dias que depois de trabalhar na casa da Suely, fazia jantares em outras casas ou alguma faxina para completar o orçamento, que ficou ainda mais apertado após a mudança para o Rio. Sem dúvida alguma, a vida em Maricá era bem mais barata. Sozinha, eu ouvia rádio para passar o tempo, já


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que a televisão continuava pegando muito mal. A memória musical mais forte que tenho dessa época é “Pintura íntima”, do Kid Abelha, que quase sempre era a última música a ser tocada antes da programação ser interrompida pela “Voz do Brasil”. Nessa hora eu me debruçava na janela e esperava que minha família retornasse. O aniversário de 9 anos foi a primeira vez que fiquei sem festa, a casa era muito pequena. Mas para compensar ganhei uma bicicleta Caloi, que não era nova, mas era ótima, e não muito alta do jeito que sonhava, com o guidom como um chifre de cabra. A bicicleta me ajudou também a fazer mais amigos. Nossa rua tinha paralelepípedos até um pouco depois da minha casa, e depois era barro. Costumávamos fazer uma rampa para concursos de salto. Muitos deles justificam as marcas que tenho nas pernas. As duas casas que moramos nesta rua ficavam no último andar dos prédios que eram construídos descendo os terrenos, portanto para andar de bicicleta era preciso subir muitos degraus com ela nos braços. Como ter uma bicicleta era bem mais difícil do que hoje em dia, sempre tinha amigos que ajudavam, interessados em algumas voltas. No ano seguinte, já bem mais enturmada e numa casa com quintal, minha mãe preparou uma grande festa de 10 anos. Ganhei de presente o LP “Thriller”, do Michael Jackson, do meu padrasto, que tinha guardado segredo até a hora da festa. Depois que abri o presente não tocou outra coisa. Fazíamos roda e dançávamos. Estava fazendo dois anos que eu morava no Vidigal e minha vinda tinha sido marcada por muito choro, não queria abandonar a vida que levava em Maricá. Meu colégio, a tia Carmem, meus primos, o banho de rio. Mas agora, enquanto dançava o último grito da moda, vestia calça jeans e jaqueta no aniversário e possuía



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muitos amigos no meu bairro, não sentia saudades. Maricá era agora o lugar que gostava de passar os fins de semana, e onde gostava de contar as novidades da cidade aos primos da roça. Minha mãe viu uma chance de comprarmos um barraco no 314, e logo nos mudamos do bairro Vidigal para a favela Vidigal. O 314, na época, era considerado o lugar mais pobre do Vidigal. Próximo a nossa nova casa havia um beco chamado “Beco da fome”, só para se ter ideia de como era o lugar. No 314 também estava a boca de fumo. Eu não via diferença, tinha amigos da escola morando em toda parte do morro e o 314 ainda tinha a vantagem de ser mais perto do ponto de ônibus. Calculava que de lá gastaria 15 minutos da praia até em casa. Isso me ajudaria muito, estava com 11 anos e tudo que eu sonhava nesse momento era ganhar o direito de ir à praia sozinha. Ela ficava ali. Pertinho. Não dava para esperar minha mãe, que passava o fim de semana trabalhando em casa, ou a minha irmã, que vivia o auge da adolescência e queria ficar só, terem vontade de ir à praia, para que eu fosse junto. Não podia mais viver assim. E nisso eu tinha razão, assim que mudei para o 314, comecei a ir à praia sozinha. Porque da varanda da nova casa, minha mãe podia ver eu sair do morro até desaparecer na av. Niemeyer, e, com um bom binóculo, se eu passasse direto da entrada da praia, ela também saberia e eu teria que explicar o que fui fazer no Leblon. Quando minha mãe anunciou a mudança para as vizinhas, todas reprovaram e disseram que ela era louca de se mudar com duas filhas para o 314. Minha mãe foi rápida no gatilho: “Elas precisam agora é de uma casa própria!” A vida lá não era fácil, a começar pela mudança, que teve de ser carregada na mão, porque o carro não conseguia chegar perto da casa, que era ainda menor


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do que as duas anteriores. Tinha uma pequena varanda e uma vista paradisíaca. Seu telhado era de telha de madeira forrada com folhas finas de zinco, quase um laminado. Faziam um barulho muito forte quando chovia, parecia que a casa ia cair, era ensurdecedor; para ir ao banheiro era preciso descer uma escada por uma porta bem pequena e estreita. A cama que eu e Martha estávamos acostumadas a dormir teve de ser serrada para que coubesse no quarto, que, além dessa cama, tinha uma pequena sapateira que servia de penteadeira também e um armário de duas portas. Agora eu dormia no chão, mas meus pés ficavam embaixo da cama da Martha. Mas tínhamos um quarto de novo, e isso eu adorava. Embora ele não tivesse portas, minha mãe instalou cortinas grossas nos dois quartos, e eu me sentia bem melhor. A obra logo começou e a primeira etapa era fazer a fundação da casa e a laje. Não é tarefa humana construir uma casa em lugar de difícil acesso, e o 314 é um desses, muitos becos e muitas escadas. Minha mãe logo percebeu o porquê de ter comprado barato o barraco. Pagava apenas pela sua linda vista, porque nos arredores a situação era ruim, ainda mais quando compáravamos com a nossa antiga casa. Para fazer a obra era preciso comprar o material, além de pagar para alguém carregar da rua principal até a casa, e a nossa era bastante distante. Era preciso pagar pedreiro e ajudantes, porque com aquela quantidade de escadas era impossível um homem sozinho dar conta. Com a mudança vieram os novos vizinhos, novos amigos, e os amigos da rua foram se afastando. Depois que mudei nunca mais fora convidada por nenhum deles para um aniversário, nem sequer um deles se lembrou do meu a partir daquele ano.


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Estudei no Vidigal, em uma escola do município até a oitava série nos anos 1986, 1987, 1988 e 1989 — que foram uma catástrofe para o ensino público. Os professores ganhavam mal e, com a abertura política e a queda definitiva da ditadura, os militares não injetavam mais dinheiro no ensino e as coisas foram ficando cada vez mais complicadas. A escola que estudava, por ter o nome de um patrono da Marinha, sempre recebera reformas, visitas da Marinha, mas não me lembro de esses fatos terem acontecido nesses anos. Foram anos de greve. Por ser na favela e com o aumento da violência, a escola foi ficando em último lugar na lista de onde um professor queria dar aulas. Não tive nenhum contato com a química, tampouco com a física ou com a filosofia. Ao rever meu histórico, vejo que em alguns desses anos não estudei nem mesmo história e geografia. Mas não podiam me reprovar por causa da greve, então, fui para o primeiro ano do segundo grau. O 314 ganhou cimento sobre o barro, o que facilitava a chegada e a saída de casa, e pude assim abandonar o hábito de descer de chinelos, com meus sapatos de sair dentro de um saco, para que não se enchessem de lama. Em compensação, a boca de fumo ganhava os fogos de artifícios como principal sistema de aviso, e a favela nunca mais dormiria tranquila. Nos primeiros momentos, o corpo estremecia na cama, mas logo a gente vai se acostumando. Aos poucos, cessaram os fogos das comemorações, e, cada vez que se ouvia um rojão na favela, todos já sabíamos que a polícia estava subindo o morro. A obra lá em casa continuava, já havia passado várias etapas. Primeiro foi a laje: eu, Martha e minha mãe carregamos mais de 2000 lajotas. Enquanto meu padrasto carregava com um tio meu — que veio de Maricá para essa finalidade — pedra, cimento, areia e todas as vigas


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da laje pré-moldada que foi colocada na casa. Essa fase mais intensa da obra, até que ela ganhasse a estrutura que tem hoje, foi bem difícil. Todo dinheiro da família era colocado na casa, e no início nem eu nem minha irmã trabalhávamos, apenas estudávamos. Não tínhamos dinheiro para nada. Nunca tinha ouvido tanto não, nunca tinha ficado tão presa em casa por não ter dinheiro para sair, e nunca tínhamos comido tão mal. Perdemos o quarto de novo, mas a promessa de passarmos para um quarto só nosso, com um banheiro só nosso, seria cumprida em pouco tempo. Ficamos um tempo sem porta. Construíamos uma casa sobre a outra e foi preciso quebrar a parede de dentro, mas não havia dinheiro para colocar a porta da sala; o vão foi tapado com uma folha de madeirite. Ficamos assim bastante tempo, e vivemos também um tempo sem janelas. Eu tinha pena de minha mãe levantar e vir retirar a madeira, mas eu queria ir às festas. Era mais forte que eu. Minha irmã queria mais ainda. Às vezes não poupamos nossos pais por acharmos que só nós estávamos sofrendo. Ao mesmo tempo, via ao meu redor problema muito maior. Tinha uma amiga com nove irmãos. O pai fazia bicos de marceneiro e a mãe era faxineira diarista, e a vi passar muita necessidade calada. Para convidá-la para um programa, tinha de ter grana para mim e para ela. Muitas vezes fizemos vaquinha para que não ficasse de fora do amigo-oculto da escola. Os mais velhos dessa família começaram a trabalhar muito cedo: 12, 14 anos. Era a única chance de sobrevivência deles. Eu tinha um pai e uma mãe que estavam tentando progredir. Mas eu sentia falta de muita coisa. Coisa que eles nem imaginam. Ia crescendo e me alimentava da certeza de que as coisas iam melhorar. Nunca soube exatamente de onde vinha essa certeza de que tudo estava


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melhorando. E ia levando assim. A adolescência é sempre um turbilhão de emoções, e ocupava minha cabeça com muitas coisas, como a primeira paixão, por exemplo. Se meu peito finalmente ia crescer, se ia ou não me tornar mocinha. E me trancava. Na minha casa, minha mãe sempre foi de carinho e de bronca. Mas nunca foi de muita conversa. Teve uma criação muito rigorosa, quase ignorante, dos meus avós. Eu observava a vida e aprendia tudo. Caladinha. A principal diversão das favelas eram os bailes. Não posso dizer que fui a muitos, principalmente na adolescência quando você tem de escolher bem o programa que vai fazer, porque não é em todo fim de semana que sua mãe está disposta a deixá-la sair. Minha preferência eram as festas de rock, que tinha muita força naquela década e se espalhava com bandas cover do “Legião Urbana”, “Paralamas do Sucesso”. Havia uma banda Chamada “Via Brasil”, que muitas noites lotou o Águia Futebol Clube. Único salão do Vidigal, hoje sede da Igreja Universal do Reino de Deus. Mas me recordo dos bailes de mais sucesso no Vidigal, os que ninguém podia faltar e, claro, eu estava sempre presente. Eram o do shortinho, o da sainha, o da calcinha. Estou falando do fim dos anos 1980 até meados de 1990. As meninas se candidatavam na hora para dançar. Eu tinha uma vizinha que era do tipo rainha do baile, já ganhara muito desses prêmios. Ela tinha shorts capazes de levar o baile inteiro à loucura. Uma vez ela confeccionou para mim e para Alessandra, minha comadre, luvas até os cotovelos para compor nossas fantasias para uma festa. O Vidigal sempre foi o lugar onde as festas a fantasia davam certo. Assim como os concursos. Em 1990, aconteceu um desfile no Águia Futebol Clube, que se dividiu em duas etapas. Inscrevi-me, claro! Claro também que


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minha mãe não me deixou participar. Mas o cara, o que nem sequer consigo lembrar o nome, me disse que se interessava muito em trabalhar comigo como modelo. Disse para minha mãe que ele iria me cadastrar na agência, mesmo sem eu participar do concurso. Ela disse: “Pois bem, vamos ver.” Com 13 anos já tinha a altura que tenho hoje, então era uma loucura. Fui fotografada muitas vezes na praia, e adorava. Mas uma vez um gringo, que se dizia fotógrafo da Moda Brazil, me deu seu endereço e foi enfático ao dizer: “Por favor, traga a sua família.” Minha mãe, a contragosto do meu padrasto, desceu a escadaria do 14 ao cair da noite, assim que chegou do trabalho e foi até o Costa Azul, o apart-hotel que fica no pé do Morro do Vidigal. Subimos. Ele foi supereducado. Fez três fotos minhas de rosto com uma Polaroid e conversou um pouco com a minha mãe. — Eu não tenho nenhuma condição de ir com ela pra nenhum lugar fora daqui, não quero nem ouvir esse papo de tutor. Eu vou cuidar das minhas filhas.

Despedimo-nos. E minha mãe me fez prometer que não deixaria mais ninguém ficar me fotografando. Vai saber. O que teria sido? Será que a vida me reservava esse destino? Sonhei muitas vezes com isso e internamente questionei a decisão da minha mãe. Acho que nunca tive mesmo vocação para modelo. Se tivesse tentado, eles teriam serrado meu quadril. Já no caso do concurso “Garota Vidigal”, entendi tudo. Tinham passado alguns anos, e estava um pouquinho mais esperta. O concurso aconteceu, as meninas desfilaram. O Águia lotado, a Virgínia e a Núbia fizeram tudo direitinho. Estavam um escândalo. Foram primeiro e segundo lugares. Mas o prêmio deveria ser pego, na segunda-feira, na


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casa do figura. Fomos acompanhadas de todas as mães, inclusive eu, que não havia participado do desfile, porque ele me queria no seu catálogo. Fomos recebidas pelo cara, pulando em sua minipiscina, em uma cobertura com cara de sauna. Em seu discurso, as mães perceberam que ele não oferecia cursos de modelo. Na verdade, procurava garotas de programas. Despedimo-nos e levamos uma bronca coletiva das mães e fomos aconselhadas: se achávamos mesmo que íamos ser modelos então era bom procurar um curso sério e barato, é claro! Crescer em um lugar onde as pessoas a conhecem desde pequena é engraçado. Aqui isso sempre gerou muita fofoca, porque é impossível não comentar que a filha da D. Maria começou a namorar e estava aos beijos no beco; que a filha do seu Sebastião é muito esquisita, não tem namorado; que a filha do seu Celso está grávida; que a filha da D. Lúcia está andando com uma galerinha esquisita, está usando droga. No Vidigal, até hoje, todo mundo sabe da vida de todo mundo. Basta você escolher se vai viver a sua vida ou a vida dos outros. Eu escolhi desde cedo viver a minha. Meus familiares haviam se tornado evangélicos da Igreja Assembleia de Deus. Sou do tipo que respeito às religiões e espero que cada qual possa exercer sua espiritualidade da sua forma, mas preferia quando a minha família dava bailes na sala de vermelhão encerado e jogava cartas à noite inteira. Sem dúvida, isso nos afastou um pouco. Não o amor, mas os ideais de vida. Mas ainda fomos para a casa da minha vó em alguns Natais. Até que um dia, eu e minha irmã cobramos da minha mãe uma ceia em casa, mas ela queria que fosse na casa da minha vó, como todo ano. Eu não queria nem pensar em chegar lá e todos conversarem, assistirem o culto e irem dormir. Era Natal, era para festejar. Eu e a Martha não queríamos estar longe do



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Vidigal, por ser o lugar onde tudo acontecia. Ela foi, nós ficamos. Fizemos a ceia com strogonoff feito de picadinho. Estávamos tristes. Depois de meia-noite, me encontrei com meus amigos mais perdidos e fizemos travessuras. Minha irmã, não tenho ideia do que fez. Mas voltamos mais cedo que o de costume, e o melhor do Natal foi ver minha mãe voltar mais cedo. Os Natais passaram a ser em nossa casa. No terceiro ano do segundo grau, enfim, consegui entender um pouco de física, de química e até mesmo decorei a tabela periódica. Claro que nada foi tão fácil. Ainda no André Mourois, repetira mais uma vez o primeiro ano, então comecei a estudar à tarde e passei. Fiquei em recuperação em química no segundo ano, mas passei. E estava agora prestes a terminar o segundo grau. O fantasma da minha geração. Em outubro, tinha notas para passar, não faltava aulas, exceto o último tempo de sexta-feira, que vinha logo após o recreio, para me encontrar com amigos de Copacabana. Por conta do contato com minha amiga Márcia, que continuou estudando em Copacabana, ainda conservava esse grupo de amigos. Trabalhava já no meu segundo emprego. O primeiro foi uma passagem relâmpago, não me adaptei, durou um mês, mas tive um primeiro salário perto do meu aniversário, que me rendeu um vestido sonhado. Fiz estágio de uma semana em uma creche, minha irmã trabalhava em uma creche também. Percebeu que eu havia gostado do estágio, me viu empolgada e me indicou na primeira oportunidade que surgiu no trabalho dela, e logo comecei a trabalhar. Em casa, estávamos no sexto ano de obra. Era muito tempo! Tinha escadas para todo lado. Mas minha mãe tinha adoecido e até fazer a operação levou algum tempo. Nunca a tinha visto tão fragilizada. Tive muito medo de perdê-la.


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Já estava trabalhando há alguns meses, tinha minhas contas, minha irmã as dela, e assim minha mãe ficava um pouco mais aliviada e recuperava-se da operação. Prometeu-nos que não mais carregaria cimento ou pedra para construir o barraco. Agora a obra ia acontecer da maneira que desse. Nunca fui de ter vergonha de muita coisa, mas, na adolescência, ser vista por um menino, não precisava nem estar a fim dele, carregando tijolos com as canelas riscadas pela poeira, era muita humilhação. Claro que podiam acontecer coisas muito mais graves que isso. Minha mãe, por exemplo, teve de tirar um órgão, por ter carregado tanto peso no sonho de construir uma casa. No trabalho, comecei como auxiliar de recreação e trabalhava de 9h às 18h. Fazia um lanche dentro do ônibus no trajeto Botafogo–Jockey, onde estudava às 18h50. No meio do ano, com a saída de algumas funcionárias, passei a ser recreadora. Passei a entrar às 7h, mas às 14h estava em casa, fazia um curso de datilografia, e mantinha uma prática de estudo porque pretendia fazer vestibular ainda naquele ano. No Vidigal, meus amigos também caminhavam para a vida adulta. Escolhi entrar para o teatro. Minha mãe passou a ser alvo de fofocas e de pessoas querendo lhe alertar contra esse grupo que ensinava aos jovens que eles podiam ser livres por meio da sua arte. No morro é difícil escapar da vida errada, porque nem sempre ela parece errada para você. Minha melhor amiga era aluna de judô, aula ministrada pelo chefe do tráfico. Quando assisti uma aula com ela, vi um cara muito educado, brincalhão e que ensinava, além de técnicas de defesa, cuidados com a alimentação e boas maneiras. Orgulhava-se quando um aluno seu era elogiado por ter cedido o lugar no ônibus para alguma senhora. Fernando, ex-namorado da minha irmã — que criou uma relação maternal com



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minha mãe, mesmo depois de virar ex, e continuou próximo dela —, também fora aluno desse professor de judô e gostava tanto desse cara, que ficou deprimido quando ele fugiu em um dia desses de invasão, antes ainda da força das facções e no tempo dos calibres 38. E nem faz tanto tempo assim. Levaram-se meses falando na morte do Pinduca. Um tempo depois surgiram boatos de que ele estaria bem. Que virou crente, que mudou para a Região dos Lagos. Minha mãe sempre pedia que Fernando não fosse vê-lo. Fernando jurou nunca ter ido procurá-lo. O Vidigal teve outro dono, que cavou um buraco imenso no topo do morro e que mais tarde foi terminado e inaugurado como vila olímpica pela Prefeitura. São esses os nomes que muitas vezes viram referência para a juventude na favela. Mas no Vidigal nascia por meio do Nós do Morro e da cabeça do Guti Fraga, pessoas dispostas a lutar para formar novas referências. Referências que trouxessem mudanças pela arte e pela cultura, mostrando uma nova maneira de pensar. Minha casa já completava uns dez anos de obras. Minha irmã, depois de morar um tempo com meu pai na Rocinha, morava com a gente de novo. Mas, trabalhando muito, vinha pouco em casa e se preparava para casar. Eu e minha mãe estávamos em paz. Eu tinha um namorado de quem ela gostava, e estava tudo certo. Embora ela achasse que eu gastava energia demais nos ensaios e compromissos com o teatro, que não davam em nada. Com o final do colégio, passei a respirar a essência do grupo e o Vidigal passou a ser, para mim, o teatro Nós do Morro. Na minha vida as coisas mudavam velozmente, ainda mais com 19 anos. Você quer se descobrir, se afirmar, formar suas opiniões que até então você jurava serem imutáveis. Estava apaixonada, queria sair de casa, mas a minha mãe, que havia acabado de se separar de seu segundo marido e temia ficar sozinha, me convenceu de


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que a casa era grande, e que eu podia ficar com o meu namorado lá por enquanto, até a gente ir se acertando. Eu não pensei duas vezes. Afinal de contas, ele não trabalhava, queria ser baterista, e meu salário de recreadora não sustentava nós dois. E ele veio morar com a gente. Minha mãe se dava bem com ele, e, com nove meses de namoro, todos nos incentivavam a casar. Com alguma insistência, gostei da história. Achei também que se casasse o ciúme dele diminuiria. Casei. Foi um turbilhão de coisas. Sempre me lembro de setembro de 2005 como o mês em que tudo mudou. Eu mudei. O casamento estava marcado para o dia 30. Assim foi. Mas, depois de casar e partir em lua de mel, o meu recém-marido achava que o melhor para nós dois era que eu abandonasse o teatro. Não conseguia compreender. Sabia dos seus ciúmes, mas isso? Tivemos alguns dias tranquilos de passeios, mas na quinta-feira quando o lembrei que deveria estar de volta ao Rio no sábado para a apresentação e que seria bom voltar na sexta para dar tempo de descansar, pude ver como podia ser agressivo o cara com quem havia acabado de me casar. Para irmos embora, prometi que faria apenas mais aquela semana, mas que na próxima já teria saído do teatro e Guti teria tempo de colocar outra pessoa em meu lugar. De verdade nunca pensei em fazer isso. Mas precisava dar um jeito na loucura que havia cometido. Só não sabia como. Passaram-se dois meses. Estávamos em cartaz de sexta a domingo, e a cada semana foi ficando mais difícil sair de casa. Um dia ele me prendeu e em um outro atirou em mim com uma espingarda de chumbinho. Acertou meu braço de raspão. Precisava me livrar desse cara, que morava na minha casa, estava casado comigo, e a quem minha mãe ainda chamava de filho.


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Tive uma crise no trabalho, na segunda de manhã, não conseguia parar de chorar e tive de explicar as crianças que a tia Lu estava muito, muito triste. Naquele dia fui direto para o trabalho da minha mãe e quando cheguei me deparei com ele sentado contando para ela que eu queria terminar o casamento sem motivo algum. A partir daí, a briga começou, uma ameaça atrás da outra, até que um amigo conseguiu que ele saísse lá de casa. Estava abalada, mas o teatro representava algo tão forte para mim que eu tinha nele a esperança de que vale a pena lutar pelo que se acredita. Não me via casada com alguém que não acreditava no meu sonho. Isso aos 20 anos é gritante e muito latente. Os sonhos são as armas da juventude. E sonhar que o grupo de teatro Nós do Morro ia dar certo era a única coisa que eu tinha naquele momento. Continuei meu trabalho no grupo. Estudava, multiplicava meus conhecimentos. Conhecia lugares novos. Era a responsável por levar crianças do Vidigal para assistir pela primeira vez uma peça. Ia com elas ao CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), ao Centro Cultural dos Correios e à Biblioteca Nacional. Não queria que eles levassem tanto tempo quanto eu para se apropriar desses espaços que são nossos por direito. Nessa época, também trabalhei em uma produtora e dizer que morava no Vidigal ainda causava estranheza, ainda mais na área de atuação da produtora: publicidade. Mas não posso dizer que já cheguei a sofrer algum tipo de discriminação. Talvez uma assim de leve, velada, que fiz questão de esquecer. Mas morar no morro é isso. Como o Estado não consegue te dar segurança, você estará sempre a mercê do momento. Durante todo esse tempo, vi muitas vezes bandidos se matarem para controlar o morro, que não quer dizer nada além de controlar a venda de drogas. Mas como serão as leis nesse espaço que está aquém das leis do Estado?


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Depois de seis anos estudando cinema e um ano e meio montando meu filme poderia enfim estreá-lo no Cine Odeon. Aquela noite só não foi melhor porque o Vidigal sofria uma incursão policial e eu havia alugado um ônibus para levar várias pessoas para o cinema, que foram impedidas de sair. Helicópteros sobrevoavam o Vidigal tão baixo, a ponto de me surpreender com um cara pendurado na porta de um helicóptero na altura da minha varanda ao sair do banho. Era o início da guerra, mas ainda não sabíamos. Ao voltarmos para casa, com o morro mais calmo, comemorei a noite tranquilamente. Mas a guerra se aproximava e o Vidigal tornou-se o lugar mais terrível para se morar. Nunca pensei que fosse passar pelo que passamos aqui. Na noite que antecedia minha viagem ao Festival de Brasília, onde o filme faria a exibição que lhe daria seu principal prêmio, na volta para casa do trabalho, avistei o Vidigal às escuras. Os carros voltavam. O ônibus parou na altura do hotel Sheraton e ficamos ali. Seguimos a pé e nos juntamos a muitas pessoas que retornavam do trabalho e não conseguiam chegar a suas casas. Tive medo do Vidigal, parada no ponto, muito vulnerável. Um homem foi atingido por um tiro na perna na subida do morro, pessoas separadas pela guerra e um lugar que nesse momento tinha sua maioria de mães no pé do morro e suas crianças ouvindo tiros, sozinhas em casa. Não há ninguém que passe por isso sem sofrer transformações. Esse é o único medo que tenho por ser mãe. Ser impossibilitada de estar com meu filho em um momento de conflito. Tenho pesadelos com isso. Em algum momento, quando não dava mais para conter a multidão que se dizia disposta a subir, o comandante do Bope ordenou que os policiais descessem. Nós subimos quando vimos os primeiros batalhões apontarem


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lá embaixo. Com medo, mas subimos. Eu segurei na mão do Gustavo, meu marido, e seguramos todos nas mãos de Deus. O Bope descia a ladeira escura contra a multidão que subia. Rezei pra não morrer. Foram mais de seis horas de tiroteio. Não viram que jamais poderiam ter demorado tanto tempo, que causaram danos irreparáveis. Ao chegar em casa, comemorava por estar viva. Isso é a guerra, você começa a celebrar porque está vivo. Com fome, com sede, sem liberdade, mas vivo. Quando descia para trabalhar ou para tentar esquecer que estava em território de guerra, ia para o Leblon, o bairro vizinho, e era como se nada tivesse acontecendo. Era uma vida normal. Não sabia se dava para ouvir os tiros ou se eram só os meus ouvidos que fora do campo de batalha continuava a ouvi-los. Foi um ano muito difícil, mas “Burro sem rabo”, contrariando a tudo, estreou no Planetário, depois foi para o Sesc-SP e o Sesi, também de São Paulo. A arte da favela ia bem, mas o restante estava mal. O Vidigal voltou a figurar nas manchetes mais sangrentas dos jornais. A guerra continuava, com pequenos momentos de recesso. Os conflitos aconteciam a qualquer horário. De noite era quase impossível sair de casa. As aulas estavam suspensas. Pela manhã, muitas vezes iniciávamos o dia e ele era interrompido rapidamente por tiros, não havia lugar seguro. Chegamos a ficar por muitas vezes com a favela dividida. O Vidigal se calou. Mudou. Nunca se tinha tido confrontos como aqueles, a resistência foi vencida. Ficou mais difícil andar nas ruas, fazer show a céu aberto e sonhar que por meio do acesso à arte e à cultura podemos construir um mundo igualitário. O Vidigal jamais seria o mesmo. Nós também não. Perdemos a inocência. A guerra permaneceria por uns dois anos, começou no feriado da Semana Santa em 2004 e foi até 2006. O Vidigal ficou sob o comando de outra facção denominada ADA. O


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que isso difere para mim? Não sei. Esperava que nada. Mas sabia que se a Rocinha já era ADA — e nós estávamos coladinhos nela — o melhor era que não fôssemos inimigos. Não em territórios tão próximos. Custódio, uma figura folclórica do Vidigal, apesar da bebedeira, tinha a visão mais lúcida do Vidigal que conheci: “A Rocinha deu um tiro, Vidigal estremeceu.” E saía gritando essa frase pelos becos. Mesmo no fim da guerra, com uns três meses sem confrontos, os burburinhos sempre surgiam e a ameaça de retomada continuava. E o nosso medo também. A vida no Vidigal demorou a voltar ao seu curso normal. O medo está até hoje. Vi o Vidigal crescer nesses anos e as possibilidades aumentarem para muitos, mas dentro do meu próprio bairro ainda há bastante a ser feito. Ele sofre com a falta de áreas de lazer, de condições dignas de trabalho, de boa educação nas escolas. Mesmo sendo uma favela da Zona Sul, ainda abriga muita gente em condições precárias de vida. Ainda mata meninos no tráfico, ainda engravida suas adolescentes sem que tenham a chance de mudar seus destinos. Seus jovens abandonam os estudos cedo e vão trabalhar para contribuir financeiramente em casa. Mazelas que carregamos em comunidades carentes há várias gerações. Mas quando ando por suas ruas, becos e escadarias, ele é o bairro que me viu crescer, onde comemorei meus aniversários, onde recebi meus amigos, onde moro com minha família. Onde vou a missa de domingo, onde sento no boteco para beber. E é também o lugar pelo qual vibro a cada vez que abre uma pizzaria ou uma nova lojinha, que significa o progresso do bairro. Sonho com um Vidigal com mais de uma rua para que o trânsito funcione melhor, que as pessoas possam visitar, assim como você sai de sua cidade para conhecer Ipanema. Geograficamente o bairro tem potencial para isso.


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Já pensei muitas vezes em me mudar daqui. Mas isso me causaria muita mão de obra e confesso que fiquei viciada na vista. Para morar tem de ter vista. Um horizonte. E não se encontra muitos horizontes baratos como esse aqui. Então, por enquanto, é aqui, nesse bairro, que minha vida continua e vou escrevendo a minha história.


Cap.07

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Tinha então 13 anos e seria um ano inesquecível. Não era uma má aluna, mas sempre gostei de falar um pouco demais da conta, o que não me ajudava muito. Mas em simpatia sempre fui nota dez. Minha mãe sempre disse: “Luciana, desde bebê, sempre foi com a cara de todo mundo!” Minha irmã, que não era uma adolescente fácil, estava com 17 e muita discordância com a minha mãe. Uma delas passou a ser a principal: o teatro. Na época, minha mãe achava que o teatro não tinha nada a ver com minha irmã e que ela não devia se meter nisso. Afirmava que sua vontade de fazer parte da trupe de atores vinha do fato de seu namorado ser um dos componentes. Em algumas famílias, a arte ainda era vista de forma deturpada, os artistas eram confundidos com libertinos e drogados. Mas no Vidigal, por meio de um grupo teatral, e da força, da crença e da perseverança de Guti Fraga e seus amigos Fred Pinheiro e Fernando Melo da Costa, se dava o início de uma revolução. Dentro de uma favela carioca, com moradores do próprio bairro. Eram os precursores do Nós do Morro. O Guti havia montado um espetáculo que se chamava “Encontros”, em que estavam dois dos meus amigos: Rômulo e Barton. Uma tarde de 1987, ao subir da praia com 116


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a minha mãe, Guti e uma turma de jovens faziam a divulgação da peça no ponto de ônibus. Fui assistir naquele dia mesmo. Era um domingo e a sessão acabava mais cedo. Minha mãe não foi, mas marcou a hora que deveria voltar para casa. Era a primeira vez que assistia a uma peça adulta. Lembrava de ter visto até então “Chapeuzinho vermelho” e “Pluft”, em montagens de fim de ano no colégio Notre Dame, onde a filha da patroa da minha mãe dava aulas. A montagem de “Pluft” me servira de inspiração, tempos mais tarde, para minha própria montagem em um fim de ano com os alunos do Nós. Embora fosse um teatro de escola e feita por professoras, a montagem era muito bem cuidada. Tinha um barco que parecia se mover. Essa cena ficou na minha cabeça por toda a vida. Sempre me lembro também da abertura do primeiro espetáculo do Nós do Morro, com seis ou sete meses de vida, em que as luzes se apagavam e em off a voz do Guti narrava um texto sobre se encontrar, a busca do eu. Vários atores vestidos de preto andavam pelo palco. Era muito emocionante. Depois disso a peça tomava um rumo muito coloquial e apresentava situações da adolescência e assuntos do cotidiano, e foi um grande sucesso. Se fosse contar por mim, por exemplo, assistia todo fim de semana. O teatro funcionava em um centro cultural de um padre austríaco, apelidado pela comunidade “padre alemão”, que tinha seu próprio nome: Centro Cultural Padre Leeb. Ele era casado com uma mulata chamada Joana, pelo menos é o que todo mundo dizia. Sabem como é comunidade. Vai ver os dois eram só amigos. O centro era um lugar legal, agradável, bom de estar. Aos poucos se encheu de atividades: ginástica, dança, capoeira. Mil coisas. Minha irmã passou a ir cada vez mais ao teatro, pois namorava um rapaz do elenco, que a partir da peça seguinte já contava com ela também. Na


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minha casa as brigas aumentaram. Eram os ensaios até tarde, as aulas na escola, que ela matava pela manhã. Mas quando minha mãe foi assistir “Os dois ou o inglês maquinista”, em que Martha fazia um papel e estava muito bem — era de fato talentosa —, lembro de vê-la muito orgulhosa. O que não durou muito, pois ela não via futuro ali. Já os jornais deram até crítica desta montagem tecendo elogios aos atores e, claro, à iniciativa de Guti. Martha chegou a fazer mais um espetáculo com o grupo, o que lhe custou ter de sair de casa. Esse se chamava “Biroska”, era o terceiro espetáculo do grupo, e eu continuava, agora já com 15 anos, como plateia, assistindo aos espetáculos, e poderia substituir a qualquer momento um dos atores. Nesse tempo, o grupo começava a receber crianças e adolescentes, que realizavam, além das peças, um programa de auditório no centro cultural, chamado “Show das cinco”, porque o público infantil crescia cada vez mais. O show tornou-se muito popular. Nesse mesmo ano de 1989, o Centro Cultural do Padre Leeb fecha as suas portas e o Nós do Morro fica sem sede. Eu, como plateia, perdi meu teatro de fim de semana. Passei a fazer outros programas e desliguei minha cabeça do teatro. Minha irmã, para felicidade da minha mãe, trocou de namorado e já não se interessava mais em ser atriz, o que até hoje penso que poderia ter sido uma carreira promissora. O grupo começava uma difícil peregrinação de dois anos e ficou sem lugar para as apresentações, foram tempos difíceis mesmo. Cheguei a pensar que estava extinto. Durante esse tempo (fiquei sabendo depois dessas histórias porque foram muito marcantes para todos que as viveram e me foram contadas assim que entrei no grupo) o primeiro lugar a lhes abrigar foi a Escola Djalma Maranhão, uma escola municipal que havia sido recém-inaugurada na avenida


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Niemeyer, em frente ao Vidigal. A escola só funcionava durante o dia e as aulas de teatro deveriam ser à noite, o horário que todos tinham disponibilidade. Mas, ao chegar para a aula, encontravam sempre atos de vandalismos, e a escola também servia de abrigo para moradores de rua. Tenho boa memória de como eram os tempos do Centro Cultural do Padre Leeb, a capela que havia sido transformada em teatro era aconchegante e todo o espaço era bem administrado e limpo. Nada disso tinham ali, e o Guti sempre conta, ao lembrar dessa época: “O ser humano é assim, vai se acostumando com as coisas, com tudo. Mas apesar de nos acostumarmos com tudo, há coisas na vida que não devemos nos acostumar. Porque a gente encontrava bosta na porta todo dia e teve dia que já nem tirávamos mais, pulávamos a bosta e assim começava o ensaio. Até um dia que não deu mais e nós fomos embora da Djalma Maranhão.” Pouco tempo depois, ouvi dizer que no pátio da Escola Municipal Almirante Tamandaré acontecia um novo programa de auditório destinado a toda a família e que se chamava “Show das sete”. Acontecia uma vez por mês. Demorei a aparecer, mas depois que fui a primeira vez, não faltava mais. O “Show das sete” acontecia todo sábado e o Nós do Morro tinha uma sala fechada no anexo da escola, por todos carinhosamente apelidado de Castelo de Greyscow. O show era muito divertido, tinham números preparados pelo grupo, que nessa época tinha aulas com Zezé Silva, hoje nossa diretora, pois ela havia se juntado ao Guti no momento da perda do espaço e fora fundamental na não desistência dele. No “Show das sete” os dois preparavam as cenas e nutriam o desejo de montar um novo espetáculo, que inauguraria o teatro do Vidigal. Ainda sem um lugar específico para ser construído, era apenas um sonho, uma ideia.


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Voltei a ser convidada para o “Show das sete” por um ex-namorado que vinha cantando em uma banda chamada “Papel de seda”, formada por integrantes do teatro. Agora o show era semanal e acabei passando por lá em um sábado. Fiquei muito tempo na rua esperando, porque o “Show das sete” começava às oito em ponto, já havia até virado slogan. Às vezes, o atraso podia ir até nove. Aquele foi um desses dias. Atrasou mais que o costume, mas valeu a pena. O show era muito bom, com muitas apresentações da comunidade, que comparecia em peso. Fazer o show semanal tomava muito o tempo de todos e os ensaios do novo espetáculo sofriam. Algumas pessoas também se sentiam insatisfeitas, por não estarem no elenco do espetáculo, que não comportava tantos atores como um show. Nessa época, o Guti já trabalhava com uma nova turma. Restavam poucos da época do Padre Leeb. Ao mesmo tempo, todo mundo ouvia falar desse fenômeno no pátio de uma escola e muitos artistas que ainda habitavam os prédios na subida do Vidigal, foram parceiros deste show. Televisões fizeram registros e produções de cinema se aproximavam do grupo. Saíram, para fazer filmes, os primeiros “meninos do Guti”. Fomos chamados assim durante muito tempo. E sempre tivemos orgulho disso. Ser chamado assim era sinônimo de que nesses se podia confiar, eram talentosos e disciplinados. Lucio Andrey, que já era na época um dos talentos do grupo, atuou em filmes como “Veja essa canção”, de Cacá Diegues, e programas de TV. Um dia, na festa de casamento do irmão da Marcia, uma amiga de escola e prima de Lucio, ele me contou um pouco sobre a dificuldade do grupo e o medo de fazer o “Show das sete”. É que nesses anos crescia na favela o poder do tráfico, e juntar pessoas em um local foi ficando muito arriscado. Também porque só tinham aquele espaço, e o pátio da


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escola não favorecia as cenas, por conta da péssima acústica: trabalhavam a mímica e as dublagens também por limitação de realização. Enquanto ouvia tudo aquilo, pensava que, mesmo com as dificuldades, era um trabalho muito legal. Contou também que muitos integrantes começavam a se desligar do grupo por não estarem inseridos no elenco da peça que eles ensaiavam sem data prevista para estrear, com encontros duas vezes por semana. Os outros dias eram dedicados ao “Show das sete”. Ele se interessou em falar comigo, porque a Marcia havia lhe contado que eu fazia um curso de teatro no Planetário da Gávea. Não tinha muito tempo que havia começado. O curso era aos sábados. Minha mãe achou a ideia de fazer teatro muito sem propósito, mas como o dinheiro era meu, então ela dizia: “Você está trabalhando e não pode atrapalhar seu ano na escola.” Foi a única coisa que pronunciou sobre a minha decisão de fazer esse curso, que tinha a promessa de uma montagem no fim do ano. Mas teve problemas, saiu do Planetário, ficou parado e teria de arrumar outro espaço para as aulas. Estava terminando o segundo grau e naquele ano fiz as provas para a UniRio, fui até a banca avaliadora. Mas não deu em nada. Na minha memória, ficou apenas o olhar entediado da banca enquanto representava o trecho escolhido por mim de o “Jardim das cerejeiras”. Uma pena. Começava a se dissolver o sonho de entrar na faculdade. O mês passou e o Lucio foi até a minha casa, sem me encontrar. Cheguei tarde e ele havia deixado um recado com a minha mãe. Ao ouvi-lo, apesar da euforia, agi naturalmente como se aquelas palavras não tivessem acendido qualquer coisa dentro de mim: “O Guti quer falar com você, pediu para aparecer segunda ou terça-feira.” “O que ele quer?” — ela indagou rapidamente. Eu fui evasiva: “Vou ver o que é.” E ela: “Olha lá o que vai me arrumar.”


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Eu, mais que rapidamente, mudei de assunto. No dia seguinte, fui procurar o Guti no famoso Castelo de Greyscow. O espaço era muito apertado, também úmido e com muitos figurinos e adereços. Ao atravessar a portinha, mais se parecia uma caverna, e entendi o apelido na hora. O Guti mostrou-se feliz em me ver, sempre nos encontrávamos na rua e conversávamos, ele gostava de mim, me achava uma menina de atitude. Mostrou-me o espaço e contou os planos de transformá-lo em um teatro. E falou que precisava substituir uma atriz no espetáculo, ainda sem prazo para estrear. Nasci em família mineira, sou por natureza desconfiada, e com tanta gente para chamar, por que eu? Guti então falou das dificuldades de ensaiar só em dois dias na semana, que nem todos estavam interessados em fazer um espetáculo de Machado de Assis, coisas que o próprio Lucio já tinha me dito. Disse também que o Lucio falara sobre mim, que eu fazia teatro. Tentei interromper para dizer que eu apenas iniciara um curso há pouco tempo e, claro, sonhava em ser atriz e estava prestando vestibular para teatro na UniRio, mas estava nessa vida há apenas quatro meses. Ele me estendeu o texto que chamava “O bote de rapé” e disse: “Lê um pouco.” Apresentou-me a Zezé e então eu li. — Então, você fica pro ensaio? — Gostaria de começar amanhã, pois não avisei à minha mãe.

Despedimo-nos com a confirmação de que eu viria para o ensaio. Caminhei direto para casa, sem querer chegar, porque tinha de tomar uma decisão. Não, eu já havia tomado a decisão quando respondi: “Gostaria de começar amanhã, pois não avisei à minha mãe”. Será que eu deveria demorar um pouco para falar? Não sei. Milhões de coisas passavam na minha cabeça, em especial as brigas que ela teve com a Martha por causa do teatro,


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anos atrás. Mas, mesmo cheia de receio, cheguei e de cara comentei sobre o convite com ela, que se limitou a dizer: “Olha lá!” No dia seguinte, estava lá na hora marcada para o ensaio. Os dois dias de ensaio passaram a ser três, quatro... Todos os dias. Quando não tinha ensaio, estava envolvida com algum número que seria apresentado no próximo “Show das sete”. É difícil dizer o que isso significou e o que significa para mim até hoje. Mudou minha vida? Claro que sim. Muitas vezes, em momentos ingratos, disse: “Sim, mudou minha vida, me tornou mais dura. Sem nenhuma garantia! Artista pra quê?” Logo depois do desabafo, sempre encontro o porquê: Para não calar nunca, para mudar o rumo das coisas, para contestar, para discutir, para alertar, para transformar, para acalmar minha inquietude, para sentir-me viva a cada dia. Essa é minha pulsão como artista. Os ensaios começaram a esquentar. O Paulo Tatáta (Luiz Paulo Corrêa e Castro, nosso dramaturgo) nos dava aulas de literatura e contextualização histórica. Líamos pequenos trechos de outras obras de Machado de Assis e às vezes de um autor contemporâneo. Isso nos ajudava a entender mais profundamente aquelas personagens. Zezé Silva tinha conosco encontros de leitura dos textos, com cuidados na dicção. Não era fácil para nós, jovens atores, porque estávamos todos entre 14 e 20 anos e desafiávamos o português do século XIX. Algumas vezes ela também se ocupava em extrair dessas personagens um lado não mostrado no texto. O dia da dor de barriga, como ficava depois de gozar, de mau humor, com cólica. A Zezé é uma criatura muito interessante, quando ela vibra com uma coisa, ela vibra mesmo, seja uma cena, um gesto, o que for, é bom vê-la vibrar! O Guti trabalhava conosco o



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cotidiano do personagem, a movimentação em cena, sua memória e a encenação. Vivia meu primeiro processo de montagem. Eu estava tão feliz! Não tinha muito tempo no grupo e sentia a evolução, me sentia cada vez mais interada ao ofício de atuar. Na creche, a tia Lu ia bem. Continuava trabalhando com remuneração, e isso acalmava a minha mãe. Com alguns meses de ensaio, tivemos uma reunião com o Fernando Melo da Costa e o Fred Pinheiro, cenógrafo e iluminador, respectivamente. Também fundadores do grupo. Embora já tivesse ouvido Guti falar deles, desde minha chegada os dois estavam em viagem na montagem da peça “Adorável Julia”. Todos trabalhavam com a Marília Pêra. Recebemos influência direta de sua maneira de trabalhar. Naquela noite, horário em que se davam nossos encontros, o papo girou em torno da construção do espaço. Já havíamos cavado bastante, principalmente o espaço do palco, mas era preciso ainda terminar as paredes e colocar a laje, que levou uma noite inteira, com apenas dois pedreiros fazendo o que era preciso e um curioso de ajudante, e todos cobrando apenas o que não dava para fazer de graça. No dia da laje, estavam todos movidos pelo álcool para dar coragem de encarar a luta. Nós havíamos ensaiado à tarde, e, ao término do ensaio, os meninos foram colocar para mais perto do teatro a areia e as pedras doadas pelo seu Diniz, que na época era dono de uma casa de material de construção e nos ajudou muito. Nós, as meninas, fomos até a casa da Sabrina, onde sua avó, Dona Antonia, cozinharia o jantar dos homens que virariam a laje. O Lucio, por exemplo, nessa virada de laje, ganhou um desvio na coluna que até hoje deve lhe trazer problemas. Para conseguirmos a laje e tudo mais que era preciso para estrearmos, ainda faltava dinheiro. Precisávamos


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fazer dinheiro. O Guti em seu discurso da noite nos disse que tínhamos de ter ideias para fazer o “Show das sete” pegar fogo. Estávamos começando a ter problemas com o tráfico, não que estivesse ali ameaçando ou insultando alguém, mas sua presença sempre gerou risco de confronto e afastava o público. O Vidigal havia tido conflitos entre traficantes e policiais. Sempre que isso acontece, as manifestações na favela ficam prejudicadas, as pessoas ficam temerosas. Chegamos a pedir, algumas vezes, para alguns traficantes não entrarem armados no show. Por algum milagre divino, éramos atendidos. Eram outros tempos. Nos quais você podia, com apenas 15 jovens, realizar um evento com média de público de 500 pessoas. Sem a segurança do Estado. Após o conflito, o público andava mirrado, tínhamos de ter uma atração incrível. Surgiu então a ideia de fazer um concurso de miss. Seria o Garota Vidigal Verão 95, que chegou a trazer para o pátio, na final do concurso, 800 pessoas, deixando até torcida do lado de fora. A comunidade já tinha uma cultura de concurso de beleza. Convidamos a Virgínia (aquela amiga dos tempos de ginásio), garota Vidigal, eleita em concurso de 92, para participar e passar a faixa. No dia que anunciou o concurso, imediatamente, Guti disse: “Vamos dar uma bolsa numa escola de modelos de uma pessoa muito famosa!” O público vibrou. Eu vibrei. Pensei: “Ele conseguiu alguém!” Ainda na boca da cena, ao me afastar para deixar entrar a atração seguinte — as Fogueteiras do 14, que dançariam “Vou dar a volta no mundo”, de Daniela Mercury —, perguntei e mais ouvidos além do meu se fizeram atentos: “Guti, de quem é o curso?” E ele: “Não sei. Mas a gente vai arrumar.” Essa foi, para mim, a primeira prova do quanto ele podia ser louco. Acreditando, de verdade, na sorte de quem caminha pelo bem. Eu não tinha alternativa senão acreditar também. E acreditei.


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Eu era responsável por ensaiar as meninas. A cada fim de semana sairiam duas. Tivemos 20 candidatas, entre elas Cintia Rosa e Rosana Barros, que se tornaram atrizes de suma importância para a companhia de teatro Nós do Morro. Naquela semana, passei quase todos os dias, depois do trabalho na creche, na casa do Guti, que era o escritório do grupo Nós do Morro, assim como o quarto da Zezé, também compartilhado por mais dois irmãos, que por amor a ela e a causa, ajudaram, ligando para vários cursos de modelo. Até que a Monique Evans atendeu, e Guti rapidamente a convenceu a dar uma bolsa na Maison Monique para a escolhida. De olho nos olhos dele e vendo-os vibrar a cada recepção positiva do outro lado da linha, pensei: Ele está certo. A gente tem de arriscar. Arriscar sempre. O Guti sempre nos incentivou e cobrou muita coragem. Porque ele é otimista. Isso eu herdei dele. E também a passionalidade. Mas nos dias de hoje ele jura estar se tornando um matemático. Todos nós, em especial a turma que esteve com ele durante esses vinte e três anos, pelo menos quinze, temos características em nossa personalidade, que são reflexo dele, assim como de um pai. Alguns até mais do que com a própria família. A final do Garota Vidigal Verão 95 premiou, com uma plateia inteira gritando “Linda!”, uma mistura caribenha de pele como canela em calda. Ela foi fazer o curso e fazia sucesso na agência, mas estava envolvida emocionalmente com um cara não bem intencionado, que em algum momento a deixou com queimaduras nas pernas. Depois disso, ela se mudou, incentivada pela família. Nunca mais soube dela. Nós ganhamos com o concurso: a laje, o emboço no buraco da cabine de som, que cavávamos com ponteiras já havia vários meses, e também finalizamos o fundo do palco. O Fernando tinha um apoio dos


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cenotécnicos de um galpão, que iriam construir o palco. Mas obra de pobre parece que não acaba nunca, ainda faltavam um camarim, um banheiro, e tínhamos de estrear. Nesse meio tempo, tivemos oficinas de figurino, iluminação e cenografia. Eu me lembro das mãos de todos cheias de bolhas de tanto trançar as cadeiras de sisal para o cenário; a tarefa era quase um castigo. Ensaios, construção de cenários, obras, pinturas, figurinos. E as parcerias começaram a crescer. Travamos o primeiro contato com o Royal Shakespeare Company, por meio de Dominic Bater, que em visitas posteriores ao Nós do Morro ministrou oficinas da técnica Alexander, o que nos ajudou muito na busca da consciência corporal e de domínio dos movimentos. Na primeira visita dele com Fiona — coordenadora do projeto Fórum Shakespeare —, o teatro ainda estava em obras. O Fórum Shakespeare aconteceu nos três anos seguintes, dentro do CCBB, sempre com participação do grupo de teatro Nós do Morro. Era assim que nos denominávamos na época. Hoje nos tornamos um grupo cultural. O grupo Nós do Morro. No dia marcado para a primeira visita, esperamos os gringos a manhã inteira. O Guti, na noite anterior, fizera discurso dizendo que os caras eram britânicos e então ninguém poderia se atrasar. Nesse dia, os ingleses se atrasaram. Quando chegaram já estávamos desanimados, achando que não viriam. Ficamos nervosos. Eles falavam mal português, e nós entendíamos quase nada de inglês. Somados não completaríamos uma frase. Foi tenso. O Guti falou sobre o processo da obra, às vezes era ajudado pela mímica, contou também um pouco da história do grupo até ali. Um mágico. Apresentamos um trecho da peça que estávamos ensaiando. Foi emocionante. Fizemos ali uma parceria maravilhosa que se perpetua. Esse encontro já se desdobrou em tantas coisas


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boas. Até mesmo uma temporada de duas semanas com “Os dois cavalheiros de Verona”, no Barbican. O Nós do Morro esteve em Londres por duas semanas. Durante o tempo em que a peça era apresentada, dois atores do Nós, André Santinho e Ninho (William de Paula Lucas), foram convidados para uma montagem de ”A tempestade”. E o filme “Neguinho e Kika”, com presença de seu diretor Luciano Vidigal, era exibido em mostra brasileira promovida pela embaixada. Parece um release para a imprensa, mas é incrível, e a verdade é que tudo nasceu ali, naquele dia que a arte teve de se antepor às palavras. No final daquele primeiro dia, o presente. Eles olharam o espaço e Fiona falou que poderiam doar uma mesa de luz: A luz! Estávamos vendo a luz! Dávamos mais um passo rumo à realização do sonho de estrear um espetáculo em um teatro na própria comunidade. Estávamos já no meio do ano de 1995 quando conhecemos Rosane Svartman, cineasta, recém-formada na UFF, uma menina, tinha a idade de alguns jovens do grupo, mas ao chegar foi tão forte e tão determinada que se tornou nossa mestra. Rosane conheceu o grupo num trabalho em que fazia assistência de direção para um filme canadense, que tinha várias crianças do Vidigal. Ela havia feito um projeto para documentar o grupo em sua estreia no novo espaço. O Guti quando acompanhou os meninos no teste, tinha contado a Rosane um pouco da história. Ela então o procurou novamente com o projeto de documentário. Ele topou. Como recusar? Mas Rosane sumiu. Achei que não daria em nada. O projeto foi aprovado pela Riofilme e eles voltaram, agora não só a Rosane, mas toda sua equipe. O Vinícius Reis, diretor do filme, foi então apresentado ao grupo, e iniciou-se a pesquisa para filmagem do “Testemunho Nós do Morro”. Toda vez que eu vejo o filme, lembro do quanto éramos loucos.




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Foi graças a esse projeto que ganhamos uma mesa de som e foram feitos os arremates de piso e pintura para a tão sonhada estreia se realizar. As gravações começaram no início de setembro. Uma experiência nova. Os ensaios estavam apertados, o teatrinho, como passou a ser chamado o Castelo de Greyscow, estava quase pronto. Fechamos a data de estreia que, para coincidir com as datas que Vinícius precisava rodar suas cenas, foi marcada para 22 de setembro, uma sexta. Meu depoimento e o encontro com a Claudia Abreu, surpresa do diretor, aconteceram na mesma semana. Era a primeira vez que tinha de encarar a câmera. Além da equipe, estavam alguns integrantes do grupo que naqueles dias os acompanhavam por todos os lados. Esperei muito essas filmagens, estávamos nesse papo desde maio, mas só tive no set nesses dois dias e no dia da estreia. Naquela semana demos o passo mais importante para nós, inaugurar o espaço que nos possibilitaria a experimentação teatral com palco garantido. A temporada foi um sucesso. A peça foi indicada ao prêmio Shell de teatro para categoria especial e ganhou. Na noite da premiação, faltou luz no morro, na hora de me produzir e arrumar a roupa. Por sorte, meu vestido não era feito de um tecido que precisasse passar, mas essa não era a sorte de todos. A arrumação e a maquiagem tiveram de ser feitas no escuro e no escuro descemos o morro. Ao chegar ao teatro João Caetano, onde aconteceria a entrega do prêmio, os fotógrafos se agitaram quando pisamos no tapete vermelho. Mas, ao perceber que não havia entre nós algum famoso, desligaram tudo e voltaram a seus postos. Não demorou muito e lá dentro, quando fomos anunciados como ganhadores, todos subiram no palco. Foi emocionante demais! Ficávamos olhando aquele prêmio, que foi para nós como uma identidade. A partir daquele momento, passamos a existir para a classe como grupo teatral.


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Começamos a ensaiar outra peça assim que estreamos o “Machadiando”. Guti não queria intervalos entre uma montagem e outra. O que não foi possível, mas após poucos meses sem apresentações no teatro, “Abalou” estreou. Eu fazia nesta peça um personagem muito importante na trama, mas como uma das características da direção do Guti, que tem paixão por muvuca no palco, todos eram importantes. Até mesmo os personagens que em maior parte do tempo faziam corpo de baile. Para esse espetáculo, era preciso que todos estivessem em todos os ensaios, não era fácil fazer escala de atores e cenas, pois ensaiávamos praticamente todos os atores em todas as cenas. Muitas horas de ensaio, muitas brigas, muita entrega, muitos momentos de criação e buscas artísticas. Foi preciso amor e vocação para levantar o “Abalou”. Mas o espetáculo funcionou. Ele fervia na temperatura certa. Tudo se encaixava, mas a engrenagem tinha de estar completa. O teatro é pequeno, mas carrega seus artifícios. O principal deste palco é um alçapão. De onde surgiam Pilantra e Lagartão — os Mcs que colocavam o palco e a plateia para dançar. Um baile. Crítico, debochado. Com um bom texto de Luiz Paulo Corrêa. Este espetáculo ficou por muito tempo em cartaz. Passamos novamente por muitas mudanças no corpo de atores. Como manter um grupo de jovens que está iniciando sua vida adulta — todos duros, sem dinheiro de família, alguns com famílias que passam por necessidades básicas em casa — neste espetáculo cheio de possibilidades, mas sem nenhum dinheiro? Esse será sempre o grande problema para o artista: se sustentar. Da peça “Abalou”, tenho lembranças de todos os tipos. Naquele momento, o Nós do Morro já fazia parte da minha história. Estava no túnel e queria seguir. Estreamos o espetáculo que foi um sucesso, o público se identificou, a casa vivia


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lotada e a plateia de fora do Vidigal subia até o mais novo teatro off do Rio de Janeiro para assistir a um fenômeno teatral, como alguns jornais chegaram a dizer na época. O sucesso do “Abalou” foi como fincar uma bandeira em um território e dizer: Nós existimos e viemos para ficar. Nessa época, o Guti tinha jovens adultos que estavam dispostos a apostar e, porque sejamos bem francos, as condições já eram outras. Estávamos sendo procurados com alguma frequência pelo cinema, mais estrangeiro do que brasileiro, que não vivia seu melhor momento cinematográfico. Alguns de nós já tinham nove meses de contrato. Nove meses de contrato na vida de um ator é um sonho, um presente de Papai Noel. As crianças sempre foram as mais procuradas, ficamos conhecidos por fabricar os melhores moleques de rua e trombadinhas que o cinema e a TV já viram. Todos tinham casa, escola, alguns poucos problemas, outros muitos problemas, aulas de teatro uma a duas vezes por semana, e dois meses de montagem com ensaios todo dia. Com um bom texto ou um bom circunstanciador, fariam qualquer personagem: príncipe, sapos, dragões, crianças possuídas, robôs. Era só dar corda. Existia, enfim, algo que me inspirava a cada dia: dar aulas. O processo de me tornar monitora me fez aprender e me deu oportunidade de pesquisa e exercício. Tinha a necessidade de colocar as crianças que cresciam cada vez mais como plateia. Precisávamos inserilas naquele processo de aprendizagem e descoberta. Também começávamos a perceber que, quanto mais cedo tivessem contato com aquele universo artístico, mais chances elas teriam de uma mudança verdadeira. O Lucio deu a ideia de abrir uma turma de crianças. Por sugestão da Zezé, dividiríamos a turma para que eu ajudasse o Lucio com um pensamento um pouco mais


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pedagógico, para aproveitar minha experiência na creche. Adoro estar em turma, me divirto até com as brigas. Porque para viver em turma devemos exercitar a tolerância. Essa é uma das palavras de ordem. De tanto minha mãe pedir que eu me formasse professora, o destino fez isso comigo. Aula é uma das tarefas que me sustenta até hoje e que executo sempre com muito prazer, porque dar aula é uma troca, você aprende mais do que ensina. Começamos com uma turma e no ano seguinte tínhamos a nossa turma, mais umas cinco turmas de crianças e uma turma de adulto, a da Zezé. As duas turmas se fundiam no espetáculo “Abalou”, que ainda estava em temporada. Nos fins de ano havia as montagens. Cheguei a fazer trabalhos de texto e montagem com processos muito interessantes com essas turmas. Na maior parte desse tempo, dei aula para adolescentes e sei que os influenciei em muitos aspectos. Existem até mesmo aqueles que se tornaram os “filhos da Luciana”. Nessas aulas ensinava o teatro, apresentava-lhes textos clássicos, construía referências, discutia o mundo, os preconceitos, a vida em família, opções sexuais, a comunidade onde morávamos, suas possibilidades nesse mundo. Esse espaço era para muitos desses adolescentes o único lugar onde podiam verdadeiramente se expressar. Surgiram textos muito bons ali, acho até que deveríamos nos esforçar, resgatá-los e reuni-los em uma coletânea. Daria certo trabalho, já que a maior parte era feita a mão ou em máquinas de escrever e, claro, nunca possuía muitas cópias. Naquele tempo, já tinha cinco anos de grupo, duas peças e trabalhava no processo de um novo espetáculo chamado “Burro sem rabo”, quando fui contratada por uma novela, um papel muito pequeno, mas a garantia de um salário fixo. Logo não deu mais para conciliar o emprego da creche com a vida de artista.


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O grupo foi convidado para se apresentar na Casa de Cultura Laura Alvim, com o propósito de montar três espetáculos: “Machadiando”, que havia ganhado o Prêmio Shell, categoria especial para teatro. O “Abalou”, que indicou Mary Sheyla de Paula, a primeira atriz do grupo a ganhar destaque em papéis não só na TV, mas no cinema e em outros espetáculos teatrais, ao prêmio de melhor atriz, além de indicações para a coreografia de Johaine Ildefonso e para o texto de Luiz Paulo Corrêa e Castro. E um novo espetáculo, que deveria ser infantil, devido ao horário da sessão. O que caiu como uma luva para o grupo naquele momento, pois estávamos com algumas crianças em seu terceiro e quarto ano de exercício teatral. Seria um infantil feito também por crianças. Foi feita uma seleção nas turmas e tínhamos um grupo muito interessante: todos entre 8 e 12 anos. Tínhamos quatro meses para remontar os dois e criar o infantil. Alguns atores estavam nos três espetáculos. Outros, além de se revezarem em vários papéis, ainda faziam parte das equipes técnicas. Foram tempos sem sol, sem festas, sem passeios. Era trabalho dentro do casarão dia e noite. Um internato. Já tinha participado da criação e montagem dos últimos figurinos, assistindo à Fernando Melo. Mas desta vez precisava de uma equipe de figurinistas, porque era preciso remontar muita coisa e ainda criar um figurino novo. Veio, então, a estilista Luiza Marcie, hoje dona da marca Colecionadora, a convite e por indicação de Leonardo Ribeiro, um pintor de arte, designer português, com sotaque bem carregado, que fazia um intercâmbio informal com o grupo desde o meio do ano. Ela fazia figurino em filmes, já havíamos nos encontrado em um set de filmagem, em que eu acompanhava uma criança que deveria ter sido avisada que era necessário levar um sapato preto, de festa. Quase todas as crianças nesse filme eram do Nós do Morro. Ela estava



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enlouquecida, debruçada sobre um enorme saco de sapatos, quase histérica. Entraram com os sapatos que tinham e eu emprestei minha bota para um deles. Estávamos nos vendo então pela segunda vez, mas já tínhamos plena certeza de poder trabalhar em equipe. A Luiza fazia uma pesquisa com materiais recicláveis e principalmente com o plástico. Começamos a assistir ao ensaio da peça e ter conversas em que participavam também o Fernando e mais alguns assistentes: Marcio Lopes, Gorette Bezerra, Bruno Maldonado e Isabele Souza. Todos entre 13 e 16 anos, alunos da primeira turma de crianças. A Luiza, com muita generosidade, nos ensinou estéticas e muitas vezes se surpreendeu com a criatividade com que solucionávamos as coisas. Criamos para o espetáculo vilões que eram palhaços maus, além de extraterrestres tristes e dois grupos de crianças guerreiras: um da beira da praia, outro do asfalto suburbano. Era uma peça inspirada em super-heróis clássicos, e a principal questão desse texto era o governador ter proibido a diversão e até mesmo o Natal. Só de ver aquela criançada toda no palco já era animador. Este, sem dúvida, é um espetáculo que ainda desejo ver filmado. É meu gosto pela ficção científica e aventura. São os goonies, de Spielberg, brasileiros. Como em uma família, nem tudo são flores. Tínhamos alguma verba para os três espetáculos, mas tínhamos muitos problemas a resolver, muitos atores em todas as peças, cenários a serem adaptados ao espaço. Era a nossa chance de mostrar três trabalhos em um teatro nobre da cidade. Esse processo também marcou a nossa chegada ao casarão, que é sede do grupo ainda hoje. Era preciso um lugar maior que o teatro para montar os três espetáculos e, ao mesmo tempo, a Prefeitura tinha conseguido um galpão perto da Rodoviária, mas como levar e buscar os atores, as crianças? Isso não daria certo. O


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Guti procurou saber sobre uma casa branca que ficava no Vidigal e estava fechada há muito tempo. Descobrimos que a casa tinha dívidas de IPTU e a Prefeitura iria quitá-la e nos alojaria. Nunca mais saímos. Na mesma época, por sorte e por mérito também, o João Madeira chegava ao projeto e nos dava aulas de História da Arte. E trazia para o Nós um apoio material da Coca-Cola: mesas, quadros, móveis de escritório e uma pequena verba. Isso aconteceu durante a temporada no Laura Alvim. Todos os monitores, que eram os atores mais antigos da companhia, foram incorporados a uma folha de pagamento e eu sabia que teria R$150,00 por mês. Era quase o valor do aluguel e já estava garantido. Não se pode fingir para ninguém que escolhe ser artista teatral outra realidade do que essa: aprender a viver normalmente abaixo do limite. Mas esse processo me trouxe uma luz. Deveria aprender o máximo, sem descansar e sem negar trabalho. Foram anos de mudanças rápidas, que nos levavam, aos poucos, à realização do sonho de sobreviver como artista. Os pais, claro, ficavam preocupados, mas já tinham visto resultados que também os fazia acreditar mais: seus filhos em palco profissional, em participações em filmes que sempre geraram um dinheiro para a casa, em viagens ao exterior. Em 2000, entrávamos em outra era. Já no casarão, e sem pretender sair de lá, por conta de multas e IPTUs atrasados, continuávamos, e a Prefeitura ia deixando. Paramos a produção de “Burro sem rabo”, e agora, ao retomar a montagem, a ideia era fazer uma peça que trabalhássemos o morro. Então, “Burro sem rabo” esperou mais um pouco, e foi resgatado um texto que, até então, tudo que existia dele era uma VHS feita por um gringo amigo ainda da época do Padre Leeb, que a fez a fim de registrar aquele processo e buscar ajuda para o


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grupo. Começamos o processo de criação do espetáculo “Noites do Vidigal”. Definidos os personagens, eu tinha um desafio tremendo. Interpretar uma senhora de aproximadamente 60 anos. E minha parceira de cenas, D. Eunice, que interpretava a mãe de Tião, minha comadre, aproximava-se da idade de sua personagem, o que me deixava ainda mais exposta. Era bom, muito bom, mas o processo foi muito duro. Ao mesmo tempo que sentia o meu desenvolvimento artístico — por meio do acúmulo de saberes e das experiências que adquiri a cada montagem —, senti também durante esse processo o pior momento da vida de um artista: aquele em ele deve escolher comer ou viver da sua arte. Assim que o patrocínio da Petrobras se confirmou, tivemos uma reunião e foi colocado ao elenco, que quem tivesse vontade, desejo e interesse de fazer parte do “Noites do Vidigal”, deveria estar pronto e disponível para ensaiar de oito a doze horas por dia. Já havia passado por isso, mas desta vez não estaríamos trabalhando em horários alternativos. Era preciso desligar-se de outros processos que pudessem atrapalhar. O Guti tinha razão, prezava pelo processo, era uma chance muito especial ter um patrocínio, poder estar novamente em um teatro de circuito. Mas quando ouvi aquilo meu coração se desesperou. Nunca havíamos passado por um momento assim. O que nos possibilitava ser ator era justamente a flexibilidade com que os ensaios e as aulas aconteciam. Quando foi anunciado o valor que se destinava ao elenco, foi um desespero geral. Havia sido reservado ao elenco — a quem era pedido total entrega e disponibilidade — uma pequena quantia ao mês durante todo o projeto. Foi um choque. Vão se perguntar se houve questionamentos. Houve, mas e aí? Na ponta do lápis não tiro a razão de ninguém. Éramos 46 atores em cena. Era uma operação matemática injusta.


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Naquele dia o elenco ensaiou meio deprimido. Cada um ali sabia onde, quando e como havia caminhado até aquele momento. Os que tinham turmas não montariam espetáculo, mas ainda assim dariam aulas e somariam as duas quantias de salário. Era o meu caso. Muitos ficaram apenas com o salário do espetáculo. Era o caso da Joanna, Chuchu, minha comadre, que morava comigo. Fui para casa depois do ensaio e precisava tomar uma decisão. Iria lagar o espetáculo? Assumiria então que todo aquele tempo de preparação teria sido para nada? Uma noite inteira de conversas e chegamos a uma decisão: mudaríamos para uma casa mais barata para que sobrasse algum dinheiro para necessidades básicas como pão, mortadela, cigarro, absorvente e uma birita de vez em quando. Estreamos o “Noites no Vidigal” no dia 09 de maio, meu aniversário. Com o início do patrocínio da Petrobras, percebi que o envolvimento de vários profissionais renomados fornece um aparato de espetáculo profissional — importante na qualidade de um todo. Foi o momento em que o Grupo Nós do Morro deu um salto, com oportunidade de investir o máximo na qualidade. Esta mudança foi rápida e o “Noites”, primeiro espetáculo depois do patrocínio, ficou muito bonito, deu certo. Tinha lá uma dificuldade ou outra. Mas era bem divertido. Estreia é sempre estreia. Mas estreia também é um misto de alegria e tristeza. É a hora que você percebe que fechou a etapa da montagem e da preparação. Da criação mais profunda. Dali por diante estão presentes melhorias técnicas, leveza ao viver a cena e o friozinho de todo dia, que é para isso que se sobe ao palco. Mas está ali o fechamento de um ciclo para o nascer de outro. Dá um vazio também. Ficamos no Planetário por um mês, fizemos Sérgio Porto, duas semanas de SESC em São Paulo, e a peça caminhava bem. Tivemos muitas críticas favoráveis a este


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espetáculo. “Noites do Vidigal” estreou também no Teatro Maria Clara Machado e recebeu crítica do jornal “O Globo”, por Barbara Heliodora, que afirmava: “(...) temos de tratar com o devido respeito o trabalho do Nós do Morro (...). Há, em todo o espetáculo, uma alegria, um humor, um orgulho do trabalho feito, que se comunicam brilhantemente com a plateia.” Surgiu para o espetáculo uma oportunidade no teatro Leblon, mas o dinheiro do projeto já havia acabado, e trabalharíamos por bilheteria. Começamos a brigar muito também. A principal questão é que quem trabalhava como ator fora do grupo sempre arrumou um jeitinho de fazer seus trabalhos, mesmo que isso às vezes prejudicasse um ensaio do outro, além de acarretar atrasos e faltas. Mas as pessoas que tinham emprego fixo ou trabalhavam em tempo integral não conseguiam se dedicar totalmente ao grupo. Para alguns ali a força de vontade foi mais forte que tudo. Fico feliz em saber que este elenco, em sua maioria, continua ator e hoje já consegue sobreviver desta arte. Uns com mais e outros com menos aperto. Mas sobrevivem. Quando a temporada acabou, voltei a trabalhar com mais frequência, dando aulas em cursos ou assistindo a alguém no figurino ou na produção e direção. E ganhei o edital da Riofilme para realizar o curta-metragem “Mina de fé”. Filmei e, ainda em processo de montagem, iniciei novamente os ensaios criativos do espetáculo “Burro sem rabo”. Partimos de partituras já criadas. Seria o próximo espetáculo a ser montado. Com alguns meses de processo, tivemos uma reunião para firmar o elenco deste novo projeto que se daria da mesma maneira do outro: início sem salário, mas o grupo via a possibilidade de criar uma companhia que pudesse receber permanentemente para criar espetáculos. Eu caí fora nessa reunião. Vi o olhar do Guti entristecer, mas fui clara. Não estava dando para mim. Estava com 28 anos. Não podia


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ficar nem mais um mês sem receber nada e trabalhando. Finalizava o curta “Mina de fé” e não conseguiria participar deste processo com a entrega de que ele necessitava. Naquela reunião me percebi tendenciosa a trabalhar mais na área de cinema. Olhava aquela turma, estávamos juntos havia tanto tempo. A maioria queria de verdade ser ator, e alguém tinha de se dedicar mais a área de cinema. Nada mais natural eu querer investir nisso, já que ia ter a possibilidade de estrear um filme. Não achem que foi indolor. Não foi. Foi com muito sofrimento. Não participar dos ensaios, não estar ali no convívio do dia a dia. Senti-me muito solitária. Mas a vida corre rápido e você tem de correr com ela. Na minha vida, depois de realizar um curta, tudo estava mudado. Enquanto isso o Nós estreava o espetáculo “Burro sem rabo”, e eu sentada na plateia. Aquela posição era esquisita para mim. O espetáculo é um dos meus favoritos. Olhava aquele corpo trabalhando e pensava. Nesse deu muito certo. A cena não para, funde-se com a música, eles estão leves, estão dançando e cantando melhor do que nunca. Claro: ali estava um corpo que completava seu sétimo ou oitavo ano de trabalho junto e mais de dez anos de convivência. Estavam maduros. Lindos! “O beijo roubado é o beijo mais doce que existe no mundo, mesmo que seja uma fração de segundo.” Este é um trecho de uma música do espetáculo de uma cena deliciosa feita por Cíntia Rosa e Roberta Santiago. Comecei a chorar ali, não parei mais, estava muito emocionada. Chorei também num misto de alegria e saudade, muita saudade. Mas eu sabia que a decisão que havia tomado era acertada. Enquanto eles ensaiavam e levavam mais um espetáculo para a rua, eu levava, com o curta, o Nós do Morro para a tela e pelo mundo. Cumpríamos cada um o


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seu destino. O projeto cresceu muito, principalmente na excelência de formar atores, e isso faz com que o número de pessoas que procuram o Nós do Morro abertas a descobertas seja cada vez menor. A maioria já chega determinada a ser ator, é uma pena. Não tenho nada contra os atores, longe disso, se isso fosse verdade teria contra mim mesma, mas sou adepta da frase “Tenham outra profissão ou aprendam ao menos um ofício que não seja atuar.” Indispensável em minhas aulas ou palestras. É que o ator tem um campo pequeno de trabalho. E é sempre preciso criar sua sustentabilidade para que possa continuar suas realizações. Impulsionados pelo sucesso alcançado pelos meninos do filme “Cidade de Deus”, chegam aqui muitos com sonhos de se tornar uma celebridade artística. Sem se dar conta que, no mesmo grupo de meninos que fizeram o filme, alguns desapareceram em pouco tempo ou já não faziam mais nenhum trabalho. E ainda hoje, se formos contar nos dedos — não vou dizer aqui os que vivem da arte, porque esses são muitos —, os que vivem exclusivamente de ser atores são poucos em relação à quantidade de integrantes com mais de quatro anos de grupo. Neste tempo tudo o que mais tenho aprendido é me reinventar como artista, buscar maneiras de dar vazão a minha criatividade, coletar recursos para criar e transferir a outros os saberes que acumulei e tentar arregimentar cada vez mais pessoas interessadas nessa transformação intelectual que a minha experiência dentro do grupo me proporcionou. Depois disso, tivemos mais três espetáculos: “Os dois cavalheiros de Verona”, que teve até temporada internacional em Londres, apresentação no festival Shakespeare de Teatro, em Stratford-upon-Avon. E também “Carmem de Tal” e “Machado a 3x4”. Assisti a todos com


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muito orgulho, e também com abertura de estabelecer conversas e avaliações críticas com o grupo. No último espetáculo, voltamos a Machado de Assis com uma adaptação de “O alienista”. Meus amigos me fazem chorar quando estão no palco. Sempre me emociono. Nesse espetáculo, canta-se uma música, que para mim, virou hino do grupo: “Somos todos malucos, pirados, da cuca lélé, e quem não é? E quem não é?” Pretendo continuar nesta loucura e vê-la dar cada vez mais frutos. E, claro, espero em breve poder ter o gostinho de subir novamente no palco sob a direção desse cara que eu amo: Guti. Além de poder viver, com a minha família, mais momentos de loucura. Porque adoro estar do lado desses doidos que vêm mantendo esse sonho vivo.


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No Nós do Morro encontrei uma segunda família, também com direitos e deveres. Ao chegar, me deparei com um grupo que já estava com o Guti havia uns três anos, ninguém da primeira turma. Enquanto adolescentes, os pais não viam problema, era até muito bom saber que o filho estava ocupado em uma atividade, mas tão logo chegavam aos 18 anos, eram sempre pressionados a arranjar um emprego formal. Essa é uma luta até hoje, travada pelo jovem que necessita estudar porque deseja ter uma profissão que exige dele entrega por muitas horas ao dia, como ser um bailarino, um ator, um médico ou um advogado. Estão fora da lista de profissões de direito ao jovem pobre aquelas que necessitam uma entrega diária de estudo antes de começar a ganhar dinheiro. Nós tínhamos entre 13 e 25 anos, e depois veio uma galera ainda mais jovem que nos fortaleceu. Crescíamos junto com o sonho. Na minha geração, o sonho de chegar à faculdade para os jovens pobres era remoto, sem a existência do Enem e do sistema de cotas, que sem dúvida têm levado um número muito maior de jovens a universidade. Quando digo isso, estou falando do pobre que viveu em favelas e sobreviveu do salário dos pais, entre os anos 1990 e 2000. Durante essa década, a maioria já havia abandonado os estudos ainda no segundo

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grau, antes dos 20 anos, e aceitava o destino do subemprego. Eu desejava mais. A saga do não estudo, por causa da necessidade de trabalhar, já havia afastado meus pais da escola e os jogado em empregos em que se trabalha muito e ganha-se muito pouco. Eu não tinha a intenção de repetir a história deles, pelo contrário, tinha obrigação de dar à família uma melhoria de vida. No grupo me vi comungando esse sonho com várias pessoas que queriam mais do que o mundo da favela, que queriam o mundo, que haviam sido despertadas pela arte: AGATHA PACHECO, AGUINALDO AGUILAR (AGUI), ALEXANDRE ALVES (XANDINHO), ANATILDA, ANDRÉ CUNHA (ANDRÉ SANTINHO), ARTHUR SHERMAN, BABÚ SANTANA, BIJU MARTINS, BRUNO MALDONADO, BRUNO MARQUES (ABM), CARLOS ANDRÉ (CARECA), CÍNTIA ROSA, DÉBORAH FRANCISCO, DELIS HERCULANO, DENISE FRANCISCO, DIEGO DIAS, EDSON OLIVEIRA, ELIELSON AMARAL, FÁBIO BEZERRA (DOUG), FABRÍCIO SANTIAGO, FELIPE PORTO, FLÁVIA FRENZEL, FLÁVIO FONSECA, GORETTE BEZERRA, GUILHERME ESTEVAN, GUSTAVO MELO, HÉLIO RODRIGUES, ISABELE SOUZA, JAQUELINE FERREIRA, JOANNA COSTA (CHUCHU), JONATHAN HAAGENSEN, KIKO MORAES, LEANDRA MIRANDA, LUCIANO VIDIGAL, LUCIO ANDREY, LUIZ HENRIQUE, MARCELO MELLO, MÁRCIA FRANCISCO, MÁRCIO LOPES, MARIA CORRÊA E CASTRO, MARY SHEYLA DE PAULA, MICAEL BORGES, PHELLIPE HAAGENSEN, PIERRE SANTOS, RENAN MONTEIRO, ROBERTA RODRIGUES, ROBERTA SANTIAGO, ROBERT PACHECO, ROSANA BARROS, SABRINA ROSA, THIAGO MARTINS, VAMPIRO, WENDEL BARROS. GUIADOS POR FERNANDO MELO DA COSTA, FRED PINHEIRO, MARIA JOSÉ SILVA E TRADUZIDOS EM TEXTOS DE LUIZ PAULO CORRÊA. TORNAMOS-NOS OS GUERREIROS DO GUTI.


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Uma geração de guerreiros da arte. Sabíamos que a nossa sobrevivência como artista dependia do quanto de munição estávamos dispostos a gastar nessa batalha, e, devo dizer, não economizamos. Acreditamos nas ideias do Guti e mergulhamos fundo na proposta de fazer arte compromissada com a transformação social, porque dependíamos também dessa transformação para a nossa própria vida. Nessa época, todo processo de aprendizado e busca era feito por meio das montagens. Os nomes aqui citados são dos amigos que estão há mais tempo dentro do grupo e com quem compartilhei processos criativos. Alguns deles não são atores e faziam parte de nossa equipe técnica; algumas vezes eu também fiz parte dela dentro do processo, agindo somente fora do palco. Muitos desses nomes continuam na luta comigo até hoje dentro do grupo Nós do Morro, outros foram buscar diferentes formas de luta e exercício da arte. Mas tenho certeza da perseverança que tiveram esses jovens, que foram guiados por uma certeza maior ainda de que é possível quebrar barreiras e fazer arte de qualidade estética e intelectual com artistas pobres. De cada um, trago, além das lembranças de tempos difíceis, mas incrivelmente prazerosos, a herança do aprendizado da convivência e do respeito mútuo, e muitas, muitas histórias para contar nesses dezesseis anos de convivência. Dizer que nunca brigamos é mentira. Somos um grupo, como já disse antes, uma família, temos interesses em comum e também interesses pessoais, que têm de estar de acordo com o senso comum, sem prejudicar ninguém. Inúmeras vezes discordamos uns dos outros e muitas vezes temos de aceitar decisões, por viver em democracia e tentar fazer deste espaço um exercício dela. Para mim, foi esse o tesouro mais importante que todos os anos de convivência com esse grupo de pessoas me


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trouxeram: aprender a exercitar minha cidadania, por meio da democratização dos bens culturais e intelectuais a caminho da igualdade social. Compartilhamos a realização de pequenos sonhos, que para nós significaram a construção de uma vida e a possibilidade de escrever nossa própria história. Após quatro ou cinco anos que havia ingressado no grupo, já tínhamos nossa identidade, havíamos nos tornado o grupo Nós do Morro. Um grupo cultural fundado na favela do Vidigal com a finalidade de dar acesso a quem não tem acesso. Depois vieram muito mais pessoas interessadas na experiência deste novo jeito de fazer arte. Veio o que chamamos de escola, que no fundo não é escola, mas um espaço de experimentação e de despertar para o exercício artístico. Vieram os professores, o caráter de aula, que na época, entre 1998 e 2000, só existiam com as crianças, por meio dos multiplicadores. Acompanhei os amigos que permaneceram e vi seus trabalhos como atores se desenvolverem dentro do grupo e fora dele. São, em sua maioria, atores muito exigentes com sua atuação e extremamente talentosos, com ressalva de um ou outro mais canastrão, mas o canastra é um tipo de ator necessário em uma companhia, porque há papéis que só podem ser feitos por eles. Foram esses amigos que durante oito anos dividi não só o palco, mas a vida. Horas a fio de ensaios juntos, oficinas, pequenas apresentações com a finalidade de divulgar nosso trabalho. A primeira apresentação no teatro do Vidigal, a certeza de que tínhamos construído história ali. A primeira vez em um palco fora do Vidigal também foi com eles, e a primeira crítica também dividi com meus companheiros-irmãos. Passamos por momentos que nos uniram para sempre. Temos problemas semelhantes, pois todos ali vinham de famílias humildes, e não era


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fácil caminhar e construir esse sonho. Mas a cada nova temporada nós nos superávamos, em parte porque não estávamos sozinhos, tínhamos uns aos outros. O Nós conserva a Mostra de Teatro Nós do Morro, nome criado em 2007, apesar de acontecer desde o primeiro ano que tivemos turmas além da companhia, os chamados multiplicadores. No primeiro ano, tivemos uma peça, no segundo, três, no terceiro, seis, e só foi aumentando. Hoje chegamos a apresentar 18 turmas com trabalhos distintos. Mas era tudo organizado pela turma inicial. Revezávamo-nos em mutirão, atuávamos em áreas distintas um no espetáculo do outro, e todas as peças tinham a supervisão do Guti e dos outros diretores — cada um em sua área de especialidade. Chegávamos a passar quatro meses trabalhando todos os dias para que a mostra se realizasse. Fazíamos tudo. Figurino, cenário, luz, trilha, da concepção a operação nos dias de espetáculo. Muitas vezes chegamos a fazer três sessões em um único dia. A arte nos unia, mas também nos unia a situação de vida que tínhamos. Ali não era preciso fingir, todos se conheciam e conheciam a realidade de cada um, e nos ajudávamos. Foi essa união que começou o grupo e nos diferencia até hoje. Quando em cena, essa intimidade aparece, é viva. Olhávamo-nos e sabíamos o que estava por vir. Juntos, fizemos muitas conquistas, que se refletem hoje na vida individual dos membros desse grupo. Tenho muito orgulho de ter compartilhado com esses amigos o primeiro palco. A primeira viagem para o exterior. Isso gerou muita confiança em nossos pais de que tínhamos futuro, viajar para o exterior era a garantia de que o grupo evoluía. É o perfil brasileiro, que está sempre esperando um reconhecimento externo para que possa então dar valor as coisas da casa.


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Era 1998, dez pessoas do grupo viajaram para Portugal, e eu estava entre elas. Essa viagem era a segunda parte de um intercâmbio, que tenho certeza ter sido um passo muito importante para despertar mudança em nossas vidas. Rosane Svartman articulou um projeto com a comunidade europeia para fazermos um intercâmbio com jovens estudantes de outros países. E a coisa aconteceu. Em janeiro, eles vieram para cá. E foi talvez a minha primeira grande experiência de vida, socialização, tolerância. No projeto havia muito mais do que fazer cinema. Éramos jovens de cinco países diferentes: Brasil, Portugal, França, Alemanha e Colômbia. Embora muito diferentes, as angústias humanas são as mesmas, por isso devemos nos ajudar. Era carnaval no Rio. Tenho certeza de que ficou gravado na memória afetiva de todos e de que essa experiência fez diferença na maneira dessas pessoas verem o mundo. Foi troca de tudo. Havia os estudantes de circo do Chapitô, os de comunicação colombianos, os não sei bem o quê alemães e um único estudante de cinema, um francês, que por pouco não casou no Brasil (Sabrina Rosa e Arnaud Bouquet namoraram durante este intercâmbio, e por meses depois) e por conta disso ele faz parte de nossas vidas até hoje. Essa viagem foi tão forte culturalmente para o grupo, que percebo o salto na qualidade dos espetáculos que foram montados logo a seguir. Estivemos em Portugal durante a Expo’98 na Feira de Cultura e Arte Mundial. Assistimos a espetáculos incríveis. Grandiosos. Assistimos com Guti ao espetáculo “Ombra” (1998) sobre o poeta Federico Garcia Lorca, que foi apresentado no pavilhão da feira. Passeamos por Lisboa, discutimos seus efeitos, suas influências que nasciam ali, na cabeça do diretor e seus atores, para a primeira montagem da peça “É proibido brincar”, montada no mesmo ano. Lisboa, por conta da feira, abrigava a Europa inteira, foram dias inesquecíveis.


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Depois de voltar de Portugal, muito influenciada pelas moças europeias, passei tempos pintando meus olhos de preto com contornos extensos, que depois evoluíam para azul, caso estivesse com um humor melhor. E foram esses os amigos que me amaram assim mesmo. Sinto falta de termos mais tempo juntos hoje e de desenvolvermos mais projetos. Estive com essas pessoas durante uns nove, dez anos de oito a doze horas por dia, fora as noites. Muito mais que na minha própria casa. Mas fico feliz de compartilharmos as festas de aniversário de nossos filhotes que são contemporâneos, e que acredito serem uma geração com muito mais oportunidades. Tenho a certeza de estarmos fazendo nossa parte para que isso aconteça. Não chamamos atenção por acaso. Nós não éramos o único grupo popular de teatro no Rio, mas estávamos longe de ter o cenário que temos hoje com ONGs que trazem o teatro como o carro-chefe das oficinas em áreas carentes. Tinham poucos grupos que trabalhavam como nós e nenhum tinha a sua sede dentro de uma comunidade, com espetáculos tão bem cuidados. Mesmo depois de ter me afastado dos palcos do Nós, para trabalhar através da lente da câmera, ainda são muitos desses nomes os envolvidos nos projetos que realizo. Depois desses meus amigos, irmãos de sonhos, vieram muitos outros, que também colaboraram, doaram suas vidas, fizeram e ainda estão fazendo história para que a ideia de Guti não se perca jamais. Dentro do grupo, sobre os amigos que dividiram a vida comigo por esse tempo, só tenho a dizer que me ajudaram muito e que foram ferramentas para que eu não desistisse de lutar pela revolução da espécie. Ficamos famosos por namorarmos entre nós mesmos. Eu sempre justificava que não nos sobrava tempo para namorar, com tantas horas de trabalho por dia e nos dias de folga tinha sempre uma apresentação, ou uma festa aonde íamos juntos, que acabávamos namorando


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por ali mesmo. Essa galera era quem, junto a Guti, sonhava um projeto, desmitificava, ensaiava, criava recursos para que se realizasse, varria da plateia ao camarim, lavava o banheiro, recolhia o lixo da escada, quebrava pedras, virava laje, costurava roupas, construía refletores e subia no palco sem ganhar nada. Por acreditar que pela arte vale qualquer sacrifício. E que ela tem poder de transformação. Para quem acha que o nosso trabalho acabava por aí está muito enganado. Era preciso não só criar e pôr o espetáculo de pé, mas também arrumar um palco para recebê-lo, ir aonde o povo está e fazer o povo querer assistir a peça, ensinar o povo a gostar de teatro, de cinema, ensinar o povo a apreciar uma exposição. Será que isso é possível? Muitas vezes nos perguntamos se era essa mesma a nossa missão. Espetáculo no sábado às 20h. Chegada no teatro às 14h, limpa tudo, arruma, se veste, pega os instrumentos, segue a rua gritando e batendo tambor: “Machadiando!!!! Três histórias de Machado de Assis. Não percam. Sábado, hoje, às 20h, domingo às 19h! Venham. Machadiando!!!” Ou “Nós do morro. Vidigal. Espetáculo Abalou. Tem funk, tem traição, tem briga, tem romance! Nós do Morro. Vidigal. Abalou!!!” Nos dias mais empolgados fazíamos pequenas cenas ou alguma coreografia. Era muito trabalho! Fomos também taxados de esquisitos. Os playboys, os que gostavam de coisa de rico (arte no nosso país é coisa de rico), os que rejeitavam a favela. Porque ir ao baile para o Nós passou a ser escasso, não porque o funk fosse rejeitado, mas ele era mais uma cultura a ser absorvida dentro de toda efervescência musical na década de 1990, em que passamos das festas de rock no Circo Voador para a Lapa, inaugurando o sucesso do Zoeira — a festa Hip-hop. A Fundição Progresso com shows de todos os tipos. Queríamos estar em todos os


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lugares, nas estreias na CAL (Casa das Artes Laranjeiras), no centro de artes Calouste Gulbenkian, no Tablado, nas festas, nas noites de sinuca e nos forrós. E também muitas vezes no forró da garagem no sobradinho, parte mais alta do Vidigal, e depois descer a ladeira com o dia amanhecendo. Era preciso não só trabalhar, estudar, era preciso se infiltrar na sociedade, se inserir, ser aceito, se aceitar. Era muita coisa junto. A escolha de fazer teatro não me ajudou com o estudo formal, nisso minha mãe tinha razão. Assim aconteceu com alguns integrantes do grupo: muitos de nós não havíamos terminado o segundo grau e alguns estão até hoje nessa luta, ou acabaram fazendo escolas a distância. Dos que já haviam ingressado na faculdade, poucos chegaram ao final, e outros, como eu, que estavam tentando ingressar, ainda não conseguiram. Para o trabalho, naquele momento, era preciso que fosse assim, entrega incondicional. Para os mais jovens, isso foi diferente. Vários estão ingressando na faculdade do ano passado para cá, todos com aproximadamente 22, 23 anos. E os que perseveraram e estão prestes a se formar têm por volta de 28, 29 agora. A minha geração sofreu bem mais com isso. Eu já estava em idade de responder totalmente por mim, e tive, como vários do grupo, que bancar meu sonho. Alguns já tinham filhos, o que torna a situação ainda mais complexa. Não consigo imaginar se não tivesse sido assim. Nem quero. Não é fácil nascer artista. Mas o diferencial desse grupo foi formar artistas diversificados, com expressão em várias áreas. Agora, com 24 anos, o Nós do Morro ainda sonha em ter como pagar a companhia de atores para desenvolver sua dramaturgia. Sonha em realizar projetos que sejam culturais, educacionais e puramente artísticos, porque seus indivíduos se juntaram para transformar com sua criatividade e sua alma de artista o mundo em que vivemos,


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transformando-se a si próprio. E ainda há muito o que fazer. Por meio da história de cada um, busco refletir sobre como caminhamos até aqui, o que conquistamos e o que precisamos ainda conquistar. Aos que ainda lutam, digo: chegamos apenas na metade do caminho. É preciso a cada dia procurar saídas, e, quando perceber que não há mais para onde ir, devemos ser fortes. Nasci em um país pobre, em família pobre, e acredito que a transformação da sua história depende do esforço que cada indivíduo precisa fazer para estar vivo, e estar vivo não quer dizer apenas abrir os olhos, comer e trepar. Quer dizer estar insatisfeito com a condição não digna de vida. E se libertar do coma que se encontra o Brasil. Não podemos achar normal um lugar onde moram sete, oito, 12 pessoas e no qual a maioria é criança, tem apenas um cômodo, e a mãe dessas crianças está grávida novamente. Mulheres em coma com imensas barrigas que esperam novas crianças, homens em coma com seus copos de traçado e cerveja, crianças ao Deus dará em pré-coma. Por meio da arte fui despertada e tenho obrigação de despertar. Hoje em dia, é preciso muito mais para fazer qualquer pessoa acreditar que ela pode sair deste estado, que é possível mudar seu destino, se tudo que ela vê a sua volta é miséria. A única chance é se alimentar de sonhos, de imaginação. No meu caso, e de meus amigos, deu certo. Aos poucos, esses sonhos vêm se tornando realidade. Porque tive muita sorte de me juntar aos que não se encaixavam muito bem nos padrões que o mundo determinava: os contestadores, os lunáticos, os pervertidos, os homossexuais, os sonhadores, os comunistas, os ativistas, os pensadores, os desregrados, nós, os artistas. Sou feliz de ter encontrado vocês, amigos, e de ter podido então realizar planos, que sonhei em cima


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de árvores quando pequena. Foi com esse grupo e por meio dele que ganhei voz. E pretendo não mais me calar. Então, todos em roda e de mãos dadas, olhos nos olhos: Meerdaaaa! E nós vamos seguindo...


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Cap.09

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Estar fora do espaço da favela, apropriar-se da cidade como um espaço único. Isso é uma conquista alcançada lentamente pelo jovem favelado, que, em geral, se sente inferiorizado pela maneira que está vestido, por não ter dinheiro para consumir coisas ou que lhe permita entrar em lugares privados. Alguns vão permanecer sem conhecer espaços diferentes ou rejeitando-os por não estarem acostumados a eles. Outros só se sentem à vontade quando estão dentro de seu próprio espaço ou em outra favela que vai lhe trazer o conforto da semelhança. A primeira vez que fui sozinha até o Leblon foi comemorado. Tinha 10 anos e fui autorizada pela minha mãe, com milhões de recomendações. Devia pegar o ônibus no ponto e a encontrar em seu trabalho, que ficava na Aperana, primeira rua após a Niemeyer. Assim fiz e deu tudo certo, embora o coração estivesse disparado. Durante minha infância e adolescência pouco circulava pela cidade. Primeiro, quando morávamos em Maricá, passeávamos sempre com meu pai pela cidade. Mas, assim que mudamos para o Rio, ele se casou e logo sua mulher engravidou. Um bebê novinho e o aumento da família fizeram com que meu pai diminuísse os passeios. Como eu estudava no próprio bairro, minha vida estava por aqui. Meu espaço de circulação era Rocinha, 164


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Vidigal, Leblon, Maricá e Itaboraí, para onde haviam mudado meus avós. Durante esse tempo, os únicos passeios diferentes eram o Saara, no Centro, uma ou das vezes por ano para comprar roupas de aniversário e para o Natal. Também ia com a família de minha amiga vizinha às festas do Clube Piraquê, na Lagoa, dada aos funcionários. E também ao Tivoli Parque, que até os 16 anos, uma vez por ano, arranjávamos uma grana para ir. Minha mãe havia ficado sócia do Clube do Flamengo, um título comprado em conjunto, e chegamos a ir algumas vezes, mas passar o dia no clube saía muito caro, e entre ir à praia que estavam todos os meus amigos e ir ao clube — onde na maioria das vezes você tinha de esconder que morava no Vidigal, caso contrário seria muito difícil de fazer amizade com os moradores do Selva de Pedra —, a praia sem dúvida era uma opção melhor. Sair ou não da favela está totalmente ligado a ser aceito ou não. E ser aceito sem estar dentro do grito da moda para um adolescente é impossível. É preciso ter o tênis que todos usam, o jeans, a marca. Ao completar 14 anos, passei a estudar em Copacabana, e essa relação com os espaços da cidade se expandiram. Tinha amigos em outros bairros, era convidada para festas em outros lugares e também frequentava as matinês, em especial, do Scala — a Babilônia. Aonde iam os adolescentes do Rio. Não era simples conseguir dinheiro para fazer um programa como esse, que acabava tendo intervalos de dois, três meses ou mais. Economizava o dinheiro do lanche na escola, descia por trás ou passava por debaixo da roleta do ônibus para economizar a passagem. Valia qualquer sacrifício para juntar o dinheiro de uma matinê. E quero que fique bem claro: a economia era para o dinheiro da entrada. Na maior parte das vezes, o trajeto Vidigal-Afrânio de Melo Franco (rua do Scala) era feito a pé na ida e na volta, e sem dinheiro nem para tomar água.


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Mas meus fins de semana habituais eram em festas, no baile, ou simplesmente na rua jogando conversa fora sem sair do Vidigal. Já com 16 anos, cursava o primeiro ano do segundo grau, que hoje se denomina ensino médio, pela terceira vez, e nem eu entendia o que havia acontecido comigo. Não estava acostumada a tirar notas baixas, mas foi apenas uma fase rápida da adolescência. Estava ali, ainda no primeiro ano e na segunda escola. Mudar de escola me fez interagir com outros bairros, mas é muito difícil você se enturmar, fazer amizades. Na escola você tem amigos, mas alguns deles só estão com você durante as aulas. O seu espaço é mesmo a sua rua, o seu bairro. Sempre sonhei em viajar. Tínhamos, eu e minhas amigas mais íntimas, longas conversas sonhando com os países que conheceríamos, as cidades, mas não tínhamos um plano concreto de como isso iria acontecer. Como sair do Vidigal e fazer uma viagem? Que tipo de emprego deveria ter para conseguir isso? Não tinha ideia ainda. Já era adolescente e a única viagem que fazia era para a casa de meus avós e para a Aparecida do Norte, em excursão. Embora meu pai sempre tenha prometido férias na casa da vó na Paraíba, isso até hoje não aconteceu. Gostava de olhar revistas de viagem. Comecei a colecionar a última folha de um jornal que dava dicas de lugares próximos e baratos e a perturbar a minha mãe com pedidos de viajar com meus amigos. Ela não gostava da ideia e não deixava. Para que eu viajasse sem ela, era preciso ter pais responsáveis por essa turma. Durante esse tempo, viajava em pensamentos enquanto pegava sol e mirava o mar na praia. Estudava na medida do possível, mas em uma escola sem muitos atrativos, exigiam pouco de mim. Tirava boas notas, mas não fazia muito esforço para isso. Então era possível para mim em um dia acordar, ir à praia, voltar, arrumar a casa, ir à escola, e a noite fazer os deveres e descer até a escada no pé do


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beco para ver a vida. Esse é o momento temido por todos os pais. O momento em que você quer ver a vida. Porque na vida do beco rola de tudo. Só podia descer quando minha mãe chegasse do trabalho. Eu descia, alguém avisava que ela estava vindo. Eu corria. Ela chegava, eu descia de novo. Mas nunca fui de mentiras graves. No tempo em que a Martha morou na casa de meu pai, foi a primeira vez que fiquei sem o convívio dela. Passamos a nos ver na rua. E fazer coisas juntas. Festas. Shows. Eu dizia em casa que estava com ela. Minha mãe deixava. Fiz amigos envolvidos com a arte, integrantes do teatro Nós do Morro. As festas eram como a de qualquer lugar onde se juntam vários atores. Muitos textos de improviso, poesia, muitas cenas, muita música. Para mim não pode faltar Legião Urbana, Cazuza e Marina Lima. No dia que o Cazuza morreu, havia comprado um ingresso para ir ao show do Legião no Jockey. Era um sonho. Estava juntando dinheiro há um bom tempo. Já tinha perdido o show no Maracanãzinho, não podia perder esse. Acordei cedo, fui comprar o ingresso e voltei logo para começar a encerar a casa e deixar minha mãe contente. Liguei o rádio para abafar o som da TV do vizinho. Tocava Cazuza, curti. Tocou três músicas seguidas, intervalo. E anunciou a morte dele. Eu rodei na casa. Nossa, que tristeza tremenda nesse dia. Quem mais falaria por mim tudo o que desejava falar? Éramos jovens de muitos lugares nesse dia, nos igualamos na dor de perder Cazuza e na alegria de poder dividir essa dor cantando com o Renato Russo. Quem esteve nesse show sabe o que foi. Muita confusão, muita euforia, muita baderna, muita energia também. Pessoas corriam por cima dos carros em frente à Praça Santos Dumont, no Jockey. Vivia essas experiências e, ao mesmo tempo, quando descia para o batepapo no beco, a maior parte dos meus amigos não estava


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interessada em ler poesia, ir a um balé, à Quinta da Boa Vista de graça, ou a um show de MPB no parque Garota de Ipanema, no Arpoador. Na vida real, aos 17 anos, várias de minhas amigas eram mães. Não estavam estudando, tinham ainda mais dificuldades financeiras que eu, já eram consideradas adultas. Não queria esse destino. A favela é até hoje muito machista. Há vinte anos então... Era um mundo confuso para se descobrir, os anos de minha adolescência. Havia entre os artistas a pregação pela liberdade, e a sociedade ainda reprimia demais as pessoas. Escolhi a liberdade dos artistas, que quer dizer para mim, antes de tudo, disciplina. Na minha adolescência, o Vidigal tinha artistas que eram ídolos internos, que cantavam suas próprias canções e canções populares que lotavam o barraco. E foram esses artistas que impulsionaram as ideias do Guti para formar o teatro do Nós do Morro. Assim que comecei a trabalhar, ganhei a liberdade de viajar, por poder financiar isso. Não precisava mais pedir dinheiro aos meus pais. Ao meu pai, na verdade, até hoje. Uma compra, um biquíni novo. Logo as páginas que colecionava dos jornais começaram a ter utilidade, e aos poucos fui conhecendo o entorno da cidade, o estado do Rio, a Região Serrana, a Região dos Lagos. Viagens se tornaram meu principal objetivo. O momento de arrumar minha mala era aquele que me sentia mais feliz. Minhas metas eram trabalhar e juntar alguma graninha para ir a shows e nos feriados, férias e, às vezes, até mesmo em um fim de semana comum fazer uma viagem rápida e barata. Búzios, São Pedro da Serra, Angra, Ilha Grande, Lumiar, Cabo Frio, Arraial, Visconde de Mauá, Penedo, de mochila e barraca nas costas, dinheiro contado para passagens e um drinque à noite. A comida devia ser feita no fogareiro que era utensílio indispensável. Ficava pouco no Vidigal. Até que veio o convite para


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entrar no teatro e isso me fez ter menos tempo para as viagens, que passaram a uma, duas por ano. E o teatro me ajudou mais uma vez: ao ficar no Rio por mais tempo, pude me relacionar mais com a cidade que passou a ser uma só para mim. Ao contrário da minha adolescência, que mentíamos sobre onde morávamos na matinê, no parque ou na porta do cinema. Recordo-me de ter a partir de então muito orgulho do Vidigal, que para mim tinha identidade. Não era mais uma comunidade que gerava apenas notícias sobre o tráfico de drogas. O Vidigal era uma comunidade diferente e isso me dava segurança de me afirmar como pessoa do bem. Naquela mesma época, na praça XI, surgia o grupo do Neco (Ernesto Piccolo), que ensaiava no Centro de Artes Calouste Gulbenkian. As aulas eram de graça, o que atraiu jovens de várias áreas carentes da cidade, e também por ser no centro era próximo para quem estava na Zona Norte. Um pouco antes do Nós do Morro lançar o “Abalou”, quando ainda ensaiávamos a peça, Neco montou “Funk-se” e foi um grande sucesso. Eles também tinham as características de serem muitos no palco e misturarem números musicais às encenações. Rosane Svartman era amiga do Neco e a aproximação entre os grupos foi feita. Foram muitas festas, e passamos a frequentar todas as estreias deles e eles as nossas. Ao nos misturar com essa galera — que já era bem misturada, por vir de todos os lugares —, nos enturmamos com a cidade. E isso fez diferença na nossa maneira de pensar e nas nossas expectativas de realizações, que não estavam somente dentro da favela. Considero que meu envolvimento com o grupo e minha conscientização como artista e como cidadã me entregaram o Rio e o mundo como espaço de pertencimento. Por meio do meu trabalho com cinema, fiz muitas viagens ao exterior. Sempre quando estou para viajar, penso


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nos papos que tinha quando adolescente, sonhando em conhecer esses lugares e achando improvável de acontecer comigo. Pude conhecer lugares sonhados como Paris, Madri e Londres. Mas ir a Berlim foi emblemático. Colocar os pés sobre o muro derrubado e saber que era preciso mais do que retirá-lo, pois vinha de um lugar que era murado invisivelmente, e o muro tem de ser retirado dentro de nós mesmos. Nessa minha profissão “cinema turismo” — nome dado por uma amiga de brincadeira pelo fato de meu curta-metragem “Mina de fé” ter me levado a muitos lugares —, me tornei diretora para o mercado de trabalho. O curta “Mina de fé” deu credibilidade às minhas ideias e mudou minha vida. Por meio do cinema, comecei a realizar o sonho de conhecer outro lugares. E quando surgiram as oportunidades, nessas viagens, conheci pessoas e aprofundei meus conhecimentos e minhas buscas artísticas. Fui convidada a participar de um festival de cultura brasileira em Berlim chamado “Brasil em cena II” e lá fui eu de volta a capital da Alemanha. Onde já havia estado, com o meu bebê, um ano e meio antes. Estava a convite da Fundación Heinrich Böll, que publica artigos sobre direitos humanos. Tinha como compromisso uma apresentação do filme seguida de debate. Na mesma sessão estava a jornalista Cristiane Ramalho, que havia conhecido quando ela ainda trabalhava na rádio Viva Rio. Tivemos uma sessão de muito sucesso, com bom público e debate caloroso. Era uma sessão de dois filmes bem distintos: “Mina de fé”, com sua temática pesada de amor e tráfico de drogas, e um documentário de nome “O outro olhar da favela”, com personagens muito divertidos e carismáticos. Foi uma junção e tanto, deu muito pano para manga e o papo rendeu debate até depois no bar.


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Nessa viagem, fiz também colaboradores e devo dizer com muita identificação: Sabrina e Juliane, que me salvou dos policias da divisão de tráfico de drogas no aeroporto. Ele revistou toda a minha mala, por considerar que vinha de um país de risco. Não é fácil ouvir isso de seu próprio país. Ainda mais para mim que tenho um sentimento de amor forte pelo Brasil e grito com prazer o meu nacionalismo. Deu-me uma sensação de desamparo. Mas Juli estava ali pontualmente, como sempre, para me salvar, porque nas minhas primeiras lições de inglês não aprendi muita coisa para sair de situações como essas. Na fundação, conheci a Nete, uma alemã com uma filha que fala um português com sotaque delicioso do Recife, e a Iciar, que já se comunicava comigo por e-mail há algum tempo. Todos estavam preocupados em fazer nossa estadia, minha e da Carolina — uma estudiosa de direitos humanos que falaria sobre sua futura publicação chamada “As milícias no Brasil”, assunto muito delicado e que exige coragem —, um misto de proveitos profissionais e de diversão na cidade que desta vez apresentava-se uma Berlim diferente da que havia conhecido. Estava sol, era o começo do verão, as pessoas na rua, alegres, as crianças brincando nas praças, os gramados dos parques lotados, a beira do rio com muitas pessoas, que como lagartixas se prostravam ao sol a fim de esquentar o corpo de tempos gelados. Devo dizer: a cidade é linda. Ainda bem que retiraram dela o muro que em nada combina com aquele lugar. Já no dia de vir embora, olhava da janela do hotel e sentia muitas saudades de meu bebê. Nós, mães, somos mais dependentes dos filhos do que eles de nós. É fato. Lembrava-me dos dias que passei em Berlim com ele, em novembro de 2006 e me deliciava com os detalhes que mudam completamente o ritmo de um lugar.


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Minha memória era de uma manhã fria. Olhava pela janela e me preparava para sair. João Pacífico, meu filho, estava com seis meses. Havia acordado cedo para mamar e naquele momento dormia tranquilo — como costumam dizer: o sono dos justos. Minha janela dava para o pátio do hotel, onde algumas pessoas atravessavam em direção à saída. Abri discretamente a janela a fim de verificar qual era a temperatura. E fechei imediatamente porque meu rosto foi invadido por um frio que eu desconhecia e meu nariz rapidamente ficou vermelho. Fiquei por ali, com meu bloco de notas, velando o sono do Pacífico e prestando atenção nas pessoas que passavam no pátio. Para algumas até inventei histórias, que, em sua maioria, começavam com meu espanto e admiração por alguém que se põe na rua tão cedo em uma temperatura abaixo de dez graus. Cheguei a Berlim à noite, só vi a cidade passar através do vidro do carro, no caminho que fiz do aeroporto ao hotel. Tive como parceiro de viagem, além de meu bebê delicioso, um xará do meu filho. João era um dos curadores da mostra brasileira de curtas-metragens dentro do festival Interfilm, a qual fui convidada para apresentar “Mina de fé”. Conhecemo-nos no aeroporto e ficamos amigos rapidamente. Ele, mesmo sem prática com crianças, foi peça fundamental na viagem. Ao chegarmos, me lembro que falávamos sem parar, mas ao entrar no carro e percorrer as ruas, o Pacífico dormia e eu e João mudos, com os olhos grudados na janela. Eu a fim de registrar mentalmente todas aquelas imagens. E o João relembrando sua estada há meses atrás e pensando se talvez encontraria as mesmas pessoas, se seria tão legal como a primeira vez. Já eram nove da manhã. Mas a claridade parecia de seis, quase madrugada, e eu começava a ter vontade de acordar o neném e me aventurar com ele pelas ruas do lugar,



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que durante muitos anos foi, para mim, motivo de mitos e histórias de guerras. Pacífico finalmente abriu os olhos. Com a bolsa e o carrinho já preparados, saímos pelos corredores do hotel em direção ao restaurante onde tomaria café e teria as primeiras informações sobre o festival. É engraçado como bebês atraem a atenção. Uma mãe que viaja com bebê, sozinha então, torna-se quase uma supermulher. Foi assim que os olhares me receberam ao entrar no saguão e me dirigir ao balcão de informações. Ali recebi mapas, convites, programações e me comuniquei com os alemães com meu inglês tupiniquim, e claro, por isso, entrei para a lista de prioridades do hotel, todos foram amáveis e prestativos e a cada sorriso que o Pacífico dava, mais colaboradores adquiríamos. “If you need some help, just tell me.” Essas foram as palavras da recepcionista, ao me entregar o crachá. Eu sorri, agradeci e pensei: “Só chamar? Acho que falar vai ser minha maior dificuldade aqui.” Depois do café, nos aventuramos para a rua. Ao atravessar a porta, o frio era cortante. Conferi os agasalhos que cobriam o neném e segui pelas ruas de Berlim Oriental. Parece uma besteira dizer isso depois da queda do muro, mas não é. Ainda é visível a diferença dos dois lados da cidade. Tentei me entender no mapa, já que quem tem boca vai a Roma... E também a Berlim. Consegui chegar à frente do cinema que era a sede do festival. Preparando-me para entrar, conheci o primeiro brasileiro que iria fazer parte de meu grupo naquela viagem. Nunca o havia visto pessoalmente, mas conhecia seus filmes. Era o crítico de cinema e cineasta Kleber Mendonça, cara que muito admiro. Do tipo “quando crescer quero ser igual a ele”. Já sabia que ele estaria lá, pois lançava no festival seu novo filme “Noite de sexta, manhã de sábado”, que ainda não tinha tido oportunidade de ver. Tínhamos uma história juntos, pois no


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festival de Brasília, em novembro de 2004, quando o “Mina de fé” foi premiado com o Candango de melhor filme, ele estava também na competição e levou a melhor direção com o seu “Vinil verde”, que era considerado pelos críticos o favorito do festival. Eu havia assistido ao filme e devo confessar que foi considerado o melhor por mim também. Lembro da crítica de Eduardo Souza Lima, no Segundo Caderno, do jornal O Globo, indignado com a não premiação do filme de Kleber. Estava nervosa com esse encontro, é sempre um momento difícil encontrar pessoas que admiramos. Ele me reconheceu e veio falar comigo. Conversamos um pouco, e ele me ajudou a subir o carrinho do Pacífico até o segundo andar, onde era a sala de credenciamento. Conversamos muito. Claro que foi impossível não tietar, mas acho que tietagem é sempre válida, quando não é inconveniente, nem exagerada. Falamos dos filmes, ele — para minha surpresa — disse que havia assistido ao meu curta e que gostara muito. Achava um filme muito sensível, o que me fez adquirir autoconfiança para convidá-lo em sua primeira oportunidade no Rio — ele é de Recife —, a visitar o Nós do Morro, a participar de nosso cineclube com seus filmes e a bater um papo com os alunos depois. O nosso papo rendeu, chegaram outros brasileiros que estavam no festival: João, que havia sido meu companheiro de viagem e Karen Black, que já conhecia por ter montado o primeiro filme de produção do Nós do Morro “O jeito brasileiro de ser português”. Também estavam Lis Kogan, responsável pelo prêmio Porta Curtas (site da Petrobras) e também a primeira incentivadora da carreira do ”Mina de fé”, que conheci no primeiro festival que participei, que foi o mesmo em que ganhei, o Festival Internacional de Curtas de São Paulo, e a Déborah, que conhecia naquele momento. Todos fazem parte do Cachaça Cinema Clube, cineclube que acontece uma vez


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por mês no Cine Odeon. Talvez o mais badalado da cidade e que tem uma curadoria séria e respeitada. Estávamos todos animados de estar ali. Assistimos a uma sessão de cinema e depois buscamos pela rua um lugar para almoçar. Entramos em um restaurante indiano de decoração incrível, funcionários simpáticos e boa comida com muito tempero. O almoço/ jantar durou. Falamos de muitas coisas, e todos estavam encantados com o Pacífico que até o momento se portava muito bem. Nesse jantar, a Karen contou que estava grávida, e nos enveredamos pelas questões cinematográficas, maternais, profissionais e principalmente as dificuldades da mulher que tem filhos nos dias de hoje. Mas tenho certeza de que o fato de estar ali com o Pacífico a encorajou. Quando saímos do restaurante o relógio marcava 17h, mas a noite já havia chegado. Coloquei o Pacífico em um suporte que fica preso ao corpo, passei por cima dele duas mantas além de seu casacão, que o transformava em uma espécie de boneco de neve. E saímos a passos muito rápidos em direção ao hotel. Essa era uma viagem diferente, meus passeios aconteciam de dia e ao final da tarde corria para o hotel, sem nenhuma balada, daquelas que os cineastas adoram, após as sessões. Mas assistimos a filmes, o Pacífico ainda mamava, e eu então guardava esse momento para a entrada nas sessões. Depois ele sempre tirava um cochilo e eu podia ver os filmes. Não era o primeiro festival internacional que ia. O primeiro foi em Clermont-Ferrand, no qual meu curta foi o único filme brasileiro a participar da mostra competitiva. Uma felicidade, o filme estava fazendo história. Essa viagem também foi muito importante, tive o prazer de conhecer Cao Guimarães, um cineasta mineiro com um trabalho de documentários e videoarte muitíssimo


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interessante que sempre me emociona e me diz muito. Eduardo Cerveira, curador de vários festivais nacionais e internacionais e pessoa boníssima, que em muitas sessões me ajudou traduzindo os filmes e também intermediando conversas com outros cineastas, e Aílton Franco, produtor do Curta Cinema, festival que havia premiado meu curta. Prêmio esse responsável pela indicação do curta na participação deste festival, que é considerado o mais importante festival de cinema de curta-metragem mundial. E Júlia, uma brasileira, que mora em Paris já há algum tempo, trabalha no festival de Clermont e havia sido indicada para ser minha intérprete nas mesas de debate. Era outra turma de brasileiros, mas os sentimentos eram os mesmos: divulgar a cultura cinematográfica do Brasil, ver bons filmes, filmes curiosos, novidades e conhecer gente. Nesta viagem que fiz, em janeiro de 2005, embora em mim já carregasse a vontade de ser mãe, ainda não havia planejado ter o Pacífico. Numa das noites após uma sessão, em que nos preparávamos para mais uma festa daquelas — que além de muitos filmes incríveis, também são incríveis as festas em Clermont —, em um papo me lembro de ter surgido o assunto filhos. E fora aconselhada naquele momento, até mesmo porque a carreira do filme estava começando e se mostrava promissora, a não engravidar. Lembro de a Julia dizer que, por ela morar lá fora e não ter com quem contar para possíveis ajudas, era muito difícil de ela querer engravidar. Mas olhei para o namorado dela, imaginei a mistura e pensei: Nossa, serão filhos lindos! Mulher quando começa a ter esse tipo de papo é porque está louca para ter filhos, mas naquele momento ainda estava apenas namorando o Gustavo, pai do João Pacífico, com quem hoje sou casada. Na época estava



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há três meses com ele, apaixonada, aos 30 anos. Olha o perigo. E o pior: sem emprego fixo. Nem eu, nem ele. Artistas. Sabe como é. Então, apenas concordei: filho para mulher que quer trabalhar, construir uma carreira é muito difícil de conciliar. Saímos dali e fomos para a festa. Muita diversão, bons filmes, boas companhias e longas caminhadas das festas até o hotel sobre a neve. Numa dessas voltas, em companhia de Cao Guimarães, que deslizava na neve e mal conseguia ficar em pé, pois usava sapatos que não davam nenhuma estabilidade, dizia-me: “Um cineasta precisa de sua câmera e temos de agradecer os tempos modernos, em que você saca o celular e tem a possibilidade de fazer um registro. É realmente incrível.” Ele mostrava sua pequena câmera fotográfica, e me falava também de suas funções. Mais um deslize, e eu já ficava preocupada e o ajudava a não cair. Estava com uma bota emprestada de uma amiga: uma bota linda, sem salto, mas com um solado muito pesado. Aquele tipo de sapato que você anda e exercita a panturrilha. Mas ao sair naquela noite descobri qual era sua principal utilidade: andar na neve. São essas algumas lembranças deste festival em Clermont-Ferrand. Voltando ao Brasil, a vida continuou e a vontade de ter filhos foi maior que os obstáculos que pudesse atravessar. Engravidei oito meses depois. Quando se está grávida dá um medo muito grande. A primeira coisa é pensar como continuar a trabalhar, a produzir, a criar. Você imagina que o bebê vai te consumir, que todos os momentos serão para ele. Então viajar com o Pacífico era também mostrar, para mim, que é possível. E para isso você precisa de colaboradores. E disso não posso me queixar. Os dias que se seguiram, e não foram muitos — fiquei em Berlim quatro dias, sendo que no último dia deveria estar no aeroporto às 15h —, foram dias de cinema, passeios turísticos pequenos e corridos, jantares em


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lugares esfumaçados; coitado do Pacífico! Muito bom papo, doces gostosos e corridas agarradas no neném em seu baby-bag e o alívio de chegar ao hotel. Na manhã do último dia, ainda não tinha visto nenhum pedaço do muro. Olhei o mapa do metrô que estava perto. Saímos cedo e fomos até lá. Ele, pendurado, olhava tudo. Ver o muro de perto é emocionante. Você sente o peso da história. Ela está ali, forte, presente nas muitas energias geradas. Mostrei para o Pacífico e conversamos um pouco. Fomos nos abrigar num prédio vizinho, onde funciona um pequeno museu do monumento, com mais ênfase na lojinha que na história. Eu, como boa turista, procurei por ali o que ainda pudesse ter de barato para levar de lembrança aos amigos. De pedacinhos do muro a postais incríveis. Um deles me fez lembrar na hora de uma grande amiga e parceira, Marina Vieira, no qual escrevi: “Para a mulher que promove encontros impossíveis.” O postal tem o muro ainda com arames farpados, e duas mães segurando crianças que se dão as mãos, uma de cada lado do muro. É uma imagem muito forte. Conheci a Marina em uma dessas viagens. Já havíamos participado da mostra que ela promove há vários anos, a Tangolomango, com curtas, videoinstalação, pintura. Mas nunca tinha estado com ela. Marina me ligou e me convidou para ser a representante da mostra Tangolomango no Festival de Filmes de Amiens, com vários filmes do grupo Nós do Morro. A viagem seria em dezembro, e perguntou se eu topava. Topei na hora. Estava grávida de três meses, na viagem seriam quatro. E achei melhor falar com um médico antes. Então liguei de novo para Marina e pedi que esperasse eu falar com o médico, para ela acertar a passagem. O médico liberou e fomos para Amiens. Éramos a Tangolomango — Mostra de Curtas Brasileiros de Realizadores da Periferia.


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A maior parte das vezes que estive na Europa foi durante invernos rigorosos. Os melhores festivais são feitos nessa época, até mesmo para movimentar as cidades. Costumo brincar que até alegria de pobre tem de ser sofrida! Descemos em Amiens, eu, Marina e Andréa Cals, que já conhecia de nome e tinha na memória sua voz, por ser a apresentadora do Festival de Cinema do Rio. Tinha certeza de que a viagem seria, com aquelas duas, no mínimo, divertidíssima. Voamos pela Varig, já quase falida, e sempre lembro que o que me salvou foram bananinhas desidratadas que estavam na minha mala de mão, pois com quatro meses de gravidez e uma fome de leão, me negaram no voo uma repetição do pão. Quando disse que estava grávida me trouxeram uma barra de cereal. A empresa já estava abandonada e com muitos problemas. Chegamos no dia de abertura do festival e nos apressamos para chegar à festa. Eu, de verdade, estava cansada, mas pensava nos quitutes que acompanhariam o coquetel. Ao chegar ao espaço principal que o festival ocupava na cidade, a festa era belíssima e como os franceses sempre estão no grito da moda, tínhamos um bufê chinês. Fui direto ao arroz, era algo que considerava seguro e depois me entretive em uns bolinhos com rabinhos de camarão para fora, que me fizeram passar muito mal. Só me senti melhor após uns bons goles de Coca-Cola. Esta foi uma viagem de cinema, gastronomia, turismo relâmpago e muitas ideias de projeto a serem realizadas na volta. Por isso que estar em Berlim, principalmente no dia de visita ao muro, me fez lembrar muito a Marina. Voltando à Amiens, viajamos em um trem que nos levava até Paris, uma cortesia do festival — já que estávamos a uma hora e trinta da cidade-luz —, que fez questão de nos proporcionar esse luxo. Partimos cedo e tínhamos muitos lugares a percorrer e pouco tempo. Acho que podíamos até mesmo entrar para o livro dos recordes. Fizemos Louvre, Dorsey, Eiffel, lojas na Champs-Élysées, George


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Pompidou, com direito a visita a uma curadora de outra mostra e entrega de presentes a chef de cozinha do restaurante Favela Chic, que matou minha vontade de comer feijão. Foi mesmo muito legal. Também muito bom foi o encontro com o Sergio Machado, diretor do longa “Cidade Baixa”, que estava lá para defender um novo projeto com o objetivo de angariar fundos internacionais. Já conhecia o Sergio e agradeço a ele por ter ganhado o papel da Rosa em “O primeiro dia”, de Walter Salles e Daniela Tomás. O Sergio era assistente de direção do filme e viu a Rosa em mim. Tínhamos um interprete português chamado Luiz, que adorou um de nossos filmes: “O jeito brasileiro de ser português.” Ele era divertido, me ajudou muito. Quando a Marina, nossa intérprete oficial nas ruas, não estava, era ele quem me livrava de embaraços, mas às vezes não falava exatamente o que eu queria dizer. É difícil ter que ser interpretada e ver, algumas vezes, suas palavras serem um pouco deturpadas, principalmente eu, que gosto tanto de falar, de expor minhas ideias. Isso é o que mais me abalou em todas essas viagens. Preciso aprender uma língua estrangeira, se quiser mesmo continuar o trabalho que comecei e que, às vezes, tenho a impressão de ser a única coisa que sei fazer na vida. As viagens me fizeram perceber também que todos querem ver meu filme, mas querem ainda mais ouvir a menina que sai de uma favela no Rio de Janeiro, esse lugar que muitas vezes a violência domina. Uma mulher que faz cinema, é atriz, participa de um grupo, muda a vida de uma comunidade, de alguma maneira, e busca transformar também a vida de um país. O fato de ser mulher e pobre faz com que a minha trajetória pessoal, em algumas situações, desperte mais o interesse das pessoas do que o meu cinema. Isso sempre foi uma verdade e não é fácil para um artista ter de se impor sobre


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sua própria história, que já é tão incomum, e que periga se se tornar maior que sua obra. Para mim, a obra é busca. Sou reflexo das condições em que fui criada. E isso estará sempre permeando minhas escolhas artísticas. Mas serei mais feliz quando as pessoas me olharem sem espanto, como se eu fosse um ser de outro planeta, apenas por não possuir carro, conta personalizada em bancos e imóveis de veraneio. De volta ao Rio, depois de conhecer Marina, desenvolvemos um projeto, sendo para mim, o primeiro, usando como premissa a generosidade intelectual. Acho que antes de conhecê-la nunca havia escutado esse termo tão poderoso. Esse primeiro projeto juntou O Nós do Morro, a Cufa e o Nós do Cinema, hoje chamado Cinema Nosso. Foi muito especial, gerou filmes interessantes, discussões calorosas e muita cooperação. Não são fáceis e não são poucos os problemas de quem desenvolve algum tipo de trabalho cultural. Muitas vezes nos fechamos e perdemos o tempo da troca. Já no Rio, logo no início de 2006, e com a barriga de Pacífico de seis meses, iniciamos o projeto, que teria pausa para o desenvolvimento do roteiro e para eu parir e amamentar meu filho e voltar para as gravações com um bebê de quatro meses. E assim foi. Depois de dez meses sem trabalhar, apesar da sensação de resguardo de que nunca mais conseguiria fazer outra coisa na vida que não fosse dar de mamar, estava no set. Gravamos o filme durante as eleições e o Pacífico vinha se alimentar nos intervalos. Era possível ter vida profissional pós-parto. Por isso, ao olhar aquela foto das crianças separadas pelo muro, me encontrava pensativa, avaliando tudo. Retornaria para casa, com muitas coisas a fazer. Continuaria meus projetos e não cansaria nunca na busca pela minha inspiração artística, porque é dela que alimento a minha inquietude com as misérias existentes e que crio forças


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na esperança de mudar o mundo para que meu bebê tenha uma vida melhor. Fomos do hotel ao aeroporto com um motorista muito gentil, que fez questão de nos embarcar, deixando cada vez mais claro como é hospitaleiro o povo alemão. Já no aeroporto, o neném dormia no carrinho e eu voltava a procurar na bolsa o bloco de notas. Eram as impressões registradas, com um pouco de tristeza causada pelas impossibilidades de comunicação. Via meu bebê dormir, gostava de estar voltando. Sou apegada a minha casa, tinha saudades de meu marido, meus amigos, minha família e também porque a coluna já dava sinais de muito cansaço. Olhava o movimento e deixava meu ouvido se acostumar com os vários idiomas que enchiam o lugar. Quando estamos longe de casa é que melhor se revelam nossas raízes, nossa filosofia, pois precisamos nos encontrar no meio desse mar de culturas distintas, sem se fechar. Apenas se permitir ser quem você é de verdade. Em todas essas viagens sempre trago planos na bagagem de volta. Alguns deles já se concretizaram e outros estão a caminho. Viagens são os melhores momentos para se planejar o futuro. Conto essas experiências, porque elas mudaram minha maneira de me relacionar com as pessoas. Agregaram valores e saberes a minha vida, e fazem parte da minha personalidade, e se nunca tivesse sido encorajada a perceber que o mundo é muito maior e com horizontes muito mais amplos do que estamos acostumados, nunca teria atravessado o muro. É preciso atravessar o muro. Acreditar que ele não pode te impedir. E não impedirá. Por meio dessas viagens fiz amigos, firmei projetos, criei outros, dei sequência, em uma esfera muito maior, aos ensinamentos artísticos que acumulei no grupo — que no início era apenas da comunidade para a comunidade e passou a ser para o mundo. Sempre em exercício.


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Cap.10

Cinema, uma nova paix達o


Rosane Svartman e Vinícius Reis, estudantes de cinema, começaram a dar aulas de cinema para o grupo de atores de teatro. Eu me interessei rapidamente pelo roteiro. Queria escrever minhas histórias, achava também que aquelas aulas me ajudariam a entender o cinema. Ainda não sabia se realmente faria filmes, a ideia inicial era poder reforçar meu trabalho como atriz. Mas no meio desse processo veio a paixão pelo fazer cinema. No começo, as aulas aconteciam uma vez por semana, encontrávamos em um semana com Rosane e na outra com Vinícius. Era um mundo novo. Nas aulas do Vinícius, que assistíamos a filmes, o Guti trazia da sua casa uma TV e o recém-chegado ao grupo Gustavo Melo, esse vindo de longe e indicado pelo Cacá Diegues que, ao receber um fax do Gustavo pedindo ajuda para se tornar um cineasta, o incentivou a vir para o Vidigal, onde Rosane acabara de fundar um núcleo de cinema. Ele foi a primeira pessoa a procurar o Nós do Morro interessada em fazer cinema. Veio e trouxe de doação, claro que sem a mãe saber, o vídeo da sala, para nós usarmos nas aulas. Foram quatro anos de aula com os dois, com dois ou três workshops de fotografia, direção de arte e som até vivermos nosso primeiro set. Todo o restante havia sido aprendido com Rosane e Vinícius e com os estágios que estávamos fazendo desde que começamos a fazer aulas de cinema. 190


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O Vinícius trazia para a gente a parte histórica e Rosane nos apresentava a direção cinematográfica e o roteiro. Nós, os monitores, aproveitamos muito essas aulas, que eram também aplicadas aos textos teatrais que escrevíamos. Desde quando começara a ver surgir os primeiros textos mais elaborados, Rosane nos incentivara a inscrevê-los em editais, concursos ou o que aparecesse. Cacá faria o “Veja essa canção 2” e selecionava roteiros. Esse foi um dos nossos exercícios naquele ano. Um projeto de roteiro baseado em uma música popular. Quase todos fizemos e mandamos. Acho que o projeto não foi para frente e nem sei se o Cacá chegou a ler todas aquelas loucuras. Fomos apresentados às “Técnicas de roteiro”, “A jornada do escritor”, “A jornada do herói”, “Como se tornar um escritor”, “Da criação ao roteiro” — esses são alguns textos que lembro ter lido na época, e aos quais recorro com frequência. Também nos enveredávamos pelo mundo de Mário Peixoto, Glauber Rocha, Truffaut, Pazolini, Nelson Pereira dos Santos, Scorsese, Fassbinder, Buñuel e muitos outros que mudaram minha maneira de ver o cinema. O primeiro exercício de argumento Rosane nos passou quando já tínhamos algum tempo de aula. Recordo-me de ter sido massacrada por ela. Não o considerou um argumento. Ela disse: “Está filosofando, não me conte o que não interessa, me conte seu filme, me conte em imagens.” Tenho tentado. E me lembro dessa frase toda vez que tenho de escrever um argumento. Ajuda-me a cair na real sempre. Rosane conseguiu, com uns amigos, umas pontas de negativos e propôs um exercício prático. Foram semanas de preparação e chegou o grande dia. Passamos dois dias filmando com uma bolex. Foi ótimo sentir o gostinho de comandar um set. O exercício foi revelado e


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gerou a maior decepção. Algumas das latas que usamos estavam já filmadas e filmamos por cima de um enterro do MST, ou coisa parecida. Mas não demorou muito e a sorte batia a nossa porta novamente. Eu trabalhava um roteiro chamado “Zé, o super-homem” e havia mais uns dois ou três sendo trabalhados por outros para serem enviados ao edital da Riofilme. “O jeito brasileiro de ser português” foi um dos escolhidos daquele edital. Tínhamos agora nosso primeiro set de verdade. Era um roteiro do Gustavo que, após quatro anos, ia ter sua primeira experiência como diretor. Reuniamo-nos para as leituras do roteiro e para formar equipe. Alguns de nós assumimos funções de suma importância e partíamos com tudo para nosso primeiro set. Gustavo convidou o Dib Lutfi para fotografar o filme e dar aulas para a gente no set. Ele aceitou e foi incrível tê-lo por perto. Eu que já havia me apaixonado por ele — após ter assistido um curta que conta um pouco da sua habilidade com a câmera —, fiquei feliz por estar ao lado daquela criatura incrível movida a paçoca, seu doce predileto. Assumi a assistência de direção apesar de não ter tanta certeza do que estava fazendo, mas logo descobri tudo direitinho no set. O filme levou um ano para ficar pronto e acredito que estreamos com muita qualidade. O Gustavo, que veio a fim de fazer cinema, estava conseguindo. Nós estávamos conseguindo. Era preciso acreditar e perseverar. Ainda no início do projeto “Noites do Vidigal”, Guti foi procurado por Kátia Lund e Fernando Meirelles, que lhe propuseram uma oficina e também a preparação de alunos para compor as turmas. Preferencialmente negros, de comunidades ou instituições que abrigam menores. O Guti convidou à mim e ao Luciano Vidigal para ajudálo nesse trabalho. Foram uns oito meses de projeto no total. Eu e o Lu visitamos mais de cinquenta lares,


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instituições de todos os tipos que trabalhassem com menor e muitas comunidades. Testamos uma média de três mil meninos. Às vezes, testávamos as meninas, se eram poucas, para que não se decepcionassem, mas sabíamos que não fariam a oficina. As turmas seriam só de meninos. Depois de selecionados, uns quatrocentos meninos fizeram as oficinas que tinham carga horária de cinco horas de aula por semana durante quatro meses e não podiam faltar. Mas ninguém queria faltar. Lembro-me de ter passado o dia inteiro na Cidade de Deus fazendo os testes e não acho que estavam todos muito empolgados com a possibilidade de se filmar o romance de Paulo Lins, que já não era unanimidade na Cidade de Deus. O Leandro Firmino da Hora, que veio a ser o Zé Pequeno, e que de fato teve a vida alavancada após fazer o filme, não queria fazer o teste. Veio acompanhando o irmão. Eu insisti muito para que ele fizesse, eles eram muito parecidos e pensava na possibilidade de ter de montar famílias. No final, fez o teste e tivemos de procurá-los como loucos. O Fernando aprovou os dois, mas eles tinham colocado na ficha o número de um telefone público perto da associação, o que estava ali próximo na hora de preencher, mas a casa deles ficava muito longe do aparelho. Tivemos de voltar mais de uma vez até conseguirmos avisá-lo de que tinha sido aceito na oficina. A oficina oferecia vale transporte e lanche. Nesse momento trabalhavam no projeto eu, Mara, Lu Vidigal, Guti, Kátia Lund, Fernando Meirelles, Lia e Lamartine Ferreira, já como assistente de direção do filme. Quando o projeto das oficinas acabou, Fernando prometeu que assim que estreasse o filme se dedicaria a fundar um projeto para ensinar cinema a esses alunos da oficina, em especial, aos que não foram aproveitados para o filme, mas foram despertados para a arte. Era um dos acordos dele com o Guti. Foi então fundado o Nós do Cinema, que de tanto


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causar confusão, porque as pessoas achavam que esse era o nome dado à parte do Nós do Morro de cinema, o nome mudou para Cinema Nosso. Difundia-se no Rio um movimento de produção audiovisual da periferia. No Nós eu me dividia entre as aulas de teatro e a montagem de espetáculos, mas os trabalhos remunerados vinham todos das áreas de cinema e TV. Quando acabei a temporada de oito meses do “Noites do Vidigal”, precisava voltar a trabalhar. O Lucio conseguiu me encaixar na equipe da série “Cidade dos homens”. Estava trabalhando muito e precisava do trabalho para aliviar o tempo de dureza que tinha passado. Gustavo chegou em casa e me anunciou que estava aberto o edital da RioFilme e que eu deveria inscrever de novo o roteiro. Eu, muito cansada e vindo de um ano exaustivo, já entregara os pontos, também porque sabia que naquele mês era impossível. Estava saindo de casa às 7h e retornando às 23h. Ele pegou um projeto que ainda era batido na máquina de escrever e prometeu me ajudar. Depois de umas duas semanas ele voltou a minha casa e me obrigou a ir com ele para o fechamento do projeto. Alegava não poder mexer sozinho em minha justificativa. Ele tinha digitado o roteiro, sinopse, orçamento. Sentamos juntos para fazer cronograma e justificativa e precisava assinar a documentação para ser entregue por terceiros. Fui para o set sem dormir no dia seguinte. E o Gus nos inscreveu. Foram, naquele ano, três projetos do Nós. Anos mais tarde casei com ele, mas o amor, acho que começou ali. A notícia de que o roteiro tinha sido premiado foi dada pelo Guti, ao telefone, quase histérico. “O prêmio é seu, o ‘Mina de fé’ será filmado.” Fiquei tão louca, não sabia o que pensar. É engraçado quando se ganha um prêmio de realização, e, ao mesmo tempo, se tem a sensação


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de que caiu numa cilada. O roteiro precisava de ajustes, estava grande para uma história tão objetiva. Você precisa resolver tudo. Você agora precisa fazer. Foi uma alegria! Dei a notícia para o meu pai enquanto tomava um café numa padaria na Rocinha antes que ele entrasse no trabalho. — Cinquenta mil? Mas por que eles te deram esse prêmio? — É um prêmio pelo roteiro que escrevi. — E você vai comprar uma casa? — Não, pai. Vou fazer o filme. — Boa sorte!

Rapidamente tive também de lidar com os negócios. Não é fácil administrar o dinheiro de um filme. Uma obra frágil que, dependendo das condições que forem impostas às filmagens, pode mudar. Vai saber aonde vai parar? O Lucio, que é um grande amigo e sempre comungou comigo a vontade de realizar projetos, garantiu que se fosse em janeiro ia dar tudo certo. Ele estaria de folga numa entressafra de filmes (estava trabalhando com o Lamartine direto), então seria certo, estaria no filme. A equipe, por necessidade, foi bem misturada. Mas a mistura se deu também porque nesse tempo havia feito alguns amigos aqui e ali e havia pessoas de lugares diferentes que eu acreditava no trabalho. Mas a maior parte era toda daqui. Um momento de muito orgulho na comunidade. Pude perceber isso nas duas vezes que armamos o circo grande no Vidigal. Todos gostam, porque isso não é comum. Todos sabem o esforço empenhado para isso. Comum são os gringos filmarem a favela. Nós pouco fazemos isso. Só fizemos teste para o personagem da Keite, a afilhada de Maninho, o dono do morro, casado com Silvana, que está grávida, mas com muito medo de contar para o marido, porque ele é um cara estourado, que não quer


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ter filhos. Ele está deprimido porque um de seus jovens soldados matou um policial para mascarar um roubo e teve de ser morto por ele. E Maninho pensava: “Isso não vai ficar assim, porque a polícia vai subir o morro para se vingar.” E o casal do filme tem, no máximo, 24 anos. Tinha, às vezes, arrepio nas canelas e pensava: por que tocar nesse assunto? Por que não contei outra história? Teria de lidar com todo aquele sofrimento, mas ao mesmo tempo era também a chance de falar. É difícil conduzir uma história sem ter um herói. E foram surgindo aos poucos os principais questionamentos. Recebemos Fernando Meirelles para uma entrevista, e a foto que faríamos na varanda do casarão — lugar com uma das vistas mais bonitas do Rio de Janeiro — tinha três dos principais atores do filme “Cidade de Deus”, integrantes do grupo: Roberta Rodrigues, Phellipe Haagensen e Jonathan Haagensen. Conversamos um pouco sobre o roteiro. — Está preparada? — Não sei. — Você humaniza demais seu bandido, ninguém está acostumado com isso. Vão lhe acusar de apologia, essas coisas. Tem que estar preparada.

Eu brinquei: “Só as cachorras, as preparadas...” Aos poucos tomava noção da história que iria filmar. Mas esses personagens, para mim, sempre tiveram mais vida do que as vidas que aparecem no jornal. Criamos um laço psicológico forte entre os dois. Uma história de amor adolescente, um envolvimento precoce com o tráfico e uma mulher omissa, que apesar de ver muita bandidagem, não tinha nenhum questionamento, nem com o próprio companheiro. Também fui muitas vezes criticada por isso. Mas sou muito racional e busquei um perfil que se permita esse tipo de omissão. Esse, eu sei, não é o perfil nem de 1% da favela, onde tem as mulheres


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mais guerreiras, as descendentes dos quilombos, dos canaviais, das rodas de samba e das crianças nas costas. Mas aquela história tratava-se dessa minoria. Não me surpreende ver um bandido humanizado. Claro que a violência cresceu e as armas ficaram cada vez mais poderosas, mas ainda tenho lembrança de um bandido — apesar de parecer loucura o que vou dizer — que respeitava os moradores a ponto de ser amado. Tinha em mim a memória dos caras que pela manhã levavam o filho à escola. Mas, até hoje, não compreendo como isso ocorre. Tenho dificuldade de entender a profissão de soldado seja ele de que lado esteja. Não compreendo realizar um ofício em que faz parte de suas funções tirar vidas. Levantar a arma e atirar em alguém. Mas os soldados existem e algumas pessoas parecem ter nascido para isso. Durante o trabalho de preparação para as filmagens, fiquei mais intensamente com o casal, que precisava criar uma intimidade. Também fizemos encontros com todo o elenco. Era muita gente. Durante esse processo algumas cenas já tinham caído do roteiro, mas ainda mantinha dois luxos: o baile e um samba em flashback. O tempo passou muito rápido naqueles três meses até as filmagens e na semana que começaríamos a rodar o filme a previsão era de chuva todos os dias. Não sabia mais o que fazer e não podia esperar. Equipamento, equipe. Decidido. Filmamos com chuva. Faríamos um dia, sábado, folgaríamos no domingo e voltaríamos segunda, terça e quarta. Tinha uma equipe e tanto. Enfrentou o mau tempo e o cansaço de subir os equipamentos por escadas e vielas. No sábado filmaríamos o baile, mas a chuva foi muito intensa. Eu a vi, do mirante do Vidigal, chegar impiedosa. Vinha para acelerar mais meu coração. Para fazer daquele momento ainda mais inesquecível. Cheguei à beirada do mirante e rezei:




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Minha Santa Bárbara. Segura a minha cabeça. Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abale a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que eu possa enfrentar de fronte erguida e de rosto sereno todas as tempestades e as batalhas de minha vida, para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render graças a Deus, criador do céu, da terra, da natureza: este Deus que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Santa Bárbara, rogai por nós!

Se a chuva vai ser mesmo inevitável, me ilumina para pensar. Lucio se aproximou de mim, recolhemos tudo e nos enfiamos na casa. Eu respondi de pronto: “Sequência 2. Maninho sai para trabalhar.” Agora mesmo. Entramos na casa. Era um plano sequência. Fizemos algumas vezes e a chuva só aumentava. Observei o pavor nos olhos do Lucio, mas, como fiel escudeiro, manteve-se calado até o fim da sequência, que foi comemorada com êxito. Abrimos o set. Agora nada mais deve nos parar. Vamos cumprir o filme. O Lucio me chamou, o Gustavo havia ligado. O largo da D. Rosa, onde seria o baile, estava todo alagado. O cara da equipe de som queimou uma caixa. Uma loucura. Eu respirei: “Continuamos na casa.” Foi essa loucura todos os dias, cada uma com sua bomba a ser desarmada. Na terça-feira, quando fechamos o set, Lucio me chamou preocupado, mas, brincalhão como sempre, disse que tinha duas notícias. Uma


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boa e uma ruim. A boa: o tempo melhora amanhã, mas ainda com pancadas de chuva. A ruim: é impossível gravar a quantidade de sequências que faltam. Tive um minuto de ausência. Esse dever de casa é meu. E esse eu aprendi bem com a teacher, como gostamos de chamar a Rosane. Conte seu filme. Esteja sempre ligado no fio narrativo. Fui para casa e naquela noite não dormi. Lia e relia o roteiro. Passava na mente os planos que tinha de cada cena. Mas em algum momento, depois de muito rabiscar, veio a iluminação de Santa Bárbara. No roteiro original, a abertura do filme tinha um jogo de futebol e Maninho dando bala a uma criançada. Já tinha começado a implicar com essa cena, mas não conseguia até então resolvê-la melhor. O tal flashback que supostamente mostraria ali uma rivalidade e um amor de muitas mulheres, um clichê do chefão. Considerava essa cena de suma importância para o perfil da Silvana. Somarei os dois. Não tem mais flashback. É tudo agora, ontem, não importa. O jogo, o churrasco, os dois são no mesmo dia. Fiquei feliz. É a abertura do filme, que teve ainda de ganhar retoques com os nomes dos criadores do filme em cartelas para criar um leve espaçamento e um corte na sequência de imagens. Porque quando fomos gravar essa cena, durante o dia que estivera todo tempo entre momentos de quase sol e chuva, caiu uma chuva que chegou tão rápida, por trás da Pedra da Gávea. Tremi. A tarde já tinha avançado e escureceu em poucos minutos. A cena foi toda rodada de uma só vez. Os atores estavam marcados para congelarem no “corta”. Nós trocávamos a câmera de lugar e eles retornavam de onde pararam. Foram perfeitos. As meninas estavam ótimas. Fizemos um pequeno aquecimento, sentia segurança nelas, estavam em casa. Algumas das atrizes eu tinha quatro e outras seis anos de companheirismo no palco.


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Conhecíamo-nos. Demos um grito de guerra e fomos para esse desafio. Dois planos. Um take. Adoro essa cena. Eu sei que o Vampiro, técnico de som do filme, sofre, porque o som nos trai, está um pouco distante, mas eu gosto ainda mais. Como é bem no início, é como se fosse aquele primeiro grito. O que o chama para a briga, o que você ainda não identifica, mas olha e aí então está ouvindo tudo e sabendo o que está acontecendo. Tinha um time de primeira. Esse último dia parecia interminável. Fizemos cenas muito fortes, inclusive uma segunda tentativa do baile. E me lembro de fechar o set, de madrugada, às 4h e de estarmos trabalhando desde às 10h, em um beco da 25, rua onde o acesso se dá apenas por escadas. Precisávamos agora descer todo o material e entregá-lo. Estava cansada e confusa. Já não sabia direito o filme que tinha nas mãos. Ele sofreu mudanças, sofreria ainda mais, era novo para mim. Precisava descansar. Tive uma depressão pós-set. Todo mundo trabalhando, muita correria, muita adrenalina. Mas agora estava meio só. Precisava montar. Todos aqueles processos de laboratório. Som. Ainda estava longe de ver o filme. O copião (filme corrido, sem edição) me assustou, e é difícil ver seu próprio Frankenstein e pensar que é preciso costurá-lo. A Branca Murat, produtora do filme, havia deixado o filme na lata, revelado, mas já estava em outra. Teria de tocá-lo sozinha. Precisava de ajuda. Liguei para Bel Berlink, que havia visto apenas uma vez, no dia do lançamento do “Cidade de Deus”, quando entreguei um envelope para ela. Precisava ir, mas estava trabalhando na série “Cidade dos homens” com prazo apertado e me ofereci para entregar o envelope, quando ouvi pela produtora que deveria chegar à Bel ainda naquele dia. Consegui sair um pouco mais cedo, mas arrumei uma encrenca porque não a conhecia. Foi um tal de pergunta daqui e dali. Até que mais uma vez o Gustavo me salvou. E consegui entregar à Bel


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o envelope. Ela já havia ajudado o Gustavo na finalização de “O jeito brasileiro de ser português”. Fernando Meirelles falou que se eu precisasse, era para entrar em contato por meio dela. Criei coragem. Liguei e pedi ajuda. Ela disse que ofereceria o trabalho para Marcelo Pedrazzi finalizar. Era um jovem experiente e poderia me auxiliar em todas as etapas. Fui a um primeiro encontro com ele e lhe dei duas VHS, mas acho que o assustei. Após ver as fitas em casa, me ligou, elogiou o filme e perguntou “Vamos começar a montar quando?” Tínhamos um espaço em uma ilha na VideoFilmes onde começamos a trabalhar o filme. O processo de edição não foi dos mais demorados. Não tínhamos tantos planos assim. A película não dá esse luxo. Mas foi muito prazeroso. Havíamos perdido a sequência do baile por problemas no negativo. Sobrou uma cena inteira, que poderia ter caído no roteiro, mas às vezes a gente se apega a cada coisa. Uma outra só entrava um recorte e num contexto totalmente diferente do que era o da cena. Um típico truque de edição. Para terminar um filme, em algum momento, você precisa abrir mão dos detalhes. Houve ainda a finalização da trilha que me fez ver o filme e me emocionar depois de já o ter assistido na edição não sei quantas vezes. O Grupo Conecta fez um trabalho primoroso. Quando me reuni com o Marcelinho, baterista amigo já de algum tempo, e Alexandre, que me foi apresentado por ele, o que eles mais ouviram de mim naquela noite é que, embora em situação muito hostil, o que tínhamos no filme era um romance. E eles foram perfeitos, me ajudaram muito na finalização. Em março de 2004, o “Mina de fé” chegava às telas em noite de Maratona de cinema e vídeo Nós do Morro no Odeon. Guardei toda a economia do filme para o lançamento, precisava mostrá-lo. Era a minha cartada final: gastar nesta noite o que restava do filme e contar


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com o retorno positivo. O Odeon estava cheio. Foi uma noite muito emocionante. Passamos algumas produções que vínhamos realizando, juntamos muita gente e o filme estreou. Eu estava tão magrinha que faria inveja a qualquer modelo. Muito trabalho. Olhava o filme na tela e às vezes nem acreditava. Ao meu pai e à minha mãe disse que aquele dia significava para mim como um dia de formatura. Apesar de felizes, não engoliram essa, o diploma ainda estou devendo e pretendo resolver nos próximos anos. Sinto necessidade de me graduar e também ainda quero lhes dar essa alegria. Esse trabalho findava e eu recebia a notícia de que o “Mina de fé” passaria em seu primeiro festival. São Paulo queria o filme. Comemorei! Fui para lá. Era meu primeiro festival. Só tinha dois dias, havia pedido uma dispensa no trabalho. O filme passaria no MIS (Museu da Imagem e do Som). E tinha recebido um bilhete da Lis, do Porta Curtas, dizendo que tinha gostado muito do filme. Encorajou-me. Fui para a sessão tremendo. Fiquei mais relaxada de encontrar a Beth Formagine, que conheço de longa data. Estávamos eu e o Rinaldo, um amigo, que era meu convidado para a sessão. Já tinha assistido aquela cópia, única até então, três vezes. A primeira quando retirei do Labocine, a segunda em sessão teste no Cinema Estação, e a terceira na Maratona no Odeon. Essa seria a quarta, sendo a segunda com público. Logo que a exibição começou notei algo esquisito, a imagem me pareceu meio fora de foco com um leve deslize. No primeiro plano mais fechado — e eu tenho um curta com muitos planos fechados, já que muitas vezes era isso que a chuva me permitia fazer e outras porque gosto da aproximação do rosto —, vi que estava tudo fora de sincronia, ou seja, o som não acompanhava a imagem. Naquele dia talvez eu gritasse “Para o filme!” Mas não fiz nada. Apenas disse ao Rinaldo: “Eu sei que ele tem sincronia.” Mesmo assim muitas pessoas me cumprimentaram


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depois e Beth elogiou muito a história, mas por ser minha amiga tocou no assunto, e eu logo me justifiquei. Havia ido assim que acabara o filme na sala de projeção e o cara me garantiu que se estava sem sincronia é porque veio assim. Mas eu atestava que já tinha visto o filme três vezes e não estava assim. A Beth não queria saber de desculpas: “Você está com um filme lindo, mas precisa resolver o som.” Concordei. Agradeci e liguei para o Pedrazzi, que me tranquilizou. Disse que poderia ter sido um defeito na projeção, que eles podem ter emendado mal. Sei que nunca mais tive esse problema. Nem mesmo quando passei no Labocine, já no táxi do aeroporto para pegar a cópia perfeita que levaria a Clermont-Ferrand nos braços. Sem nem ver uma sessão teste. Nas mãos de Deus e do seu Francisco que fez milagre nesse filme. Seu Francisco era o colorista e o responsável pela ampliação desta cópia que passou por um processo arriscadíssimo, tive até mesmo que assinar um termo de responsabilidade. Quando fizemos o primeiro transfer, a fim de baratear e facilitar a produção que tinha pouco dinheiro e locações apertadas, escolhemos o super 16mm como formato de captação, que foi aceito pelo Santiago Harte, um argentino, com sobrenome de personagem de série americana, que veio para cá muito cedo, criou-se em Santa Tereza e estava então acostumado a fotografar desde pequeno com os próprios olhos o enquadramento de cima para baixo. Dizia sempre isso pra ele: “Vamos mostrar a favela por dentro e de cima para baixo.” É que Silvana é também prisioneira deste espaço, ela vê a cidade de longe, apenas de dentro da favela. Na última cena a ser gravada estávamos em um beco, os policiais subiriam e Keite encontraria com eles. Já fazia mais de uma hora e algumas crianças acompanhavam as filmagens de uma escada na porta de casa. Eu as mandei entrar, perguntei pela mãe que não estava.


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Estavam sozinhos, uns tomavam conta dos outros. Eles não entraram enquanto não acabamos, aparecem no filme no fundo da cena na mesma condição que a Keite, ali na rua, desprotegidas. Nessa hora só estavam pessoas da equipe estritamente necessárias para o fechamento daquelas cenas, exaustas. Olhei o Lu, naquele beco para fazer a cena, ele não podia estar sozinho. Olhei em volta: “Nego, vem você.” Mas o Vampiro, que comandava o som, chiou. O Nego era seu microfonista. “Então vai o China.”, disse. E ele que estava ali, de terceiro cara de som, mas tinha uns três anos de aulas no grupo, se saiu muito bem. Eu gosto muito desta dupla. Eu aprendi muito durante o filme. Todo o processo. Eu mudei muito também. Assim como o mundo. Nessa época, o Vidigal, a favela do Papa, entrou em guerra. Mas a guerra não se instalou de imediato, foram quatro ou cinco meses de tentativas, ameaças, sustos, terror psicológico. O filme passou no Festival do Rio, com Menção Honrosa da ABDeC (Associação Brasileira de Documentaristas e curta-metragistas). Foi aceito em Brasília. Viajei para Brasília com a cabeça em chamas. Quando subi ao palco, fiz um discurso inflamado, político, sobre exclusão. Não me lembro de nada do que falei. Estava muito emocionada com os acontecimentos da noite anterior — o Bope havia subido o morro para conter a guerra entre facções, e ficamos com três forças guerreando lá dentro —, e este momento não saía da minha cabeça. Há quem diga que ganhei o festival no discurso, no grito, e não no filme. Na manhã seguinte estava feliz até ler o jornal no qual Luiz Eduardo Soares classifica o filme como inexperiente. Caminho para a experiência, ainda chego lá. Não é nada bom ler palavras tão duras já de cara. Mas ele não estava falando nenhuma mentira. Quando o filme foi exibido naquela tela enorme — que cinema incrível o de Brasília, lotado —, passava todo o processo na minha


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cabeça, pensava que ainda não podia exibi-lo no Vidigal, porque o lugar atravessava a pior guerra de sua história. Pensava em como voltaria para casa. Tive uma boa recepção do público e em seguida foi exibido o “Cabra Cega”. Fui embora de Brasília com a reação do público na cabeça e com a crítica de Luiz Eduardo Soares nas mãos, bastante abatida. Na terça-feira, sairiam os prêmios de Júri, Melhor longa e Melhor curta ficção para “Cabra Cega” e “Mina de fé”, respectivamente. Ambos saíram na manchete do Caderno B como cinema em tons políticos. Estava deitada e o telefone tocou, era Carla Severo, a Silvana, que fez sua estreia no curta e não voltou a atuar, uma pena. Gosto muito do trabalho dela, que era a mais inexperiente do grupo. Já recebeu um prêmio de melhor atriz em um Festival de curtas e críticas muito pesadas também. O Junior conseguiu fazer um Maninho sensível, o bandido racional, esse também não continuou atuando e tornou-se guardião de piscina. Mas esses personagens, esses atores e todos os amigos que tive na realização desse filme ganharam o prêmio que a Carla me falava pelo telefone e muitos outros. Ela gritava eufórica do outro lado da linha de um celular. Pedi que se acalmasse e perguntei: “Mas que tipo de prêmio?” E ela: “Sei lá, mas o que te importa, foi premiado.” No dia seguinte, começaram as congratulações. Havia sido o Prêmio Oficial do Júri. Mais tarde tive oportunidade de agradecer pessoalmente à Lúcia Murat e ao Jorge Bodansk, que faziam parte da mesa. Fui buscar o prêmio na casa da Beth Formagine, que narrou para mim com emoção o momento e disse não ter acreditado quando ninguém levantou para receber o prêmio, e então ela se levantou: “Eu levo pro Rio!” E ainda subiu e fez discurso encalorado, que me conhecia desde pequenininha. Adoraria estar lá naquela hora. Mas fui bem representada. E fico feliz de ela ter assistido ao


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filme com o som sincronizado. O filme ganhou ainda o Prêmio de Melhor Filme Ficção no Festival Curta Cinema. Esse festival foi especial para o filme, por ser um festival exclusivo de curtas e internacional, que levou o filme ao conhecimento de um público especializado em curtas-metragens; a partir daí foi convidado para a mostra competitiva em Clermont-Ferrand, e em mais três cidades francesas: Amiens, Paris, Toulouse. Fez Alemanha, Itália, Portugal, Espanha, África e Guianas por meio da TV Plus francesa, Inglaterra, Israel, Finlândia, Índia, ganhou prêmio em Nova Iorque e depois disso foi a praticamente todos os festivais nacionais, em mostras competitivas ou anos mais tarde em mostras não competitivas. O filme já foi exibido em muitos lugares. O curta é um fenômeno. Durante a finalização do filme iniciamos um projeto chamado “Vidigal Olimpo”. Já fazia um ano que Pedro Rossi, designer recém-formado pela PUC, e Gabriela Maciel, artista plástica, davam aulas no casarão. Pedro me ofereceu uma carona e depois de um papo surgiu uma câmera e um possível projeto. Em uma semana, estávamos nas ruas com uma câmera de 1 ccd da mãe do Pedro e demos início às gravações do documentário “Hércules”, que nos serviria de ponto de partida para outros. Um projeto sobre trabalhadores que inventavam seu trabalho na busca da sobrevivência. Projeto esse não concluído. Apenas o vídeo do primeiro personagem ficou pronto, que conta a história de Robson, um carregador de ferro-velho, que causava muita curiosidade e admiração entre os moradores do Vidigal. Robson não chegou a ver o filme, morreu vítima de HIV. Estreamos o vídeo na abertura do espetáculo “Burro sem rabo”. Estava lotado e o vídeo fez sucesso. Com o Pedro, a Gabi, o Gustavo e o Lu Vidigal inauguramos um momento de muitas realizações, a partir da possibilidade de usar esta câmera da mãe do Pedro. O prêmio trouxe o reconhecimento das pessoas e a


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parceria do Cavi Borges, hoje conhecido no Rio como o maior produtor de filmes digitais. Fizemos “Neguinho e Kika” e “As cotias do Campo de Santana”. Chegamos a tentar fazer uma primeira mostra de cinema e vídeo Nós do Morro. Foi produzida pelo Lucio, tinha o apoio da Prefeitura, aconteceria em setembro de 2004, mas foi justamente no dia da mostra que um grupo fortemente armado invadiu o Vidigal pela mata vindo do alto do morro, local onde aconteceria o evento. Alguns de nós já estávamos lá, inclusive nosso amigo e parceiro Cavi, que disse ter sido seu primeiro dia em zona de conflito. Imediatamente pegamos a lista de convidados, amigos e parceiros e avisamos para que não viessem para cá, o evento estava adiado. De adiado passou a cancelado. Mais uma frustração trazida pela guerra. Passado um tempo após o “Mina de fé”, fizemos parceria com mais duas produtoras, a Cavídeo e a Mundo Novo, em que estava Pedro Rossi, figura que me orgulho de ter ganhado como amigo e das mais adoráveis para se realizar projetos. Foi produzido além de “Neguinho e Kika” e “As cotias do campo de Santana”, o projeto “Sete minutos”. Experimentávamos o digital. E deu certo. Ao mesmo tempo, o digital não era tão barato assim. Não para fazer com qualidade. Essa é a grande diferença. A qualidade. O poder ousar, o ter tempo para solucionar questões, isso faz diferença no cinema, como em tudo na vida. Por meio de um projeto para o BNDES, o grupo que já tinha 3 realizadores — eu, Gustavo e Luciano — agora com filmes premiados, ganhou uma câmera digital com possíbilidade de fazer filmes de extrema qualidade. Usada por nós até hoje. Além de uma ilha de avid. As produções cresceram. “O Patinho feio” e “Caixa preta”, dois curtas de Ana Okuti, exemplificam uma geração que cresce com o exercício prático do cinema virando realidade. Veio então o terceiro prêmio de edital para o Nós do Morro, projeto do Gustavo Melo, que partiu de


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um argumento de André Santinho, ator do grupo, que sempre se destacou também nas áreas de cenografia, iluminação e textos teatrais, além de trazer aventura e jovialidade em suas peças. Como multiplicador, deve ter escrito umas seis peças infanto-juvenis. Havia desenvolvido a história durante as aulas de cinema com a Rosane, mas ela ficou na gaveta, até que dois anos depois virou projeto e era trabalhado a cada edital pelo Gustavo, que acreditava mais que ninguém nessa história. Naquele ano os projetos foram profissionais, haviam ganhado uma cara gráfica com o Pedro, coisa que antes nunca nenhum deles tivera. E estava lá na lista trazida pelo Gustavo o nome “Picolé, pintinho e pipa”. Agora era rezar para que tudo continuasse tranquilo para poder filmar. Em novembro de 2005, estávamos filmando o Picolé. Que tinha como locação vielas do 314, rua principal, e vielas da pedrinha e da rua 25. Era preciso fazer aquele filme. Como é deliciosa a sensação do desafio, mas como lhe tira o sono também. Esse eu iria produzir e havia uma pressão para que não demorasse muito, porque teríamos que aproveitar o momento de calmaria da guerra. Seria bom estar nas ruas de novo. Seria bom resgatar a vocação ao qual esse morro sempre serviu: a arte. Traçamos um plano longo de produção no qual a pré-produção levaria três meses. Todos estavam envolvidos com outros trabalhos, alguns poderiam desligar-se durante as filmagens, outros um pouco antes, mas a produção, a direção e seus assistentes começaram cedo no projeto, que era ambicioso para as condições que tinha. Seria filmado em seis dias, um deles com a rua principal fechada. Eu estava com três meses de gravidez, isso quer dizer que havíamos começado a produzir o filme junto com o filho. Trabalhar em família não é fácil. Durante os seis dias de set, eu me dividia entre a filmagem e a finalização do programa “Não é o que parece” para o Futura,


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experiência extremamente enriquecedora, em que tive contato com pessoas incríveis abordando assuntos cabeludos. São esses presentes que tenho recebido da vida. Também tive sorte e muito cedo entendi que amigos e colaboradores são o que há de melhor no mundo. Nesses seis dias de divisão entre o set e a ilha, conseguimos preparar direitinho toda aquela loucura. Eu ficaria todo o primeiro dia, depois abriria o set durante dois dias, mais um dia inteiro e dois dias abrindo o set e partindo para o trabalho. Adorava aqueles dias, porque o set é muito divertido. E o último dia de filmagem era justamente o dia também que viajei para a França, para o Festival de Amiens. Para mim, sempre foi assim: tudo ao mesmo tempo. Às vezes, passava o maior aperto e pouco tempo depois surgia um trabalho. E logo vinha outro, que nem sempre dava para conciliar. Os dias de filmagem foram calmos, mas muito tensos para a equipe de produção que, de duas a três vezes ao dia, pegava um mototáxi e dirigia-se até as viaturas da polícia que ficavam de plantão na entrada do Vidigal, no Largo do Santinho e no DPO, que foi instalado no final do morro. A produção ia lá com o objetivo de assegurar que as filmagens pudessem acontecer e a fim de impedir qualquer incursão da polícia por aqueles dias. Tivemos problemas apenas em um dia, que um dos comandantes, talvez para nos apavorar, disse não reconhecer nenhum valor na solicitação e garantiu que iria fazer a ronda que estava acostumado. Foi preciso ligar para a delegacia, colocá-lo em contato com o delegado. Os dois discutiram, e a gente ali esperando. E a equipe lá na rua, já filmando com mais de oito crianças no set. Está cada vez mais difícil garantir esse tipo de segurança na cidade. Mas ele entendeu, não passou em nenhum momento, e deu tudo certo. Foram seis dias de paz, o que não impediu que em alguns momentos os soldados do tráfico passassem


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pelo local que estávamos filmando para “garantir” que estava tudo bem. — Vocês são do Nós do Morro? (sem esperar respostas). Ganharam um prêmio, estão fazendo um filme. Fizeram o “Cidade de Deus” também, né? — Sim. Estamos fazendo um filme aqui, filmamos até sexta-feira, se Deus quiser. — Ele há de querer. Tá tudo certo.

Achei bom sermos logo apresentados, porque temos de estar acima de qualquer desavença que haja, não podemos ser impedidos de trabalhar. Toda noite surgia uma nova discussão, uma lata a mais, uma diária a mais de gerador; uma loucura esse negócio de cinema. É muito aparato. Filmamos na rua onde morei e a casa da minha mãe nos servia de base. Vi nos olhos dos meus vizinhos o orgulho de ver acontecer ali uma filmagem, em especial quando eu contava a história e eles viam que não havia tráfico no meio. E que eu era a responsável pelo andamento daquela loucura. Nós, pessoas comuns, os filhos dos operários, dos motoristas, das domésticas, das babás, dos camelôs... estávamos filmando. Isso é incrível! Agora não são somente os filhos dos banqueiros, dos produtores, dos cineastas que vão filmar. Também podemos, cavamos esse direito. Talvez meu amor pelo cinema seja ainda mais forte porque tem nele um ato político, de resistência, tenho desejo de transformação. Depois de seis dias de filmagem, parti para Amiens representando a produção audiovisual que nascia na periferia e que já ganhava seu estilo, sua marca, sua estética. Não sei se posso dizer que foi criado um movimento ou uma estética própria da periferia já que todo e qualquer movimento é feito também de suas referências. E de uma busca da identidade, que em tempos de globalização torna-se ainda mais difícil.


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Até mesmo dentro do grupo Nós do Morro temos maneiras muito diferentes de filmar. Partimos dos mesmos mestres, fomos apresentados às mesmas referências, mas em cada indivíduo detona algo novo. Muito particular. Embora muitas vezes tenhamos características parecidas, como a busca por histórias simples, uma necessidade de veracidade e verossimilhança nos personagens e na condução da narrativa. Ainda assim cada um de nós é muito distinto na sua concepção. Na sua vivência. Mas não podemos desprezar que o cinema passa por uma transformação e, porque não dizer, revolução de suporte, na qual a película, o digital e o vídeo se misturam a fim de se completarem. É também a estética do cinema possível, o que não quer dizer o cinema pobre de soluções e expectativas. Minha parceria em um projeto com o Cacá Diegues — um dos diretores do Cinema Novo e que construiu a história do cinema neste país — comprova a era da mistura. Pacífico estava com quatro meses e eu fui ao set gravar o curta “Sebastião”. Foi importante perceber que era possível pensar um plano, acordar de madrugada com uma equipe, correr sincronizado com um stead-cam e amamentar. Com o Pacífico ainda bebê, foi realizada no Nós a oficina de roteiro com o intuito de desenvolver curtas para juntos formarem um longa de episódios. Nascia aí o 5x Favela – Agora por nós mesmos. O Guti me avisou que Cacá havia ligado e falado sobre o projeto, montamos uma turma de inscritos na oficina e já começou pegando fogo. Pouco antes de começar tivemos uma reunião de grupo, o Guti expunha suas impressões sobre o projeto e nos aconselhava a buscar histórias que fugissem da violência, que mostrassem o dia a dia. Mandei algumas histórias que tinha na gaveta, mas no dia da reunião de ideias a serem votadas, tive uma que me empolgou. Aproveitei o soninho do Pacífico e


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mandei brasa na história. Naquele dia ele ficou do peito para o carrinho ao lado do computador, e com o auxílio de um apito feito pelos índios, que imita som de barco, e um chocalho vagabundo de plástico, estava ali toda a história. Tinha vindo com facilidade narrativa, conflitos e personagens. Não é todo dia que uma história se revela para você. Mandei mais essa história, as propostas eram feitas por e-mail, mas seriam lidas também na sala de aula durante a oficina. Era um total de quarenta alunos. E surgiram de duas a três histórias de cada um. Tivemos dois dias de votação para as histórias. No Nós, após uma disputa acirrada, ficou escolhida uma história de um pedreiro que virava santo e trabalhava com realismo fantástico, e partimos para desenvolver. Quarenta pessoas para desenvolver um roteiro, que experiência louca, mas muito bem conduzida pelo Rafael Dragaud. Terminado o primeiro roteiro, Cacá anuncia que a história que ele achava conveniente para compor o filme era o argumento “Acende a luz”, a tal história que criei em um insight. Fiquei superfeliz, e partimos para o roteiro que foi desenvolvido da mesma maneira. Em alguns momentos queria morrer. Não é nada fácil ter quarenta pessoas opinando de forma diferente sobre uma história sua. Trabalhei ainda no roteiro até o momento de filmar. Após o roteiro ser escolhido, confesso ter sentido certo ciúme. Para que lado levaria aquela interpretação, qual seria a tendência do diretor que a dirigiria? Isso também tinha ficado bem claro no projeto, não necessariamente o dono do argumento seria o diretor do filme, tão pouco era obrigado a sair um diretor de cada instituição. Luciano Vidigal foi o primeiro a ser convidado para compor o grupo de diretores. Cacá escolheu para ele o roteiro desenvolvido pelo AfroReggae. Roteiro que necessita de


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muita sensibilidade para ser filmado. É violento e muito denso, aproximadamente quinze minutos de sofrimento. O Luciano tem uma experiência muito boa com esse tipo de roteiro. Ganhou prêmios com o curta “Neguinho e Kika”, que trabalha uma temática semelhante a que trataria. Desejei-lhe toda a sorte do mundo nessa batalha. Depois, Cacá me ligou e me convidou para ser diretora do meu próprio argumento e eu tive de lhe confessar que já estava muito enciumada com o roteiro. É uma história muito pessoal. A maneira que joguei nos personagens nomes e características de meus antigos vizinhos, pessoas que fizeram parte do meu crescimento, que fazem parte da minha história. O processo do filme começou em janeiro de 2007 e filmei o curta “Acende a luz” em junho de 2009, quando o projeto completou dois anos e meio. Sobre esse curta é mais difícil contar detalhes, porque é tão fresco, o seu processo em minha cabeça é tão recente, que sinto dificuldade de expor. O mais importante nessa participação é termos entrada em uma fatia do cinema que não estávamos inseridos. Sonhamos com o público que será atingido, porque terá distribuição para isso. Já que o curta-metragem só alcança o público de festival. Também foi importante poder trocar experiências com tanta gente importante para a história do nosso cinema, o que deixa um gostinho de quero mais, e um desejo de fazer. Todas as conversas que tive com Cacá e sua generosidade intelectual. A música que me foi autorizada pelo rei Roberto Carlos para pôr no filme. Foi, sem dúvida nenhuma, um processo muito menos solitário que o do “Mina de fé”. Pude contar com pessoas experientes que me ajudaram, mas na hora do vamos ver, é sempre igual. É você ali, exposto, tentando não ser devorado e colocando em emoções sua história.


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Vejo o filme na ilha e cada dia gosto mais dele. Sou assim apaixonada e apegada. Mas vivo as incertezas de quem mais vai gostar. Esse projeto serviu também para unir pessoas que, em condições muito parecidas, vêm realizando cinema; e o que tem acontecido é que agora está sendo comum participarmos dos sets uns dos outros. Isso que dizer que se cinema se faz em turma, minha turma cresceu e com isso aumenta a minha possibilidade de fazer cinema. Para o “Acende a luz” eu mergulhei na favela. Tento trazer para ele a essência da comunidade, dando uma dramaticidade pesada, marcada, para correr um pouco do cinema contido, porque o povo brasileiro em geral não é contido, não cabe na tela do cinema sem exagerar. Ele é expansivo, dramático e alegre e é assim que desejo que seja o filme. Ainda não sei no que vai dar esse novo projeto, mas a cada vez que você filma, nascem muitos outros filmes para serem filmados. E eu pretendo continuar filmando. Há cinco anos, entramos para o programa Ponto de Cultura, do Governo Federal, experiência incrível, mas que também precisa de ajustes. No início, nos possibilitou um curso mais específico, ter mais profissionais, mas com muitos problemas burocráticos ainda não conseguimos nem mesmo usar a última parcela do convênio. Educar, apresentar o cinema para a população. Isso leva tempo, mas precisamos trabalhar por essa conquista. E para isso fazer filmes. Fui educada por meio de um cinema hollywoodiano e não devo negá-lo, mas devo ser crítica comigo mesma. Foi preciso estudar cinema para conseguir me aproximar, ter acesso a filmes que realmente tiveram poder de mudar ou influenciar comportamentos. Não sou do tipo que afirma que o público não quer nossas comédias. Todos os amantes de cinema do mundo estão em especial, neste momento, ávidos por


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bons filmes, sejam comédias, dramas, policiais, terror ou romance. O importante é contar uma boa história. Seja eu mesma filmando, os meninos em uma oficina no interior ou os grandes produtores do cinema. É mesmo difícil! Onde é que eu me meti? A verdade é que qualquer atividade cinematográfica só pode ser realizada por meio de leis de incentivo ou editais. É dinheiro público. E devo aqui aproveitar para agradecer ao governo Lula aliado ao mais incrível Ministro da Cultura Gilberto Gil. Espero que nada mude, apesar de ele ter saído do ministério. Nunca havia tido tanto investimento na área do audiovisual. Já estava na hora! O cinema sempre fez a sua parte na reflexão sobre os fatos e as relações humanas. É esse o meu cinema. O que me faz sentar na sala escura e viajar. E me entregar a uma história. Discutir como aquelas pessoas se relacionam entre si e com o mundo em que vivem. O Brasil é imenso e seu cinema será sempre uma colcha de retalhos que fala com e para todos, mas não agradará a gregos e troianos. Essa é a graça também. Porém, muitas vezes, dentro do próprio país os filmes são rejeitados. O “Mina de fé” e agora o “Picolé, pintinho e Pipa” foram mais procurados pelos festivais internacionais do que dentro do próprio país. Há nos estrangeiros uma imensa curiosidade sobre o espaço da favela. Suas histórias, sua desorganização. Algumas vezes sou questionada sobre o direito do uso da miséria. Mas essa miséria não é minha. Ela é de todos nós! Então vejo os mesmos direitos entre eu e o Fernando Meirelles ou Cacá Diegues, que sempre gostou de filmar nesse espaço suas histórias. Faço parte desse universo, o reconheço como meu, sou à vontade dentro dele e isso me diferencia dos dois. Mas todos têm direito de fazer a história que bem entenderem para um bom filme.


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Existe também um equívoco de intenções na mídia ao dizer que o povo brasileiro não quer mais assistir a esse ou aquele tema. Caramba, fazemos tão pouco cinema que não dá para esgotar tema nenhum e é apenas uma baixa parcela do povo brasileiro que vai ao cinema. Não podemos fazer esse tipo de cálculo. Chegaram aos cinemas seis filmes de favela e não se pode mais tocar no assunto? Que palhaçada! Ou será que é só uma vontade de mascarar, de maquiar nossa história? Diante dessas, deixo então de me preocupar com a estética, seja ela da fome, da periferia ou que para muitos é sinônimo de sem qualidade, o que atesto ser uma mentira e convido a todos a assistir a algum filme de produção Nós do Morro, que embora no miolo intelectual do Rio, o Leblon, somos periferia. Só aqui tem dessas coisas! Precisamos reconquistar o público de alguma forma. Na busca de incorporar uma linguagem nova, os cineastas têm de trabalhar em um esquema de tentativa, mas é preciso acertar de primeira, senão pode ser fatal. É inegável que, hoje, o público não está mais disposto a aceitar imperfeições técnicas em nome da brilhante ideia de um filme. Isso não significa, porém, que a realidade seja maquiada com as cores e luzes que deixam qualquer céu fotogênico, e nem que todos os filmes persigam os esquemas narrativos do cinema americano. Cada filme pede uma receita, na maioria das vezes, ainda tem de improvisar. Ainda assim, fica cada vez mais difícil um filme levar gente à sala de cinema, se não tiver um roteiro enxuto, uma montagem frenética, um efeito aqui e ali e personagens bem construídos. Para um público mais exigente, é preciso um diretor extremamente cuidadoso. Infelizmente, mesmo usando toda sua criatividade, o cinema nasceu aliado à ciência e à indústria e não é possível descolar-se delas. Mas é necessário cada vez mais aproximar-se na busca da


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qualidade e da resolução dos problemas para cada produção distinta. O nosso público merece e nossa história cinematográfica também. Como participante de um grupo de jovens realizadores (não sei até quando vão me dar esse título, mas ainda assim o agradeço), persigo no momento poder realizar mais uns três ou quatro curtas que estão na gaveta e além de um longa-metragem em que tenho trabalhado no roteiro desde o ano passado. É uma adaptação da peça “Noites do Vidigal”, que foi encenada pelo grupo em 2002. Procuro também uma história simples para fazer uma experiência. O Gustavo tem uma história muito interessante sobre uma família em decadência; a peça foi montada há dois anos e me interessam muito seu tema e seu esquema de nunca sair da casa da família. Também acredito que possa ser filmado em breve, outro roteiro que o Gustavo vem desenvolvendo sobre juventude, uma história de gangues. Preciso conseguir melhorar o ensino na área de cinema do Nós do Morro, nem sei por que caiu sobre meus ombros essa tarefa, mas é assim que me sinto. Já que acredito que quanto mais interessados em cinema, mais chances de produzir e mais chances de se ter público em uma sessão. São essas as questões que me afligem nos dias de hoje. Questões de realização. Questões de dinheiro, questões de família, questões de Estado. Estarão todas presentes nas minhas histórias se conseguir realizá-las. Às vezes, é só isso que penso. Mas para se manter uma empreendedora cinematográfica, você depende sempre do departamento de milagres. Eu tenho feito minhas orações religiosamente. Senhor, trazei para nós o set nosso de cada dia!




Cap.11

Hoje venci na vida


Hoje v


Nasci na década de 1970. O morro não era como é hoje. Na Rocinha, sem os transportes alternativos, era preciso esperar o 592. Era o único a cruzar a favela. Ele tinha o apelido de molenguinha. Era muito velho, de formato arredondado, daqueles com cara de caminhão. Achava divertido ir na última janela. Ainda tinha muita vegetação por ali e dava para ver a praia de São Conrado, um paraíso. Quando você nasce e seus pais não estão vivendo em harmonia você passa a viver esperando o dia em que eles vão se separar. Toda vez que eles brigavam a minha mãe dizia que a gente iria morar na casa da minha avó. Eu gostava dessa ideia. Afinal, depois que meus primos se mudaram da Rocinha, eu pouco tinha com quem brincar. Passava a semana no trabalho da minha mãe. Falando sem parar na cabeça dela. Para me manter ocupada, era comum nas quintas-feiras eu ajudar a guardar as compras. Repetia o nome dos legumes e verduras e guardava. O espinafre eu desfolhava para guardá-lo sem galhos. Suely, patroa da minha mãe, gosta de cozinhar. E eu ficava ali de ajudante sempre. Era legal. Mas no próximo ano eu já iria para a escola, ficavam muitas questões na minha cabeça. Mas não era eu que decidia minha vida naquele momento. Nem poderia. 226


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O tempo que passamos em Maricá foi bom. Estudamos em uma boa escola. Passeamos. Minha mãe, com mais liberdade de horário, passou a fazer faxinas e jantares além do trabalho na Suely. Melhoramos um pouco de grana. Ela fazia o possível para que não faltasse nada. Mas sentíamos falta dela. Vir para o Vidigal foi fator determinante na minha trajetória, já que pude estar perto de onde acontecia toda essa explosão de força cultural e artística. É uma pena pensar que mesmo vivendo em um lugar onde o acesso é difícil, para quem está no interior é ainda mais complicado. Para realizar o sonho de ir ao cinema é preciso arrumar dinheiro, não só para o ingresso, mas também para uma passagem intermunicipal. Assim não dá. Nesse caso, se você está no centro, em especial, entre os bairros nobres, você tem mais chance de se relacionar com pessoas que possam, de alguma forma, abrir para você as portas da sociedade. Se deseja realizar um projeto, seja ele um filme, um peça ou um evento, é preciso que você seja aceito. Durante muito tempo fiquei acostumada com minha escola, com meu bairro e com meus amigos. Sonhos demais, mas ninguém sabia muito como e aonde ir para realizá-los. Tinha amigas que juramos não nos separar nunca: Luciana Soares, Marcia Francisco, Dayse dos Santos e Virgínia. Optamos por uma escola em Copacabana considerada excelente: Infante Dom Henrique. Passamos eu, Marcia e Luciana. No mesmo horário, mas cada uma numa turma. Naquele ano, de fevereiro a maio, aconteceram muitas novidades na minha vida. Nunca fui uma menina trancada na favela. Gostava de circular na cidade, mas até então só podia fazer isso de vez em quando. Agora que estudava em Copacabana, era ótimo. Podia estar na rua todo dia. E começamos a nos separar. Foi engraçado, nunca soube o que realmente aconteceu. Mas aconteceu.


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Na escola, já nas primeiras aulas, tive uma indisposição com um professor de química de nome Almir, que me fez passar uma tremenda vergonha. Eu, ignorando a química, havia entendido uma coisa totalmente errada, e, quando ele me perguntou, talvez estivesse conversando, respondi uma grande tolice e ele me ridicularizou. Senti-me muito burra e incapaz do aprendizado desta matéria. Nunca gostei de ser chamada atenção, talvez daí venha meu senso de responsabilidade apurado. Era meu primeiro dia com esse professor e ainda teria um ano pela frente. Mas, em maio, entramos novamente de greve, e comemorei meu aniversário de 15 anos, que foi ótimo, embora debaixo de chuva. Continuei de greve até setembro, quando recomeçaram as aulas. Pagava passagem, ainda não havia passe livre para o estudante, e estava dando um prejuízo tremendo para minha mãe já que aos quinze dias de setembro tinha ido mais à praia e ao Shopping Rio Sul do que à escola. Resolvi falar que não dava para mim, que gostaria de parar de ir à escola e recomeçar no próximo ano. Ela teve um choque. Chorou, mas eu a convenci de que não estava abandonando a escola, só não achava justo fazer daquela maneira. Comecei também uma peregrinação para arrumar outra escola. Era uma das condições. Matriculei-me na escola André de Maurois na Gávea, mais perto. Dessa vez tinha de estudar. Optei pela manhã e tinha a tarde livre, então, me inscrevi em uma aula de dança na escola à tarde. Sou um pouco desengonçada, mas era legal. Tinha amigos em vários lugares. Alguns no Vidigal, outros amigos de escola, outros amigos de trabalho. Tinha amigos de viagem. Mas me sentia perdida. Não tinha amigos com os quais pudesse dividir sonhos, expectativas. Até que entrei para o grupo Nós do Morro. Hoje os artistas ganharam popularidade, mas quando entrei para o


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grupo, nós estávamos mais para um bando de lunáticos. Trabalhei duro durante quatro anos, algumas vezes dormindo duas, três horas por noite, porque precisava ensaiar e também trabalhar em expediente normal. Depois do “Machadiando” nos dar o prêmio de categoria especial — e durante o processo de ensaios do “Abalou” —, começamos a ser chamados para as estreias, também para as festas, e a ganhar pequenos papéis na TV. Fomos quase todos aceitos numa novela para a Bandeirantes, uma produção da TV Plus, que tinha Marcos Schechtman como diretor. Fomos de ônibus ao teste que era em uma rua no largo da Barra, que não tem acesso fácil. Andamos da passarela do largo da Barra, ali pela antiga rua dos motéis. Fazia um sol de lascar, eu vestia minha roupa mais nova. Era uma calça bailarina azul de cintinho dourado e uma camiseta creme, e fazia um calor infernal. De tanta ansiedade pelo teste, nasceu uma imensa espinha na ponta do meu nariz. Caminhava me abrigando sob uma sombrinha para não derreter a tonelada de maquiagem que colocara para disfarçá-la. Consegui o papel. Como todo o bando era do Vidigal, teriam de se integrar a nós mais dois atores: Ilda Maria, uma moça muito talentosa, que venho acompanhando o trabalho e vendo sua evolução e perseverança, mas que na época tinha apenas 9 aninhos, e o Dudu Azevedo, que hoje está em vários filmes nacionais além de fazer mocinhos nas novelas das oito. Tornou-se um excelente ator. Fizemos uma preparação com o Guti, muitos encontros com o autor, que mudou no capítulo quarenta. No decorrer da novela os papéis promissores foram dando lugar para os fundos das cenas. Gravava duas vezes por semana, mas ao final da novela, mesmo que para nem aparecer, éramos chamados lá quase todos os dias, e acabei por perder o emprego na creche. No início não


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me abalei, tinha o salário da novela, mesmo que meu pai tenha me apelidado de atriz-fantasma. Dizia que via a novela todos os dias, mas não conseguia me ver nunca. Estava me sacaneando, mas tinha toda a razão, eu não aparecia nunca, nem mesmo as cenas que gravava iam ao ar. Um amigo, um dia, conseguiu uma foto inédita, tirada da TV. Eu não só estava no vídeo como estava em primeiro plano. Pude então lavar a alma. A foto ficou tempos exposta no camarim do teatrinho, como sacanagem. A novela acabou e com ela a temporada do “Machadiando”, que agora fazia apresentações esporádicas. Junto com a novela também o dinheiro. Ainda havia um pouco, me sobrou do fundo de garantia do tempo que estive na creche. Mas foi praticamente todo consumido em uma cobertura de telhado para a minha casa, que na primeira ventania um vizinho teve de subir e amarrar as telhas que estavam voando. A coisa ficou feia. Eu comecei então a fazer todo tipo de loucura legal por algum trocado. Propaganda ao vivo no cinema todo o fim de semana. Um mico atrás do outro para ganhar uns trocados. “Mas eu podia tá roubando, podia tá pedindo, mas eu tô trabalhando.” Esse é o tipo de frase que eu acho bem filha da puta. Não se pode explicar o que não tem explicação, porque algumas pessoas têm mais inclinações para umas coisas do que para outras. Sentia-me um pouco deslocada nesse momento. Havia me separado, passava pouco tempo em casa, fazia pequenos bicos, dava e fazia minhas aulas no Nós, e minhas amigas do 314 quase todas parindo precocemente, outras se envolvendo com o tráfico ou namorando algum bandido. Era um mundo difícil, havia se passado uns oitos anos, desde que me mudei para o 314, que não parava de crescer. Cada vez que chegava tarde, minha mãe estava passando mal, nervosa comigo


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na rua. Isso acontecia quase todo dia. Quando estávamos nos dois últimos meses de montagem do “Abalou — Um musical funk”, saía de casa por volta das 18h e retornava entre 4h e 6h da matina. Entre um ensaio e outro, a favela sempre foi território muito inconstante, o que dificulta ainda mais o acesso das pessoas à arte e à educação. É um território temido. E o 314, por ser um lugar de difícil acesso, sempre havia sido o paraíso dos traficantes, que se tornavam cada vez mais armados e, portanto, mais perigosos. Maria, minha amiga, que havia se formado professora com 17 anos, era dessas que nasceu “crâninho” e que, claro, deu sorte também. Vem de uma família muito especial, filha de um estofador com uma operária de fábrica, que vira dona de casa para cuidar de seus quatro filhos, todos formados, alguns com mais de uma faculdade. Um deles Luiz Paulo Corrêa e Castro, que é nosso dramaturgo, pessoa a quem devo muito do que sei. Maria, que fazia parte do meu grupo, estava indo morar sozinha, fora sorteada com uma carta de crédito e comprou um apartamento adorável na subida da ladeira. Na época, com 20 anos, fui para lá, ocupava o quarto vizinho e ajudava nas despesas. E minha mãe adorou, porque lá do 314 ela podia ver minha janela. Sei que se não me esperava, já dormia mais tranquila, e mais tranquila ainda quando via minha luz acender e apagar. Mas, como todo filho, desde o dia que descobri isso, só pensava em me mudar de lá. Mas isso não demorou muito. Fui morar com outras duas amigas, o que barateava ainda mais os custos. Por outro lado, as coisas começavam a acontecer. Já era chamada para um trabalho ou outro que me possibilitava às vezes pagar o aluguel, às vezes comer. Assim ocorria também com minhas amigas, mas logo a dona da casa pediu o imóvel e nós teríamos de nos mudar.



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Voltei para casa da minha mãe. Foi difícil. Havia tomado gosto pela liberdade e de ter uma casa para mim. É difícil entrar de novo no ritmo da casa dos pais. Mas minha mãe também já estava em outro ritmo de vida. Quando eu e minha irmã nos mudamos, é que minha mãe pôde pensar um pouco mais nela. Isso me agradava. Ao mesmo tempo, não podia me enfiar na casa dela novamente e, tão logo que pude, voltei a morar sozinha. E comecei a dar um curso em uma turma montada pelo Guti no Sindicato dos Artistas, graças aos meus conhecimentos já adquiridos nas aulas de cinema com a Rosane, sobre assistência de direção. Também precisava de alguém que soubesse usar uma VHS, para ter uma prova prática a ser realizada ao fim do curso. Uma das professoras do curso, a Mirian Pérsia, dava aulas de interpretação — tenho tido sorte nos projetos que venho trabalhando, neles sempre encontro mestres e na maioria das vezes são os melhores —, e eu ficava mais com a parte técnica. A importância da continuidade, como se portar no set, improvisar sem querer aparecer. E teve um dia que eu e a Mirian nos juntamos, e eu filmava com essa VHS nas costas um exercício orientado por ela. Aprendi muito. Ia me virando aqui e ali e morava agora em uma quitinete, muito, muito pequena, mas muito agradável. O Vidigal tem janelas que são tão incríveis, que você esquece todo o resto. Morei muito tempo nessa casa. Sua janela me ajudava a criar. Foram anos de muita criação e realização intensa. Trabalhava no Nós intensamente e acabava de acontecer coisas incríveis. Estava neste espaço envolvida com milhões de projetos o dia inteiro, iniciamos um estudo, mas não tínhamos de cara um novo projeto. Era preciso emplacar uma nova peça, mas a companhia sempre trabalhou com tempo muito grande de pesquisa, com base na improvisação e vivência de situações propostas. Todas as montagens do Nós do Morro, até então, tinham


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sido bem-sucedidas, desde a época do Padre Leeb, ainda com a primeira turma. Poucas pessoas dessa época ainda permaneciam no grupo, a maioria havia arrumado um emprego, outros já eram chefes de família, mães solteiras, cuidando da vida adulta. Morava ainda na quitinete, que me custava R$ 185,00 na camaradagem, porque a D. Leda sempre nos admirou — sabia o que era a dureza da vida de artista e, como também sempre fui uma boa moça e paguei todo o resto direitinho: água, luz, luz de serviço, antena, embora estivesse há anos sem TV —, além de gostar que eu morasse lá. A falta de TV era boa para mim, me obrigava a ler, a escrever, mas para ver um filme dependia de outros. Preferia ficar sem ela, a motivação vinha mesmo da falta de grana para comprar uma e por causa de um comércio muito rigoroso com o consumidor sem poder aquisitivo. Ainda bem que isso mudou. O que não quer dizer que não tenhamos pessoas que não possam comprar uma TV de 14 polegadas na era da TV de plasma. Mas R$ 185,00 eu tinha que guardar só para pagar o aluguel. O que é exatamente essa quantia? Para um jovem que começa a sua vida financeira e não tem como recorrer aos pais é pouco, o que não quer dizer também que eu não tenha recorrido muitas vezes. As primeiras viagens, cursos, qualquer coisa que fosse preciso somar mais do que eu conseguia fazer por mês em dinheiro. Ainda assim percebia que minha mãe, por não mais me ter na casa dela, começava a ter uma melhora na qualidade de vida. Já não tinha tantos gastos diários. Afinal, você saiu de casa, então às vezes é melhor pedir ao Carlos do boteco uma quentinha fiado, que você vai ter de pagar a ligar a semana inteira para a mãe e pedir dinheiro da passagem, por exemplo. Durante esses quatro meses, acumulei cachê de figurino e cachê de atriz de três espetáculos.


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Vivendo dessa companhia que me possibilitava exercitar minha arte e criação, viveria quatro meses com um pouco mais de dignidade. Talvez comprasse queijo nas compras desse mês. Mas isso não resolveria a minha vida. Nesse mesmo ano, fiz trabalhos esporádicos com figurino, praticamente todos com a mesma equipe do “Proibido brincar”, e fazíamos a criação de todas as montagens de fim de ano. Adoro figurino! Cheguei, por momentos, a pensar em abandonar todo o resto e a me dedicar somente a isso. Sempre fui boa com roupas, desde pequena era uma alegria quando minha mãe dizia que a Suely estava separando coisas no armário. Vinham sempre coisas legais. Mas eu mudava uma coisa aqui, encurtava ou desmanchava uma bainha de uma saia, transformava vestidos. As festas juninas do Vidigal eram famosas. Todo mundo tinha de estar bem vestido. Todos estariam lá e ainda traziam muita gente de fora. Todas nós queríamos namorar alguém de fora do Vidigal, era um sinal de status. Naquele ano, a Xuxa havia lançado uma bota que amarrava nas pernas, e duas das minhas amigas tinham ganhado. Meu pai me prometeu, mas acho que a bota era cara demais. Próximo a uma festa junina, perturbei tanto meu pai que ele disse que se tivesse dinheiro me daria a bota no fim de semana. Já tinha passado a semana inteira reformando uma roupa para usar com a bota no sábado. Era um vestido tipo bata de grávida que chegou na sacola da Suely. Interessei-me pela estampa. Tinha visto essa estampa em um filme — um dos poucos que vi no cinema durante minha adolescência em um programa para aniversário ou um dia nas férias — chamado “Garotos perdidos”, uma história de vampiros, a mocinha do filme vestia longas saias esvoaçantes. Fiz escondido da minha mãe que sempre reclamava que eu estragava a máquina dela, toda vez que a usava. Uma saia de pala e um bustiê que me obrigou a


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destruir uma sacola das Sendas para o reaproveitamento de suas alças no suporte que serviria de argola para junção das duas bandas do bustiê que amarrava no pescoço. Como era junho e muito frio no Vidigal, providenciei dois pequenos botões pretos grandes nas mangas de uma jaqueta preta, porque tinha certeza que iria usar. Fiz os últimos remendos à mão, já que no sábado minha mãe estava em casa. À tarde, fui até a Rocinha como tinha combinado com meu pai. Sei que nesse dia enchi o saco dele. Tentava me convencer de esperar até o outro fim de semana e tentaríamos uma bota no Saara, mas para mim era muito importante ir com as botas naquele dia na festa. Ele, como não aguentava mais, me estipulou uma quantia e disse que compraria a bota se eu conseguisse alguma com aquele valor... Fomos até o Fashion Mall. Nunca conseguiria comprar uma bota lá. Saí muito triste, vi que nesse dia ele queria me ajudar, por mais que não entendesse a urgência. Convenceu-me a ir numa barraca na feira do boiadeiro. Com um discurso contra ao preço caro e por maior acesso, acabei experimentando uma bota que não era exatamente como a da Xuxa, mas era bota, era branca e calçou legal. Teria uma bota diferente. Ele me deu. Naquela noite desfilei na festa junina com a roupa mais legal e aquele look havia sido todo preparado por mim. Tenho certeza do dom para lidar com roupas, as horas de observação, enquanto minha avó costurava. Mas tenho dificuldade de lidar com o ator quando o mesmo ignora que o figurinista é também um criador, um desenhista de movimentos, e que se ele acha que a cambraia é melhor, deixa a cambraia. Esse momento sempre me estressou, sei que todos somos falíveis e que às vezes o figurinista está totalmente equivocado em sua criação, mas devemos respeitar uns aos outros.


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Fomos convidados para participar do programa do Cazé Peçanha, na Rede Globo. A proposta feita ao Guti: eram técnicos artistas, cada um com uma expertise e que de vez em quando iam atuar. Fomos eu, Marcelo Mello, Márcia Francisco, Lucio Andrey, Joanna Costa, André Santinho, José Mario, Leandra Miranda e Roberta Rodrigues. Estávamos há mais de quatro anos juntos, era uma equipe divertida e muito criativa. O Zé Lavigne dirigia o programa. Aquela engrenagem televisiva era uma novidade para nós. O piloto ficou sendo gravado por quase um ano, mudou de formato algumas vezes. Nós tentávamos nos adaptar a tudo. Até hoje tenho cinco linhas escritas daquela época e que desejo fazer um curta, “O ano em que rimos demais”. E uma brincadeira, porque gastávamos muito e logo depois tivemos tempos muito difíceis.“Quem ri demais depois chora.” Davam R$ 200,00 nas nossas mãos todo sábado. Uma tentação! Assim que o programa acabou, só foi ao ar quatro vezes. Sem muito sucesso. Após o término do programa, nos jogamos de cabeça na pesquisa de um novo espetáculo. O curso do sindicato passou para o Retiro dos Artistas, e eu fui dar aulas. No primeiro ano duas vezes por semana. O que somado aos R$ 150,00, que ganhávamos de um fundo da Prefeitura por meio da Secretaria de Cultura, ia me segurando, e de vez em quando fazia um trabalho ou outro como atriz e se a coisa apertasse, fazia também produção e produção de elenco. Continuava me virando. Os ensaios do “Noites do Vidigal” foram se intensificando. O projeto estava sendo avaliado pela Petrobras. Trabalhava em vários lugares, namorava pouco, ensaiava e me dedicava a aprender a cantar. O Guti adora musicais. O “Noites” caminhava para isso. Durante o processo do “Noites”, que optei por não trabalhar em outra coisa que não fosse o espetáculo, foi um momento tão difícil que costumava — sem saber


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em quem colocar a culpa — culpar a casa onde estava agora. Dizíamos, eu e a Chuchu, amiga que morava comigo: “Precisamos sair desta casa, ela tem um negócio ruim. Puxa a gente pra baixo.” Claro que não era só a casa. Era tudo! Eram as escolhas. Nós as fazemos, mas depois temos de arcar com as consequências. Estava precisando de uma casa barata. Achamos a casa e nos mudamos. Mal nos cabia e, ainda por cima, ela tinha herdado da mãe, que voltava para o Ceará, milhões de caixas, com milhões de roupas e coisas, que foram empilhadas na sala. Muitas foram vendidas em bazar, por um preço muito barato a fim de fazer um dinheiro. Aconteceram tantas coisas no processo desta montagem que minha cabeça fica zonza de tentar lembrá-lo. Depois da exigência de exclusividade, se a direção achou que iam agir racionalmente os que ali estavam, se enganou. Fomos todos emocionais. Não vi ninguém sair fora. Mas vi vários, como eu, largar seus empregos para dedicar-se ao espetáculo. Como se não bastasse, durante o processo perdi um bebê, de muito pouco tempo, mas que me abalou muito. Como já estava debilitada e passando por momentos de estresse profundo, tive um período muito penoso, mas o sucesso do espetáculo, após sua estreia, voltou a me animar. Infelizmente, não conseguimos um projeto que pudéssemos ganhar para continuar fazendo o espetáculo, uma manutenção de temporada, e ficou impossível. Tinha de sair do elenco. Outros também o fizeram. Recebi uma visita do Lucio que naquele momento fazia parte da equipe da série para TV Globo, produzida pela O2, “Cidade dos Homens”. Conversamos muito. Ele esteve afastado porque emendou o “Cidade de Deus” com a preparação das séries. Eu estava desanimada e há muito tempo longe do mercado trancada na sala de ensaio.


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Nesse dia ele foi embora e nós comemos mais uma refeição de bolinho de taioba. Graças a Deus, sou uma pessoa de sorte, embora eu realmente achasse que aquela casa não tinha muito boa energia, mas seu quintal tinha muita taioba que nos alimentou durante esse tempo. Decidi que tinha de fazer algo. Não podia ficar nem mais um dia sem dinheiro. Fiz uma promessa a São Judas Tadeu, de quem me tornei devota. Prometi ir até a sua gruta, julgando ser um lugar superlonge. E o grau de dificuldade sempre aumenta o valor das dádivas. Quando descobri que a gruta de São Judas Tadeu, que ouvia dizer, era no Cosme Velho, pensei: ele me adotou. E antes que cumprisse a promessa, me viu entrar na igreja bem desesperada. Era uma sexta-feira, prometi que voltaria toda sexta-feira por nove semanas. São Judas Tadeu, Glorioso apóstolo, fiel servo e amigo de Jesus! A Igreja vos honra e invoca universalmente como patrono Nos casos desesperados, nos negócios sem remédio. Rogai por mim que estou tão desolado. Eu vos imploro: fazei uso desse particular privilégio que vos foi concedido, De trazer visível e imediato auxílio, Onde o socorro desapareceu quase por completo. Assisti-me nesta grande necessidade, Para que eu possa receber as consolações e o auxílio do céu Em todas as minhas necessidades, atribulações e sofrimentos. Alcança-me, São Judas Tadeu, a graça que vos peço para que eu possa louvar a Deus, convosco e com todos os eleitos por toda a eternidade. Desde já agradeço, bendito São Judas Tadeu e tenho certeza da vossa proteção. Quero sempre honrar-vos


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como meu especial e poderoso patrono. Quero ter também a grande alegria de espalhar e incentivar a devoção para convosco por toda parte. São Judas Tadeu, rogai por nós e por todos os que vos honram e invocam o vosso auxílio!

Na segunda semana de novena, o Lucio me procurou, precisariam abrir uma frente na série, uma equipe extra para um episódio da Kátia Lund. A primeira assistente seria a Paola Vieira, uma pessoa com quem tinha trabalhado como repórter para uns programas na TV Zero. Ela ouviu meu nome, se animou e no dia seguinte eu estava trabalhando. Duraria mais ou menos dois meses, arrancariam meu coro, trabalharia como um cão, mas havia um cachê, que me permitiria mudar de casa, já que agora, na minha cabeça, tudo de ruim que estava me acontecendo tinha a ver com a casa, e ainda poderia fazer umas compras. O negócio esteve tão ruim para o meu lado que eu escondia da minha mãe. Mas às vezes ia na minha irmã no domingo, e ela me oferecia almoço. Eu disfarçava que havia acabado de comer algo, sabendo que me mandaria levar, e, então em casa, dividiria com a Chuchu. Amigo é pra essas coisas. Mas agora tudo estava mudando. São Judas Tadeu usava sua diplomacia. O cachê do “Cidade dos homens” me serviria pra mudar de casa. Era preciso, não me sentia bem ali. Assim que mudamos de casa, veio a notícia de que o “Mina de fé” era um dos curtas premiados pela Riofilme. E foi filmado em janeiro de 2003. Iniciava na minha vida uma mudança que nem eu poderia calcular. A primeira delas foi mergulhar profundamente na vida dos textos, da direção, da criação por trás do ator. Todos me questionavam: “Mas você não está no palco? O que houve? Deixou de ser atriz? Desistiu?” Sempre afirmei


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que não desisti de nada, que ninguém caçou meu DRT (registro profissional de ator). Embora com o sindicato atrasado, ainda sou atriz. Quer dizer, posso não estar atriz em alguns momentos, mas ainda sou. Para minha sorte, volta e meia aparece um diretor que acredita em mim, e posso então me divertir. Mas a verdade é que desde que fui ao set do “Mina de fé”, meus principais esforços foram para fazer filmes. Uma semana depois da estreia “Mina de fé”, em noite especial no Odeon, recebi o telefonema da Carla, da Pagu, que fazia nossa assessoria de imprensa, dizendo que uma revista do “Jornal do Brasil” queria fazer uma matéria comigo. Não me mostrei muito empolgada, ela me deu a maior bronca. Eu me defendi: “tô passando mal.” Mesmo assim me convenceu a ir à entrevista e ir ao médico depois. Milagrosamente estou bem nessas fotos. Depois da entrevista, a promissora cineasta que despertava espanto, ao revelar sua origem humilde, deitou-se por pelo menos umas sei horas em um banco de cimento do hospital Municipal Miguel Couto, queimando de febre, e dormiu algumas vezes sobre a bolsa com medo de ser assaltada. Quando o médico me atendeu, e por sorte peguei um que entendia mesmo de medicina, ele me olhou preocupado, me pediu uma radiografia, e ali fiquei por mais um tempo. Ao retornar com o exame, ele nem conversou: “Não é pneumonia. É tuberculose.” Desabei a chorar. Só pensava que ia morrer. Ele muito bem-humorado: “Cabocla. Para de chorar. Ninguém vai morrer aqui. Agora vai ter de tomar muito remédio.” Encaminhou-me para a Santa Casa de Misericórdia, porque ele não podia me dar o laudo, não era pneumologista. Mas foi claro. É para estar lá amanhã pela manhã. Como falar para a minha mãe que o médico tinha essa suspeita, suspeita não, certeza. Ele deu certeza. Ela ficou quase louca. Fomos cedo para a Santa Casa, que me diagnosticou


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e me encaminhou para o posto. Estava na semana do meu aniversário. Que presente, pensava, mas ao mesmo tempo não consegui, no meio daquele sofrimento todo, pensar que era um presente mesmo, ter descoberto e estar tratando. É uma doença terrível. Não te deixa fazer nada, uma fraqueza no corpo. Mas eu reagi bem aos remédios. Ficava tensa cada vez que ia sair um exame de um amigo meu. Não queria ser a culpada de uma epidemia de tuberculose. Havia pouco tempo que tinha voltado a morar sozinha e não estava acostumada com a casa vazia. Tinha sempre um amigo ou outro, mas tive que aconselhá-los a não me visitarem com frequência. Foi um processo difícil. Quem passou por essa doença não eram mais os românticos do século passado, pois esses não tinham nenhuma chance, estavam mesmo condenados. Desde que comecei a tomar os remédios, melhorei bastante, mas os médicos me mantiam em repouso. Eu, a criatura chamada trabalho, que ainda por cima trabalhava como freelancer. Não foi fácil. O Nós, mesmo sem eu dar aulas, me manteve no quadro de pagamento dos monitores, e isso pagava meu aluguel. No programa do posto de tratamento da tuberculose, agradeço a todos, em especial à Denise e à Vera, que me acompanharam e muitas vezes, com longas conversas, levantaram minha autoestima, que cai muito quando a gente fica impossibilitada. Tomava uns seis comprimidos por dia, ia diariamente ao posto pela manhã. Tomava a primeira dose e levava para casa os outros comprimidos. Recebia vale transporte e uma ajuda para refeição de uns sete reais por semana. Minha mãezinha e meu pai me traziam leite, Sustagen e legumes para a sopa que passou a ser minha refeição noturna. Havia me desacostumado a comer, até mesmo perdido um pouco o prazer


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da refeição. Esse é um dos desafios da medicina a essa doença: a alimentação dos pacientes. Voltando ao trabalho, tive sorte de conseguir finalizar o curta antes da doença. E antes da tuberculose, também entrei para um workshop, junto com o Gustavo, para desenvolvermos um sitcom para a TV brasileira. Era uma produtora americana. Mandamos um texto e uma pequena apresentação e fomos aceitos. Um dos produtores, Scott Wood, havia procurado o Guti porque tinha interesse em um sitcom com atores negros e sabia que estivemos envolvidos com “Cidade de Deus”. Isso começou a acontecer. O Nós do Morro crescia e ganhava popularidade rápida com a difusão do filme. Ficamos no Sheraton da Barra durante duas semanas, conhecemos várias pessoas importantes, alguns deles com quem construí amizade. Era um grupo talentoso, destaco o Fabio Danesi, que me deu um de seus livros de contos, que tem pequenas obras-primas. Cláudio Yoshida, roteirista de “Os doze trabalhos” e “De passagem”, este com o ator Silvio Guindane, que é amigo desde que éramos apenas 15 no Nós e que mais tarde fez parte do elenco deste projeto. Conheci também o rapper Macarrão, que havia acabado de ser personagem do filme “Fala tu”. Uma figura tão especial que me fez gostar de Rap do Macarrão e de alguns outros também. Rinaldo Teixeira, um mineiro que virou meu irmão. Agora está com um livro publicado. É letrado na USP, o orgulho da família pobre. O livro foi publicado por meio de edital do governo, Literatura para Todos. Também por seu incentivo, o irmão escreveu um roteiro para o Revelando os Brasis e realizaram o filme que chama “Daqui nós não arreda o pé”. Fazia tempo que eu não via um documentário tão especial. E sei que por influência minha e do Gustavo, dá aulas a adolescentes na periferia de São Paulo, e já vejo os seus pupilos participando de festivais e entrando na grade. Isso


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me deixa mais feliz que tudo, a multiplicação. Ele ainda arruma tempo para mandar contos incríveis para os poucos momentos de reflexão que temos no dia. É bom saber que temos colaboradores nessa luta. Muito mais laços afetivos foram feitos. Permaneci afastada durante o tempo da doença, mas o trabalho também teve lacunas até setembro, quando retomei com consentimento médico. Ainda sem muito esforço e me alimentando de três em três horas, sem esquecer jamais dos seis comprimidos por dia. Recuperei-me. O programa foi ao ar, não era o melhor programa da grade, tinha muitos problemas, causados também pela economia na produção. Eles não encontraram parceiros, mas conseguiram um espaço na grade e resolveram bancar, não é fácil para ninguém, nem para os americanos — os reis das séries e sitcoms para TV. Eles tinham profissionais muito caros como Deby Allan, que tinha vindo para o workshop, um espetáculo, e que dirigiria um dos episódios pilotos. Juntos, nós ganhávamos experiência, amigos, um tempo sendo pagos para escrever. Isso era o mais comemorado por todos que estavam ali, independentemente de precisar mais ou menos de grana. Era o ato de estar contratado para escrever. Quase um sonho. Um sonho. No tempo que estive doente e sem antena de televisão, mergulhei nos filmes, nos livros e voltei a escrever muito. Mantinha a prática do diário e tinha muitos cadernos de anotações, muitas das ideias que venho desenvolvendo hoje nasceram nesses meses. Com a carreira bem-sucedida do filme, as coisas se refletiam na minha vida profissional. Comecei a ser chamada para fazer trabalhos como diretora e assistente de direção. Fiz uma série de psicologia com a Rosane para o Canal Futura e engravidei. Engravidar é aquilo. Você sabe que ficará afastada


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por um tempo, não tem jeito. Mas estava empregada até uns cinco meses de gravidez e vieram as férias e depois com seis meses, quem vai empregar esta mulher? Não dá. Dediquei-me então aos cueiros, bordados, a pintura do quarto, que teve de ser improvisado já que no conjugado em que morava com o Gustavo, agora casados, a claridade é imensa, era preciso construir uma cabana para o menino poder descansar no escurinho. Dediquei-me também a escrever. Finalizei uns roteiros, fiz um argumento cinematográfico para o “Noites do Vidigal”, no qual trabalho para roteirizar, ainda hoje, contos, diários e outros curtas. Um que discuti o vício ligado à pobreza, o estrago que pode causar, outro que trata da maneira com que a criança lida com a morte por meio da perda de um cachorro. Estudava, lia. Foi grávida que tive meu primeiro contato com a Heloisa, quem me convidou para escrever este livro. Em uma sala da UFRJ, ela e Ilana Strozenberg, davam um curso para a cadeira de comunicação, e indicada pela Marina Vieira, recebi um convite para participar do grupo de alunos de extensão do curso. As quintas, então, tinha esse compromisso além de ter de me preparar para a mudança mais radical que eu viveria em toda a minha vida: o nascimento do meu bebê. Nada mais seria como antes. Assim que fiquei grávida, tive momentos de pânico desses que você imagina que nunca mais vai arrumar emprego, não vai consegui dar comida ou trocar fralda. Isso é nada perto de ter de finalizar uma cena ao mesmo tempo em que lê uma estória ou fechar uma planilha na hora em que ele quer ver o ”Homem-Aranha”. Entrei para a vida materna. Foi uma escolha e gostei tanto que já teria repetido a dose se todos os problemas fossem esses. Mas temo financeiramente pela minha família. Apesar de saber o quanto irmão é importante para a socialização de um indivíduo,


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mas sinto que, pelo menos por mais duas gerações, minha família se quiser ter algum tipo de respaldo financeiro, o indicado é ter apenas filhos únicos. Vejo também essa tendência em muitos casais da minha geração. Nossos filhos terão de ser irmãos de seus amigos. Temos uma geração inteira de filhos únicos. Financeiramente falando, jamais poderia ter engravidado, mas resolvi encarar esse desafio assim mesmo. Adapto-me a uma vida com novos horários. Uma casa que tem que se silenciar por volta das 20h. Pensava ser um exagero quando as pessoas brincavam enquanto eu estava grávida e me mandavam aproveitar para dormir, pois nunca mais o faria. Descobri a duras penas que não tem nada de brincadeira. Hoje o Pacífico está com quatro anos e ainda sofro por dormir pouco. Mas em todo esse tempo, fiz muitas coisas que me ajudaram e contribuíram para minha formação. Estar sempre estudando, seja em uma turma no Nós, num curso de extensão da faculdade, um curso livre na escola de cinema Darcy Ribeiro, uma das primeiras a oferecer ao Nós do Morro uma parceria em formação cinematográfica, que até hoje tem nos servido e ajudado muito; em casa ou em grupos de estudos. Mas foi isso que me ajudou a traçar o meu caminho. Venho de uma família que não tinha nada. Sou a terceira geração dela, que formada tem minha irmã que, aos 39 anos, deu esse presente a todos nós. É pedagoga. Com certeza, os bisnetos terão mais sorte. Mas estamos evoluindo, eu, por exemplo, escrevo o que penso porque alguém se interessa em sabê-lo. Isso quer dizer que exercito a arte que acredito. E a isso atribuo a sorte de obter colaboradores para as minhas realizações. O não estagnar do artista é seu ponto motor, uma vez parado, a energia não circula.


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Um pouco de todas as coisas que contei aqui fizeram parte da minha história. Em alguma posso ter exagerado um pouco ou incrementando uma passagem ou outra, sabe como é cabeça de quem faz cena, está sempre inventando. Mas são relatos sinceros, ao certo não sei ao que serve, mas é importante lembrar que todos esses acontecimentos construíram a pessoa que sou hoje. Embora tenha ainda dificuldade de rapidamente dizer qual é a minha profissão, deveria dizer: atriz, roteirista, diretora, cineasta, professora, produtora, coordenadora do Audiovisual do Nós do Morro. Talvez dar aulas tenha sido a atividade que fiz por mais tempo e com mais frequência. No Nós, o ano de 2009, foi o primeiro que estive fora das salas de aula e trabalhei apenas na coordenação do curso, que sobrevive. Levamos vinte e dois anos para compor uma grade ideal para a preparação do ator. A área cinematográfica ainda não vê a mesma luz, tampouco na formação de técnicos. É nossa busca primordial nesse momento. Claro que temos de formar criadores, mas o perfil do criador de hoje é o de criador-realizador, e para realizar é preciso criar suporte, é preciso ter ferramentas para isso. E precisamos achá-las. O pobre vai estar sempre correndo atrás do prejuízo, principalmente quando se tratam de oportunidades de estudos. Por isso, a escola informal (os cursos livres) é cada vez mais procurada, ela, às vezes, cria a oportunidade não só de você se descobrir, mas também de por meio dela fazer escolhas e se aperfeiçoar. Aprendi muito em sala de aula no Nós. Foram onze anos dando aulas de interpretação com base no improviso. Gosto muito disso! Turmas de idades muito variadas, mas meu foco principal eram os adolescentes, idade muito difícil e, às vezes, temidas pelo professor, mas que eu adoro. Todos os adolescentes que passaram por mim


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já entraram na idade adulta e alguns deles tornaram-se amigos. É especial ver alguém crescer carregando algo que tenha sido plantado por você. Vejo meus traços em muitos deles, e também sempre formei opinião. Atividade que rapidamente lhe dá responsabilidades. Em uma sala de aula, o principal é expor as ferramentas que o jovem vai ter para utilizar em sua vida e incentivá-lo a ter cautela quando for arriscar. Na vida de todos isso é fundamental, mas na vida do artista, é primordial. Arrisco e não me arrependo. Foi arriscando que cheguei até aqui. O que pode fazer todos se perguntarem: Onde é aqui? Uma pessoa que sonhava em mudar o mundo, sonhava em ser artista, sonhava em influenciar opiniões, alguém que não queria apenas ver a banda passar, mas sempre quis estar nela. Sempre quis fazer história. Estou aqui. Venho com afinco deixando meu pequeno legado ao mundo. O Nós do Morro ainda está longe de ser uma escola de cinema perfeita, mas caminha para produções cada vez mais ousadas e pretende crescer ainda mais. Sempre gostei de estar na execução das coisas. Quando pequena era tão ativa que costumava acordar antes de todo mundo, preparar a mesa do café, comprar pão e colocar à mesa as rosquinhas de farinha de trigo — especialidades da minha mãe que fritava de noite para que pela manhã eu misturasse a canela com açúcar. Muitas vezes ia a pé a quinze minutos de casa comprar o pão. Claro que isso era também para mostrar o quanto estava feliz por minha mãe estar em casa. Também era eu quem acordava meus primos para irem à escola e algumas vezes ainda tinha de segurar o ônibus explicando ao motorista que só faltava escovar os dentes. Essas atitudes demonstram características de uma pessoa que não está a fim de esperar que as coisas aconteçam, está a fim de fazê-las acontecer.


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Minha mãe tem orgulho de me ver no jornal, mas quando fico um tempo afastada das manchetes, mesmo para ela, eu não passo a ser alguém que escolheu um caminho muito difícil e tortuoso. Mas é claro que ela se preocupa com o futuro de sua filha, que deveria resguardá-la em algum momento da sua vida e não precisar dela eternamente. Hoje desejo realizar filmes, desejo escrever, desejo que meu filho tenha orgulho de mim e leve consigo o legado de que nesse mundo é importante fazer sua parte escolhendo sempre o caminho do bem. Ainda sonho em ver alguns meninos que cresceram no Vidigal, assim como eu, não cansarem e não desistirem na busca da melhoria de sua qualidade de vida, assim como a dos seus. Assim também como no caminho para realização de seus sonhos. Realizo-me quando vejo alguns deles na faculdade ou estrelando um bom filme. Porque me corta o coração perceber que o sonho de um menino da favela é ser mototáxi, porque ele acha que é o máximo que pode chegar. Isso me entristece. No Vidigal, luto para que eles se inscrevam no projeto e tenham boas aulas e possam usá-las para reflexões sobre suas vidas, mesmo que esse ou aquele não queiram se tornar artistas. Tenho fé de que sejam cidadãos modificados. Atentos e atenciosos ao mundo em que vivem, e que suas revoltas e inquietudes sejam transformadas em força de vontade e desejo de mudança. Parece papo do Profeta Gentileza, mas foi assim que esse cara chamado Guti Fraga chegou perto de mim. E fez com que eu abraçasse suas ideias, compartilhasse delas, fizesse nascer dessas ideias novas ideias e, assim, fez com que eu tivesse a chance de multiplicá-las também. A minha escolha é dessa arte: compromissada com o outro, com a busca, com o mundo, com a melhoria para os povos. Sem esses preceitos de que a arte é morta e nula.


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Não sei muito bem a quem se destina o que escrevi aqui. Quem vai se interessar pela biografia de uma pessoa comum, que tenta descrever onde chegou estando ainda no meio do caminho. Mas são esses os pontos que me fizeram a pessoa que sou hoje. Gosto demais de viver. E quero carregar dessa vida as melhores lembranças. Algumas delas estão aqui neste livro. Outras nunca serão contadas. Já tinha vivido muitos desafios, mas este, dado pela Heloisa Buarque, de contar minha história, foi mais que um desafio. Enquanto escrevo no computador, Pacífico entra no quarto brincando e tenho de largar tudo e ver o que está acontecendo, ou em dias mais complicados, ele está febril, precisando de cuidados. Essa é uma nova etapa de adaptação, a de se tornar mãe. Já no Nós do Morro há muitas atividades a resolver, projetos a serem pensados, todos na esperança de ser um novo ano cheio de trabalho. O “Acende a luz”, um dos curtas do 5x Favela – Agora por nós mesmos, está prestes a estrear. O filme ficou pronto há quatro meses, em abril de 2010, foi convidado para a seleção oficial do Festival de Cannes e ganhou sete prêmios na Competitiva do Festival de Paulínia. Foi muito especial receber o convite para o livro. Não se trata dessa palhaçada de programa de televisão — “Foi um presente”. É especial mesmo porque tive a oportunidade de refletir sobre as coisas que tenho feito. Minha trajetória até esse momento. Esse processo me falou muito de disciplina. Como na vida esta é a palavra que deveríamos aprender e catequizar. Não como uma palavra de ordem, mas de consciência. Na vida tudo é disciplina. Para o corpo, para a mente, o amor, o trabalho, a realização dos sonhos. Disciplina a favor da democracia!


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Também pude refletir em que tenho errado mais. Em que estou acertando. Onde agora eu quero chegar? Apontou-me soluções. O que devo colocar no meu próximo filme? Será bom? Conseguirei de fato me expressar por meio da câmera? Os convidados virão a essa festa? Terá público nessa sessão? Termino. Termino da forma que sempre começo: na expectativa. Pareço até me ver com 5 anos de idade andando na casa, enquanto minha mãe costurava uma fantasia para que eu fizesse qualquer coisa que seja e eu falando sem parar! Ela sempre me dizia: — Luciana, para de falar. Vai dormir. Se não a fantasia não vai ficar pronta. Amanhã se fizer o dever direitinho, for boa menina e comer verduras, vai dar tudo certo!

E a história continua...


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Imagens: índice e créditos P.20 Festa da Escola Educandário da Misericórdia – Eu, meu pai Luiz, minha mãe Maria e minha irmã Martha foto: Acervo pessoal P.23 Festa junina – Eu e minha irmã Martha foto: Acervo pessoal P.24-25 Eu na festa de Ano Novo das revendedoras AVON foto: Acervo pessoal P.32-33 Ensaio no set do filme “Mina de fé” - Favela do Vidigal – Eu,

Luciano Vidigal (ator), Manoel Jr.(ator) foto: Acervo pessoal P.36 Teatro do Vidigal foto: Acervo Nós do Morro P.41 Minha carteira de trabalho foto: Acervo pessoal P.48-49 Meu registro de atriz foto: Acervo pessoal P.54 Festa junina no Vidigal – Eu, João Pacífico (meu filho) e Gustavo Melo (meu marido) Acervo pessoal P.55 Em cena, desejando boas-vindas no Centro Cultural do Nós do Morro foto: Acervo Nós do Morro P.62-63 Aos 15 anos com vovó Nazica e vovô Geraldo, no barraco do 314, Vidigal foto: Acervo pessoal P.68-69 Na festa de 2 anos no barraco da rua 4, Rocinha foto: Acervo pessoal P.78-79 Recordação do Jardim de Infância, no Colégio Cenesista Maricá foto: Acervo pessoal


P.93 Michael Jackson Capa de LP P.101 Ensaio da peça Chica Boa - Eu, Heldi e Sabrina Rosa foto: Acervo pessoal P.104 Com alunos e amigos em produção de figurino para a Mostra de Teatro Nós do Morro – Eu, Márcio Lopes, Gorette Bezerra e minha sobrinha Sofia foto: Acervo pessoal P.106-107 Ensaio de “A tempestade” – Robert Pacheco, eu, Pierre Santos, Wendel Barros, Sabrina Rosa, Mary Sheyla de Paula, Jaqueline Ferreira e Diego Dias foto: Acervo Nós do Morro P.124 Ensaio com figurino - Espetáculo “Noites do Vidigal” – José Mario, Cíntia Rosa e Carlos André (Careca) foto: Acervo Nós do morro P.130-131 Em visita ao Pão de Açúcar no primeiro intercâmbio feito com o Nós do Morro (Brasil, Portugal, Alemanha, França e Colômbia) foto: Acervo Nós do Morro P.137 Matéria do jornal O Dia foto: Acervo Nós do Morro P.146 Ensaio “Noites do Vidigal” – Eu e D. Maria Elnice (atriz) foto: Acervo Nós do morro P.147 Diretoria Nós do Morro - Zezé Silva, Guti Fraga e Fred Pinheiro (acima) e Luiz Paulo Corrêa e Castro e Zezé Silva (abaixo) foto: Acervo Nós do Morro P.156 Em Sintra, primeira viagem ao exterior foto: Acervo pessoal P.161 Equipe e atores do filme “O jeito brasileiro de ser português” – Brás de Pina foto: Acervo Nós do morro P.170-171 Em Clermont-Ferrand para o Festival Internacional de Curtas-Metragens, em 2005 foto: Acervo pessoal P.175 João Pacífico feliz para posar em seu primeiro passaporte foto: Acervo pessoal P.180 Ingresso em Clermont-Ferrand foto: Acervo pessoal


P.187 Grávida no Cordão do Bola Preta foto: Acervo pessoal P.198-199 Parte do roteiro do curta “Mina de fé” foto: Acervo pessoal P.209 Foto para a entrada em Clermont-Ferrand foto: Acervo pessoal P.216 Eu e João Pacífico foto: Acervo pessoal P.222-223 Eu e Cacá Diegues na filmagem do episódio “Acende a luz”, do 5x Favela – Agora por nós mesmos foto: Claudia Ferreira P.232 Primeira comunhão – Eu e Frei Henrique foto: Acervo pessoal P.238-239 Foto para divulgação da peça “Machadiando” – Lucio Andrey, Sabrina Rosa, André Santinho, Mary Sheyla de Paula, Cíntia Rosa, eu, Diego Dias, Pierre Santos e Flávia Frenzel fotos: Acervo Nós do Morro P.240 Eu e João Pacífico em Berlim foto: Acervo pessoal P.241 Eu na filmagem do episódio “Acende a luz”, do 5x Favela – Agora por nós mesmos foto: Claudia Ferreira P.249 Em cena, na peça “Machadiando” foto: Acervo Nós do morro P.257 Eu na praia Croisette, no Festival de Cannes, em 2010 foto: Acervo pessoal P.262

Em dia de teste de elenco – 5x Favela – Agora por nós mesmos foto: Arthur Sherman




Sobre a autora Luciana Bezerra nasceu, em 1974, no Rio de Janeiro. Em 1992, começou a estudar teatro no grupo Nós do Morro, que foi fundado em 1986, na favela do Vidigal, pelo diretor e jornalista Guti Fraga. O grupo integra vários jovens interessados na experiência inovadora da arte cênica e profissionais da área artística e técnica. Sua experiência neste grupo foi bem ampla. Luciana participou de oficinas de montagens como atriz, figurinista, diretora, escritora e roteirista. Em 2002, foi premiada pela Riofilme com o roteiro do curta-metragem “Mina de fé”. Assinou a primeira direção, em janeiro de 2003, com esse roteiro, que foi premiado como melhor filme no 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Festival Curta Cinema, Menção Honrosa ABDeC no Festival Internacional do Rio de Janeiro, Prêmio Porta Curtas no Festival Internacional de Curtas de São Paulo e o único curta brasileiro a participar da mostra competitiva do Festival de Curtas de Clermont-Ferrand (França), no ano de 2005. Atualmente prepara-se para lançar o filme “Acende a luz”, episódio do projeto de longa-metragem: 5x Favela – Agora por nós mesmos, produzido por Cacá Diegues. Coordena o Núcleo Audiovisual Nós do Morro, que tem em seu currículo quatro produções de curta-metragem em película 35mm (“O jeito brasileiro de ser português”, “Mina de fé”, “Picolé, pintinho e pipa” e “A distração de Ivan”), além de alguns filmes em suporte digital. Todos com grande circulação e premiações em festivais dentro e fora do Brasil.


Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m². Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m². Impresso pela Prol Gráfica em agosto de 2010. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nessa obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



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