Notícias da Favela

Page 1


NotĂ­cias da Favela



Notícias da Favela Cristiane Ramalho

Patrocínio

Apoio


Copyright ©2007 Cristiane Ramalho COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES projeto gráfico CUBÍCULO NOTICÍAS DA FAVELA produção editorial LARISSA DE MORAES e ROBSON CÂMARA revisão STEPHANIA MATOUSEK revisão tipográfica BRUNO DORIGATTI curadoria de imagens KITA PEDROZA e SANDRA DELGADO assistência de curadoria WALTER MESQUITA fotos de capa KITA PEDROZA

R135n Ramalho, Cristiane

Notícias da favela / Cristiane Ramalho. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. il. - (Tramas urbanas ; 1)

Anexos Inclui bibliografia ISBN 978-85-86579-93-6

1. Viva Favela (Portal) - Rio de Janeiro (RJ). 2. Favelas - Rio de Janeiro (RJ) - Recursos de redes de computadores. 3. Favelas - Aspectos sociais - Rio de Janeiro (RJ). 4. Jornalismo eletrônico - Rio de Janeiro (RJ). 5. Jornais comunitários - Rio de Janeiro (RJ). 6. Organizações não-governamentais - Rio de Janeiro (RJ). 7. Movimentos sociais - Rio de Janeiro (RJ). I. Título. II. Série. 07-2853. CDD: 070.43

CDU: 070.1:004.73

25.07.07

26.07.07

002858

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22440 030 TEL: 21 2529 6974 Telefax: 21 2239 7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia social – se reforçam cada vez mais movimentos culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam os de alguns segmentos específicos: grupos musicais, grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas de idêntica importância, embora com menos visibilidade, é a produção intelectual que cuida, além de questões artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos. A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes, um consistente e instigante apanhado dessa produção amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que não são originários de favelas ou regiões periféricas dos grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionáveis das elites intelectuais”. A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar. Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século, cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar para diminuir as distâncias sociais é um esforço imprescindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.


A Sven e Nina, minha alegria cotidiana. A Walter (em mem贸ria), Diana e Claudia Ramalho, por tudo. Aos correspondentes comunit谩rios, por me ensinarem um novo olhar sobre as favelas cariocas.


Agradecimentos A grande culpada pela existência deste Notícias da favela é Ilana Strozenberg, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde o primeiro momento, ela acreditou – e me fez acreditar – na importância deste registro. Com sua animação contagiante, Ilana esteve presente ao longo de todo o processo, trazendo sugestões iluminadas e questionando pontos fracos. É dela, acima de tudo, o mérito de ter idealizado uma pesquisa sobre o Viva Favela que se provaria vital para a reconstrução de boa parte das histórias aqui relatadas. Merecem crédito ainda os estudantes que realizaram as entrevistas na pesquisa coordenada por Ilana: Aletéia Maria da Silva, Ana Carolina Alves, Beatriz Nascimento Lins de Oliveira, Clarissa Peixoto, Carolina Andrade, Eric Macedo, Esther Medeiros, Fernando Vannier, Gênis Fidélis, Luana Monçores de Lima, Luciano Mello, Marcelo Pereira Garcia, Marília Assad de Oliveira, Rafael Galdo, Renata Giannini, Raphael Bispo dos Santos, Simone Cunha, Thiago Prado e Thiago Sabatinelli Rodrigues. Gostaria, acima de tudo, de dividir os possíveis acertos desta publicação com os correspondentes comunitários e jornalistas que trabalharam no projeto no período abordado (2001 a 2005) e que aqui despontam como protagonistas, com suas narrativas e reportagens.


Meu agradecimento mais do que especial vai para a jornalista Tetê Oliveira, companheira de todas as horas no Viva Favela, que muito ajudou a construir a história do veículo – e a viabilizar o seu registro – com suas sugestões certeiras, sua boa memória e sua dedicação carinhosa. Mais do que especial também é meu agradecimento a Heloisa Buarque de Hollanda, diretora da Aeroplano Editora, pelas sábias considerações e pela fé inabalável no projeto. É dela a idéia de fugir de um relato teórico e frio, distante da realidade que experimentamos no portal, e transformar Notícias da favela numa grande reportagem sobre os bastidores do jornalismo nas favelas cariocas. Meu carinho ainda para toda a equipe da Aeroplano, aí incluída a revisora Stephania Matousek, pela dedicação e gentileza. Aos jornalistas André Trigueiro, Cristina Azevedo, Denise Ribeiro, Flávio Pinheiro, Isabela Kasow, Marcelo Beraba, Marcelo Moreira, Márcia Vieira, Marcos Sá Corrêa, Rafael Casé, Sergio Torres, Oscar Valporto e Xico Vargas, minha gratidão por terem ajudado a esclarecer aspectos importantes nesta narrativa. O mesmo vale para Peter Lucas e Sandra Carvalho. Acima de tudo, é impossível esquecer o papel desempenhado pelas amigas e editoras de fotografia Kita Pedroza e Sandra Delgado, ex-companheiras de Viva Favela, que, além das bemvindas sugestões ao texto, ainda se dispuseram a realizar a dificílima seleção das fotos aqui apresentadas. Todo o meu carinho a elas, e também ao fotógrafo Walter Mesquita, que deu grande força na pesquisa desse material. Por fim, uma dívida eterna com os amigos que tiveram a disposição de ler os originais e de trocar idéias: Atenéia Feijó, Christina Vital, Fernando Ewerton, Regina Taccola, Silvia Leitão e Valéria Propato. A Mônica Maia, um agradecimento especialíssimo pelas contribuições inspiradas e pela infinita paciência.


Aos tantos amigos e familiares queridos que trouxeram motivação, deixo um abraço apertado. Entre eles, Claudia e Diana Ramalho, Helena Vasconcelos, Mariflor Rocha, Dieter, Heidi e Sven Hilbig. Finalmente, agradeço a Rubem César Fernandes pela confiança e apoio à idéia do livro, e aos amigos do Viva Rio que ajudaram a viabilizar a experiência aqui relatada. Em especial, Adriana Perusin e Maria Helena Moreira Alves, Marta Ramos, Mônica Cavalcanti, Chris Magnavita e Adriana Lacerda. Um agradecimento especial vai ainda para a Fundação Roberto Marinho, que teve um papel fundamental na viabilização deste livro. Toda a minha gratidão a José Roberto Marinho e a Hugo Barreto, respectivamente presidente e secretário-geral da instituição, por sua aposta na importância desta publicação, bem como a Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação.


Decifra-me ou te devoro, diz a favela. A cidade, que não consegue enfrentar a questão, é forçada a entregar seus filhos à morte, dia após dia, por anos e anos. Desesperada, a cidade chama os generais, mas eles falham e também se assustam, pois a pergunta não cala e os jovens militares são os primeiros a matar e a morrer. Olha para mim, diz a favela. Ouve o meu som: quatro patas pela manhã, duas à tarde, três à noite. É o enigma que os correspondentes do Viva Favela estão a revelar. Rubem César Fernandes

Mais do que nunca, o poder está ligado à comunicação. Quanto mais informação circular, mais difícil será a reprodução de autoritárias relações de poder. Mas como interromper a perversa dinâmica que restringe o acesso às informações e (re)produz exclusão cultural? Regina Novaes


SUMÁRIO

12 Apresentação — Ilana Strozenberg 14 Introdução

Cap.01

22 Em busca de novos ângulos 30 Notícias além do front 38 Na boca do lobo

Cap.02

52 Memória resgatada 63 Com o pé na lama 71 Segunda é dia de festa

O portal decola

Batalhas (e alegrias) cotidianas

Cap.03 82 94 103

No rumo certo Derrubando muros Passarela de tábuas Comando verde

Turbulência no ar Cap.04 116 Repórter bom é repórter vivo 128 Um divisor de águas 138 Códigos de conduta Favela em foco Cap.05 150 Luz sobre o beco 162 A bomba de MV Bill 176 Do outro lado da tela O avesso do gueto Cap.06 186 Rede virtual 197 Jornalismo é coisa de ONG? 210 A semente estava lançada

214 Anexo 01 Matérias selecionadas 311 Anexo 02 Correio virtual 324 Anexo 03 Todos no mesmo barco

331 Referências bibliográficas 332 Sobre a autora


Apresentação A primeira vez em que entrei numa favela foi pela tela do computador. Viva Favela! O nome no alto da página do portal criado pelo Viva Rio parecia um convite. Aceitei. E, a cada click do mouse, aquela visita virtual fazia com que me sentisse cada vez mais próxima do cotidiano das favelas e de seus moradores. Um cotidiano que contrastava fortemente com o que me era dado conhecer através das notícias que, num contexto marcado pelo acirramento da violência urbana – estávamos no início da década de 2000 –, predominavam nos meios de comunicação. Ao invés de criminalidade e perigo, cenas de uma sociabilidade original, dinâmica e criativa; ao invés de pessoas fadadas a um destino de carência e desesperança, personagens fascinantes, empreendedores e cheios de histórias para contar. Aquela diferença me conquistou e me intrigou ao mesmo tempo. Ali, sem dúvida, alguma coisa inédita estava acontecendo no campo do jornalismo. Inédita, em primeiro lugar, no que se refere ao tipo de enfoque e informação veiculada: de espaço do estigma, a favela se transformava em espaço de vida. Mas inédita também, como percebi logo depois, na sua forma de produção. Com uma equipe composta por jornalistas profissionais e correspondentes comunitários, moradores de diferentes comunidades faveladas do Rio de Janeiro, o Viva Favela estava implementando uma experiência totalmente nova, em que relações de parceria e criação de redes eram as palavras-chave. Essa iniciativa precisava ser investigada. Movida por um interesse que, como descobri posteriormente, era compartilhado com outros estudiosos do campo da comunicação e das ciências humanas e sociais (o Viva Favela foi tema de alguns trabalhos universitários no Brasil e no exterior), reuni alguns alunos da graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro num laboratório e pesquisa e, juntos, buscamos conhecer um pouco mais sobre o funcionamento do site e


13

compreender melhor a sua proposta, o modo como era realizada, seus sucessos e impasses. Tudo isso na perspectiva dos responsáveis diretos pela sua criação e produção. Cristiane Ramalho, que, na época, desempenhava a função de editora, mas integrava o projeto praticamente desde o seu início, em 2001, foi nossa anfitriã e mediadora junto à equipe do Viva Favela. A convicção e, não seria exagero dizer, paixão com que realizava seu trabalho, jamais comprometeu a abertura com que falava e discutia a esse respeito. Ou com que colaborava para que outras vozes, mesmo que divergentes, fossem ouvidas. No decorrer da pesquisa, acabamos parceiras. A oportunidade e urgência de fazer o registro da experiência de implantação do Viva Favela nos seus primeiros cinco anos de existência era uma evidência para ambas. E, certamente, ninguém melhor para escrever essa história do que a própria Cristiane. A sobriedade com que lida com sua participação pessoal e profissional no projeto, somada à sua sensibilidade e talento jornalístico, só fazem tornar o seu relato mais fluente e vívido, levando o leitor a participar da aventura, muitas vezes complexa, de fazer do jornalismo um espaço em que a informação seja ao mesmo tempo resultado e estímulo de trocas. Em que democracia e interatividade não sejam meras palavras, mas práticas efetivas.

Ilana Strozenberg


PAULO CARDOSO, MORADOR DO CANTAGALO Matéria: Vizinhos de toda hora Viva Favela 18/04/2003 Crédito: Walter Mesquita


15

Introdução Impossível entender o Rio de Janeiro sem conhecer a favela. Mas quem realmente a conhece? Mais de um milhão de pessoas que vivem nela, com certeza. Fora isso, talvez um ou outro cidadão, movido pela curiosidade ou por algum trabalho que exija uma subida ao morro. E só. Em geral, é raríssimo encontrar moradores do asfalto dispostos a fazer uma visitinha a essas áreas, consideradas cada vez mais “de risco”. Não sabem o que estão perdendo. Para quem consegue vê-la de perto, a favela carioca é um dos lugares mais intensos da cidade. E infinitamente mais interessante do que o que se vê na imagem transmitida pela grande mídia, que tende a cobrir majoritariamente fatos ligados à violência. Uma cobertura monocromática que levou um grupo de líderes comunitários a sonhar, mais de uma década atrás, com uma nova forma de se falar da favela. Eles queriam uma abordagem mais precisa e menos preconceituosa dessas áreas, e pediram ao Viva Rio (leia-se Rubem César Fernandes, diretor-executivo dessa ONG) que articulasse uma mudança nesse sentido. O desejo foi levado, em 1995, a representantes dos três jornais de maior circulação na época, no Rio de Janeiro: Walter Mattos (O Dia), João Roberto Marinho (O Globo) e Kiko Brito (Jornal do Brasil), que se comprometeram a ajudar na empreitada. Seria preciso esperar até julho de 2001, no entanto, para conhecer o Viva Favela – um portal criado pelo Viva Rio capaz de produzir uma visão mais abrangente dessas comunidades e, para a surpresa de muitos, interferir na pauta da mídia tradicional. O segredo estava na redação, formada por quinze moradores de favela – os “correspondentes comunitários” – que atuavam como repórteres e fotógrafos, sob a supervisão de jornalistas profissionais.


16

Notícias da Favela

A criação do portal coincide com a explosão da Internet, que permite o surgimento de novos canais de comunicação imunes aos aumentos no preço do papel, que tanto atemorizam a mídia impressa. Coincide, também, com uma cobertura cada vez mais limitada das favelas pela imprensa do Rio. Até a clássica reportagem que sobe o morro no rastro das patamos começava a ficar extremamente difícil. E as pautas de fôlego iam se tornando mais raras. Nem sempre por falta de interesse, é verdade. Mas, acima de tudo, por questões de segurança. Uma cautela justificável quando se considera a ampliação do domínio do narcotráfico sobre as favelas do Rio a partir da década de 1990. O assassinato do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, durante a apuração de uma matéria na favela da Grota, em meados de 2002, funciona como um divisor de águas e impõe limites ainda mais severos às equipes que cobrem essa área. Além da própria Globo, vários outros veículos adotam regras rígidas para proteger seus profissionais. Em 2004, a polêmica em torno das barreiras de atuação dos jornalistas nas favelas se intensifica quando uma jovem repórter da TV Band é ferida durante a cobertura de um tiroteio aos pés do Dona Marta, na Zona Sul do Rio. Esse panorama ajuda a transformar o Viva Favela numa das principais fontes de informação sobre essas áreas. E o que parecia impossível acontece. De repente, a grande mídia começa a ser influenciada por um projeto de comunicação pequeno e independente, criado e mantido por uma ONG. Com acesso a histórias e personagens que só poderiam ser descobertos na própria favela – ou por meio de fontes que os veículos tradicionais geralmente não têm nos morros –, o portal oferecia aos jornalistas um atalho seguro para chegar às comunidades do Rio. Olhando pelo retrovisor, é certo que o projeto teve um caminho acidentado. Mas conseguiu dar algumas tacadas certeiras. Entre elas, o Caso Borel – um dos mais graves exemplos de violação de direitos humanos no Brasil, ocorrido em 2003. Ao investigar e dar publicidade a um e-mail que denunciava a execução de


Introdução

17

quatro trabalhadores da favela pela polícia, o Viva Favela fez a história, que fora praticamente ignorada pela mídia, ganhar repercussão nacional e internacional. Nada mal para um projeto cujo arcabouço começara a ser desenhado apenas três anos antes, a partir de conversas entre o antropólogo Rubem César Fernandes e jornalistas experientes, como Marcos Sá Corrêa. Foi provavelmente na conversa com Marcos que surgiu a idéia de se criar uma redação formada por correspondentes em favelas, sob inspiração do hoje extinto site No. (2000-2002) – revista eletrônica pioneira com colaboradores em vários pontos do país. Antes da virada para 2001, o portal já começava a ganhar forma nas mãos dos jornalistas Xico Vargas, fundador do Viva Favela, e Oscar Valporto, e do próprio Rubem César. Mais alguns meses, e estaria no ar. Um dos luxos do Viva Favela – e talvez seu maior pecado – foi investir numa redação que chegou a ter quase trinta pessoas. Um time difícil de financiar, especialmente para um veículo que não tinha recursos próprios e precisava contar com patrocínios para sobreviver. Um balanço do seu acervo, no entanto, faz pensar que valeu a pena. O portal investiu, por exemplo, na criação de quatro novos sites nas áreas de memória, gênero, meio ambiente e apoio jurídico, o que ampliou sua vocação para atuar como rede multiplicadora de oportunidades para o morador de favela, fazendo pontes entre diversos segmentos da sociedade. Também alcançou credibilidade suficiente para se tornar fonte de pesquisa em estudos acadêmicos. Uma de suas maiores limitações era atingir o público de baixa renda – seu alvo primordial – num país onde apenas 19,6% da população têm computador e 66,7% nunca navegaram na Internet, segundo dados de 2006 do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Aos poucos, no entanto, ele começava a chegar às favelas, como provaram duas pesquisas realizadas pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser). As cartas tam-


18

Notícias da Favela

bém eram um belo indicador de que o portal falava efetivamente com esse público. E, se os donos de empresas jornalísticas têm objetivos definidos – embora nem sempre explícitos – em relação a seus veículos, o Viva Rio também sempre teve os seus. A ONG respeitava os critérios jornalísticos adotados pela redação. Mas nunca negou que sua intenção era fazer do Viva Favela um veículo capaz de desconstruir a imagem limitada, equivocada e distante que grande parte da sociedade faz dessas comunidades. Sem compromisso com a lógica do mercado, o portal podia ainda dar aos que vivem na favela uma rara oportunidade de se expressar. O cotidiano na redação refletia essa liberdade. Nele, o clima era de informalidade e aprendizado mútuo, sujeito a surpresas ocasionais. Numa mesma semana, por exemplo, podia-se conviver com a alegria barulhenta das modelos do projeto Lente dos Sonhos, da Cidade de Deus; com uma videomaker norte-americana que resolvera fazer um documentário sobre o projeto; ou com uma rapper que tomava um cafezinho enquanto explicava por que o hip-hop tem trânsito livre nas favelas cariocas e não se sujeita às “fronteiras de facções”. Dia da reunião de pauta, segunda-feira era quase sempre uma festa. As sugestões revelavam a favela em suas várias dimensões: cultural, social, econômica, histórica, humana. De volta às suas comunidades, os correspondentes apuravam e escreviam suas reportagens para entregá-las na reunião seguinte. O que acontecia com eles entre uma semana e outra é, em grande parte, a matéria-prima deste livro. Havia também as más notícias, é claro. Elas circulavam, sobretudo, nas conversas paralelas, já que os correspondentes privilegiavam escancaradamente o lado não-violento e cor-de-rosa de suas comunidades. Muito raramente aceitavam falar sobre violência. Para abordar o tema, foi preciso recorrer aos jornalistas profissionais. Com garra e sem infra-estrutura, eles conseguiram


Introdução

19

mostrar que os moradores de favela são as maiores vítimas da falta de segurança pública no Rio, com suas vidas acossadas entre a ditadura do tráfico e a truculência da polícia. No conjunto, as reportagens – tanto dos correspondentes quanto dos jornalistas – traçavam um panorama singular. Uma riqueza reforçada pelas mais de quarenta mil imagens produzidas pela equipe de fotógrafos do portal. Elas formam um acervo único no país. Um painel de cores, gentes, desejos e dores que leva à certeza de que morro e asfalto são interdependentes, fazem parte de uma mesma cidade. O destino de um está irremediavelmente ligado ao do outro. Mas, para gostar (ou detestar), é preciso conhecer. Foi o que fiz de 2001 até 2005 – período relatado neste livro, quando vivenciei intensamente a evolução do Viva Favela. Como redatora, no primeiro ano, e, posteriormente, como editora-chefe e coordenadora do projeto. É essa experiência que procuro contar aqui, com a certeza de ter testemunhado algo que merece registro e que pode servir de modelo para iniciativas semelhantes. Com a palavra, a favela.


CapĂ­tulo 1


21


Em busca de novos ângulos A vista para o mar é indevassável. E o silêncio (quase sempre) garantido. Mas a vantagem de se morar no Caranguejo, pequena favela fincada no topo do morro do Pavão-Pavãozinho, acaba aí. De costas para a praia de Copacabana, o que se vê são pessoas vivendo em casebres de estuque, num estado de miséria quase absoluta. Uma hora de descida íngreme, e anos-luz de qualidade de vida, separam seus moradores de um dos bairros de maior poder aquisitivo do país. São habitantes de um Rio de Janeiro tão fora do mapa, que até mesmo quem morou a vida inteira em seus arredores pode nunca ter ouvido falar deles. Como Rita de Cássia, correspondente do Viva Favela, que descobriu o lugar quando batia perna pelo morro à procura de pautas. Rita saiu devastada ao descobrir que as crianças ali mal sabem o que é comida. Em muitas casas, não há cama ou mesa. Em outras, falta banheiro e cozinha. Em quase todas, produtos básicos de higiene, como sabonete e fralda, são raríssimos. A correspondente, que mora no morro do Cantagalo, geminado ao Pavão-Pavãozinho, numa confortável casa de dois andares com vista para o mar de Ipanema, ficou assustada com a descoberta. Para ela, vilas desse tipo só existiam nas imagens distantes dos grotões do país que chegam pela TV.

22


Em busca de novos ângulos

23

“O contraste social não existe só quando a gente olha do morro para baixo e vê os grandes prédios de Copacabana e Ipanema. A gente tem isso dentro da própria comunidade”, comentaria Rita, assombrada ao se perceber deslocada para o “status” de elite do morro. Não foi uma reportagem fácil. Até fechar a apuração, Rita voltou ao topo do Caranguejo, a porção Brejo da Cruz1 de Copacabana, umas cinco vezes. Uma caminhada pesadíssima, pontuada por becos, ladeiras e escadarias de tirar o fôlego. Chegou a se rebelar durante uma reunião de pauta: “Parei. Não subo mais!”, decretou. Mas foi convencida a terminar a história, que mudaria sua percepção da favela e de si mesma. Escrita a matéria, a correspondente resolveu fazer um pequeno mutirão no Cantagalo para levar roupas e alimentos aos vizinhos. Também colocou o assunto em pauta na associação de moradores. Filha do baiano João Pinto, prestigiado líder comunitário, ela sempre tentou fugir da política. Porém, vira e mexe está envolvida em alguma mobilização. No programa que apresenta voluntariamente na rádio comunitária do Cantagalo, a Panorama FM, é a Rita romântica que entra em cena. Ali ela só toca músicas de flashback, pinçadas de sua invejável coleção de LPs e CDs. A correspondente é do tipo que adora ouvir desde clássicos até chorinho, passando por black music e rap. Só não suporta as letras do funk “moderno”, “extremamente infantis e sem conteúdo nenhum”, na sua avaliação. Mesmo assim, meteu-se a pautar o tema, em meados de 2002. Não sabia o tamanho da roubada em que estava se metendo.

1 Cidade nordestina que inspirou letra da composição homônima de Chico Buarque: “A novidade / Que tem no Brejo da Cruz / É a criançada / Se alimentar de luz / (...) há milhões desses seres / Que se disfarçam tão bem / Que ninguém pergunta / De onde essa gente vem / São (...) jardineiros / Guardas-noturnos (...) babás (...)”


24

Notícias da Favela

Naquele momento, o funk estava na primeira página dos jornais. E acabou invadindo a nossa reunião de pauta, num raro caminho inverso. Geralmente, o Viva Favela fugia do que já era manchete. Dessa vez, no entanto, a notícia era uma bela pista para o portal sair em busca de uma história inédita. A bola fora levantada pela Secretaria Municipal de Saúde, a partir de estatísticas coletadas entre pacientes atendidas pelo serviço público. Segundo a repercussão da imprensa, os médicos estavam preocupados com o aumento do número de adolescentes grávidas que diziam desconhecer a paternidade de seus filhos. Algumas admitiam fazer sexo com mais de um rapaz numa mesma noite durante os bailes funk, entre uma ou outra dança erótica, da qual participavam até sem calcinha, numa roda-viva que acabava gerando filhos não programados. O tema provocou intensa discussão entre os correspondentes, o que era um bom indicador de que a pauta deveria render. Como realmente rendeu. Rita não se limitou ao foco original e, depois de muito apurar, mandou um texto quilométrico sobre o funk em geral. A reportagem, na verdade, desdobrava-se em três assuntos: o “funk dos playboys”,2 a carreira dos MCs3 e a reação das mulheres ao estilo musical – de longe, a melhor das três opções. Nela, o que mais chamava a atenção era uma dona-de-casa de 31 anos que gostava de ir para a cama com o marido ouvindo “Vai, Serginho” — o grande hit funk da época, que ultrapassara os limites das favelas e invadira as festas dos bacanas da Zona Sul carioca. Associado geralmente ao sexo sem compromisso dos jovens nos bailes e becos, o funk era capaz de excitar uma dona-de-casa balzaquiana na favela. Isso parecia novo. De que forma as mulheres, tratadas nas letras como “cachorras”, enxergavam-se, afinal? Rita teria de entrar em campo novamente para aprender mais sobre a visão feminina do funk. 2 Como são chamados na favela os “mauricinhos” (rapazes bem comportados) do asfalto. 3 Mestres de Cerimônia.


Em busca de novos ângulos

25

Boa repórter, ela conseguiu um punhado de ótimos depoimentos. Entre eles, o de duas jovens que contavam, sem falsos pudores, suas experiências sexuais em noites de baile. Eram depoimentos levemente picantes, mas, acima de tudo, ingênuos. Quando liguei para checar as aspas das moças, Rita confirmou cada vírgula. Na reportagem, uma das jovens admitia que, na onda dos “casais funkeiros”, já transara no beco com um antigo namorado, pai de seus dois filhos. Dizia ainda que isso era uma coisa comum entre suas amigas. A segunda adolescente contava que já vivera “muitas aventuras” no beco com o namorado, com quem estava havia oito anos, por causa do funk. Numa dessas, ficara grávida. Pronta, a matéria foi entregue para Márcia Vieira, que acabara de substituir Oscar Valporto no comando do Viva Favela. Márcia gostou, mas achou que faltava o depoimento de um psicanalista que pudesse ampliar a reflexão sobre o tema. Fiz a entrevista com um psicanalista conceituado, que identificou nas meninas dos bailes funk traços do movimento feminista que sacudiu a vida sexual das mulheres na década de 1970. Porém, com vestígios contraditórios de machismo, que elas incorporariam ao se identificarem com a “figura da cachorra”. É como se, fora da maternidade, dizia o psicanalista, as mulheres não tivessem valor. Depois de publicada, a matéria (“No ritmo do desejo”) foi impressa e colocada num lugar visível para que os moradores sem Internet do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho pudessem lê-la: o mural da sede de Ipanema do Espaço Criança Esperança,4 projeto que atrai diariamente centenas de pessoas das duas comunidades em busca de atividades educacionais, culturais e esportivas.

4 O Criança Esperança tem quatro unidades próprias. A do Cantagalo / PavãoPavãozinho foi a primeira a ser criada, em 2001, e atende a cerca de dois mil jovens.


26

VISTA DO CARANGUEJO, NO ALTO DO PAVテグ-PAVテグZINHO, EM COPACABANA Matテゥria: Os esquecidos no topo Viva Favela 16/04/2002 Crテゥdito: Deise Lane


27


28

Notícias da Favela

Com uma vitrine daquelas, não demorou a ser lida no morro e começar a produzir fofocas e mal-estar. As críticas chegaram rápido aos ouvidos das duas jovens, que imediatamente se deram conta do peso do que tinham dito. Para remediar a situação, elas queriam que a matéria fosse retirada do ar – embora confirmassem cada vírgula do que disseram. Acompanhadas por Rita, foram pessoalmente ao Viva Rio fazer o pedido, aos prantos. Quando a bomba estourou, Márcia Vieira já não estava mais na ONG. Em seu lugar, recém-chegada, estava Claudia Mattos. Coube a ela apagar o incêndio. Após uma reunião de emergência para discutir o assunto, a matéria foi finalmente “despublicada”. O episódio mostrou que seria preciso multiplicar o cuidado com o possível impacto das declarações feitas pelos entrevistados – quase sempre vizinhos e amigos de longa data dos correspondentes. Muitas vezes, era melhor filtrar, e até excluir, informações que fariam mais mal ao personagem do que bem à matéria. Em último caso, a preservação da identidade poderia ser também uma saída. A história revelou, sobretudo, o quanto era difícil equilibrar o exercício do jornalismo profissional com os efeitos que as reportagens poderiam ter sobre o microcosmos de determinadas favelas. Principalmente porque isso afetava diretamente o trabalho dos correspondentes – e podia abalar também a relação de confiança que mantinham nas comunidades. Em geral, os próprios correspondentes se encarregavam de censurar as informações que conseguiam. Às vezes, erravam a mão e era preciso colocá-los contra a parede para arrancar dados preciosos que faltavam no texto – e que não poderiam fazer qualquer mal. “Não quero ganhar meu salário às custas do sofrimento de ninguém”, justificava Rita. Como correspondente, seu maior desejo sempre foi conduzir o leitor até o chão da favela, para que ele pudesse olhá-la de forma diferente e visse como tudo é relativo. Nascida em maio de 1964, Rita cresceu numa comunidade povoada por casebres


Em busca de novos ângulos

29

de madeira e estuque. Um morro cercado por muito verde – como a maioria das favelas espalhadas pelas encostas do Rio era até pouco tempo atrás. Do asfalto, era impossível avistar então as casas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho que hoje já despontam, pairando sobre os prédios de Ipanema e Copacabana.


Notícias além do front Ninguém sabia exatamente o que seria um “correspondente comunitário” quando o Viva Rio começou, no início de 2001, a recrutar moradores em favelas cariocas para trabalhar no portal. Mesmo assim, a notícia soava sedutora. Atraídos pela divulgação feita com a ajuda de rádios comunitárias e de projetos e parceiros da ONG, os candidatos logo começaram a aparecer. Tinham idades, experiências profissionais e expectativas variadas. Alguns buscavam uma fonte de renda, outros achavam que seriam apenas voluntários. Quem já tivesse trabalhado em algum veículo comunitário – rádio, jornal ou TV – teria certa preferência. Mas, em alguns lugares, era impossível contar com isso, simplesmente porque não havia qualquer meio de comunicação local. Antes de mais nada, os candidatos precisavam escrever uma redação sobre a própria comunidade. Caso ela fosse aprovada, teriam ainda de fazer uma entrevista na sede do Viva Rio. Logo a pilha de redações se avolumou na mesa de Rosana Bensusan, subeditora do Viva Favela e responsável pela organização do processo. Rosana decidiu selecionar quatro ou cinco candidatos por favela. Porém, julgar apenas a qualidade dos textos não ajudava muito. Não eram jornalistas profissionais e não tinham a obrigação de escrever bem, pensou ela. Seria preciso adotar um novo critério. Mas qual? 30


Notícias além do front

31

O estalo veio durante a entrevista com Bete Silva, do Complexo do Alemão, que contou uma história sobre os velhos da comunidade que não podiam sair de casa e só sobreviviam graças aos vizinhos. Bete achava que o assunto poderia render uma pauta. Rosana também gostou da história: “Vi que a solidariedade era um fato marcante na favela, ao contrário do asfalto, onde cada um conta com a sua família e olhe lá”. Naquele momento, a jornalista percebeu que encontrar pessoas com sensibilidade para revelar sua própria comunidade seria um bom diferencial. E foi isso que tentou detectar em cada uma das dezenas de entrevistas que fez. O grande número de candidatos era reflexo da rede do Viva Rio nas favelas e do apoio das rádios comunitárias, contatadas pelo radialista Tião Santos, que fez o meio de campo com os correspondentes na fase inicial do portal. Mais tarde, ele coordenaria a Rede Viva Favela de rádios comunitárias. Depois de selecionados, os quinze correspondentes comunitários – cinco de fotografia e dez de texto – foram obrigados a passar por um processo de capacitação. Ao longo de uma semana, aprenderam os fundamentos do jornalismo e fotojornalismo – pauta, apuração, lead e sublead – e receberam dicas de computação e Internet. Era pouca munição, é verdade. Mas suficiente para mandá-los de volta para suas comunidades em busca de boas pautas. Em abril de 2001, o time já estava treinado e pronto para entrar em campo. Antes disso, porém, seria preciso vencer um último obstáculo: a desconfiança. Muitos foram atraídos pela popularidade da “marca” Viva Rio, bem arraigada no Rio de Janeiro. Mas ainda mantinham um pé atrás. “A gente fica com muito receio porque não sabe onde está pisando”, contaria depois Bete Silva, que, afinal, conquistara a vaga de correspondente do Alemão. Ela só conhecia o Viva Rio “de nome”, mas resolveu se candidatar porque gostou da proposta. Morar em favela, para Bete, exige cuidado com o que se fala.


32

MORADORES CRIAM PEQUENOS OÁSIS NAS LAJES DA ROCINHA Matéria: Sem inveja do Piscinão Viva Favela 01/02/2002 Crédito: Nando Dias


33


34

Notícias da Favela

Cuidado que não é tomado pelo jornalista dos meios tradicionais, na avaliação da correspondente. “O repórter não se importa com quem está ali, mas sim com a matéria dele. E isso pode levar ao sensacionalismo e a uma visão deturpada. Por isso, a comunidade não vê o repórter com bons olhos”, diz Bete. Os correspondentes que começavam a entrar em campo temiam, sobretudo, revelar histórias que os colocassem em “posição de confronto” com a comunidade. Também não queriam ser obrigados a “contar coisas que fossem prejudicá-los”, como lembra Rosana. Repetiam o tempo inteiro, por exemplo, que não aceitariam falar sobre o tráfico. Levou tempo até o projeto conquistar sua confiança. Quando começaram a relaxar, ficou claro o quanto poderiam trazer de novidade para o jornalismo carioca. Primeiro, porque tinham um conhecimento profundo daquela realidade. E, ao contrário dos repórteres “de fora”, podiam gastar dias e dias em busca de uma boa pauta. Depois, porque não tinham as amarras de um certo tipo de jornalismo comunitário que opera atrelado aos interesses de grupos políticos, locais ou externos. Ao pisar onde muito provavelmente nenhum jornalista pisara antes, os correspondentes logo perceberam que tinham um manancial de histórias inéditas nas mãos. Antes de começar a garimpá-las, porém, eles precisavam aprender o que era uma boa pauta. Para chegarem lá, ajudou bastante a garra com que mergulhavam nas próprias comunidades. Contou também a experiência da equipe da redação. Rosana, que coordenava as reuniões de pauta, era uma das grandes estimuladoras do grupo. Meiga, de sorriso largo, a jornalista orientava o time sem cobranças extremas nesse difícil começo, o que certamente facilitou a aprendizagem. Rosana chegara ao Viva Rio quando o projeto Viva Favela sequer tinha sala própria. Trocara um cargo na Rede TV! pelo portal e estava feliz. Achava que essa era uma chance única de trabalhar em algo que “fizesse alguma diferença”. A jornalista conti-


Notícias além do front

35

nuaria a investir na formação dos correspondentes até sair da ONG, em meados de 2002, quando se mudou para o telejornal da Rede Globo “Bom-dia, Brasil”. Jamais esqueceria a experiência: “Passei a ter um contato muito intenso e diário com pessoas maravilhosas de várias comunidades. E me encantei muito por elas”. Com idades entre 18 e 47 anos, a equipe que vingou tinha um perfil bem heterogêneo. E era mesmo encantadora. No início, o fato de morarem na favela era o grande ponto de convergência. Contudo, logo descobririam que havia muito mais coisas em comum. Todos sempre preferiram, por exemplo, mostrar “a favela do bem”. Era uma forma de trabalhar uma imagem diferente da que costumavam encontrar na mídia tradicional – e isso coincidia com um dos objetivos do portal. Mas era também a garantia de que não correriam risco ao andar pelas ruas com uma máquina fotográfica ou um bloquinho e uma caneta. “Vocês colocam o pé na favela e saem correndo. A gente continua lá. Nós é que vamos ser chamados para o ‘desenrolo’1”, costumavam dizer aos jornalistas, nas reuniões de pauta, sempre que aparecia uma história mais quente para ser apurada. E tinham razão. Era preciso não ultrapassar os limites de segurança. Com o assassinato do jornalista Tim Lopes, em meados de 2002, isso ficou ainda mais claro. Como veremos adiante, o fato deixou toda a imprensa carioca, incluindo a equipe do Viva Favela, sob tensão. Em especial, Bete Silva e o fotógrafo Rodrigues Moura, moradores e correspondentes do Complexo do Alemão, onde Tim foi morto. Diante desse contexto, a cobertura da morte do jornalista pelo Viva Favela – ainda sob a gestão de Claudia Mattos, que ficou cerca de três meses à frente do portal – não foi nada fácil. Mesmo assim, a equipe conseguiu produzir quatro ou cinco 1 Explicações que moradores eventualmente são obrigados a dar aos traficantes sobre determinados fatos.


36

Notícias da Favela

reportagens. Elas traziam as impressões gerais dos moradores diante da repercussão do assassinato. Alguns indagavam, em depoimentos anônimos, por que outras vítimas inocentes do tráfico nas favelas não tinham a mesma atenção por parte da mídia e das autoridades. “Fico abismado quando vejo os bombeiros desenterrarem vários esqueletos em busca de um, e tratar os outros com descaso”, dizia um morador. “Milhares de pais, mães, irmãos e familiares dentro das favelas sabem exatamente onde estão os restos mortais de seus entes queridos e mesmo assim não podem sequer passar perto”, completava outro. De toda a série, a única reportagem assinada foi feita pelo repórter Dirley Fernandes, que radiografou a situação em Vila Cruzeiro, na Penha – onde acontecia o baile funk que Tim queria retratar. O jornalista observou que os moradores estavam com medo e seguiam “mais do que nunca a lei do silêncio”. Mesmo assim, era possível notar que o traficante Elias Maluco, que mais tarde seria acusado e preso pela morte de Tim, não era “tão mal visto” por alguns na comunidade, apesar de todos confirmarem sua fama de violento. Além de “resolver problemas de moradores, para angariar simpatia”, segundo a reportagem, ele dava “preferência para postos-chave em seu exército (...), na Penha e no Alemão, a jovens recrutados no próprio local”. Logo depois do assassinato, Bete Silva – que sempre circulara pelo Alemão sem dar explicações – foi abordada de forma sutil. A correspondente conta que estava no morro entrevistando uma criança, quando um rapaz que vinha descendo parou para perguntar se ela estava fazendo alguma reportagem. “Ele quis saber se eu era repórter aí de fora. Eu disse que não, expliquei qual era o objetivo do trabalho. Então, ele disse que estava tudo bem. Até hoje eu não sei quem são eles, mas eles sabem quem eu sou”, diz a correspondente, numa referência velada aos traficantes da comunidade.


Notícias além do front

37

Bete passou a evitar a palavra “repórter” ao se apresentar na favela. Era correspondente comunitária e ponto. Do dia para a noite, o fato de ser uma antiga e respeitada moradora do Alemão, de ter sido professora de meio mundo na creche local e de ainda ser chamada de “tia” por muito marmanjo parecia não ser mais garantia de tranqüilidade. “Depois do que houve (a morte do Tim), esse nome ficou muito ‘fichado’”, explica. Não era paranóia. Um dia, ela estava passando e ouviu alguém gritar: “Olha lá o ‘tim lopes’”. Para o tráfico, Tim virou sinônimo de “X-9”.2 Podia ser mera brincadeira, mas podia também ser um aviso. “Quando eles estão com a cabeça meio alta demais, a gente não sabe do que são capazes”, admite Bete. Passado o susto, ela voltou a ter trânsito livre. “A gente sobe morro, desce morro, vai para um canto, para outro. As pessoas abrem as portas de suas casas para a gente entrar. Somos muito bem recebidos. Essa é uma relação que não pode quebrar”, dizia Bete, enquanto ainda era correspondente. Ela, no entanto, jamais voltaria a acompanhar jornalistas da TV Globo pela favela, como costumava fazer até a morte de Tim. Nem de nenhuma outra emissora. 2  Informante da polícia.


Na boca do lobo Nascida na cidadezinha de Cruzeiro, em São Paulo, Elizabeth Aparecida da Silva, a Bete, desembarcou com a família no Complexo do Alemão aos sete anos de idade, em 1965. Viúva recente, sua mãe decidira tentar a sorte no Rio de Janeiro, de onde saíra para se casar. Com os cinco filhos, mudou-se de São Paulo para o Rio a bordo de um caminhão, na base da carona, instalada sob uma lona com seus poucos pertences, as crianças e o cachorro Foguete. Foram morar no barraco de madeira com dois cômodos da avó. “Nunca tivemos boa vida, nunca sobrou”, lembra Bete. Em compensação, ela cresceu livre, soltando pipa e brincando com suas duas únicas bonecas, de pano. Era uma época em que se podia ficar à vontade na favela: “Ali não subia carro, não tinha perigo nenhum”, conta a correspondente, hoje casada pela segunda vez, mãe de três filhos e com uma neta adolescente. Ela mora na mesma casa há mais de 25 anos – mas fez significativas melhorias desde então: “Botei laje, botei piscina”... Botou também uma biblioteca comunitária, que mantém as portas abertas a todos. Quem conhece Bete sabe do que ela é capaz. E meio morro a conhece. Por suas mãos passou boa parte da criançada do Alemão. Primeiro, nas classes de alfabetização que ela montou por conta própria em casa e que depois foram absorvidas pelo antigo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Depois, na creche comunitária que criou e manteve, sem ganhar nenhum

38


Na boca do lobo

39

tostão. A obra seria incorporada mais tarde pela prefeitura, que contrataria Bete como educadora. A vivência nas creches do município faria da correspondente uma especialista na alma das famílias do morro – e a ajudaria a pautar excelentes matérias para o Viva Favela. Bete conseguia como poucos radiografar as mudanças de comportamento e a vida entre quatro paredes. Investiu em temas delicados, como a intimidade forçada pela falta de espaço nas casas da comunidade (“Na frente das crianças”). Porém, não fugiu dos explosivos, como a invasão de antigos prédios comerciais abandonados na favela (“Fábrica de gente”). Um balanço da sua vasta produção revela histórias que mostram, acima de tudo, um lado do Complexo do Alemão feito de valores positivos, como a capacidade de resistência e a honestidade dos moradores. Nessa linha, uma das mais interessantes é “Que morro bão, sô”. Nela, conta como os migrantes mineiros criaram um núcleo dentro da comunidade e continuam a viver como se ainda estivessem na calmaria da zona rural, com fogão à lenha e cigarro de palha. A solidariedade aparece em reportagens como “Carro é para essas coisas”, onde Bete mostra a obrigação dos que têm automóvel no morro de ajudar os vizinhos na hora do aperto. Já em “Boa vida de cachorro”, a correspondente derruba o senso comum de que pobre não gasta dinheiro com animal de estimação. Ela sacou uma bela pauta ainda em “Pago quando puder”, quando mostra o trabalho dos “prestanistas” – modernos mascates que circulam livremente por diversos morros do Rio comercializando produtos à prestação, sem levar em conta as invisíveis fronteiras das facções. Com eles, não é preciso dinheiro, cartão de crédito ou talão de cheque. Basta a palavra do comprador. Bete não gosta de falar de tráfico de drogas, mas deixa escapar sua tristeza com a disseminação do consumo na comunidade. Até bem pouco tempo atrás, lembra a correspondente, ninguém


40

Notícias da Favela

fumava maconha nem cheirava cocaína na frente dos moradores. Especialmente dos mais velhos. O risco de se perder um filho para o tráfico também era mínimo – fosse por “trabalho” ou bala. Entretanto, ver adolescentes no “movimento”1 virou coisa banal, para desespero de muitas mães. Algumas simplesmente se conformavam, impotentes. Outras acabavam sendo coniventes. Havia, porém, as muito raras, que faziam de tudo para tirar o menino da “boca”.2 Bete conseguiu convencer uma dessas mães a falar sobre isso. Publicada numa série em homenagem ao Dia das Mães, em maio de 2002, “Na boca do lobo” relata a desventura de Solange Santos de Freitas. Uma dona-de-casa que não hesitou em subir à boca-de-fumo de madrugada para tirar o filho de lá. A história provava a capacidade do morador de se opor e de dialogar com o tráfico de drogas. Nas entrelinhas, mostrava que há chances de negociação com os bandidos. E que, com alguma sorte e muita coragem, é possível obter a “liberação” de um dos “soldados” do tráfico. Como aconteceu com Solange. Seu filho, porém, teimou e quis continuar. Só aceitaria a interferência da mãe tempos depois, ao perceber o risco que estava correndo. A dona-de-casa viu um único jeito de salvar o rapaz: mandá-lo para bem longe do Rio e das drogas. Ele ainda vive fora da cidade. Mas não pode mais contar com a força da mãe: Solange morreu em 2005, sem conseguir combater “uma doença dos pulmões”, segundo Bete. A correspondente produziria dezenas de matérias ao longo de mais de três anos no portal. Até que a faculdade de serviço social, que começara a cursar quando já participava do Viva Favela, e mais a sobrecarga do trabalho na prefeitura derrubaram sua produtividade a quase zero. 1 Tráfico de drogas. 2 Boca-de-fumo (local de venda de drogas).


Na boca do lobo

41

E ela não teve mais como continuar. O esforço, entretanto, seria recompensado: em fevereiro de 2006, Bete conquistaria seu diploma universitário. Em seu lugar, entraria Marta Oliveira, que continuou a levantar boas histórias. Ex-agente de saúde, ela conhecia bem várias áreas do Complexo do Alemão – e era bem conhecida também. Isso a ajudaria a fazer matérias para quase todas as editorias. Marta descobriu, por exemplo, Irlan dos Santos Silva, de 14 anos, um bailarino que conquistara um prêmio mundial em Nova York, depois que a família rifou aparelho de jantar e bicicleta para financiar sua passagem. A matéria com Irlan teve boa repercussão na grande imprensa, assim como “Carinho no asfalto”, que contava a história de voluntários do morro que desciam para ajudar moradores de rua no asfalto. Marta também tocou de leve, e sem querer, na questão das “fronteiras invisíveis” da favela. A matéria “Comida quase de graça” falava de uma cozinha comunitária que servia duzentas quentinhas por dia, a cinqüenta centavos cada, num espaço que era uma espécie de “zona neutra” por empregar moradores de três comunidades do Alemão separadas por forte rivalidade entre facções. Na mesma época de Marta, entrou La Toy Jetson. Negro, magro, sempre bem vestido, gay assumidíssimo e dono de um bom humor contagiante, La Toy era irresistível. Apresentava o programa “Show do La Toy” na rádio comunitária Rayzes FM (105,9), e levou ares novos para as reuniões de pauta, fazendo alguns correspondentes reverem seus (pre)conceitos. Sabia tudo do Complexo da Penha. Ainda precisava, no entanto, progredir bastante na apuração e no texto. Era óbvio que tanto La Toy quanto Marta deveriam ter aulas, mesmo que básicas, de jornalismo e computação. Contudo, os dois pegaram o bonde andando e foram aprendendo na marra. Como boa parte da equipe, aliás.


42

O MINEIRO ODILON JOSÉ RIBEIRO ESTÁ NO MORRO DO ALEMÃO HÁ MAIS DE 35 ANOS Matéria: Que morro bão, sô! Viva Favela 23/11/2002 Crédito: Rodrigues Moura


43


44

Notícias da Favela

Lá pelo final de 2002, quando se olhava o grupo como um todo, apenas uma minoria passara pelo curso inicial. Muitos entraram no meio do processo. Não ter um esquema mais ou menos regular para capacitar os novos correspondentes e reciclar os antigos era um dos pontos fracos do portal. Na correria do cotidiano, faltava tempo para reflexões sobre a nossa prática. Chegamos a planejar uma série de debates sobre jornalismo e favela. A idéia, porém, nunca vingou. No início de 2003, a editora-assistente Tetê Oliveira – que assumira a função em setembro do ano anterior – se dispôs a dar aulas de reforço e capacitação. As aulas aconteceriam bem cedo, na própria sede do Viva Rio. No primeiro dia, dos cinco inscritos, apenas três chegaram. No segundo dia, apenas dois. No terceiro, um. Diante da falta de tempo e de disciplina dos correspondentes, não tinha como dar certo. Tetê guardou as apostilas e não quis mais saber da história. Continuou sempre aberta, porém, a tirar dúvidas e a ensinar tudo o que podia. Os correspondentes sabiam que podiam contar ainda com os jornalistas da equipe, que volta e meia davam uma mãozinha. Quanto mais o tempo passava, mais eles se tornavam os “queridinhos” da redação – e a essência do portal. Curiosamente, ninguém sabe ao certo como surgiu a idéia de se criar uma revista feita por moradores de favela. É provável que tenha sido mesmo inspirada pelo extinto site No., revista eletrônica que mantinha correspondentes em vários estados. O jornalista Marcos Sá Corrêa lembra de ter dado uma sugestão nesse sentido para Rubem César Fernandes: “A idéia de conectar as favelas já estava pronta na cabeça do Rubem. O que discutimos foi a possibilidade de botar os próprios favelados escrevendo e fotografando, produzir conteúdo jornalístico, publicar anúncios… Enfim, fazer o site”, conta Marcos, que já foi editor das revistas


Na boca do lobo

45

Veja e Época, diretor do Jornal do Brasil e do site No., hoje faz parte do site O Eco e da revista piauí, que ajudou a criar. O diretor-executivo do Viva Rio lembra, por sua vez, que os dois chegaram a discutir uma parceria entre o site No. e o Viva Favela. “Era o começo da onda da Internet e a gente pensou em fazer um trabalho conjunto. Chegamos a estudar a possibilidade de transformar o Viva Favela num braço social do No.”, conta Rubem César, lembrando que os dois projetos foram gestados juntos, no início de 2000”. O fato é que a idéia de criar um corpo de repórteres que pudesse atuar nas comunidades estava ligada à própria concepção do projeto. Desde o início, segundo Rubem César, sabia-se que “a força deveria sair de dentro das favelas”. Já a proposta de combinar jornalistas profissionais com correspondentes “seria burilada depois”, na medida em que o portal tomava forma. Para delinear o Viva Favela, o diretor do Viva Rio conversaria ainda com vários outros jornalistas. Entre eles, Xico Vargas, que aceitou o convite de Rubem César para coordenar toda a fase de elaboracão e desenvolvimento do portal. Jornalista desde 1970, Xico – que tem na bagagem, entre outras, as redações do Jornal do Brasil, O Dia, TV Globo e do site No Mínimo (para onde foi depois de lançar o Viva Favela) – sempre adorou novos desafios. Não teve como recusar. “O No. já estava no ar e Rubem viu que a idéia de uma revista eletrônica poderia funcionar. Entusiasmado, foi conversar com os irmãos Marinho3 e propôs a criação de uma revista que trouxesse a favela para fora do gueto, para a luz do sol. Eles compraram a idéia no ato. Em três meses, a sugestão tinha virado projeto”, lembra o experiente jornalista Xico Vargas, atualmente também na revista piauí.

3 O jornalista se refere aos irmãos João Roberto e José Roberto Marinho, vicepresidentes das Organizações Globo.


46

Notícias da Favela

A concepção do portal sairia de uma série de longas reuniões entre Rubem, Xico e o jornalista Oscar Valporto. Os Marinho se comprometiam, lembra Xico, a doar um milhão e meio de reais para a criação e manutenção do portal durante um ano. O financiamento sairia do recém-criado site Globo.com. Em contrapartida, o Viva Rio deveria colocar o Viva Favela no ar em seis meses e, nos seis meses seguintes, captar recursos para seguir com as próprias pernas. Na prática, o dinheiro durou um ano e meio, segundo Xico. Já a auto-suficiência seria uma meta bem mais difícil de ser alcançada, como veremos mais adiante. Xico lembra que não era fácil dar continuidade às conversas com a diretoria da Globo.com – então uma empresa nova, que ainda procurava acertar seu caminho. “Os interlocutores mudavam freqüentemente”, diz o jornalista. Oscar Valporto, editorchefe durante todo o primeiro ano de vida do portal Viva Favela, admite que ficou frustrado com o desfecho da parceria. Não que houvesse qualquer quebra de compromisso financeiro por parte da Globo.com, diz Oscar. Mas, acima de tudo, porque havia uma expectativa de que eles fossem “parceiros mais efetivos”, o que os levaria a hospedar o Viva Favela na Globo.com e, acima de tudo, a investir na expansão do acesso à Internet nas favelas. “Naquele momento, a direção comprava a idéia de que haveria milhares de novos usuários da Internet e que seria bom se estivessem entrando via Globo.com”, lembra. E o Viva Favela seria o parceiro ideal para abrir esse caminho, acredita o jornalista. Porém, nada disso foi adiante. Na virada de 2000 para 2001, a direção mudou e eles se desinteressaram, segundo Oscar. “Passaram a focar mais os públicos A e B. Estávamos em plena bolha e as empresas buscavam caminhos para faturar. Tinha uma competição ferradíssima lá com o UOL, o IG, o Terra. E esse outro retorno iria demorar demais. Assim, viraram meros patrocinadores”, diz ele. Até hoje, o jornalista lamenta que esse caminho não tenha sido seguido: “Daria ao Viva Favela uma visibilidade que jamais teve, e levaria o acesso à favela quase de graça”.


Na boca do lobo

47

No entanto, a favela já tinha o que comemorar. O portal, afinal de contas, era fruto de um pedido feito por lideranças comunitárias ao Viva Rio, ainda em 1995. Na época, o recém-criado Viva Rio organizava uma passeata de protesto contra a onda de violência na cidade – o Reage Rio. Para provar que o movimento não era elitista (o “Reage Rico”, como provocavam seus detratores), o Viva Rio convidou a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) para integrar a passeata – que levaria a favela em peso para a rua. Em troca do apoio, impuseram uma condição: o Viva Rio teria de ajudar a mudar a imagem da favela na mídia. “Eles achavam que as favelas eram estigmatizadas demais, que apareciam sempre com uma imagem violenta e negativa”, lembra Rubem César, que, em seguida, organizaria uma reunião inédita entre as lideranças comunitárias e os representantes dos três principais jornais do Rio na época: Walter Mattos (O Dia), João Roberto Marinho (O Globo) e Kiko Brito (Jornal do Brasil). Dali saiu o compromisso de trabalhar essa nova imagem. Chegou-se a pensar em criar uma agência de notícias – mas isso não foi adiante. Somente em 2000, com a expansão da Internet, apareceu a solução – investir num veículo virtual, muito mais barato e viável. Assim surgiria o Viva Favela e sua nova perspectiva. O impacto sobre a mídia tradicional levaria ainda algum tempo para aparecer, mas seria consolidado a ponto de saldar a promessa feita às lideranças anos antes. “Quando a gente formulou o projeto, foi a recuperação de uma dívida, um compromisso que a gente não tinha conseguido resolver. A Internet estava em alta e, por acaso, o representante de um grande provedor de São Paulo passou por aqui. Eu apresentei a idéia e ele ficou totalmente entusiasmado. Aí, fui conversar com o João Roberto (Marinho), que era conselheiro do Viva Rio. Ele disse: ‘Isso tem tudo a ver com inclusão digital. Tem de ser uma coisa independente, mas a gente banca.’ Não vamos ficar atrelados a um provedor”, lembra Rubem César.


48

Notícias da Favela

Assim, as Organizações Globo acabaram viabilizando o desenvolvimento e a manutenção inicial do Viva Favela. Mas faltava trazer os leitores até o portal. Assim, a ONG decidiria ainda lutar pela inclusão digital. Para ampliar o acesso à Internet nas favelas, o Viva Rio lançaria as Estações Futuro, telecentros com banda larga e cursos de computação a preços módicos. “Era uma forma também de investir nos jovens em situação de risco social e ajudar na sua inserção no mercado de trabalho”, explica Rubem César. O projeto deveria andar lado a lado com o Viva Favela. Tanto que os critérios para a escolha dos correspondentes estavam diretamente relacionados aos locais onde seriam instaladas as Estações Futuro: “Áreas de alta densidade demográfica, com um acesso não muito difícil e parceiros que pudessem se articular para fazer funcionar os telecentros”, segundo Oscar. Hoje, as dez Estações Futuro espalhadas pelo Rio são centros de desenvolvimento econômico, com aulas de profissionalização e ajuda para entrada no mercado de trabalho. Em 2005, após uma reforma capitaneada pela coordenadora Marta Ramos, as estações conquistaram auto-suficiência. Ainda são uma gota d’água no oceano, mas realmente ajudam a ampliar o acesso ao mundo digital nessas áreas. A Estação Futuro da Rocinha, veterana entre as dez, foi lançada oficialmente em abril de 2001. Quem ligasse os monitores naquele momento já poderia ver o Viva Favela no ar. O lançamento oficial do portal, porém, só aconteceria três meses depois, com uma festança na sede do Viva Rio, na Glória (Zona Sul do Rio). Além de ser uma forma de pagar a velha promessa feita às lideranças comunitárias, o projeto confirmaria a determinação do Viva Rio – tantas vezes associado à elite abastada da Zona Sul carioca – de atuar nas favelas do Rio (vide Anexo 3). Ajudava ainda a provar a viabilidade de uma proposta de inclusão digital que dava voz às comunidades e produzia um novo olhar sobre elas.


Na boca do lobo

49

A jornalista Cristina De Luca, então gerente de conteúdo digital do grupo O Dia, diria, em 2005, que o portal representava “a materialização de todo o potencial das modernas tecnologias da informação e comunicação para a liberdade de expressão”. Era “exemplar”, segundo a jornalista, ao se mostrar capaz de “suprir a lacuna deixada pelos grandes meios” no registro de fatos cotidianos das comunidades de baixa renda do Rio.


50

CapĂ­tulo 2


51


Memória resgatada Falar das favelas sob a perspectiva do presente ajudava a explicar uma parte da vida no Rio de Janeiro. Mas faltava contar como esses morros foram ocupados e por quem. Dizer de que forma boa parte dessa população começou a chegar à cidade. Revelar episódios como o do desembarque dos nordestinos, na década de 1940, no “arara-porto” – ponto final para os caminhões de paus-de-arara que viajavam levando gente em busca de uma vida melhor. Faltava lembrar os mutirões para levar água e luz ao topo dos morros e a luta dos líderes comunitários para evitar as remoções. E revelar as histórias de um tempo em que as vastas áreas – hoje repletas de casas de alvenaria – eram mato puro e seus novos moradores erguiam barracos de madeira com tetos de zinco que inundavam e podiam ruir sob qualquer chuva mais forte. Um tempo em que não se sabia reconhecer tiro de fuzil nem cheiro de maconha. Ninguém melhor do que os moradores mais antigos dessas comunidades para contar essas histórias. Não por acaso, eles eram os personagens principais do Favela Tem Memória (FTM) – dos quatro sites do Viva Favela, o primeiro a ser criado. Em longos depoimentos aos correspondentes, traçavam um panorama raro da ocupação dos morros do Rio. O FTM foi uma idéia genial do jornalista Flávio Pinheiro, que sugeriu sua criação durante um encontro com Rubem. “Claro que, no

52


Memória resgatada

53

almoço, parecia simplíssimo fazer um trabalho de memória. Depois, fomos descobrindo todas as imensas dificuldades de realização desse desejo”, diz Flávio, que já ajudara Rubem César a pensar o Viva Favela na pré-história do projeto. Jornalista desde 1966, Flávio foi chefe da sucursal carioca da Veja, criador da Veja Rio, editor-executivo do Jornal do Brasil e um dos fundadores dos sites No. e No Mínimo. Desde agosto de 2004 intregra a cúpula do jornal O Estado de São Paulo. Em 2002, quando sugeriu a criação do FTM, Flávio era consultor do Viva Favela. Adorava participar das reuniões de pauta do portal e considerava a equipe de correspondentes uma das melhores coisas que já vira no jornalismo carioca. A concepção do FTM foi elaborada pelas antropólogas Regina Novaes – coordenadora geral do projeto até o final de 2004 – e Christina Vital, com a ajuda dos jornalistas da redação, dos correspondentes e, naturalmente, do próprio Flávio. Diretora do Iser e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), Regina convidara Christina para integrar o time do FTM. Com sua saída, Christina passou a atuar na linha de frente, coordenando com esmero a supervisão do trabalho de pesquisa que servia de fio condutor ao site e co-editando os textos comigo. Um dos pontos fortes do projeto eram os depoimentos obtidos pelos correspondentes, que descobriam histórias como a de Maria Luzia Belizário de Carvalho, entrevistada por Rita de Cássia. Trocada pelo pai por uma garrafa de cachaça, Maria Luzia deixou a roça, no interior do estado do Rio, para virar escrava numa mansão de Ipanema. Escapou de lá com a ajuda de uma prostituta que morava no Cantagalo e que a levou para morar no morro. Há quase sempre muito sofrimento permeando esses relatos. Porém, eles mostram, acima de tudo, o quanto os migrantes eram capazes de superar obstáculos para realizar o sonho de levar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Entre eles está Clau-


ALBERTO MOREIRA LIMA E SUA MULHER, D. MARIA, MORAM NA ROCINHA DESDE OS ANOS 1960 Matéria: No foco de um baiano Favela Tem Memória, Viva Favela 09/01/2003 Crédito: Nando Dias



56

Notícias da Favela

dete Pereira, que trocou Recife pelo Rio em 1958. Ela chegou à favela da Maré quando ainda se começava a construir as palafitas. Sua primeira casa foi feita com sobra de madeira que ela conseguira em obras de um bairro próximo. Para isso, fez várias idas e vindas a pé pelas ruas, com o peso todo nas costas. “A Maré ia da rua da Praia até a avenida Brasil. E as casas eram todas de madeira”, contou ela ao correspondente Cláudio Pereira. De longe, as palafitas invadindo a baía de Guanabara eram símbolo da precariedade das favelas nas grandes cidades. De perto, pessoas como Claudete e o marido enfrentavam todo tipo de desafios para ter onde morar. “Os barracos eram cobertos de lona e feitos em compensado. Ainda não tinha os pranchões (pedaços de madeira) que serviam como ponte. As mulheres eram obrigadas a sair de casa com as saias levantadas e o pé na água. Os homens saíam de cueca. Depois, quando chegavam no seco, vestiam as calças e a gente ‘arriava’ a saia”, lembra Claudete. Ao relatar episódios de sua própria vida, os moradores revelavam parte da história da própria cidade. Foi interessante descobrir, por exemplo, que a Rocinha também passou pelos “anos dourados” – mas à sua moda. Nascida e criada na comunidade, Jurema de Mello Gomes os viveu em grande estilo: foi eleita a primeira Miss Simpatia da Rocinha. Até hoje é reconhecida nas ruas. Em depoimento publicado em 2003 (quando Jurema estava com 54 anos), a ex-miss contou ao correspondente Edu Casaes que o desfile teve a presença da “alta sociedade da Rocinha, formada por moradores mais populares e com maior renda, além de pessoas de comunidades vizinhas”. Não havia faixa, mas ela recebeu um buquê de rosas, um jogo de jarras, cinco quilos de carne, um jogo de copos e a promessa de que seu casamento seria realizado na Soreg – badalado clube social da comunidade na época. Regina Novaes e Christina Vital chegaram a elaborar uma apostila para orientar a equipe de correspondentes do FTM.


Memória resgatada

57

“A versão final contou com a reação dos próprios correspondentes, que nos expuseram suas dúvidas e sugestões. Em vários aspectos, eles mexeram com a própria concepção do projeto”, lembra Christina. A apostila trazia, por exemplo, os critérios que deveriam nortear a escolha dos entrevistados. Havia uma preferência por pessoas acima dos sessenta anos – o que aumentava a chance de se conseguir boas histórias de vida, que certamente se cruzavam com a trajetória da própria favela e, por tabela, do Rio de Janeiro daquela época. Não era fácil achar alguém com o perfil ideal. Alguns não queriam falar, outros não tinham uma memória tão boa assim. Porém, isso não chegava a ser um problema para Cláudio Pereira, da Maré; Bete Silva, do Alemão; Dayse Lara, da Cidade de Deus; Rita de Cássia, do Cantagalo e Edu Casaes, da Rocinha. Os cinco tinham um profundo orgulho do seu trabalho. E faziam tudo na maior disposição. “Comecei a compreender certas coisas que, mesmo sendo morador de lá, não compreendia. Podemos ver ângulos diferentes a partir da visão do outro”, diz Cláudio. A decisão de cobrir apenas cinco comunidades foi tomada em função do orçamento. Na época, cada entrevista era paga como um extra. A idéia era expandir, no futuro, o projeto para outras favelas. Na fala dos mais velhos, ficava claro o quanto era dura a vida de quem morava nas favelas cariocas nas décadas passadas. Naquele tempo, a falta de infra-estrutura era a maior fonte de sofrimento. Hoje, o grande problema parece ser mesmo a violência – aliás, um tema tabu para a maioria dos entrevistados. Durante o seminário de lançamento do site, no início de 2003, Flávio Pinheiro observou: “Às vezes, eu e Regina Novaes ficávamos nos perguntando: ‘Caramba, daqui a dez anos vão ler um trabalho sobre memória feito no ano de 2003 e não tem violência?’ Ninguém fala de violência! Essa é uma dificuldade real.


58

Notícias da Favela

Acho que cada dúvida dessas ou cada questão que vai ser levantada tem feito com que a gente procure algum tipo de resposta produtiva”. O seminário teve o mérito de mostrar que havia projetos de memória espalhados em várias favelas do Rio – e até do Brasil. Entre eles, a Rede Memória da Maré, do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm); os Condutores de Memória, da área da Grande Tijuca; o Casarão dos Prazeres, de Santa Teresa e o Centro Histórico da Rocinha. Convidados a apresentar seus projetos durante o lançamento, todos se tornaram parceiros do FTM. O evento reuniu historiadores, cientistas sociais, jornalistas e moradores de favela. No ano seguinte, o Caderno de Comunicações do Iser dedicou uma edição inteira aos melhores momentos do seminário. Na publicação, Regina Novaes lembra que a “vida em sociedade produz esquecimentos e impõe silêncios”. E pergunta: “Nas favelas existem hoje silêncios intransponíveis. Trata-se de um tempo em que armas de fogo dos traficantes e dos policiais estão sempre por perto (...) Podemos falar em construção da memória social em um espaço onde vigora a ‘lei do silêncio’?” Para responder, Regina faz referência ao antropólogo Michel Pollack, que escreveu sobre a memória dos presos nos campos de concentração. Pollack dizia, lembra Regina, que “a sociedade só começou a reconstruir a história do nazismo quando os próprios judeus sentiram que podiam falar sobre seu sofrimento. O que só aconteceu quando já havia condições sociais para a nova geração quebrar o silêncio sobre o holocausto”. O FTM mostraria que não seria preciso esperar tanto. Nas entrelinhas, o silêncio começou a ser sutilmente quebrado. Como no depoimento da lavadeira mineira Joana Gabriel da Silva, publicado em novembro de 2004. Dona Joana, então com 82 anos, lembrava que, ao se mudar para o Rio, encontrara um morro do Alemão que era puro mato. Naquela época, ela andava


Memória resgatada

59

pela cidade batendo “nas casas das madames” em busca de trabalho. Sempre conseguia alguma coisa. “Hoje não se pode nem bater nas portas”, lamentava. “Às vezes, eu fico assim pensando, olhando como ficaram as coisas, tudo modificado... Não tinha essa violência... Tinha um posto de guarda no cinema Santa Helena... Saíamos de madrugada para comprar carne, o povo vinha dos bailes (...) e não havia briga. (...) Se tivesse poder para mudar alguma coisa, eu mudaria esse negócio desses tiroteios, tinha que acabar com isso. (...) Tenho saudades daquele tempo. A gente ia passear sempre e andávamos sem medo pelas ruas”. Quem também tocava no tema era Benedita Monteiro da Costa Bitencourt. Mãe de oito filhos – entre eles Ailton Batata, que teria inspirado o personagem do traficante Cenoura no filme Cidade de Deus –, ela chegara à comunidade em 1966 e contava que a polícia e os bandidos já foram bem mais cordiais. Benedita lembrava que sua família sofrera muito com a pressão da polícia e com as ameaças das quadrilhas rivais. Segundo ela, ouvida pela correspondente Dayse Lara, os policiais achavam que seu filho “tinha cara de bandido” e sempre o levavam para o Instituto Padre Severino (unidade de internação provisória para menores infratores). Mesmo quando saía de casa só para comprar um pão. No depoimento, publicado em janeiro de 2005, Benedita dizia que tinha mais medo da polícia do que dos bandidos: “No passado, ambos nos respeitavam mais. Hoje a polícia é muito violenta”. Os bandidos, por sua vez, costumavam “pedir com bons modos” quando queriam se esconder na casa de um morador e não fumavam maconha na frente dos mais velhos. “Agora, eles jogam até a fumaça na nossa cara”. O site também abordou temas pouco explorados – ou até ignorados – pela mídia tradicional. Entre eles, a reação da favela à ditadura militar – uma sugestão dada pelo doutor em história Marcos Alvito e soprada por Flávio Pinheiro. Poucos sabem, por exemplo, que o morro de São Carlos, no Estácio (área central do


60

Notícias da Favela

Rio), abrigou gente que fugia da perseguição do regime. No São Carlos, famoso por ser um dos tradicionais berços do samba no Rio, a movimentação era intensa. Por coincidência ou não, lá morava a família do guerrilheiro Carlos Lamarca. A reportagem “Nas barbas da ditadura”, do repórter Marcelo Monteiro, foi ao ar em junho de 2004. Nela, Marcelo confirmou que, não só o São Carlos, mas vários outros morros cariocas abrigaram militantes de esquerda perseguidos pelo regime militar. Ouvido pela reportagem, Abdias Nascimento, presidente da Associação de Moradores do São Carlos entre 1965 e 1968 e membro do conselho deliberativo da Federação das Associações de Favelas da Guanabara (Fafeg), lembra que “a favela não era vigiada pelos militares porque eles achavam que a nossa luta era só por infra-estrutura. Eles não desconfiavam, mas tinha muita gente consciente e politizada que também discutia questões ideológicas nas favelas”. Uma dessas pessoas era Natanael Pereira de Araújo, o “Profeta do PT”, morador da Maré perseguido pela ditadura militar. Formado em direito, ele tinha setenta anos em 2004 quando deu seu depoimento a Cláudio Pereira. Para fugir da polícia, Natanael costumava se jogar na baía de Guanabara, às margens da comunidade. Numa dessas fugas, acabou preso. Havia, segundo Natanael, um sistema de delação na própria favela: “O cara podia fumar maconha e cheirar (cocaína), que eles não estavam nem aí. Mas, se tivesse um papel na mão com o nome de alguém, para fazer qualquer tipo de reunião, a pessoa estava ferrada. Era na Região Administrativa que era feita a coleta de informação sobre o morador subversivo”. O site publicou ainda pautas inusitadas. Como a da Ilha dos Macacos, na Maré, onde três famílias dividiam espaço com cem primatas. O lugar foi aterrado, mas os moradores não esqueceram suas histórias, recuperadas por Marcelo Monteiro. O repórter especial cuidava também da seção Gramophone, que resgatava composições de moradores de favela em vias de se perder.


Memória resgatada

61

Para fazer um registro dessa memória musical, ele produzia rodas de samba comprando meia dúzia de cervejas. Gravava as melodias e as colocava depois no site, à disposição de todos. Encontrou bambas como a turma do bloco Aventureiros do Leme, do Chapéu Mangueira e Babilônia, e o grupo Diamante Negro, formado por moradores do Cantagalo, Santa Marta e Cruzada São Sebastião. O grupo fez fama na cidade na década de 1960 e se reencontrou três décadas depois de sua separação. Na Cidade de Deus, Marcelo descobriu ainda Anahyde dos Santos Muniz, a Tuca, uma das raras puxadoras de samba do Rio. Temas recorrentes a várias comunidades – como enchentes ou remoções – também viravam pauta, numa tentativa de se construir uma nova versão para velhos fatos pela ótica dos moradores. Para isso, o site contava com uma pesquisa feita nos arquivos de jornais do início do século XX até meados da década de 1970. O período coincidia com a principal fonte encontrada para a pesquisa: o jornal O Correio da Manhã, lançado em 1901 e fechado em 1974. O jornal, que marcou época como um dos mais importantes veículos da imprensa brasileira, serviu de base tanto para a pesquisa iconográfica quanto para a textual. Tiago Pinheiro, pesquisador da equipe do FTM, era o responsável pela garimpagem de fotos e matérias antigas. Conseguiu reunir um bom material, sobretudo na pesquisa iconográfica, que se concentrava no acervo do Arquivo Nacional. Ali, o forte era o período que vai do final da década de 1950 até o início da década de 1970. São fotos surpreendentes quando se olha a cidade sob uma perspectiva contemporânea. Uma das imagens de maior impacto, por exemplo, é a da Rocinha ainda cercada por uma área verde que se estendia até a praia de São Conrado. Ali, percebe-se que a favela chegou muito antes dos prédios imensos que tomaram conta da orla do bairro. A foto está entre as várias cedidas ao site pelo Arquivo Nacional, parceiro fundamental do FTM, que viabilizou a organização de uma galeria on-line de peso.


62

Notícias da Favela

Fruto de um trabalho exaustivo de edição e catalogação de Kita Pedroza – editora de fotografia do Viva Favela –, a seção trazia também fotos atuais, feitas pelos fotógrafos do portal, e retratos de época, coletados pelos correspondentes em álbuns de família cedidos pelos moradores. Neles, é possível ver uma Cidade de Deus bucólica, mutirões no Cantagalo, a Maré em festa durante o Carnaval. Para se manter, o site contava com o suporte de instituições como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – que propiciou a contratação de bem-vindos estagiários – e o Consulado Geral dos Estados Unidos no Rio de Janeiro (setor de Educação e Cultura), que contribuiu para a aquisição de material. Em 2005, três anos depois de ser criado, o FTM virara fonte de consulta para pesquisadores e acadêmicos – a ponto de ser citado como referência em teses e livros. Entre eles, Favela, alegria e dor na cidade, de Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa, lançado em dezembro de 2005 pela Editora Senac Rio.


Com o pé na lama Ser jornalista era um dos grandes sonhos de Dayse Lara, moradora da Cidade de Deus. E ela tanto fez, que conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade Veiga de Almeida, na Barra da Tijuca – bairro abastado da Zona Oeste carioca vizinho à favela. A vizinhança não aliviava o preconceito dos colegas de faculdade. “Conheci um rapaz que estava até interessado em mim, mas a visão que ele e os familiares dele tinham é de que lá só mora bicho, de que lá é uma comunidade perigosa”, lamenta Dayse. O que era ainda mais duro de engolir para uma moça destinada a ser diretora de escola. Pelo menos esse era o sonho de sua mãe – tradicional conselheira tutelar da região. O plano não deu certo, mas levou Dayse a se tornar professora com diploma do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ) e facilitou o seu ingresso na faculdade e, mais tarde, no Viva Favela. Para Dayse, o portal era uma boa chance de mostrar um outro lado da favela. Porém, não era a única. Ela estava sempre metida numa penca de atividades sócio-educativas. Quando chegou ao Viva Favela no final de 2001, já trabalhara numa creche e fora orientadora social de um programa do município para o desenvolvimento de jovens. Também montara na Cidade de Deus o Clube do Cidadão Martin Luther King, em parceria com um vizinho, estudante da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O clube promovia aulas de cultura e cidadania para cinqüenta jovens e os levava a visitar a universidade “para ampliar seus horizontes”. Dayse fazia ainda o caminho inverso, como ativista 63


64

Notícias da Favela

da ONG Feijoada Completa: levava a garotada endinheirada para visitar a favela. A proposta surgira após um debate sobre o filme Cidade de Deus. “A idéia era mostrar a realidade da comunidade, que é diferente do que eles imaginam”, explica a correspondente. Nascida em 1979, ela era uma das mais novas do grupo. Tinha um ar sempre distraído, mas era ótima observadora. Possuía também a mania de fazer muitas perguntas – algumas bem indiscretas. O que, para uma futura jornalista, não chegava a ser um defeito. De todo o grupo, era a única com pretensão de seguir a carreira – pelo menos até Landa Araújo, da Rocinha, chegar em 2005. A entrada de Dayse só se tornou possível com a desistência de Rosy Henriques, selecionada em primeiro lugar. Dayse perdeu a vaga após fazer uma entrevista desconcertante: “Meu noivo havia terminado comigo e eu estava muito mal. De fato, não houve entrevista. Acabou a entrevistadora me consolando...”, contaria, rindo, tempos depois. Uma vez lá, soube conquistar seu lugar. Durante a cobertura do referendo sobre o desarmamento no Brasil, em 2005, destacou-se por conseguir matérias que mostravam o poder de destruição das armas de fogo com relatos de vítimas e de seus parentes. Também trouxe boas histórias sobre balas perdidas. Às vezes, no entanto, eram as matérias mais simples que mais davam trabalho. Dayse suou, por exemplo, para escrever a saga de Gilmar Vicente Sobreira, um cozinheiro desempregado que mantinha uma escolinha de futebol para meninos na Cidade de Deus. A batalha começou na hora de emplacar a pauta. A história, aparentemente, era um tanto batida. Mas acabou sendo aprovada após muita insistência da correspondente. Uma vez pronta, esbarrou em outro obstáculo. Parecia inverossímil. O texto foi parar nas mãos de Tetê Oliveira cheio de buracos. E não havia santo que a convencesse de que um desempregado pudesse


Com o pé na lama

65

gastar tantas horas numa atividade que mal lhe rendia alguns caraminguás. “Pelo texto, a gente só sabia que o Gilmar tinha mulher e três filhos e estava desempregado. Em vez de procurar trabalho, ele dedicava todo o seu tempo às aulas de futebol para a criançada, sem ser remunerado. Como havia uma preocupação nossa em não noticiar nada que tivesse ‘patrocínio’ indevido – fosse do tráfico ou de caráter eleitoreiro –, tive de questionar a reportagem”, lembra Tetê. Depois de muitas idas e vindas, descobriu-se que Gilmar recebia dinheiro de uma caixinha para a qual cada jogador do time original – que depois se desdobrou na escolinha – contribuía com algo em torno de cinco reais por mês. Já era uma ajudinha. Publicada, a matéria trouxe uma alegria inesperada aos meninos. Nela, eles revelavam um sonho: visitar a fábrica da Coca-Cola. Cristina Barros Barreto, coordenadora de atividades da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (Ciec) da UFRJ, leu a história e, por iniciativa própria, fez contato com a empresa. A partir daí, mandou um e-mail para o portal, que fez a ponte com Gilmar. A visita aconteceria meses depois. Antes disso, eles ainda viraram estrelas de um programa de esportes na televisão. “As crianças ficaram muito felizes com esse reconhecimento”, lembra Dayse. A correspondente se sentiu especialmente gratificada com o retorno para Gilmar: “Fazer uma pessoa que está dando tudo de si, trabalhando no anonimato, ter um reconhecimento assim é maravilhoso”. Esse tipo de repercussão se espalhava pela favela com velocidade – e abria cada vez mais portas para os correspondentes. Moradores começavam a sugerir pautas e pedir ajuda para solucionar problemas. Assim, surgiu a história de um menino que morrera após se afogar no tanque de uma obra da prefeitura na Cidade de Deus, que estava sendo executada por uma firma terceirizada.


66

Notícias da Favela

Com uma barreira de proteção vulnerável, o tanque – formado pelo desvio do curso de um rio – virou uma tentadora piscina para as crianças da favela. Dentre os que viram a cena de afogamento do menino – incluindo os seguranças da empresa, segundo moradores –, ninguém foi capaz de pular e salvar a criança. A questão era bem delicada. Além de envolver a prefeitura e uma empresa privada, envolvia também, como descobrimos depois, um amigo próximo de um funcionário influente do Viva Rio. A saída foi colocar a redação em campo para complementar a apuração. A tarefa coube à redatora Vilma Homero que, com a reportagem de Dayse nas mãos, ainda penou um bocado até conseguir falar com alguém da empresa responsável pela obra. Formada pela UFRJ e com vinte anos de profissão, Vilma é uma jornalista experiente. Em 2003, estava vivendo tranqüilamente como “frila”1 quando a convenci a entrar para o Viva Favela. O cargo de redatora exigia muito mais do que uma simples correção de erros ortográficos. Era desejável alguém com texto fluente, fôlego para reportagens mais extensas e delicadeza para ensinar. Naquele momento, Vilma deve ter se arrependido por aceitar o convite. Depois de inúmeros e inúteis telefonemas, onde ficou no meio de um jogo de empurra entre diferentes áreas, a jornalista finalmente achou alguém capaz de dar uma explicação decente. Mas, para isso, tinha de ir pessoalmente até a empresa. Enquanto estava lá, o telefone tocou na redação do Viva Favela. Era alguém perguntando como estávamos conduzindo a tal reportagem, sugerindo uma abordagem mais leve. Fui direto a Rubem – que, além de diretor-executivo do Viva Rio, era diretor do portal Viva Favela – perguntar se havia algum tipo de restrição. Ele me disse para ir em frente. A matéria acabou sendo publicada sem cortes e gerou pelo menos uma boa repercussão 1  Free-lancer: Jornalista autônomo.


Com o pé na lama

67

numa emissora de TV. Foi também uma forma de dar um retorno para a comunidade. Não foi a primeira (nem a única) vez em que a redação foi obrigada a entrar em campo para ajudar no fechamento de uma matéria dos correspondentes. A inexperiência inicial da equipe produzia reportagens que não faziam jus ao que fora vendido na reunião de pauta. Belas idéias simplesmente se perdiam, num estranho caminho entre a apuração e o texto final. E os jornalistas precisavam, por vezes, entrevistar o próprio correspondente para desvendar o mistério. Também entrávamos em campo quando havia necessidade de se falar com empresas ou órgãos públicos – como na matéria do “tanque-piscina” da Cidade de Deus. Por mais que a equipe de correspondentes corresse atrás – o que era sempre nossa primeira orientação –, o retorno costumava ser pífio. Quando havia. Várias vezes tivemos de ligar também para os “coleguinhas” das assessorias e explicar a proposta do veículo e o intuito da matéria. Só assim vinham as respostas desejadas. Até o portal ser conhecido, seu nome costumava fechar portas. Quem as abria era o Viva Rio. Os correspondentes, no entanto, não chegavam a se aborrecer com isso. Em geral, gostavam de ter a ajuda da redação. Dayse Lara, em especial, dava o maior valor. Talvez porque estudasse jornalismo, para ela a edição dos seus textos era uma forma bem-vinda de aprendizado. “Me ajuda no meio acadêmico, porque redijo a matéria com alguma dificuldade. Ponho o grosso das informações e, quando o jornalista pega esse texto, ele não deturpa. Posso comparar com a matéria final, e vejo onde errei e o que posso melhorar. Além disso, vai ser ótimo para o meu currículo no futuro”, dizia Dayse, ainda em 2003, no meio da faculdade. Quando o Viva Favela deixou de dar crédito exclusivo aos correspondentes e passou a dividir a autoria das reportagens entre eles e os jornalistas que editavam o texto, Dayse não reclamou. Foi uma das poucas. Acostumados desde o início a receber todos


68

Notícias da Favela

os créditos, eles tomaram um susto ao abrir o portal e encontrar suas reportagens compartilhadas com as redatoras – na época, Verônica Fraga e eu – , sem que houvesse qualquer aviso prévio. A imensa maioria detestou ter de dividir a assinatura da matéria. Uma das primeiras reportagens a aparecerem com crédito duplo foi “Os esquecidos no topo” – a que retratava a vida no Caranguejo, vila no alto do Pavão-Pavãozinho, feita por Rita de Cássia. Estávamos em meados de 2002 e Márcia Vieira achou por bem assinar o texto em nome da correspondente e no meu. Salvo engano, a mudança começou aí. Como nessa época já havia um respeito mútuo entre nós duas, profissional e pessoal, um grande afeto mesmo, Rita não reclamou tanto. Gostar, porém, não gostou. Somente muito tempo depois mudaria de idéia. Passados quase dois anos, ela refletiria: “Não escrevíamos isso tudo. A gente mandava a matéria bruta e as redatoras trabalhavam muito”. A parceria só passou a valer a pena porque Rita percebeu o quanto estava aprendendo com a troca. “Juntas, tornamos o texto bom de ser lido. Até porque o leitor de Internet é mais exigente, é importante a técnica jornalística”. Entretanto, naquela primavera de 2002, ao assumir o portal e manter os créditos compartilhados, eu sabia estar comprando uma briga. Era óbvio que viria bomba pela frente. “Quem é que está lá com o pé na lama? Quem é que ‘rala’ subindo ladeiras e becos no sol quente? Quem é que se expõe e bota a cara na favela?”, argumentavam. Isso, sem falar na produção do texto, que exigia grande esforço de cada um. Mas eu tinha a convicção de que era justo deixar clara a parceria entre jornalistas e correspondentes. O resultado final era uma combinação do suor de ambos – e não de um só. Havia ali, realmente, uma criação coletiva. Com a perda da exclusividade, no entanto, o grupo ficou desmotivado. Só com o tempo encontramos um caminho do meio: colocar o nome do correspondente sozinho na capa do portal e, sobre ele,


Com o pé na lama

69

um asterisco remetendo ao crédito do jornalista, disposto na página interior: Fulano de Tal, da redação. Isso ajudou a manter a auto-estima do grupo e a fazer cada um se sentir mais realizado com o seu trabalho. O ideal seria, talvez, deixá-los reescreverem mil vezes as matérias. Até porque, caprichar demais em cima do texto alheio pode deixar o repórter preguiçoso, como disse certa vez o jornalista Marcos Sá Corrêa. Mas, se as matérias já demoravam a ficar prontas nas mãos de um profissional, com esse processo levariam um século. Quando Tetê Oliveira entrou para o portal, em setembro de 2002, a questão dos créditos acabara de ser deflagrada. Ela entendia o lado dos correspondentes, que, além de tudo, achavam que dividir a assinatura era desvalorizar o seu trabalho diante da própria comunidade. No entanto, era totalmente a favor da nova norma. “Não acho justo que o correspondente assine sozinho. Afinal, isso é uma parceria. O texto não chega do jeito que vai ao ar”, dizia Tetê. Para Oscar Valporto, que não estava mais à frente do portal quando a polêmica surgiu, a disputa era mais do que compreensível. “Repórter brigar com redator é uma coisa muito velha... Mas existe um padrão jornalístico. Eles têm um texto que vai para a mão de um redator que muitas vezes destrói o que eles fizeram. 90% das vezes, destrói porque tem de destruir. Mas tem gente com boa vocação jornalística ali”, avaliava Oscar, um ano e meio após sua saída do portal. O talento dos correspondentes era inegável. Entretanto, faltava à maioria lapidar uma postura mais profissional – o que certamente aumentaria as chances de serem absorvidos pelo mercado de trabalho. Quem sabe um dia, poderiam ser contratados por um jornal comunitário, uma rádio ou TV – ou até por um grande veículo de comunicação.


JOGO DE PIテグ NA CIDADE DE DEUS Ensaio Fotogrテ。fico Viva Favela 2003 Crテゥdito: Tony Barros


Segunda é dia de festa O grande ponto de encontro dos correspondentes eram as reuniões de pauta, realizadas nas tardes de segunda-feira. No começo, eles vinham tímidos e desconfiados. Depois, bastante à vontade, criavam um clima de festa em meio ao silêncio habitual da redação do Viva Favela. Contavam casos, falavam alto e com todo mundo, disputavam os computadores, ávidos por ver e imprimir suas matérias on-line – poucos tinham acesso fácil à Internet. As reuniões aconteciam muitas vezes ao ar livre, debaixo das jaqueiras e abacateiros do pátio do Viva Rio, quando a sede da ONG ainda ficava no alto da ladeira da Glória, bem ao lado da tradicional igreja do Outeiro. Sentávamos em círculo e as boas idéias iam surgindo. Os assuntos percorriam todas as editorias – comportamento, saúde, economia, cultura, polícia, educação, meio ambiente. Nem tudo o que se falava virava notícia. Mas cada tema se transformava em matéria-prima para costurarmos uma compreensão mais profunda das favelas. Os tópicos eram sempre tão inéditos para nós, moradores do asfalto, que ouvir aquelas várias histórias era como assistir a um documentário sem edição. Vistas em conjunto, essas narrativas traçavam um panorama quente das favelas cariocas. Um “instantâneo” feito de retratos particulares que muitas vezes se reproduziam em diversos

71


72

Notícias da Favela

morros da cidade. Da rica Zona Sul à modesta Zona Norte, via-se que as comunidades costumavam sofrer com os mesmos problemas – excesso de ruído, violência policial, abusos do tráfico, saneamento básico precário, falta de postos de saúde. Também tinham em comum aspectos culturais e de comportamento. E costumavam lançar modismos simultaneamente. Não foram poucas as reuniões de pauta que provocaram crises de choro ou boas gargalhadas na equipe. Elas tinham um quê de análise de grupo – e geravam espaço para as pessoas abrirem o coração e contarem coisas que ainda não haviam contado para ninguém. Isso se consolidaria com o tempo – e com a conquista de uma imensa confiança entre cada um do grupo.

REUNIÃO DE PAUTA DO VIVA FAVELA Sede do Viva Rio, 2005 Crédito: Sandra Delgado


Segunda é dia de festa

73

No início, era difícil explicar a diferença entre os fatos que despertavam grande interesse na comunidade, mas que não tinham maior apelo para quem não morasse nela. “A gente procurava mostrar que eles estavam escrevendo para pessoas de qualquer canto do planeta. A gente queria o local, mas que emocionasse e que pudesse acontecer em qualquer parte”, lembra Rosana Bensusan. Eles entenderam isso rápido. Levaria mais tempo, porém, até conseguirem lidar bem com os diversos lobbies da própria comunidade – associações de moradores, políticos com influência local, centros culturais, creches, amigos da família – que buscavam espaço na mídia, representada pelo portal. Para os jornalistas da equipe, quase tudo o que surgia na reunião era novidade. “Mas vocês ainda não sabem disso?”, costumava perguntar incrédulo um ou outro correspondente diante do nosso espanto. Às vezes, eram histórias simples, mas que valiam ser contadas pelo ineditismo ou vigor. Como a moda da festa junina com jeitão de desfile de escola de samba, que se espalhou por algumas comunidades do Rio. Com muito dinheiro, muita produção e quase nenhuma música tradicional, elas renderiam sem dúvida uma boa pauta naquele inverno de 2003. Mas, primeiro, era preciso convencer os meninos disso. O mesmo aconteceria com a matéria das “explicadoras”. Uma pauta óbvia para os jornalistas, mas não para os correspondentes. Surgiu no dia em que fizemos uma das nossas reuniões itinerantes no subúrbio de Realengo, na casa da correspondente da Zona Oeste, Anna Carolina Miguel. De tempos em tempos, um correspondente sediava a reunião de pauta em sua casa – era uma chance de conhecer melhor as outras comunidades e de fortalecer a intimidade entre todos. Na de Realengo, teve churrasco e muita cerveja. Ao sairmos da casa de Anna Carolina, alguém viu uma plaquinha oferecendo o serviço de “explicadora”. Como os jornalistas não sabiam o que era, Anna ensinou: “É uma espécie de professora particular,


74

Notícias da Favela

como se diz na Zona Sul do Rio. Só que geralmente a professora particular vai na casa do aluno ensinar uma só matéria. Já nas comunidades mais pobres, no subúrbio, a ‘explicadora’ fica na casa dela e os alunos vão para lá receber um reforço de todas as matérias”. Para a correspondente, era a coisa mais normal do mundo. Quando percebeu que não era assim tão comum, ficou surpresa: “Meu Deus do céu, vocês não sabem o que é explicadora!” Nascida em 15 de janeiro de 1983, Anna Carolina cobria toda a Zona Oeste carioca. Não morava em favela, mas nem por isso suas sugestões eram menos interessantes. Recém-saída da adolescência, Anna tinha uma sensibilidade especial para sacar pautas divertidas de comportamento. Sempre dava um jeito de encontrar algum personagem interessante, alguma nova moda, um ângulo inesperado de uma velha história. Com isso pautava outros veículos de comunicação com freqüência. Numa dessas, inventou de acompanhar jovens sem grana para saber como eles se viravam na noite carioca. Descobriu que tinham táticas próprias para compensar a dureza – como comprar uma única cerveja de alguma marca famosa e ficar bebendo na mesma garrafa a noite toda. Em frente à boate – na qual não tinham dinheiro para entrar – poderiam atrair algumas meninas bonitas. A reportagem acabou inspirando uma história do “Fantástico”, da Rede Globo, que conseguiu o contato dos meninos com a correspondente e produziu uma saída noturna com o grupo. Aos doze anos, Anna já fazia um programa voltado para jovens na Rádio Padre Miguel, da Zona Oeste. Assim, ela começou a ter um contato com as comunidades pobres da região que a ajudaria muito nos tempos de Viva Favela. Sua temporada na Padre Miguel acabou aos dezessete anos. “A Polícia Federal foi lá e fechou a rádio de forma autoritária. Tivemos muito prejuízo e não deu para reabrir”, lembra Anna, filha do fundador de uma rádio comunitária.


Segunda é dia de festa

75

Quando ainda fazia o programa, Anna recebeu um pedido do Viva Rio para indicar pessoas de comunidades para o portal, que estava começando. Sugeriu duas pessoas da Vila Vintém, mas resolveu participar. Acabou sendo escolhida. Pouco tempo depois, ela conseguiria passar para a Faculdade de Fonoaudiologia da UFRJ. Em agosto de 2006, conquistou seu diploma. Além dela, vários outros correspondentes também chegaram ao Ensino Superior. Especialmente a partir do Programa Voluntariado Carioca (Provocar), parceria entre o Viva Rio e a UniCarioca, uma universidade privada. Pelo acordo, ganharam bolsa Rita de Cássia, Cláudio Pereira e Deise Lane, da Maré, e Cristian Ferraz e Walter Mesquita, da Baixada Fluminense. Edu Casaes, que antecedeu Landa na Rocinha, começou a cursar desenho industrial, mas trancou a matrícula por falta de tempo. A correspondente do morro do Tuiuti, Guaraci Gonçalves, por sua vez, preferiu estudar letras – graduou-se também pela UFRJ e passou a dar aulas na rede pública. Em 2005, dos quinze correspondentes comunitários do Viva Favela, apenas cinco não estavam na faculdade.

Um morro em meia hora Para Guaraci Gonçalves, a faculdade começou antes do Viva Favela. Ela chegou ao portal com dezoito para dezenove anos, totalmente inexperiente. “Foi a primeira vez em que tive horário, em que tive prazo para entregar as coisas. Não soube lidar muito bem com essa cobrança. Em alguns momentos dava vontade de jogar tudo para o alto”. Nessas horas, nada lhe agradava. Depois, começou a gostar: “O projeto foi muito importante, cresci muito aqui”. Parte da vontade de desistir vinha de um certo perfeccionismo. Guaraci ficava péssima se uma pauta não era aceita. Não por acaso, seus textos vinham com bilhetinhos alertando o editor para possíveis falhas. Mas ela não precisava se preocupar tanto.


76

Notícias da Favela

Apurava e escrevia muito bem. Moradora do morro do Tuiuti – um dos menores e mais calmos do Rio, ele pode ser percorrido em meia hora –, Guaraci ainda assim desencavava boas histórias. Conhecia o lugar, onde sempre viveu, como a palma da mão. Na infância, e em boa parte da adolescência, ela morou numa casa de madeira. Recusava-se a levar até lá os amigos da escola. “Sempre estudei em escola pública, mas as pessoas com quem eu convivia tinham uma situação financeira estável. Moravam em casa de alvenaria e tinham televisão no quarto, essas coisas. Eu tinha vergonha”. Como o Tuiuti é vizinho do tradicional morro da Mangueira, na Zona Norte, berço da famosa escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Guaraci logo percebeu que poderia descobrir boas pautas também por lá. Uma delas foi a história de um “garimpo urbano” – uma criação involuntária do Exército Brasileiro que deixou restos de munição numa área usada para exercícios de tiro. Desativado o estande, o terreno passou a ser procurado pelos moradores como área de garimpo de balas. Achadas as munições, eles as fundiam e vendiam. Conseguiam com isso uma boa fonte de renda. A reportagem fez sucesso. Inspirou, inclusive, uma pauta para o jornal O Globo, que publicou sobre o tema uma matéria do repórter Gustavo Goulart. Da Mangueira veio também uma descoberta: depois de algumas reformas, casas de escravos das antigas senzalas do morro são até hoje usadas por moradores. Nascida em 6 de abril de 1981, Guaraci teve, como a maioria dos correspondentes, uma infância típica de interior. Cresceu no Tuiuti correndo atrás de galinha, de pato, de porco, de coelho. “Foi uma época maravilhosa”, resume ela. O pai cursou apenas a primeira série primária. A mãe parou na quinta – queria ser enfermeira, mas, para a avó, isso era coisa de prostituta. De raiva, abandonou a escola. Tornou-se costureira, mas nunca perdeu o hábito da leitura, que Guaraci herdou. Não por acaso, a correspondente se especializou em literatura portuguesa.


Segunda é dia de festa

77

Com o pai, Guaraci aprendeu a “fazer contas” e a ser solidária. Certo dia, por exemplo, quando viu o marido de uma vizinha ter um enfarte e não conseguir socorro, entrou em desespero. Já era noite e, pendurada ao telefone, a correspondente ligava para hospitais e bombeiros em busca de uma ambulância. Ninguém queria subir o morro. Diziam que não era seguro. Indignada, sentindo-se impotente, Guaraci contou o episódio na reunião de pauta. Quis transformar a história em reportagem, mostrando o quão o cidadão da favela é quase sempre um cidadão de segunda classe, sem direito aos mais básicos serviços públicos. Ficou tão emocionada ao lembrar o fato, que acabou em prantos, num choro que contagiou a equipe inteira. Para a correspondente, o portal deveria dar basicamente duas contribuições à sociedade: “Levantar a bandeira das comunidades como locais onde moram seres humanos, e aí é uma contribuição mais ideológica mesmo, mais de luta; e uma mais efetiva, quando a gente vê o retorno financeiro para o entrevistado”. Um bom exemplo desse retorno financeiro aconteceu com Jarbas Ferreira, um morador do Tuiuti que fazia cortes de cabelo com criativos e coloridos desenhos. Jarbas começou na atividade apenas para curar a depressão causada por um acidente. Logo, porém, todas as crianças e adolescentes do morro queriam cortar o cabelo com ele. Publicada a matéria – assinada por Guaraci em parceria com a redatora Verônica Fraga –, a clientela se expandiu para outras comunidades do Rio e até para fora da cidade. Jarbas foi parar em jornais como O Estado de São Paulo, e fez questão de mandar os recortes com as reportagens para a família, na Bahia. Ainda mais popular ficou Maria José da Silva – vizinha de Guaraci que virou personagem do Viva Favela ao alugar a piscina de sua casa (coisa rara no morro) para as crianças, que pagavam um real para mergulhar. A repercussão da história foi tão grande, que ela desistiu de dar entrevistas. Para Guaraci, era compreen-


78

Notícias da Favela

sível: “Ela falou com gente do Extra, do O Globo, da TV Record… não agüentava mais. Me pediu para dizer que tinha morrido”. A correspondente achava fundamental fazer essa ponte, valorizar as iniciativas dos moradores. “A grande dificuldade de quem mora na favela é não ter voz. Quando alguém coloca o microfone na sua frente, tira a sua foto, você vê que sua visão de mundo é significativa para alguém”. Guaraci foi, provavelmente, a única correspondente a pautar espontaneamente uma reportagem sobre o tráfico de drogas. Enquanto todos fugiam do tema, ela queria mapear o “comércio local”. Achava que não haveria problema. “Ele não é muito agressivo, não interfere tanto na vida das pessoas”, justificou a correspondente diante da nossa preocupação. A história foi sugerida no início de 2003, mas a matéria acabou não vingando: “Queria fazer um levantamento da indústria do tráfico. Porque a gente que mora lá sabe que tem o ‘aviãozinho’, ‘o fogueteiro’, o cara que começa a vender, tem o gerente, tem uma hierarquia. Inventei que queria falar sobre isso. Quando comecei a fazer meus contatos, o ‘povo’ me mandou ficar quieta”. Já para falar sobre o drama das balas perdidas, não teve qualquer problema. Achou personagens que contaram, com nome e sobrenome, que foram vítimas de armas do tráfico. Publicada sob o título “Guerrilha urbana”, a matéria mostrava também o ponto de vista dos médicos. Eles admitiam sofrer pressão da polícia para fazer corpo mole no tratamento de bandidos. E alertavam: o simples fato de chegar ferido à bala no hospital já torna o morador de favela suspeito. A correspondente gostava de desdobrar suas pautas do morro para o asfalto. Com isso, sentia talvez mais do que os outros a resistência que o nome Viva Favela provocava. Mostrar que a realidade poderia ser bem diferente disso era a grande motivação de Guaraci para trabalhar no portal: “As pessoas não estão acostumadas a ouvir a opinião do Joãozinho, que anda de pé


Segunda é dia de festa

79

descalço. Estão acostumadas a ouvir ‘o doutor João’. Quando a gente dá voz ao Joãozinho, demora um pouco para que ela seja ouvida e respeitada. No asfalto, existe um povo preconceituoso mesmo, que acha que na favela só tem tráfico, só tem roubo, só tem pessoas ignorantes”. No portal, realmente, sempre havia uma oportunidade para os anônimos se expressarem. E lugar para personagens como empregadas domésticas, pedreiros e vendedores de bala. Ao expor de forma profunda o cotidiano dessa população de baixa renda, o Viva Favela revelava, de quebra, as teias invisíveis que dificultam a mobilidade social no país. E mostrava de que forma a criatividade e as redes de solidariedade permitem uma sobrevivência mais digna, mesmo diante da extrema pobreza.


80

CapĂ­tulo 3


81


Derrubando muros A redação sabia que precisava ter cuidados extras ao dar voz a personagens sem muita familiaridade com a imprensa. Muitas vezes, eram pessoas que não tinham a menor noção do estrago que poderiam provocar com suas declarações – sobretudo para si mesmas. Volta e meia uma informação do próprio entrevistado provocava um dilema: deveríamos ou não publicá-la? Numa matéria sobre mototaxistas da Cidade de Deus, por exemplo, feita pela jornalista Mariana Leal, optamos por excluir o nome de um personagem que declarava com todas as letras que dirigia uma moto irregular, mas não era importunado porque pagava propina aos PMs. Quem poderia garantir que a história não chegaria aos ouvidos dos policiais que habitualmente patrulham a favela? Especialmente porque os próprios correspondentes e entrevistados costumavam imprimir e circular as reportagens pelas comunidades. A matéria fazia parte de uma série sobre mototáxis que nasceu de uma animada discussão em torno da importância que, nos últimos tempos, esse meio de transporte ganhara nas favelas. Assim que a pauta foi colocada na mesa, vários correspondentes começaram a contar histórias a respeito. Landa Araújo, por exemplo, relatou a nova onda de turismo sobre motocicletas na Rocinha. Publicada em junho de 2005, “Tem gringo na laje” mostrava como os estrangeiros adotaram o hábito de subir a favela de mototáxi 82


Derrubando muros

83

para depois descer a pé, curtindo a paisagem, conversando com moradores, comprando artesanato. Um clima intimista impossível num Jeep – a forma mais difundida, e pioneira, de se fazer um passeio turístico pela comunidade. Em outra reportagem, a correspondente mostrou que a Rocinha – uma das maiores favelas do país – não pára de crescer também no mundo virtual. No Orkut – site de relacionamentos que virou febre no Brasil – existem mais de oitenta “comunidades”1 com temas que variam da gastronomia à violência. “Quem navega por elas consegue ter uma visão panorâmica e ao mesmo tempo íntima da favela”, dizia o texto, fechado por Tetê Oliveira. Landa foi escolhida numa das seleções mais difíceis do portal. A disputa envolveu cinco candidatos da Rocinha. Todos já estavam na faculdade, eram bem articulados e tinham no currículo a prática de atividades extras, como teatro ou aulas de inglês. Estudante de jornalismo da UniverCidade, faculdade privada com sede em Ipanema, Landa ficou com a vaga. Entrou para o Viva Favela em 2005, no lugar de Edu Casaes, que, por sua vez, substituíra o líder comunitário Carlos Costa, o Carlinhos – primeiro correspondente da Rocinha. Dono do jornal comunitário Rocinha Notícias, Carlinhos ficou cerca de um ano e produziu boas reportagens. Em “Só a Rocinha segura a Rocinha”, por exemplo, publicada em 2001, retratou o crescimento desordenado da favela. A idéia era mostrar o envolvimento dos moradores na preservação das áreas verdes como um fator fundamental para o controle fundiário da favela. Na matéria, Carlinhos mostra que, enquanto alguns moradores brigam para salvar uma área reflorestada, outros derrubam barreiras de cabos de aço da prefeitura para erguer novos barracos. O correspondente também mapeou o poder feminino, mostrando seu papel vital no desenvolvimento da comunidade. 1 As “comunidades” do Orkut funcionam como fóruns sobre temas de interesse comum. Em setembro de 2006, o site contava com mais de um milhão de usuários – 63% deles registrados no Brasil.


84

Notícias da Favela

“Elas comandam creches, escolas, centros comunitários, escolas de samba e até a política. A tradição feminina da Rocinha se consolida agora com a nomeação da primeira mulher como administradora regional”, dizia a reportagem. Também interessante foi a cobertura da campanha feita pela Light, companhia de luz do Rio de Janeiro, para acabar com os “gatos” na favela. Com apoio dos moradores, a empresa conseguiu eliminar 24 mil pontos clandestinos. A surpresa foi descobrir que muitos gostaram da idéia. Havia bons motivos para isso: além de precisar do comprovante de residência fornecido pela conta, eles estavam cansados de não poderem reclamar quando os eletrodomésticos pifavam com picos de luz. O correspondente ficou no portal até 2002, quando deixou o Viva Favela para trabalhar na área de segurança e direito humanos do Viva Rio. Mais tarde, Carlinhos seria eleito presidente de uma das associações de moradores da Rocinha. Em seu lugar, deixou Eduardo Casaes, o Edu, amigo, sócio no jornal Rocinha Notícias e, como ele, apaixonado por política. O maior interesse de Edu, ao entrar para o portal, era abertamente “interferir na vida da comunidade”. Não por acaso, um dos temas que mais gostou de abordar foi justamente o caos no transporte: “A matéria fez o maior sucesso. Foi parar no jornal O Dia, o prefeito falou sobre a questão e a menina da RA (Região Administrativa) acabou caindo”. Em 2003, um ano depois de entrar para o portal, a rotina de Edu andava pesada. Além de produzir para o Viva Favela e para o site Favela Tem Memória, escrevia e captava recursos para o Rocinha Notícias. Na TV ROC,2 Edu mantinha o programa semanal “Rocnotícias” e uma “coluna social eletrônica” que o obrigava a sair à noite e cobrir bailes na comunidade. Participava ainda da ONG local Rocinha XXI, e cursava faculdade de desenho indus2 Canal de televisão pago e comunitário, repetidor da NET (operadora de televisão por assinatura) na Rocinha.


Derrubando muros

85

trial na UniCarioca – queria economizar dinheiro diagramando seu próprio jornal. Aos trinta e poucos anos, tinha pique para segurar o tranco. Em 2004, já experiente, fazia as matérias para o Viva Favela com agilidade e era um dos correspondentes mais produtivos. Nessa época, saía de casa antes das seis da manhã e voltava à meia-noite para poder dar conta de tudo. Edu sabia se virar. Antes de atuar em comunicação, fora segurança, office-boy e boleiro em quadras de tênis de São Conrado, bairro chique aos pés da Rocinha.

Uma favela conectada A repercussão alcançada por suas reportagens publicadas no Viva Favela era infinitamente maior do que em seu próprio jornal: “Em dois anos no Rocinha Notícias nunca nenhum jornalista me ligou para pautar uma matéria daqui. Botou no portal, está todo mundo ligando”. As matérias de Edu costumavam mesmo ter bom retorno. Entre elas, está “Sebo nas vielas”, que mostrava moradores vendendo e comprando livros usados nos becos. Uma prova de que a favela deseja ler – só não o faz mais por falta de dinheiro. O correspondente se preocupava muito, assim como Carlinhos, com a imagem externa da comunidade. E gostou quando alguns “coleguinhas” da imprensa começaram a ligar diretamente para ele, pedindo dicas de personagens ou pautas. Ele sempre atendia: “Se estamos derrubando muros, acho que é de suma importância para nós”. Nem sempre esse contato direto com jornalistas de outros veículos dava tão certo. Na pressa de consolidar a pauta, por exemplo, alguns colegas começaram a usar os correspondentes como se fossem seus produtores. Eles faziam contatos, articulavam encontros, acompanhavam as reportagens.


86

O GRUPO TEATRAL ROÇACAÇACULTURA CRIOU SEBO ITINERANTE NA ROCINHA Matéria: Sebo nas vielas Viva Favela 20/05/2003 Crédito: Nando Dias


87


88

Notícias da Favela

Mas não ganhavam nada por isso. A queixa desaguava na reunião de pauta. A equipe se sentia usada. A gente explicava que esse intercâmbio entre “coleguinhas” fazia parte do jogo. No dia seguinte, eles poderiam precisar de alguém e já teriam seus próprios contatos em outras redações. Era uma troca permanente. Isso não significava, contudo, que eles deveriam fazer produção de graça. Especialmente para as equipes de TV, cujo processo era mais complexo. O ideal seria passar os contatos, no máximo fazer uma ponte com os personagens. E só. O contato direto tinha outro elemento complicador: dificultava o controle sobre a repercussão das matérias publicadas pelo portal. Contabilizar cada vez que uma reportagem inspirava pautas na mídia tradicional era um indicador de sucesso importante, como veremos mais tarde. Por tudo isso, ficou estabelecido que a conexão com os correspondentes seria sempre feita por intermédio da redação. É claro que volta e meia a gente passava diretamente para os colegas o telefone de um ou outro correspondente. Era importante também que tivessem boas fontes nas favelas – e os correspondentes poderiam ajudar nesse processo. Sempre pedíamos, porém, para que o número não fosse passado adiante. Não queríamos, sobretudo, que ele entrasse para a agenda coletiva das redações. Em 2005, Edu deixou o portal para trabalhar na equipe da vereadora Andrea Gouvêa Vieira (PSDB/RJ). Jornalista e mulher de Jorge Hilário Gouvêa Vieira, conselheiro do Viva Rio, Andrea apoiou o projeto em sua busca por novos financiadores. Junto com a socialite Gisela Amaral e com as então responsáveis pela área institucional do Viva Rio Adriana Perusin e Maria Helena Moreira Alves, Andrea ajudou a organizar uma palestra para sensibilizar empresários sobre a importância do portal.


Derrubando muros

89

O encontro, articulado por Rubem César Fernandes, Jorge Hilário, pelos irmãos João e José Roberto Marinho e por André Midani, reuniu dezenas de convidados de peso na sede da Rede Globo, no Jardim Botânico, no Rio, em setembro de 2003. Midani, um dos nomes mais importantes da indústria fonográfica brasileira, foi gestor estratégico (voluntário) do Viva Rio e sempre deu a maior força ao Viva Favela. Diante de uma platéia de atentos homens de negócios, Edu Casaes, Bete Silva, Rita de Cássia, Cláudio Pereira e Tony Barros explicaram a importância do Viva Favela. A reunião terminaria com um jantar chique, na própria sede da Globo. E traria o apoio de empresas como Telemar, Ipiranga e Icatu Hartford, cujo reforço contribuiu para a manutenção do portal em 2004. No entanto, a batalha teria de prosseguir. Captar recursos para o Viva Favela não era fácil mesmo, como lembra Adriana Perusin: “O investidor brasileiro ainda não se deu conta da importância de patrocinar ‘conteúdo’. Ele prefere investir em projetos que tenham um retorno mais visível em ‘pessoas’. Sem contar que ninguém mais queria ouvir falar de Internet depois do boom de sites do final da década de 1990. As empresas ficaram sem saber como teriam retorno para esses gastos”.

Mulheres na mira As constantes dificuldades de financiamento nunca impediram o portal de se expandir. Dentro do mais puro espírito do Viva Rio, que sempre preferiu correr riscos a abrir mão de novas empreitadas, o Viva Favela começou a crescer já em seu segundo ano de vida. Além do Favela Tem Memória, o portal criaria três novos sites. As mulheres ganharam um só para elas – o Beleza Pura. Nele, havia espaço para temas leves, como moda e culinária, mas também para tópicos como aborto, violência doméstica, prostituição e gravidez na adolescência. Segundo Eugênio Costa, coordenador de tecnologia da informação do Viva Rio na época, a idéia de fazer o site surgiu numa de


90

Notícias da Favela

suas andanças com Rubem César pelas favelas do Rio em busca de sedes para as Estações Futuro. A quantidade de beldades anônimas chamou a atenção. E fortaleceu uma antiga vontade de Rubem César de dar ao Viva Favela um viés feminino. O Beleza Pura começara a ganhar corpo nas mãos do então editor-chefe Oscar Valporto, da repórter Gisele Netto e de Eugênio. Foi de Oscar, por exemplo, a idéia de criar a seção Sexo Oral, na qual as mulheres discutiam temas polêmicos como a infidelidade masculina ou o orgasmo fingido. Foi ele também quem provavelmente batizou o site – embora não tenha certeza disso. Rubem César estava especialmente interessado na criação de uma espécie de agência virtual voltada para moda e cultura. Nela, modelos e atores/atrizes de favela poderiam expor fotos e um breve currículo. “A idéia era incluir uma dimensão de gênero, mas com o charme carioca. Uma coisa que não fosse careta, tipo politicamente correta ou feminista demais, mas que tivesse uma linguagem mais solta e seções provocadoras, como a Sexo Oral”, lembra Rubem César. A seção direcionada aos modelos e atores/atrizes das favelas ganhou o nome de Revelação e chegou efetivamente a produzir contratos entre profissionais e empresários, como veremos adiante. Porém, para resguardar a privacidade e afastar os malintencionados – não faltaram e-mails de engraçadinhos querendo o telefone das moças –, a gente nunca passava diretamente o contato. Apenas fazia a ponte. Em pouco tempo, o Beleza Pura começou a receber uma batelada de mensagens. Eram mulheres em busca de orientação e, às vezes, de um pouco de colo. Algumas provocavam saias justas. Como a jovem que escreveu para Mariana Leal pedindo dicas para fazer um aborto. O assunto fora abordado numa reportagem (“Saída arriscada”) que, obviamente, não estimulava a prática como método de prevenção. Apenas discutia o tema sem falsos moralismos.


Derrubando muros

91

“O enfoque era o aborto inseguro. Tentamos dar um panorama sobre a questão de saúde pública que a prática representa. Por isso, acho que foi tão impactante em termos de cartas”, lembra Mariana. A editora de fotografia Sandra Delgado, que sucedera Kita Pedroza no portal, também recebeu uma mensagem delicada. Sandra fizera um ensaio fotográfico com mulheres da Vila Mimosa, tradicional área de prostituição do Rio, que sensibilizou uma moça em dificuldades financeiras. No e-mail, ela pedia a Sandra o caminho das pedras para se tornar prostituta. Nessas ocasiões, o site tentava cumprir o que acreditava ser seu papel: oferecer informações que ajudassem as mulheres a formar sua própria opinião. Claro que, às vezes, tomava partido, como na seção Amor de Risco. Criada para dar visibilidade às vítimas da violência doméstica que buscavam ajuda, tinha a intenção de incentivar a denúncia da prática e até a fuga de casa, se fosse necessário. A seção era feita com depoimentos de vítimas atendidas pela Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) do Rio, parceira do Beleza Pura graças ao empenho da repórter Gisele Netto, que convenceu a delegada titular, Catarina Noble, da seriedade do projeto. Formada em jornalismo pela UFRJ em 1998, Gisele foi estagiária do “Bom Dia, Brasil” e do “Jornal Nacional” antes de ser contratada como pauteira do “Linha Direta” – todos programas da TV Globo. Também trabalhara numa oficina de vídeo para adolescentes infratores que cumpriam pena no Rio. Entrou para o Viva Favela em 2001 e deixou o portal em agosto de 2004 para morar na Espanha. A fase final de gestação do Beleza Pura provocou calorosas discussões, alimentadas pela escolha das imagens e do nome das seções. As jornalistas da redação – além de Gisele e de mim, as editoras de fotografia Kita e Sandra participavam do processo – achavam que o site deveria ser mais colorido e valorizar mais a fotografia. A equipe de tecnologia, formada por Eugênio e pelos


92

Notícias da Favela

webdesigners Rodrigo Peres e Flávio Fernandes, argumentava que fotos pesavam demais – especialmente para leitores com conexão discada. Tinham toda razão. Mesmo assim, conseguimos emplacar na home quatro ou cinco fotos de modelos de favela que se superpunham sucessivamente, o que deu mais movimento e leveza à página. A definição dos nomes foi mais fácil. Na época, prevaleceu a criatividade. Hoje, eu seria contra a adoção de títulos como Monte de Vênus – a seção que abrigaria reportagens sobre temas mais “sérios”. Só percebi a besteira da escolha, no entanto, muito tempo depois, ao ler Don’t Make me Think (Não me faça pensar), de Steve Krug. Emprestado por um amigo, pioneiro em jornalismo na Internet, o livro chama a atenção para a diferença entre o que nós achamos que vai acontecer quando alguém começa a navegar no nosso site – e aquilo que efetivamente acontece. E dá dicas que, de tão óbvias, costumam ser ignoradas. Um nome enigmático como Monte de Vênus, por exemplo, está longe de ser o ideal para uma seção – especialmente se o seu site se pretende popular. A menos que você queira ver o seu leitor fugindo dali por pura preguiça de descobrir o que, afinal de contas, você quis dizer com aquilo. O mesmo tropeço se repetiria em outros sites do portal, como o Favela Tem Memória. Nele, há seções como Favelário (inspirado em “Favelário nacional”, poema de Carlos Drummond de Andrade). Difícil alguém adivinhar que ali dentro havia um pequeno dicionário de favelas. Uma vez no ar, foi preciso fazer malabarismos para alimentar o Beleza Pura com uma única repórter. Mas Gisele, apaixonada pelo site e envolvida no projeto desde o início, segurava bem a onda. Com sua saída, caberia à jornalista Mariana Leal, também formada pela UFRJ, tocar o site. Mariana pegou logo o ritmo frenético de produção. E provou ser uma bela profissional. Adorava o que fazia: “O Viva Favela foi uma experiência intensa em jornalismo. No Beleza Pura, tive


Derrubando muros

93

a oportunidade de conhecer mulheres maravilhosas – líderes comunitárias, religiosas, ativistas – que me deram lições de vida”, diz hoje Mariana. A repórter ficaria no site até a crise de 2005, quando a equipe de jornalistas do portal teria de ser desfeita – mas isso é uma história para depois. Naquele momento, o Beleza Pura estava conseguindo virar referência para quem buscava modelos da favela. Ainda engatinhava, mas já havia resultados concretos. Uma parceria com o projeto Lente dos Sonhos, de Tony Barros, da Cidade de Deus, fortaleceria ainda mais esse processo.


Passarela de tábuas Bastam dois minutos com o fotógrafo Tony Barros pelas ruas da Cidade de Deus para se ter certeza de sua popularidade. O fato de ser “cria” da favela contribui para isso. A experiência como mototaxista também. Mas seu nome começou definitivamente a correr pela comunidade com o Lente dos Sonhos, criado por ele em 2002. Dedicado à moda, o projeto abriria novos canais – inclusive no plano internacional – para o fotógrafo e para modelos de comunidades do Rio. A inspiração para o Lente dos Sonhos nasceu de um ensaio fotográfico feito para o Viva Favela. O tema era o Dia dos Namorados e Tony resolveu usar como cenário uma das áreas mais pobres da Cidade de Deus, conhecida como Jardim do Amanhã. Depois de conseguir um Vectra prata emprestado, o fotógrafo rumou para lá com um punhado de amigos que toparam participar da aventura. Ao saltar do Vectra, o grupo foi logo cercado por moradores em busca de autógrafos, certos de que ali estavam celebridades. Tony explicou que os “modelos” eram todos moradores da Cidade de Deus e contou o motivo do ensaio. Só aí os vizinhos resolveram ajudar: emprestaram casa para troca de roupas, ofereceram água e cafezinho e trouxeram até sabão em pó para lavar o carro. A estudante Ludmila Gomes, modelo ainda iniciante na época, adorou a experiência. “Quando a gente desceu do carro, juntou

94


Passarela de tábuas

95

um monte de gente. Pensavam que eu era podre de rica. Fiquei me sentindo poderosa!”, admite. Publicadas em junho de 2002 no Viva Favela, as fotos atraíram a atenção dos jornais O Dia e do Extra, que deu chamada de capa e uma página inteira para o ensaio. A repercussão agradou aos bandidos. “Até que enfim a Cidade de Deus está na primeira página sem ser por causa da marginalidade”, teria comentado um deles. O Lente dos Sonhos foi criado, segundo Tony, para “viabilizar o acesso de moradores de baixa renda ao disputadíssimo mercado da moda”. Uma pretensão e tanto, que tentava cumprir oferecendo não só cursos de modelo e manequim, mas também de teatro, dança, filmagem e recepção de eventos, oficinas de moda e palestras sobre saúde e cidadania. Em 2005, o projeto já atendia a trezentas crianças e jovens do Rio e também de Niterói, cidade vizinha. Àquelas alturas, a história do Lente dos Sonhos já correra o mundo. A revista inglesa SHM fez o primeiro ensaio. “Como foi para a Europa, teve uma propagação bacana”, lembra Tony. A revista alemã Stern, por sua vez, incluiu algumas jovens do time num editorial de moda. Publicações de Portugal, Itália, Coréia, Estados Unidos, França e Japão também chegaram a abrir espaço para fotos de Tony e/ou das modelos do Lente dos Sonhos. Como veremos mais adiante, alguns desses trabalhos foram articulados por intermédio do site Beleza Pura, parceiro de primeira hora do Lente dos Sonhos. Nascido na extinta favela da Praia do Pinto, no Leblon – uma das áreas mais nobres do Rio –, Tony foi parar na Cidade de Deus ainda garoto. Sua família se mudou para lá na década de 1960, depois que um incêndio tido como criminoso destruiu a favela. Na época, os moradores da Praia do Pinto foram removidos, sobretudo, para dois conjuntos habitacionais recémconstruídos: a Cidade de Deus, em Jacarepaguá, na Zona Oeste, e a Cidade Alta, em Cordovil, na Zona Norte do Rio.


96

JOVEM MODELO DO PROJETO LENTE DOS SONHOS Ensaio Fotográfico na Cidade de Deus, 2002 Crédito: Tony Barros


97


98

Notícias da Favela

Aos cinco anos, o menino descobriria na Cidade de Deus uma área quase inabitada da cidade. Logo se adaptaria. Aos nove anos, porém, com a morte da mãe, uma costureira que sustentava a família, teria de voltar ao Leblon – dessa vez para morar com os tios no conjunto habitacional conhecido como Cruzada São Sebastião. No apartamento de sala, banheiro e cozinha se apertavam os tios, um casal de filhos e Tony. Na rua ao lado da Cruzada, onde antes havia a Praia do Pinto, Tony via agora a Selva de Pedra – um vasto condomínio formado por edifícios de classe média. Ao chegar à adolescência, o rapaz foi mandado de volta para a Cidade de Deus. Eram tempos estranhos. “Naquele momento, qualquer jovem sem família e sem uma estrutura básica era facilmente absorvido pela marginalidade”, diz o fotógrafo, que foi morar com os irmãos. Acabou batendo de frente com a irmã mais velha, que administrava a pensão da mãe, e foi parar num instituto para menores infratores. “Ela queria me ver afastado dos meus irmãos”, justifica Tony, que do limão fez uma limonada. Encarou dois meses no Instituto Padre Severino como se estivesse num clube. Praticou atletismo, natação e aprendeu a fabricar vassouras. Ninguém mexia com ele: “A Cidade de Deus era um local muito respeitado nessas escolas porque era comandada mais por menores do que por maiores. Só de falar que morava lá, os outros já ficavam com medo”, lembra Tony, que, no internato, recebia proteção dos outros jovens da comunidade. “Nunca recebi favores, mas me relacionava muito bem”. Na extinta Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem), passou a ajudar os rapazes internos levando notícias para suas famílias. Também por isso, era tratado de forma cortês lá dentro. Podia se sentar, por exemplo, às mesas às quais só se sentavam os chefes de quadrilhas. Ao mesmo tempo, servia de elemento mediador para problemas e ajudava os rapazes que eram maltratados. “Eu era um elo de ligação”.


Passarela de tábuas

99

Em outra instituição, a João Luis Alves, Tony participou de um grupo jovem religioso e aprendeu a lutar pelos direitos humanos. Após se tornar amigo de um padre, conheceu sua primeira vocação: “educador social”. Foi trabalhar com ele na organização da Escola São Martinho, hoje referência no atendimento a crianças de rua no Rio. Ali, descobriu sua grande paixão pela fotografia quando registrava meninos com dependência química de cola de sapateiro. A experiência na São Martinho o credenciaria para trabalhar como educador na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, o que estava longe de ser um trabalho fácil. Mas Tony sempre teve jogo de cintura e espírito conciliador para lidar com situações delicadas. Nem por isso deixou de enfrentar mal-entendidos.

Bandido “coca-cola” Na Cidade de Deus, nunca foi proibido de fotografar pelo tráfico. Passou, porém, por situações sinistras. A primeira foi em 2003, quando estava na quadra da escola de samba e um rapaz se aproximou perguntando o que ele tinha nas mãos. Tony respondeu, seco: “Uma máquina fotográfica”. E ficou quieto, esperando a confusão. No entanto, o rapaz não voltou. “Só pode ser um bandido ‘cocacola’”, disse um amigo para Tony. O fotógrafo explica: “Bandido ‘coca-cola’ é um moleque que quer crescer e se fazer em cima de alguém. Só tem pressão”. Em outro episódio, ele fazia um ensaio em preto e branco com modelos sobre uma passarela de madeira que cruzava um valão na favela. Fotografar o contraste entre a beleza das mulheres da Cidade de Deus e a precariedade da arquitetura local era uma proposta antiga incentivada pela editora de fotografia Kita Pedroza.


100

Notícias da Favela

Levar as modelos para cenas de exterior na favela, lembra Kita, ajudaria a minimizar os problemas de iluminação comuns nos ambientes fechados. Além disso, “esse seria um grande diferencial em relação aos milhares de fotógrafos de moda”, diz ela. No dia em que finalmente Tony decidiu realizar o ensaio, calhou de ter um morto sob as tábuas da ponte. Mas, depois de toda a produção, ele não desistiria tão facilmente. A cada minuto, porém, passava um moleque e avisava: “Moço, tem um homem morto ali”. O menino saía e, dali a pouco, voltava com a mesma história. Até que Tony, bem concentrado e nem aí para o tal defunto, irritou-se: “Dá um tempo, você está atrapalhando!” As fotos foram feitas na sexta. No sábado, ele estava com o material em casa, quando um outro menino bateu na sua porta: “Cara, tu tava fotografando, depois chegou o corpo de bombeiros e a polícia”. Era uma insinuação de que Tony ligara para avisar. Já sem paciência, o fotógrafo encerrou o assunto: “Sou nascido e criado aqui. Fotografo desde antes de você nascer”. Ainda se deu ao trabalho de mostrar fotos suas feitas na comunidade para o garoto, que ficou espantado. Tony perguntou quem o tinha mandado lá. “Os ‘caras’”, respondeu o moleque, numa referência aos traficantes. Sem acreditar, o fotógrafo insistiu em ir com ele para resolver pessoalmente a questão. O menino disse que não era necessário. “Tu não tá vindo na minha porta me perturbar?”, indagou. “Não, compadre, nada disso. Foi mal. Eu resolvo com os ‘caras’”. Era mais um bandido “coca-cola”. Tony sabe que, assim como a máquina fotográfica, a palavra é uma grande arma. Não por acaso, tem como prática fazer a informação circular quando vai fotografar ou acompanhar algum fotógrafo de fora pela Cidade de Deus. “Sempre levei o pessoal de jornalismo na comunidade e nunca houve problema”. Com isso, tornou-se uma espécie de guia para os jornalistas estrangeiros. O que o ajudou a expandir seu mercado de trabalho. Vendeu fotos para revistas do exterior, como a badalada Colors, e fez até uma produção para um documentário grego.


Passarela de tábuas

101

No rastro do sucesso do filme Cidade de Deus, em 2003, Tony teve suas fotos publicadas pela Carnet – revista italiana de cultura com tiragem mensal de cem mil exemplares. A Carnet queria uma reportagem contextualizando a favela, mas não tinha dinheiro para mandar um jornalista ao Brasil. Ao descobrir o Viva Favela na Internet, fez contato e acabou comprando uma série de fotografias do portal, quase todas de Tony. Inicialmente, a editora Kita Pedroza enviou as fotos para serem selecionadas protegidas por baixa resolução e com marca d’água – assim, não haveria qualidade para imprimi-las sem a nossa autorização. Eu escrevi pequenos resumos, em inglês, de cada texto. Foi um negócio suado, mas, no final, fechamos o pacote por oitocentos euros, metade do que pedimos. Os textos, que poderiam simplesmente ser copiados do portal, foram oferecidos como parte do pacote. Na verdade, a idéia era induzi-los a usar as nossas reportagens como referência para elaborar um artigo mais humanizado, mais próximo dos contrastes comuns à favela – e não apenas uma imagem chapada, única, de violência e ponto. Deu certo. A experiência valeu ainda como teste: estava claro que havia um longo caminho pela frente até criar uma agência de notícias do Viva Favela, velho sonho. Porém, era viável. Com um banco de imagens considerável, o projeto sempre teve tudo para gerar recursos com seu acervo. A comercialização de fotos, e até de textos, poderia ser uma das saídas para a auto-sustentabilidade. Como logo veremos, lentamente a demanda pela venda do material do projeto começaria a crescer. A agência também poderia tentar abrir um canal direto com veículos internacionais para vender pautas de favelas sobre temas específicos. Uma editoria de educação de um jornal inglês, por exemplo, talvez se interessasse em publicar alguma boa reportagem realizada pelo Viva Favela no Rio. No entanto, para viabilizar o negócio, era preciso estruturar uma boa equipe – o que implicaria um custo com o qual não tínhamos condições de arcar.


102

Notícias da Favela

A falta de recursos próprios era compensada por uma incrível capacidade de sobrevivência do Viva Favela. Vital para Rubem César Fernandes, o projeto sempre era incluído nas conversas da direção do Viva Rio com financiadores nacionais e internacionais da ONG. Entre eles, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Department for International Development of Great Britain (DFID), que apoiaram o projeto de forma direta ou indireta. A parceira mais duradoura e leal do Viva Favela, no entanto, seria a brasileira Petrobras. Em 2002, por exemplo, a estatal abriu novos horizontes para o projeto com um financiamento de um milhão de reais. Os recursos que entraram ao longo dos cinco primeiros anos, no entanto, nunca foram suficientes para gerar uma perspectiva de longo prazo. O sufoco nunca passava. Como um querido carro velho e valente, o Viva Favela caía na estrada ano após ano sem saber se chegaria inteiro ao seu destino.


Comando verde O crescimento desordenado das favelas do Rio as coloca na linha de frente da destruição ambiental carioca. Quem mora na cidade e olha para cima, para os morros, tem sempre a impressão de que elas são as grandes responsáveis pelo desmatamento acelerado do que resta de área verde. Com boa parte de suas cerca de setecentas comunidades1 localizadas em encostas, não poderia ser diferente. Seus moradores, entretanto, não deixam de ser também vítimas dessa mesma destruição. Sem uma política habitacional decente no país, eles foram se instalando como podiam nos terrenos ainda desocupados. E lá ficaram, durante décadas, sem saneamento básico, coleta doméstica de lixo, limpeza de rios ou educação ambiental. Um olhar mais profundo sobre esse caos urbano mostra, no entanto, que as favelas também são capazes de gerar soluções para problemas ecológicos. Difícil é garimpar histórias do gênero. Para chegar até elas, é preciso ter bons contatos. E, de preferência, ser um legítimo ativista da causa, como Begha Lindemberg. Correspondente do EcoPop, site sobre meio ambiente 1 Segundo o IBGE, a Região Metropolitana do Rio abriga 971 favelas e 397.421 domicílios em favelas – o equivalente a 12,4% do total de casas da região. Na capital, são pelo menos 681 favelas, com um total de 283.306 moradias, onde vivem cerca de um milhão de pessoas. (Fonte: O Globo, setembro de 2005)

103


104

Notícias da Favela

lançado pelo Viva Favela em junho de 2003, Begha descobriu um punhado de pautas interessantes. Morador do Complexo da Maré, compositor e poeta, ele entrara para o Viva Favela um ano antes. Começara fazendo reportagens para o Praia de Ramos – site criado pelo Viva Rio no período em que a ONG administrava o Parque Ambiental da Praia de Ramos, na Maré, em parceria com o Governo Estadual. Begha chegava à redação com a matéria escrita à mão, e entregava os papeizinhos amassados para os redatores copidescarem. Não sabia ainda usar o computador, mas já se destacava como um dos melhores do time. Não só pelo faro para boas histórias, como pela fluência da escrita, que não negava sua alma de poeta. Quando o site Praia de Ramos acabou, Begha continuou no Viva Favela. Com a criação do EcoPop, já tínhamos a pessoa certa para o lugar certo. O EcoPop foi gestado numa reunião na sala de Rubem César. Dela participaram, entre outros, André Trigueiro e Samira Crespo, que ajudaram a traçar a linha editorial do site. Tinham credenciais para isso: André é jornalista com pós-graduação em gestão ambiental pela Coppe/UFRJ, e professor de jornalismo ambiental na PUC carioca; Samira é doutora em história social, e, desde 1990, atua em projetos na área de ecologia. Na reunião, definiu-se o foco do site: grandes questões ambientais urbanas, como saneamento básico e coleta de lixo, que estão intimamente ligadas aos avanços sociais. Nosso grande desafio seria mostrar que existem saídas relativamente simples para melhorar a qualidade de vida da população de baixa renda – e apresentar exemplos concretos disso. O site se preocupava também em ser educativo, e trazia uma simpática seção com jogos e brincadeiras para o público infanto-juvenil, a Cambito na Ecologia, desenvolvida pelo cartunista Otávio Rios. Uma parceria com a ONG EcoMarapendi, intermediada pela bióloga Patrícia Mousinho, ajudava o EcoPop


Comando verde

105

na orientação de leitores interessados em processos de reciclagem e temas afins. O EcoPop criou ainda, por sugestão de André Trigueiro, uma seção de entrevistas com figuras populares, como artistas e cantores, que contribuiu para desmistificar a questão ambiental. Em sua coluna no site, a Conexão Verde – uma das seções que mais traziam visibilidade ao EcoPop –, Trigueiro publicava artigos sobre temas como aquecimento global, riscos do consumo desenfreado no planeta, reciclagem e poluição. Decerto idéias não tão fáceis de serem absorvidas pelo grande público. Mas com um texto ágil e informativo, o jornalista conseguia prender a atenção e aprofundar aspectos geralmente ignorados pela mídia tradicional. Isso atraiu um leitor mais culto, que pôde assim ampliar sua compreensão sobre a realidade da favela. Apresentador e repórter do “Jornal das Dez”, da Globo News, canal de TV a cabo, o colunista trazia ainda exemplos de práticas benéficas em áreas de baixa renda com as quais o leitor pudesse se identificar. No final de 2005, boa parte do material publicado na Conexão Verde foi imortalizada em Mundo sustentável, lançado pela Editora Globo. O livro reúne artigos e matérias feitos pelo jornalista para diversas mídias. E pereniza o que até então era apenas virtual. As reportagens do EcoPop, por sua vez, tinham um charme especial. Traziam personagens como Jossuel de Souza, um morador da Maré que conseguiu mobilizar a comunidade em torno do reaproveitamento do óleo usado em frituras. Era uma forma de poluir menos a baía de Guanabara e ganhar dinheiro com o dejeto, vendido para uma indústria que reciclava o produto. Jossuel era um achado. Um típico personagem para a seção ING (“Indivíduo Não-Governamental”), que trazia perfis de gente capaz de provocar mudanças e mobilizar suas comunidades praticamente sem nenhum apoio externo, mas com muita força de vontade. Nela, mostravam-se histórias de ambientalistas que


106

DOMINGO NO PISCINテグ DE RAMOS Ensaio Fotogrテ。fico, 2002 Crテゥdito: Sandra Delgado


107


108

Notícias da Favela

conseguiam fazer pequenas, mas produtivas mudanças. Como Moisés Vieira Ramos, o cearense que largou a favela da Maré para viver num recanto às margens da baía de Guanabara – um dos mais belos e poluídos cartões-postais do Rio. Depois de limpar e reflorestar a área, Moisés a preservou incentivando o turismo. Ao falar sobre o EcoPop, o jornalista Marcos Sá Corrêa, um dos fundadores do site ambiental O ECO (www.oeco.com.br), afirmou: “Para deixar de uma vez por todas babando de inveja as outras redações, o Viva Favela tem uma seção permanente sobre meio ambiente, coisa que está custando a pegar no jornalismo brasileiro. Chama-se EcoPop. (...) Quem vai ao EcoPop dificilmente sai de mãos abanando. Ela traz notícia para todos os gostos. Cada uma delas é uma aula de jornalismo em um campo onde a maioria dos jornalistas mal começa a engatinhar”.2 Tanto Jossuel quanto Moisés foram achados pelo correspondente Begha Lindemberg e produziram grande repercussão na mídia tradicional. Begha é do tipo que chama a atenção do vizinho quando o vê jogando geladeira em valão. “Quando nós chegamos, tinha tudo aqui. Agora devemos tentar deixar alguns frutos para os nossos filhos, para os nossos netos”, justifica. Ao entrar para o Viva Favela, ele já tinha experiência com trabalhos de educação ambiental que fazia nas escolas para a Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Nascido na Praia de Ramos, em 3 de janeiro de 1959, Begha é filho de pais paraibanos, que vieram para o Rio de pau-dearara, numa viagem que durou mais de quinze dias. O pai era seresteiro e costumava desaparecer durante uma semana. A mãe tomou raiva de música e proibiu Begha de tocar violão. Ele aprendeu música à revelia. Com o tempo, apresentar-se à noite em bares e festas passou a ser uma fonte de renda.

2 Trecho de coluna de Marcos Sá Corrêa publicada no site AOL, em julho de 2004, sob o título “Uma aula de reportagem ambiental”.


Comando verde

109

Aprendeu também que, para viver na Maré, é preciso preservar a própria privacidade. “O negócio aqui é ser amigo de todos e andar sozinho. Ver as coisas e não ver. Ouvir e fingir que não ouviu”, resume. Assim, ele conseguia manter as fontes – e os amigos.

No ritmo da favela Para a repórter Julia Duque Estrada, jornalista que dividia com Begha as reportagens especiais do EcoPop, batalhar pautas da redação era ainda mais difícil. Ambientalista de coração, como o correspondente, ela conseguia desencavar ótimas histórias. Como a de Célio de Oliveira, um comerciante que dava aulas de educação ambiental para crianças em Magé, no interior do estado do Rio. Célio era um perfeito “indivíduo não-governamental”. Apenas com o lixo recolhido da baía de Guanabara, que banha Magé, ele conseguiu construir uma casa inteira com “tijolos” de garrafas PET. Para sua própria surpresa, o material provou ser à prova de balas. Julia descobriu também moradores de uma favela do Rio que assumiram a gestão de um parque ecológico. Com seu esforço, eles fizeram do espaço um raro exemplo de área verde preservada numa comunidade carioca. “Na maioria das vezes, os personagens não tinham recursos materiais, mas realmente compreendiam a questão ambiental, sentiam a sua urgência e se lançavam com uma imensa criatividade para cuidar do meio ambiente. São um bom exemplo de que não é preciso dinheiro para fazer alguma coisa”, diz Julia. Para ela, o contato com as favelas foi uma experiência enriquecedora – “ter um olhar de dentro é fundamental para um jornalista que pretende compreender essa realidade”. Para achar boas pautas de meio ambiente nas favelas, era preciso aproveitar cada ida às comunidades. Seus contatos na área ambiental também ajudavam. Nascida em setembro de 1977, a repórter era uma das mais novas do time. Formada pela Univer-


110

Notícias da Favela

sidade Federal Fluminense (UFF), Julia passara pelo Jornal do Brasil, Extra e pelo Iser antes de chegar ao EcoPop. Sua estréia no site exigiu coragem. Como logo veremos, em sua primeira matéria, a repórter deu de cara com uma operação policial na Cidade de Deus. Um tipo de sufoco que nem os correspondentes podiam evitar. Eles não gostavam de falar sobre isso, mas estava claro que a falta de segurança era um fator que volta e meia interferia no trabalho. Cláudio Pereira, por exemplo, correspondente do Complexo da Maré, costumava ligar para os amigos antes de visitar uma das dezesseis comunidades da área. Procurava saber como estava o clima. Sobretudo se acabara de ter tiroteio por perto. Às vezes, era obrigado a suspender a visita. Como percorrer a pé toda a Maré era inviável - de carro seriam pelo menos vinte minutos –, era sempre bom tomar certo cuidado. Mesmo morando ao lado, ficava difícil saber a extensão de um tiroteio, por exemplo, apenas ao ver a notícia na televisão. “Você só ouve rumores”, confirma o correspondente, que sempre usou e abusou de seus contatos na comunidade. “Quando há muito tiro, polícia por perto, e você tem de fazer o trabalho, você faz. Nem que a matéria dure duas semanas”. Aconteceu algumas vezes de Cláudio levar esse tipo de problema para a reunião de pauta. Ganhava sempre um novo prazo. Pedir licença ao tráfico, porém, não era necessário. “Todo mundo sabe quem é quem dentro da comunidade. Você liga para o cara, marca, vai lá, faz a matéria e vai embora. Não mexem com você. Há o modo de chegar, você não tem de ficar olhando para Deus e o mundo, por exemplo”. De tanto rodar, o correspondente descobriu pautas curiosas. Uma delas revelava que, numa única rua da Maré, havia em torno de trinta salões de beleza. Também detectou um “Baixo Maré”3 3 Referência ao Baixo Leblon, no Rio de Janeiro, que fez história como ponto de encontro da boêmia carioca e teve seu auge na década de 1980. Depois dele, outros surgiram na cidade, como o Baixo Gávea.


Comando verde

111

– point noturno que atraía multidões ao redor de um palco ao ar livre. O lugar era ponto de parada obrigatório para os grupos de forró recém-chegados do Nordeste. Se fizessem sucesso ali, era sinal de que tinham cacife para enfrentar a badalada Feira de São Cristóvão, na Zona Norte do Rio. Nascido em 1972, Cláudio foi criado na Maré num tempo em que não existia qualquer “fronteira invisível” separando as diferentes facções do tráfico de drogas. O número de comunidades também era bem menor, e Cláudio costumava circular por todas com desenvoltura – coisa que faz até hoje graças aos inúmeros amigos conquistados ao longo dos anos. “Eu cresci junto com a Maré. Tomei banho nela (na baía de Guanabara, que originou o nome da favela), como muitas crianças. Joguei bola com um trilhão de pessoas que já morreram e com outras que mudaram de vida”. Enquanto alguns amigos optavam pela marginalidade, Cláudio investia na religião. Ex-coroinha, passou vinte anos na Igreja Católica. Ajudava em campanhas de doação de alimentos e quermesses. Antes do Viva Favela, teve a sorte de trabalhar em O Cidadão, publicado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) – raríssimo exemplo de jornal comunitário com produção regular e de qualidade. O correspondente soube do portal quando fazia um curso de oficina literária do Ceasm. Entrou na primeira leva do Viva Favela, em 2001. Cláudio gostava de traçar perfis – adorou, especialmente, descobrir dona Maria da Macumba, de 104 anos, que fora secretária de Juscelino Kubitschek e tinha um centro espírita na Maré. “Ela me criou desde pequeno e eu nunca soube disso”, surpreendeu-se. Às vezes, porém, quando colocava muitos personagens em cena, embolava o meio de campo. Como inicialmente tinha certa dificuldade em avaliar a importância de cada um, tendia a apurar e escrever demais. Uma vez, entrevistou um time completo de futebol. E era um time gigantesco – nada menos do que 35 pes-


112

Notícias da Favela

soas. “Mas você entrevistou todo mundo... Podia escolher quatro ou cinco!”, reclamei. Cada um tinha algo a dizer, explicou ele. Cláudio anotou tudo. “Se você fala com dez e esquece outros dez ali no canto, cria sua própria discriminação. Se na matéria só quatro saírem, os outros vão reclamar. Mas aí eu posso dizer que foi a redação que cortou”. Para o correspondente, isso ajudava a criar laços e facilitava futuras pautas. Em contrapartida, criava um grande problema para a edição. Entretanto, ele simplesmente não conseguia fazer diferente: “Você começa a escrever e vai se empolgando. Em vez de oito mil, a gente faz vinte, trinta mil caracteres”. Volta e meia suas matérias vinham com um alerta: “Mandei um ‘livro’ para você”. Pior era o que ele fazia sem avisar. Cláudio costumava submeter seus textos à aprovação dos entrevistados – às vezes, por três ou quatro vezes. Só depois que o personagem estivesse satisfeito nos mandava a reportagem. Era sua forma de demonstrar respeito e tentar evitar mal-entendidos. Ao descobrir isso, entendi finalmente por que algumas matérias atrasavam tanto – mesmo em tempos de paz. Para o correspondente, o papel do Viva Favela era ajudar a grande mídia a parar de olhar a favela exclusivamente como um nicho de violência. E também contribuir para que a própria favela pudesse enxergar a grande mídia de forma diferente. Cláudio percebeu isso ao ajudar na produção de uma reportagem para a TV inspirada numa pauta sua sobre a favela Marcílio Dias, no Complexo da Maré. Ele fez todos os contatos e deu a maior força à equipe. “O Viva Favela trouxe para a comunidade essa confiança de você estar ali e poder divulgar aquela pessoa”. Uma de suas melhores matérias foi feita no Parque Alegria, no Complexo do Caju, na Zona Norte carioca. “Quando o luto vira luta” mostrava a batalha do grupo Mães do Caju para botar na cadeia os responsáveis pela execução de seis jovens da comuni-


Comando verde

113

dade. Segundo testemunhas, os rapazes jogavam dominó numa pracinha da favela, e ainda tentaram se identificar quando dois policiais militares chegaram atirando. A pauta original era bem mais simples. Falava do lado solidário dessas mulheres – que se transformaram em referência para várias famílias no Caju. Cláudio foi juntando as histórias até descobrir o viés político do grupo. Com a ajuda da redatora Vilma Homero, produziu uma bela reportagem, que levou mais de um mês para ficar pronta e ser publicada, em dezembro de 2004. A demora foi positiva: permitiu que incluíssemos dados fresquinhos do relatório sobre violência policial publicado pela ONG Justiça Global, que pesquisara o caso. Menos de um ano depois, uma das mães do grupo foi convidada a relatar sua história na Europa e a Anistia Internacional se interessou por comprar uma foto da personagem feita por Deise Lane, fotógrafa do Viva Favela e parceira de Cláudio na Maré.


114

CapĂ­tulo 4


115


Repórter bom é repórter vivo A equipe do Viva Favela não era nada desprezível. Além dos quinze correspondentes comunitários, o portal chegou a ter doze jornalistas profissionais – mais do que muita redação virtual ou “física”. No início, os repórteres escreviam apenas notas para as diversas seções, como Diversão e Emprego. Com a criação dos novos sites, passaram a fazer também matérias externas e precisaram deixar o telefone de lado para mergulhar nas favelas. A mudança era uma antiga reivindicação do grupo. E coincidia com a valorização da revista Comunidade Viva, dedicada às reportagens especiais, que se tornou aos poucos o carro-chefe e o grande diferencial do portal. As seções de notas continuaram a ter um papel importante, sobretudo para o leitor de baixa renda. Mas deixar um jornalista preso na redação apenas para isso era certamente um desperdício. Ao mandar os repórteres para a rua, porém, o projeto foi obrigado a lidar, mais do que nunca, com os impasses e limitações que cercam o trabalho jornalístico nas favelas. A começar pela questão da segurança. Estávamos em meados de 2002, o jornalista Tim Lopes acabara de ser assassinado, como logo veremos, e havia um temor no ar por parte dos correspondentes. Porém, os jovens repórteres – a maioria tinha entre 25 e 30 anos – não estavam nem aí para isso. Pelo menos no começo.

116


Repórter bom é repórter vivo

117

Animados pela chance de ir a campo e se sentindo protegidos pelo nome do Viva Rio e do próprio Viva Favela – àquela altura, já conhecido em muitas comunidades cariocas –, eles foram se aventurando e abrindo seu próprio espaço. As regras básicas de segurança não estavam escritas, mas eram conhecidas e costumavam ser praticadas: fazer contato prévio com alguém de confiança, avisar à associação de moradores, ligar antes de sair da redação para saber se havia sinal de conflito no ar. Isso, provavelmente, era muito mais do que faziam as equipes do Viva Rio que trabalhavam em favelas. E talvez soasse até meio ridículo para quem estava acostumado com essas idas e vindas diárias. Mais ainda para quem morava lá e precisava entrar e sair sem pensar duas vezes. Entretanto, em se tratando de jornalistas – mesmo que de ONG –, não custava prevenir algum mal-entendido. Para os correspondentes, havia a vantagem de já estarem lá e de poderem mudar a hora e o lugar da apuração em caso de emergência. Além disso, o fato de serem bem conhecidos na comunidade ajudava. Em compensação, qualquer ruído na comunicação poderia ter efeito imediato sobre eles. Não por acaso, a gente costumava lembrar durante as reuniões de pauta que “repórter bom é repórter vivo”. Mais do que uma brincadeira com o mote de mau gosto de um deputado fluminense (“bandido bom é bandido morto”), a frase servia para reforçar a certeza de que ninguém deveria correr riscos à toa. Claro que eliminar completamente os imprevistos era impossível. A jornalista Julia Duque Estrada descobriu isso logo na sua primeira visita à Cidade de Deus. Ela fazia uma matéria para o EcoPop numa das áreas mais pobres da favela, conhecida como Jardim do Amanhã,1 quando ficou no meio da linha de tiro durante uma invasão policial. 1 Mesma área que serviu ao ensaio fotográfico de Tony Barros (ver capítulo “Passarela de Tábuas”). O lugar também é conhecido como Rocinha II.


118

Notícias da Favela

Fortemente armados, eles chegaram dando chutes nas portas. Não se constrangiam em invadir barracos à procura de traficantes, mesmo sem qualquer mandado de busca. A cena era assustadora. “A impressão era a de que poderiam atirar a qualquer momento, para qualquer lado”, lembra a jornalista. Tony, que fazia as fotos para a matéria, orientou a repórter a não correr. Julia obedeceu, mas, por via das dúvidas, resolveu se identificar como jornalista para os policiais. “Eles responderam para eu sair logo porque iria haver confronto”, lembra. A dupla, felizmente, já estava no final da matéria. “Por coincidência, quando eu cheguei à Cidade de Deus, os moradores me pediram para falar sobre a violência policial. Reclamavam que eles chegam atirando, apontando a arma para todo mundo, e que não respeitam os moradores”, lembra Julia. A repórter tinha feito tudo como manda o figurino. Marcara previamente a entrevista com os personagens e com o fotógrafo Tony Barros antes de pegar um ônibus – não havia dinheiro para táxi – e saltar no ponto mais próximo à favela. Lá, Tony já a esperava e os dois foram juntos para o Jardim do Amanhã. Voltou ainda ofegante para a redação. “Apesar do susto, não deixei de fazer matérias em favelas porque sempre fui muito bem acolhida pelos moradores. E sentia a importância que eles davam para as nossas coberturas”, diz Julia. Por sorte, foi a única história do gênero registrada com os jornalistas nos primeiros cinco anos do Viva Favela. A gente vivia o tempo todo em alerta, especialmente com medo das balas perdidas. A preocupação se estendia, e se ampliava, para os correspondentes. O fato de contarmos com uma estrutura precária – não havia carro com logotipo do projeto, por exemplo – não chegava a ser uma grande preocupação em termos de segurança. A simples menção do nome Viva Rio já abria portas. Quando muito, não as fechava. O que nem sempre acontecia com veículos da grande imprensa, que podiam ser hostilizados em determinadas comunidades.


Repórter bom é repórter vivo

119

Para os jornalistas, a existência de um correspondente funcionava como uma espécie de salvaguarda, e sempre facilitava as coisas. O fato de o Viva Favela ser um portal dedicado às comunidades de baixa renda também facilitava o trânsito da equipe. O maior problema estava nas investidas inesperadas da polícia, como essa da Cidade de Deus, ou, em casos extremos, na invasão da favela por uma quadrilha rival. Para esse tipo de coisa, não havia remédio a não ser se proteger e esperar passar o perigo. Nesse contexto, era preciso respeitar os limites de cada profissional. Se havia um repórter apreensivo diante de uma determinada matéria – o que aconteceu apenas uma ou duas vezes –, não forçávamos a barra. Era melhor encontrar alguém na equipe disposto a fazer a reportagem – ou até desistir da pauta, se fosse o caso. Para quem se aventurava em favelas onde não havia correspondentes, era preciso estar duplamente atento. Especialmente se o momento era de tensão, como em abril de 2003, no morro do Borel, onde quatro jovens foram assassinados no dia 17. Os principais suspeitos da chacina eram PMs que participaram de uma operação policial naquele dia. O Viva Favela fora o primeiro a denunciar a história – atraindo a atenção de outros veículos. Era bom ficar atento. Foi o que pensou o repórter Marcelo Monteiro quando conseguiu falar por telefone com Simone Silvote, irmã do taxista Everson Silvote, uma das vítimas da chacina. Naquele final de tarde de sexta-feira, a chapa estava quentíssima na favela. O melhor era acionar o plano B e marcar a entrevista num lugar qualquer fora do Borel. Mesmo que fosse num pé-sujo em frente ao morro, como efetivamente acabou acontecendo. A polícia andava por perto e ninguém queria correr riscos desnecessários – muito menos ampliar a vulnerabilidade das testemunhas e parentes. Os assassinatos, ocorridos poucas semanas antes, produziram uma indignação tal no Borel, que os moradores decidiram escrever uma carta-denúncia endereçada, entre outros, ao presidente


120

SIMONE SILVOTE, IRMÃ DE UMA DAS VÍTIMAS DO CASO BOREL Matéria: Viver como trabalhador, morrer como bandido Viva Favela 16/05/2003 Crédito: Rodrigues Moura


Rep贸rter bom 茅 rep贸rter vivo

121


122

Notícias da Favela

da República Luiz Inácio Lula da Silva. Duas coisas surpreendiam na carta: a riqueza de detalhes sobre o episódio e a lista de nomes ligados a instituições respeitáveis que a subscreviam – dezenas de ONGs, representantes da Igreja Católica e até da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mesmo assim, nenhuma outra redação da grande imprensa carioca lhe deu crédito. A carta chegara às mãos de Rubem César por uma fonte confiável. Ele me pediu para checar se a história era verdadeira. Marcelo, que tinha bons contatos no Borel, não demorou a confirmar o caso. “Logo no primeiro telefonema, uma fonte jurou que as vítimas eram trabalhadores que haviam sido executados a sangue frio”, lembra o repórter. O passo seguinte era saber se ela chegara aos seus destinatários – além de Lula, o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e o então secretário nacional de direitos humanos Nilmário Miranda. Através de uma fonte no gabinete do secretário, tive certeza de que ninguém sabia de nada em Brasília. Ao tomar conhecimento do conteúdo da carta, prometeram tomar providências imediatas. Com essa informação, publicamos a primeira matéria da série sobre o Caso Borel: “Vidas interrompidas”. Só então a história ganhou destaque e abriu espaço na grande imprensa. O jornal Extra foi o primeiro a repercutir, com crédito para o Viva Favela. O Globo só entraria na pauta quando Nilmário Miranda anunciou, em Brasília, a formação de uma comissão especial para tratar do assunto. Aí, a notícia foi para o alto da página do caderno Nacional. “Dias antes, os crimes haviam motivado uma passeata dos moradores do Borel pelas ruas do bairro da Tijuca, onde fica o morro – mas o protesto passou quase despercebido pelas autoridades e pela imprensa de modo geral. Tudo levava a crer que o caso seria esquecido e arquivado como muitos outros – e os PMs continuariam impunes”, lembra Marcelo.


Repórter bom é repórter vivo

123

Durante a cobertura da manifestação, alguns jornalistas chegaram a receber a carta-denúncia. Porém, por falta de tempo ou interesse, pessoal ou da chefia, não deram maior repercussão ao texto. Após a publicação da primeira matéria no Viva Favela, soubemos que O Dia estava correndo atrás da história. E precisamos correr para não sermos “furados” na seqüência da nossa cobertura. Assim, Marcelo foi parar no tal pé-sujo para a entrevista com a irmã da vítima. Voltou com detalhes da história e fotos do álbum de família para ilustrar a reportagem. A matéria “Viver como trabalhador, morrer como bandido” foi ao ar ainda na sexta à noite. Trazia uma declaração contundente de Simone, que, aos 26 anos, prometeu “só descansar quando o nome de Everson fosse limpo”. No final de semana, O Dia publicou uma matéria alentada sobre o assunto. A série foi encerrada com a reportagem “Além do medo”. Nela, Marcelo mostrava a visita de Nilmário Miranda ao Borel, uma semana depois de ter prometido apurar melhor o caso. Lá, o secretário se reuniu com parentes de vítimas e lideranças comunitárias. A visita ao morro levou a história para as manchetes e o noticiário das TVs e jornais de todo o Brasil. O Borel se tornou um dos casos de violação de direitos humanos com maior repercussão no país. Em 2003, a secretária-geral da Anistia Internacional de Londres, Irene Khan, visitou a favela. No mesmo ano, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, Asma Jahangir, também foi até lá para colher depoimentos de parentes de vítimas da violência policial. Saiu com a impressão clara de que existe no Rio, aberta e deliberadamente, a prática de execuções sumárias de jovens que moram em favelas. Em outubro do ano seguinte, o primeiro dos policiais militares acusados de envolvimento na chacina seria absolvido por um júri popular no II Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. “Isso evidencia o quanto a população está envolvida pela sensação de insegurança, acreditando no discurso oficial que criminaliza a


124

Notícias da Favela

pobreza e apresenta a violência policial como critério de eficiência”, disse em nota a ONG Justiça Global. O perigo, porém, não estava só nas áreas conflagradas. A calmaria também escondia seus riscos. Um exemplo clássico aconteceu na comunidade Santa Marta. Lá, não havia correspondente, mas isso nunca impediu que os jornalistas fizessem boas matérias abrindo caminho por conta própria. Subir a favela, localizada no morro Dona Marta, em Botafogo, na Zona Sul carioca, não era difícil. Bastava seguir as regras básicas de segurança. Em meados de 2004, quando a repórter Ana Cora Lima foi lá em busca de uma lavadeira – personagem de uma matéria sobre profissões em extinção –, o Santa Marta vivia uma longa temporada de tranqüilidade. A paz, que durou cerca de seis anos, seria interrompida meses depois por um confronto entre a polícia e o tráfico que chegou ao asfalto e feriu a repórter da TV Band Nadja Hadaad, um morador e três PMs. Naquela tarde, porém, tudo estava calmo e Ana Cora baixou a guarda. Sentia-se completamente segura. A repórter chegou à favela acompanhada pelo fotógrafo Walter Mesquita, correspondente da Baixada Fluminense. Já fizera contato com a moradora, que ficara de buscá-la no pé da favela. Depois de esperar cinco minutos, ligou do próprio celular, mas, como ninguém atendia, Ana resolveu encontrar a casa sozinha. E começou a subir o morro feliz da vida. Walter foi atrás. Ao perceber que estava sendo observada por um rapaz simpático e bonitão que sorria para ela, sorriu de volta e o rapaz se aproximou dos dois. “Era bonito, forte, bem vestido. Não tinha a menor pinta de marginal. Quando ele puxou conversa, eu vi que também era bem articulado”, lembra a repórter. Ana achou que estava sendo paquerada. “Aonde você vai?”, perguntou ele. Ana contou e ele, sempre gentil, ofereceu-se para confirmar sua chegada ligando do próprio celular para a moradora. Quando tirou vários celulares do bolso,


Repórter bom é repórter vivo

125

Walter começou a ficar pálido. Impressionada com tamanha boa vontade, a repórter só desconfiou quando o rapaz fez questão de mandar alguém acompanhá-los. Aí, caiu a ficha. Durante o longo caminho até a casa da moradora, “seu guia” contou que, para chegar lá, seria preciso passar pela “Faixa de Gaza” – uma área conhecida pelos constantes conflitos armados entre traficantes e a polícia. Pouco antes de chegarem, Ana ainda viu seis menininhos com armas e rádios-transmissores. “Durante a entrevista, ninguém tocou no assunto. Os moradores têm sempre muito medo e às vezes fingem que os traficantes não existem”, observa Ana, que voltou ao lado de Walter sem “escolta”. Ainda ouviu um “volte sempre” dos garotos no caminho. Foi a primeira e única vez em que a repórter bobeou desse jeito. Ana sabia que não podia vacilar. E estava acostumada a fazer malabarismos para proteger seus personagens. No dia em que precisou entrevistar parentes do barman Fábio Gomes Rodrigues, do Vidigal, que fora morto por uma bala perdida, por exemplo, a repórter marcou a entrevista no lugar mais lotado que conseguiu imaginar: uma agência do INSS. A precaução fazia sentido. Em caso de morte por bala perdida, muitas vezes as testemunhas são capazes de identificar se o tiro partiu da polícia ou do tráfico. Para não levantar desconfianças inúteis, era melhor que a conversa com a repórter fosse feita fora da favela. O barman, que trabalhava numa badalada boate de Copacabana e tinha muitos amigos, completava 27 anos no dia em que foi morto. Era o início de março de 2005 e ele foi atingido por quatro tiros de fuzil quando descia o morro para buscar seus convidados que moravam no asfalto e não sabiam o caminho até sua casa. Era também a comemoração do seu casamento – em breve, ele passaria a morar com a namorada. Ana voltou da entrevista arrasada. Para a jornalista, o Viva Favela foi um grande aprendizado. “Passei a conviver com uma outra realidade. Descobri que, na favela,


126

Notícias da Favela

é preciso chegar sem soberba. E você sempre se envolve, quer ajudar como for possível. O distanciamento jornalístico vai pras cucuias”, diz Ana. Entre os momentos tensos, ela lembra ainda de uma matéria no morro da Fallet, em Santa Teresa (zona central do Rio). “Um traficante chegou gritando para o Walter: ‘Não faz foto que eu tô errado na parada!’ O fotógrafo, que só queria a paisagem, teve de mostrar a imagem digital para acalmá-lo. Às vezes eu penso em como tive coragem... Não sei se hoje eu subiria uma favela do mesmo jeito. Acho que a situação piorou muito nos últimos dois anos”, diz Ana Cora, hoje redatora do jornal popular Expresso, das Organizações Globo. O repórter Jaime Gonçalves Filho, que substituiu Marcelo Monteiro no site Favela Tem Memória, também passou por momentos de sufoco. Nascido em 1973, Jaime foi contratado pelo Viva Favela em dezembro de 2003 para reforçar a cobertura de violência. De toda a redação, era o que mais sentia afinidade com o tema. Gostava de discutir suas possíveis causas e de entrevistar especialistas. E não se recusava a encarar um morro sob tensão. Como era o caso da Rocinha duas semanas depois da Sexta-Feira da Paixão de 2004, quando um ex-chefe do tráfico local invadiu a favela para retomar o comando do comércio de drogas, como veremos a seguir. Junto a duas outras equipes (do Jornal do Brasil (JB) e da Folha de São Paulo), Jaime subiu com Kita Pedroza até uma área da favela a convite de Carlos Costa, líder comunitário e ex-correspondente do portal. O Batalhão de Operações Especiais (Bope) entrara de madrugada na comunidade e os moradores queriam mostrar à imprensa o estrago que os tiros fizeram por ali. “Entramos por um beco que foi ficando cada vez mais estreito. No final dele, dava para ver os carros, toldos e paredes perfurados”, lembra Jaime. Tudo ia bem, até o fotógrafo do JB fazer uma foto e colocar em quadro um dos traficantes parados mais adiante. “A partir daí, começou a sair um monte de homem armado do beco. Eram uns dez ou doze”. Carlinhos explicava que ninguém


Repórter bom é repórter vivo

127

estava ali pra fotografar o tráfico, mas eles queriam ficar com a máquina do JB de qualquer maneira. Até tudo se acalmar – e a máquina ser recuperada –, foram quatro intermináveis minutos. No final daquele mesmo ano,  Jaime voltaria a viver momentos em que ficou com a respiração suspensa. Dessa vez, durante uma inocente matéria que fazia para o Favela Tem Memória. A reportagem era “No tempo dos atabaques”, que trazia uma entrevista com Dely Moreira Chagas, cantora do grupo Jongo da Serrinha e neta da mãe-de-santo Vovó Maria Joana Rezadeira, que, até meados da década de 1980, comandava um terreiro onde famosos como a cantora Clara Nunes marcavam presença. Para fazer a matéria, foi preciso subir o morro da Serrinha, no bairro de Madureira, na Zona Norte carioca. Do pé da comunidade, Jaime ligou do celular para Dely. Perguntou se ela não gostaria de pegá-los lá embaixo. A moradora disse que eles poderiam subir sozinhos, que ali era tranqüilo. A subida realmente foi calma. Bastou perguntar a duas ou três pessoas. Seguindo as indicações dos moradores, Jaime e o fotógrafo Walter Mesquita chegaram sem problemas à casa da cantora, que morava no meio de uma escadaria que dá acesso ao alto da favela. “A gente viu ‘os caras’ lá no alto, e eles ficaram olhando a gente lá de cima”, lembra o repórter. A saída, já ao entardecer, não seria tão calma. Depois de se despedir na porta da casa de Dely, Walter resolveu fazer uma foto da paisagem de Madureira que se descortinava bem na frente da escadaria. Nesse momento, porém, Jaime percebeu que havia dois rapazes do “movimento” descendo em direção a eles. “Guarda essa câmera e vamos embora”, sussurrou Jaime. O fotógrafo obedeceu. Os dois apressaram o passo, os bandidos também. Já quase no final, o repórter ainda ouviu um deles dizer ao outro: “Não adianta, a gente vai fazer aqui, agora!” Eles acharam melhor continuar andando rápido, sem olhar para trás. Só pararam quando chegaram ao pé da escadaria, sãos e salvos. Provavelmente era só para assustar. Porém, não convinha pagar para ver.


Um divisor de águas A cobertura das favelas cariocas feita pela mídia tradicional tem um claro divisor de águas: o assassinato de Tim Lopes. Se até então ela tendia a ser limitada, com a morte do jornalista da TV Globo, tornou-se ainda mais precária. Triste ironia. Criado no morro da Mangueira, Tim sempre lutou para inserir as comunidades de baixa renda na pauta dos grandes veículos. Até ser morto por traficantes no Complexo do Alemão, em junho de 2002, quando fazia uma reportagem investigativa sobre consumo de drogas e exploração sexual de menores num baile funk. A partir do assassinato, a Globo proibiu expressamente a ida de todo e qualquer jornalista às favelas do Rio. As equipes que fossem fazer matérias em áreas próximas deveriam usar carros blindados. Ainda assim, os repórteres teriam de usar coletes à prova de balas. Imagens, só de helicóptero e a uma distância segura. Essas medidas só seriam abrandadas uns dois anos depois, quando a emissora voltou a entrar em favelas, sobretudo para fazer reportagens de cunho social. A cobertura de tiroteios, no entanto, continuou proibida. A morte de Tim Lopes parece ter afetado, de uma maneira ou de outra, todos os veículos cariocas de grande porte. A redação do SBT, por exemplo, também adotou novas medidas de segurança. Entre elas, havia uma ordem para as equipes nunca entrarem sozinhas na favela. 128


Um divisor de águas

129

A regra era subir o morro com “escolta” da polícia e, de preferência, junto com outras emissoras. “O caso do Tim foi um grande susto. Até então, havia um senso comum de que a imprensa estava salvaguardada. Mas a morte dele mostrou que a lua-de-mel havia acabado e que o crime no Rio não era mais o mesmo”, avalia Rafael Casé, editor-chefe do SBT Rio. Para Rafael, parte dessa sensação de segurança se devia ao fato de os bandidos enxergarem nos jornalistas um fator de proteção: “Eles sabiam que, se a imprensa estivesse lá, seria mais difícil para os policiais sumirem com eles caso fossem pegos. Contavam com a imprensa para garantir suas vidas”. A Folha de São Paulo, por sua vez, aprovou normas de segurança rígidas, que incluíam o uso obrigatório de colete à prova de balas. Na Folha, ninguém poderia tentar acompanhar um tiroteio, por exemplo. Nesse caso, a ordem era sempre para buscar abrigo. Já em reportagens especiais, a equipe deveria checar as condições de segurança previamente, encontrar o contato na entrada da favela e jamais circular sozinha. As normas foram definidas e implementadas por Marcelo Beraba, então diretor da sucursal carioca da Folha. “Beraba produziu um texto regulamentando a ação dos profissionais em favelas. Esse texto foi submetido à direção do jornal, que o aprovou. Eram normas bastante rigorosas e seu cumprimento era exigido com severidade por ele. A Folha comprou para a equipe coletes à prova de balas e era proibido ir para a favela sem eles”, lembra o repórter Sergio Torres. Marcelo Beraba confirma que as medidas foram adotadas “depois de discussões com repórteres (de texto e de imagem), com os motoristas e os chefes da sucursal do Rio” e aprovadas pela direção da redação de São Paulo. Para o jornalista, que é também presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a grande mídia tem interesse na cobertura de favelas, “mas não sabe como fazê-la”.


130

OPERAÇÃO POLICIAL NA ROCINHA Matéria: Eles querem segurança Viva Favela 09/02/2004 Crédito: Nando Dias


Um divisor de águas

131

Por conseqüência, essa cobertura, diz Beraba, “oscila entre uma ênfase excessiva na violência (com relatos quase sempre de uma única fonte, a polícia, uma vez que entrar nas favelas ficou de fato perigosíssimo para a imprensa) e os destaques para casos excepcionais, como a menina que foi fazer balé na Alemanha, o garoto que ganhou bolsa para tocar violino na Áustria. É algo completamente sem lógica. O morador comum, que não é nem criminoso e nem um caso raro de virtuosidade, passa despercebido, é ignorado, junto com os problemas urbanos – habitação, saneamento, educação, oportunidades de trabalho etc. – estes sim, gravíssimos e pouco abordados”. Os jornais populares Extra e O Dia também mudaram seu esquema de cobertura. O Extra tem hoje como padrão proibir a entrada de equipes de reportagem em comunidades, salvo ações determinadas pela chefia. Já O Dia continua a subir favelas, mas repórteres e fotógrafos são orientados a não correrem riscos desnecessários. Não há exatamente um código interno no jornal. Entretanto, procura-se obedecer a alguns critérios, como fazer contato prévio com a associação de moradores ou com alguma fonte para entrar na favela, quando a matéria não é factual. O uso de coletes à prova de balas só é obrigatório quando a equipe acompanha incursões policiais. “A presença de jornalistas em favelas ficou bem mais tensa. Normalmente, pedem que a gente permaneça no morro somente até o final da tarde. A partir das dezoito horas, somente quando é imprescindível”, diz a fotógrafa Isabela Kassow, do O Dia. O limite de horário, no entanto, não impede situações de risco. Certa vez, por exemplo, Isabela ficou encurralada em plena luz do dia, junto com dois PMs, no morro da Providência: “Via as balas de fuzil caindo a meio metro de mim, e eu totalmente encolhida no cantinho de um muro. Não tinha nem como fotografar”. Para sair de lá, foi preciso esperar a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), grupo da Polícia Civil, chegar.


132

Notícias da Favela

Isabela teve de correr de costas para os tiros dos bandidos, escondidos em cima de uma laje. “Supero o medo, muitas vezes, em nome não sei bem de quê! Parece que a câmera me torna quase imortal. Mas hoje temos mais cuidado ao ‘invadir’ o terreno alheio, que, mesmo estando tranqüilo, pode explodir a qualquer momento”, diz a fotógrafa. Na medida em que o narcotráfico avançava, as favelas eram cada vez mais identificadas como o espaço do medo no Rio. Essa percepção se refletia na pauta e na cobertura feita pelos jornalistas. E só piorou, a partir do ano 2000, quando os atos de violência do tráfico de drogas transbordaram para o asfalto. Bombas sendo lançadas sobre a sede da Prefeitura do Rio ou confrontos entre a polícia e o tráfico em pleno asfalto, fora da tradicional “área de proteção” oferecida pela geografia do morro, traçam um quadro ainda mais hostil. “Quando a imprensa deixa de entrar em favelas, uma parte muito grande da sociedade fica sem voz. Esse recuo é o prejuízo mais recente e nítido provocado pela tirania do tráfico de drogas no Rio”, observa Aziz Filho,1 até meados de 2007, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio (SJPMRJ), que briga por melhores medidas de proteção para as equipes que cobrem a violência na cidade. Nesse contexto, era natural que o Viva Favela se tornasse uma rara fonte de informação. Como nenhum outro veículo, o portal podia contar com repórteres e fotógrafos 24 horas por dia nas favelas – os correspondentes comunitários. Havia, no entanto, um pequeno detalhe: praticamente nenhum deles queria falar sobre assuntos que não transmitissem uma visão positiva da comunidade. E, como o jornalismo é feito de notícias boas e ruins, o Viva Favela começou a falhar na cobertura de um aspecto fundamental para quem vive no Rio de Janeiro neste início de século XXI: a violência.   Revista Lide, março/abril de 2006.

1


Um divisor de águas

133

Claro que a intenção não era acompanhar a cobertura factual, a velha guerra sem fim entre o tráfico e a polícia.  Havia um consenso no Viva Favela de que a mídia tradicional já cobria exaustivamente os temas do gênero. Contudo, era preciso dar alguma atenção aos efeitos dessa guerra sobre o cotidiano dos moradores. Não falar de violência passou a soar cada vez mais como omissão, ou alienação pura e simples, da realidade carioca, o que criava situações absurdas. Para não passar atestado de lunática, lembro-me de suspender a publicação de duas matérias sobre a Rocinha. A comunidade vivia momentos dramáticos, em plena “guerra” de facções, como veremos adiante. Não fazia sentido colocar uma manchete sobre um assunto ameno sem fazer referência à tensão que dominava o lugar. Não dava para fingir que nada estava acontecendo. Sobretudo na Rocinha, caixa de ressonância das favelas por se localizar entre bairros de alto poder aquisitivo do Rio como Leblon, Gávea, São Conrado e Barra da Tijuca.

A Caras da favela A comunidade sempre foi a mais badalada do Rio – para o bem ou para o mal. Ali, qualquer tiroteio ganha evidência amplificada, especialmente se houver vítimas, ao contrário de outras favelas que ficam em bairros mais pobres e afastados da elite carioca, onde muito acontece e pouco se noticia. Mesmo na editoria de polícia. Para o Viva Favela, a Rocinha também era especial porque funcionava como uma espécie de favela-laboratório para diversas iniciativas bem-sucedidas do Viva Rio, como a Estação Futuro e o Viva Cred (programa de microcrédito). Como já vimos, ali também os moradores tinham acesso privilegiado a computador e Internet nos cyber-cafés, nas Lan Houses (lojas de jogos) ou nas sedes de projetos sociais.


134

Notícias da Favela

Reza a lenda que Luciano Barbosa da Silva, o “Lulu”, chefe do tráfico de drogas até ser morto numa troca de tiros com a polícia em abril de 2004, costumava olhar a home do Viva Favela para saber o que o portal escrevia sobre a Rocinha. Fora da favela, porém, havia leitores descontentes com a ampla cobertura dada a ela. Certo dia, por exemplo, um morador de uma favela da Zona Oeste ligou irritado para a redação, reclamando que o Viva Favela “só cobria os tiroteios da Rocinha”. Explicamos que havia apenas uma correspondente para cobrir toda a sua região, e pedimos que deixasse um contato. Ele poderia nos ajudar nessa cobertura no futuro. O rapaz, porém, desligou ainda bravo, sem sequer deixar seu nome. Mas, se falar de violência era um tabu para os correspondentes, como entrar no assunto? Porque não entrar era ignorar uma parte da história da própria cidade, em última instância do país, que se desenrolava ali, diante dos nossos narizes. O tema foi discutido durante uma reunião de balanço do projeto, realizada em março de 2004. Nela, o jornalista Xico Vargas pontuou que o portal correria o risco de virar a Caras da favela se continuasse a ignorar a cobertura da violência na cidade. A comparação com a revista de celebridades expressava a preocupação de Xico com o clima “água-com-açúcar” que tomara conta do Viva Favela, confinado em sua camisa-de-força de não tocar em aspectos negativos das comunidades. Qualquer mudança, no entanto, teria de ser feita com muito cuidado, já que tudo o que os correspondentes queriam (e nós também) era fugir do estereótipo de favela como o “lugar da violência”, para mostrar ali um outro tipo de cotidiano. Uma restrição que até hoje Rubem César lamenta: “Eu não sentia nos correspondentes aquela postura que os jornalistas tinham durante a ditadura de usar subterfúgios para mostrar o que não podia ser mostrado em cada brecha que aparecesse. Não sentia uma atitude mais agressiva para afirmar a sua liberdade de expressão”. O antropólogo avalia que eles poderiam ter


Um divisor de águas

135

ousado um pouco mais. Entretanto, admite, a mídia era “tão escancarada” ao falar de violência, que eles faziam “o caminho inverso, forçando a barra para fechar”. A linha editorial do Viva Favela realmente nunca excluíra o tema de sua pauta. “Mesmo tendo presente o tempo todo o risco que isso representava”, diz Xico. O jornalista lembra que Rubem César, já no início, cobrara possíveis formas de se abordar a questão da violência, o que acabou resultando na criação de Vidas Perdidas, uma seção que permitia aos correspondentes contar as histórias pela perspectiva da perda. Algumas belas matérias chegaram a ser feitas. Mas não havia regularidade na produção e era sempre difícil arrancar uma sugestão da equipe. Com o tempo, a seção foi definitivamente esquecida. O desfecho já era um forte indicador da resistência que encontraríamos pela frente. Para os correspondentes, colocar o dedo na ferida sempre foi muito difícil. Na publicação A memória das favelas,2 o jornalista Flávio Pinheiro fala da importância da seção: Como falar de questões delicadas? Questões delicadas porque envolvem a segurança das pessoas? Tivemos, nas reuniões de pauta, grandes conversas utilíssimas a respeito disso, a partir do depoimento que cada correspondente traz: falam do seu temor, do limite de suas ações. Discutimos a possibilidade de saber mais sem prejudicar, sem colocar ninguém em risco e o Viva Favela fez isso com grande maestria. O Viva Favela criou uma seção chamada Vidas Perdidas na qual não fala sempre da violência, mas sim do luto por uma morte, dando uma existência civil, se assim podemos dizer, ao indivíduo morto. (...) Acho importante discutir esse tema.

Rosy Henriques, correspondente da Cidade de Deus, foi uma rara exceção a fugir da linha “favela do bem”. Rosy escreveu, por exemplo, sobre a denúncia de uma manicure que acusava um NOVAES, Regina; CUNHA, Marilena & VITAL, Christina (eds.). “A Memória das Favelas”. Em: Cadernos de Comunicações do Iser. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião, 2004.

2


136

Notícias da Favela

policial de ter assassinado seu filho. Também falou da explosão do consumo de drogas entre moradores de comunidades, ainda em 2001. Publicada em 3 de setembro, “Drogas avançam nas favelas” foi pioneira em revelar que os moradores de favelas estavam se transformando em consumidores cobiçados pelo narcotráfico. Nela, Rosy relatava que a proximidade da fonte de distribuição ajudava a atrair os jovens para o vício. A correspondente ficou pouco tempo no portal. Entretanto, saiu com a fama de ser uma das melhores do time. Sacava pautas corajosas. Entre as matérias memoráveis, destaca-se ainda “A maldição do endereço”, que revelava a dificuldade dos moradores para conseguir um emprego em função do preconceito em relação à Cidade de Deus. Também marcou a reportagem com meninos que trabalhavam para segurar a barra em casa – “Chefes de família aos 12”. Além de correspondente, Rosy era professora de um curso de modelo e manequim na favela até se casar e se mudar para a Alemanha. Dayse Lara, que sucedeu Rosy, também costumava aceitar pautas mais pesadas. Encarou, por exemplo, o desafio de contar em reportagem a morte da mãe de uma modelo que era conhecida sua na favela. Assim, Dayse descobriu que ter intimidade com as fontes e personagens nem sempre era um bom negócio. Na hora de escrever, uma das grandes preocupações foi não fazer um texto sensacionalista: “Eu vivenciei aquilo com ela. Vi a mãe dela de manhã, os policiais entrando na comunidade. Vi a mãe dela saindo depois e vi chegando a notícia de que ela havia sido baleada. Vi a Ludmila gritando: ‘Minha mãe, não!’ Pedi desculpas por estar tocando numa ferida. Quem gosta de ficar falando disso? Não perguntei os mínimos detalhes porque... quem gosta, não é?”, diz Dayse. Ao longo do tempo, sugestões esporádicas dos correspondentes tocariam em assuntos mais espinhosos. Mas, em geral, quase ninguém queria jogar luz sobre as dores da favela. Além disso, qualquer reportagem sobre sua própria comunidade, acredita-


Um divisor de águas

137

vam, seria automaticamente associada a eles. Mesmo que não levasse o seu crédito. É na equipe de jornalistas profissionais, portanto, e ainda assim, diante de certa resistência, que o projeto descobre caminhos para falar da violência e de seus desdobramentos na vida da população.


Códigos de conduta Os caminhos para uma nova cobertura que incluísse a questão da violência logo seriam traçados. De saída, sabia-se que essa não seria uma abordagem factual, com tiroteios e contagem de mortos. Era preciso descobrir novos rumos. Ir além – enxergar o morador, dar-lhe um nome e uma identidade, contar suas histórias de vida, seus sonhos interrompidos. Mostrar que ele é a maior vítima – embora o asfalto identifique tantas vezes a favela apenas como produtora, e não refém, dessa violência. Só assim seria possível sensibilizar os formadores de opinião e a parcela da sociedade que, no final das contas, influencia o poder público e é capaz de promover mudanças. Em abril de 2004, a publicação da matéria “Códigos de conduta” marcaria o primeiro passo dessa transformação. A reportagem relatava com detalhes impressionantes como os moradores de favelas eram obrigados a seguir as regras impostas pelo tráfico – às vezes, em sua própria casa. E mostrava que o domínio do tráfico invadia até o raciocínio das crianças. Na hora das brincadeiras, elas contavam: primeiro, segundo, “dois mais um”, quarto… “Terceiro” era palavra proibida para não haver referência ao Terceiro Comando, facção rival da quadrilha local. “São regras”, dizia a matéria, assinada pelo repórter Carlos Collier, o Carlinhos, “que não precisam estar escritas”. Os nomes citados eram todos fictícios, mas os personagens, naturalmente, 100% reais. A matéria teve boa repercussão.

138


Códigos de conduta

139

O site Globo Online reproduziu parcialmente o texto, enquanto Roberto Pompeu de Toledo citou a reportagem do início ao fim em sua coluna semanal na revista Veja, com os devidos créditos. Um ano antes, o Viva Favela já ensaiara uma abordagem sobre o tema, mas por um viés oposto. Em março de 2003, em reportagem também de Carlos Collier, o portal mostrava os códigos usados pelos moradores para não serem confundidos com bandidos pela polícia. Feita na Cidade de Deus, a matéria “A dureza da dura” mostrava uma série de recomendações que deveriam ser seguidas para driblar as revistas da polícia: “Um trabalhador nunca deve ficar parado numa esquina, no meio da tarde. Também não deve usar pochete. Cabelo pintado de louro – a menos que seja um cantor de pagode muito famoso –, camisa social estampada e corrente de ouro no pescoço também estão proibidos. Andar com muito gingado à noite, agitando os braços e conversando alto demais, é dura na certa. Pela lógica policial, explicam os moradores, ninguém que tenha passado o dia trabalhando pesado pode ter tanta energia nesse horário”. Mais interessado na área cultural, o repórter Carlos Collier sempre tentava escapar de pautas do gênero. Nem sempre conseguia, como se vê. Pernambucano, Carlinhos assumiu a seção Nordeste é Aqui – feita sob medida para os nordestinos que vivem no Rio de Janeiro, com perfis de famosos, letras de cordel e receitas culinárias – quando Ana Cora, então responsável pelo espaço, foi deslocada para o Clique Seu Direito – um site do Viva Favela que prestava assistência jurídica on-line com o apoio da faculdade de direito da UniRio. O Clique era uma espécie de braço virtual do projeto Balcão de Direitos, também do Viva Rio. Ana Cora, por sua vez, preferia fazer reportagens sobre temas mais “pesados”. Como a série “Ditadura do tráfico”. Publicadas entre setembro e novembro de 2004, as três matérias da série mostravam moradores acuados pelos bandidos. Os depoimentos revelavam que eles eram forçados a agir contra a sua vontade, e tinham de servir comida e bebida a traficantes que invadiam


140

Notícias da Favela

suas casas. Também deviam pagar por “serviços de segurança” e até pelo fornecimento clandestino de água. Para as famílias de dependentes químicos ameaçados por dívidas com o tráfico, o sofrimento era ainda maior. E cercado pelo silêncio. Foi preciso muita confiança – e a garantia de que o Viva Favela não identificaria a fonte nem localizaria as respectivas comunidades – para que se pudesse conseguir os relatos inéditos das vítimas que aceitaram denunciar como agem as facções criminosas e como elas implantam o terror nas favelas. Como lembra a repórter Mariana Leal, era necessário um cuidado extremo com certos entrevistados, inclusive mudar nomes para garantir a sua segurança. Segundo a repórter, havia, sobretudo, o medo da reação dos traficantes locais. No entanto, a polícia também era temida. E o contato com os personagens era sempre uma questão de confiança. “Alguns eram apresentados pelos correspondentes – e nos confiavam experiências de vida e até outras versões para os fatos. Daí ser fundamental a atenção com essas informações”, diz.

A guerra na Rocinha A tensão de quem vive numa favela disputada por facções rivais pode ser terrível, apesar de as pessoas de fora nem sempre perceberem isso. Quem acompanha os confrontos pelos jornais mal se dá conta de que há vítimas. No meio de números de armamentos e drogas apreendidas, o que se tem muitas vezes são estatísticas sem rosto. Se o conflito atinge moradores do asfalto, porém, é certo que o assunto entrará na pauta de todos os veículos. Mais ainda se esse conflito acontecer na Rocinha – como já vimos, a caixa de ressonância das favelas cariocas e uma das maiores do Brasil. Quando a favela passou por meses de tensão à espera de uma guerra entre quadrilhas que disputavam o controle da venda de


Códigos de conduta

141

drogas, no início de 2004, isso ficou mais do que claro. As facções rivais invadiram a favela na madrugada da Sexta-feira da Paixão. Tinham no comando um ex-chefe do tráfico local interessado em retomar o controle das bocas-de-fumo da Rocinha. O episódio aconteceu apenas dois meses depois da reunião na qual ficou decidido que o portal não poderia mais se negar a falar da violência. Era preciso reagir e assim foi feito. O resultado desse esforço – comandado por Tetê Oliveira, que assumiu o portal durante minha licença-maternidade – ficou registrado na série “A guerra na Rocinha”. Com notícias frescas e inéditas da favela, a série provocou uma das maiores repercussões já alcançadas pelo portal. As reportagens – “Notícias de uma guerra”, “Diário de uma sobrevivente” e “Pressão máxima” – foram assinadas pela própria Tetê, pela repórter Gisele Netto e pela redatora Vilma Homero. Durante a ação dos traficantes, que ocorreu tanto na favela como em ruas próximas, no bairro de classe média alta de São Conrado, morreram nas primeiras horas dois moradores da comunidade e uma moça “do asfalto” que passava de carro pela avenida Niemeyer, estradinha sinuosa à beira-mar e um dos caminhos preferidos por quem vai da Zona Sul à Zona Oeste da cidade. Também se pode passar pelo Túnel Zuzu Angel, cuja saída desemboca ao lado da Rocinha. Quando estourou o conflito, conta Tetê, os moradores se entrincheiraram em suas casas ou ficaram impossibilitados de chegar até elas. Como é de praxe, imperou a lei do silêncio e se evitou dar depoimentos a jornalistas. O Viva Favela conseguiu furar o cerco e retratou o conflito do ponto de vista de quem vive na comunidade. Com as fontes do portal, foi possível traçar um panorama da “guerra” a partir do relato das vítimas e de testemunhas anônimas, que viveram horas de terror após a invasão. Os textos sobre a Rocinha tiveram grande repercussão na mídia, inclusive com a reprodução de trechos de três matérias no Globo


142

Notícias da Favela

Online, e forneceram material para duas colunas, novamente assinadas por Roberto Pompeu de Toledo e publicadas em edições consecutivas (21 e 28 de abril) na revista Veja. Todos deram créditos ao Viva Favela. O portal foi procurado ainda por jornalistas de diversos veículos, até mesmo de outros estados, querendo indicações de personagens para matérias sobre o tema. O interesse também veio do exterior. O diário basco Berria, por exemplo, solicitou informações sobre a situação das favelas cariocas. Os textos foram reproduzidos em blogs, sites e jornais, como o Tecido Social, jornal da Rede Estadual de Direitos Humanos – RN, publicação do Rio Grande do Norte. A partir daí, o Viva Favela continuou buscando o tom mais adequado para avançar na cobertura da violência nas favelas do Rio. Até que, no dia 31 de março de 2005, um fato novo exigiu outro grande empenho de reportagem. E, dessa vez, haveria um reforço inesperado.

Nossos homens na Baixada Ninguém contava com a ajuda dos correspondentes para matérias do gênero. Foi uma ótima surpresa, portanto, quando o fotógrafo Walter Mesquita e o correspondente de texto Cristian Ferraz aceitaram ajudar na cobertura da Chacina da Baixada. A notícia dava conta de que 29 pessoas haviam sido assassinadas por um grupo de extermínio nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados. Escolhidas ao acaso, as vítimas eram jovens, adultos e idosos. Os principais suspeitos, policiais militares. A cobertura do episódio rendeu à dupla de correspondentes da Baixada Fluminense um de seus melhores desempenhos no portal. Os dois foram extremamente profissionais e conseguiram se sair muito bem numa apuração difícil até para um jornalista experiente. A matéria seria a manchete do nosso boletim semanal – uma síntese das melhores reportagens do período –,


Códigos de conduta

143

enviado para mais de doze mil assinantes. Tinha, portanto, de ficar pronta no dia seguinte. Cristian saiu da reunião de pauta de segunda com o compromisso de amanhecer em Queimados (ele morava em Duque de Caxias, também na Baixada). Sua missão era traçar o perfil alentado de uma das vítimas – e ele conseguiu. Madrugou por lá na terça e só voltou com a entrevista nas mãos. Com a ajuda de Walter, conseguira o contato dos pais de Julinho – um estudante morto na chacina. Aos dezesseis anos, Julinho estava na hora errada, no lugar errado. Convidado para uma festa, cancelou o compromisso na última hora. O menino queria ser policial, como descobriram mais tarde. Um prazo tão apertado era inédito para um correspondente. Entretanto, Cristian voltou à redação e escreveu a matéria na maior adrenalina. De madrugada, sem conseguir pregar o olho, escreveu um e-mail para Tetê e para mim contando a experiência – enquanto chorava ao relembrar a conversa com a mãe de Julinho. A cobertura da chacina envolveu também jornalistas da equipe, como Vilma Homero, Jaime Gonçalves e a própria Tetê Oliveira. Ao todo, foram dez matérias. Morador de Queimados, Walter Mesquita conseguiu pautas preciosas. A de maior repercussão falava sobre uma família que se mudou de Vigário Geral para Queimados após assistir à chacina de Vigário, ocorrida em 1993, mas deu de cara com outra tragédia. Com o título “O filme se repete”, a reportagem levou O Globo e O Estado de São Paulo a correrem atrás para entrevistar o personagem descoberto pelo Viva Favela. Walter fez a ponte e levou o rapaz da Baixada até a sede do Viva Rio. O compromisso com os dois jornais foi manter o anonimato e dar crédito ao portal na matéria. Ambos foram respeitados. Dar crédito ao veículo que originou a notícia está longe de ser uma prática no jornalismo impresso. Quando se trata de Inter-


144

PARENTES DE VÍTIMAS DA CHACINA DA BAIXADA CRIAM ASSOCIAÇÃO Matéria: Baixada relembra chacina Viva Favela 30/03/06 Crédito: Walter Mesquita


145


146

Notícias da Favela

net, essa omissão é quase uma regra. É como se o mundo virtual fosse uma terra de ninguém onde o dono do conteúdo – autor ou veículo – pudesse ser simplesmente ignorado. Inúmeras vezes, descobrimos matérias do Viva Favela reproduzidas sem qualquer crédito ou link para o portal – exigência mínima que fazíamos aos que queriam replicar nosso conteúdo. As reportagens do Viva Favela sempre primaram pela exclusividade – o que as diferenciava de alguns sites, com conteúdos jornalísticos mais ágeis, mas também bem mais superficiais. Por isso, condicionamos nossas parcerias com outros veículos ao crédito obrigatório. Entre os parceiros de conteúdo estavam os sites IG Cidadania, Cidadania.org e NoMínimo. Com o Globo Online, formalizamos uma parceria no segundo semestre de 2005. De todos, o jornal O Dia foi, certamente, o que mais trouxe visibilidade ao leitor de baixa renda. Por um iluminado acordo feito informalmente por iniciativa de Oscar Valporto, o jornal publicava todos os sábados uma matéria do Viva Favela em espaço nobre (metade da página 2). Essa página fazia o maior sucesso nas favelas e costumava ser colada pelos entrevistados em todos os cantos da comunidade. Com a reforma gráfica do jornal, no final de 2003, o espaço foi suspenso. Deixou, porém, sua marca. A decisão tomada por Cristian de entrar de cabeça na cobertura da Chacina da Baixada, junto com Walter Mesquita, mostra que o tempo talvez tenha ajudado a atenuar a antiga resistência dos dois em fazer pautas sobre violência. É fato que nem Walter nem Cristian moram em favela. No entanto, deve ter pesado, acima de tudo, a percepção de que nosso objetivo, também nesse tópico, não era repetir a visão da grande mídia. Era não fechar os olhos diante de fatos que impactavam a sociedade como um todo – mas que importavam mais para uns do que para outros. Nascido em 1972, o radialista Cristian entrou para o portal em 2003, substituindo a correspondente Keliane Muniz, também de Duque de Caxias. Com uma diferença: ele passaria a cobrir toda a região da Baixada, já que a correspondente de Quei-


Códigos de conduta

147

mados na época, Lara Larissa, também saíra. Cria da área – apesar de ter morado em Botafogo (Zona Sul carioca) até os cinco anos de idade –, Cristian daria conta do recado muito bem. E se destacaria como um dos mais dedicados e competentes do grupo, conseguindo conciliar o portal com o trabalho na hoje extinta Rádio Fluminense FM e com os flashes que fazia para a também extinta Rádio Viva Rio AM.


CapĂ­tulo 5


149


Luz sobre o beco As imagens das favelas brasileiras que costumam chegar ao público são geralmente distantes e apressadas. No Viva Favela, porém, os fotógrafos tinham não apenas tempo, mas, sobretudo, intimidade diante do objeto. A proximidade permanente dos becos, ladeiras e lares de suas comunidades permitiu que fizessem uma leitura intensa dessas áreas. Pelas lentes dos correspondentes Deise Lane, Nando Dias, Rodrigues Moura, Tony Barros e Walter Mesquita – e também das editoras Sandra Delgado e Kita Pedroza, a favela que brota é singular. Em conjunto, essas imagens formam um dos maiores acervos do gênero no país, com mais de quarenta mil fotos. Não por acaso, em meados de 2005, o time conseguiu um reconhecimento internacional ao ganhar o Documentary Photography Project Distribution Grant – prêmio oferecido pelo Open Society Institute (leia-se Fundação George Soros) após disputa que envolveu projetos de documentação fotográfica do mundo inteiro. A premiação permitiu ao portal viabilizar uma exposição itinerante em favelas do Rio e uma galeria de fotos on-line (www.fotofavela.com.br). Realizada ao longo de 2006, a mostra “Moro na Favela” percorreu as cinco áreas de baixa renda onde moram os fotógrafos (Complexo da Maré, Rocinha, Cidade de Deus, Baixada Fluminense e Complexo do Alemão).

150


Luz sobre o beco

151

Era a realização de um velho sonho da equipe, que desejava retribuir o apoio das comunidades ao projeto. Inicialmente, porém, a câmera costumava gerar muita desconfiança nas favelas. Só aos poucos a população foi percebendo que, com suas lentes, os fotógrafos podiam denunciar injustiças, registrar abusos, cobrar mudanças do poder público – e também ser um instrumento de proteção. Cada um dos cinco sentiu isso na pele à sua maneira. Mas Tony Barros, da Cidade de Deus, talvez tenha sido o que mais enfrentou situações de confronto. Como no dia em que fotografou o corpo de um mototaxista que acabara de ser morto pela polícia. Passava pouco das quatro da tarde quando Tony ligou para a redação. Perseguido pela polícia, ele se escondera na sede da Associação de Moradores da Cidade de Deus. Insistia em sair do prédio para fotografar mais. Tetê Oliveira, que atendeu a ligação, disse que a ordem era para se proteger. “Lembro que briguei com ele, dizendo que não queria ter um correspondente como manchete nos jornais do dia seguinte”, conta a jornalista. O fotógrafo se lembra bem da cena: “Um policial matou um mototaxista, e a comunidade ficou revoltada. Eu estava indo para um encontro na associação de moradores, quando me deparei com aquilo e saí fotografando. Até que um policial resolveu me tomar a máquina. A comunidade ‘fechou’,1 me protegeu e me tirou da mão da polícia. Queria publicar, mas por uma questão de segurança, não publiquei. E também me deram todo o tempo do mundo para que eu só publicasse no momento em que eu achasse seguro”. Ao chegar e saber do que estava acontecendo, a editora Kita Pedroza repetiu a orientação de Tetê e decidiu não publicar as fotos, por mais tentador que fosse. Provocar a ira da polícia não era recomendável. As imagens só seriam vistas meses depois, numa exposição do Viva Favela realizada no Centro Cultural 1 Fez um círculo de proteção ao redor do fotógrafo.


152

Notícias da Favela

da Light, no Rio de Janeiro. Parte desse material também foi exibida na seção Galeria, do portal. Uma das fotos mais impactantes mostra uma grávida observando um grupo de policiais armados com fuzis a poucos metros dela. Depois do episódio, Tony começou a fotografar menos a ação da polícia dentro da favela: “Passei a tomar muito cuidado”, explica. Situações de conflito não o impediam, no entanto, de correr atrás de uma boa foto. Ao flagrar, por exemplo, uma briga de gangues num domingo de sol na praia da Barra da Tijuca, Tony não pensou duas vezes: saiu fotografando. Parecia ser um “arrastão” e ele era o único fotógrafo por ali naquele momento. Feitas as fotos, ligou para O Dia, identificou-se, ofereceu o material e fechou a venda. No dia seguinte, estava na primeira página do jornal. Correr atrás de outros trabalhos era comum para os fotógrafos. Com um salário fixo inferior a dois mínimos, mais a grana pingada dos extras, eles precisavam fazer bicos para fechar as contas. Desde que não atrapalhasse a produção para o portal, estimulava-se que buscassem fontes de renda alternativas. O veterano Rodrigues Moura também conseguia manter uma carreira paralela sem prejudicar o trabalho no Viva Favela – e isso tendo que cobrir todo o Complexo do Alemão, uma área com pelo menos 65 mil habitantes.2 Conhecido na comunidade por fotografar bailes, casamentos e festas de debutantes, Rodrigues tinha uma clientela conquistada ao longo de décadas – e não podia, nem queria, abrir mão disso. O fotógrafo chegou ao Complexo do Alemão em 1979 vindo de Resplendor, pequena cidade de Minas Gerais. Encontrou a rua Joaquim de Queiroz – hoje uma das principais da comunidade – ainda como uma trilha cheia de mato em volta. Ele conta: “Fixei moradia com uma venda nos olhos, sem saber onde estava. Quando aquela venda caiu, comecei a ver. Mas já 2 De acordo com dados de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


Luz sobre o beco

153

estava mergulhado num mundo de compromissos e não dava mais para desistir. Resolvi ficar. Esta é a cidade que eu amo”. No Rio, terminou o Ensino Fundamental e, quando já estava no portal, o Médio. “Quando entrei para o Viva Favela e vi todo esse povo estudado, jornalista, pensei: ‘Tenho de voltar a estudar. Eles estão a mil anos luz na minha frente’. Então, não tive outro jeito”, contou certa vez o fotógrafo. Rodrigues conquistou o diploma em 2005, depois de enfrentar o desdém de muita gente no morro, que não entendia por que ele queria voltar aos bancos escolares beirando os cinqüenta anos. “Eles me perguntavam se isso iria me trazer dinheiro”, diz o fotógrafo com uma ponta de mágoa. Se não fosse a insistência “dos amigos do Viva Favela”, garante ele, não teria chegado ao final do curso. Nascido em novembro de 1954, Rodrigues entrou para o portal ainda em 2001, como os demais fotógrafos do Viva Favela. Começou a profissão em Minas – era agricultor, mas, nas horas vagas, sempre tirava fotos. Em Resplendor, a única diversão era cantar música sertaneja e ouvir rádio. Num dos programas, descobriu que poderia ganhar uma pequena câmera descartável. Escreveu para a Rádio Nacional de São Paulo e logo estava com o aparelho na mão. Ele fazia as fotos, enviava a câmera para São Paulo, eles revelavam e mandavam outra de volta. Assim, foi aprendendo sozinho. Um dia, comprou sua própria máquina fotográfica e começou a fazer slides para monóculos com o objetivo de vender nas festas dos rodeios. Dessa forma, ampliou a experiência que lhe renderia uma profissão no futuro. “Cheguei ao Rio sem muita opção, até então semi-analfabeto, sem profissão e passei por umas crises financeiras. Me apeguei ao que tinha, que era a foto. O pessoal começou a gostar do meu trabalho, aquilo foi me dando força, fui mudando do monóculo para o preto e branco, e depois já foi a fotografia em cores. Cada vez as pessoas foram pedindo mais, e, hoje em dia, eu não sei viver mais sem a foto”, resume Rodrigues.


154

Notícias da Favela

Dedicado, extremamente profissional e parceiro, Rodrigues tinha espírito de fotojornalista. Gostava de sugerir pautas e de interferir na apuração da matéria. Achava tempo ainda para montar, por conta própria, um dossiê com fotos que mostravam o abandono da favela, a falta de saneamento básico, o lixo a céu aberto, as valas negras. “Faço esse trabalho para que a sociedade possa ver o que acontece. Porque lá moram cidadãos que amanhã serão eleitores, crianças que serão trabalhadores, o alicerce deste país. O Complexo do Alemão é regido por políticos, mas ninguém trabalha em prol da comunidade”, denuncia. O correspondente da Baixada, Walter Mesquita, também queria melhorar sua região. “Procuram a gente pensando que somos os salvadores da comunidade. Passamos a ser uma espécie de porta-vozes”. Sempre que podia, Walter ajudava. Às vezes, bastava um telefonema: “As pessoas parecem ter medo da imprensa. Acham que a gente vai prejudicar o estabelecimento”. O fotógrafo, que também se mostrara extremamente profissional, teve em 2004 uma chance de provar sua seriedade ao ser convidado para cobrir as férias da editora Sandra Delgado. Era um desafio gigantesco, mas ele se saiu bem. Walter fotografava ainda para uma revista elitista de um clube de Nova Iguaçu. Feita para empresários emergentes da Baixada Fluminense, era “uma grande coluna social”, como ele a definia. Circular entre a elite e a miséria produzia experiências radicais. Certa vez, por exemplo, depois de fotografar uma “festa de esbanjamento” no clube, Walter foi direto fazer uma matéria para o Viva Favela na comunidade Cosme e Damião, área muito pobre da Zona Oeste, com a correspondente Anna Carolina. Estavam nas vésperas do Natal, e a dupla encontrou uma mãe sozinha com seus oito filhos e nada na geladeira. O marido estava no hospital havia vários meses e ela não conseguia trabalho porque não tinha com quem deixar as crianças. Quando a repórter perguntou qual era a expectativa em relação aos presentes, a mulher mostrou o armário quase vazio: “Isso


Luz sobre o beco

155

aqui é o que a gente tem para comer hoje”. Havia meio saco de farinha, um fiapo de macarrão, umas três colheres de arroz. Walter teve de disfarçar as lágrimas.

Da Baixada para Londres Com o tempo, os fotógrafos do portal passaram a ser reconhecidos na rua como pessoas que podiam contribuir para melhorar as condições de vida locais. Sandra Delgado lembra, por exemplo, que, na Rocinha, costumavam se referir ao fotógrafo Nando Dias como Nando, “o filho de Fulano de Tal”. Ao entrar para a equipe do Viva Favela, ele ganhou uma nova identidade. Passou a ser Nando Dias, “o fotógrafo”. “A profissão muda a forma como as pessoas os vêem nas comunidades. Elas passam a ter mais respeito”, percebe a editora. Nando Dias transitava entre o morro e o asfalto com grande freqüência. Adorava pegar onda na praia de São Conrado, aos pés da favela. Às vezes, passava tanto tempo “no asfalto”, que era difícil encontrá-lo disponível na hora de fazer uma foto na favela. Contudo, costumava captar boas imagens. E era especialmente bom no que mais gostava de fazer – coberturas de esporte e cultura. Em geral, os fotógrafos do Viva Favela tinham grande autonomia quando estavam em campo. E nem poderia ser diferente. Claro que havia os problemas de sempre na hora da edição – muitas vezes as identificações não estavam completas e coisas do gênero. Mas, em geral, os resultados eram bastante positivos – e, sobretudo, singulares. “Eu não estou lá dizendo: ‘Fotografa isso, fotografa aquilo’. Eu dou uma orientação básica. A foto é sempre fruto de uma visão muito própria de cada um. Quem está mostrando uma perspectiva e um olhar são eles, e esse olhar é completamente diferente do nosso”, avalia Sandra.


156

CRIANÇAS NA CIDADE DE DEUS Ensaio Fotográfico 2003 Crédito: Tony Barros


157


158

Notícias da Favela

O fato de morarem na favela e de estarem ali o tempo inteiro, segundo a editora, interferia, inclusive, no próprio contato dos fotógrafos com os entrevistados: “É uma relação muito delicada porque muitas vezes estão entrevistando pessoas muito próximas e precisam preservar essa relação. Em compensação, tem coisas que só eles conseguem fotografar”. Baiana de Salvador, Sandra sucedeu Kita Pedroza em 2004. Kita foi a primeira profissional de fotografia da ONG e começou a fazer a cobertura sistemática dos eventos, documentando e montando um acervo de imagens da instituição, cuja história tem marcos importantes no movimento social do Rio de Janeiro. Como editora de fotografia do Viva Favela, foi ela quem selecionou e treinou os correspondentes fotográficos, em 2001. Ali, começou a desenvolver em cada um as noções básicas de fotojornalismo, que seriam depois refinadas. Sandra deu continuidade a esse processo ao assumir a editoria, enquanto Kita foi para a coordenação de fotografia do Viva Rio e iniciou o mestrado em sociologia e antropologia. A baiana tinha a experiência necessária para a função e uma paciência quase infinita para lidar com os atropelos cotidianos. Formada em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mudou-se para o Rio em junho de 2001. Pouco depois, ao conhecer o Viva Rio, quis ser voluntária. Entrou na ONG para ajudar a organizar o acervo fotográfico. Um ano depois, Kita convidou-a para ser sua assistente. Chegou na hora certa. No portal, a carga de trabalho era intensa. Com apenas cinco fotógrafos para cobrir pautas de dez correspondentes “de texto” e de cinco repórteres da redação, o cobertor estava sempre curto. Para piorar, havia demandas de todo o Viva Rio – cujos projetos usavam os fotógrafos do Viva Favela pagando extras. Era uma engrenagem que exigia imensa dedicação para funcionar corretamente. Em 2005, um ano depois de assumir o cargo, o ritmo não diminuíra. Sandra teve de se desdobrar para conciliar a edição diária


Luz sobre o beco

159

com a produção do portal e a curadoria de um punhado de exposições. Entre elas, a coletiva “Inclusão Visual Foto Rio”, a mostra “Por Dentro da Favela”, e a “EcoFavela”, com fotos do site EcoPop. Sandra negociava com a gráfica, pesquisava preços, montava e desmontava. Por sorte, contava com a ajuda da equipe. O resultado sempre valia a pena. Uma dessas exposições, por exemplo, realizada no SESC Madureira, deu visibilidade nacional ao projeto quando virou tema de um programa da Globo News, o “Almanaque”. O sucesso do portal estimulava o grupo. Porém, era preciso achar uma saída para tornar o projeto autosustentável – e a venda de fotos parecia ser uma boa solução. O potencial do Viva Favela para o negócio era inegável. E esse era um nicho de mercado onde havia pouca concorrência, com raras e honrosas exceções. Entre elas, a Agência Imagens do Povo (www.imagensdopovo.org.br), projeto do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro coordenado pelo fotógrafo João Roberto Ripper, parceiro do Viva Favela. No portal, a demanda pela compra de fotos estava crescendo. Entre setembro e novembro de 2005, pelo menos duas editoras (Ática e Positivo, ambas de São Paulo) nos procuraram interessadas em textos e fotos para publicação em livros didáticos. A Revista de História, no Rio de Janeiro, e a Anistia Internacional, em Londres, fecharam negócio com o portal. À Anistia coube uma bela imagem de Walter Mesquita, feita durante a cobertura da Chacina da Baixada. O portal cedeu ainda fotografias para uma série de ONGs e projetos sociais. Era a prova de que o caminho traçado por Kita e Sandra estava correto. As duas produziam bem juntas. E juntas construíram, com os cinco correspondentes, o raro acervo do projeto. Em grande parte, foi isso que chamou a atenção de Peter Lucas – um professor norte-americano que costumava levar anualmente seus alunos da Columbia University, onde ministrava direitos humanos, para conhecer o trabalho desenvolvido nessa área por ONGs cariocas – entre elas, o Viva Rio.


160

Notícias da Favela

Numa dessas visitas, Peter conheceu o Viva Favela e ficou apaixonado pelo portal. O prêmio oferecido pelo Open Society Institute, por exemplo, foi uma batalha pessoal de Peter, que preparou a candidatura do projeto e a submeteu à comissão julgadora. Também professor de direitos humanos e mídia na New York University, ele está terminando de escrever o livro Viva Favela: Photojournalism, Visual Inclusion and Human Rights in Brazil (Viva Favela: fotojornalismo, inclusão visual e direitos humanos no Brasil), que trará fotos da equipe e uma reflexão sobre a experiência. “O Viva Favela é um programa de vanguarda, onde as pessoas que vivem nos chamados ‘espaços marginalizados’ dizem: ‘Temos o direito de auto-representação, de contar as nossas histórias, de produzir as nossas próprias narrativas’”, avalia. Ainda segundo Peter, o portal sempre foi também “um projeto sobre inclusão visual”. E, sob a perspectiva dos direitos humanos, “as imagens representaram sérias violações, como as condições de moradia e a degradação ambiental nas comunidades”. Mas elas também “expuseram a riqueza da vida cotidiana dessas pessoas e isso remete à essência ética dos direitos humanos – dignidade e integridade”, diz o professor. Seu maior interesse estava justamente nessa noção de integridade – “os aspectos físicos, emocionais, espirituais, estéticos e intelectuais” desses moradores. “A mídia dominante nunca representa esses aspectos”, avalia Peter. O trabalho fotográfico também ajudou a seduzir as videomakers Sophia Bustorff e Alison Fast – ambas da ONG Video Volunteers, de Nova York. Sophia produziu um vídeo sobre o site Favela Tem Memória. Alison, por sua vez, fez um belo documentário sobre o Viva Favela acompanhando o dia-a-dia dos cinco fotógrafos do portal. O filme, que deveria ter cinco minutos, ficou com quarenta e cinco. Nele, a única mulher do time de fotógrafos, Deise Lane, do Complexo da Maré, aparece clicando um pescador em meio à baía de Guanabara.


Luz sobre o beco

161

Deise sempre andou com desenvoltura pela Maré. Não tinha medo de fotografar, por exemplo, um prédio crivado de buracos de balas de fuzil bem na “fronteira” entre duas áreas ocupadas por facções inimigas do tráfico. Também conseguia flagrar belos retratos, como o que fez de uma mãe abraçada à filha diante de um casebre no Caranguejo, no alto do Pavão-Pavãozinho. Porém, ela quase passou direto pela carreira. Queria ser arquiteta, mas falou mais forte a influência da mãe – uma diarista que deu de presente à filha uma câmera quando esta tinha apenas treze anos. “Sou a penúltima de cinco filhos e até hoje me pergunto o motivo de ela ter me dado essa máquina”, admite. O presente não poderia ter sido melhor. Deise se saiu uma ótima fotógrafa, com sensibilidade para flagrar a notícia em composições nada óbvias. Quando entrou para o Viva Favela, pensava que seria apenas um emprego, um jeito de ganhar dinheiro. Estranhava um pouco o nome. “No começo, a gente dizia que era ‘uma revista do Viva Rio’. Mas, com o tempo, todos foram começando a gostar do projeto e ganhando uma visão nova de cidadania”, diz a fotógrafa. A experiência ampliou seus horizontes também em relação à sua própria identidade: “Morando em comunidade, você sofre preconceitos e também tem preconceito com outras favelas. Sabia que mentiam sobre a Maré, mas não sabia que essa mentira se arrastava para outras comunidades. Depois que entrei para o Viva Favela, vi que a mentira é geral e que o crime organizado não é tão grande como é passado pela TV. No máximo, alcança 1% ou 2% dos moradores, o resto é trabalhador ou estudante, gente normal que tem a intenção de crescer”.


A bomba de MV Bill Antes mesmo de ser lançado, em agosto de 2002, o filme Cidade de Deus começou a provocar polêmica na favela Cidade de Deus (CDD). O clima entre os moradores era de desconfiança e medo diante da fita, co-dirigida por Fernando Meirelles e Kátia Lund. A insatisfação foi registrada na matéria “Cidade de Deus renega Cidade de Deus”, dos correspondentes Rosy Henriques e Tony Barros. Na reportagem, publicada em outubro de 2001, moradores de diferentes perfis afirmavam (na base do “não vi e não gostei”) que o filme reforçaria os estereótipos negativos sobre a comunidade – entre eles, um estudante de filosofia da PUC, um cantor de rap e um monitor de informática. A favela também não se conformava com o fato de não ter sido escolhida para cenário das filmagens, deslocadas para os conjuntos habitacionais de Sepetiba e Cidade Alta. O que, segundo Kátia Lund, também ouvida na matéria, fora motivado pela dificuldade em se reproduzir o ambiente da época – a história se passa entre 1966 e 1979. Apenas a área do Jardim do Amanhã, com seus barracos precários, entraria em cena. Kátia admitia ainda que os imprevisíveis confrontos entre o tráfico e a polícia também teriam reforçado a decisão. Para compensar, dizia, “os cinco atores principais foram escolhidos entre os moradores da Cidade de Deus”. Uma série de novas reportagens se seguiriam no Viva Favela, revelando o impacto do filme na comunidade. O portal acompanhou a reação dos que assistiam à fita pela primeira vez, 162


A bomba de MV Bill

163

mostrou que ela virou tema de debate nas escolas públicas e descobriu moradores que conheceram pessoalmente os personagens do livro/filme. Nada, porém, teve tanta repercussão quanto o artigo do rapper MV Bill. Colunista do Viva Favela e um dos fundadores da Central Única de Favelas (Cufa), Bill fora convencido por Rubem César a soltar sua “bomba” no portal, esquentando ainda mais aquele verão de 2003. Rubem César argumentara com Bill e seu produtor, Celso Athayde, que o rapper conseguiria, com isso, a repercussão que queria. O que acabou provando ser verdade. Publicada em janeiro, sob o título “A bomba vai explodir?”, a coluna trazia um rapper claramente insatisfeito com o filme. Nela, Bill abandonara a postura discreta, e saíra atirando. Fizera ásperas críticas às produtoras O2 e VideoFilmes, dissera que o filme só ampliou a fama de lugar violento da Cidade de Deus e pedira “mais respeito” e “menos humilhação”: “O mundo inteiro vai saber que esse filme não trouxe nada de bom para a favela, nem benefício social, nem moral, nenhum benefício humano. O mundo vai saber que eles exploraram a imagem das crianças daqui da CDD. O que vemos é que o tamanho do estigma que elas vão ter de carregar pela vida só aumentou, só cresceu com esse filme. Estereotiparam nossa gente e não deram nada em troca para essas pessoas. Pior, estereotiparam como ficção e venderam como verdade”. Logo após ir ao ar, o texto começou a circular em alta velocidade pela Internet e abarrotou de mensagens a caixa de e-mails do portal. A fala de Bill era o que estava faltando à discussão em torno do filme. Desde o lançamento, ele vinha sendo procurado pela imprensa para se manifestar. Criou tanta polêmica, que o portal teve de abrir espaço para o debate com a série “Os vários ângulos da Cidade de Deus”. Além das reportagens especiais, a série trazia a intensa correspondência enviada ao portal por alguns dos personagens direta ou indiretamente ligados ao filme, como a antropóloga Alba


164

Notícias da Favela

Zaluar, os cineastas Fernando Meirelles e Kátia Lund, o escritor Paulo Lins (autor do livro homônimo que inspirou a fita) e Mauricio Andrade Ramos, da VideoFilmes. O aumento do número de acessos foi imediato. A coluna de Bill atraiu, inclusive, leitores da própria favela. Como Lenira Machado, que mandou a seguinte carta: “Adorei a coluna do MV Bill. Há muito uma amiga tem pedido para eu entrar neste site e ler este jornal (...). Tudo ali exposto é uma realidade da nossa comunidade e ele fala na língua do povo, bem fácil de se entender. (...) É interessante como um trabalho de um artista fez a comunidade ter orgulho de ser CDD. O filme “Cidade de Deus” realmente está incomodando, mas ninguém tem a sua coragem de se expor desta maneira. Serei mais uma nessa sua jornada, pois também nasci na Cidade de Deus e crio os meus filhos nesta comunidade e quero o melhor para eles”.

Tiroteio verbal O longa, que alcançaria mais de três milhões de espectadores no Brasil e no exterior, era o assunto do momento naquele começo de 2003. Era natural que os leitores quisessem saber detalhes dos embates que o filme provocara. Nas cartas enviadas ao Viva Favela, Alba Zaluar, por exemplo, não poupou críticas a Fernando Meirelles e Paulo Lins. Segundo a antropóloga, o filme omitira créditos devidos a ela. Para Alba, por ser baseada em fatos reais, a história seria conseqüentemente fundamentada em pesquisa que coordenara (e que também teria sido fonte do livro), da qual Lins participara como pesquisador. Alba sugeria, além disso, que os personagens reais que inspiraram o filme deveriam receber indenização. Também em carta enviada ao portal, em fevereiro, Meirelles dissera que teria repetido na tela, sem problemas, os créditos do livro homônimo de Lins (onde há um agradecimento a Alba), se soubesse que havia essa expectativa: “CDD não é um docu-


A bomba de MV Bill

165

mentário ou um trabalho com rigor científico, mas uma obra de ficção baseada no romance cujos direitos de adaptação compramos do Paulo. (...) Teria sido tranqüilo acrescentar à nossa lista seu crédito pela pesquisa”. Ele afirmava ainda que a produção de CDD “fez questão de remunerar as famílias das pessoas nas quais se baseiam os personagens” e que Alba estava enganada quanto a isso. Em outra carta, Alba acusaria o filme de “desrespeitar a ética antropológica” ao “violar o acordo tácito, feito de valores e protocolos, que sempre regeram as relações entre cineastas brasileiros, antropólogos e os personagens históricos dos quais seus filmes falaram”. Para a antropóloga, não se pode dizer que o direito dos pais de Manoel Galinha – “analfabetos, velhos, humildes, o pai com perda de massa encefálica por um atropelamento, a mãe precocemente envelhecida pela perda dos três filhos e do pai na guerra” – foram respeitados quando seu filho “é apontado como assaltante de banco e assassino frio”, versão que ela garantia jamais ter ouvido. Ela dizia também que Paulo Lins ignorara sua exigência de não citar o nome da comunidade no livro Cidade de Deus. O escritor custou a romper o silêncio. Mas acabou entrando na polêmica. Em carta publicada dia 7 de fevereiro de 2003, Lins – que estava recolhido desde o lançamento do filme – finalmente se manifestou. Ex-morador da Cidade de Deus, ele reconhecia a importância da pesquisa da antropóloga, mas garantia que realizara um exaustivo trabalho individual para produzir o romance – e não uma pesquisa científica. “É claro que nem o filme nem o romance seguem fielmente a história da criminalidade em Cidade de Deus, porque senão seria documentário ou história (ciência), respectivamente. Essas duas produções se baseiam numa determinada realidade social para trazer ‘a nossa desgraça à luz’, fazer política, mudar o mundo...”, dizia o escritor. Numa segunda carta, publicada dia 12 de feve-


166

Notícias da Favela

reiro, Lins falava de seu carinho pela antropóloga – e lembrava que seu livro trazia os devidos créditos e agradecimentos a ela. Entre Lins e Alba havia discordância também em relação à figura de Ailton Batata – único sobrevivente da guerra que tomou conta da Cidade de Deus nas décadas de 1970 e 1980. Batata saiu da prisão em liberdade condicional, no ano de 2004, e passou a trabalhar para uma ONG, num projeto de reinserção social para egressos do sistema penal. Sua história está contada na matéria “Dívida zerada”, publicada em fevereiro de 2005 pelo Viva Favela. Alba sempre achou que Batata deveria receber indenização por ter inspirado o personagem Sandro Cenoura. Lins garantia que Sandro fora construído a partir da fusão de histórias recolhidas na Cidade de Deus – “uma mistura de ações que são possíveis no mundo da criminalidade”. O fato de o filme mostrar crianças envolvidas com o tráfico de drogas foi outro ponto de atrito. Alba contestava a veracidade histórica das cenas. Paulo a confirmava: “Dizer que na década de 1980 não existiam “aviões”, olheiros que anunciavam a chegada da polícia (...), que matavam qualquer um para pegar consideração com o líder do bando é afirmar que o Brasil (...) cuida bem de suas crianças (...)”, escreveu Paulo, dando o assunto por encerrado e prometendo não dar mais entrevistas sobre a questão. MV Bill conseguiria seu objetivo inicial: mobilizar a sociedade e o poder público para promover melhorias na Cidade de Deus. Depois de algumas reuniões com políticos e autoridades de diversas áreas na favela, Bill anunciou no portal os novos projetos previstos para a comunidade. Entre eles, uma fábrica de material esportivo e um núcleo do Espaço Criança Esperança. O rapper também celebrou parcerias com instituições e empresas, como a produtora VideoFilmes, que prometeu publicamente apoio às atividades que viessem a ser desenvolvidas na área. Bom para a Cidade de Deus e bom para o Viva Favela, que, com a polêmica, alcançara uma visibilidade inédita. A semente estava lançada. Bill seguiria na batalha, junto com o produtor Celso


A bomba de MV Bill

167

Athayde, usando como carro-chefe a Cufa, pólo de produção cultural que promove atividades nas áreas de educação, lazer, esportes, cultura e cidadania.

Palavra de colunista Além de MV Bill, o time de colunistas que entrou no primeiro tempo do portal era composto por craques como José Junior, Def Yuri, Celso Athayde e Ivo Meirelles. Com liberdade total de forma e conteúdo, eles traziam ar fresco e discussões que ultrapassavam o ponto de vista jornalístico. A única dificuldade era fazer o time entrar em campo. Ocupadíssimos, escreviam quando lhes dava na telha. Com exceção de Def Yuri. Rapper de palavra afiada, entre abril de 2001 e dezembro de 2005, ele escreveu nada menos do que 165 colunas. Ligado na vasta rede do hip-hop – movimento que usa a web como um canal precioso de informação e difusão –, Yuri ajudava a multiplicar o nome do Viva Favela. Escrevia bem e tinha o hábito de fomentar debates acalorados. Às vésperas do Carnaval de 2003, por exemplo, quando o Rio de Janeiro sofria com uma série de ataques do tráfico, o Exército e a Secretaria de Segurança Pública do Estado coordenaram uma operação conjunta para garantir a ordem durante a festa. Tudo acabou bem. Mas, enquanto muitos creditavam a paz à eficácia da operação, Yuri lembrava que certamente havia outros motivos para tanta tranqüilidade, na coluna “Jogo de cena”, de 6 de março: “Segundo a própria Justiça fluminense, o jogo do bicho e o tráfico de drogas e armas estão intrinsecamente ligados. Sabendo quem faz o gerenciamento das escolas de samba e do Carnaval carioca como um todo, chegamos à conclusão de que a ‘calmaria’ seria o resultado mais óbvio”. E concluía: “A polícia finge que policia, a bandidagem finge que se intimida, e a população (alguns se iludem!) finge que acredita”.


168

Notícias da Favela

O colunista também falava muito de hip-hop (sempre bem) e da polícia (quase sempre mal). Em diversos artigos, criticou a atuação da PM no Rio, relatando casos de corrupção e a truculência das blitze, que conhecia de perto. No rap “A desculpa (foda-se a polícia)”, que publicou na coluna, dizia: “Escrevem a lei por linhas tortas / Colecionam vários homicídios nas costas / São os reis do Rio, um câncer, um mal / Polícia bandido, bandido polícia, será tudo igual?” Uma das melhores características da seção era, sem dúvida, o espaço que ela abria para novidades que não estavam nos meios tradicionais. José Junior, por exemplo, coordenador-executivo do Grupo Cultural AfroReggae (GCAR),1 era mestre em cavar histórias de iniciativas culturais coletadas em suas viagens pelo Brasil e pelo mundo. Como o Guia Cultural de Vilas e Favelas de Belo Horizonte, que ele descobriu em 2004. A pesquisa, coordenada por Clarice de Assis Libânio, revelava “que há mais de setecentos grupos culturais envolvendo diretamente quase sete mil pessoas nas 226 vilas, favelas e aglomerados da cidade”. O colunista também falou da realidade de comunidades de vários cantos do Brasil e de projetos como o Bagunçasso, que descobriu em suas andanças por Salvador. “Os caras criaram um monte de bandas de latas através da reciclagem e de muita criatividade rítmica e performática (como guitarra e baixo feitos com latas de goiabada e afins)”, contava Junior na coluna. Ele conheceu o grupo quando visitava a favela de Alagados, em Salvador. Sua descrição da comunidade baiana transporta o leitor até lá: “Durante a visita, era impactante ver a miséria e a quantidade de palafitas, como um mar infinito. Aquela paisagem escura das casas de madeira dentro da água destoava bastante daquela Bahia que nós víamos nos ‘cartões-postais, nas novelas de TV’. O mais impres1 Criado em 1993, no Rio de Janeiro, o Grupo Cultural AfroReggae visa oferecer “uma formação cultural e artística para jovens moradores de favelas para que eles possam construir sua cidadania e escapar do narcotráfico e do subemprego”. (Fonte: www.afroreggae.org.br)


A bomba de MV Bill

169

sionante era ver a forma como aquelas pessoas viviam. Algumas em palafitas de até dois andares. (...) Seis anos depois, voltamos na mesma Alagados e no mesmo Bagunçasso, ambos completamente diferentes, mais modernos e evoluídos. Aquele cenário das palafitas já não existia mais. A maioria das casas agora era de alvenaria e houve um grande aterramento ilegal (...). Tudo parecia estar melhor. (...) vimos a ampliação do comércio, mas também um cheiro diferente daquele da falta de saneamento. O ar tava mais pesado. (...) Durante nossa caminhada, ficamos sabendo das brigas entre os traficantes locais. (...) o tráfico em Alagados não é dominado por facções, mas por gangues de ruas e de regiões da mesma comunidade.(...) Durante os conflitos, eles chegam a utilizar barcos a remo e trocam tiros de 12 (escopeta) e de pistolas. O forte por lá é a venda de maconha. Os traficantes locais se inspiram nos colegas do Rio, através do que ficam sabendo pelos telejornais. (...) Joselito sim é um exemplo que teria que aparecer em todos os telejornais. (...) Saiu das palafitas pra intercambiar com outros projetos sociais do Brasil e do exterior. (...) todos os anos, eles promovem um festival de bandas de lata que chegam de tudo que é lugar”.

Já em “Voduns e batuques”, publicada em dezembro de 2003, Junior revelava descobertas feitas em São Luís, no Maranhão: “Cheguei no auge das festas juninas (...). Andar por aquelas ruas ao som de um tambor de criola, matracas, zabumbas e dos pandeirões, vendo aquela paisagem que mistura fachadas decoradas de azulejos centenários, é de um prazer inenarrável (...)”. Ele ficou especialmente encantado com o Cacuriá, uma ciranda onde (...) “as músicas tratam de temas prosaicos, quase sempre regionais, como a seca, os animais nordestinos e a vegetação do sertão”. Ainda em São Luís, Junior teve “uma experiência muito interessante” na favela Anjo da Guarda: “Um dos traficantes era conhecido como seu Cláudio – visto como um protetor do local. Quando tem dificuldade financeira, a própria comunidade o ajuda com alimentos pra ele e para os seus filhos.


170

Notícias da Favela

No outro ponto (pra não dizer ‘boca’), pediram-nos um real. Imagina os traficantes do Rio pedindo: ‘Aí, irmão, me arruma um dinheiro!!!’ Aparentemente, nenhuma daquelas pessoas estava armada”.

Celso Athayde, produtor cultural e fundador da Cufa, também usava o espaço para dar visibilidade a histórias pouco conhecidas pelo grande público. Celso transitava por assuntos como religião, mídia, narcotráfico e política. Organizador do Hutúz, festival de hip-hop que começou modestamente em 2000 e hoje tem proporções nacionais, ele escreveu vários artigos sobre o tema. O racismo no Brasil também esteve em foco. Quando os jornais noticiaram, em abril de 2001, a criação de um partido negro – o PPPomar –, Celso dedicou uma coluna ao assunto, criticando a cobertura: “Esta semana, vários jornais se escandalizaram com a notícia de que um partido político negro estaria se formando. (...) Por que os mesmos veículos nunca atacaram os movimentos negros que, historicamente, recebem subvenções dos governos do Estado e do Município? Não seria uma manifestação legítima? (...) Enquanto não tivermos o poder ou parte dele, não decidiremos, ficando para sempre restritos à condição de espectador ou dignos de compaixão”.

No final de 2001, Celso voltaria a bater na imprensa – dessa vez, o alvo seria O Globo. O produtor achou preconceituosa a cobertura da festa de Natal na Cidade de Deus. O evento contou com um espetáculo do Conexões Urbanas,2 que levou à favela convidados como Caetano Veloso, Fernanda Abreu e Gabriel O Pensador. Celso não perdoou o jornal por ter dado mais destaque às armas dos traficantes do que ao peso de uma festa rara em áreas pobres como a Cidade de Deus:

2 Circuito de shows em favelas cariocas realizado pelo Grupo Cultural AfroReggae e pela Assessoria Especial de Eventos do município do Rio.


A bomba de MV Bill

171

“Hoje ao acordar, uma vizinha que trabalha como empregada na casa de um bacana nos avisou que saiu no Globo que na festa tinha uns bandidos e que alguns deles escondiam suas armas com dificuldade, e também que tinha gente fumando maconha. (...) Até aí normal. Sabemos todos que no jornal O Globo não existe um usuário sequer de maconha. (...) Por isso podemos entender o grande espanto. O que não conseguimos entender é que a questão central não é se a favela tem bandido ou não. Eles estão lá todos os dias e em todas elas. (...) O que não podemos aceitar é que um evento dessa importância e dessa grandeza não tenha seus méritos reconhecidos (...)”.

Sangue novo Numa segunda leva, entrariam ainda o músico Emerson Facão e o escritor Julio Ludemir. Morador da Nova Holanda, uma das favelas do Complexo da Maré, Facão chegou ao Viva Favela por indicação da jornalista Mônica Cavalcanti (então assessora de imprensa do Viva Rio), soprada pelo compositor Marcelo Yuka, ex-baterista do Rappa. O músico não tinha vergonha de revelar onde seus primeiros LPs foram garimpados: “Não tinha dinheiro para comprar discos e visitava o ‘lixão’ (na Maré) de vez em quando. Lá encontrei verdadeiras raridades que nunca teria oportunidade de conhecer”. Líder da banda Ciência Rimática, indicada ao prêmio Hutúz na categoria de melhor CD demo, Facão estreou em 29 de maio de 2003, e gostava de falar de arte, política, violência e filosofia. Já o escritor e jornalista Julio Ludemir foi idéia minha. Levado para fortalecer a análise da violência no Rio, ele gostava especialmente de investigar os bastidores da guerra do narcotráfico. Um de seus assuntos favoritos era a origem – e a atuação – das facções que dividem o mercado de drogas na cidade – Comando Vermelho (CV), Amigo dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando (TC). Julio devorava tudo o que caía em suas mãos sobre o tema – e contava com fontes tanto nas prisões quanto na polícia e nas favelas.


172

Notícias da Favela

Em suas colunas, discutia, por exemplo, se a origem do Comando Vermelho estava mesmo ligada aos presos políticos que teriam emprestado um discurso ideológico aos detentos comuns durante a ditadura. Em abril de 2004, Julio escreveria na coluna “Na pista das memórias do cárcere”: “Sempre me pareceu fake a tese defendida pelo jornalista Carlos Amorim em seu A história secreta do Comando Vermelho (...). Uma série de fatores me fazia desconfiar do trabalho de conscientização feito pelos presos políticos na Ilha Grande, do qual teria resultado a mítica Falange Vermelha. (...) Embora sem provas, a tese de Amorim se tornou um lugar comum de que se valeram todas as pessoas que estudam o crime organizado no Rio de Janeiro. (...) O sociólogo Michel Misse (...) foi a única pessoa que vi refutar a tese de que a convivência entre os presos enquadrados pela Lei de Segurança Nacional teria resultado no desejo de organização dos antigos assaltantes de banco. Para Misse, o tráfico teria herdado a estrutura organizacional do jogo do bicho, cujos banqueiros encarnaram até a década de 1980 a imagem de periculosidade hoje associada às facções criminosas (...)”.

O escritor foi colunista do Viva Favela entre 2002 e março de 2004, quando lançou Sorria, você está na Rocinha. Na linha do jornalismo ficcional, o livro narra histórias sobre a atuação de ONGs e lideranças comunitárias na favela. Nele, tanto uns quanto outros são acusados de tirar proveito de uma espécie de indústria da miséria, captando recursos fora da comunidade para proveito próprio. A direção do Viva Rio – que sempre manteve projetos de peso na Rocinha – viu na obra de Julio um ataque generalizado ao Terceiro Setor e específico à própria instituição, a parceiros locais e aos líderes comunitários. E excluiu o escritor do quadro de colunistas. Julio não voltaria a escrever para o portal – mas continuaria a produzir sobre o tema. Seu livro seguinte foi Lembrancinha do Adeus, que relata uma conversa fictícia entre um velho criminoso e um menino, tendo como cenário o morro do Adeus, no Rio de Janeiro.


A bomba de MV Bill

173

Àquela altura do campeonato, fazia um bom tempo que MV Bill não escrevia novas colunas. Depois da imensa repercussão de “A bomba vai explodir” e de seus efeitos sobre a Cidade de Deus, só de tempos em tempos o rapper publicava alguma coisa. Um dos motivos que o afastaram foi a produção do documentário Falcão - meninos do tráfico – veiculado em março de 2006 pelo “Fantástico”. Porém, mesmo sem alimentar a coluna, Bill continuaria a receber cartas. Como esta, de Diogo Henrique Santos Souza, enviada em agosto de 2005, dois anos depois do último artigo do rapper ser publicado: “To aqui no recife, no meu trampo, taligado, tenho 17 anos e de vez enquando entro no vivafavela e leio sua coluna e coisas sobre hiphop. nessa busca descobri muitas coisas que o sistema faz com o nosso povo (...) vejo que estamos rodiados de sujeira muito da grande (...) eu percebir um bagulho muito loko de dois programas de tv que mostra os crimes que acontecem aqui, eu assistia todo dia mas acabei percebendo que só mostram oque ah de ruim mas ainda ganham com o ibope da propria comunidade (...) AE MV Bill TO MUITO FELIZ DE VOCÊ EXISTIR. VOCÊ É UM LIDER NATO QUE FOI MANDADO POR DEUS PRA DEFENDER O QUE É NOSSO”.


174

COTIDIANO NA CIDADE DE DEUS Ensaio Fotográfico 2002 Crédito: Tony Barros


175


Do outro lado da tela Um mergulho na correspondência do Viva Favela trazia boas pistas sobre os leitores do portal. Eles possuíam diversas facetas: podíamos encontrar um estudante ou um cientista social, uma empregada doméstica ou um rapper, um jornalista ou uma manicure, um morador do asfalto ou um líder comunitário. Como Marcio Alexandre, de Jardim Vila Nova, Zona Oeste do Rio, que escreveu: “Venho pedir-lhes socorro, tento apoio a quase 1 ano para minha comunidade e não obtive nenhuma resposta de nenhum orgão público. Presido uma associação de moradores e sinto-me só nesta empreitada árdua. Esta é minha ultima tentativa. Preciso de projetos de ensino, lazer e esporte, tenho muitas crianças e adolescentes na comunidade que estão sendo acolhidos pelo tráfico por falta de opções, seus pais tem que trabalhar e não podem tomar conta de seus filhos”.

O leitor do Viva Favela era também o brasileiro morando no exterior com saudades da pátria – como Leonardo, que descobriu o portal quando passava uma temporada nos Estados Unidos. Ex-morador da favela do Jacarezinho, ele dizia em seu e-mail: “pow, super legal e bem feito o trabalho de voces, deu pra matar um poquinho da saudade, pois estou aqui na Florida a 6 meses, vim pra jogar em um time de futebol em Miami, essa e a grande chance da minha vida, pois sou da comunidade do Jacarezinho, onde mora minha familia e meu filinho que vai completar um aninho em julho. Devo voltar pro aniversario dele, e se conseguir fechar um contrato

176


Do outro lado da tela

177

com um time de Nova Iorque, vai estar incluido trazer minha familia pra ka junto comigo... Pow, e o sonho da minha vida”.

Responsável pela seção de Cartas, Tetê Oliveira respondeu ao rapaz como a um velho amigo. Ao todo, os dois trocaram dez e-mails. Neles, o garoto deixou claro que não era fácil ficar longe do Brasil. Leonardo dizia que a saudade e a solidão eram seus “inimigos íntimos”, porque na favela do Jacaré ele conhecia “um montão de gente”, e ali nem a língua sabia falar direito. “Mas eu estou determinado e vou conseguir..”., concluía ele numa de suas muitas mensagens. A jornalista já se perguntava que caminhos seguira o rapaz – cuja história um dia poderia render uma pauta – quando recebeu um e-mail de uma prima de Leonardo, numa quinta-feira de agosto de 2004. A mensagem dizia que ele fora assassinado no Jacarezinho. Sincero e contundente, o texto radiografa um ato brutal da polícia na favela: “Leonardo desembarcou do estados unidos e nao quis mas voltar, infelizmente ele foi assasinado em um tiroteio aqui no jacarezinho, eu encontrei em sua carteira o seu email (...) o que deixou todos com muita raiva e que os policiais jogaram uma pistola na mao do leonardo e falaram que ele era traficante arrastaram o corpo dele ate a viatura e jogaram com a maior crueldade, nisso foi todo mundo atras da viatura falando que ele nao era bandido que tinha chegado do estados unidos a pouco tempo e que ele tinha que ir pro hospital e nao pro i.m.l porque ele ainda nao tinha morrido, nossa eles foram muitos ruins e sangue frio, nisso agente fechou a suburbana e foi aquele alvoroso que sempre acontece aqui (...). vou insistir pra mae dele te ligar, vou falar que voce e reporter e que pode ajudar ela porque o leonardo morreu como traficante, numa covardia dos policias, porque ele estava no chao um policial revistou ele, nao achou nada, botou uma luva e esfregou uma pistola na mao dele, os outros arrastaram ele com muita ignorancia e o jogaram como se fosse uma pilha de batata dentro da viatura, essa cena na frente de todos nos, e depois falaram ‘agora e menos um foi pro saco direto pro i.m.l’ foi quando o tio dele chegou e comecou a confusao , o tio dele foi preso tambem por desacato a autoridade. isso pra gente nao e nenhuma


178

Notícias da Favela

novidade, mas nunca me aconteceu com um ente tao querido e correto nem maconha o leonardo fumava, todos os amigos dele fumam menos ele, ele comecou a fazer uma obra na casa da mae dele, mas pra ela e o fim da vida, o unico filho dela que nao tinha nada a ver com o trafico morreu como traficante”.

Lágrimas nos olhos, Tetê lia e relia a mensagem, sem querer acreditar. Leonardo tinha 21 anos. A tristeza serviu de inspiração para um belo texto publicado na seção Espaço Aberto. Em um de seus trechos, a jornalista diz: “Ele não pôde ficar num país distante e com um idioma incompreensível aos seus ouvidos. Longe dos amigos, da família e das pessoas que amava. Dividido entre a dura realidade de faxineiro num hospital e o sonho de ser contratado por um time de Nova York (...), Leonardo (...) decidiu investir suas economias na reforma da casa da mãe e ficar junto àqueles que amava – principalmente o filho. Mas não teve chance. (...) Passeava pelos becos da favela com amigos de infância, ligados ao tráfico e que se confrontaram com os policiais. Foi atingido com um tiro no peito”.

Pelo tom do artigo, via-se que alguma coisa mudara desde que Tetê entrara para o Viva Favela. Formada pela UFF, ela já passara pelos jornais O Globo e O Dia (como colaboradora em Londres), pela revista Manchete e pelo extinto No., onde foi redatora de 2000 a 2002. Chegou ao portal sem jamais ter pisado numa ONG, e muito menos numa favela. No final, estava apaixonada pelo trabalho. “Aprendi a enxergar de forma diferente as notícias sobre as ‘mortes de traficantes’ nas favelas cariocas. Na versão das autoridades públicas, quase todos os mortos em comunidades de baixa renda durante incursão policial são criminosos – principalmente os jovens e negros. Muitas vezes, são anônimos também, porque poucos se dão ao trabalho de identificá-los. E aí, esses assassinatos são justificados – para o bem da sociedade – e engrossam as estatísticas da (in) segurança pública”, diz a jornalista.

No portal, a infância e a juventude eram especialmente retratadas pela história em quadrinhos cujo protagonista era Cambito


Do outro lado da tela

179

– um menino como tantos outros que vivem nos morros cariocas. Com seu cachorro, sua paixão por futebol e cercado por seus amigos – Cabeção, que achava que ganharia a vida estudando; Vaporzinho, amigo de infância que virara aprendiz de traficante; Teca, ex-namorada que sonhava em ser uma modelo famosa; e Pipa, uma das muitas namoradas de Vaporzinho –, Cambito cativou o público infanto-juvenil do portal. A tirinha foi uma idéia de Eugênio Costa. Coordenador de Tecnologia, ele imaginou que faltava ao portal uma história ambientada na favela, ao observar crianças da Rocinha na Estação Futuro. “Os garotinhos de sete, oito anos, chegavam lá com a nota de um real amassadinha e falavam: ‘Tio, quero usar a Internet’. A primeira coisa que faziam era conectar o site do canal de TV Cartoon Network. Eu achava uma cultura tão importada... e comecei a querer entender por que isso acontecia. Descobri que eles têm TV a cabo na Rocinha, e o que eles vêem lá é Cartoon Network. E o canal fala o tempo todo ‘acesse o nosso site’. Então, quando eles tiveram acesso à Internet, foram lá direto”, conta Eugênio, que convidou o ilustrador Otávio Rios para criar as tirinhas da história. Era um trabalho voluntário, mas Otávio aceitou na hora. Ele só seria contratado pelo Viva Rio para a função um ano depois – mas jamais se arrependeria da empreitada. O cartunista não se limitou a criar as tirinhas. Mesmo sem equipe, conseguiu desenvolver uma série de produtos para além da história em quadrinhos. Logo o Cambito ganharia seu próprio site, a Cambitolândia, que apresentava jogos pedagógicos desenvolvidos com paixão pelo próprio Otávio. Parte desse conteúdo foi adaptada do site Mingau Digital (www.mingaudigital.com.br), voltado para crianças de maior poder econômico e parceiro do Viva Favela. Com o tempo, Cambito ganhou um link no site Voices of Youth (Vozes da Juventude), da Unicef; foi parar em vinhetas da Globo e participou do Dia Mundial contra o Tabaco, promovido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O Instituto Nacional


180

Notícias da Favela

do Câncer (Inca) também o usou na luta contra o fumo junto à população de baixa renda. O personagem não agradava a todos, porém. Alguns achavam as historinhas excessivamente moralistas. Eugênio saía na defesa: “O Cambito não é politicamente correto, ele é real. A gente em nenhum momento tenta mascarar a realidade da favela. Os garotos convivem com isso! E talvez seja essa a fórmula do sucesso do Cambito: ser real. Quando a gente tenta mandar as mensagens nas tirinhas, nas histórias, elas são bem subliminares, não são acintosas”. Cambito e sua turma recebiam montes de cartinhas. Eram coisas do tipo: “O site é inteligente, criativo e bem brasileiro. ‘Realidade de favela’ quase ninguém quer ver, ela é em preto e branco... Mas vocês coloriram a favela e enobreceram seus moradores... Um abraço, Elaine Cristina”.

Ou ainda: “Italiana cariocada e moradora do morro, agora de férias na Itália, morro de saudade, mas também de alegria para meu povo adotivo. Amo vocês!”

E mais: “Cambito não da ideia para o vapozinho. ele pode tar com rasao. so que você tem os amigos e é isto que enporta agora. Vapozinho agora você passou dos limites, se você não pedir desculpa para o cambito eu nunca mais vou me preulcupa com você? Mônica”.

As mensagens eram uma prova irrefutável de que o Viva Favela estava realmente chegando às favelas. Confirmavam o que já fora levantado em duas pesquisas realizadas pelo Iser. A primeira delas, coordenada pelo cientista social Bernardo Sorj, realizada in loco e tabulada em dezembro de 2003, mostrava que cerca de cem mil pessoas, ou seja, 10% dos moradores de favelas do Rio, tinham acesso à Internet. E que em torno de 12%


Do outro lado da tela RENATO BATISTA, LOCUTOR DA ROCINHA Matéria: A voz da Rocinha Viva Favela 27/02/2004 Crédito: Nando Dias

181


182

Notícias da Favela

deles conheciam e acessavam com freqüência o Viva Favela. “Não deu traço”, animou-se Rubem César. A segunda pesquisa, dessa vez on-line, seria feita no início de 2005. O objetivo era traçar o perfil do leitor do portal. Em torno da metade dos leitores que responderam – 45,5% – eram moradores de favela. Em sua maioria, jovens e com bom nível escolar. Quase todos já estavam cursando, ou concluíram, o Ensino Médio. “Esse dado revela que o tema desperta interesse na população que não necessariamente mora em favelas. E que a linguagem tem a característica de não ser estritamente direcionada ao público de favela, isto é, leva em consideração outros tipos de leitores, o que é um ponto extremamente satisfatório para o portal”, avaliou Luís Eduardo Guedes, coordenador da área de monitoramento e avaliação do Iser. Ainda segundo a pesquisa, 17,1% dos leitores queriam encontrar no portal material para pesquisa acadêmica. Já a qualidade dos textos era um consenso entre o leitor de favela e o do asfalto – 75% deles achavam que eram “bem escritos e fáceis de ler”. No geral, o Viva Favela ganhou média de 8,5 (sobre 10). A reportagem do dia era o que mais interessava aos leitores (53,7%), seguida pelas seções de Serviço (46,3%) e de Cursos (38,2%). Os moradores de favela procuravam, na maior parte das vezes, as seções de Serviço, Emprego, Diversão, Esporte e os colunistas. Os de menor escolaridade queriam mais dados referentes a emprego e matérias sobre a violência na sua própria comunidade. O portal já atingia a favela, mas lá o seu maior público ainda era o leitor classe A. O desafio de chegar aos mais pobres e, sobretudo, aos ainda sem acesso, continuava. O caminho para isso era retomar propostas de inclusão digital e social. Como criar um banco de currículos on-line e fazer parcerias com empresas de recursos humanos, para investir pesado na seção de Empregos – projeto que cheguei a iniciar, mas ficou inconcluso.


Do outro lado da tela

183

Ao mesmo tempo, a gente sabia que precisava ser bom o suficiente para manter os vários tipos de leitores já conquistados. Inclusive em outros países. A média de acessos no exterior era alta – em torno de 10%. Em sua maior parte, dos Estados Unidos. Porém, que interesse movia esse leitor? De vez em quando, um ou outro e-mail dava uma pista: pesquisadores interessados no tema, brasileiros com saudades de casa, como Leonardo, curiosos em geral. As cartas (ver Anexo 2) certamente, eram um belo indicador da popularidade do projeto. Em 2005, a média mensal chegou a 175 mensagens – a imensa maioria enviada por e-mail. O Viva Favela contabilizava ainda em torno de 180 mil visitas, cerca de 650 mil page views e mais de 2,7 milhões de hits por mês.


184

CapĂ­tulo 6


185


Uma rede virtual Com o tempo, ficou claro que o Viva Favela conquistara seu espaço junto a três segmentos distintos – a favela, a academia e a mídia. Isso obrigava o veículo a investir na produção de conteúdos diferenciados. Nem sempre era tão fácil, mas parecia dar certo. Ninguém esperava, entretanto, a abertura de uma promissora frente: o papel de “rede virtual”. Ao interligar diversos segmentos da sociedade, o projeto começou a quebrar barreiras sociais e dar uma visibilidade inédita aos leitores de baixa renda. Graças à credibilidade do portal e à força do nome Viva Rio, eles ganhavam com as reportagens uma espécie de “carta de recomendação” capaz de abrir portas em vários setores. A experiência estava funcionando com artesãos, modelos, artistas, pequenos empresários e ambientalistas, que conquistavam novas oportunidades no mercado de trabalho por conta de matérias publicadas e contatos feitos pelo portal. Entre eles, por exemplo, estavam as modelos do projeto Lente dos Sonhos, da Cidade de Deus, que, a partir do site Beleza Pura, receberam um convite para trabalhar na Rio Beauty Show (feira internacional de beleza), no Riocentro, Rio de Janeiro. Ludmila Gomes e Gisele Guimarães conseguiram ainda mais: foram convidadas para serem as estrelas do catálogo da grife Devotos, distribuído no Fashion Rio de 2004, em coleção inspirada nos parangolés do artista plástico Hélio Oiticica.

186


Uma rede virtual

187

A chance surgiu também pelo site Beleza Pura, onde o fotógrafo Carlos Mattos as descobriu. Ainda por conta do site, a revista Maxim, da Espanha, contratou seis modelos para um ensaio fotográfico na Cidade de Deus, em meados de 2004. Aos poucos, exemplos do gênero começavam a pipocar. Só percebemos o tamanho do fenômeno, porém, ao contabilizar as histórias de sucesso para o boletim bimestral que lançávamos com notícias sobre o projeto para parceiros, financiadores e colaboradores. A área ambiental era a campeã de boas novas. E se provou uma fonte inesgotável de trocas de todos os tipos – de conhecimento, de produtos e até de sonhos. Um dos que se beneficiaram dessa rede foi o artesão Ednelson Soares dos Santos, da Maré, convidado a exportar seus produtos. Ele foi indicado pelo Viva Favela a Grace Dantas, que mora em Nova York e é dona da Artes do Rio, empresa que importa artesanato brasileiro para os Estados Unidos. Grace escreveu ao portal em busca de artesãos que pudessem fornecer peças para serem comercializadas pela empresa. Ednelson recebeu ainda um convite para participar de uma exposição em Lisboa, mas não viajou por falta de recursos. Já o pequeno empresário Jonas de Oliveira, que começou como catador de lixo e hoje é dono de um galpão de reciclagem no Jardim América, Zona Norte do Rio, recebeu convites de secretarias do interior fluminense para dar palestras sobre sua experiência, além de ser requisitado por uma moradora de comunidade querendo aprender a trabalhar com materiais recicláveis para obter uma nova fonte de renda. A dona-de-casa e artesã Maria José de Oliveira Teixeira, a Zezé, moradora da Penha, Zona Norte carioca, que faz bolsas usando garrafas PET, também foi procuradíssima por gente de todo o país, querendo comprar e aprender a fazer o produto. Ednelson, Jonas e Zezé foram todos personagens de matérias do EcoPop – um dos maiores catalisadores da rede.


188

Notícias da Favela

Ainda por conta do EcoPop, a Cidade de Deus foi escolhida para sediar um projeto-piloto de energia alternativa do Governo Federal. O negócio seria tocado por moradores, com apoio do sindicato dos restaurantes – os empresários garantiram a doação do óleo de cozinha, matéria-prima a ser usada na produção do biodisel. Os integrantes do Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro (Rio Ônibus), com frota de sete mil veículos, toparam comprar toda a produção da favela. A iniciativa do projeto-piloto foi de Luiz Theodoro, do Governo Federal, que tomou a decisão ao descobrir uma entrevista do presidente do Comitê Comunitário da Cidade de Deus no site EcoPop. Para o professor Venício dos Santos, morador daquela comunidade, a rede virtual – que se alimentava, sobretudo, da troca de e-mails – trouxe uma sonhada chancela da Universidade de Oxford, na Inglaterra, para o método que adotou em seu curso de inglês na favela. O curso era gratuito e vivia lotado. Venício abrira a escola por sua própria conta e risco. Achava que falar o idioma era fundamental para quem buscava um lugar melhor no mercado de trabalho. E não se conformava com o fato de não haver nenhuma alternativa do gênero na favela. Um dia, a correspondente Dayse Lara descobriu a novidade e vendeu a pauta. Na hora de falar com o professor, no entanto, nunca o encontrava disponível. Ele fugiu de Dayse o quanto pôde. Como confessaria mais tarde, tinha implicância com o Viva Rio. Só aceitou dar entrevistas quando ela passou a freqüentar seu curso. Numa de suas aulas, vendo que a correspondente anotava sem parar as histórias que contava, quis saber o que tanto “a nova aluna” escrevia. Ela explicou que só se matriculara na escola para chegar mais perto dele. Venício finalmente cedeu. Não teria motivos para se arrepender. Com a reportagem – que trazia ainda entrevista feita por Vilma Homero com uma dinamarquesa que conhecera o curso na Cidade de Deus –, o professor conseguiria o apoio de Oxford para usar o método da universidade


Uma rede virtual

189

oficialmente. No rastro do sucesso da matéria, foi convidado a dar um curso de inglês para detentos numa penitenciária carioca – o que atraiu uma bela cobertura da mídia tradicional. Rikke Winther, a tal professora dinamarquesa, ficou no Rio por cerca de seis meses – parte do tempo dando aulas como visitante no curso de Venício. “Sou professora de inglês no meu país. Acho que as aulas do Venício eram muito boas. Os alunos se interessavam muito, eram aplicados e na sala sempre existia bom humor”, contou Rikke, por e-mail. Com o tempo, era possível colecionar reportagens que traziam benefício direto para os entrevistados. No morro do Salgueiro, por exemplo, um menino chamado Edílson conseguiu patrocínio para jogar futebol de um empresário dos Estados Unidos após virar pauta do repórter Marcelo Monteiro, com fotos de Rodrigues Moura, correspondente do Alemão. Rodrigues também participou de uma outra matéria que trouxe dividendos imediatos para um grupo de jovens da Mangueira. Após deixarem o tráfico e o consumo de drogas, eles começaram a investir “na marra” num grupo de dança. Iam aos bailes funk, mas não contavam com coreógrafo, nem professor. “Eu vi aqueles garotos dançando e sendo discriminados, porque o preconceito falava mais alto por causa do rebolado. Mas achei aquilo importante, fiz o contato, e eles aceitaram dar a entrevista”, lembra Rodrigues. A matéria saiu no Viva Favela e foi republicada pelo jornal O Dia. Logo começaram a surgir convites para dançar em outras comunidades e clubes. “Aquilo deu uma força enorme a eles. Fizeram turnê em São Paulo, gravaram disco e participaram de vários programas de TV”, conta Rodrigues. O efeito da rede por vezes ultrapassava as favelas. As detentas da penitenciária Talavera Bruce, por exemplo, conseguiram lançar um jornal interno após virarem personagens de uma matéria de Anna Carolina, onde revelavam seu sonho. Assim, conseguiram um “padrinho” – um jornalista anônimo que viabilizou a criação do veículo.


190

Notícias da Favela

Um condutor de informação A rede virtual se fortalecia diariamente, mas ninguém era capaz de vê-la. Foi preciso que a professora e antropóloga Ilana Strozenberg chamasse a atenção para o fenômeno. Só no final de 2004, a capacidade do Viva Favela de conectar os diversos segmentos da sociedade surgiu com toda a clareza. Até então, as histórias eram apenas um belo “indicador de sucesso”. Úteis para convencer os financiadores da eficácia do projeto, é verdade. Mas apenas isso. Para a professora, o Viva Favela se encaixava perfeitamente na visão contemporânea da idéia: “Empregado nas ciências sociais para mapear as relações entre indivíduos em sociedades complexas, o conceito de rede começa a ser reelaborado. Uma rede hoje pode ser também pensada como um conjunto de relações construídas intencionalmente como estratégia para a realização de uma ação política”. Uma ação que promove novas e novas teias, abrindo portas onde só havia muros. Ao atuar como ponte virtual entre asfalto e favela, o projeto exerce também “o papel de instrumento capaz de interligar segmentos da sociedade até então isolados entre si”, segundo Ilana. A professora observa, no entanto, que o portal também tinha, obviamente, limitações na sua capacidade de atuação. A começar “pelas próprias pontes que já se sabia impossíveis de serem construídas simplesmente pela ação do Viva Favela”. Mesmo assim, o potencial da proposta sempre foi imenso, diz Ilana. O projeto, para ela, conseguiu efetivamente produzir um impacto na forma como o jornalismo carioca cobria as favelas. Contudo, era apenas uma iniciativa isolada. Ainda há muito chão pela frente, a seu ver: “Mudanças mais profundas na mídia de grande circulação só vão ocorrer quando se ampliarem efetivamente as conexões entre a favela e a cidade”. A ponte virtual que o Viva Favela viabilizou, acredita a professora, “não é uma solução para problemas que superam, de muito, o


Uma rede virtual

191

seu alcance. Mas aponta para a possibilidade desse diálogo”. Ilana descobriu o Viva Favela em 2003 e achou a proposta tão inovadora, que a transformou em tema de uma pesquisa realizada sob sua orientação por estudantes da disciplina Laboratório de Jornalismo, Antropologia e História Oral, na Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, da qual é professora. As entrevistas realizadas foram vitais para a realização deste livro. Carolina Andrade, estudante que participou da pesquisa, resolveu investigar mais tarde o portal. No trabalho Uma ponte social na rede virtual: a proposta do Viva Favela, apresentado por ela durante a Jornada de Iniciação Científica realizada pela UFRJ em 2005, buscou mapear as ramificações da tal rede virtual, partindo do princípio de que essa rede seria capaz de “inserir as comunidades populares em diferentes meios e dar visibilidade a seus moradores”. A aluna pesquisou ainda a consolidação do portal como fonte de informação e referência para a mídia tradicional. Para avaliar o impacto do Viva Favela nesse sentido, ela analisou as pautas que se desdobraram na mídia tradicional a partir da leitura dos boletins bimestrais lançados entre novembro de 2003 e março de 2005. O levantamento mostra que, na maioria das vezes (84%), os veículos da mídia tradicional eram os grandes interessados em reproduzir as pautas do Viva Favela. Em apenas 16% dos casos elas exerciam influência sobre a imprensa comunitária ou institucional. Na mídia tradicional, os mais interessados eram as televisões (51%) e os jornais impressos (43%) – em sua maior parte (61%), populares. Apenas uma minoria das rádios (1%) e sites (5%) buscava replicar pautas do Viva Favela. A análise confirmava ainda que a grande imprensa usava as matérias do portal para contornar a falta de acesso às favelas. Para quem vivia na correria da redação, era sempre interessante conhecer novos olhares sobre o projeto, como o apresentado na dissertação A Case Study in Media Inclusion: The Viva Favela Model (Um estudo de caso na Inclusão Midiática: O modelo Viva


192

Notícias da Favela

Favela), submetida pelo norte-americano David Christopher Marty à Graduate School of Arts and Science, na New York University, em dezembro de 2004. Seu foco principal eram “os processos e práticas que podem levar a inclusão digital até a inclusão midiática” – que David entendia como “uma das muitas formas de inclusão social que podem e devem ser feitas por uma campanha de inclusão digital de peso”. Para o pesquisador, mesmo depois que as campanhas de inclusão digital cuidarem do hardware e do software e derem conexão e treinamento em computadores para a população, ainda estaremos diante de uma questão fundamental: “Faltará o acesso às mais influentes estruturas de auto-representação que existem na sociedade moderna: as mídias de massa”. E sem esse acesso e sem a habilidade de determinar sua própria representação na mídia de massa, “a auto-representação permanece isolada, e a inclusão midiática continua incompleta”. Nesse sentido, o pesquisador escolheu o portal porque, entre os vários projetos de inclusão digital existentes no Rio, o Viva Favela era o “mais notável pelo progresso que fizera – e pela promessa que representava – em direção à inclusão midiática na cidade”. “O projeto começa a operar como um importante condutor de informação, ajudando a canalizar novas histórias das comunidades de favelas à margem da cidade para as mídias de massa local e nacional – que, historicamente, têm tendido a gerar apenas reportagens sensacionalistas sobre violência e tráfico de drogas”, dizia David, para depois concluir: “Com o Viva Favela, o objetivo inicial dos fundadores do Viva Rio, ao negociar com as mídias de massa uma cobertura mais justa e representativa para as favelas, está finalmente começando a se realizar”. As novas histórias veiculadas pelo portal eram multiplicadas, sobretudo, com a ajuda de jornalistas que trabalhavam na grande imprensa. Geralmente por conta de um interesse pessoal sobre o tema, eles costumavam navegar pelo Viva Favela e acabavam


Uma rede virtual

193

topando com alguma pauta interessante que, por vezes, podia ser replicada. Denise Ribeiro, editora de Cidade do jornal Extra, estava entre os profissionais que jogavam no time do Viva Favela. Não por acaso, esse veículo publicou diversas pautas inspiradas no portal. Ouvida por Mayumi Senra Aibe – que apresentou a monografia O Caso do Portal Viva Favela: O jornalismo a serviço de uma nova pauta à Escola de Comunicação da UFRJ, em 2004 –, Denise explicou que o Extra sempre teve todo o interesse em cobrir as favelas. No entanto, a maior barreira para isso era o acesso a elas. Nesse sentido, o Viva Favela podia abrir caminhos ao promover a colaboração entre jornalistas profissionais e correspondentes comunitários. “Temos a dificuldade de não conseguir, em muitos casos, entrar nas comunidades. As pessoas ficam receosas de falar. Nós tentamos, mas não temos acesso direto a esse tipo de  matéria.O fato de termos de pedir autorização para entrar numa favela mostra que esses locais são zonas restritas”, diz Denise. A editora admite ainda que “é muito mais fácil cobrir o lado que a polícia oferece, porque eles conversam conosco e os moradores, não. A tendência é ouvir mais um lado do que o outro”. Denise Ribeiro avaliava que o Viva Favela alcançara uma função importante justamente por conseguir atuar como essa ponte entre a favela e a imprensa. “É difícil eu ter uma sacada boa de pauta lá, porque não vivo na favela. Por isso, o Viva Favela é importante para nós, pois é uma grande fonte de pautas interessantes para os leitores do Extra”, confirmava a editora. Para Mayumi, os correspondentes comunitários eram “a fonte de inovação que o Viva Favela inseriu no jornalismo brasileiro”. Ela avalia ainda que a criação de uma redação formada por moradores de favela e jornalistas era o grande diferencial do portal: “Sem a orientação, a técnica e a visão jornalística de profissionais, as reportagens do Viva Favela não teriam tanto alcance, tampouco seriam tão atrativas”.


194

Notícias da Favela

Após ouvir integrantes da equipe do portal e profissionais da mídia tradicional, a hoje jornalista conclui que o portal “apresenta uma proposta inovadora e necessária, visto que a imprensa não cobre devidamente as favelas cariocas”. Mayumi sustenta sua conclusão ainda com base em entrevistas feitas com Angelina Nunes, editora-assistente da editoria Rio do O Globo, e o ex-editor-chefe do Viva Favela, Oscar Valporto, então editor de produção do O Dia. “Todos classificaram como insuficiente a cobertura jornalística nas favelas, em relação tanto a seus respectivos veículos como à imprensa em geral”, diz Mayumi, que escreveu a monografia orientada por Maurício Lissovsky, professor da ECO e integrante do Iser. Em sua fala, Angelina Nunes destaca algumas matérias sobre aspectos positivos da favela já publicadas pelo O Globo. Confirma, porém, a tendência da mídia a explorar mais as pautas de polícia. Para ela, isso se deve à ausência de fontes que produzam uma pauta “social” e também à “falta de cultura dos repórteres de pensar em buscar pautas nas favelas”, já que boas sugestões, acredita, emplacam em qualquer redação. A editora julga que, com o crescimento dos índices de violência no Rio a partir de meados da década de 1990, os jornais passaram a focar cada vez mais as pautas policiais. Algumas vezes, esse distanciamento levou a imprensa a errar a mão, caindo no sensacionalismo e levando os moradores a se sentirem usados. “A favela está muito ressentida com a imprensa e a imprensa não sabe direito como lidar com essa realidade”, diz a jornalista. Ela aposta que os leitores do jornal querem saber mais sobre o que “os moradores de favela pensam e fazem”. “Existe uma preocupação com o perfil do leitor do jornal, com o que ele está interessado em ler. Acho que poderíamos furar esse bloqueio para mostrar outras coisas”.


Uma rede virtual

195

Para Oscar Valporto, os moradores de comunidades pobres são mesmo os “sem-pauta”. “Da mesma forma que estão excluídos da vida econômica e social, eles estão excluídos da pauta”. O jornalista acredita que os grandes jornais seguem pura e simplesmente a lógica empresarial: “Estão pouco interessados na favela porque não vendem na favela. A maioria dos moradores compra pouco jornal, mesmo os mais populares. E os jornais cuidam de quem compra jornais”. Como consumidores em potencial, no entanto, não deveriam ser ignorados, pensa Oscar.

CIDADE DE DEUS Ensaio Fotográfico 2002 Crédito: Tony Barros


196

Notícias da Favela

Em sua conclusão, Mayumi observa que o Viva Favela conseguia efetivamente “contribuir para o trabalho dos jornalistas nas redações dos grandes jornais”. “Por seguir uma lógica não-comercial”, avalia a jornalista, “ele tem a liberdade de passar informações às quais os profissionais de outros veículos têm dificuldades de acesso. Em troca, multiplica seu trabalho, já que a imprensa passa a publicar um maior número de matérias sobre os aspectos positivos da favela”. Contudo, é uma relação que depende “do interesse pessoal de cada profissional”. O que está longe de ser o ideal. “Para haver uma mudança significativa na mídia sobre as favelas, é necessário implementar ações sistemáticas que ampliem a ponte estreita que une ‘morro’ e ‘asfalto’”. Até o final de 2005, outros pesquisadores ainda fariam do Viva Favela seu objeto de estudo. Entre eles, Maarit Mäkinen, mestranda do Hypermedia Laboratory, da Universidade de Tampere, na Finlândia. Após visitar o portal em outubro de 2005, ela o elegeu um exemplo de projeto bem-sucedido de inclusão digital, capaz de dar voz ativa aos moradores de comunidades do Rio. O Viva Favela mereceu espaço também em várias publicações. É possível ler sobre ele nos livros Brasil@povo.com, do professor e cientista social Bernardo Sorj; Brasil eficiente, Brasil cidadão, da jornalista Rosa Lima, com organização de Marcos Cavalcanti e Inclusão digital: com a palavra, a sociedade, com coordenação geral de Lia Ribeiro Dias. Além disso, o projeto receberia especial atenção dos Cadernos de Comunicações do Iser: O Galo e o Pavão, de 2003, com edição de Regina Novaes e Marilena Cunha; e A Memória das Favelas, publicado em 2004 e editado por Regina Novaes, Marilena Cunha e Christina Vital.


Jornalismo é coisa de ONG?

Numa cidade como o Rio de Janeiro, criar um veículo especializado em favela exige coragem e uma certa dose de loucura. Não há nada parecido na mídia tradicional, e as tentativas de rádios e jornais comunitários mostram que é dificílimo sobreviver nesse meio. O Viva Rio, porém, resolveu pagar para ver naquele começo de 2001. O tempo provaria que a proposta não era tão louca assim. Àquelas alturas, porém, ninguém se arriscaria a dizer que o projeto faria sucesso nas favelas – e muito menos em outros setores da sociedade. O fato de ter sido criado a partir de um pedido de lideranças comunitárias que buscavam uma nova imagem na mídia tradicional obrigava o Viva Favela, de certa forma, a “cumprir essa missão”. Para isso, no entanto, era preciso ser muito mais do que um mero porta-voz dessas comunidades. Era preciso ser efetivamente um veículo capaz de transformar a matéria-prima fornecida pelas favelas em notícias de interesse coletivo. Além de elaborado para e pela favela, o portal era um produto do Terceiro Setor com todas as limitações e vantagens que isso significava. Pertencer a uma ONG tornava possível, por exemplo, experimentar uma nova forma de comunicação livre das amarras do jornalismo convencional.

197


198

Notícias da Favela

Ali, tentava-se exercitar, simultaneamente, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa – dois conceitos que nem sempre coincidem na prática.1 Como observou o jornalista Cláudio Abramo, responsável por reformas editoriais nos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, a liberdade de imprensa é, acima de tudo, a liberdade do dono da empresa. “O jornal é deles e eles fazem o que quiserem”, dizia Abramo, uma vez que não se trata “de uma propriedade pública, mas de uma propriedade privada”. E, portanto, concluía, primordialmente orientada por interesses econômicos, que determinam o que deve e como deve ser publicado. Sem compromisso com o lucro, ou com o patrocinador A ou B, o Viva Favela podia se dar ao luxo de oferecer aos que vivem na favela uma oportunidade inédita de se expressar. O que fazia, nesse caso, com que a liberdade de imprensa equivalesse bem mais à liberdade de expressão. Isso só era possível porque, nesse caso, o “dono da empresa” – representado pelo Viva Rio – deixava o Viva Favela respirar. Isso começava na própria definição da pauta – exatamente onde o recorte da realidade começa a ser feito – e continuava no trato de cada tema. A “voz do dono” aí não pesava, ao contrário do que costuma ocorrer nas grandes empresas jornalísticas privadas, onde a escolha do que é notícia muitas vezes se sujeita aos interesses da direção do veículo. Um dos grandes desafios era não tratar a favela de forma paternalista. Se havia um assunto polêmico, como remoção em áreas de risco, por exemplo, era preciso mostrar a irresponsabilidade dos que insistem em viver nelas. Entretanto, de forma contextualizada – colocando em cena, por exemplo, as razões que levam 1 A liberdade de expressão se origina no direito individual de emitir uma opinião. Já a liberdade de imprensa está ligada à idéia de independência das empresas de comunicação.


Jornalismo é coisa de ONG?

199

essas pessoas a se pendurar em barrancos, como a falta de emprego e moradia. De certa forma, a liberdade de imprensa ali era também a liberdade do “dono da empresa”. Nesse caso, porém, o “dono” realmente podia ser considerado, em última instância, a própria “sociedade civil” – um conceito demasiado abrangente, mas que ajuda a explicar o rumo que sempre norteou o portal. Isso foi possível porque o Viva Rio soube evitar que seus objetivos específicos – fossem políticas de alianças da casa ou parcerias da ONG nas favelas – violassem a independência do portal. É claro que a instituição não deixava de ter interesse político – no sentido mais amplo do termo – frente a um veículo como o Viva Favela, capaz de “falar” com diversos setores. No mínimo, era uma bela vitrine para as ações da casa. Seria natural supor, portanto, que o “ator social” Viva Rio, com seus projetos que se expandem por áreas tão diversas quanto educação, comércio solidário ou mediação de conflitos, estivesse fortemente tentado a usar o Viva Favela como canal de informação para enviar mensagens, da favela à elite. E ele usou. Contudo, sem atropelar a autonomia do veículo. Volta e meia, é verdade, dentro do próprio Viva Rio, havia pedidos para que se abrisse espaço para projetos da casa. Às vezes, era uma saia justa. No entanto, também surgiam sugestões que se transformavam em belas reportagens. Aos poucos, os coordenadores da ONG começaram a entender o que rendia e o que não rendia uma boa pauta. Mas isso era mais do que normal. Um projeto assim nunca está isolado em sua trajetória – por mais autonomia que tenha. Qualquer veículo de comunicação, tanto do Terceiro Setor quanto de empresas privadas – e públicas –, sempre estará sujeito a pressões de “atores sociais” diversos. Incluindo aí os próprios jornalistas, que acabam por influenciar o produto final.


200

Notícias da Favela

Qualquer um que analise de perto, por exemplo, a rede de interesses – muitos nem sempre declarados – dentro da chamada “sociedade civil organizada” verá que não há uniformidade entre eles. Basta perguntar a duas ou três associações de moradores de uma mesma favela o que elas querem – ou não – ver publicado sobre a sua comunidade para se perceber que as respostas muitas vezes são conflitantes. No caso do Viva Rio, a vasta rede de projetos e colaboradores em centenas de favelas da cidade era, acima de tudo, uma vantagem que fazia com que a ONG conseguisse chegar aonde a mídia tradicional geralmente não chegava. Não por acaso, era uma fonte permanente para os “coleguinhas” que buscavam os mais diversos tipos de personagens junto à assessoria de imprensa. Por intermédio das jornalistas do setor, Mônica Cavalcanti, Chris Magnavita e Adriana Lacerda, muitos desses telefonemas acabavam no Viva Favela. Rubem César Fernandes não queria, declaradamente, dar ao portal um ranço “chapa branca” – como ele chamava as matérias de interesse institucional –, o que era mais do que bem-vindo. Assim, fez com que prevalecesse o critério jornalístico na linha editorial do veículo. Por essas e outras, muita gente duvidava da ligação entre o Viva Favela e o Viva Rio. Era comum chegarem à redação histórias de leitores tão diversos quanto universitários, moradores de favelas ou diplomatas que não sabiam – e quase não acreditavam – que o portal pertencia à ONG. O fato de o veículo deixar a favela falar com sua própria voz era digno de elogios para Marcos Sá Corrêa: “O portal Viva Favela, uma rede criada pela ONG Viva Rio para ligar via Internet os morros cariocas, deixa que se apresentem uns aos outros com suas próprias palavras e não pelo que o resto da cidade tem a dizer sobre eles. O resultado é um jornal eletrônico que, feito por favelados e para favelados, livrou-se da obsessão jornalística que resume as favelas como a droga, violência e miserê. (...) Às vezes, quando todas as primeiras páginas amanhecem


Jornalismo é coisa de ONG?

201

ocupadas pela mesma crise política de Brasília, não há nada como o Viva Favela para servir no café-da-manhã”.2

A voz do Caveirão Uma das maiores provas da independência editorial do Viva Favela foi a publicação da matéria “Corra, o caveirão vem aí”, em outubro de 2005. Escrita a partir de denúncias contra a atuação do carro blindado (conhecido como “caveirão”) usado pelas Polícias Civil e Militar no Rio, a reportagem batia de frente com a política de segurança pública do Governo Estadual, o que destoava da linha de atuação da área de direitos humanos e segurança pública do Viva Rio, que mantinha parcerias com o governo do estado para a capacitação de policiais. Era de se prever, portanto, que a publicação fosse evitada. Mesmo assim, fomos em frente. O tema era quentíssimo, as denúncias vinham de fontes seguras e as favelas esperavam que o portal cumprisse esse papel. As histórias começaram a chegar à reunião de pauta por conta da indignação dos correspondentes que testemunhavam as cenas de violência e desrespeito com os moradores, além de receber, eles mesmos, denúncias de velhos conhecidos. Não havia como duvidar, nem vincular as acusações à manipulação do tráfico ou algo do gênero. No entanto, obviamente havia certa tensão diante das possíveis reações ao texto. Rubem César estava ciente da pauta, mas só leu a reportagem quando ela já estava no ar. Passava das nove da noite quando bati na sua sala e pedi que ele conferisse o tom da matéria. Ele leu o texto – a reportagem era minha – de cabo a rabo e não fez nenhum reparo, mesmo sabendo que a matéria poderia provocar reações. Como efetivamente provocou. Sabe-se que ela irritou, por exemplo, alguns setores da polícia. Entre outras rea2 Coluna publicada pelo site AOL em de julho de 2004


202

Notícias da Favela

ções, começaram a circular na Internet mensagens acusando o Viva Favela de defender os “direitos dos bandidos” – o que, por tabela, atingia imediatamente o Viva Rio. A reportagem trazia denúncias contra as ações do blindado em várias favelas do Rio. Incluía um abaixo-assinado de moradores do Complexo do Alemão, que reclamavam de prejuízos morais e materiais e pediam “mais respeito ao Estado”, dava a letra do rap (que podia ser ouvido no site) de um animador cultural da Maré e contava que um dossiê sobre os abusos estava sendo elaborado pela ONG Justiça Global. A Polícia Militar, através de seu porta-voz, dizia desconhecer episódios negativos relacionados ao “caveirão”. Poucas semanas após ser publicada pelo Viva Favela, a reportagem virou manchete do Extra, com os devidos créditos. A idéia partiu do editor-executivo Octavio Guedes, com quem estávamos articulando uma parceria para a publicação de matérias do portal. A partir daí, a história ganhou destaque nas rádios Globo, Tupi e CBN, além da Rede TV!, obrigando o então comandante do Bope, coronel Fernando Príncipe, a dar explicações a contragosto. Provocou também mensagens de apoio e agradecimento. O pastor evangélico Ronaldo Cunha, que atua na comunidade Nelson Mandela I, em Benfica, escreveu: “Vejo com muita tristeza pessoas investidas de autoridade para governar usarem o poder que lhes é auferido para declarar guerra a essas comunidades. É uma verdadeira intifada. Sim, porque o poder público envia blindados a essas comunidades atirando para todos os lados. Morrem crianças, adultos, jovens e idosos sem nenhuma relação com o crime. Quando o povo protesta, é autuado por associação ao crime organizado. Isso é uma forma de legitimação do genocídio. Usurpa-se do ser humano direitos básicos constitucionais. Hoje, a presença do Estado nessas comunidades significa a usurpação desses direitos”.

Um rapaz de quinze anos, que assinava apenas Vinicius, o “Sapo Boi”, ex-morador do morro dos Macacos, em Vila Isabel (Zona


Jornalismo é coisa de ONG?

203

Norte carioca), também enviou e-mail após ter lido a reportagem. Nele, Vinicius conta que conheceu bem a realidade das favelas cariocas antes de se mudar para o Espírito Santo – e que continuava a freqüentar bailes funk em suas visitas ao Rio. Ele enviou trechos de um funk “proibidão” que costumava ouvir nos bailes cariocas: “Escuta o barulho / é granada noite e dia / caveirão no Macaco / virou caveirinha / não tem essa de Colômbia, nem Afeganistão / o morro do Macaco explodiu o caveirão... ão ão ão explodimos o caveirão...” Vinicius se ofereceu para ser colunista do portal. “Meu sonho é ser jornalista e eu queria ter uma coluna no seu site, que tem uma comunicação aberta...” Convidei-o a escrever quando quisesse, mas ele nunca deu retorno.

Cinco milhões de telespectadores Livre da lógica do mercado, o Viva Favela podia buscar o que acreditava ser de “interesse coletivo” e colocar em prática sua responsabilidade social, mesmo com todas as limitações. Sempre tentava pautar o que era “notícia”, sem perder de vista o objetivo de desconstruir a imagem preconceituosa e superficial que a sociedade tantas vezes faz das favelas. Acabou descobrindo histórias fantásticas que, por seu ineditismo, logo conquistaram a mídia tradicional. No primeiro ano do portal, essa já era uma tendência clara. No segundo ano, os telefonemas de “coleguinhas” em busca de pautas e personagens passaram a ser sistemáticos. Ao assumir a coordenação, em meados de 2002, adotei esses contatos como um indicador de sucesso do projeto. Mostrar que o Viva Favela era lido pelos jornalistas da mídia tradicional – e pelos leitores de seus veículos – era uma forma interessante de dar retorno aos financiadores. Não só porque comprovava o prestígio e a credibilidade do projeto, mas, acima de tudo, porque permitia a eles ter visibilidade junto aos formadores de opinião.


204

CRIANÇAS BRINCAM NO CANTEIRO DE OBRAS DO CIRCO BAIXADA, EM QUEIMADOS Matéria: Respeitável Público: nasce o Circo Baixada Viva Favela 18/02/2003 Crédito: Walter Mesquita


205


206

Notícias da Favela

Com o tempo, viramos referência e passamos a ser procurados pelos jornalistas para todo tipo de informação: indicações de lideranças comunitárias, novidades culturais, sugestões de personagem. Para Luiz Fernando Vianna, repórter da Folha de São Paulo, numa avaliação feita no final de 2005, o Viva Favela olhava para o que “a chamada grande imprensa não pode, não sabe, não quer olhar: a vida nas comunidades para além das generalizações do (mau) senso comum e do discurso freqüentemente preconceituoso das autoridades e da polícia”. Em resumo: era “um ótimo manancial de pautas, histórias e reflexões” e servia de apoio para contatos nas comunidades. Em depoimento dado ao portal no final de 2004, Marcelo Moreira, então chefe de reportagem do RJTV da Rede Globo, também afirmava “a ótima qualidade” do projeto. “Fazer uma matéria positiva sobre a favela e pautar um telejornal como o RJTV, que é visto por cinco milhões de pessoas, mostra o valor do trabalho do Viva Favela”. Moreira confirmava ainda que, com a morte de Tim Lopes, em junho de 2002, as equipes de reportagem da emissora foram proibidas pela direção de entrar nas favelas, o que, de certa forma, afastou o telejornalismo dessas comunidades. No entanto, nem por isso deixaram de se preocupar com o que acontece aos moradores dessas áreas. Para ele, era a grande penetração do portal nas favelas que o tornava um importante instrumento de informações. Também no final de 2004, Eduardo Auler, chefe de reportagem do Extra, afirmou que o grande diferencial do Viva Favela era o conteúdo de suas reportagens. Especialmente por conta da diversidade das pautas, da criatividade com que eram conduzidas e da coragem com que algumas eram feitas – sobretudo as que retratavam o medo dos moradores durante os momentos de conflito. “Considero hoje o Viva Favela a mais importante fonte de notícias sobre as comunidades, que estão cada dia mais distantes da grande mídia. Seja pela reação violenta com que os órgãos


Jornalismo é coisa de ONG?

207

são recebidos em algumas áreas, seja pela dificuldade de acesso a informações e fontes”, diria Auler. Os depoimentos de Auler e Moreira foram dados ao repórter Carlos Collier, que escreveu uma matéria avaliando os avanços do portal ao longo de 2004. No ano seguinte, cerca de oito reportagens do Viva Favela inspiravam pautas na mídia tradicional a cada mês. Era uma contabilidade difícil de ser feita. Às vezes, uma única história repercutia em dois, três, quatro veículos. A matéria “Segura, peoa”, por exemplo, do correspondente Cristian Ferraz, publicada em fevereiro de 2005, provocou interesse no “Fantástico”, no “Domingão do Faustão”, ambos da Rede Globo, e nos jornais O Dia e Extra. O mesmo aconteceu com “Moda limpa”, sobre a dona Zezé, do morro do Tuiuti, de Guaraci Gonçalves. Publicada no mês anterior, ela atraiu o Canal Futura e a TV ARD, maior rede pública da Alemanha. A relação com a mídia tradicional se fortalecia na medida em que os correspondentes e repórteres da redação conseguiam criar uma rara agenda de telefones. Viramos uma fonte confiável de fontes confiáveis. “A grande maioria dos jornalistas é de classe média e sem contato com favelas. O Viva Favela faz com que a gente se dispa do preconceito e mostre melhor essa realidade”, diria o editor-chefe do SBT Rio, Rafael Casé, em 2005. Segundo ele, sua equipe utilizava o portal como uma base de consulta permanente. Aos poucos, pautas de estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Minas Gerais começaram a chegar – mas, salvo duas ou três colaborações voluntárias de jornalistas de fora do Rio, não foi possível ampliar a cobertura para além das fronteiras cariocas. Houve um momento, no entanto, em que se sonhou com um “Viva Favela Brasil”. Um projeto que certamente seria estimulado pelo antropólogo Hermano Vianna. Em entrevista a Janaína Rocha, publicada em 2004 na revista Cult, Hermano afirma: “Vejo com entusiasmo o aparecimento de cada vez mais rádios comunitárias e TVs comunitárias, além de


208

Notícias da Favela

projetos como o excelente site Viva Favela, que precisaria ser imediatamente nacionalizado”. A idéia era boa. O modelo, afinal, já estava testado e aprovado. Pronto para se tornar política pública – um dos ambiciosos objetivos dos projetos do Viva Rio. O foco exclusivo no Rio não impediu o Viva Favela de se tornar notícia em veículos do Brasil e do mundo, a partir de reportagens de jornalistas da Europa e dos Estados Unidos. Entre eles, Tilman Wörtz, que elaborou, em 2004, uma matéria para a WDR, grande estação de rádio da Alemanha. No mesmo ano, a jornalista africana Rasna Warat publicou Slums creates its own web site (A favela cria seu próprio site), artigo que falava sobre o projeto, no site www.peopleandplanet.net. A reprodução de matérias do Viva Favela em sites internacionais, como o United Nations Cyberschoolbus (Ônibus escolar cibernético das Nações Unidas), também era naturalmente bem-vinda. O site, produzido pelas Nações Unidas, traduziu e replicou uma reportagem sobre a Rocinha durante as comemorações do Dia Mundial do Meio Ambiente, em 2005. Para Bill Yotive, gerente do Global Teaching and Learning Project (Projeto Global de Ensino e Aprendizagem), ao qual pertencia o site, o Viva Favela era “um projeto maravilhoso”. O portal também era conhecido no Extremo Oriente. Certa vez, uma pesquisadora japonesa descobriu e resolveu incluir o Viva Favela – depois de visitar sua redação no Rio – num livro de boas práticas coletadas nas Américas. “O efeito (do portal) só não foi maior por falta de dinheiro para divulgar melhor o trabalho”, diz a jornalista Márcia Vieira sobre os primeiros cinco anos do portal. Para ela, o Viva Favela representava “a chance do morador de comunidade de ser ouvido”, era a favela “falando por ela mesma”. O que, na sua avaliação, ajudava a sociedade “a mudar a imagem do favelado, além de melhorar a auto-estima dos moradores”. Não ter verba para divulgar o projeto sempre foi realmente um problema. Havia as agências de publicidade, parceiras do Viva


Jornalismo é coisa de ONG?

209

Rio, que topavam ajudar na criação. Mas isso não bastava. Era preciso jogar a idéia na rua. Uma delas, a V&S Scala, chegou a produzir um belo anúncio, jamais veiculado. Ele mostrava três meninos com uma favela ao fundo. O texto dizia algo assim: “Com tanto Washington, Wellington e Wallace, o que não falta é www na favela”. Em setembro de 2003, uma reportagem de capa da revista Lide sobre jornalistas que trabalham no Terceiro Setor registrava a expansão da área de comunicação do Viva Rio. Vital para a ONG – que nasceu com o apoio dos três maiores jornais cariocas da época (O Globo, Jornal do Brasil e O Dia) –, a comunicação crescera rapidamente com a criação do Viva Favela, o aumento de profissionais na assessoria de imprensa e o surgimento da Rádio Viva Rio AM. Nesse período, o Viva Rio contava com mais de vinte jornalistas profissionais. O time começaria a se desfazer em 2005, quando a ONG começou a se repensar após um processo de mudança provocado pela redução nos financiamentos e pela derrota do “sim”3 no referendo sobre o comércio de armas no Brasil. A partir dali, haveria um freio de arrumação. E o número de jornalistas na casa baixaria substancialmente. Mas quem conhece a importância que a área sempre teve para a instituição sabe que é quase impossível não prever um novo crescimento futuro. 3 Em referendo realizado em outubro de 2005, quase dois terços dos eleitores disseram “não” à proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil. A luta pelo desarmamento no país é uma das grandes bandeiras do Viva Rio.


A semente estava lançada Em 2005, o portal alcançara prestígio, credibilidade e um número considerável de leitores, mesmo sem qualquer tipo de publicidade. E começava a colecionar prêmios.1 O caixa, porém, continuava baixo. Captar recursos sempre fora um problema. Para piorar, naquele momento, o Viva Rio – que tradicionalmente ajudava o Viva Favela durante as tempestades – também não se encontrava bem financeiramente. Ainda em janeiro, a ONG decidiu que seria mais seguro enxugar os custos. Com isso, os correspondentes deixaram de receber um salário fixo e passaram a ganhar por produção. O grande baque, porém, viria em abril. Como a situação não melhorara, para que o projeto conseguisse chegar ao final do ano e ganhasse tempo para buscar novos financiadores, seria preciso tomar uma decisão ainda mais drástica. Não restou saída a não ser desmontar a equipe de jornalistas. De uma só tacada, perdemos os cinco repórteres e a redatora. A partir dali, só poderíamos contar com os correspondentes e as editoras de fotografia e de texto. A mudança reduziu o ritmo de atualização do portal. Mas, pelo menos, a qualidade do conteúdo e a equipe da favela foram preservadas.

1 Entre eles, o Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (Menção Honrosa pelo conjunto da obra), conquistado em 2005, e o Telemar de Inclusão Digital, recebido em 2004.

210


A semente estava lançada

211

Cada correspondente poderia produzir, no máximo, duas matérias por mês. Era tudo o que o orçamento podia pagar. Para quem não tinha uma segunda fonte de renda, foi um susto. Marta Oliveira, por exemplo, do Complexo do Alemão, cursava faculdade à noite e contava com o Viva Favela para fechar as contas. A situação era um pouco melhor para La Toy Jetson, que mantinha seu programa na Rádio Rayzes FM. Ambos entraram no final de 2004 sem ter a menor idéia do vendaval que se aproximava. Mais acostumado a falar em rádio do que a escrever textos longos, La Toy ainda assim emplacou algumas boas matérias. Descobriu, por exemplo, o grupo Teatro na Laje, formado por jovens da Vila Cruzeiro. Eles adaptaram a obra de Shakespeare para as favelas cariocas contemporâneas e fizeram uma versão de Romeu e Julieta onde a disputa entre as famílias Capuletos e Montéquios é substituída pelo conflito entre facções rivais. A matéria de La Toy foi ao ar no finalzinho de novembro de 2005, quando o Viva Rio ainda digeria a triste derrota do “sim” no referendo sobre o comércio de armas no país. Um momento delicado para a ONG, que ainda não se recuperara da turbulência financeira que prejudicara seus planos naquele ano. Tentando enxergar na crise uma oportunidade para se fortalecer, a instituição começou a rever todos os seus projetos. E incluiu o Viva Favela na lista. Era o fim de um ciclo de quase cinco anos. Nesse momento, saí de cena, feliz por ter estado à frente de um veículo de comunicação inovador, que, a despeito de todas as dificuldades de acesso à Internet neste país, conseguira efetivamente entrar nas favelas. De alguma forma, aquela primeira fase pudera estabelecer um novo paradigma para o exercício do que se poderia chamar de “jornalismo social”. A proposta de dar visibilidade às favelas – e de fazê-las usarem a grande mídia para transmitir uma visão mais humana de si mesmas – passava a ser uma possibilidade real, e não mais mera utopia. A semente estava lançada.


212

Notícias da Favela

Uma olhada ao redor mostrava que não estávamos mais tão sozinhos. Havia um grande movimento crescendo na mesma direção. Nele despontam iniciativas como o jornal mineiro Visão do Morro, lançado em 2004 e produzido por repórteres comunitários do morro das Pedras, em Belo Horizonte. No Rio, o Observatório de Favelas acabara de criar a Escola de Comunicação Crítica, para formar novos profissionais nessa área. Brasil afora certamente existem várias outras iniciativas do gênero. Em janeiro de 2006, com a equipe de correspondentes praticamente desarticulada, o Viva Favela buscava seu novo caminho. Eu estava de volta à favela – dessa vez como gerente de produção de um documentário que trata da relação entre o morro e o asfalto2 –, quando meu celular tocou no alto do Chapéu Mangueira, no Leme, Zona Sul carioca. Era um jornalista querendo o contato do grupo Shakespeare na Laje. Fiz a ponte com La Toy e desliguei, torcendo para que outras pontes continuassem a ser construídas. 2 Dirigido pelo inglês Donald Hyams, O outro lado do morro aborda a estreita interdependência entre os moradores da favela e do asfalto.


A semente estava lançada

213

SAMBISTAS DO CANTAGALO Ensaio fotográfico 2003 Crédito: Sandra Delgado


214


215

Anexo 1


Anexo 01

Matérias selecionadas

Arquitetura de pedreiro — 218 Por Edu Casaes, da Rocinha, e Vilma Homero, da Redação – 21 / 02 / 2003

O barraco é mais embaixo — 221 Por Gisele Netto – 28 / 01 / 2003

Nas barbas da ditadura — 224 Por Marcelo Monteiro – 01 / 06 / 2004

Na boca do lobo — 227 Por Bete Silva, do Complexo do Alemão – 10 / 05 / 2002

Cada vez mais abusados — 231 Por Ana Cora Lima – 19 / 10 / 2004

Círculo das letras — 234 Por Guaraci Gonçalves, do Tuiuti, e Silvia Noronha, da Redação – 18 / 08 / 2004

A dureza da dura — 237 Por Carlos Collier – 18 / 03 / 2003

Escolha radical — 240 Por Mariana Leal – 11 / 04 / 2005

Essencial inacessível — 243 Por Marta Oliveira, do Complexo do Alemão, e Vilma Homero, da Redação – 17 / 03 / 2005

Uma favela partida — 246 Por Keliane Muniz, de Duque de Caxias – 20 / 09 / 2001


Favela no quadro-negro — 248 Por Dayse Lara, da Cidade de Deus, e Vilma Homero, da Redação – 09 / 09 / 2003

O filme se repete — 250 Por Cristian Ferraz, da Baixada, e Tetê Oliveira, da Redação – 05 / 04 / 2005

Ingresso ecológico — 253 Por Julia Duque Estrada – 02 / 09 / 2004

O lado C do funk — 255 Por Anna Carolina Miguel, da Zona Oeste – 16 / 11 / 2001

Da mansão ao morro — 258 Por Rita de Cássia, do Cantagalo – 13 / 08 / 2004

Minha adorável babá — 262 Por Cláudio Pereira, do Complexo da Maré, e Verônica Fraga, da Redação – 13 / 12 / 2002

Rir sobre o óleo derramado — 266 Por Begha Lindemberg, do Complexo da Maré, e Vilma Homero, da Redação – 26 / 05 / 2005

Só a Rocinha segura a Rocinha — 269 Por Carlos Costa, da Rocinha – 04 / 07 / 2001

Shakespeare na laje — 273 Por La Toy Jetson, do Complexo da Penha, e Tetê Oliveira, da Redação – 29 / 11 / 2005

No tempo dos atabaques — 276 Por Jaime Gonçalves – 15 / 03 / 2005


Com anos de prática e nenhum diploma, pedreiros da Rocinha multiplicam o espaço onde ele praticamente não existe. E inventam uma nova lógica urbanística.

Arquitetura de pedreiro Edu Casaes, da Rocinha, e Vilma Homero, daRedação | 21/02/2003 Foto: Nando Dias

Acostumados a se adequar às mais loucas condições de espaço e a driblar dificuldades de tempo e dinheiro, os pedreiros se tornaram um dos profissionais mais requisitados nas comunidades. Experientes ou amadores – há até mulheres que colocam a mão na massa –, eles são peças fundamentais quando se trata de concretizar, tijolo a tijolo, o sonho da casa própria. Sem saber, inventam também uma nova lógica urbanística. Para solucionar a falta de dinheiro e de espaço, as casas de favelas fogem do convencional. Escadas surgem nos lugares mais inesperados, quartos são colocados ao lado da cozinha, lajes encostam na janela do vizinho. O importante é encontrar soluções apropriadas ao terreno e abrigar uma família grande num lote pequeno.

218


219


220

Notícias da Favela

O pedreiro Ricardo de Oliveira, 29 anos, um dos mais requisitados da Rocinha, já perdeu a conta de quantas casas fez na comunidade. Antes de começar a obra, Ricardo desenha a planta de sua criação. A partir daí, faz de tudo: das fundações à subida das paredes e acabamentos.

Em forma de funil Ele não faz obra em área de risco, e sempre busca soluções inovadoras. A casa da diarista Nalva de Araújo, 47 anos, por exemplo, tem formato de funil e o acesso aos quartos, no segundo andar, é feito por uma escada de madeira. “Foi a forma que consegui para aumentar o espaço”, justifica o pedreiro, que nem sempre segue o desenho original. “Quando vejo uma forma mais fácil de fazer o serviço, mudo tudo e recomeço por outro caminho”, explica. Sua primeira casa foi aos 19 anos, depois de aprendidas as noções básicas da profissão com o avô, também pedreiro. Os estudos, mesmo limitados, ajudam. “Uso muita matemática”, explica. O também pedreiro Sem Camisa, ou melhor, Antônio Carlos da Silva, 42 anos, usa método semelhante. “Olho, meço o terreno, faço um rascunho e caio dentro”, afirma. Sempre é difícil. “Em toda obra há complicações, principalmente em morro. Mas nunca tive problemas”, assegura. Sem Camisa aprendeu a profissão com o pai e já fez mais de quinze casas na Rocinha. A manicure e cabeleireira Carla Jovêncio de Souza, 42 anos, também aprendeu com o pai os rudimentos da profissão, mas usa o conhecimento em sua própria casa. Com três crianças pequenas para sustentar e morando num espaço mínimo, ela construiu um segundo andar, com quarto e banheiro, sozinha. Já foi chamada para trabalhar profissionalmente, mas não aceitou: “Dou alguns toques, mas não participo”.


No morro do Tuiuti, no Rio, a família Silva é exemplo de como moradores de favelas driblam a falta de títulos de posse criando mecanismos próprios para negociar imóveis e lotes.

O barraco é mais embaixo Gisele Netto | 28/01/2003 Foto: Walter Mesquita

No Brasil, as favelas criaram uma dinâmica própria para organizar o caos criado pela ocupação irregular em terras urbanas. Sem uma política habitacional eficiente, o morador de baixa renda inventou códigos próprios para lotear, dividir, multiplicar, alugar, comprar e vender seus imóveis e terrenos na favela. Uma realidade complexa que o governo terá de enfrentar quando colocar em prática o projeto de legalização fundiária nessas áreas, como está previsto no programa dos Ministérios da Justiça e das Cidades. Os técnicos terão de lidar com situações bem específicas, que talvez exijam soluções negociadas caso a caso. No morro do Tuiuti, em São Cristóvão, zona portuária do Rio, por exemplo, uma única família (a dos Silva, como a do presidente Lula) atra-

221


222

Notícias da Favela

vessou as últimas décadas protagonizando diferentes papéis – posseira, proprietária sem título, loteadora. Jarbas Luiz da Silva chegou com a família ao Tuiuti há 31 anos. Eles foram morar numa casa alugada, instalada num enorme terreno baldio. Um dia, decidiram saber de quem eram aquelas terras para regularizar a posse. “Descobrimos que o terreno tinha dívidas de mais de 150 anos. As pessoas que se diziam donas não tinham mais direito a nada”, conta Marcília Viana da Silva, 40 anos.

Sem registro Depois de muita confusão, o imposto passou a chegar em nome de Jarbas. Para regularizar tudo, ele teria cinco anos para requerer a escritura. Mas não deu tempo: morreu antes. Um ano depois, a viúva dividiu a terra e começou a vender lotes. Hoje existem dez casas onde só havia a residência dos Silva. Entre elas, a de Marcília – a única das quatro filhas a ficar no terreno. Com a morte da mãe, ela passou a ser a administradora da área. “Eu teria de tirar a escritura para depois fazer o ‘desmembro’ para cada um. O problema é que teria de gastar um dinheiro que não tenho”, explica. Resultado: não só ela não tem qualquer prova da propriedade do terreno, como vem vendendo e alugando imóveis e lotes sem nenhum documento legal. Nos lotes, há proprietários que já venderam suas lajes para a construção de novas residências. Tem até prédio de três andares. Ninguém sabe como vai ficar quando o governo começar a distribuir os certificados de propriedade. Seja como for, Marcília prefere que a associação de moradores – que seria a intermediária das emissões segundo a proposta do Ministério da Justiça – fique fora dessa história: “Não conheço ninguém de lá. Eles só agem no alto da favela, dizendo que a gente aqui embaixo é do asfalto, é rico e metido à besta. Já o pessoal do asfalto diz que a gente é da favela”.


Materias Selecionadas

223


Morros cariocas esconderam militantes de esquerda perseguidos pelo regime militar. No São Carlos, morava a família de Carlos Lamarca.

Nas barbas da ditadura Marcelo Monteiro | 01/06/2004 Foto: Walter Mesquita

O grupo Tortura Nunca Mais contabiliza quase quinhentas pessoas mortas e desaparecidas durante o governo militar no Brasil. Um número que poderia ter sido ainda maior não fosse a participação de moradores de favelas mais engajados, que deram cobertura a lideranças de esquerda procuradas no asfalto. Em tempos de perseguição política, as comunidades eram um porto quase sempre seguro. No morro de São Carlos (Centro do Rio), onde morava a família do guerrilheiro Carlos Lamarca, assassinado pela repressão, a movimentação era intensa. “Tinha um barraco que era usado só para isso. Mas teve gente que ficou escondida em casa de família. Ninguém podia bobear porque a polícia estava nas nossas barbas”, conta Abdias Nascimento, presidente da Associação de Moradores do São Carlos de 1965 a 1968. 224


Matérias selecionadas

225

Padre Mário Prigol, que atuava em favelas do Rio na década de 60, confirma: “Muita gente do partidão ficou nesse barraco do São Carlos e em várias favelas do Rio”. Preso nos anos 70 pela Polícia Especial do Exército, Prigol imagina que o próprio Lamarca possa ter buscado refúgio no morro. Já o ex-presidente da Associação de Moradores do Morro do Chapéu Mangueira, no Leme, Zona Sul, Lúcio Bispo lembra que, a partir de 64, os membros do Partido Comunista, impedidos de atuar no asfalto, correram para a favela. “Eles infiltraram pessoas e fizeram contato com as lideranças. Na hora do aperto, pediam ajuda para abrigar os companheiros.” Lúcio lembra uma história surpreendente sobre sessenta universitários que se refugiaram na favela durante duas semanas: “A polícia tinha tentado invadir uma universidade e a Igreja Dominicana do Leme pediu para a gente esconder os jovens. Como a gente tinha boa relação, o que eles falavam a gente aceitava. A grande dificuldade foi comprar pão para todo mundo sem chamar atenção”. Coordenadora da Obra Social da Igreja Dominicana do Leme, Lia Darcy de Oliveira confirma a história: “Nessa época, ninguém sabia exatamente o que ocorria nas favelas. A igreja trabalhou brilhantemente nos bastidores”.

Angel na Penha A participação das comunidades na resistência ao regime militar foi tão discreta, que até hoje especialistas no assunto desconhecem casos como o do Chapéu Mangueira. Prova disso foi a reação da presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Elizabeth Silveira e Silva: “Não sei nada sobre isso, mas vou conversar com algumas pessoas”, respondeu. Duas semanas depois, ela confirmou os abrigos secretos e contou um novo episódio. “Descobri que o Stuart Angel ficou escondido


226

Notícias da Favela

numa favela da Penha. O Partido Comunista tinha um casal que morava na subida de um morro e fazia a mediação com a favela. Mas eram sempre passagens muito rápidas”, diz Elizabeth. Filho da estilista Zuzu Angel, o guerrilheiro foi torturado e morto por militares em 1971, aos 25 anos. Segundo Abdias, ninguém no São Carlos perguntava o nome dos que estavam escondidos. “Alguns ficavam até disfarçados. O próprio Betinho chegou a freqüentar o morro e eu só soube anos depois que era ele”, lembra. “Os militares achavam que a nossa luta era só por infra-estrutura. Não desconfiavam, mas tinha muita gente consciente e politizada que discutia questões ideológicas nas favelas”, finaliza.


Cada vez mais cedo, há meninos entrando para o tráfico. Às vezes, é preciso enfrentar o movimento e negociar a demissão do filho, como fez Solange.

Na boca do lobo Bete Silva, do Complexo do Alemão | 10/05/2002 Foto: Rodrigues Moura

Ser mãe em comunidade de baixa renda é, muitas vezes, padecer no inferno. Diante do medo constante de ver seus filhos seduzidos pelos salários fartos do movimento (o tráfico de drogas), elas vivem com medo do pior. E, quando o pior acontece, sabem que precisam entrar de corpo e alma na batalha se quiserem resgatar seus filhos. Em casos extremos, chegam a subir até a boca-de-fumo para chamar o filho de volta para casa. Aconteceu com Solange Santos de Freitas, 41 anos. Nascida e criada no Complexo do Alemão, Solange é mãe solteira. Tem cinco filhos, com idades entre 2 e 18 anos. Entre eles, Igor, o “homenzinho da casa”, hoje com 14 anos. Arrimo de família, Igor passou a ser motivo de preocupação para a mãe ao ser recrutado como mão-de-obra do movimento no Alemão.

227


228

Notícias da Favela

A mãe já desconfiava de algo, quando um dia chegou do trabalho tarde da noite e não encontrou o filho, então com 10 anos. Ficou preocupada. Igor deixara as irmãs pequenas com qualquer um. Solange esperou. Por horas. Até que decidiu ir atrás dele. Era madrugada, o medo bateu forte. “Seja o que Deus quiser. Vou botar Ele na frente, e Ele vai mostrar onde está”, disse para si mesma. Dito e feito. Solange rodou toda a Grota, e subiu. Lá no alto, no meio de uma turma, estava seu menino. Os rapazes armados, e Igor no meio. “Me deu um estado de nervo tão grande, que eu dei um grito. Eles até se assustaram”, lembra Solange. E perguntaram: “O que é isso, minha senhora?” “Só vim buscar meu filho. Não tenho nada contra vocês, mas não quero ele nesse meio”, amenizou. Teve sorte. Um deles tentou tranqüilizá-la: “Calma, tia, a senhora está nervosa”. Eles então conversaram, e um dos rapazes disse: “Leva, tia. Conversa com ele, que a gente depois vai conversar também”. A conversa não adiantou. Igor continuou no tráfico.

“Pai” das irmãs O pai de Igor abandonou a casa antes de o filho nascer. O menino só foi conhecê-lo aos 8 anos, quando ele apareceu para pedir desculpas. Solange fez as pazes, engravidou de novo. E novamente foi abandonada. As quatro irmãs “adotaram” Igor como pai. O único “hominho” começou a trabalhar cedo. Aos 6 anos, levantava às seis horas para vender pão. À tarde, estudava. “Com a pouca idadezinha dele, me ajudou muito. Sempre trabalhou, sempre foi uma boa criança”, diz a mãe, lembrando que Igor “jamais deixou faltar nada dentro de casa”. Quando a mãe ficava desempregada, sustentava a família. Mas, se estava com trabalho, Solange chegava muito tarde em casa. Ficava semanas sem ver o filho à noite. Com isso, demorou a perceber o que estava acontecendo.


229


230

Notícias da Favela

Rebeldia na escola Quando Igor começou a se envolver com o movimento, ficou ainda mais apegado. Entrava em casa correndo, gritando pela mãe. Ela respondia: “Que foi, meu filho?” E ele: “Nada não. Só vim ver se a senhora está bem”. E ia para a rua de novo. Mas, na escola, ficou rebelde. Aos 12 anos, largou os estudos. E não parava mais em casa – saía à noite e só voltava depois do amanhecer. Um dia, chegou em casa com o primeiro dinheiro “desse serviço deles”. Levou um sacolejão da mãe: “Prefiro morar debaixo da ponte, mas com vocês tudo vivo (sic), do que ter uma casa linda com você nesse meio”. Solange proibiu o filho de botar dinheiro do tráfico em casa. Igor ficou no movimento dos 10 aos 14 anos. Em janeiro, resolveu se mudar para a casa de uma tia, em Minas Gerais. “Mãe, é hoje que eu quero ir embora”, disse. Justamente no dia em que Solange não tinha nem R$ 0,10 para comprar um pedaço de pão para ele. “Saí por aí, pedindo para a família. Até que arrumei a passagem”. O bilhete foi comprado no mesmo dia. A roupa de Igor ainda estava molhada na corda. A mãe juntou tudo, secou uma no ferro para ele vestir. Foi só o tempo de tomar banho. Igor foi sozinho até a rodoviária. Naquele dia, estava fazendo 14 anos. “Ele já se matriculou na escola e diz que, depois de fazer o ginásio, vem para o Rio para fazer a faculdade”, conta, aliviada. Solange está juntando dinheiro para ver o filho. “Está faltando um pedaço de mim. Nunca me separei de nenhum deles”, explica, chorando. Sem emprego, espera conseguir trabalho logo, para segurar a barra até que seu “homenzinho” possa ajudar novamente em casa.


A segunda reportagem da série sobre o impacto do tráfico nos morros cariocas mostra como os bandidos expandiram seus negócios. Eles agora cobram por serviços como segurança e água.

Cada vez mais abusados Ana Cora Lima | 19/10/2004

Foto: Walter Mesquita

A relação dos traficantes com as favelas cariocas já não é mais a mesma. Com a prisão e a morte de líderes tradicionais, chefes cada vez mais jovens e sem vínculos com as comunidades assumem o comando. Eles já não respeitam os moradores como antes e resolveram ampliar seus “negócios” para aumentar os ganhos. Os bandidos agora cobram pedágios, privatizam a distribuição de água e aplicam taxas para “serviços de segurança”. Com medo, os moradores resistem como podem. O universitário Fábio,* 23 anos, mora desde que nasceu numa comunidade violenta da Baixada Fluminense. Ele conta que, até dois anos atrás, pequenos furtos sempre aconteciam em casas e lojas da área. Agora reina a tranqüilidade, graças a um “acordo”: moradores e comerciantes pagam uma mensalidade para um grupo que faz a “segurança” do lugar.

“Pagamos R$ 15, mas tem pessoas que dão menos porque não têm condições financeiras”, conta ele, que conhece alguns rapazes do serviço de “vigilância”. “Tem os do movimento mesmo, 231


232

Notícias da Favela

mas outros são vizinhos desempregados que resolveram aceitar o bico”, explica. Fábio e sua família nem pensam em não pagar. “Todo mundo tem medo de represálias e de nova onda de assaltos”, explica. O sociólogo Marcelo Burgos diz que os laços de amizade que uniam moradores e traficantes deram lugar ao medo nos últimos dez anos. “O bandido da localidade, muitas vezes considerado um benfeitor, já não existe. O que vemos hoje são grupos obcecados em expandir e manter as suas conquistas”, observa o professor de Sociologia Urbana da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

Tráfico privatiza água Numa favela da Zona Sul, os moradores pagam para ter água nas torneiras. Segundo a auxiliar de escritório Paula,* 26 anos, a cobrança é feita todo mês, via associação de moradores, que repassa a quantia para os traficantes. Quando ficou desempregada, era sua mãe quem bancava a despesa, com o salário mínimo da aposentadoria. “Nós deixávamos de comer carne para poder pagar a taxa de R$ 10 no final de cada mês”, reclama. Vários de seus vizinhos ficaram sem água por não fazerem o pagamento. “Se o morador não paga, os traficantes vão lá e fecham o registro. Só abrem após o acerto da dívida”, revela. Já o comerciante Manoel,* 42 anos, morador de uma comunidade da Zona Norte, viu-se acuado diante de um pedido feito por dois homens que chegaram numa moto. “Eles disseram que eram traficantes e que precisavam de dinheiro para libertar um bandido preso pela polícia”, lembra ele, que desconfiou e negou a colaboração. “Falei que iria ligar para um dos grandões do tráfico para conferir. Eles me xingaram, mas saíram na boa”, disse.


Matérias selecionadas

233

Depois, Manoel soube que outros comerciantes deram de R$ 70 a R$ 150 e, o que é pior, os tais bandidos eram mesmo do movimento. “Fiquei apavorado. Hoje eu pago e ponto final, porque esse é o preço para ter uma certa tranqüilidade de se viver ou de se trabalhar numa favela”, admite. *

Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.


Viciados em leitura, moradores de favelas cariocas inventam uma saída para ter livros sem gastar dinheiro: trocar títulos entre si.

Círculo das letras Guaraci Gonçalves, do Tuiuti, e Silvia Noronha, da Redação | 18/08/2004 Foto: Rodrigues Moura

Jorge, Jacira, Sérgio, Almerinda e Claudia formam um grupo diferente. Eles criaram um círculo de letras para manter o “vício” da leitura. Sempre que um consegue um livro – de maneira nem sempre convencional – empresta para o outro, que repassa ao próximo, e assim sucessivamente. Por essa roda de leitura passam de três a cinco títulos por mês. “Você melhora seu conhecimento de mundo, conhece outros países e outros costumes, tudo sem sair de casa”, argumenta um dos integrantes do grupo, o motorista de caminhão Jorge Rodrigues da Silva, 42 anos, ao explicar sua paixão. Morador do Tuiuti, em São Cristóvão, Zona Norte do Rio, ele conta que se “viciou” ainda na época da escola e nunca mais abandonou o hábito. Tem bons motivos para isso. Embora tenha cursado apenas até a 8ª série do Ensino Fundamental, Jorge fala com fluência sobre os mais diversos assuntos. Como consegue? Lendo sem parar. “Quem lê se torna um autodidata”, lembra.


235


236

Notícias da Favela

Resgatados no lixo Em casa, Jorge guarda seus quinze livros como se fossem um tesouro. Alguns foram comprados na Feira de São Cristóvão; outros, numa feira hippie. Em sebos do Centro, já conseguiu exemplares por R$ 0,50. Outros, ele confessa: achou no lixo. Uma de suas amigas é a dona-de-casa Jacira da Silva Chaves, 59 anos, que cursou até a 5ª série do Ensino Fundamental. Sua adoração por leitura pode ser medida pela quantidade de títulos que ela e a filha – que herdou o hábito da mãe – têm em casa: são quase duzentos. Um dos orgulhos de Jacira é emprestar um volume para os amigos, desde que “não se esqueçam de devolver”. O primo de Jacira, Sérgio, consegue muitos livros emprestados no trabalho e os repassa para a dona-de-casa e também para uma vizinha. Depois, cada volume é mandado para o morro do São Roque, também em São Cristóvão, onde a irmã e a sobrinha de Jacira o lêem. Assim, um único volume é lido por, no mínimo, seis pessoas. Quando bate a vontade de ler, o grupo se encanta com qualquer coisa. Jorge diz que basta ter letras impressas para despertar seu interesse, e conta que chegou a ler bula de remédio. Jorge já influenciou a filha Mariana, 7 anos, que acaba de aprender a ler. Já o estudante Rafael Nascimento da Encarnação, 19 anos, participa com cinco amigos de outro círculo informal de leitura. O grupo troca livros sempre que pinta uma oportunidade, numa roda em que já circularam mais de trinta títulos. No mesmo espírito, um movimento começou a se espalhar pelo mundo em 2001. Sua proposta é incentivar as pessoas a “libertarem” livros esquecidos em casa. Basta registrar o exemplar no site www.bookcrossing.com e “libertá-lo” ao acaso na rua.


Moradores da Cidade de Deus desenvolvem códigos, como evitar óculos escuros e camisa social estampada, para driblar duras da polícia.

A dureza da dura Carlos Collier | 18/03/2003 Foto: Tony Barros

No confronto entre a polícia e o tráfico, quem mais sofre são os moradores de favela. O medo de ser confundido com alguém do movimento é tão grande, que muitos vêm incorporando à rotina táticas para escapar das freqüentes batidas policiais. Na Cidade de Deus, Zona Oeste carioca, o medo já levou os moradores a criar uma espécie de código para se proteger das duras. Há várias recomendações para quem não quer ser confundido com “a malandragem”. Um trabalhador nunca deve ficar parado numa esquina, no meio da tarde, por exemplo. Também não deve usar pochete. Óculos escuros, somente na praia. E cabelo pintado de louro – a menos que seja um cantor de pagode famoso –, camisa social estampada e corrente de ouro no pescoço também estão proibidos. Andar com muito gingado à noite, agitando os braços e conversando alto, é dura na certa. 237


238

Notícias da Favela

Pela lógica policial, explicam os moradores, ninguém que tenha passado o dia trabalhando pesado pode ter tanta energia nesse horário. Pode parecer exagero, mas quem vive em favela acredita que todo cuidado é pouco. “A polícia acha que nós protegemos os traficantes. Só que, se a gente abre a boca, na mesma hora somos mortos”, diz um morador. O horário mais tenso é entre 7h e 12h, quando os traficantes estão dormindo e a polícia aproveita para agir. Segundo os moradores, famílias inteiras costumam ser acordadas com chutes que derrubam suas portas. Ali, a farda é associada com freqüência à extorsão e agressividade. Para saber mais sobre a política adotada nessas batidas, o Viva Favela tentou falar várias vezes com o comandante do 18º Batalhão da PM, mas ele não retornou.


Matérias selecionadas

239

Ao entrar na favela, dizem ainda os moradores, a PM não faz diferença no tratamento que dá a criminosos ou a trabalhadores. O mototaxista Raul,* 26 anos, conta que foi parado uma vez a caminho de casa:“Eles perguntavam onde estava o pó. Desceram armados e me revistaram. Depois me deram um tapa, mandaram logo eu deitar no chão. A sorte foi que um deles me reconheceu da firma onde faço uns bicos como segurança”, conta. À frente do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio, o coronel Jorge da Silva diz que a violência policial “é resultado de uma sociedade hierarquizada e preconceituosa, que faz com que as pessoas sejam avaliadas de acordo com a classe social e a cor da pele”. * Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.


A esterilização, praticamente irreversível, é um dos métodos mais populares no Brasil. Cerca de 15% das mulheres que optam por ela se arrependem.

Escolha radical Mariana Leal | 11/04/2005 Foto: Walter Mesquita

A laqueadura (ou ligamento) de trompas, que provoca a esterilização da mulher, é um dos métodos mais populares para evitar filhos no Brasil. A partir dos anos 60, começou a ser usada indiscriminadamente por brasileiras que não queriam mais engravidar. Mas só em 1996 foi regulamentada pelo governo e passou a ser oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A meta oficial agora é ampliar a oferta na rede pública. A regulamentação foi fundamental para obrigar mulheres muito jovens a pensar duas vezes. Como Angélica Oliveira da Silva, 21 anos, grávida de seis meses de seu quarto filho e moradora da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. “Na consulta do pré-natal, perguntei se podia ligar e a médica me disse que eu estava muito nova”, conta ela. Por lei, para fazer a laqueadura, é preciso ter pelo menos 25 anos ou dois filhos vivos. A decisão final é do médico, com base nos argumentos da paciente. O SUS só cadastra hospitais que deixem claro para a mulher que a cirurgia é praticamente irreversível.

240


241


242

Notícias da Favela

Em 2004, foram 38.276 laqueaduras na rede pública, contra 2.533 em 1999. A procura tem sido maior do que a oferta. Somente 25,8% das mulheres conseguem fazer a cirurgia. Não por acaso, “ela ainda é usada como moeda de troca em eleições”, como lembra a médica Cláudia Bonan.

Chorinho de bebê Cerca de 15% das mulheres que conseguem fazer a cirurgia, porém, arrependem-se. “Quanto mais jovens, maior o arrependimento”, diz o médico Marco Aurélio de Oliveira, que realiza micro cirurgias que tornam a maternidade novamente possível para mulheres esterilizadas. A técnica devolveu a felicidade a Mônica Soares, 29 anos, moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “Tive minha primeira filha aos 17 anos e a segunda aos 23. Só que ela faleceu aos dois anos de idade”, lembra Mônica. Ela ligou as trompas logo após o nascimento da segunda filha. Aos 25 anos estava esterilizada, traumatizada pela perda e desejando ter filhos novamente. “Não me conformava em não ter mais em casa aquele chorinho de bebê”, conta. Teve sorte. Engravidou de Vinícius, seu primeiro menino, um ano depois da cirurgia. Na década de 60, para conter o crescimento da população brasileira, “entidades privadas e beneficentes, financiadas por organismos internacionais, promoveram a esterilização sistemática de milhares de mulheres”, conta Cláudia Bonan. Só a partir da década de 70, os movimentos de mulheres e negros começaram a denunciar essas esterilizações abusivas, que usavam critérios discriminatórios de classe e raça. Em 1988, a Constituição finalmente definiu que o planejamento familiar é uma escolha do casal e que o Estado tem a obrigação de garantir as condições para o exercício desse direito.


No Poço do Caboclo, no alto do Complexo do Alemão, água é artigo de luxo. É preciso ter dinheiro para puxar cano até em casa.

Essencial inacessível Marta Oliveira, do Complexo do Alemão, e Vilma Homero, da Redação | 17/03/2005 Foto: Rodrigues Moura

Os grandes centros urbanos deverão sofrer com a falta de água no futuro. Mas, para muitos moradores de favelas do Rio, essa é uma realidade antiga. Na comunidade de Poço do Caboclo, por exemplo, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, ter água na torneira é questão de sorte e dinheiro. A desempregada Maria José Silva, 36 anos, pertence a uma das trinta famílias (de um total de duzentas) que convivem com a falta de água encanada. Em seus doze anos de comunidade ela vem sendo obrigada a se abastecer na casa de uma vizinha, a cerca de cinqüenta metros de onde mora. A explicação é simples: a rede de abastecimento, implantada em 1982, no primeiro governo Brizola, faz um caminho único. Da

243


244


Matérias selecionadas

245

caixa, colocada no alto do morro, a tubulação desce direto para a comunidade dos Mineiros, onde moram cerca de 3.100 famílias. Na época, a associação de moradores fez uma vaquinha para estender o abastecimento até o Poço do Caboclo. Mas nem todo mundo teve como contribuir para a compra dos canos. Até hoje, só tem água quem entrou na vaquinha. “Uma casa pode ter e o vizinho do lado não. É obrigado a se virar, cavar poço, aproveitar as minas d’água”, explica Adão de Oliveira Nunes, 50 anos, vice-presidente da Associação de Moradores dos Mineiros, que também cuida do Poço do Caboclo e da Matinha, favelas vizinhas. Por sorte, há várias nascentes na região. O morador também pode puxar uma tubulação da rede principal até a própria casa. Mas para quem vive de salário mínimo, que é quanto ganha o marido de Maria José, é uma obra difícil. Por suas contas, ela teria de gastar umas quinze varas de canos, fora outros materiais. Está longe de ter dinheiro para isso. Mesmo assim, sonha com o dia em que terá água na torneira. Morador há 31 anos do local, Edmilson Silva, 57 anos, lembra de como era a vida quando chegou ali: “Ninguém tinha água encanada e o poço era utilizado para tudo: beber, cozinhar, tomar banho”. Três décadas depois, a situação permanece a mesma para muita gente.


A favela do Dique, em Caxias, tem realidades tão distintas, que se divide em duas. Numa, há saneamento básico, asfalto e escola. Na outra, falta tudo. Uma casa no lado nobre pode custar dez vezes mais.

Uma favela partida Keliane Muniz, de Duque de Caxias | 20/09/2001 Foto: Deise Lane

No bairro de Gramacho, em Duque de Caxias, uma única favela abriga realidades tão opostas, que foi obrigada a se separar em duas: Dique I e Dique II. O contraste salta aos olhos de quem visita as comunidades. Quem mora na carente Dique I não tem escola, saneamento básico, pavimentação ou coleta de lixo. Já quem vive na Dique II, a zona “rica” do pedaço, vive em casas confortáveis, com paredes de tijolos e todos os serviços de uma área urbanizada. Resultado: os moradores de Dique I vivem sonhando em passar para o outro lado do rio Sarapuí, que separa as duas favelas. O aposentado José Rocha, 62 anos, não pensa em outra coisa. “Minha esposa faleceu sem realizar seu sonho. Sempre quisemos morar na Dique II”, diz o viúvo. Sua casa não vale mais do que R$ 1.500. Já na Dique II, uma casa simples custa uns R$ 15.000. “De onde vou tirar o restante para comprá-la?”, indaga. Para passar de um lado para outro, é preciso caminhar pela beira da linha do trem. Em Dique II, o cenário muda completamente.

246


Matérias selecionadas

247

Enquanto na comunidade mais carente as crianças improvisam brincadeiras com o que encontram no chão e jogam pelada num campo precário, as do lado urbanizado contam com uma praça equipada com quadra de esportes e brinquedos. Na pobre Dique I, os 4.220 moradores andam um quilômetro e meio para conseguir água limpa, e uns três quilômetros para achar um telefone público. A miséria é tanta, que as cinqüenta crianças que nasceram em casa ainda estão sem registro. A diferença entre as duas comunidades começou em 1997, quando a Associação de Moradores da Dique II conseguiu ter suas reivindicações atendidas pelo governo. “Como a Dique I estava sem liderança, ficou sem as obras”, explica Edílson Santos, presidente da associação de moradores, que há um ano representa as duas comunidades. O rio Sarapuí virou depósito de esgoto e lixo. A feirante Tereza Oliveira da Silva, 65 anos, moradora da Dique I, diz que tem tanto mosquito depois das cinco da tarde, que é impossível ficar na rua. Ela tem motivos para se arrepender. Depois de 28 anos em Dique II, mudou-se há 12 para Dique I. Não podia adivinhar o que viria depois. “Hoje, a diferença entre as duas comunidades é tanta, que parece até que Deus não passou por aqui”, observa.


Alunos da Cidade de Deus estão aprendendo a própria realidade na escola. Eles estudam temas como fome, migração, hip-hop e geografia local.

Favela no quadro-negro Dayse Lara, da Cidade de Deus, | 09/09/2003 e Vilma Homero, da Redação Foto: Tony Barros

A favela virou tema de sala de aula na Cidade de Deus. Lá, várias escolas estão usando a realidade como fonte de consulta para trabalhos pedagógicos. O resultado é nota dez: o desempenho dos alunos está cada vez melhor. Para o grupo de educadores que está investindo na idéia, a saída não está em esconder o ambiente em que os estudantes vivem – mas colocá-lo em foco. Com isso, reverteram o desinteresse em sala de aula e elevaram a auto-estima dos jovens. A direção da Escola Municipal Alberto Rangel, por exemplo, inspirou-se na realidade da favela para planejar suas atividades. Entre elas, um levantamento das áreas da Cidade de Deus,


Matérias selecionadas

249

feito para a aula de Geografia. Até a aula de dança entrou na roda, abrindo espaço para o funk. Para resgatar a identidade do estudante no seu contexto familiar, um dos trabalhos estimulou a criação de uma árvore genealógica. E obrigou os meninos a buscar as informações em casa. Boa parte não conseguiu os dados, porque seus pais pouco sabem de suas raízes. Mas, no geral, o resultado surpreendeu. A fome se destacou como um dos temas que mais mobilizaram a escola. Um grupo fotografou o desperdício na comunidade e usou as fotos para ilustrar um debate. “Queremos que eles reflitam sobre o que pode ser feito para mudar esse comportamento e desenvolvam uma visão crítica”, diz a orientadora pedagógica Vanderléia de Oliveira Corrêa, 37 anos. Iniciativa parecida vem tendo a Escola Municipal Frederico Eyer, onde a realidade da favela é discutida desde 1998, quando os estudantes produziram uma página de jornal com a história do bairro. A partir daí, a direção decidiu pesquisar as origens da Cidade de Deus. Para isso, mobilizou alunos, pais e professores. Ao ouvir os mais antigos contarem as histórias da favela, os próprios professores descobriram a formação da Cidade de Deus – comunidade que tem origem na remoção de moradores de favelas da Zona Sul para uma desabitada Zona Oeste, na década de 60. “Trocava-se um lugar onde havia infra-estrutura e trabalho por outro onde tudo era difícil”, conta a coordenadora pedagógica Maria Emília Cunha. Montar este quebra-cabeça, segundo ela, ajudou a estreitar a ligação entre alunos e professores. “Quem entende sua história tem mais condições de pensar o presente e de se preparar para o futuro. Com esse resgate, formamos cidadãos mais críticos”, acredita.


Família muda de Vigário para Queimados após chacina de 1993 e acaba assistindo a uma reprise indesejada.

O filme se repete Cristian Ferraz, da Baixada* | 05/04/2005 Foto: Walter Mesquita

“Vai começar tudo de novo?” A pergunta veio à mente de João** na quinta-feira, 31, assim que ele percebeu que os tiros que ouvira faziam parte de uma seqüência. Seu medo foi logo confirmado. Naquela noite, trinta pessoas foram mortas na Baixada Fluminense. Era a segunda vez, em seus 26 anos de vida, que João vivenciava uma chacina. Em 1993, ele morava na favela de Vigário Geral, no Rio, quando 21 moradores foram executados em suas casas por policiais militares. A chacina de Vigário Geral levou a doméstica Lucia,** mãe de João, a pegar os quatro filhos e abandonar a favela. Em busca de tranqüilidade, mudaram-se para a Baixada. Estão em Queimados – cidade que protagonizou a chacina junto com Nova Iguaçu – há cinco anos. * Colaborou: Tetê Oliveira ** Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

250


NotĂ­cias da Favela


252

Notícias da Favela

Lúcia morou vinte anos em Vigário e conta que na Baixada presenciou alguns casos violentos. Mas “eram coisas isoladas”. Nada parecido com o que tinha visto antes. E assim foi até a quinta-feira. “Ouvi os primeiros disparos por volta das dez da noite, e parei onde estava. Quando ouvi outras rajadas, encostei na parede e aguardei”, conta João, que na hora passeava pelas redondezas. Uma das grandes diferenças entre Vigário e Queimados, observa o jovem, é a reação dos moradores. “As pessoas correram para os portões. Em Vigário, todo mundo corre para dentro de casa”, explica. Minutos depois, todos já sabiam que várias pessoas foram executadas nas proximidades. Cada um que chegava ampliava a extensão da tragédia. Um roteiro que a família de João já conhecia. “O filme se repetia”, diz o rapaz. Mas Lúcia acha que dessa vez foi pior. “Aqui as pessoas são mais próximas”, diz a doméstica, que conhecia algumas das vítimas. Entre elas, um homem que deixou três filhos. “Soube que um deles dormiu abraçado à roupa do pai. É muito triste”, emociona-se. João também voltou no tempo: “Morava em Vigário desde os três anos e quando tinha 13 aconteceu a chacina. Estava acostumado com as invasões, os tiroteios, mas aquilo foi horrível”. Sua casa ficava a quinhentos metros do local. “Fiquei com muito medo”, admite. Para o rapaz, a diferença de se viver na favela “é que lá sabemos onde estão os bandidos e eles não mexem com as famílias”. Na Baixada, “não sabemos quem é quem”.


253

Bombeiro de Parada Angélica cria “moeda ambiental” para acesso a clube, ateliê de artesanato e biblioteca com três mil livros.

Ingresso ecológico Julia Duque Estrada | 02/09/2004 Foto: Walter Mesquita

Na favela de Parada Angélica, em Vila Iraci, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, as crianças já sabem exatamente o valor da preservação ambiental. Lá, cair na piscina, soltar pipa, jogar totó e sinuca são atividades pagas com uma moeda diferente: unidades de garrafas PET. Cada diversão tem um custo específico, que os meninos conhecem de cor. A idéia saiu da cabeça do bombeiro-hidráulico Valmir do Amor Divino Santana, 37 anos, morador que vem realizando pequenos milagres na comunidade. Entre eles, criar uma biblioteca dentro de um contêiner. “As crianças e os jovens viviam me pedindo lápis, caderno, dinheiro para bala ou para sair. Eu ficava triste porque não tinha como ajudar”, explica o baiano Valmir. Até que veio a idéia de


254

Notícias da Favela

montar um projeto social, ambiental e econômico a partir da reciclagem. Para Valmir, usar as garrafas como moeda atinge vários objetivos: ajuda a arrecadar matéria-prima para o projeto, estimula as crianças a participar e ainda oferece uma alternativa de lazer. As oficinas de artesanato que usam PET como matéria-prima acontecem na varanda da casa de Valmir. Os jovens aprendem a fazer vassouras, porta-retratos, caixinhas, móveis e diversos utensílios de plástico. As meninas trabalham nos adereços – arranjo de flores, porta-cartão – e os meninos confeccionam os móveis. “Eles ficam com a parte bruta”, brinca o baiano. Os preços dos produtos variam de R$ 5 – uma vassoura – a R$ 250 – um sofá de dois lugares. Em outro terreno, três pessoas trabalham na prensagem de garrafas que serão vendidas ou usadas no artesanato. O material coletado vem de doações, da moeda de troca das crianças ou é comprado de catadores. “Indiretamente, o projeto envolve toda a comunidade”, diz Valmir. A venda do material prensado banca grande parte das ações. Para colocar seus objetivos em prática, o baiano mobilizou um grupo de amigos. Eles apostam na reciclagem para ampliar os horizontes de doze jovens. Já a biblioteca, que começou com cinqüenta livros achados no lixo por uma catadora analfabeta, conta hoje com cerca de três mil exemplares. O contêiner deveria abrigar ações de educação ambiental do PDBG (Programa de Despoluição da Baía de Guanabara), mas, como estava abandonado, Valmir resolveu lhe dar um destino melhor.


Os funkeiros não se dividem apenas em lado A e lado B – seguindo facções do tráfico. Os “soldados da paz” cantam músicas contra a violência e impedem brigas nos bailes.

O lado C do funk Anna Carolina Miguel, da Zona Oeste | 16/11/2001 Foto: Walter Mesquita

A violência dos bailes funk não é mais a mesma. Na Zona Oeste do Rio, ex-integrantes de galeras rivais dos “bondes do mal” são agora “soldados da paz”. Ao invés de participar das violentas brigas nos bailes de corredor – em que os jovens se dividem em “lado A” e “lado B”, conforme a facção do tráfico em suas comunidades –, eles agora cantam músicas com mensagens do bem. As músicas são produzidas em parceria entre MC’s (mestres de cerimônia) e integrantes das galeras, e divulgadas pelas rádios comunitárias. Já existem mais de quarenta “bondes do bem”. Eles formam uma espécie de “lado C” do funk. E fazem o maior sucesso. “Na primeira vez, pensamos que seríamos vaiados, pois a galera parou de pular e ficou ouvindo. Só depois do segundo refrão percebemos a vibração de todos”, diz Rodrigo, 16 anos, do Bonde dos Napolitanos, com quinze integrantes. Eles acreditam que as músicas de paz “fazem os jovens refletirem”.


256

NotĂ­cias da Favela


Matérias selecionadas

257

Muitos mudaram de discurso ao perceberem que a violência acaba levando ao fechamento dos bailes, inviabilizando sua única forma de diversão. “Se não levarmos uma mensagem de basta, até quando tudo isso continuará?”, pergunta Junior, 15 anos, do Bonde dos Gatinhos, que já perdeu um amigo numa briga de baile.

R$ 50 por produção Segundo os MC’s Geléia e Andinho, os integrantes dos “bondes do mal” só aceitaram mudar de lado depois de muita conversa. A participação de rádios comunitárias também foi fundamental, ao abrir espaço para a divulgação das músicas. Os DJ’s completaram o trabalho, ao ajudá-los na produção e divulgação. “O movimento dos ‘bondes’ cresce aceleradamente. Mas falta empresário e apoio financeiro, o que é um grande problema para os jovens talentosos e carentes”, diz o DJ Jorginho Matarazzo, 25 anos, que produz músicas para a galera. Cobra o mínimo por produção musical – R$ 50. Cada grupo quer levar o público a se identificar com sua forma de pensar e agir. O Bonde das Pedritas, por exemplo, formado por adolescentes, tem ares feministas. E revela um lado das funkeiras bem diferente das “tchutchucas” do Bonde do Tigrão. Elas cantam: “Mulher de verdade não aceita ser chamada de cachorra nem leva tapa de ninguém”.


Trocada por uma garrafa de cachaça, dona Maria virou escrava numa mansão de Ipanema. Foi salva por uma prostituta do Cantagalo, que a levou para morar na favela.

Da mansão ao morro Rita de Cássia, do Cantagalo | 13/08/2004 Foto: Deise Lane

Dona Maria Luzia Belizário de Carvalho tinha perto de 83 anos quando convocou toda a família para o Natal de 2003. Parecia estar pressentindo que a festa seria o seu derradeiro momento de alegria. Eu havia conversado com ela meses antes, em sua casa. Lúcida e bem-humorada, dona Maria me contou os momentos mais marcantes de sua vida. Carioca de Pirapitinga, na divisa com Minas Gerais, dona Maria chegou ao Rio de Janeiro ainda adolescente, depois de ser “vendida” pelo pai, por volta de 1935. Não tinha um tostão no bolso, nem documento ou certidão (sua idade é estimada com base no nascimento da filha mais velha – a primeira de seis). “Meu pai bebia muito e me trocou por uma garrafa de cachaça. Acho que eu tinha uns dezesseis anos. A casa dos meus pais

258


Matérias selecionadas

259

ficava numa fazenda. A condição de morar ali era trabalhar para o fazendeiro. É como se a gente devesse um favor eterno por estar nas suas terras. Nossa rotina era capinar, candiar boi, plantar arroz, café, feijão. Mas bastava pegar um balde de leite para o patrão reclamar. Quando eu vim para o Rio, minha mãe chorou muito. Nessa época, os maridos é que mandavam em casa. Saí de trem às nove horas da manhã e cheguei às nove horas da noite. Chorei a viagem inteira”. Ao chegar, dona Maria foi direto para a mansão dos patrões, na rua Prudente de Moraes, em Ipanema, na praça General Osório: “Estava morrendo de fome, mas só me deram um pouco de comida e, na hora de dormir, me mandaram para o sótão, onde ficavam os cachorros. Nem banho me ofereceram. Eu era arrumadeira, passadeira, cozinheira. Trabalhava sozinha. Minha rotina ia das cinco horas da manhã às onze horas da noite, sem folga no final de semana. Não recebia nada por isso. Eles diziam que mandavam o dinheiro para a minha família”. O encontro com uma mulher, enquanto fazia compras na feira da praça, mudaria para sempre sua vida: “O apelido dela era Katitu. Ela morava aqui no Cantagalo. Contei tudo sobre a minha vida, desabafei”. Revoltada com a história, Katitu convidou Maria para ser sua hóspede. E ainda bolou um esquema de fuga. “Foi o tempo de voltar em casa, pegar uma trouxinha de roupa e fugir. Ela estava lá me esperando e, assim, conheci o Cantagalo, onde vivi mais de sessenta anos. A favela estava ainda no começo, se tinha três ou quatro barracos era muito. Fiquei muito feliz com a mudança. As casas de barro lembravam minha terra e, como não tinha rádio nem televisão, a distração era a ‘conversa de porta’. Assim que cheguei, ela foi me apresentando: ‘Estou trazendo essa menina para criar e não quero que ninguém toque nela’. Depois de muito tempo, descobri que ela era prostituta, mas só saía com homem da rua, porque dizia que no morro ela queria muito respeito”.


260


MatĂŠrias selecionadas

261


Mães que não podem pagar babás e vizinhas em busca de trabalho inventam as creches caseiras. Elas buscam as crianças no colégio, dão banho, comida e muito carinho.

Minha adorável babá Cláudio Pereira, do Complexo da Maré, e Verônica Fraga, da Redação | 13/12/2002 Foto: Deise Lane

Descobrir com quem deixar os filhos pequenos durante o expediente é um drama para os pais de baixa renda que trabalham fora. Dinheiro para contratar babá é um sonho impossível. Na falta de alternativas, as crianças acabam ficando mesmo é sozinhas. Quando muito, vão para a casa de vizinhos que se oferecem para tomar conta. Nas favelas, porém, não raro a criatividade transforma problema em solução. Assim, o desemprego de uns gerou uma saída para outros: as creches caseiras. No Complexo da Maré, na Zona Norte, moradoras resolveram investir nessa fatia de mercado e estão se oferecendo para tomar conta dos filhos de mulheres que trabalham fora. As “mães de aluguel” buscam as crianças no colégio, dão banho, comida e remédios. Uma tranqüilidade para os pais. 262


Matérias selecionadas

263

“Como trabalho ao lado, me sinto segura. Posso levar frutas e outras coisas para minha filha durante o dia”, diz a auxiliar administrativa Ana Paula da Silva, mãe de Aryane da Silva Cazubá, 4 anos, que passa o dia na creche informal da promotora de vendas Eliane Oliveira de Castro. A promotora montou uma pequena creche em sua casa de dois andares, na Nova Holanda. Junto com a irmã, Eliane cuida de dez crianças. O dinheiro cobre as despesas da casa e da filha única Amanda Oliveira Santos de Castro, 17 anos, que quer ser pediatra e ganhou um computador e a chance de fazer um curso de inglês. Já na creche Sossego da Mamãe, criada pela dupla Lígia Ferreira e Hosana de Souza, as crianças ficam num apartamento no andar de cima do prédio onde moram. “Pagamos R$ 200 de aluguel por mês e cobramos entre R$ 15 e R$ 80, dependendo do tempo que a criança fica conosco. Ainda tomamos conta de crianças do prédio, muitas vezes sem cobrar”, conta Lígia. Lígia e Hosana foram capacitadas pelo projeto Mãe Crecheira, da prefeitura, que desde 1993 prepara mulheres de comunidades pobres. Lá, elas aprendem a confeccionar brinquedos pedagógicos e desenvolver atividades educativas. O trabalho não é novo na comunidade. A mineira Onélia Cardoso de Souza, 54 anos, passou metade da vida cuidando dos filhos de outros. Nem sempre recebeu, mas vivia rodeada de crianças. Com o pagamento comprava apenas o necessário para se alimentar. Onélia hoje cuida de uma criança abandonada. “A mãe pediu para que eu ficasse com o menino e nunca mais voltou. Adotei-o como filho”. Faz parte do ofício.


264

NotĂ­cias da Favela


265


Gordura usada na Maré por moradores e comerciantes está deixando de poluir a baía de Guanabara para ser reaproveitada por indústria. Iniciativa é de Jossuel de Souza.

Rir sobre o óleo derramado Begha Lindemberg, do Complexo da Maré, e Vilma Homero, da Redação | 26/05/2005 Foto: Deise Lane

O destino da gordura usada em frituras de várias casas e restaurantes do Complexo da Maré mudou. Ao invés de simplesmente despejar o óleo usado no ralo, muitos moradores estão descobrindo o benefício de dar um outro fim a esses restos, que agora vão para as mãos de uma indústria de limpeza. Com isso, todo mundo sai ganhando. Além de reduzir os problemas com entupimento de caixas de esgoto, os moradores ainda recebem alimentos em troca dos restos de óleo. Por tabela, ganha também a poluída baía de Guanabara, onde todos esses resíduos costumam parar. “Para o comércio – já contamos com restaurantes que geram duzentos litros por quinzena –, o retorno será em produtos de limpeza, como caixas de detergente e panos de chão”, diz Jossuel

266


267


268

Notícias da Favela

Leandro de Souza, um carioca de 31 anos, nascido e criado na Vila do Pinheiro. A gordura que sai das casas e restaurantes é recolhida em recipientes espalhados pela Vila do Pinheiro, Praia de Ramos e Roquete Pinto e depois armazenada, por enquanto, na casa de Jossuel. É ali que a empresa – uma intermediária que revende o material para a fábrica União Fabril – manda buscar as bombonas todo mês. Entre a Praia de Ramos e a Vila do Pinheiro, ambas na Maré, Zona Norte do Rio, duzentas famílias já aderiram. Só no entorno do Piscinão de Ramos, são quarenta recipientes destinados a recolher a gordura usada. É de Jossuel a iniciativa, levada adiante em parceria com a Associação de Moradores da Praia de Ramos. “Em apenas um mês, o recolhimento dos restos de óleo gerou quatro empregos para o pessoal daqui”, anima-se. A estimativa é de que nas próximas coletas o volume de óleo chegue a quatro mil litros por mês. Cada litro é vendido a R$ 0,40. Quando chega à indústria, serve como matéria-prima para a produção de sabão. O dinheiro será todo dividido: as famílias que contribuíram vão receber alimentos, a associação de moradores, material de escritório, e o pessoal da coleta, uma diária de R$ 20. O que sobrar ficará para Jossuel. Supervisor de um projeto da Secretaria Estadual de Meio Ambiente na Maré desde 2004, Jossuel percebeu que o óleo doméstico era jogado ali direto nos esgotos, provocando entupimento. A idéia de coletar as sobras surgiu quando ele viu alguém fazendo o mesmo num restaurante no asfalto – onde os pontos de coleta são disputados por intermediários. Na favela, porém, a iniciativa ainda é única. Adeir Laurindo da Silva, 51 anos, que vende frango, peixe e batata frita, sempre teve uma sobra de gordura enorme: “Eu despejava num saco e deixava para o lixeiro”. Agora, o que ia para o lixo vai render produtos de limpeza.


Enquanto antigos moradores da Rocinha brigam para preservar área reflorestada, outros derrubam barreiras de cabos de aço para erguer seus barracos.

Só a Rocinha segura a Rocinha Carlos Costa, da Rocinha | 04/07/2001 Foto: Nando Dias

Favela é sinônimo de devastação, construções irregulares e deslizamentos? Nem sempre. Na Rocinha, o plantio de quase 23 mil mudas de espécies da Mata Atlântica semeou um símbolo de resistência contra a degradação ambiental. Batizado de “Mutirão Reflorestamento”, o projeto começou há cinco anos, tem apenas 12,5 hectares, mas seus resultados já são visíveis na encosta do morro Dois Irmãos. Já o projeto “Preservando o verde do Rio”, que cercou com grossos cabos de aço uma área de alto risco debruçada sobre o bairro de São Conrado, não obteve sucesso. Mesmo isolada, a área foi invadida e já conta com quinze barracos. Prova de que só a Rocinha segura a Rocinha. Luiz da Graça, 62 anos, coordenador do projeto de reflorestamento, conta que o trabalho foi didático. Ensinou aos moradores a importância da preservação do solo, das encostas e, acima 269




272

Notícias da Favela

de tudo, da Mata Atlântica, que forma um cinturão em torno da Rocinha. A iniciativa da Secretaria Municipal de Meio Ambiente conquistou a comunidade ao contratar mão-de-obra local. A área tinha o maior índice de acidentes por deslizamentos de terra da favela. Hoje virou uma espécie de reserva florestal. “Se a gente não tomar conta, volta toda a destruição”, diz o pernambucano Pedro Celestino Gomes, 73 anos, morador da Rocinha há 52.

Barreira humana Gomes e seus vizinhos são uma barreira mil vezes mais eficaz do que as cercas de aço colocadas pela prefeitura na altura da entrada principal da Rocinha. A barreira abrange a Roupa Suja, a Dionéia e a Vila Verde – três áreas que sofrem imensa pressão, mal os técnicos viram as costas. Na Roupa Suja, já há mais de quinze barracos. Eles “simplesmente amanhecem” na área. “Nem mesmo as batidas do martelo a gente ouve, nem luz eles colocam para não chamar a atenção”, diz uma moradora. Entre os invasores, gente que quer se livrar dos aluguéis, desempregados e jovens recém-casados. “A gente morava aqui mesmo na Rocinha, com uma tia da minha mulher. Mas, como ela engravidou, a gente tem que ter onde morar”, diz A.C.S., 17 anos. Carregador de feiras, ele armou seu barraco com folhas de compensado. Investiu boa parte dos R$ 80 que fatura por semana. Na Rocinha, onde já existem vinte mil domicílios, as casas são feitas sem habite-se (documento que atesta a legalidade do imóvel), na base da habilidade. O analfabeto José da Silva, 53 anos, já construiu mais de sessenta casas. Constrói sob encostas e sobre pedras, precipícios, valas e escadarias. Chega a faturar R$ 7.000 por mês.


Grupo de teatro da Vila Cruzeiro adapta tragédias do século XVI para a realidade atual das favelas cariocas. A disputa entre Capuletos e Montéquios é substituída pelo conflito entre facções.

Shakespeare na laje La Toy Jetson, do Complexo da Penha, e Tetê Oliveira, da Redação | 29/11/2005 Foto: Rodrigues Moura

As histórias de personagens como Romeu e Julieta, Otelo, Macbeth e Iago, criados por William Shakespeare no século XVI, cabem perfeitamente nas favelas cariocas do século XXI. Basta ver a adaptação da obra do dramaturgo feita pelo Teatro da Laje, grupo formado por jovens da Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, Zona Norte do Rio. Em 2006, o trabalho deve chegar às lonas culturais de Vista Alegre e Santa Cruz. “No cotidiano da comunidade, existem temas com um paralelo perfeito na dramaturgia de Shakespeare. Esses jovens têm condições como poucos de se aproximar de aspectos da obra dele – o

273


274


Matérias selecionadas

275

bárbaro, o atroz, o sombrio –, que caracterizam seu lado original”, diz o pernambucano Antônio Veríssimo, coordenador do grupo. Há ainda um outro paralelo em relação ao teatro de Shakespeare, que sofria na época o mesmo preconceito dos bailes funk atuais, na avaliação de Veríssimo. “Líderes puritanos pediam o fechamento dos teatros, que eram tidos como antros de tudo o que não prestava. Shakespeare era a Tati Quebra-Barraco da época”, compara. Criado em janeiro de 2003, o Teatro da Laje surgiu a partir das aulas de artes cênicas de Veríssimo na Escola Municipal Leonor Coelho Pereira. Apaixonado pela obra do dramaturgo inglês, o professor contava as histórias de Shakespeare para os alunos. O interesse dos jovens levou à criação do grupo, que hoje reúne 25 rapazes e moças, entre 12 e 18 anos. O nome do grupo não é casual: “As lajes celebram uma verdadeira instituição das favelas, usadas para a integração social e também para o trabalho”, lembra o professor. Nelas, foram feitos os primeiros ensaios do Teatro da Laje. O texto “Montéquios, Capuletos e nós” nasceu da decisão do grupo de investir em adaptações das tragédias shakespearianas para a realidade da favela. E é fruto de uma visão coletiva do clássico Romeu e Julieta, segundo a qual a briga entre as famílias Montéquios e Capuletos é substituída pelo conflito entre as facções rivais do tráfico. “Alguns vêem essa obra de Shakesperare como uma love story sentimentalóide. Outros defendem que é fundamental o seu aspecto político, de luta pelo poder”, diz o professor, ex-morador de um bairro da periferia carioca.


Dos anos 40 aos 60, os terreiros viveram seu auge nas favelas. Concorrência com evangélicos ajudou a esvaziá-los.

No tempo dos atabaques Jaime Gonçalves | 15/03/2005 Foto: Walter Mesquita

Os terreiros espíritas tiveram seu auge nas favelas do Rio entre os anos 40 e 60. Na década de 70, eles começaram a fechar as portas nos morros para reabrir em áreas mais isoladas de cidades da Baixada Fluminense. Os que sobraram enfrentam a dura concorrência dos novos templos evangélicos. Segundo alguns praticantes da umbanda e do candomblé, a lei do silêncio, que proibia os batuques religiosos, ajudou a expulsar alguns desses centros das favelas. A perseguição policial sempre foi um infortúnio para ambas as religiões. “Eles entravam nos terreiros e, se o caboclo (o responsável) não estivesse, quebravam tudo”, lembra Celita Vieira de Abreu, 67 anos, mais conhecida como Obassy, umbandista que hoje flerta com o candomblé.

276


MatĂŠrias selecionadas

277


278

Moradora da Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, desde 1967, Obassy deixou a Rocinha, Zona Sul, após o trágico temporal que pôs abaixo barracos em toda a cidade, em 1966. Passou por vários alojamentos até se instalar na comunidade, onde acompanhou a perseguição sofrida pelos “praticantes” da umbanda e do candomblé. Segundo Obassy, eles sofriam com a “crueldade” dos policiais. Dona de um barracão de umbanda, no Grotão, na Penha, Zona Norte, herdado do marido, o pai-de-santo João Felipe Filho, Vera Regina Felipe, 66 anos, também testemunhou a perseguição da polícia e diz que ela durou até meados da década de 60.

Terreiros famosos Era o fim da época de ouro, quando terreiros badalados faziam a cabeça de muita “gente boa”, como conta o compositor e escritor Nei Lopes: “O de seu Paulino chegou a ser visitado, nos anos 60, por artistas internacionais”. Segundo Nei, “estrangeiros famosos” visitavam ainda o terreiro de Mãe Adedé, na Leopoldina. Entre eles, estava a cantora e dançarina americana Josephine Baker, em 1939, guiada por dona Neuma da Mangueira. Também célebre foi o terreiro comandado por Vovó Maria Joana Rezadeira até meados da década de 80, na Serrinha, em Madureira, Zona Norte. Cantora do grupo Jongo da Serrinha e neta da famosa mãe-de-santo, Dely Chagas lembra que o barracão era um dos mais procurados. Inclusive por artistas, como a cantora Clara Nunes. A saída dos terreiros dos morros começa na década de 70, segundo Eduardo Moreno, 35 anos – o pai-de-santo Fovo de Yemanjá. Ele reabriu o terreiro na Penha deixado pelo tio para a viúva Vera Regina. Fovo é um dos poucos a resistir à proliferação das igrejas evangélicas.


CASA DO PEDREIRO FRANCISCO GEORGE, NA CIDADE DE DEUS Matéria: Meu adorável barraco, Viva Favela, 04/11/2003 Crédito: Tony Barros


280

CUIDADO COM O VISUAL VIRA ROTINA PARA RAPAZES DO COMPLEXO DO ALEMÃO, COMO LUCAS DA SILVA DE OLIVEIRA, QUE INVESTIU NAS TRANCINHAS Matéria: Vaidade assumida, Complexo do Alemão Viva Favela, 15/12/2003 Crédito: Rodrigues Moura

LUCY NUNES E A FILHA MÔNICA,MORADORAS DO CARANGUEJO, NO ALTO DO MORRO PAVÃO-PAVÃOZINHO, ZONA SUL DO RIO DE JANEIRO Matéria: Os esquecidos no topo Viva Favela, 16/04/2002 Crédito: Deise Lane


281


282


CARATECA PREMIADA, MORADORA DO MORRO DO ALEMÃO Ensaio fotográfico, 2002 Crédito: Rodrigues Moura BAILE FUNK NA CIDADE DE DEUS Ensaio fotográfico, 2004 Crédito: Tony Barros


284


285

IRMÃS CARREGAM MATERIAL DE CONSTRUÇÃO NO MORRO DO CANTAGALO Matéria: Elas têm a força Viva Favela, 03/11/2004 Crédito: Nando Dias OFICINA DE PERCUSSÃO REALIZADA PELA ONG AFROREGGAE NO EDUCANDÁRIO SANTO EXPEDITO Matéria: A esperança silencia Viva Favela, 18/07/2003 Crédito: Sandra Delgado


286


BAILARINA DO PROJETO “DANÇANDO PARA NÃO DANÇAR”, NO CANTAGALO Ensaio fotográfico, 2002 Crédito: Rodrigues Moura

BARRACO NA CIDADE DE DEUS Ensaio fotográfico Arquitetura, www.fotofavela.com.br, 2003 Crédito: Tony Barros


288


289

GUERRA DE OVOS NA CIDADE DE DEUS. TODO DIA PRIMEIRO DO ANO, CRIANÇAS E ADOLESCENTES PARTICIPAM DA BRINCADEIRA NA CDD Ensaio fotográfico, 2004 Crédito: Tony Barros ENSAIO FOTOGRÁFICO CABEÇA FEITA, NA CIDADE DE DEUS. Crédito: Tony Barros, 2004


MULHER OBSERVA PROTESTO DE MORADORES DA CIDADE DE DEUS CONTRA MORTE DE MOTO TAXISTA Flagrante, Cidade de Deus, 2002 Crédito: Tony Barros


ÁREA DE RISCO, CIDADE DE DEUS. SEM TER PRA ONDE IR, FAMÍLIA NÃO ABANDONA O LOCAL Matéria: A vida por um fio Viva Favela, 11/03/2002 Crédito: Tony Barros


ESPETÁCULO “DANÇA DAS MARÉS”, REALIZADO PELO CORPO DE DANÇA DA MARÉ NO SESC TIJUCA (RIO DE JANEIRO) EM SETEMBRO DE 2002 Ensaio fotográfico Galeria Viva Favela, 04/09/2002 Crédito: Kita Pedroza


FOLIA DE REIS “BRILHANTE ESTRELA DA MANHÔ COMEMORA O DIA DE SÃO SEBASTIÃO NO MORRO DA FORMIGA Ensaio fotográfico Galeria Viva Favela, 21/01/2005 Crédito: Rodrigues Moura


DONA MARIA DO NASCIMENTO, MORADORA DA FAVELA NOVA HOLANDA, NA MARÉ Ensaio fotográfico, agosto de 2004 Crédito: Deise Lane


FERNANDA OLIVEIRA NÃO É ATRIZ OU MODELO, NÃO TEM SILICONE NEM FEZ LIPO, MAS CONQUISTOU O COBIÇADO TÍTULO DE RAINHA DA BATERIA DA MANGUEIRA Matéria: Rainha de verdade Viva Favela / Site Beleza Pura, 19/02/2004 Crédito: Deise Lane


SEU ALCIBÍADES, MORADOR DO JACARÉ, NO RIO DE JANEIRO, AO LADO DO NETO Ensaio fotográfico, 2004 Crédito: Tony Barros


FAMILIARES DE VÍTIMAS DA CHACINA DA BAIXADA, DURANTE SEPULTAMENTO NO CEMITÉRIO MUNICIPAL DE QUEIMADOS Ensaio fotográfico Viva Favela, Galeria Dor na Baixada, 05/04/2005 Crédito: Walter Mesquita


298


299

COTIDIANO NA CIDADE NOVA, ÁREA DA ROCINHA Ensaio fotográfico, 2005 Crédito: Nando Dias

COTIDIANO NA ROCINHA Ensaio fotográfico, 2002 Crédito: Kita Pedroza


300

DURANTE TRÊS MESES, MORADORES DA VILA CAMORIM ACOMPANHARAM A INSTALAÇÃO DA GRANDE LONA QUE ABRIGARIA O PROJETO CIRCO BAIXADA, EM QUEIMADOS, NA BAIXADA FLUMINENSE Ensaio fotográfico, Galeria Viva Favela, 13/02/2003 Crédito: Walter Mesquita


301


MORRO DO CANTAGALO Ensaio fotográfico Arquitetura da Favela, 2002 Crédito: Deise Lane


COTIDIANO NA ROCINHA Ensaio fotográfico, 2003 Crédito: Kita Pedroza


304

VISTA DA ROCINHA Ensaio fotográfico, 2004 Crédito: Nando Dias


305

APÓS MAIS UMA NOITE DE INTENSO TIROTEIO, A ROCINHA FOI ÀS RUAS, NA MANHÃ DE 09 DE FEVEREIRO DE 2005, PARA PEDIR PAZ Galeria Viva Favela: Rocinha pede paz, 11/02/2004 Crédito: Kita Pedroza


VILA MIMOSA, CONHECIDA ZONA DE PROSTITUIÇÃO DO RIO DE JANEIRO Ensaio fotográfico Mimosas por profissão Galeria Em Foco, site Beleza Pura, 16/04/2004 Crédito: Sandra Delgado


307


308

PASTOR EVANGÉLICO NO CANTAGALO Ensaio fotográfico, 2004 Crédito: Tony Barros


309

A FAMÍLIA DINIZ MANTÉM VIVA A TRADIÇÃO DA FOLIA DE REIS NO MORRO SANTA MARTA, RIO DE JANEIRO Matéria: Os reis da folia Viva Favela, 29/01/2003 Crédito: Sandra Delgado


ALTINA GOMES, NA ROCINHA Matéria: Dignidade em pessoa Viva Favela, 29/10/2004 Crédito: Nando Dias


311

Anexo 2


As cartas abaixo são uma pequena amostra das milhares de mensagens recebidas, respondidas e publicadas pelo Viva Favela até dezembro de 2005. Há e-mails de todos os cantos do país e do exterior. A grafia original foi mantida.

Fala, favela Li sobre o trabalho de vocês. Achei o máximo. Gostaria de saber como faço pra levar vocês na favela onde moro, pois lá precisa de projetos para integrar as jovens. Moro em Parada de Lucas. Desde já, obrigada. Michelle.

Sei que Vc’s Não vão ler Mesmo, Mas não custa nada Tentar!!! Meu nome é George da Silva Corrêa Eu fui Criado No Morro do Tuiuti, mas estou morando em Nova friburgo Eu queria trazer o viva favela para Friburgo, é uma Cidade pequena Mas com os Mesmo Problemas Sociais ou “Piores” que o Rio de Janeiro (...) Eu quero Fazer parte da Família de vc’s, tenho uns amigos que podem me ajudar a revolucionar... Para vc’s eu sou apenas outro Idiota querendo fazer parte de alguma coisa mas para as pessoas que moram aqui nas favelas vc’s são muito importante.

oi tudo bom ver se vc poder mer ajuda eu e mais dois colegas quemos abri uma pagina na intenete falando sobre a rocinha mais agente não sebe com se cadasta. somos tres adolesente

312


Correio virtual

313

pensando no futuro e no cresimento do comunidade. espero sua opinião muito obrigado ass: alexsandro silva.

queria o email do Dj Nino da matéria donas da festa, sou do santa marta e estou começando tb como dj e queria entrar em contato com ele...ok.... thiago firmino.

Trabalho em uma Creche comunitária entre as Comunidades de Babilônia e Chapéu Mangueira no Leme. Também sou residente na Comunidade de Babilônia e sou envolvida com o movimento comunitária. Temos aqui algumas pessoas que fazem trabalhos artesanais. Gostaria de fazer a divulgação dos trabalhos no site. Márcia.

(...) sou moradora da Rocinha, aqui na via apia, eu aproveito o mail de minha amiga eda para fazer esta reclamacoa, nos moradores da estrada da gavea nao temos mais sosegos sao tantas musicas que ten o dia todo inclusive aquele pagode do barrata que nos traz sempre as noites sem poder dormi direito e agora as musicas da radio brisa que é terrivel (...) qual sera a melhor maneira de podermos dormir? por favor nos ajude tenho amigas que durante os sabados e domingos vao dormir em casa de parentes Meu nome e carmenzita, doralice, amadeu robson somos 5 moradores da via apia que pedimos a paz do sono beijos, carmenzita.

po podia ter mas coisar de quem e menino de rua pq eu sei quem e menino de rua tem mas coisa para vcs fazer???? Eu to com vomtader de ir para rau nao tem ninguém pra ensentivar??? Esse e meu rercado não tem nho escolar não sei muito escreve mas sei um pouco....... samuel candido – rj.


314

Notícias da Favela

Do asfalto Meu nome é Cláudia T. da Silva, estou passando por uma enorme dificuldade financeira, não consigo mais pagar a escola de meu filho de 12 anos. Preciso urgênte de uma vaga numa escola pública perto de minha casa. (...) Estou desesperada. Este mundo de hoje está um perigo, não consigo de concentrar no trabalho pensando nele.

Sou empresário e assino a revista viva favela sempre com o intuito de conhecer novas atitudes que possam melhorar o estilo de vidas dos menos favorecidos. Gostaria de conhecer melhor o curso de pré vestibular. Tenho como conseguir um bom espaço fisico na tijuca com as condições necessarias para as aulas. (...). Robson Mançur.

(...) li suas reportagens sobre a vila alice. tenho 21 anos e sempre morei em laranjeiras, na rua mario portela. gostaria de ajudar de alguma forma com a comunidade da vila alice e julio otoni. passo em frente a vila alice todos os dias, indo para o trabalho, mas por receio nunca tive a iniciativa de entrar para conhecer. são comunidades tranquilas? gostaria do contato do bené, presidente da associação de moradores da julio otoni. muito obrigado. Renato.

(...) O seu texto serve de prova que existe o financiamento do tráfico para o baile de Chatuba. E isso me parece ruim, pois é possível de usar seu texto como justificativa de intervir no baile. Então, por que você escreveu estas coisas que não beneficiarão


Correio virtual

315

os frequentadores do baile? Eu não entendi sua intenção com o artigo.1 Rodolfo.

Brasil afora Sou delegada da delegacia da mulher de Santarém Pará, uma cidade perdida no meio da amazônia. (...) Gostaria de idéias e ensinamentos de como ajudar as mulheres que atendo... a se sustentarem sem o marido agressor, me ajudem. (...) Minha cidade fica próxima a Belem (capital) são só três dias de barco. márcia rabelo.

Digo: parabéns a vs… Moro na favela Morro do papagaio em Belo Horizonte-MG Sou cantor de forró e sertanejo Estou pretendendo montar um equipamento de som no dia das Mães, (…) Para manifestação de paz no morro Aqui foi bastante ruim agora está bom demais (…) sou (RAPATACHO dupla sertaneja com “Tony & Luciano”). E sempre fazemos alegria para o morro (..) Antonio Francisco. Sou advogada na Colonia Penal Agricola do Paraná e também professora de ingles, (…) ao ouvir a respeito do projeto do professor Venicio Santos na Penitenciária Lemos de Brito fiquei muito interessada em aplicá-lo aqui na Colonia Penal Agricola. Kathleen Bueno de Camargo.

1 Resposta da Redação: “Como um dos mais importantes (e polêmicos) espaços de convivência da favela, o baile funk (…) desponta como um tema natural (…). O fato de o baile ser considerado ilegal pela polícia e ainda assim ser realizado é uma questão que diz respeito exclusivamente à esfera criminal. A mídia, alternativa ou não, não pode ser culpada pelos fatos que relata”.


316

Notícias da Favela

Excelente o trabalho desenvolvido pela equipe que, através de claras e excelentes matérias, nos ajudam a compreender as condições de vida dos habitantes das favelas cariocas, seus dramas e seus problemas, (...) Waldeban – João Pessoa, Paraíba.

oi estou enviando este e-mail porquer não vego minha irmâo mais de oito anos ultima vez que eu fiquer sabeno e quer ela esta em Fotaleza. o nome dela e Rita de cassia silva ela fugiu da cidade de assaré. meu nome é cicero gomes da silva moro na cidade de caxias do sul –RS.

… sou de porto alegre e acho esse site muito interessante… (…) tive uma ideia quando vi o preco do aluguel numa favela... bahh é muito caro, aqui em poa é muito mais barato... e pensei q a gente podia fazer um intercambio... aqui não tem essas historias de traficante invadi casa e pa... aqui o crime não é tao organizado... eu podia entregar uns corrículos procura lugar pra mora e essas coisas, se vcs tiverem interessados... e agradeco por nos informarem como esta a situação aí no rio do que eu considero uma guerra civil, e é ótimo pois é pela otica de quem mora no morro... a gente é brasileiro e tem q se unir e lutar por um país melhor leandro.

como eo me castro2 ariquemes 11 de abril de 2005 hora 23:15 m. hora de rondonia. Uma pergunta. Qual romo da agência de voceis. Obrigado gláucio brasilestado de rondônia.

Quero parabenizá-los pelo projeto. Não pelo escopo fashion, mas pelo resgate da dignidade de uma geração tão suscetível às tentações do mundo do tráfico. Sou negro, estudante de

2  Possivelmente o leitor queria saber como é fazer uma vasectomia (tema de matéria do site Beleza Pura).


Correio virtual

317

hotelaria, carioca e moro em São Paulo desde 1987, sei quão difícil é trilhar uma carreira no Brasil, sobretudo... se tomarmos por base o engodo que é a Democracia Racial Brasileira (...) Urubatan Crespo Fabiano.

EcoPop Vcs me ensinariam (...) a fazer uma cesta de jornal? Sou do Rio de Janeiro e moro em uma comunidade carente e vi que nesta arte poderia estar ganhando uma renda extra. Obrigado, Gláucia.

Frequento o ecopop há algum tempo - e (...) já me interessei por inúmeros artigos. Mas há um em especial sobre o qual o gostaria de uma ajuda. Trata-se do Rir sobre o óleo derramado. Foi uma grande coincidência pois estou estudando a possibilidade de começar algum projeto do gênero. (...) necessito de informações técnicas. (...) peço a vocês um canal onde eu possa encontrálas. Grato, Vinicius Scofield. Sou da Comissão de Estudos de Problemas Ambientais da USP – CEPA. Fiquei admirada com a iniciativa do Sertão do Carangola – Petrópolis/RJ. (…) gostaria de um (…) contato com os coordenadores que organizam essa comunidade. Estamos organizando a III Semana de Meio Ambiente da USP, e será interessante trazer esta iniciativa para a Universidade. Gabriela Otero.

Gostei muito do ecopop e gostaria de iniciar alguns trabalhos artesanais de garrafas pets reciclaveis junto a minha comunidade. Gostaria de receber orientações, idéias de artesanatos ou ate mesmo de cursos. Maria do Carmo.


318

Notícias da Favela

oi adorei lê os artigos da ECO POP e estou com um monte de projetos para realizar no meu bairro, que se chama Viila Cascavél em São Luis –MA beijos, NILRA.

Beleza Pura (...) acho que estou grávida (...). Tive relação com o meu namorado e acho que a camisinha furou fazem 17 dias que minha menstruação não vem estou desesperada, o meu namorado ele está muito contente mais eu não quero ainda... amigas minha me deram dicas de chás não sei se isso adianta... por favor me diga um chá ou remédio que faça eu tirar se eu estiver por favor sei que no caso não querer me ajudar mais eu preciso muito... Atenciosamente, M.

Adorei o site de vcs. as matérias são muito bem escritas e explicativas, moro no sul e por aqui o hip hop não é muito reconhecido, somos tidos como marginais e sapatões. acredite ou não, é assim mesmo, gostaria de mais dicas de roupas, cabelo e dança. Sandra.

Sou empregada doméstica em ipanema e gostaria de saber maiores informações sobre o curso de cabeleireiro. obrigada, cristina.

Gostaria de obter informações de que forma posso entrar em contato com vcs formalmente, tenho 2 filhas 11 e 9 anos, que modesta parte são lindas (mestiças) beleza pura... tenho interesse em cursos de modelos para elas. Grato, Aldemir Sousa.


Correio virtual

319

Minha namorada toma anticoncepcional há 2 anos e há duas semanas atrás, tivemos relação sexual quando ela estava no período fértil. Mesmo ela tomando a pílula, tem perigo de engravidar? Denis.

Como é que faço o alisamento com pente, e se eu tomar chuva o cabelo continua liso. Dura quando tempo e como o cabelo fica depois que o alisamento acaba? Jessika.

Amei o site de vcs. (…) gostaria de saber se tem como enviarem pra mim revistas de unhas decoradas passo a passo. (…) moro no japão e é dificil se comunicar (…) vcs poderiam ver (…) o preço (…). Se possivel mandem e-mail (…) Gilda.

Favela Tem Memória Sou carioca e advogado e estou fazendo uma tese em Paris sobre a história das favelas no Rio de Janeiro, analisando a evolução da legislação urbana no decorrer do século XX. (…) Acompanho durante mais de dois anos as matérias do Viva favela. Elas são ricas em informações sem cair em um discurso muito acadêmico (e, consequentemente, chato!!). Rafael Gonçalves.

Gostaria de falar do nome de origem de (…) Nova Brasília. A Favela (…) surgiu na década de 60, logo após a fundação de Brasília, como muitas pessoas (…) afluiam para Brasília, assim também acontecia com aquele imenso descampado de


320

Notícias da Favela

Bonsucesso (…) gente em busca de emprego no Rio começou a comprar terrenos, vendidos muito baratos, por ser uma fazenda desapropriada (…) meu pai ajudou a vender os terrenos (…), como pagamento ganhou um terreno também, isso em 1969, quando nos mudamos para lá. No amanhecer era a coisa mais maravilhosa do mundo (…). Alex Souza – RJ.

Sou estudante do 3º ano do ensino médio,e estamos produzindo um livro sobre a ditadura militar (…). Adorei descobrir esse site,e gostaria de abordar mais em nosso livro a participação da favela nesse período, o que quase não é citado nos livros didáticos comuns. (…) Carolina Perini.

Olá organizadores do favelário. Adorei o fato de pessoas tão célebres estarem interessadas na origem dos nomes das favelas. Sou moradora do Riachuelo, ao lado do Jacaré/Jacarezinho, e gostaria muito de saber a origem do nome desta comunidade. Elizabeth.

(…) estou terminando o curso de História. Escolhi como tema de monografia: “Surgimento das favelas no RJ” e gostaria de saber se vocês possuem alguma fonte (…) Luiz Ivan – RJ.

Clique Seu Direito Gostaria de obter algumas informações de vcs. Voltei da licençamaternidade e a minha patroa demitiu-me, gostaria de saber quais direitos que tenho, se tenho direito a seguro-desemprego,


Correio virtual

321

indenização pelo período de amamentação, pois meu bebê está com 4 meses (...)

Cambito Sou viciada, mas hoje comecei a pensar se realmente vale a pena. Gostaria da sua ajuda se puder. Adorei o site e falarei para meus amigos que usam comigo. Obrigada por ter me ajudado. O. gostei muito do que vcs mandaro para mim eu moro no morro do complexo do alemão manda para o meu e-mail uma papel de parede para mim coloca no meu coputado valeu galera do viva favela kinho luis henrique.

Olha, esse site me emocionou mto, por ter partes em que me veio na kbeça...que eu já vivi isso...eu já presenciei a dor, a fome, a pobreza... Chorei na primeira visita...foi muito emocionante pra mim! espero q com a ajuda d vcs... esse país mude, que tenha justiça... Boa Sorte, Yasmin.

(...) parabéns, eu moro na periferia de são paulo em um dos bairos mais violento daqui eu sou um dos poucos que tem aseso a imternete emtre os meus amigos queria que todos comhesese o cambito mais de algum jeito vou mostrar a todos espero que voçeis alcamsem o obegetivo, eder paulo.


322

Notícias da Favela

Mundo afora Daqui do Haiti aprecio o trabalho de vocês, e digo não por ser minha namorada, mais a Fabiane Baptista Moreira é a melhor modelo que passou até agora nesse site, opinião de todo Grupamento Operativo de Fuzileiros Navais do Haiti, Missão De Paz (MINUSTAH), Marinha do Brasil!!!!! Carlos Eduardo da Silva.

Estudio en el Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey Campus Querétaro en México. Estoy tomando la clase de Comunicación Internacional y estamos haciendo un estudio sobre la comunicación y la sociedad de Brasil. Me agrado mucho la página do Viva Favela (…) muy interesante para presentar como ejemplo en mi exposición.3 Tzitzi Marsch :)

Saludos desde Chile, muy interesante su proyecto. Quiero pedirles ayuda para construir um saxofón de pvc, agradeceré si me envían las medidas (...).4 Nilo Diaz.

(…) eu me encontro em Africa em particular em Angola.Varias veses que tento entrar encontacto com a Viva Favela, no sentido de sabar preços de alguns produtos (…) queiram receber os meus cumprimentos. Sds., Joao Manuel.

3 Estudo no Instituto Tecnológico de Estudos Superiores (…), no México. Estou cursando Comunicação Internacional e estamos fazendo um estudo sobre a comunicação e a sociedade brasileiras. Agradou-me muito a página do Viva Favela (…) muito interessante para apresentar como exemplo em minha apresentação.

4 Saudações do Chile, muito interessante o seu projeto. Quero pedir-lhes ajuda para construir um saxofone de pvc, agradecerei se me enviarem as medidas.


Correio virtual

323

Acabei de ler a matéria Capitães da Água e fiquei muito comovida com a história desses meninos, principalmente com a do Serginho. Gostaria de contactar a canadense que os achou e ver se posso ajudar (…). Eu trabalho na Universidade de Stanford, Califórnia, onde fica um dos melhores hospitais infantis do mundo. Não acho que seria impossível (…) conseguir um tratamento para ele por aqui. (…) Claudia Baroni (Geophysics Department Administrator School of Earth Sciences, Stanford University).

Ecopop is a truly admirable project. My huge respect to all of you and your work. (...). Therefore an english language section would be very appreciated.5 simon roth. 5 O EcoPop é um projeto realmente admirável. Meu grande respeito a todos vocês e ao seu trabalho. Uma seção em inglês seria muito bem-vinda.


324


325


Todos no mesmo barco Centro do Rio, meio-dia. Milhares de pessoas vestidas de branco fazem dois minutos de silêncio para pedir paz diante da igreja da Candelária – exatamente onde oito meninos de rua foram assassinados cinco meses antes. A manifestação aconteceu no dia 17 de dezembro de 1993, ano marcado ainda pela chacina de 21 pessoas em Vigário Geral. E pontuou o nascimento do Viva Rio. O clima na cidade era de tensão. A mobilização era o primeiro passo para reagir à violência, na avaliação dos organizadores do ato. Entre eles, estava o antropólogo Rubem César Fernandes, PhD em história do pensamento social pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que se tornaria um dos fundadores do Viva Rio e seu futuro diretor-executivo. Rubem César começou a se envolver com a questão da violência ainda em 1991, quando foi criado no Iser um setor de estudos em torno do tema. “Todo mundo se interessou: Luiz Eduardo Soares, Bárbara Soares, Jaqueline Muniz..”., conta o antropólogo, lembrando que, na época, o assunto ainda era considerado “coisa de polícia”. 326


Anexo 3

327

O grupo que organizaria a manifestação na Candelária começara a se reunir em setembro, num encontro articulado por Betinho. Rubem César recebeu um telefonema do sociólogo convocando para o encontro e avisando que estariam presentes Kiko Brito, João Roberto Marinho e Walter Mattos, representantes do Jornal do Brasil, O Globo e O Dia respectivamente. Na hora, ele pensou: “Isso não existe, que reunião mais esquisita. Nunca tinha visto os três juntos em alguma coisa. Só viviam numa competição braba..”. A iniciativa partira de Walter Mattos, hoje presidente do jornal Lance!. “Ele já vinha preocupado com o assunto e começou a fazer uma campanha no O Dia. Até que percebeu que o assunto não era só com eles, era grande demais. Como estava a onda da campanha da fome, em vez de ligar para o general, o Walter ligou para o Betinho”, conta Rubem César. O primeiro encontro, segundo o antropólogo, “já tinha esse mix” que o Viva Rio viria a representar: “Tinha o pessoal da CUT, tinha empresário, tinha seqüestrado, tinha o pessoal de mídia…” Assim, a ONG já nasceu produzindo uma comunicação entre grupos que, em princípio, não estariam juntos. O foco era a violência, mas também se discutia geração de empregos, desenvolvimento, formas de sair da crise econômica regional. Pouco tempo depois de montar a tal reunião, da qual participaram cerca de quarenta pessoas, Betinho começou a se afastar. O sociólogo não gostava do tema, segundo Rubem César – que, a essa altura, já estava na coordenação do movimento. A primeira manifestação depois do lançamento foi uma campanha de mobilização em favor da indústria naval – a Naviata. “Marcou um estilo. Ao invés de fechar a ponte Rio-Niterói e atrapalhar a vida de todo mundo, a gente levou um monte de barcos para a baía de Guanabara”. O movimento mais forte em direção às favelas, porém, só viria em 1995, com o Reage Rio. Ali, criou-se a polêmica: Reage Rio ou “Reage Rico”? A provocação nascera com Caio Ferraz, que, na época, trabalhava na Casa da Paz em Vigário Geral, projeto associado ao Viva Rio, e questionava a manifestação.


328

Notícias da Favela

O Reage Rio, segundo Rubem César, tinha por objetivo “reagir à violência”. A palavra de ordem surgira no conselho da ONG, durante a discussão sobre o seqüestro do filho de Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira, presidente da Firjan e conselheiro do Viva Rio. Além dele, outras duas pessoas foram seqüestradas no Rio no mesmo dia. Isso num momento em que havia um clima de otimismo na cidade. Rubem César conta que Marcelo Alencar tomara posse como governador do estado e Fernando Henrique Cardoso assumira a presidência – e fizera sua primeira visita à cidade a convite do Viva Rio.“Plano Real, inflação acabando. Havia uma crença de que finalmente o Rio iria encontrar seu eixo”. Até que veio a onda de seqüestros. Durante dois meses, o movimento Reage Rio dominou a mídia. O slogan era “um milhão por um bilhão”. A idéia era conseguir um milhão de pessoas na rua para conseguir um bilhão de reais para investir em segurança no Rio. “Fomos a Brasília e Fernando Henrique gostou da idéia e disse: ‘Um bilhão do orçamento não dá. Mas, se vocês identificarem os projetos e várias fontes, de repente faz um bilhão’.” De volta ao Rio, os representantes do movimento foram de secretaria em secretaria, no governo do estado, procurar projetos que já existissem. “Não dava para inventar um projeto de um bilhão em um mês”, lembra Rubem César. Quem não gostou nem um pouco da idéia foi o governador Marcelo Alencar: “Ele se sentiu totalmente invadido no seu espaço pelo movimento. E proibiu as secretarias de nos receber, dizendo que não precisava da gente para levantar recursos para seus projetos. Aí o movimento ficou num impasse, porque tinha um milhão, mas não tinha um bilhão porque não tinha os projetos. E mudou de natureza. Tinha gente feliz porque podia meter o pau. E o que era uma coisa pró-ativa vira uma coisa de protesto. Começa também essa discussão se é Reage Rio ou ‘Reage Rico’. E a gente vai para as lideranças das favelas. Tivemos três plenárias na Faferj, salas lotadas... Nosso argumento era que a


Anexo 3

329

violência afeta todo mundo, sobretudo os mais pobres. Então, tem de reagir de forma geral. Afinal, a favela veio e foi ela quem de fato fez a marcha. Deu umas trezentas mil pessoas. Nesse debate, a gente meio que definiu: vamos cair dentro das favelas. Essa é a questão. Do movimento, saiu essa idéia. E começamos a trabalhar nessa direção”. Como já vimos, dessa reunião na Faferj também sairia a negociação que geraria o Viva Favela. Mais de dez anos depois de sua criação, o Viva Rio continua a ter uma imagem controvertida junto à sociedade. Os motivos para isso são vários, acredita Rubem César. Um dos principais é o fato de a ONG aparecer como “uma ruptura em termos de estilo de movimento social, porque não faz protesto, não denuncia e não acusa”. Rubem César explica melhor: “De certa maneira, o Viva Rio não faz escolha, não está de lado nenhum. Está do lado da imprensa. Na Naviata, o slogan era: ‘estamos todos no mesmo barco’. Esse conceito é muito bom para mobilizar ações de consenso. Mas não é bom para canalizar a raiva, o sentimento de injustiça, porque esses sentimentos se expressam na divisão, no confronto. O Viva Rio não acusa ninguém. Isso é uma estratégia, uma escolha. A combinação é muita onda de um lado e muito pragmatismo do outro. Mas você paga o preço de não conseguir expressar indignação. Betinho era um que expressava indignação. Ele tinha essa liberdade – saía da cama e esculhambava todo mundo. Tinha uma áurea de vítima que protesta que o Viva Rio não tem, o Viva Rio não é vítima”, diz Rubem César, coberto de razão. Na verdade, a ONG, admite o antropólogo, tem aliados poderosos. O que acaba por favorecer quem se alia a ela. “O bom de estar no Viva Rio é que, de repente, você está num contexto de muitos projetos que já estão funcionando”. O Viva Rio conseguiu realmente criar uma vasta rede de projetos em parceria com entidades locais. Hoje está presente em cerca de 350 favelas e comunidades de baixa renda da Região Metropolitana do Rio. O foco principal das atividades são os jovens


330

Notícias da Favela

“mais vulneráveis aos riscos sociais” e a “busca da superação da violência”. Autodefinido como uma “organização não-governamental sem fins lucrativos e apartidária”, o Viva Rio desenvolve campanhas de paz e projetos sociais. Todas as ações se integram no conceito de segurança humana, em três áreas: segurança pública e direitos humanos, inclusão social e comunicação. Em 2006, a ONG atuou em 82 municípios do estado do Rio. Nas ações internacionais, já atuou em 12 países, com assessoria, treinamento, desenvolvimento de pesquisa e participação em seminários. Ambas as redes – local e internacional – favoreciam o Viva Favela ampliando a sua visibilidade.


331

Referências bibliográficas ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. O jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. FILHO, Aziz & ALVES FILHO, Francisco. Paraíso armado, interpretações da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garçoni, 2003. NOVAES, Regina & CUNHA, Marilena (eds.). O Galo e o Pavão. Em: Cadernos de Comunicações do Iser. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião, 2003. NOVAES, Regina, CUNHA, Marilena & VITAL, Christina (eds.). A Memória das Favelas. Em: Cadernos de Comunicações do Iser. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião, 2004. SOUZA E SILVA, Jailson de & BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2005. STROZENBERG, Ilana (coord.). Pesquisa sobre o projeto Viva Favela. Rio de Janeiro: Laboratório de Jornalismo, Antropologia e História Oral da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004. ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003.

331



Sobre a autora Cristiane Ramalho é jornalista desde 1989. Como bolsista do Britsh Council, fez mestrado em relações internacionais na Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Trabalhou no Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, revistas Manchete e IstoÉ e o site No. Em 2001, ingressou no Viva Favela – experiência ímpar pelo contato com a realidade popular. Em 2006, após produzir documentário nas comunidades Chapéu Mangueira e Babilônia, mudou-se para Berlim, onde vive com o marido e a filha. Na Alemanha, é colaboradora da Globo News, entre outras mídias.Sempre carioca, a autora adora praia, MPB e feijoada. Foto: Sven Hilbig


Este livro foi composto em Akkurat. Os papéis utilizados para o miolo foram o Pólen Bold 90g/m2 para o texto e couche matte 90 g/m2 para o caderno colorido. O papel da capa é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2. A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica Imprinta Express LTDA. em novembro de 2007, no Rio de Janeiro. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.