Poesia Revoltada
Poesia Revoltada Ecio Salles
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Copyright © 2007 Ecio Salles COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES projeto gráfico CUBÍCULO POESIA REVOLTADA produção editorial LARISSA DE MORAES e ROBSON CÂMARA revisão BRUNO DORIGATTI revisão tipográfica BRUNO DORIGATTI
S163p Salles, Ecio de Poesia revoltada / Ecio Salles. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. il.;.-(Tramas urbanas; 3) Anexo Inclui bibliografia ISBN 978-85-7820-000-8 1. Hip-hop (Cultura popular jovem) - Brasil. 2. Rap (Música) Aspectos sociais - Brasil. 3. Música e juventude - Aspectos sociais Brasil. 4. Poesia de protesto. 5. Movimento da juventude. I. Título. II. Série.
07-4022.
CDD: 305.2350981 CDU: 316.346.32-053.6(81)
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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22440 030 TEL: 21 2529 6974 Telefax: 21 2239 7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br
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Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia social – se reforçam cada vez mais movimentos culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam os de alguns segmentos específicos: grupos musicais, grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas de idêntica importância, embora com menos visibilidade, é a produção intelectual que cuida, além de questões artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos. A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes, um consistente e instigante apanhado dessa produção amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que não são originários de favelas ou regiões periféricas dos grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionáveis das elites intelectuais”. A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar. Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século, cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar para diminuir as distâncias sociais é um esforço imprescindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.
Agradecimentos
Agradeço a pessoas que participaram direta ou indiretamente da realização deste livro. A todas elas devo, por diferentes razões, a concretização deste projeto. Reitero o agradecimento a Claudia Matos, minha orientadora à época do Mestrado, na UFF, cujos comentários e críticas fortaleceram o texto que escrevi. A Heloisa Buarque de Hollanda, incentivadora de primeira hora, leitora atenta e agora, minha editora. Ilana Strozenberg, que leu os originais e deu sugestões preciosas. José Junior, Tekko Rastafári e todos do Afro Reggae. Ierê Ferreira, pelas fotos e tudo o mais. Meus irmãos Erlon e Edwiges de Salles. Airá, Bragga, Chico, Ment e toda a galera da Nação; Celso Athayde, MV Bill e a galera da CUFA; Daniel Guimarães, Júlio França, Sérgio Bugalho; Def Yuri; DJ TR; Elisa Ventura, Christine Diegues e todos da Aeroplano Editora; George Yúdice; Gog; Jaílson de Souza; José Marmo; Leonardo Lichote; Manoel Ribeiro; Nino Brown; Omar Salomão; Racionais: Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KLJ; Rosana Heringer; Rossana Rodrigues; Santuza Naves; Sônia Torres; Tatiana Roque; Thaíde e DJ Hum.
À minha mãe, Marié, que me deu meu caminhar, Ao meu amor, Daniele, que nele me acompanha À mãe Nini, que lhe trouxe axé.
Sumário 11
Apresentação — DJ Raffa
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Prefácio — Omar Salomão
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Preâmbulo
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Cap.01
A poesia revoltada: rap, hip-hop e rappers
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Cap.02
Rap: cultura popular, arte à margem
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Cap.03
Rap e contranarrativa
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Cap.04
Um senão: da legitimidade do rap
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Cap.05
A palavra armada
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Cap.06
Da ginga do samba à marra do rap
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Cap.07
Poesia Revoltada: a Nação não-cordial
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Anexo
O som negro do gueto: a senzala contra a casa-grande
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Referências Bibliográficas
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Legendas e créditos de imagens
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Sobre o autor
Apresentação O que é erudito e o que é popular na cultura brasileira nos dias atuais? Será que no meio popular não existe o erudito? Onde o hip-hop se enquadra em nossa cultura? Ecio Salles afirma: Temos de um lado a cultura popular, dispondo de grande público e prestígio nos diversos meios de comunicação; de outro, a cultura das elites, restrita a pequenos círculos de iniciados, quase sempre ressentidos de sua escassa visibilidade.
O rap não é – nem será em sua forma atual – uma cultura de elite, seja ela dominante ou pensante. Mas é, isto sim, uma forma válida de manifestação cultural que, como todas as outras, tem sua “elite”, formada por seus expoentes, seus melhores artistas e seguidores. No entanto continua, mesmo depois de três décadas, a mais erudita das expressões populares. Pelo preconceito da sociedade e pela fraca exposição na mídia, fica restrita a poucos. E sua peculiaridade reside aí: ele é ao mesmo tempo popular e erudito. Ecio escreve com brilhantismo e competência sobre assuntos que, na maioria das vezes, são relatados de modo equivocado por aqueles que se dizem profundos conhecedores da cultura hiphop. O rap – forte aliado na afirmação de identidades específicas, visto sua apropriação pelas elites – e o sampling, acusado de “necrofilia artística”, têm sido os alvos preferidos.
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Contra essa corrente, temos rappers se valendo da palavra e de sua voz como arma que fala pela favela, buscando no passado brasileiro parentescos capazes de legitimar o seu modo de expressão. Este livro nos leva a uma profunda reflexão sobre o papel essencial que tem o hip-hop nas comunidades brasileiras, e nos conta como alguns legítimos representantes o eternizaram através de suas poesias urbanas. Raffaello Santoro (Dj Raffa)
Táticas de Guerrilha
Tenho a impressão de que setenta por cento dos prefácios são encomendados na porta da gráfica, para ontem. O livro a caminho do prelo, a mudança de idéia e o pedido. Para ontem, se possível. Felizmente, esse curto prefácio começou a ser escrito uns anos atrás. A tese – “Poesia Revoltada: rap, raça e cultura brasileira” – recém-defendida pelo Ecio me foi entregue pela Heloisa Buarque de Hollanda. Eu trabalhava na Aeroplano na época, e a tese acabou me servindo de bibliografia para um trabalho da faculdade sobre hip-hop. Lembro ainda de assistir, na seqüência, a uma palestra do Ecio no PACC-UFRJ, sobre o tema. Mas eu já conhecia o Ecio de antes, do Afro Reggae. Ainda moleque, em 1997, fui para Vigário Geral com meu pai e Bernardo Vilhena na inauguração do Centro Cultural do Afro Reggae. No ano seguinte, Ecio publicou um poema meu no jornal do grupo – na edição que comemorava a primeira turnê deles pela Europa. Felizmente, comecei esse texto alguns anos atrás. O Ecio começou faz tempo sua história com o rap, o hip-hop, e toda essa cultura da margem – cultura inquieta, de misturas, de aluvião e que de revoada se mistura com a água revolta da chuva. E fica aquela tontura de não entender muito bem de onde tudo isso saiu. A favela era então pra mim um espaço, de algum modo, comum.
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Focalizo o trabalho de rappers que se posicionam claramente como porta-vozes das comunidades pobres que os viram nascer e motivaram a sua arte. Racionais MCs, MV Bill, Gog. São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília. O rap politizado mostra a face. A face da favela e a devolve para a favela. Com os favos recheados de mel e os dentes carregados de veneno, da vida cansada. A favela abre seus espaços, (..) a favela como um espaço possível de construção de uma outra perspectiva – sobre a própria favela, sobre a cidade, talvez sobre o mundo até. A voz que emerge da favela em busca de voz. Ser uma espécie de mediador entre a favela e a sociedade de maneira geral. De uma favela que transborda de verdade e realidade, rasgando as mentes plásticas a caminho de suas casas de plástico. E os rappers, verdadeiros mensageiros, estabelecem um vínculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades. O que Ecio faz é destrinchar a trincheira e nos mostrar a força e solidez desta manifestação artística impregnada de uma realidade que a tantos tanto incomoda. Arte de conjunto, que se alia, que dialoga com outras artes – seja no grafitti, no break, no vídeo. Que é viva e explode, e questiona e briga. Transforma-se e se contradiz, porque nada é sempre igual – pois se adapta para continuar lutando. O rapper põe em relevo a fala dos que não falam, e se esforça em fazer-se entender pelos seus da melhor maneira possível. Por isso, procura interessadamente refazer os laços com a vida, com a realidade que o cerca. Ecio realiza um trabalho cirúrgico, disseca corajosamente a carcaça viva e mutante do rap, sem medo de ser mordido no processo, pois o processo lhe é natural. Como canta MV Bill: Vamos fazer uma longa viagem/ (...) na vida dura/ Na vida simples. Na vida triste/ De muitas pessoas que como nós/ Vivem às margens da sociedade. Vivem sem voz, acuadas e oprimidas/ Vamos fazer uma longa viagem/ Numa cidade que segue sofrendo/ Que sofre vivendo e que chora sorrindo e sangra sem choro.
Prefácio
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Ecio Salles está em vantagem. Tem uma visão privilegiada do processo, sem estar de fato no processo. Mas também sem o distanciamento asséptico do colonizador. Ecio tem conhecimento de causa e se utiliza dele com habilidade. Conhece a favela. Conhece os meandros acadêmicos. Sabe fazer as conexões. Sem tentar domar a besta, a ilumina de tal forma que nos faz pensar sobre toda a cultura brasileira. “A gente vive se matando irmão/ Por quê?/ Não me olhe assim/ Eu sou igual a você”, MV Bill questiona e incita. Através dos rappers, Ecio nos apresenta o surgimento de um novo discurso sobre a identidade brasileira. Uma fala imperativa, direta. “É preciso estar atento, consciente” (MV Bill). O valor da mensagem. Ecio Salles traça um reflexo atual do Brasil real marcado pelo crescimento da miséria, declínio da educação e saúde, avanço do desemprego, proliferação das favelas, preservação de preconceitos e discriminações herdadas da escravidão, tudo isso gerando o recrudescimento da violência, a violência do Estado, representada pela força policial, e a oriunda do crescimento do narcotráfico – instaurou um clima de guerra,(...) cuja resposta mais virulenta veio das favelas. Um espaço que troca a mandinga, o gingado, pela constância industrial dos projéteis. O punhal trocado pelo fuzil. O samba posto de lado porque camisa de seda não segura bala. “A primeira faz bum, a segunda faz tá/(...)/ minha palavra valeu um tiro, eu tenho muita munição (...)/ o rap venenoso é uma rajada de PT” (Racionais MCs). Através do rap, Ecio nos apresenta a imagem de um país em cacos. Cacos de vidro.
Omar Salomão
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Preâmbulo Eu moro no pé do morro que fica ao lado de uma favela é tão perto que eu acho que eu faço parte dela. Trecho de “Raça Brasileira”, de Zé do Cavaco, Mathias de Freitas e Elaine Machado
Às vezes são enviesados os caminhos que nos levam ao nosso destino. No final da década de 80 ouvi, no filme Faça a coisa a certa, de Spike Lee, um rap que me impressionou muito: “Fight the power”, do Public Enemy. No início da década de 90 fui surpreendido por um disco, emprestado por um amigo, do grupo Racionais MCs. Foram duas experiências que se refletiram positivamente em mim. Não descansei até que tivesse adquirido os dois discos – Fear of a black planet, do Public Enemy, e a Antologia B.O., dos Racionais. Mais tarde, conheci outros grupos e artistas de rap. De uns gostei mais, de outros, menos. De qualquer forma, o rap era apenas um estilo de música que me interessava. Não passava por minha cabeça um dia escrever sobre o tema. Isso começou a mudar no final de 96, foi quando travei o contato mais próximo com o Grupo Cultural Afro Reggae, instituição na qual ingressaria no ano seguinte.
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A própria história do Afro Reggae é em si interessante e guarda alguns pontos de contato com certos aspectos da cultura hiphop, ou pelo menos de uma certa cultura hip-hop. O trabalho que o grupo vinha realizando em favelas do Rio de Janeiro – naquela época Vigário Geral, na Zona da Leopoldina, já encostando em Caxias, e no Complexo Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, Zona Sul da cidade – já começava a se destacar como importante forma de mobilização de processos de cidadania e transformação social através da arte. Eu comecei como revisor do jornal publicado pelo grupo, o Afro Reggae Notícias. Depois, em 97, passei a integrar a equipe editorial do periódico. Mais tarde, essa equipe seria desfeita por diferentes razões, e eu permaneceria, agora como editor do veículo. O fato de trabalhar no Afro Reggae, de conviver com os integrantes do grupo, seus parceiros, seu ambiente, provocou duas mudanças substanciais em meu modo de ver o mundo. O primeiro dizia respeito à minha relação com o espaço das favelas. O segundo, à minha relação com a cultura popular. Nasci e cresci em Olaria, um bairro do subúrbio da Zona da Leopoldina, bem no local onde o asfalto começa a subir o morro. O Morro do Alemão, no caso. No tempo de minha infância até a adolescência, ninguém o chamava de Complexo, como nos acostumamos a fazer hoje. Chamávamos cada localidade por seu nome: Morro da Esperança (ao pé do qual minha casa e parte da minha vida ergueram seus alicerces); Morro da Baiana; Nova Brasília; Fazendinha; Morro do Adeus... São dezesseis ao todo, hoje reunidas sob o estigmatizado epônimo de “Complexo do Alemão”. O curioso é que o tal alemão que deu nome ao local – um antigo sitiante que acabou perdendo as terras para as famílias que foram subindo as encostas e construindo os primeiros barracos – era, na verdade, polonês, segundo algumas versões para a fundação da comunidade, ou holandês, segundo outras. A favela era então para mim um espaço ao qual, de algum modo, eu pertencia. Espaço de aventuras, porque a molecada
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da minha época impunha desafios, como subir até o cume do morro, de onde se podia ver o bairro de Inhaúma, ou até as pedras no lado desabitado, pra caçar coruja viva (tarefa na qual sempre fracassei redondamente). Era também o espaço onde fiz amizades, conquistei amores (e algumas decepções) e cultivei histórias. Não só no Alemão, mas também em Acari – outra comunidade famosa, personagem do belo livro de Marcos Alvito1 – onde moravam parentes que freqüentávamos bastante. Também na Rocinha, onde minha mãe tinha uma grande amiga, cujo filho ajudou a construir parte da minha casa em Olaria e se tornou bom amigo da família. Ainda bem garoto, eu gostava de visitá-lo e avistar, meio de longe, é verdade, as rodas de samba nas curvas sinuosas da favela, que, naquela época, era considerada a maior da América Latina. Entretanto, nunca tinha percebido a favela como um espaço onde fosse possível a construção de uma outra perspectiva sobre a própria favela, sobre a cidade, talvez até sobre o mundo: a favela como sujeito de transformação social. Não a estigmatizada: da miséria, da violência e das guerras de facção, que ganhava as capas de revista e folhas de jornal. Tampouco a idealizada: espaço improvável da revolução armada ou da pobreza feliz e conformada, dona da razão de descumprir deveres (pagar contas, impostos etc.) por não ter acesso aos direitos. Com meu trabalho no Afro Reggae, aprendi a descobrir a favela como um espaço múltiplo e criativo, capaz de converter a precariedade em potência transformadora. E, de certa forma, passei a me sentir ainda mais ligado a esse mundo. Quanto à minha relação com a Cultura Popular, creio que o aspecto mais relevante foi a passagem de um ponto de vista de curioso apaixonado, que desde sempre foi o meu em relação a esse universo, ao de personagem, de algum modo atuando na história, interagindo ativamente com o reino da arte. O que me tornou ainda mais curioso. Ainda mais apaixonado. Talvez por 1 Alvito, Marcos. As cores de Acari. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
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isso, diante de minha falta inata de talento para a música (ou o teatro, ou a dança), tenha me tornado pesquisador. Esse movimento, por vias inesperadas, também foi devido à minha relação com o Afro Reggae. Em 1997, tinha desistido da faculdade e, um ano depois, me deparei com um mundo tão fascinante e tão repleto de possibilidades, que decidi refletir sobre ele. De certa forma, sinto que esse era um modo de mostrar gratidão pela descoberta e pelas razões que a ela me conduziram. Ao mesmo tempo, a opção por estudar essas manifestações da cultura popular era uma maneira de reatar pontos mal resolvidos de minha trajetória, considerando que nunca tinha sentido com precisão qual o meu papel naquele contexto. Dessa forma, paradoxalmente, foi o fato de trabalhar numa associação visceralmente jovem e popular que me reconciliou com a universidade. Fez-me perceber novas potencialidades do trabalho acadêmico. Novas para mim, que não as havia percebido antes. Foi assim que, após me formar na UERJ, em 1999, participei da seleção para o Mestrado em Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense. Aprovado, comecei o curso com o entusiasmo de um adolescente. Mas também com grandes preocupações. O tema que me instigava – a produção de hiphop no Brasil e suas articulações com a questão da identidade nacional – era bem pouco ortodoxo e eu já previa problemas. De fato, preocupava-me a adequação do tema à disciplina, depois às linhas de pesquisa e, finalmente, como encontrar a orientação adequada. Superados os problemas, em 2002 concluí a pesquisa, que havia priorizado sobretudo o período compreendido entre o final da década de 90 e início da seguinte. É justamente o resultado desse trabalho que agora se desdobra na publicação deste livro, com algumas modificações a fim de amenizar um pouco a sua inflexão acadêmica. Desde então, alguns aspectos da cultura hip-hop se modificaram, com maior ou menor intensidade. De qualquer forma, sempre me deixando a certeza de que uma reflexão sobre o assunto,
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por mais consistente que seja, é necessariamente provisória. Mal terminei de escrever este trabalho, todos os rappers ou grupos de rappers que estudei lançaram novos discos, trazendo novas questões, aqui e ali contradizendo, ou pelo menos problematizando, conclusões a que eu tinha chegado. De todo modo, o fato é que todos eles, certamente, ainda lançarão outros álbuns, trazendo mais uma vez novos ingredientes para a discussão. Da mesma maneira, também de mim se possa dizer o mesmo. Após concluir o trabalho, outras informações, experiências ou acontecimentos fizeram com que eu amadurecesse, e em alguns casos até repensasse algumas das questões que aqui abordadas. Isso é importante, uma vez que só acredito no trabalho intelectual se movido por inquietação e curiosidade. É a partir daí que dou os primeiros movimentos na direção do tema da pesquisa, das teorias e das metodologias a serem empregadas. Por isso, parece-me inevitável que ainda outras mudanças venham a acontecer, tanto no contexto do hip-hop quanto no da teoria ou no da minha forma de ver o mundo. O que está impresso neste volume é um olhar parcial sobre um caso e um momento específico da cultura popular. Um momento em que, nesse campo, se conquistava uma posição estratégica para os debates que se seguirão a respeito de raça, racismo, identidade, nação e da própria cultura. Outros casos e momentos virão, certamente. Espero estar lá, a fim de prosseguir nesse tenso, intenso diálogo.
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CAP.01
A poesia revoltada rap, hip-hop e rappers.
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rappers.
rap, hip-hop e rappers.
O rap sempre esteve aqui, desde quando Deus falou com Adão, Moisés e os profetas. Ele cantava rap para eles. (...) Mesmo Shakespeare já rimava e cantava rap na sua época. Assim, o rap sempre esteve aqui. Afrika Bambaataa
Do Bronx à estação São Bento De modo bastante sintético, pode-se dizer que o rap é uma forma de expressão musical criada em meados dos anos 70, nos Estados Unidos, embora suas raízes remetam a uma movimentação musical já presente no final dos anos 60 – “As raízes do rap remontam pelo menos ao fim dos anos 1960 e aos Last Poets, um coletivo de jovens negros militantes que puseram sua raiva em rimas e percussão” (Cachin, 1996: 16). De forma bastante resumida, pode-se dizer que tudo começou quando um velho costume dos jovens da Jamaica, o toastie (falas ou canções improvisadas sobre uma base instrumental), foi transplantado para Nova York pelo DJ jamaicano Kool Herc. Também contribuíram para a gênese e o desenvolvimento do rap as atuações dos DJs Grand Master Flash e Grand Wizard Theodor e as idéias musicais inovadoras de Afrika Bambaataa. Este último, um ex-membro de gangue de rua do Bronx, remixou a faixa “Trans-Europe Express”, da banda de música eletrônica alemã Kraftwerk, dando à luz “Planet Rock”, a composição que
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marcaria o início de uma revolução musical. Naquele momento, entretanto, o rap era sinônimo de entretenimento – era o som que embalava as grandes festas que, a partir de 1976, tomaram conta do Bronx, bairro negro de Nova York. Anos depois, já no início da década seguinte, aparece o rap de caráter politizado. “How we gonna make the black nation rise?”, gravado em 1980, é um dos primeiros exemplos de rap a assumir uma postura militante e politicamente engajada. Esse estilo desviava-se consideravelmente das idéias pacifistas propostas inicialmente por Bambaataa, mas mostrou-se muito significativo para a população afro-americana naquele momento. Poucos anos depois, surge o Public Enemy, grupo que teve grande importância, porque representou um novo momento para o rap não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Com um discurso muito mais politizado e trazendo certa sofisticação no tocante à exploração de novas possibilidades sonoras, o Public Enemy inspirou inúmeros rappers, entre os quais os incluídos neste livro. No Brasil, o rap se consolidou no final da década de 80. Os primeiros rappers aqui surgiram de equipes de breakdance que se encontravam no centro de São Paulo, primeiro na Praça Ramos, em frente ao Teatro Municipal, depois na rua 24 de maio e, finalmente, na Estação São Bento do metrô paulistano, que acabou se tornando uma espécie de santuário do hip-hop no Brasil. Thaíde e DJ Hum, que integravam a equipe de breakdance Back Spin, participaram da primeira coletânea de rap a obter repercussão nacional, intitulada Hip-hop cultura de rua, em 1988, que vendeu mais de 25 mil cópias (Rocha; Domenich; Casseano, 2001: 51). Cerca de uma década depois, o “fenômeno” Racionais MCs tornou a linguagem de artistas que se reivindicam negros favelados conscientes conhecida em todos os grandes centros urbanos do país, seduzindo inclusive uma parcela significativa da classe média no Rio de Janeiro, cidade que podemos considerar uma espécie de termômetro cultural do Brasil.
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Esse sucesso, até porque se construiu à revelia da grande mídia, atraiu a atenção de diversos setores da sociedade – como a própria mídia, as grandes gravadoras, os intelectuais. Na verdade, muita gente se surpreendeu com o fato de grupos surgidos em favelas paulistas, com uma linguagem politizada e virulenta, tornarem-se referência para sua gente e, ao mesmo tempo, trilhas sonoras de carros importados circulando pelos bairros nobres dos principais centros urbanos do país.
O rap e o hip-hop O rap é parte de uma realidade maior: a cultura hip-hop. O termo foi estabelecido por Afrika Bambaataa, em 1978, e fazia referência a uma forma de dançar, popular à época, que consistia em saltar (hop) e movimentar os quadris (hip). O hip-hop tornou-se, então, uma forma de organização sociocultural que envolve o rap (MC e DJ), dança (break) e artes plásticas (graffiti). Sem falar em uma indumentária específica – da qual bonés, roupas e tênis esportivos são o destaque – que, no mundo inteiro, estabelece a moda hip-hop. MC (Mestre de cerimônias): o termo é adaptação do inglês “master of cerimony”. O MC é aquele que “fala” enquanto a música é tocada. Devido ao fato de, no Rio de Janeiro particularmente, o termo MC ter sido primeiramente associado à cultura funk, preferi utilizar neste livro a designação “rapper”. DJ (Disc-Jockey): originalmente, o DJ era o animador de um programa musical em rádio, aquele que selecionava os discos, determinava sua ordem de passagem e seu encadeamento. Em meados dos anos 70, tornou-se, graças à evolução tecnológica dos meios de reprodução e à extensão dos processos de manipulação da matéria sonora, um criador completo. O par DJ/MC (ou rapper) constitui a espinha dorsal do rap.
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Breakdance: dança de passos quebrados e robóticos que “vai desenvolver-se ao sabor da contorção dos breaks1 entre e dentro das músicas”, consistindo na execução de passos que tentam imitar a maneira sincopada com que a música rap se apresenta (Contador & Ferreira apud Pimentel, 1999: mimeo). Muitos passos dessa forma de dança, surgida em finais dos anos 60, representam protestos contra a Guerra do Vietnã. Alguns simulavam os movimentos dos soldados norte-americanos que retornavam mutilados, outros aludiam a equipamentos utilizados no conflito. É o caso de um giro de corpo, executado com a cabeça apoiada no chão e as pernas para cima, de forma a mimetizar as hélices dos helicópteros que atuaram na guerra. Graffiti: Basicamente, pinturas feitas, na maioria das vezes com tinta spray, sobre as mais variadas superfícies: muros, laterais de trens, painéis... Alguns autores remetem aos desenhos feitos nas paredes das cavernas pelos primeiros homens as primeiras manifestações do graffiti. Na década de 70, ele é apropriado pelos negros e latinos dos guetos novaiorquinos, que exercitavam suas habilidades pintando seus nomes (a escritura de nomes nas paredes é conhecida entre os grafiteiros como “tag”) e personagens em vagões de trem e metrô, paredes de linhas férreas, prédios abandonados, becos. Com isso, fizeram do graffiti um veículo eficaz de sua indignação.
Os rappers Para não me perder no labirinto de informações que o assunto escolhido me disponibiliza, proponho um recorte muito claro: minha reflexão partirá da análise das letras dos raps, embora não me furte a eventualmente considerar também o ritmo e a melodia (incluindo aí, naturalmente, o aproveitamento de tecnologias sonoras) e, sobretudo, a voz/performance na execução das composições de, basicamente, três rappers. 1 Break beats: parte das músicas em que a batida ganha relevo. Esta é fundamentada no recorte e repetição, às vezes alteração de velocidade, de uma célula rítmica escolhida pelo DJ.
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São eles: Racionais MCs (SP); MV Bill (RJ) e Gog (DF). Foram escolhidos tão somente em virtude de serem, na minha opinião, expressivos o suficiente para representar um tipo de rap que selecionei, e terem consolidado uma carreira, de certo modo, não restrita a um círculo fechado. Em suma, todos eles comungam algumas características relevantes para o encaminhamento a que me propus: são afro-brasileiros e se reivindicam como tais; nasceram em comunidades pobres de grandes centros urbanos do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília); seus trabalhos conseguiram projeção nacional e gozam de notável reconhecimento por parte de um público que transcende as fronteiras de suas comunidades; todos se sentem, segundo pude notar, parte de um movimento ou de uma cultura comum, que se define por recorte racial e posicionamento político. Esses rappers também têm em comum o fato de que – na contramão do que tem sido destacado com relação a outras manifestações da música popular negra – preferem não sorrir em público, nem dançar ou cantar com o que se julga ser “o suingue típico dos negros”. Em resumo, alegria e descontração não são esperáveis num show desses artistas ou grupos, pelo menos não como acontece numa apresentação, por exemplo, de Gabriel O Pensador, no universo do rap, ou do grupo Negritude Jr., fora dele. Hoje em dia não é possível falar num estilo único de rap. Há rappers que insistem na fórmula DJ e MC, e outros que preferem atuar acompanhados por bandas; há aqueles que condenam de forma veemente as drogas, e aqueles que as defendem fervorosamente (o grupo carioca Planet Hemp, por exemplo). Isso nos permite imaginar categorias nas quais pudéssemos estabelecer estilos de rap diferentes entre si. Quero deixar claro que meus comentários referem-se a uma modalidade específica de rap. Nem sempre o que direi sobre esta servirá para as outras. Passo a discriminar as que considero como principais. O funk Miami, notadamente no Rio de Janeiro, foi muito confundido com o rap. Talvez porque, quando surgiu nos morros cario-
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cas, os funkeiros se autodenominassem “MCs” e as músicas que cantavam fossem denominadas “raps”. O nome refere-se ao fato de os DJs de funk utilizarem quase sempre o beat criado naquela cidade dos Estados Unidos, por isso denominado Miami bass. O gangsta rap se caracteriza pela batida mais pesada. As letras tratam de crimes, drogas, violência, prostituição, conflitos entre gangues. O nome tem origem numa corruptela do termo gangster, e o mundo violento que cantam é a expressão de uma realidade brutal: em 1997, dois dos maiores representantes desse gênero – Notorious BIG e Tupac Shakur – foram assassinados a tiros por causa de brigas de gangues. No Brasil, o gangsta não se difundiu muito. Os exemplos mais conhecidos estão em Brasília, onde grupos como o Cirurgia Moral assumem alguns aspectos do estilo. Há também o rap gospel. Como o nome indica, esse gênero é voltado para a religiosidade. No Brasil – em contraste com os Estados Unidos, onde grande parte dos rappers são muçulmanos – os grupos ou rappers gospel dedicam-se à glorificação de Jesus Cristo. Em muitos casos, não se trata de uma adesão às religiões cristãs, católica ou protestantes. O que lhes interessa é a pregação dos ensinamentos de Cristo, que é reinterpretado como um homem negro, que pregava ideais semelhantes aos dos rappers atuais. Aqui focalizo especificamente o trabalho de rappers que se posicionam claramente como porta-vozes das comunidades pobres que os viram nascer e motivaram a sua arte, caso dos já citados Racionais, MV Bill, Gog. Este é o que chamarei aqui de rap politizado. Embora se possa dizer o mesmo de outras vertentes, acredito que o rap com o qual decidi trabalhar é o mais consciente do seu papel político junto a suas comunidades. Cabe salientar que, neste ponto, os próprios rappers fazem questão de se diferenciar das duas primeiras modalidades que apresentei: do funk Miami, porque o consideram alienado; do gangsta, porque o consideram glorificador da violência. Quanto
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ao rap gospel, a diferença reside apenas na ênfase que este coloca na pregação da palavra de Cristo; a forma estética e os pontos de vista político-sociais são parecidos, senão idênticos. Em suas composições, os rappers priorizados aqui problematizam uma idéia, ainda hoje hegemônica, de Brasil multirracial, fundado na miscigenação pacífica e cordial das diversas raças. O conceito de democracia racial é a base de uma idéia de nação que, desde o século XIX, embora só sistematizada de maneira orgânica no século seguinte, tem sido elaborada cuidadosamente de modo a evitar o conflito, a manter as diferenças e os desníveis razoavelmente controlados. O discurso do rap, porém, questiona duramente essa idéia. O contexto social objetivo em que surge – a favela – é capaz de nos fornecer elementos para a compreensão dessa radicalidade. Elementos que nos permitem entender o porquê de o rap norte-americano, uma linguagem enfaticamente não-cordial, ter sido acolhido entusiasticamente no país do suingue.
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CAP.02
Capítulo
CAP.02
Rap: cultura popular, arte à margem
cultu arte Ă margem
ar, cultura popul arte Ă margem
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A história das artes não é uma única história, mas, em cada país, pelo menos duas: aquela das artes enquanto praticadas e usufruídas pela minoria rica, desocupada ou educada, e aquela das artes praticadas ou usufruídas pela massa de pessoas comuns. Eric Hobsbawn
Segundo o Dicionário de relações étnicas e raciais, o vocábulo “rap” pode ser definido da seguinte maneira: “Termo que deriva da gíria para fala e refere-se ao gênero meio falado, meio cantado que se tornou a tradução musical da experiência afro-americana das décadas de 1980 e 90” (Cashmore, 2000: 475). O fundamental Dicionário Groove de Música é lacônico em relação ao verbete: “Estilo de música popular dos negros norteamericanos, consistindo de rimas improvisadas, interpretadas sobre um acompanhamento rítmico; teve origem em Nova York, em meados dos anos 70”. Já Olivier Cachin, em L’offensive rap, explica que “a palavra rap, antes de vir a designar a arte de falar em rimas sobre uma base rítmica, existe há muito no vocabulário americano: take the rap (pagar pelos outros); don’t give me this rap (não me venha com esse papo furado) são expressões correntes”(Cachin, 1996: 14). Ao que uma matéria do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, acrescenta que a palavra “rap” tem muitos significados em inglês. “Ela remete tanto à expressão ‘pancada seca’ quanto à idéia de ‘criticar duramente’” (14 de outubro de 2001). 38
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Realmente, quando surgiu, o rap chamou a atenção pelo fato de ser uma música muito mais falada que propriamente cantada. No entanto, assinalar dessa maneira a origem do termo, realçando aspectos do étimo há muito vigentes na língua inglesa falada nos Estados Unidos da América, negligencia um dado importante, uma vez que acaba omitindo a versão das ruas, divulgada entre os próprios hiphopers, para definir o rap: rhythm and poetry. Por outro lado, esse argumento, por si, não impede uma dificuldade inicial: pode-se considerar o rap como arte? E como literatura? Deixando de lado qualquer pretensão em demonstrar de maneira definitiva o grau de artisticidade ou mesmo literariedade do rap, algumas palavras talvez sejam necessárias, a fim de tornar suficientemente clara a minha compreensão sobre o rap e o espaço que ele ocupa em nossa cultura, inclusive no âmbito literário. É evidente que o rap, sendo literatura, não o é em sentido estrito – e, diga-se de passagem, mesmo o reconhecimento do status de música lhe é dificultado. Portanto será necessário levantar inicialmente algumas formas de entendimento do rap em diferentes estudos. Parece-me evidente a necessidade de lançar mão de recursos transdisciplinares para um melhor entendimento da cultura nesta passagem entre séculos, e em que perde um pouco o sentido, conforme propuseram os Estudos Culturais, a separação entre culto, popular e massivo. Entendo o rap como parte da cultura popular brasileira em uma nova fase, que enfrenta os desafios do fenômeno denominado globalização e os avanços tecnológicos que permitiram a criação de uma nova e formidável forma de fazer arte, bem no coração do ambiente urbano brasileiro. Essa nova forma surge justamente no momento em que reinam a incerteza e a dispersão de sentidos, e no qual parece que a cultura das elites como a conhecemos entra em choque com os novos media e com a moderna tecnologia, em outras palavras: no momento em que a arte culta como tal declina.
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“Não surpreende que muito poucos se preocupem com um tema cujo mero enunciado resulta irrisório em meio a esse clima: o lugar da arte e da cultura culta na vida social”, reclama Beatriz Sarlo (2000: 8). Por outro lado, Silviano Santiago, em uma argumentação até certo ponto próxima à da crítica argentina, também identificava que, nos dias de hoje, “relações amorosas e gratuitas, entre objeto de arte e leitor, se tornam relações objetivas e industriais, entre mercadoria e consumidor” (Santiago, 2000: 7). De fato, esse problema não tem sido ignorado nos debates acadêmicos de uns anos para cá. Ainda assim, restam questões a serem consideradas. Sobretudo quando a abertura a novas perspectivas de abordagem dos fenômenos artísticos passa a ser relacionada a uma suposta queda no padrão de qualidade da reflexão crítica em geral. Em outras palavras: voltar a atenção para os fenômenos culturais de massa, como o rap, o rock, programas de televisão etc., significaria um rebaixamento da crítica. O triunfo da indústria cultural, borrando a fronteira entre cultura e consumo, teria, dessa maneira, inviabilizado a discussão. O fato de haver uma cultura popular e massiva implica, naturalmente, que aquilo que não se inclui nesse campo seja qualificado com a rubrica: de elite ou erudita. Se é assim, de fato não há o que discutir. Temos de um lado a cultura popular, dispondo de grandes público e prestígio nos diversos meios de comunicação; de outro, a cultura das elites, restrita a pequenos círculos de iniciados, quase sempre ressentidos de sua escassa visibilidade. Mas até que ponto a questão não está, de um lado a outro da discussão, tão contaminada de preconceitos que alguns detalhes importantes são elididos, impedindo de saída uma compreensão menos compartimentalizada dos modos de existência de uma e outra? Afinal, não é de hoje que a cultura popular e a erudita ou culta têm manifestado pontos de contato e entrecruzamentos que vão formando a nossa imaginação comunitária.
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Por outro lado, a expressão “cultura popular”, como anotou Marilena Chauí, é de difícil definição. A própria história do conceito revela a oscilação de acordo com objetivos, tendências, vale dizer, ideologias de determinadas épocas. De qualquer modo, interessa-me particularmente o viés pelo qual a filósofa desenvolverá sua argumentação, propondo a cultura popular como “expressão dos dominados”, entendendo-a não “como uma outra cultura ao lado (ou no fundo) da cultura dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela” (Chauí, 1994: 24. Grifo da autora). Néstor García Canclini propõe um entendimento semelhante, ao postular que é o povo que produz as suas próprias formas de representação e reelaboração simbólica de suas relações sociais (Canclini, 1983), em um processo que está sempre se reatualizando. Como entendia o autor, a preocupação no que diz respeito ao popular deve ser menos com o que se extingue do que com o que se transforma. Enfim, o popular não se define a partir de uma essência previamente estabelecida, “mas pelas estratégias instáveis com que os próprios setores subalternos constroem suas posições” (Canclini, 1998: 23). Tais estratégias, por sua vez, indicam a forma através da qual os pobres estabelecem reações ao movimento vertical e homogeneizador da cultura de massas que, orientada pelo mercado, mostra-se indiferente às especificidades de cada diferente comunidade. Onde o mercado buscou impor, como explica Milton Santos, uma cultura domesticada, surge também “a possibilidade [...] de uma revanche da cultura popular sobre a cultura de massas” (Santos, 2001: 143-144), na medida em que se difunde através dos recursos que originalmente pertenciam à cultura de massas. É bem o caso do rap, um modo de fazer arte “arquitetado no coração da decadência urbana”, a transformar “os produtos tecnológicos, que se acumularam como lixo na cultura e na indústria, em fontes de prazer e poder” (Rose in Herschmann, 1997: 192).
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Arte em estado vivo Richard Shusterman denomina “arte em estado vivo” as formas expressivas da cultura popular, inclusive o rap (Shusterman, 1999: 12 et passim). O autor investe um esforço enorme para discutir a validade desse estilo como arte (“como eu gosto desse gênero de música, tenho um interesse pessoal em defender sua legitimidade estética” (1999: 144)) e refutar as noções preconceituosas que o relegam a “lixo cultural”.1 Para Shusterman, o rap não apenas faz a crítica de um determinado modelo socioeconômico, ele também questiona uma concepção de arte e estética que se afaste da realidade, ou que constitua nichos de saber – e, portanto, de poder – inacessíveis a uma população que, na verdade, seja porque não saiba, seja porque não se interesse, não lê. “Esses rappers repetem constantemente que seu papel enquanto artistas e poetas é inseparável de seu papel enquanto investigadores atentos da realidade e professores da verdade” (Shusterman, 1999: 160), notadamente os aspectos da realidade e da verdade omitidos ou distorcidos pelos livros de história oficial e pela mídia. Rappers como os que estudo aqui trabalham suas composições a partir de conteúdos que têm, de fato, muito de investigação da realidade e busca da verdade. Não é à toa que a sigla “MV”, no nome do rapper MV Bill, designa nada menos que “mensageiro da verdade”. No entanto, a sua “investigação da realidade” e a “profissão de verdade” na qual investem, não raro ultrapassam o objetivo de investigar a realidade e proferir a verdade, configurando-se como algo que vai além do relato de circunstâncias do dia-a-dia das periferias. A meu ver, eles estabelecem um 1 “A arte popular não tem gozado de tamanha popularidade junto aos filósofos e teóricos da cultura [...]. Quando não é completamente ignorada, indigna até de desdém, ela é rebaixada a lixo cultural, por sua falta de gosto e reflexão” (Shusterman, 1999: 99). Ou ainda: “O rap é um dos gêneros de música popular que mais se desenvolve atualmente, mas também um dos mais perseguidos e condenados. Sua pretensão ao status artístico submerge numa inundação de críticas abusivas, atos de censura e recuperações comerciais” (Shusterman, 1999: 143).
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vínculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades, o qual implica uma recuperação de aspectos do fazer artístico há muito superados na história da cultura ocidental. Afinal, na Antigüidade poesia e música eram inseparáveis (Dufrenne: 1969, 64), assim como a vida e a arte. Richard Shusterman trabalha com raps que reivindicam textualmente o seu reconhecimento como arte (o exemplo que analisa é uma música do grupo estadunidense Stetsasonic: “Talkin’ all that jazz”: “You criticize our method/ of how we make records/ you said it wasn’t art,/ so now we’re gonna rip your apart” – p. 191). O seu método consistirá em opor as bases de definição artística do rap àquelas estabelecidas pela cultura ocidental, sobretudo a partir do advento da modernidade. O rap é, no entender do autor, uma manifestação artística típica do pós-modernismo. Ele reconhece os questionamentos que ainda hoje são lançados ao conceito de pós-modernismo, mas indica alguns aspectos que o definiriam – apesar de ser possível identificá-los, “com certa nuança, em obras de arte modernas” – e, no mesmo passo, incluiriam o rap em seu bojo: “a tendência mais para uma apropriação reciclada do que para uma criação original única, a mistura eclética de estilos, a adesão entusiástica à nova tecnologia e à cultura de massa, o desafio das noções modernistas de autonomia estética e pureza artística, e a ênfase colocada sobre a localização espacial e temporal mais do que sobre o universal ou o eterno” (Shusterman, 1999: 145). Já o filósofo francês Christian Béthune, em Le rap – une culture hors la loi, afirma o seu entendimento do rap como arte, na medida em que a sua abordagem do assunto prioriza a dimensão estética.2 Ao propor que o rap põe em cena uma manifestação artística 2 Na nota de advertência à tese que defende em seu livro, Christian Béthune explica: “Conforme um uso da linguagem filosófica, eu utilizo os termos ‘poética’ e ‘estética’ de acordo com sua etimologia. O domínio do poético refere-se ao ponto de vista da fabricação das obras (de ποιησιζ , fabricação), o domínio do estético (de αισθησιζ, sensação) refere-se ao ponto de vista do sujeito que percebe as obras e conseqüentemente as julga” (Béthune, 1999: 5). A tradução dessa e das demais citações de todas as obras consultadas na língua francesa são de minha autoria.
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legítima, Béthune demonstra como a sua matéria sonora, para efetivamente se realizar, depende da combinação de diversos procedimentos manuais e tecnológicos, os quais por sua vez dependem de um material sonoro previamente gravado para garantir a execução da performance. “O rap manifesta um aspecto lúdico da obra que, por sua redução normativa ao original considerado como sagrado, o discurso dominante sobre a obra de arte tentava desde então descartar (Béthune, 1999: 11). O olhar do filósofo sobre a cultura hip-hop permite uma avaliação menos preconceituosa sobre uma produção poética que, em última instância, tenta afirmar-se no cenário onde vários discursos conflitam, aproximam-se, repelem-se, entrecruzam-se. E mais, permite a valorização da música rap como jogo – um jogo, todavia, muito sério, como tentarei mostrar. Béthune nota que os estudos que se dedicam exclusivamente aos condicionamentos históricos ou implicações sociológicas do rap acabam, de um modo ou de outro, por elidir da discussão a perspectiva propriamente estética, “como se se tratasse implicitamente de um aspecto secundário, mesmo negligenciável” (1999: 15). O autor vai orientar o seu interesse no rap na direção daquilo que ele tem de criação cultural, e não apenas como epifenômeno vinculado às condições desastrosas da vida urbana e à condição de párias econômicos e sociais em que se encontram determinadas comunidades, sejam os guetos negros estadunidenses, as banlieues francesas ou as favelas no Brasil. “Certamente, o rap é o reflexo de uma violência, de uma penúria e de um desespero ligados às discriminações de toda ordem engendradas pelas dificuldades de nossa época, mas no mínimo ele o é, ousemos dizê-lo, da mesma maneira que podia sê-lo a tragédia grega diante da crueza de uma existência devotada à fatalidade de um destino inexorável, ou o romance do século XIX confrontado às mesquinharias de uma burguesia assenhorando-se sem pudor da melhor fatia do bolo” (Béthune, 1999: 15). Quanto às semelhanças apontadas por Béthune entre o rap e formas anteriores de expressão artística é preciso estabelecer
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certas nuances. Há uma diferença básica, que, a meu ver, está no ponto de vista. Nem a tragédia grega, nem o romance do XIX – embora fossem muitas vezes obras populares de grande receptividade – traziam em suas respectivas épocas a voz dos principais excluídos, mas, na melhor das hipóteses, a voz de “incluídos” que, às vezes, falavam por aqueles. Já o rapper, ao contrário, põe em relevo a fala dos que não falam, e se esforça em fazer-se entender pelos seus da melhor maneira possível. Por isso, procura interessadamente refazer os laços com a vida, com a realidade que o cerca. Não é possível ignorar que o surgimento ou a difusão do rap se deu em decorrência das tensões provocadas pelos contrastes sociais nos Estados Unidos e nos demais centros urbanos do mundo – os próprios rappers qualificam a sua aparição como um efeito colateral do sistema – “Eu sou apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de cinqüenta mil manos/ efeito colateral que seu sistema produz...” (Racionais MCs: “Capítulo 4, versículo 3”). Por outro lado, como explicitou Béthune, deixar de lado os méritos estéticos que inegavelmente possui seria grave injustiça. Insisto nisso porque é perceptível, em cada rap, um procedimento que denuncia o trabalho exaustivo por trás da composição: a escolha das bases, dos samplers, a preferência por uma determinada dicção. Aliás, é possível dizer que – num primeiro momento – o rapper cativa rítmica e melodicamente a confiança do ouvinte; no entanto a finalidade é, mais explicitamente que em qualquer outra forma expressiva cantada, cativá-lo, através do texto/performance, para um engajamento. Esse aspecto do rap contraria a conclusão a que chegou Enzo Minarelli, de que “o poema orientado para a denúncia de um desequilíbrio social, para incitar à ação, não encontra hoje prosélitos” (Minarelli in Menezes, 1992: 123). O rap, no entanto, certamente devido às fortes tensões sociais que caracterizam a sociedade brasileira, mostrou-se capaz de concretizar aquilo a que Minarelli chama a “pequena-grande utopia que quer a poesia a serviço da luta social” (idem, ibidem).
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Literatura menor e contraliteratura Buscando uma maneira mais objetiva de perceber as discutíveis noções de literatura popular, marginal, proletária etc., Deleuze e Guattari propõem o conceito de literatura menor. Trata-se, a meu ver, de um conceito capaz de avalizar o estatuto do rap no interior da cultura brasileira. Segundo a argumentação dos autores, a primeira característica de uma literatura menor passa pela língua: “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (Deleuze & Guattari, 1977: 25). Poderíamos falar do rap como uma literatura menor? Creio que sim. Afinal, de acordo com a primeira característica, não tenho dúvida que os negros, de qualquer parte do mundo, que fazem rap são também autores “menores”, que inclusive se expressam numa língua peculiar, marcada pelos traços de um modo negro de ser. Ressalte-se ainda que aqui estamos falando de uma minoria não em termos absolutos, mas uma minoria política, os negros e pobres; o que nos leva à segunda característica. Esta refere-se ao fato de, nas literaturas menores, tudo se tornar político. Se nas grandes literaturas a relação entre os diversos casos individuais formam um bloco único, nas literaturas menores o caso é outro: “seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política” (Deleuze & Guattari, 1977: 26). No rap, pode-se detectar essa característica tanto por sua constante enunciação de uma identidade disruptiva quanto pelo caráter combativo das falas e das atitudes dos rappers, voltados contra uma ordem social que consideram racista e opressiva. A terceira característica está relacionada ao fato de, numa literatura menor, tudo adquirir um valor coletivo: “o que o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum” (Deleuze & Guattari, 1977: 26). Ora, para o rap a coletividade é um dos quesitos mais importantes de seu impulso criador e militante. Tudo o que fala ou faz tem como objetivo o bem geral da comunidade da qual
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faz parte, entendida no sentido mais abrangente de toda a comunidade negra e pobre. Neste ponto é possível estabelecer uma aproximação entre o rapper e o antigo sambista malandro. Ao comentar sobre a questão da parceria no samba dos malandros, Claudia Matos observa que sua voz nunca é totalmente individual, nunca é uma voz isolada. Assim, sua individualidade não reside no fato de não ter parceiros, mas de não os ter fixos. Seu parceiro potencial [...] é a comunidade inteira (Matos, 1982: 75). A ênfase na especificidade de cada favela demonstra essa faceta do hip-hop. Por esse motivo, MV Bill e os demais rappers politizados, quando se propõem a representar a comunidade, fazem-no com um forte sentido político – o de ser uma espécie de mediador entre a favela e a sociedade de maneira geral: MV Bill, falando pela comunidade (Traficando informação).
Sua voz, até porque solitária, denuncia mais essa lacuna na experiência social da favela. Neste mesmo rap, Bill expressa o teor político e, ao mesmo tempo, o grau de solidão que decorre de sua opção num verso que considero excepcional: o raciocínio é raro pra quem é carente (Traficando informação).
Outro conceito que pode ser valioso para se pensar o rap é o de contraliteratura. Segundo Bernard Mouralis, “é suscetível de entrar no campo das contra-literaturas [sic] qualquer texto que não seja entendido e transmitido – num determinado momento da história – como pertencente à literatura” (Mouralis, 1982: 43). Mouralis inclui neste campo tanto as literaturas orais quanto a canção, categorias a que, em certo sentido, o rap também pertence. Segundo o autor, o critério de classificação dos textos como literários só faz sentido na medida em que recorre à noção de estatuto: “Há um estatuto de texto literário e um estatuto de texto ‘não-literário’”. Sua reflexão parte da identificação de um campo literário que define esses estatutos e que exclui todo um setor da produção (de textos), justamente “esse que constitui o campo das contra-literaturas” (Mouralis, 1982: 12-14).
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Não são poucos os pesquisadores que põem em relevo a informação da oralidade presente no rap. Para Tricia Rose, a poesia rap, a um só tempo oral e letrada (Rose apud Béthune, 1999: 44), pode ser compreendida como parte do reino da literatura se levarmos em consideração que, como denunciou Paul Zumthor, o conceito de literatura, no fundo, faz referência a um sistema de valores especializados, etnocêntricos e culturalmente imperialistas. Segundo o autor, até o início do século XX, toda literatura extra-européia era relegada a folclore pelos eruditos da mesma forma que o texto não escrito era desconsiderado como literatura (Zumthor, 1997: 25). Christian Béthune, por sua vez, considera que o fato de o rap incorporar-se à tecnologia e apropriar-se de seus recursos confere à oralidade uma nova força, capaz de “roçar” o escrito sem nele se dissolver, reorientando “as estruturas de um pensamento há muito informado pela escrita em direção a uma psicodinâmica da oralidade” (Béthune, 1999: 44). É então por conta da tecnologia – tanto do sampler quanto do registro de suas vozes em disco – que os rappers podem viajar “sem complexo entre o oral e o escrito”, rompendo com a tradicional divisão dos gêneros na qual insiste a cultura escolar (Béthune, 1999: 39). Por outro lado, o rap se localiza num espaço definido por Paul Zumthor como o das oralidades segunda e mediatizada. A oralidade segunda procede de uma cultura letrada, “se (re)compõe a partir da escrita e no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz na prática e no imaginário”; a mediatizada, (Zumthor, 1997: 37). O rap, contudo, se estabelece de maneira a confrontar os critérios dessa cultura letrada, o que é um pressuposto básico da conceituação de contraliteratura apontada por Mouralis.3 Portanto, pode-se dizer que o rap é uma forma de expressão desterritorializada não somente em relação à língua na qual se expressa, mas – uma vez que privilegia a voz no lugar da escrita – 3 Quanto à oralidade mecanicamente mediatizada, que quase sempre coexiste com as outras, esta se refere, como o nome indica, aos recursos tecnológicos de reprodução e gravação da voz.
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desterritorializada em relação à própria literatura numa acepção mais ortodoxa. Finalmente, Paul Zumthor propõe a questão fundamental:“a noção de ‘literariedade’ se aplica à poesia oral?”. Indiferente ao termo, o autor descarta o critério da qualidade, por mostrar-se muito impreciso. Então, defende a existência de um discurso marcado, socialmente reconhecido como poético, dirigindo o foco desse reconhecimento para a recepção. Por esse critério, a canção pode também ser reconhecida como objeto dos estudos literários. “É poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou, de uma forma geral, o texto literário), é sentido como a manifestação particular [...] de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social” (Zumthor, 1997: 40. Grifo meu).
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CAP.03
Rap e contranarrativa
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Sobre o sampling1 e a síncopa Os quatro primeiros pontos destacados por Richard Shusterman em sua caracterização do pós-moderno (tendência para uma apropriação reciclada, mistura eclética de estilos, adesão entusiástica à tecnologia e desafio às noções de autonomia) articulam-se, basicamente, à prática do sampling. Com efeito, o sampling é a mais importante novidade formal trazida pelo rap. Apesar de não ser o único gênero a utilizar o procedimento, o rap é sem dúvida o que explora em maior profundidade as suas possibilidades. O rap constitui efetivamente – com a música techno – a primeira forma de expressão a utilizar de modo sistemático as técnicas de reprodução sonoras as mais sofisticadas, não apenas para difundir suas produções, mas igualmente para elaborá-las, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo (Béthune, 1999: 10). É também o sampling a maior vítima dos ataques daqueles que negam o valor do rap. Béthune dá o exemplo de um percussionista de jazz que chegava a denunciar essa prática como
1 Sampling é a ação de selecionar fragmentos sonoros (samples) e inseri-los em um trecho da música que o DJ está tocando ou gravando. O processo é realizado através do sampler: máquina dedicada ou computador munido de um programa especial que registra qualquer som, permitindo sua posterior manipulação em outros contextos.
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“necrofilia artística” (Nelson apud Béthune, 1999: 52). Segundo essa linha de pensamento, a música rap, resultado da colagem de vários trechos pré-selecionados, não representaria uma forma autêntica de arte, talvez porque a prática do sampleamento desafie as idéias ortodoxas de originalidade e autenticidade a que a concepção ocidental de arte tem permanecido apegada. De acordo com Richard Shusterman, o rap emprega e adota “de forma criativa sua apropriação como temática, no intuito de mostrar que empréstimo e criação não são incompatíveis” (Shusterman, 2000: 150). Shusterman, portanto, propõe um novo momento para a compreensão da arte como tal, um momento que, chamemo-lo pós-moderno ou não, é o espaço ideal para a eclosão do rap como nova e legítima forma de arte. Christian Béthune reforça essa tese, mais uma vez rechaçando a prioridade sociológica na análise do rap, postulando que é a originalidade com que os rappers concebem o seu fazer artístico que os estimulará a buscar um caminho que é também estético: “os procedimentos criativos operados pelos rappers nos incitam a aprofundar suas implicações numa perspectiva mais especificamente estética” (Béthune, 1999: 11). A intertextualidade revela-se uma prática arraigada na própria concepção da música rap. De fato, se prestarmos atenção em cada letra e em cada fragmento sonoro de uma composição, perceberemos a presença de trechos de outras letras, de sonoridades alheias (pertencentes ou não ao universo hip-hop) – um dos motivos de orgulho para um DJ é, sem dúvida, a sua coleção de LPs de vinil – e, às vezes, de ruídos gravados do próprio ambiente urbano: carros, sirenes, tiros colhidos no dia-a-dia da cidade. Cabe destacar que esse procedimento não é novo. As técnicas desenvolvidas pelos artistas ligados à chamada poesia sonora – música eletroacústica, eletrônica e concreta – já lançam mão de semelhantes recursos desde meados da década de 1950, graças ao advento da aparelhagem eletroacústica e ao desenvolvimento das tecnologias de gravação (Menezes, 1992: 11; Kostelanetz in Menezes, 1992: 81 et passim).
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Nicolau Sevcenko assinala o início desse processo a partir de um evento que, para ele, dividiu a história da música e da dança em dois momentos distintos. Trata-se da “turbulenta sessão inaugural da Sagração da Primavera, de Stravinski”, em Paris, no ano de 1913. A partir das mudanças desencadeadas nessa noite, segundo Sevcenko, ganharam fôlego os esforços de pesquisas voltados para outros períodos e outras culturas, em especial para as tradições da Ásia, da África e das Américas. A novidade trazida pelo rap nessa área está, portanto, no uso inovador que fará das técnicas de gravação e reprodução sonoras, criando com elas um novo gênero musical. Gog, ao definir o rap como “a luta do vinil contra a alienação da novela” (Gog, 2000: “É o terror”), põe em discussão o papel de sua arte no processo de engajamento na vida cotidiana. Para o rapper, a novela é alienante porque desvia a atenção do ouvinte para um reino de fantasia, que o afasta inclusive de sua própria identidade – no caso aqui a de jovem negro, morador da favela –, uma vez que os modelos oferecidos pela TV não representam o que seria o ideal sob o ponto de vista do rapper. Nesse caso, a intertextualidade me parece o exercício de um diálogo, implicando o reconhecimento mútuo que dá forma à comunidade dos “manos”. Se, por um lado, cantar músicas de outros rappers é uma prática condenável – porque “a atitude cover é na visão dos rappers um indicativo de incapacidade em construir uma mensagem própria”, como explica José Carlos Gomes da Silva (1999: 31) –, por outro, a citação (o sample) implica muitas vezes um duplo reconhecimento: primeiro, de que o rapper que cita admira o citado; segundo, de que se comunga de uma mesma realidade opressiva em toda a parte. Em outras palavras, compartilha-se uma identidade: “A força dos grupos de Rap [...] vem de seu poder de inclusão, da insistência na igualdade entre artistas e público, todos negros, todos de origem pobre, todos vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de oportunidades” (Kehl, 1999: mimeo).
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Tim Maia, Bezerra da Silva e Jorge Benjor estão entre os artistas mais sampleados pelos DJs.2 O vinil, habilmente manuseado, traz à tona a rica memória da produção de velhos ou novos “pais” ou “irmãos” da música negra do mundo, que mobilizaria a história positiva do povo negro, geralmente escamoteada na perspectiva da novela. Por outro lado, o vinil também pode ressemantizar trechos de músicas que, a princípio, não teriam relação tão direta com a música negra em sentido estrito. No caso particular de Gog, há uma perceptível adesão às melodias da jovem guarda – Jerry Adriani e Paulo Sérgio fornecem a base para mais de uma composição do rapper. Na faixa “Prepare-se”, do CD homônimo, é inserido um trecho da canção “Todos estão surdos”, de Roberto Carlos: La lalalalalala [...]/ Aí muita gente se esqueceu que o amor só traz o bem (Gog: Prepare-se).
Nicolau Sevcenko diz algo notável sobre o poder de recuperação de memória cultural da música negra, presente no rap através do sampling. Referindo-se aos momentos em que o DJ assume o comando, trazendo à tona os elementos “de espontaneidade e inspiração criativa mágica” contidos nas coleções de LPs que os DJs perscrutam até encontrar o beat3 ideal. Isso significaria que toda tecnologia é acionada para dar uma ressonância especial à memória musical da cultura negra. Sevcenko, citando o crítico musical Greg Tate, completa “o sampleamento é um jeito de fazer com que todas as eras da música negra se concentrem num único chip” (Sevcenko, 2001: 119). Cabe lembrar que, nem sempre, a citação é feita por vias eletrônicas. Muitas vezes os rappers referem-se a versos de outros 2 Os exemplos de fato não são numerosos, mas essa escassez revela um outro lado dos problemas enfrentados pelos rappers: muitos artistas não autorizam a gravação de samples de suas músicas sem o pagamento de vultosos direitos autorais (e às vezes, nem assim). 3 Beat: trata-se da batida, o ritmo, que o DJ utiliza em cada música.
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companheiros, geralmente trechos que acharam, por alguma razão, relevantes. Um verso de Gog, muito conhecido entre os iniciados – “periferia é periferia em qualquer lugar” –, por exemplo, é citado, entre outros, pelos Racionais, no disco Sobrevivendo no Inferno, numa faixa intitulada exatamente “Periferia é periferia (em qualquer lugar)”. Assim como o dos Racionais – “para os manos daqui, para os manos de lá” – é uma espécie de frase recorrente quando um rapper quer se dirigir ao seu público mais dileto: os manos da periferia. O vinil, além de ser a metáfora da força discursiva do rap e fonte de parte considerável dos samples, atua no sentido de mobilizar o corpo, uma vez que é de onde emana, quase sempre, o som que embala o discurso do rapper. A atuação do corpo é, indubitavelmente, uma marca importantíssima da música negra no mundo todo. “Junto com as palavras, junto com o som, deve dar-se a presença concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir, dar e receber, num movimento sempre reversível”, explica Muniz Sodré (1998: 67). Não tenho dúvida em afirmar que essa característica da música negra no mundo se revela também no rap: vou fazer você mexer, é o melhor que sabemos fazer (Gog, 2000: Na fé).
Quando se fala de dança, de mover o corpo, no caso do samba, jazz etc., o grande elemento rítmico-estrutural em jogo é a síncope. “De fato tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal” (Sodré, 1989: 11). A explicação de Sodré a respeito desse elemento rítmico-estrutural, no entanto, é insuficiente para a sua inteira compreensão. Sérgio Bugalho (2001), em entrevista concedida para este trabalho, lembra que a síncopa não é exclusividade da música negra. Na verdade, está presente na música, mesmo a européia, há um tempo considerável. A fim de explicar de modo convincente o diferencial que a música negra trouxe para o conhecimento da síncopa, Bugalho começa propondo a compreensão do movimento musical como uma suces-
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são de apoios e impulsos. A partir daí, define a síncope primeiramente como um evento adstrito à métrica musical – relativo ao momento da articulação do som sincopado e ao(s) momento(s) sobre o qual é prolongado. Em outras palavras, “a síncope seria a articulação de som (ou sons) durante o impulso e sua prolongação sobre o apoio, furtando, portanto, a articulação de um som que coincidisse com esse apoio”. Desse modo, pode-se dizer que “o momento que divide exatamente ao meio a duração do pulso é sentido como um apoio secundário”. Isso posto, é possível pensar na “síncope como o lugar de eleição para fazermos recair os acentos (sons mais fortes)”. Tudo isso leva à conclusão de que, no contraste entre o acento sincopado e “o corpo que ouve e responde”, acontece de o interesse da gestualidade recair sobre a liberdade de ocorrência dos acentos em relação à isocronia da sucessão dos apoios. Se considerarmos que a diferentes gêneros musicais correspondem normalmente diferentes marcações de movimentação corporal, concluiremos que a liberdade de movimentos nunca será total. Mesmo assim, “trata-se daquela liberdade no interior do tecido musical associada às idéias de deslizamento, de deslocamento – e de liberdade do corpo”. Chega-se assim, como diz Bugalho, “a uma obstinada insubordinação dos acentos aos apoios como uma das marcas do modo como a música de origem africana interage na formação dos gêneros musicais”. Com isso quero dizer que a síncopa implica, no que diz respeito à música de maneira geral, uma quebra de princípios. Significa o exercício da liberdade, pela musicalidade negra, em relação às amarras engendradas pelas regras clássicas do padrão musical a que estamos habituados. Sugiro ainda que ela, pelo menos metaforicamente, representa o desejo de liberdade também na vida social, na qual os negros são continuamente estigmatizados por conta da cor da pele e outros traços fenotípicos, como se fossem prisioneiros da própria negritude. Nas palavras de Paul Gilroy: “Suas síncopes características ainda animam os
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desejos básicos – serem livres e serem eles mesmos – revelados nesta conjunção única de corpo e música da contracultura” (Gilroy, 2001: 164). Resguardadas as diferenças entre os estilos, do samba ao jazz, ao funk e ao rap, o que tentei demonstrar nesta passagem foi a estreita ligação da música rap com o desejo de liberdade, tanto no sentido sociopolítico quanto no estético, que permeia toda a história da música negra na diáspora. Como afirmou Edouard Glissant: “Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e a dança são formas de comunicação, com a mesma importância que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos emergir da plantation: a forma estética em nossas culturas deve ser moldada a partir dessas estruturas orais” (Glissant apud Gilroy, 2001: 162). O antropólogo Hermano Vianna, respondendo a uma pergunta do jornal O Estado de São Paulo (5 de janeiro de 2001) sobre o poder de transformação da música, disse que “a música não promete um mundo melhor [...] A música instaura o mundo melhor no momento em que é tocada/ouvida”. Estou de acordo, mas os rappers querem ir além no caminho dessa transformação. Mediante os recursos ao sampling e o engajamento do corpo no seu processo de realização artística, demonstram sua insubordinação ao conjunto de ajustamentos sociais e econômicos que os alijou do “mundo melhor” e os aprisionou no último nível da escala social. Percebe-se assim uma aproximação entre o dado estético (a música e a performance) e o dado social: a perpetuação, através do rap, de um elemento político na forma e no conteúdo da música negra. Como espero ter demonstrado, a síncopa e o sampling são fenômenos da maior importância para realizar o vínculo entre a música negra e o desejo de liberdade, tanto no sentido propriamente artístico, quanto no social.
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O rap como contranarrativa Segundo Claudia Matos, uma característica marcante dos antigos sambistas malandros dizia respeito ao fato de que, em suas letras, “o sujeito fala com supostos interlocutores” (Matos, 1982: 196). Este é um traço que aproxima o rapper da estética da malandragem. Assim como o malandro-protagonista do samba, o rapper é também um narrador, e quase sempre a primeira pessoa do discurso. A natureza e o tom do diálogo é que mudaram bastante: A gente vive se matando irmão/ por quê?/ não me olhe assim eu sou igual a você (Racionais: Fórmula mágica da paz).
Acrescento que o rap pode ser entendido como narrativa não apenas nos moldes tradicionais, mas, sob certos aspectos, também naqueles definidos por Walter Benjamin em seu estudo sobre a obra de Nikolai Leskov (Benjamin, 1995). Apesar de a maioria dos rappers designarem sua arte a partir de comparações com o reino da informação – jornalismo e afins4 –, a própria estrutura de sua narrativa implica a possibilidade de uma interpretação daquilo que é explicado, dessa maneira agindo na consciência de cada ouvinte (conforme Benjamin postula para a afirmação da verdadeira narrativa). Assim, se a linguagem jornalística assume postura, digamos, neutra, ao relatar os fatos – no que se mostraria “incompatível com o espírito da narrativa” (Benjamin, 1995: 203) –, o rap, quando faz, faz de maneira pedagógica, não apenas relatando o fato, mas tentando ensinar algo com ele. MV Bill está de volta tentando conscientizar vocês/ parando para pensar, botando a cabeça no lugar/ [...]/ sem armas, unidos, sem violência entre nós/ [...]/ entre irmãos, informação necessidade/ apesar de ser uma letra pode se tornar verdade/ depende dela, depende dele, depende de mim, depende de você (MV Bill: Atitude errada). 4 Além disso, Chuck D, líder do grupo Public Enemy, denominou o rap como “a CNN dos negros”. Já uma das canções mais conhecidas de MV Bill, que acabou virando uma espécie de marca de sua atividade, intitula-se “Traficando informação”.
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Nessa narrativa, o que é dito, da forma como é dito, se enraíza na história de vida do ouvinte visado pelo rapper e, desse modo, sua experiência se tornaria compartilhável, não só porque fala a partir de um ponto de vista comum, mas porque essa fala “pode se tornar verdade”. Cabe ao destinatário concretizar o dito em fato. Assim, o “episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na [mera] informação” (Benjamin, 1995: 203). O rapper nega a incomunicabilidade de experiências, atribuível ao narrador pós-moderno (cf. Santiago, 1989). Na verdade, ele a evita desesperadamente – a palavra que lança ao outro durante sua performance é, antes de mais nada, um chamado: “todos em frente, ao ataque”, clama Gog em uma de suas composições (“Mensagem positiva”). No livro Introdução à poesia oral, Paul Zumthor comenta que a performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é transmitida e percebida, realizando um “jogo de aproximação, de abordagem e apelo, de provocação do Outro, de pedido” (Zumthor, 1997: 33). Por isso, proponho que, a despeito da opção dos próprios rappers, o rap vá além da linguagem jornalística. Essa analogia, certamente, se dá porque os rappers não consideram o seu trabalho ficção, mas informação. Todavia, a informação que eles transmitem é comprometida com a transformação que esperam suscitar: o que fazem é, de certa forma, dar conselhos – “A vida é curta, procure alguma coisa boa para fazer/ parar de se matar, nosso inimigo é outro”, diz MV Bill (“Atitude errada”). Conforme explica Benjamin, a natureza da verdadeira narrativa envolve sempre uma dimensão utilitária. Consista num ensinamento moral, numa sugestão prática ou numa norma de vida, o fato é que “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (Benjamin, 1994: 200). Os rappers, de certo modo, priorizam essa dimensão utilitária. Dar conselhos parece ser uma prerrogativa da qual se investiram, e que pretendem manter. Como percebeu Maria Rita Kehl no ensaio já citado aqui “a voz do cantor/narrador dirige-se diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano – e então avisa, adverte, tenta ‘chamar à consciência’ – ora supondo
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que seja um inimigo – e então, sem ambigüidades, acusa” e no que diz respeito às letras, trata-se de “apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique consciente – não faça o que eles esperam de você” (Kehl, 1999: mimeo). Tomemos como exemplo esta composição do Racionais: Mantenha distância de dinheiro fácil/ de bebidas demais, policiais e coisas assim/ [...]/ [você será] um preto digno, e não um negro limitado (Racionais: Negro limitado).
MV Bill também procura alertar os manos quanto aos riscos do uso de drogas e álcool, lembrando um pouco o questionamento do rapper estadunidense Chuck D, no livro Fight the power: “I attack drugs, including alcohol, because it’s a scourge that attacks the human family [...]. The effects on the black community have been even more deadly and devastating” (D., 1997: 47). Diz o rapper brasileiro: Enquanto eu falo a verdade você só pensa em beber/ [...]/ é preciso união, é preciso informação/ para acabar, para acabar com a nossa destruição/ [...]/ MV Bill, adverte quem com a droga se mete/ acaba na vala/ boiando, otário, furado, crivado de bala (MV Bill: Atitude errada).
Vê-se, pelos exemplos acima, que o rapper demonstra uma grande preocupação com os destinos de sua comunidade e de seu povo. Ressalte-se que o tempo imperativo dos verbos reforça a idéia de endereçamento a um ouvinte específico, localizável – aquele a quem se destina o conselho, e que precisa se transformar para que todo o resto possa ser transformado. Nesse sentido, a mensagem do rap, a sua interpretação da realidade circunstante, vai além da evidente dimensão pedagógica. Ela atingiria uma dimensão performativa, na medida em que se trata de uma interpretação que transforma o que interpreta. Como notou Christian Béthune, “o rapper não fala da realidade,
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ele fala na realidade e, posto no coração da ação, transforma-lhe poderosamente a fisionomia” (1999: 47. Grifos do autor). Porém, é possível dizer que a mensagem é ouvida? Que o conselho do rapper tem algum valor? Na minha opinião, o público do rap parece bastante disposto a ouvir. Basta dizer que, fora a atenção exigida para as letras por praticamente todos os rappers, é muito comum, em eventos de hip-hop, haver um espaço específico para debates entre convidados antes de a atração principal entrar no palco (eu mesmo já participei de alguns, como palestrante ou como ouvinte, e posso dizer que a receptividade do público é impressionante). Além disso, tornou-se um hábito imprescindível para muitos rappers incluir um discurso altamente politizado, sem música, em suas apresentações. Suponho que essa capacidade para ouvir é correlata à capacidade para falar, de que os rappers se investiram com muita autoridade.5 “O ouvinte ‘faz parte’ da performance”, diria Paul Zumthor (1997: 241). E em sua análise percebe-se que a recepção do ouvinte não é necessariamente sempre idêntica para todos. Devemos admitir que isso é verdade. O rap, do mesmo modo que qualquer outra forma de expressão musical, pode ser assimilado como meio de informação e conscientização ou simplesmente como entretenimento, sem contar que cada uma dessas maneiras de recepção pode se desdobrar em outras tantas. Mas isso não é o ideal para as ambições do hip-hop. O “poder da transformação”, de que falam os rappers (Thaíde, inclusive, compôs um rap com esse título), tem por objetivo modificar, ou reforçar, suas crenças, seu posicionamento político-social e sua identidade étnica. Assim como é possível pensar no rapper como uma espécie de narrador benjaminiano – alguém que recupera “a faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, 1995: 198) – também se 5 Em uma entrevista para a revista Showbizz, Mano Brown mostrava sua preocupação inicial com o silêncio compenetrado do público durante a apresentação dos Racionais. “No começo eu estranhava, achava que eles não estavam curtindo. Depois é que me contaram: ‘Mano, eles prestam atenção na letra’” (Brown, 1998: 26).
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pode pensar que o ideal para o rap é um público que recupere, senão invente, uma comunidade organizada com base em uma identidade comum e preocupada em garantir sua sobrevivência num mundo que a ameaça. A sociedade brasileira atual – marcada pelo crescimento da miséria, declínio da educação e saúde, avanço do desemprego, proliferação das favelas, preservação de preconceitos e discriminações herdadas da escravidão, tudo isso gerando o recrudescimento da violência, notadamente a violência do Estado, representada pela força policial, e a oriunda do crescimento do narcotráfico – instaurou um clima de guerra, sobretudo contra os chamados excluídos, cuja resposta mais virulenta veio das favelas. Foi essa situação que reforçou os laços comunais de uma parcela da juventude negra no Brasil. A imagem que a mantém unida atende pelo nome de hip-hop: a geração dos manos da periferia, algo que Maria Rita Kehl chama de frátria. O tratamento de “mano” não é gratuito. Indica uma intenção de igualdade, um sentimento de frátria, um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/ dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo (Kehl, 1999: mimeo). Com isso, pode-se pensar o rap como uma narrativa de oposição às prerrogativas impostas pela organização opressiva da sociedade na qual seus artífices estão inseridos. Em resumo, trata-se de uma contranarrativa, de um método específico para afirmar sua identidade (constantemente negada) e recontar sua história sob um ponto de vista próprio, avesso às distorções e omissões da história oficial. Sob outro prisma, essas novas formas de expressão artística tomam a frente do debate de consolidação de um projeto nacional que ainda não foi concluído. Entre elas, quero sustentar que o rap é a que leva mais longe as possibilidades de uma atividade estética que, mais que entreter ou mobilizar a indústria cultural, quer pensar politicamente o seu próprio destino e o de sua comu-
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nidade e seu povo, isso tudo no âmbito da narrativa mais ampla (essa comunidade imaginada chamada Brasil) a partir da qual e contra a qual constroem a sua. Creio mesmo ser possível inscrever os textos produzidos pelos rappers, normalmente estigmatizados e marginalizados no meio acadêmico, numa série literária altamente prestigiada, embora não imune a preconceitos, que inclui textos de Alencar (e antes) a João Ubaldo (e depois), entre tantas outras narrativas que levantaram uma hipótese de Brasil que vem até hoje povoando o imaginário da nação. Antonio Candido percebeu que a nossa crítica naturalista, prolongando sugestões românticas, “transmitiu por vezes a idéia enganadora de que a literatura foi aqui produto do encontro de três tradições culturais: a do português, a do índio e a do africano”. Mas é notório que índios e africanos transplantados só tiveram influência decisiva no folclore, “na literatura escrita atuaram de maneira remota” (Candido, 1987: 165). Ora, se no começo a literatura mostrou-se prerrogativa de um grupo social exclusivista, hoje o rap revela-se uma produção literária resultante, em algum grau, desse desencontro. Curiosamente, em sintonia com o que Candido afirmou sobre a literatura brasileira do século XIX (Candido, 1997: 26-8), o texto dos rappers é decididamente empenhado e igualmente comprometido com o sentimento de missão. Acontece que, desta vez, o empenho se dá no sentido de trazer de novo à vida as vozes que foram rasuradas no curso da história: Meus amigos pretos velhos que não voltam mais/ ancestrais seguidos de bravos guerreiros/ faziam o Brasil inteiro se curvar diante de tal bravura/ só para a todo custo defender aquele lugar/ que aliás se chamava Palmares/ [...] Tenho orgulho e bato no peito/ sou descendente de Zumbi/ grande líder negro brasileiro/ por nossa liberdade enfrentou exércitos inteiros [...]/ Sabe quem eu sou? afro-brasileiro! Me diga quem é você! (Thaíde: Afro-brasileiro).
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CAP.04
Um sen達o: da legitimidade do rap
idade
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José Ramos Tinhorão afirma que o mercado de música popular no Brasil foi, desde os anos 60, dominado por modismos comerciais e estrangeiros, como “o reggae e o funk [...], o break, o rap e o hip-hop”. Graças a esse domínio, lamenta o autor, “as criações ligadas a constantes culturais regionais passaram a constituir [...] uma atividade clandestina dentro do país” (Tinhorão, 1999: 341-2). O argumento de Tinhorão é, aparentemente, bastante difundido entre um amplo setor da intelectualidade no Brasil. Ele não leva em conta porém, o fato de praticamente todos os modernos ritmos, sobretudo os mais populares (e isso inclui o samba, evidentemente), nas Américas e talvez alhures, serem igualmente o resultado de inumeráveis cruzamentos, influências, misturas. Certamente, esse processo continua movendo a cultura, gerando novos fenômenos. O rap, portanto, pode ser pensado como uma nova maneira através da qual os negros brasileiros, sobretudo os residentes nas áreas pobres dos centros urbanos do país, possam propor uma estética radicalmente nova e apropriada ao seu propósito: afirmar uma identidade e uma história próprias, apesar de haver não poucas divergências em relação à legitimidade dessa tentativa. O questionamento em respeito à legitimidade do rap como forma de música brasileira tem sido levantado com repetida insistência. Afinal, segundo algumas vozes nossas contemporâneas, o rap não passa de importação da cultura norte-
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americana, não tendo validade no Brasil, onde o samba assumiu legitimamente o papel de ser a voz dos excluídos e, o que seria ainda melhor, num sentido integracionista. Alba Zaluar, por exemplo, não acredita no potencial transformador do hip-hop, segundo ouvi da própria numa palestra, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1999. Nei Lopes, notório defensor da causa negra, numa declaração à revista Showbizz, disse o seguinte sobre o posicionamento racial do Racionais: “Briga entre raças no Brasil soa como imitação de americanos. Hoje a afirmação da negritude passa por outros caminhos” (Showbizz, junho de 1998: 29). Segundo essa perspectiva, ao contrário de outras manifestações musicais negras, o rap traria de fora um ódio e uma atitude segregacionista – vale dizer, uma revolta – que não combinariam com o ambiente social brasileiro, nada teriam a ver com a relativamente amistosa relação racial em nossos centros urbanos e, ainda por cima, abriria mão da famosa manemolência, do suingue tipicamente brasileiro. Nada tenho a opor a essa característica. Pelo contrário, considero-a uma qualidade admirável. O problema é que, em nome da preservação a todo custo das características tropicais desse país, sufoquem-se as vozes dissonantes, sempre em razão de uma suposta fuga aos princípios organizadores de nossa sociedade: o tropicalismo (Freyre), a integração racial, a alegria natural do povo. Há, ainda hoje, uma persistência do discurso que Claudia Matos havia identificado como “as fábulas do Brasil pobre, mas alegre, unido, ativo, o paraíso tropical, o Deus brasileiro, tomando por vezes colorações chauvinistas e quase xenófobas...” (Matos, 1982: 47). Apesar de, aqui e ali, perceberem-se mudanças, o lugar comum sobre o brasileiro pobre que parece ter a capacidade de sorrir e se divertir mesmo na maior miséria é ainda raramente questionado. Entre os que põem essa herança em xeque estão, sem dúvida, os rappers. A sua narrativa em nada lembra as conjeturas idealizadas de parte da intelectualidade nacional, que via nas realizações dos artistas oriundos de favela uma demons-
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tração de valor e no sucesso do samba em se firmar como ritmo nacional, a prova irrefutável do caráter não segregador da cultura e da sociedade brasileiras. No entanto, a globalização, gostemos ou não, é mais que uma palavra da moda. Conforme entendeu Said, “em parte devido ao imperialismo, todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas” (Said, 1995: 28). Em sentido semelhante, mas referindo-se especificamente à cultura negra, o sociólogo Paul Gilroy formulou o conceito de atlântico negro, que diz respeito às inúmeras manifestações culturais da diáspora africana cujas raízes não se concentrariam num ponto único, mas, como rizomas, estariam dispersadas numa rede descentralizada de fios que se entrecruzam. A partir desse conceito, Gilroy mostra como o processo de racialização do negro e do branco, que garantiu de certa forma a escravidão e a subseqüente discriminação racial, foi gestado nos fluxos internacionais que transitaram pelo Atlântico. Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas, o autor pretende “desenvolver a sugestão de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico como uma unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural” (Gilroy, 2001: 57). Hermano Vianna percebeu bem que o atlântico negro, “não é apenas um novo rótulo para um fenômeno antigo. É também uma nova maneira de entendê-lo” (Vianna, 1999: 6). Afinal, o conceito desaprisionou os estudos a respeito das diversas manifestações culturais negras da idéia de “raízes”. Idéia a que o rap sempre se mostrou refratário. Ele rejeita as noções de autenticidade, pureza e originalidade, revelando-se uma forma estética híbrida por natureza e transnacional de nascença. Todavia, em determinadas condições essa característica não é impermeável ao assédio de posturas contraditórias, como veremos a seguir.
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Partido-alto, repente, rap Recentemente, no Brasil, pesquisadores do rap e mesmo alguns rappers, talvez acusando os golpes desferidos pelos nacionalistas culturais, têm feito um movimento no sentido de propor o parentesco do rap brasileiro com o samba ou o repente nordestino. Spensy Pimentel, por exemplo, afirmaria que: “As tradições orais africanas, que no Brasil ao longo da história se diluíram na miscigenação [...], na segregação americana permaneceram nesses 500 anos para desembocar no rap. Os griots, contadores de história que carregavam na memória toda a tradição das tribos africanas, preservaram suas técnicas em versos passados de pai para filho (como os romances medievais conhecidos ainda hoje no Nordeste, ou os repentistas, emboladores, cantadores e todas as outras categorias de poetas populares no Brasil)” [Pimentel: 1999]. Não se trata de um movimento muito simples. Apesar de os jogos verbais típicos da cultura negra estadunidense, como as dirty dozens, que pesquisadores como Shusterman afirmam estar na origem do rap, guardarem muitas semelhanças com, por exemplo, o repente do Nordeste brasileiro, que Câmara Cascudo define como “a resposta inesperada e feliz, aturdindo a improvisação do adversário” (Cascudo, 1984: 670) durante os desafios entabulados entre cantadores, há um problema não resolvido. O desafio – “disputa poética, cantada parte de improviso e parte decorada, entre os cantadores” – é um gênero que Cascudo situa como de origem portuguesa. Só haveria sinais de sua presença na África como resultado da influência árabe, cujo influxo é visível também na música dos cantadores sertanejos do Brasil (Cascudo, 1984: 287-88). Isso não impediu que o gênero se popularizasse entre negros escravos no Brasil, ali pela metade do século XIX. Alguns, aliás, fizeram muito sucesso. É o caso de Inácio da Catingueira. Orígenes Lessa, que realizou um estudo comparativo entre dois poetas negros da segunda metade do século XIX, ainda na época da escravidão (Luiz Gama e o mencionado Inácio), dizia que – para
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além do fato de serem negros ou mestiços, libertos ou escravos – os poetas eram a alegria, o desabafo, uma espécie de vingança do povo. Contudo, não havia em seus versos, uma vez que eram ainda escravos e muitas vezes participavam das pelejas sob o olhar dos senhores, indícios de revolta ou denúncia. As palavras de Lessa sobre Inácio e os cantadores de seu tempo poderiam, na verdade, referir-se também ao rap – mas nunca àquele que considero politizado, uma vez que este é pródigo em discutir princípios. Para o autor, os cantadores mantinham uma “guerra de papo” que não punha princípios em causa, mas “figurava inimigos que eram mortos ou dominados para agrado do povo” igualmente oprimido, mas incapaz de esboçar qualquer reação (Lessa, 1982: 3). Alheios a debates teóricos dessa natureza, alguns rappers, notadamente os adeptos do chamado free style (raps feitos de improviso), têm reivindicado o parentesco do rap com o repente nordestino. É o caso de Thaíde, que no seu CD Assim caminha a humanidade (Trama, 2000) gravou uma faixa, intitulada “Desafio no rap embolada”, na qual faz um rap em ritmo de desafio, pelejando com Nélson Triunfo. Figura mitológica da cultura hip-hop brasileira, Nélson foi o primeiro dançarino de break do país e preserva até hoje a aura de pioneirismo que o dignificou. Thaíde não fica atrás, é considerado o primeiro rapper a gravar um disco no Brasil. O confronto é mediado por Chico César, que anuncia o início: É o rap embolada/ É o rap e o repente rebentando na quebrada/ Duelo de titãs, atenção irmãos, irmãs / Acenderam o pavio, Nélson fez o desafio e Thaíde aceitou / Vai começar a disputa, vale tudo nessa luta/ Coco, hip hop, soul.
Thaíde provoca e Nélson Triunfo não faz por menos (a título de informação, conste que Nélson é famoso não só pelos passos de dança como pelo enorme cabelo estilo black power, que lhe valeu o apelido de “homem árvore”):
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Thaíde começa: Quem não conhece Nelsão, aquele cara comprido,/ magro parece um palito e com o cabelão/ [...]/ tô ligado que ele é do nordeste / minha rima vai mostrar que eu também sou cabra da peste/ vou me transformar em tesoura, cortar o cabelo dele/ e pôr debaixo do tapete com uma vassoura / eu vou até o fim dessa batalha/ vai ser difícil superar a minha levada / no verso eu faço a treta/ te dou um nó de letra/ abro e enfio o microfone na tua cabeça/ [...]/ você não me assusta/ então cresça e apareça.
Nélson Triunfo responde: Se você vier pra cima, vai cair na sua rima / nem Deus que tá lá em cima vai poder te segurar/ [...]/ homem pra bater em mim/ se nasceu, não se criou/ e se criou já levou o fim/ eu curto Luiz Gonzaga, o meu país tropical/ conheço o bem e mal e o som do James Brown/ danço break, samba, soul, sou poeta e coisa e tal/ meu cabelo foi tombado, é patrimônio nacional/ [...]/ do estilo black power é a foto original/ então, irmão, preste atenção:/ meu cabelo é real, não é ficção/ aqui é Nelsão, descendente de Sansão.
No final Chico César retorna pra dizer: Ninguém perdeu, todo mundo ganhou/ pois o povo aprendeu com o cantador/ veja aí, meu povo, vem do mesmo ovo o rap, o repente, o neto e o avô (Thaíde: Desafio no rap embolada).
Um disco muito elogiado pela crítica especializada, inclusive exteriormente ao meio hip-hop, reforça essa aproximação entre os dois gêneros. Rappin Hood, no CD Sujeito Homem (Trama, 2001), apresenta em parceria com a dupla de repentistas Castanha & Caju, uma tentativa de fusão do rap com o repente no qual afirma “seja no sudeste, seja no nordeste/ o rap é o repente, e eu sou cabra da peste” (Rappin Hood: “De repente”). O rapper, na faixa em que canta ao lado de Leci Brandão (“Sou negrão”), também propõe um vínculo explícito entre o rap e o partido alto.
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Logo nos primeiros versos é a sambista quem diz: Aí, o rap é o novo partido/ Rappin Hood é o partideiro.
Como se vê, num único disco encontram-se os dois lados mais evidentes do desejo do rap de filiar-se a uma tradição que seja reconhecidamente brasileira. O partido alto, “modernamente, espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais contendores” (História do samba, 1997: 622), também coloca em cena um jogo de rivalidade, onde o raciocínio rápido e a destreza verbal são os principais elementos. David Treece, a partir de uma profunda análise de matrizes musicais africanas, passando pelo estudo de suas transformações na diáspora, chega à mesma conclusão dos autores já citados: a de que o rap – no caso, o rap brasileiro – em vez de negar, redescobre, via a experiência norte-americana, a tradição estética afro-brasileira. Dá como exemplo as palavras do rapper carioca Marcelo D2, a respeito do falecimento da sambista e partideira Jovelina Pérola Negra: “Ninguém versava como ela. Quando ela cantava a gente entendia a ligação entre o rap e o samba” (apud Treece, 2000: 12). Todo esse caminho nos traz ao disco da banda carioca O Rappa, que mistura tendências do reggae, do rap e várias outras influências: Partideiro que é partideiro não pode vacilar/ quando entra no samba tem que versar/ quando entra no samba/ não pode ficar de blá-blá-blá (O Rappa: A todas as comunidades do Engenho Novo).
David Treece entende haver um fio condutor, baseado no vínculo fala-ritmo, das formas musicais de origem africana que faria a ponte entre uma tradição considerada originalmente brasileira, iniciada pelo jongo, pelo partido-alto, e pelo samba-de-breque, e o atual rap brasileiro de ascendência norte-americana. Ao que me parece, essas comparações visam conferir cidadania brasileira ao rap. É possível inferir daí que os rappers, pelo menos aqueles com discurso mais politizado, sintam como uma
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contradição inexorável o fato de expressarem sua revolta numa linguagem (não numa língua) que, na realidade, lhes é alheia. A solução, então, seria buscar no passado brasileiro parentescos da forma rap capazes de legitimar o seu modo de expressão. É interessante notar que quando um intelectual, no caso David Treece, resolveu fazer esse movimento, buscou nas células rítmicas e na influência da oralidade, para ele a base de uma estética negra transnacional, o núcleo de seu argumento. Já os rappers quando o fazem, baseiam-se nas coincidências (à falta de um termo melhor) culturais entre o presente do hip-hop e o passado da tradição musical negra brasileira. Trata-se, neste caso, de um olhar retrospectivo à procura de referências mais confortáveis que aquela tida, até pelos próprios rappers, como alienígena. O resultado prático desse esforço é que, uma vez convencidos da nacionalidade do fenômeno cultural, seu discurso poderia finalmente adequar-se: do tempo do repente e do partido-alto para cá foi a deterioração do quadro social brasileiro, e não o impulso de imitar os negros estadunidenses, que impulsionou a radicalização dos negros brasileiros, manifestada musicalmente na forma rap.
Além das fronteiras do mundo cão Apesar de seu discurso virulento, sua afirmação de uma identidade negra e, muitas vezes, sua rejeição do “mundo branco”, o rap está sendo ouvido além das fronteiras que demarcou para si. Como apontei no início do capítulo, uma parcela considerável da classe média branca está ouvindo, dançando, consumindo rap. Um número considerável de estudantes e intelectuais de diferentes áreas acadêmicas tem mostrado interesse crescente pela cultura hip-hop, como a própria bibliografia desta monografia demonstra. A esse respeito, são reveladoras estas palavras de Maria Rita Kehl: “Como gostar desta música que não se permite alegria nenhuma, exaltação nenhuma? [...] e uma mulher adulta de classe média como eu receba a bofetada violenta do rap não como um insulto mas como um desabafo compartilhado, [...]
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como uma denúncia que me compromete imediatamente com eles?” (Kehl, 1999: mimeo). No interior de várias favelas do Brasil, onde quer que tenha havido uma lavoura ou uma mina em que o braço escravo tivesse sido necessário, surgiu uma aventura musical que inaugurou um novo momento; sim, para a indústria cultural, de algum modo; mas também para a cultura no mundo, incluindo a brasileira. Afinal, como diria Mano Brown em uma de suas primeiras letras (antes mesmo da formação do Racionais), “aqui não é gueto americano, é periferia brasileira” (apud Pimentel, 1999: mimeo). Para Nicolau Sevcenko, ao contrário de um simples malabarismo tecnológico, a orientação que os rappers vêm dando ao seu trabalho “referenda aquela mesma agenda da cultura negra, que expressa as fontes mais profundas da sua inspiração espiritual, marcadas pelas experiências excruciantes do colonialismo, do exílio, da escravidão, da segregação e da exclusão” (Sevcenko, 2001: 118). E num sentido muito semelhante, Christian Béthune completaria que, através do sampling, “o rap reativa o conjunto da cultura afro-americana no sentido de uma visada revolucionária sem concessão e permite a seus atores a reapropriação de um conteúdo do qual haviam sido desapossados” (Béthune, 1999: 49). No rap “Declaração de guerra”, de MV Bill, há um verso cujo sentido remete ao processo de reapropriação cultural teorizado por Béthune. A letra imagina uma guerra entre negros e brancos e, em dado momento, o rapper propõe: Devolvam o samba e nossa cultura roubada ou vendida/ que eu poupo sua vida (MV Bill: Declaração de guerra).
Foi para confrontar essa apropriação da cultura pelas elites dominantes, pela política e pelo mercado que diversos grupos independentes do mundo inteiro, os rappers inclusive, “decidiram criar uma antiestética das ruas” (Sevcenko, 2001: 129. Grifo meu).
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Contranarrativa, antiestética – poderíamos dizer uma anti-arte? (cf. E. Grassi: 1975) – ou ainda contraliteratura, se formos assumir o conceito de Bernard Mouralis. Conceitos negativos que parecem apontar para o caminho oposto do que pretendia no início destas páginas. Todavia, concordo com Mouralis quando define o conceito de contraliteratura como “modalidades múltiplas de subversão do literário”, indicando que a disputa não é entre “literatura” e “não-literatura”, mas entre literatura e contraliteratura (Mouralis, 1982: 12-14). No caso do rap, o que, a meu ver, falta ser colocado em relevo é o fato de que essa oposição a um modelo estético já dado representa, por outro lado, a correspondente resistência a uma realidade opressiva, implicando a busca obstinada de uma liberdade ainda pouco definível. Como essa busca trafega em mais de uma direção, é claro que ela ameaçará também o status que as classes hegemônicas conferiram à arte em nossa sociedade. Nesse sentido, a arte do rap só pode se estabelecer como contra ou anti. Contra os modelos pré-estabelecidos de bom gosto em arte e como antítese a um modelo social excludente. Décadas atrás, Antonio Candido alertava que o avanço dos recursos audiovisuais poderia provocar tantas mudanças nos processos de criação e nos meios de comunicação, que, no dia em que as grandes massas chegassem à instrução, “quem sabe não [iriam] buscar fora dos livros os meios de satisfazer as suas necessidades de ficção e poesia” (Candido, 1987: 144). No que diz respeito aos nossos poetas de rua, em primeiro lugar eles não esperaram que as “grandes massas” chegassem à instrução, antes, por mais que isso pareça pretensioso, eles se propõem como meio de instrução, assumindo uma tarefa flagrantemente pedagógica. Em segundo lugar, eles entenderam que no seu meio, devido até à falta de instrução, muitas vezes o discurso ficcional é um luxo. Eles vão propor, então, uma poesia com o pé bem fincado na realidade, mas, ao mesmo tempo, preocupada em transformar o mundo (o que vai na contramão da leitura da contemporaneidade como um momento pós-utópico).
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O hip-hop, com sua poesia radical e revoltada mas potencialmente pop, é uma das muitas possibilidades de se realizar essa tarefa. Através de seu ritmo e sua poesia, eles buscam uma saída. Gog chega a indicar explicitamente uma possibilidade. Na letra de um de seus raps o rapper do Distrito Federal diz: Hein! Qual a saída?/ Consiste em admitir que o mal existe sim/ enraizado entre nós/ pronto pra ficar, nos dizimar, ser nossa sina/ temos que ter forças, nos unir/ para impedir/ para distinguir o certo do errado/ do contrário, meu caro/ seremos eternos manipulados (Gog: Entrei no ar).
O verso final desse rap é extremamente significativo: é isso aí, a nossa responsabilidade é grande...
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Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto onde algo começa a se fazer presente. Martin Heidegger
Michael Löwy, no livro Redenção e utopia, conta uma história sobre Lukács em que o filósofo, capturado pelas tropas contrarevolucionárias após a derrota da revolução húngara (da qual havia participado como ministro da Cultura) em novembro de 1956, ao ser intimado pelo oficial soviético a entregar suas armas teria tirado do bolso a caneta, entregando-a às forças da ordem. Guardadas as devidas proporções e respeitados os diferentes contextos históricos, quero propor que se trata de uma relação semelhante à que se dá entre o rapper e o seu microfone. Christian Béthune já tinha percebido esse tropo, não apenas no tocante ao rap. O músico de jazz, lembra-nos o autor, comparava seu instrumento a um machado e a sonoridade que tirava dele com o fio cortante de uma arma branca. De modo semelhante, “nas mãos do MC, o microfone se torna um rifle, e as palavras queimam em sua garganta como se fossem projéteis mortíferos” (Béthune, 1999: 70-1). Não raro, o rapper estabelece comparações do seu microfone com uma arma (da qual o pensamento é, geralmente, a munição). Por exemplo nos raps de Gog:
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O meu papo não é fachada/ bumbo, caixa, teclado/ encaixam com minha fala/ o produto a rajada” (Entrei no ar)
ou Acreditando que a mente é a mais farta munição (Matemática na prática)
nos do Racionais MCs: A primeira faz bum, a segunda faz tá/ [...]/ meu estilo é pesado e faz tremer o chão/ minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição [...]/ o rap venenoso é uma rajada de PT” (Capítulo 4, versículo 3).
MV Bill não reproduziu o modelo em seus versos; em compensação, ostenta uma tatuagem no ombro esquerdo onde se pode ver o desenho de um microfone e a legenda “Minha arma”. O expediente não se restringe aos rappers destacados neste trabalho. O grupo pernambucano Faces do Subúrbio declama: Não tenho um 38, mas minha arma é o microfone então se liga, / pá...rá-tá-tá-tá, rajadas de consciência não vai dar pra se esquivar (Coisas que vêm de dentro).
ou ainda: Estou aqui novamente/ com meu calibre pesado, nervoso para disparar/ mensagens à queima-roupa/ sem chance de escapar” (Comunicação verbal).
O grupo carioca Planet Hemp – que apesar de contestado por alguns setores do próprio meio, reivindica sempre que pode a identidade hip-hop1 – também entra na onda: 1 Marcelo D2, líder do grupo, volta e meia toca no assunto em suas letras, como por exemplo: “Enquanto você brinca de Ice-T/ pessoas pagam com a vida aqui e ali/ então não venha com esse papo que o rap é só seu/ que caiu no seu quintal/ saia dessa utopia e caia na real/ antes que seja tarde e você se dê mal/ rap é cultura de rua e não vou dizer mais nada/ para bom entendedor meia palavra basta/ rappers reais será que existe isso?” (Planet Hemp, 1999: “Rappers reais”). Em outra faixa, D2 canta: “Eu vou tentando rimar/ cê vai tentando entender/ hip hop Rio é Planet Hemp/ [...] eu sou do Rio, eu sou do hip-hop” (“Hip Hop Rio”).
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Já disse e digo de novo/ que o gatilho não falha/ [...] é um, é dois, é três, o meu cartucho eu descarrego de uma vez/ a mente é a arma, a voz é a bala/ sai tudo de uma vez (Se liga).
José Carlos dos Reis Encina, vulgo Escadinha, que em 1999 lançou um disco de rap,2 criou um refrão com sentido semelhante, que dá o que pensar: Chega de morte, ilusão, seu pai é um novo homem troquei a paz de um fuzil pela guerra de um microfone (Filho).
A comparação, amiúde praticada pelos rappers, de sua arte com uma retórica do armamento representa a um só tempo o vínculo e a fissura entre o poema e a realidade: aqui os tiros atuam “como um ataque cardíaco do verso/ violentamente pacífico, verídico” (Racionais: “Capítulo 4, versículo 3”). A reprodução onomatopaica dos sons de armas sendo engatilhadas e disparadas, recurso presente em diversos raps, diria Caio B. de Mello, “é índice da recriação de um ponto de vista colado à ação, [...], do esquivar constante e nem sempre eficaz do narrador por entre os tiros que entrecruzam na experiência”. Para o autor: “A palavra que vale um tiro é o verso incessante, à beira de um ataque cardíaco” (Mello, 2001: mimeo). O som dos disparos, comum na Cidade de Deus como em qualquer favela, tornou-se tão importante como símbolo de violência que não só foi incorporado às composições dos rappers, através do sampler ou da imitação vocal, como, no caso de MV Bill, engendrou novas possibilidades formais. Na faixa “Um crioulo com uma arma”, por exemplo, o rapper joga com a emissão dos
2 O disco intitula-se Fazendo justiça com as próprias mãos. Foi lançado quando Escadinha ainda cumpria pena em Bangu I, por tráfico de drogas. Ele, no entanto, não gravou propriamente o CD. Vários rappers, entre os quais MV Bill e Gog, emprestam a voz a composições de Escadinha, redigidas na prisão. O Racionais participa do disco com uma música própria, “O homem na estrada”, a qual teria, segundo o próprio, influenciado Escadinha a mudar de vida.
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fonemas /p/, /t/ e /r/, que são os que melhor mimetizariam a sonoridade de fuzis ou metralhadoras. Nesse rap, MV Bill narra o cerco de policiais a um criminoso: Mais de vinte PM cercando a casa/ para o que será?/ Para matar, para matar, para matar/ Para matar, para matar, para matar... (MV Bill: Um crioulo com uma arma).
A cadeia aliterativa combina-se à performance vocal expressiva que escande as sonoridades; em seguida, comprime a locução “para matar”, que é repetida cada vez mais rapidamente, até que se possa confundi-la com a rajada de uma metralhadora. O verso violento do rap busca um caminho possível entre a rajada real e a sua forma estética. O músico pernambucano e um dos líderes do movimento Mangue Bit,3 Fred Zero Quatro, num texto em que defende a maior vitalidade da poesia oriental em relação à ocidental, faz uma consideração interessante sobre a relação entre crime e poesia: “Se os governantes recusam-se a considerar poesia como crime, então alguém precisa cometer crimes que tenham a função de poesia, ou textos que tenham a ressonância do terrorismo” (Zero Quatro, 2000). Não é outro, parece-me, o caminho buscado pelos rappers. A arte que postulam tem a ver com a realidade que vivem. O crime é uma parte importante dessa realidade. Por isso a criminalidade, ou a violência, não só é um tema bastante explorado nas composições, mas integra o próprio comportamento do artista: o jeito de falar, de vestir-se, de agir. Para inúmeros jovens que vivem nas favelas, o narcotráfico pode representar uma forma de “subir na vida”, trazendo dinheiro, pres-
3 Movimento musical que surgiu no Recife no começo da década de 90, a partir das misturas de sonoridades típicas de Pernambuco, como o maracatu, e outras vindas de fora, como o hip-hop e o punk rock, agregando ainda um imenso aparato informacional que vai do ciberpunk às tecnologias de comunicação. Um dos lemas de Chico Science, um dos expoentes do movimento, junto a Fred Zero Quatro, é “as antenas parabólicas fincadas no manguezal”. Chico Science faleceu num acidente de automóvel em 1997, mas a cena mangue continua resistindo.
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tígio e poder. Contudo, a manutenção desse status só é possível através da defesa violenta e intransigente de um espaço, o espaço do “movimento”, da boca-de-fumo, que garante ao traficante ganho material e a sua posição de liderança na comunidade. Por isso a contradição presente no verso de Escadinha citado acima é apenas aparente. A opção pelo fuzil garante um tipo de paz que, por um lado, é financeira, garante o pão de cada dia e muito mais. Por outro, é política. O fuzil, de algum modo, garante para o jovemnegro-favelado – expressão que soa como clichê hoje em dia, mas nem por isso é menos verdadeira – um lugar no mundo. Ralph Ellison, no prólogo de Invisible man, livro publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1947, começava dizendo: “Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como aqueles que perseguiam Edgar Allan Poe; tampouco sou um ectoplasma do cinema de Holywood. Sou um homem de substância, de carne e osso, de fibra e líquidos – e pode-se dizer que possuo até mesmo uma alma. Eu sou invisível, entendem, simplesmente porque as pessoas se recusam a ver-me” (Ellison apud Vogt e Fry, 1996: 15). Cito esse trecho porque me parece muito significativo da sensação que, muitas vezes, tem o garoto (as garotas também participam desse mundo, mas em proporções muito menores) na favela: ele passa despercebido. O recurso ao fuzil já lhe garante duas novas posições no jogo das relações sociais. Primeiro, ele passa a ser notado e a provocar nas pessoas um sentimento, ainda que seja o medo. Em segundo lugar, ele passa a pertencer a um grupo, que será tanto mais coeso quanto mais se oponha a outros grupos, como acontece hoje em algumas cidades com os conflitos entre facções do narcotráfico. Faça parte do Comando A, B ou C, ele agora se sente alguém. Tem a sensação, mesmo que ilusória, de ter-se tornado visível. O rap, por sua vez, exige trabalho, talento e paciência. Os resultados não aparecem de imediato, e às vezes sequer aparecem. No Brasil, as possibilidades de enriquecimento pelo rap ainda são remotas. Através do microfone, a guerra é mais complexa
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porque 1) envolve a percepção das contradições presentes nas relações sociais, inclusive as do seu próprio meio, por exemplo, os conflitos fratricidas (como nas guerras do narcotráfico), o que leva à necessidade de mudar esse quadro: A vida é curta, procure alguma coisa boa para fazer/ parar de se matar, nosso inimigo é outro/ prejudicado nessa guerra apenas nosso povo (MV Bill: Atitude errada).
2) coloca uma perspectiva de futuro – quero um futuro melhor/ não quero morrer assim, num necrotério qualquer (Racionais: Homem na estrada).
–, coisa que passa longe do raciocínio da bandidagem, para quem importa mais um presente melhor; e 3) traz à baila, ao lado da polícia e outros, um inimigo diferente, mais poderoso e difuso, conhecido por um nome familiar às esquerdas revolucionárias: o sistema. Por outro lado, o rap garante para aquele jovem-negro-favelado a visibilidade que tanto desejava. John Farley afirma, em texto significativamente intitulado “A nação hip-hop”, que o “estado de ser invisível é uma metáfora constante da condição do negro na sociedade americana”. O grupo de rap estadunidense Roots explicita isso:“Vocês não nos vêem/ mas nós os vemos”. Segundo Farley, o hip-hop “deu voz à invisibilidade” (Farley, 1999: 2). Voz que, no Brasil, representará uma forma mais construtiva de superar as barreiras impostas pela condição de invisibilidade do negro que a opção pelo fuzil. A escolha da via artística traz para o rapper uma grande responsabilidade. Eric Hobsbawm, na História social do jazz, falava a respeito do artista que surge entre os trabalhadores não qualificados e o significado social peculiar que sua atividade teria para os pobres como ele. Mutatis mutandis, o rapper convive com uma realidade semelhante: “No mundo do qual ele vem e onde ele trabalha, ‘entretenimento’ (que significa qualquer
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talento pessoal ou dom vendido para o público ver, ouvir ou usufruir de alguma outra forma, do corpo para a alma) não é apenas uma forma de ganhar a vida, mas muito mais importante, uma maneira de se criar um caminho próprio dentro do mundo, só comparável ao crime e à política...” (Hobsbawm, 1990: 218). Boa parte dos rappers, notadamente os que têm semelhanças com os estudados aqui, passa a vida num delicado equilíbrio entre um lado e outro – entre a opção pelo crime e a opção pelo rap. MV Bill, por exemplo: Encontrei minha salvação na cultura hip-hop/ Tem outros que entraram pra vida do crime querendo ganhar IBOPE (MV Bill: Traficando informação).
Mano Brown expressa um sentimento semelhante: Não me olhe assim, eu sou igual a você/ descanse o seu gatilho/ que no trem da malandragem meu rap é o trilho (Racionais: Fórmula mágica da paz).
Era esperável que a tensão entre o rap e o crime viesse a se refletir no trabalho de composição dos rappers. Não apenas no que diz respeito ao aspecto sociológico da questão, mas também no que se refere à dinâmica interna dos textos. Mesmo tendo optado pelo caminho da arte, a experiência adquirida no meio hostil em que viveram canaliza para as suas letras e performances, o “sentimento de revolta” que outros resolveram de forma diferente, optando pela “paz do fuzil”. Em “Capítulo 4, versículo 3”, do disco Sobrevivendo no Inferno, o grupo Racionais MCs expõe a um eventual ouvinte o seu programa de intenções. Sem meias palavras, o discurso não omite a inflexão por demais dura de sua proposta, nem faz questão de manter a aparência de quem propõe diálogo ou espera compreensão. Minha intenção é ruim, esvazia o lugar/ eu tô em cima, eu tô afim, um-dois pra atirar/ eu sou bem pior do que você tá vendo/ preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno [...]/ e tenho disposição pro mal e pro bem/ talvez eu seja um sádico/ um anjo, um mágico/
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um juiz ou réu/ um bandido do céu/ malandro ou otário/ guarda ou sanguinário/ franco atirador se for necessário.
A linguagem se articula entre a ordem e o crime, o sujeito definindo-se a partir de antinomias – disposição pro mal e pro bem, um sádico ou um anjo, juiz ou réu, malandro ou otário, bandido do céu. “Eu sou bem pior do que você tá vendo” representa uma resposta à altura do discurso eivado de preconceitos com que a sociedade o encara. Em outras palavras, o estereótipo com que é definido, se o marca de inferioridade num primeiro momento, num outro é o que o torna um “perigo”. Eis o nó: um perigo não exatamente físico; o perigo aqui reside no discurso, na linguagem. A ameaça não se concretiza, sua potencialidade é o que permite mostrar que a palavra é portadora de uma energia capaz de interferir no real. A atitude não é nenhuma novidade, tampouco traço exclusivo do rapper brasileiro. Em seus trabalhos a respeito do fenômeno rap, os pesquisadores Christian Béthune (1999), David Shusterman (2000) e Steven Best & Douglas Kellner (1999) concordam que a lógica da rivalidade, das disputas e dos desafios faz parte da cultura negra espalhada pelo planeta desde os primórdios da diáspora africana e certamente já estariam presentes nas culturas africanas antes do expansionismo colonial. Os autores procuram mostrar que a habilidade verbal é bastante estimada no “gueto africano urbano”, exibida através de concursos e jogos verbais convencionais tais como signifying (“significar”) ou as dirty dozens (“dúzias sujas”), jogos de insultos rituais, envolvendo demonstrações de destreza verbal, perspicácia e criatividade. Esses jogos concorreriam para afirmar uma posição social superior mediante o poder verbal, implicando disputas no campo da linguagem; e teriam feito da cultura rap sua mais recente herdeira (Béthune, 1999: 67 et passim; Shusterman, 2000: 146; Best & Kellner, 1999: mimeo). “Desde os primeiros tempos da escravidão, as manifestações culturais dos negros têm a tendência de se organizar sob a forma de
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justas”, escreve Christian Béthune (1999: 68). Esse processo seria também um prolongamento simbólico de rivalidades estabelecidas entre as equipes de trabalho formadas pelos senhores de escravos, visando o aumento da produtividade. Béthune refere-se a competições nas quais eram premiadas as equipes de trabalho que melhor desempenhassem sua tarefa no eito. Para o autor, essa forma competitiva de divisão do trabalho teria continuidade nos momentos de distração: “Cantar, dançar, contar uma história tornam-se também ocasiões para se distinguir e ascender no interior da comunidade afrontando os melhores” (Béthune, 1999: 68). Essa prática se perpetuaria até hoje. Béthune explica que o jovem negro dos guetos norte-americanos, habituado a participar de jogos verbais como as “dúzias”, aprende desde cedo a encarar a vida como uma constante disputa por um lugar na comunidade de pares. Tais processos também seriam responsáveis por ajudá-lo na sua passagem da adolescência à idade adulta, preparando-o para uma sociedade hostil à sua classe e à sua raça, na qual deverá descobrir como sobreviver ou sucumbirá (Béthune, 1999: 72). Tudo isso seria parte de uma tradição negra profundamente enraizada nas cidades, remetendo aos griots da África ocidental, tendo sido difundida no Novo Mundo através dos caminhos do Atlântico negro. Tradição que não poderia ter deixado de aportar também em terras brasileiras. Béthune (1999: 70) sustenta que a cultura hip-hop, não apenas o rap, retoma à sua maneira essa face da cultura negra. Quer se trate da dança break,4 do graffiti e, é claro, do rap, a cultura hip-
4 “Nessa época [início dos anos 70], eram comuns os conflitos étnicos em que gangues de hispânicos se encontravam com as dos negros para tirar suas diferenças de maneira violenta, levando muitas vezes à morte. Dentro dessa realidade cruel, o break se tornou o elemento de união número um para os jovens que integravam aquelas gangues, os quais buscaram através da dança uma alternativa para a solução de seus problemas. Então, quando as gangues se encontravam nas ruas, decidiam suas divergências de forma sadia e inteligente: com o box (rádio-gravador) na mão, conjuntos de agasalhos das mais diversas marcas (Nike, Adidas, Puma...), tênis de couro com cadarços grossos e coloridos, chapéus de golfista, boinas e bonés, caracterizando o visual b. boy, as gangues mostravam no break quem era o dono do pedaço” (DJ TR, s/d, mimeo).
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hop faz da rivalidade entre seus atores um elemento preponderante de sua estética. Como vimos anteriormente, também o repente e o partido-alto são formas culturais que, no Brasil, manisfestam essas características. No contexto mais atual – precisamente desde o início da década de 80 – a rivalidade não se vai restringir ao caráter esportivo de uma disputa, muitas vezes baseada na soberba e na fanfarronice, entre os próprios membros da cultura hip-hop em particular. A voz dos rappers volta-se contra os problemas sociais, a opressão racial e social, a situação política, a ideologia dominante enfim, constituindo-se como um severo questionamento da sociedade e de seus poderes constituídos, com um chamado explícito ao confronto. O mote aqui é fornecido pelo grupo Public Enemy: “Fight the power”. Certamente, foi esse aspecto que motivou o subtítulo do livro de Christian Béthune: une culture hors la loi. O fato de se situar fora da lei, consigna ao rapper um antagonista que estará sempre presente nas letras: a polícia. Esta representa a perseguição não só ao rapper, mas à sua comunidade e a seu povo: vão invadir o seu barraco, é a polícia/ vieram pra arregaçar cheios de ódio e malícia/ filhos-da-puta, comedores de carniça (Racionais: Homem na estrada).
diz Mano Brown, deixando bem claro, no final do mesmo rap, o pouco apreço que tem pela corporação: “não gosto da polícia, raça do caralho”. O mesmo aparece nesta outra composição do grupo: Se diz que moleque de rua rouba/ o governo, a polícia no Brasil quem não rouba?/ Ele só não tem diploma pra roubar/ ele não se esconde atrás de uma farda suja/ [...]/ AH, a polícia sempre dá o mal exemplo/ lava minha rua de sangue/ leva o ódio pra dentro, pra dentro de cada canto da cidade (Racionais: Mundo mágico de Oz).
A relação com a polícia é mais um traço de união entre os membros da cultura hip-hop no mundo inteiro. Best & Kellner dizem que a
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música rap procura chamar a atenção dos jovens negros nos centros urbanos para diversos problemas, especialmente a violência policial, com a qual se confrontam diariamente. Eles entendem que, longe de “servir e proteger”, a polícia na verdade representa um dos mais graves problemas das comunidades negras (Best & Kellner, 1999: mimeo). Uma pesquisa realizada por Ignácio Cano, publicada no sítio de notícias No., revela que a ação policial no interior de favelas ocasiona mais mortes que fora dela, e que os negros, moradores de favela ou não, são mais vitimados pela violência policial que os brancos. Em entrevista a Carla Rodrigues, repórter do referido sítio, Cano desmistifica as duas hipóteses mais freqüentes para explicar o fenômeno: o fato de a polícia agir mais em áreas da periferia, onde vive um maior número de negros; e o de os negros, justamente por serem pobres, cometerem mais crimes, e por isso acabarem, devido à coincidência de raça e classe social, sofrendo mais a ação policial. Como a pesquisa procurou excluir estas duas questões, demonstrando que tanto nas áreas pobres como nas ricas a estatística permanece desfavorável aos indivíduos de fenótipo negro, o racismo e o preconceito inerentes à polícia aparecem mais claramente (Cano, 2000). Os rappers já sabiam. Numa espécie de preâmbulo à faixa “Capítulo 4, versículo 3”, a voz de Primo Preto anuncia as seguintes estatísticas: 60% dos jovens de periferia, sem antecedentes criminais, já sofreram violência policial; em cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo (Racionais: Capítulo 4, versículo 3).
Não é demais lembrar o depoimento do delegado de polícia Hélio Luz ao documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles. Luz afirma que a polícia existe para fazer a segurança da elite. Para os pobres, resta a política de repressão: “Mantenho a favela sob controle. Como é que se mantêm dois milhões de excluídos sob controle, calmos?... Com repressão!” (in Salles, 2000).
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A favela e a nova atitude negra Na relação entre o rapper e a sua comunidade manifesta-se o desejo de assumir uma tarefa: a de representar o seu povo. O rapper fala pelos que não falam. Talvez não na qualidade de um igual, uma vez que seu papel como artista e sua projeção para além dos limites da comunidade o marcam, de saída, com um traço diferencial. Assim mesmo, eles falam de um ponto de vista que, se não é inédito, é o que leva mais longe a possibilidade de uma voz dissonante, oriunda de excluídos históricos do processo de modernização social brasileiro, nas narrativas reveladoras da nação. No disco de MV Bill há uma faixa de introdução que é uma espécie de cartão de visitas endereçado ao ouvinte. Este poderia ser o recado de qualquer um dos rappers selecionados para este trabalho. Em todos os três – e nos demais que volta e meia menciono, como Thaíde ou Faces do Subúrbio – o drama das favelas se assemelha em muitos aspectos: a exclusão, a opressão, a violência, a miséria e a impossibilidade de se expressar. MV Bill está em casa/ pode acreditar vamos fazer uma longa viagem/ não ao inferno tampouco ao paraíso/ mas uma viagem na vida dura, na vida simples/ de muitas pessoas que como nós/ vivem às margens da sociedade/ vivem sem voz, acuadas e oprimidas/ vamos fazer uma longa viagem/ numa cidade que segue sofrendo/ que sofre vivendo e que chora sorrindo e sangra sem choro/ que tenta mudar o destino traçado para os filhos seus/ uma viagem de ida e volta a uma cidade chamada de Deus (MV Bill: Introdução).
Essa introdução, cantada/falada, acompanhada apenas por percussão, abre passagem para as faixas seguintes. MV Bill pretende levar-nos para um “passeio” pela comunidade onde mora, como um guia de turismo que nos conduz através da linguagem pelos becos e vielas da favela. O primeiro verso é, a meu ver, muito significativo: “MV Bill está em casa”. Não é um verso casual, é praticamente um bordão do rapper, pronunciado em momentos
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específicos. Sempre que se apresenta em uma comunidade, ou num espaço de eventos dedicado exclusivamente ao hip-hop ou a outras manifestações culturais típicas dos negros, MV Bill inicia sua apresentação com essa frase. Isso é mais significativo na medida em que, nas oportunidades em que o rapper se apresenta em locais fora da favela e não identificados com a cultura hip-hop, a frase é repetida na negativa. Foi o caso da apresentação no palco do Free Jazz Festival, na edição de 2000, realizado no Museu de Arte Moderna, no Flamengo, bairro da zona sul carioca, local identificado pelos adeptos do hip-hop como um espaço da elite. Nesta noite, no salão lotado por playboys, o rapper iniciou sua performance frisando: “MV Bill não está em casa”, com a ênfase recaindo, sintomaticamente, sobre o advérbio de negação. Vale a pena dedicar alguma atenção a esse modo de agir, que faz o rapper sentir-se em casa em determinados espaços – os da favela ou os dedicados à cultura dela advinda – e fora dela em outros. Essa oposição, a meu ver, engendrou uma desconfiança mútua entre a sociedade branca dominante, que é a que habita de fato a cidade, e os negros subalternos, dela excluídos. O inevitável convívio social impõe a exposição da distância significativa entre os que gozam do conforto oferecido pela sociedade, e os que sofrem as injustiças graças à sua classe ou sua cor, quase sempre a ambas. O rap será a linguagem dessa cesura. Uma cesura que, sob certos aspectos, remete à reflexão de Franz Fanon sobre as lutas anti-coloniais. Fanon, que desenvolveu sua reflexão tendo por base o contexto específico da descolonização africana, dizia que a cidade do colonizado e a do colono se opõem e se excluem mutuamente, “não há conciliação possível, um dos termos é demais” (Fanon, 1979: 28). Embora aqui eu esteja tratando de um quadro histórico inteiramente outro, lidando com negros urbanos brasileiros, creio ser possível, dentro de certos limites, estabelecer uma aproxi-
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mação. Em primeiro lugar, considerando o fato de que as atuais condições sociais – flagrantemente desfavoráveis não só aos pobres, mas aos indivíduos afro-descendentes – são resultado, em todo o Novo Mundo, do período em que vigorou a escravidão. Em segundo lugar, o de que as desigualdades produzidas neste período permanecem atuais e são percebidas pelos rappers como continuidade de um processo civilizatório excludente, iniciado justamente no período da expansão colonial. Tal percepção não se resume à elaboração intuitiva dos rappers. Por isso, a relação entre a favela e a cidade – entre o morro e o asfalto, numa denominação que ficou comum – aparece no discurso do rapper sob o signo da cisão e do atrito, mais que da troca e da interpenetração. O que Fanon observou a respeito do contexto colonial me parece ainda hoje válido quando o contexto é a contemporaneidade globalizada. Observados em profundidade, tanto um contexto quanto o outro revelam que “o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça” (Fanon, 1979: 28). O mundo colonizado é, para Fanon, um mundo cindido em dois. A cidade do colono revela uma cidade saciada, repleta de coisas boas. Já a cidade do colonizado “é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. [...] Uma cidade de negros” (Fanon, 1979: 29). A visão do rapper não é muito diferente. Ele expõe um mundo no qual as crianças da favela não têm direito ao lazer, em oposição às dos bairros nobres, que o têm de sobra. Em “Fim de semana no parque”, por exemplo o lazer do favelado é restrito: É, brincam do jeito que dá/ gritando palavrão, é o jeito deles
O dos “playboys” é farto: Olha aquela quadra, olha aquele campo/ tem sorveteria, cinema, piscina quente/ [...]/ tem corrida de kart dá pra ver/ é igualzinho o que eu vi ontem na TV (Racionais: Fim de semana no parque).
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Este outro rap, de MV Bill, segue a mesma trilha: Deve ser muito fácil falar da cobertura/ daqui de baixo aonde eu tô a realidade é bem mais dura/ aqui não tem playground, não tem carro do ano/ aqui não tem piscina com playboy nadando/ aqui não tem shopping, não tem boate/ mas tem soldado de azul brincando de “SWAT” (MV Bill: Contraste social).
Supor que a cidade é cindida em duas partes simetricamente antagônicas seria, certamente, uma simplificação. A cidade não é exatamente partida, como propôs o jornalista Zuenir Ventura. A cidade é multifacetada. Os contrastes se multiplicam dentro de cada cidade, de cada bairro e mesmo de cada favela. Então, é inegável que, na ótica do rapper, subsiste uma oposição simples, binária, pautada pela diferença entre os que se assenhoraram das posições de poder e privilégio e os que delas foram excluídos. No mundo dos brancos (como na cidade do colono), o negro favelado não tem lugar: Olha aquele clube que da hora, olha/ olha o pretinho vendo tudo do lado de fora (Racionais: Fim de semana no parque).
Este é o acesso que, de acordo com o Racionais, o negro tem ao conforto da cidade: o de olhar, sempre do lado de fora. Sua entrada neste mundo é permanentemente negada. O olhar do “pretinho” excluído se expressa de dois modos distintos. Num, trata-se de um olhar de desejo e também de inveja. No outro, captado pelo rapper, esse olhar manifesta também um sentimento de revolta. Em resumo, o rapper tem uma visão maniqueísta do contexto social: favela versus cidade, pretos versus brancos. De acordo com seu discurso, uma vez cindida a relação entre a cidade e a favela, os rappers trabalhariam numa perspectiva de conquista de poder, buscando recuperar aquilo que lhes fora negado ou usurpado. Tenho a acrescentar que essa busca, a meu ver, se dá em dois níveis: por um lado é estética, recuperando através do sample as diversas gerações
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da música negra. Por outro é eminentemente social, uma vez que requer o seu direito à humanidade e à cidadania. Para tanto, os rappers se valeriam da palavra, de sua voz, como se fosse uma arma (cf. seção anterior). Através de sua voz, o rapper vai falar pela favela, o que ganha a justa dimensão no ato da performance. Aqui, a face séria, o cenho franzido, a voz imperativa do rapper inauguram um novo gesto, um novo olhar da favela em direção à cidade. Squeff e Wisnik diziam que, em virtude de o negro traçar sua sobrevivência exclusivamente no trabalho físico, será “no gesto, na manifestação física de sua humanidade que ele [irá impor] sua cultura” (Squeff & Wisnik apud Martin-Barbero, 2001: 251). Os rappers parecem conscientes de que há forças superiores que lhes impedem a expressão: o governo, a televisão, a sociedade em geral e a polícia. Daí, imbuir-se de uma missão. Aceitando a sugestão do Public Enemy, eles querem combater o poder. Clastres explicava que o exercício do poder é que garante a posse da palavra. O contrário também é verdadeiro: a posse da palavra pode garantir o exercício do poder. É ainda Clastres quem conclui: “Toda tomada de poder é uma aquisição de palavra” (Clastres, 1990: 106). Daí, a necessidade histórica de transformar essa relação. O rapper Gog parece ter percebido muito claramente essa relação: Vamos mudar a voz/ vamos ser a voz (Gog: Qual é o pó?).
É através da palavra que os rappers se esforçarão para mudar as coisas. Essa tomada de palavra é o primeiro e importante passo: MV Bill falando pela comunidade.
Esse poderia ser um bordão também do Racionais ou do Gog, desde que não se esqueça de que se trata de uma tarefa problemática. Mano Brown, numa entrevista a revista Caros Amigos, deixou bem claro que não se considera a voz da periferia:
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Nós somos mais uma voz. [...] A minha verdade é essa, não significa que seja a verdade de todo mundo (in Caros Amigos, 1999: 16).
MV Bill fala pela comunidade, mas sabe que é complicado: Minha atitude vai além falo por milhões, compreendido por menos de cem (MV Bill in Cidade Negra: A voz do excluído).
Quando eles começam a falar, fica logo clara a intenção de arregimentar forças capazes de realmente abalar as atuais estruturas de poder. Essa postura é evidente não só pelo que dizem, mas pela maneira como o dizem. A voz entra firme, sempre grave (séria). É um recado direto e claro: o ouvinte ou o público tem que prestar atenção na mensagem, é isso que importa. Quem já viu uma performance de qualquer um dos três rappers citados (Gog, Racionais, MV Bill) ao vivo ou em vídeo, sabe que eles mantêm o tempo inteiro uma postura séria, a face crispada como quem está permantemente tenso... ou com raiva. Essa atitude diz coisas: ela diz que o cara ali em cima do palco, entretendo o público, vive mesmo as dificuldades que narra. Não há motivos para sorrisos nem para manemolência: o rapper de favela também tem que se diferenciar de outras formas de expressão surgidas no mesmo espaço, como o funk e o pagode, cuja performance tem um quê de afeminado do qual a atitude dos rappers procura distanciar-se: até agora pelo menos, o hiphop tem sido o reino do masculino (no que esse conceito tem de mais estereotipado). Esse fator acabou originando uma questão mal resolvida: a misoginia, que tem sido um dos calcanhares de aquiles do hip-hop. A meu ver o problema não é privilégio do rap, várias manifestações da cultura negra reproduzem uma estrutura machista em suas composições ou forma de organização sociocultural. Beatriz Borges afirma que “os compositores do samba-canção conferem uma carga negativa à mulher”, que é vista como falsa, “sempre ligada à dissimulação”. Além disso, para a autora, o samba é um espaço masculino. Tanto que a roda
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de samba representa o espaço onde “a mulher do compositor tem mais ciúme e desconfiança” (Borges, 1982: 91-2). Em outro contexto, vejamos o que Elisa Grimm, em ensaio publicado na coletânea do VII Seminário Nacional Mulher e Literatura, tem a dizer sobre uma canção do grupo pop Skank: “Em geral, essa música parece supor que toda [...] garota brasileira existe para agradar o homem e ser-lhe sexualmente atraente”, enquanto ele “tem direito de usá-la” (Grimm, 1999: 232). Os trechos citados confirmam a opinião de Tricia Rose, para quem “é crucial compreender que os rappers não inventaram o sexismo”. Além disso, eles “não são os únicos a veicular uma imagem simbólica da mulher-objeto” (Rose apud Béthune, 1999: 117). O que não os isenta de sua responsabilidade. Sobre isso, parece-me importante lembrar uma advertência de Paul Gilroy, que vai além do problema da misoginia. Gilroy adverte que ser conivente com a crença de que o vernáculo negro se resume a “um desfile paródico e brincalhão da subversão rabelaisiana” enfraquece as posições do artista, do crítico e da comunidade de forma geral. “O que é mais importante, certamente, é o fracasso do comentário acadêmico ou jornalístico sobre a música popular negra na América em desenvolver uma estética política reflexiva capaz de distinguir o 2 LiveCrew5 e seus congêneres de seus colegas igualmente autênticos mas talvez mais convincentes e certamente mais construtivos” (Gilroy, 2001: 178). Durante a segunda edição do Prêmio Hutúz (certamente a maior premiação exclusiva do hip-hop no Brasil, senão na América Latina), da qual participei como jurado, o apresentador do evento, o rapper Thaíde, foi ovacionado após exortar seus colegas a tratarem melhor as “minas” nas letras. E uma das maiores ovações da noite foi para o rapper Pregador Luo, do grupo de rap gospel
5 Grupo de rap da Flórida que popularizou o gênero pornográfico. As letras de suas composições são geralmente depreciativas ou ofensivas às mulheres. A mais conhecida é “We want some pussy”.
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Apocalipse 16, vencedor na categoria gospel e em outras duas, ao homenagear as mulheres presentes. Ao final Luo emendou: “Pra nós, vocês são damas e não cachorras”. Além disso, a discussão sobre a misoginia dos rappers não deve obscurecer o fato de que a voz feminina no rap brasileiro vem crescendo a cada ano, mostrando-se disposta a não permanecer à sombra dos manos. Os rappers que priorizo neste trabalho não manifestam, pelo menos ostensivamente, características misóginas, embora o Racionais MCs tenha sido acusado de nunca mencionar as mulheres da comunidade em suas composições e quando mencionam, é de forma negativa. À revista Raça, Mano Brown respondeu que isso acontece porque “a gente não tem mais mensagem para mandar pras mulheres. O mundo que a gente vive é outro. Mulher é a parte boa da vida” (apud Novaes, 1999:76). Por outro lado, versos que poderiam revelar certa misoginia, como “olha quanto boy, olha quanta mina/ afoga essa vaca dentro da piscina” (1994: “Fim de semana no parque”), não se dirigem às mulheres em si, mas a um determinado tipo de mulher, àquelas que em outro rap denominariam “mulheres vulgares”. O caso é que, nas composições do Racionais, essa ressalva não fica tão explícita quanto as declarações depreciativas: Nada de roupa, nada de carro, sem emprego/ não tem Ibope, não tem rolê, sem dinheiro/ sendo assim sem chance sem mulher/ você sabe muito bem o que ela quer/ encontre uma de caráter se você puder/ é embaçado ou não é? (Racionais: Fórmula mágica da paz).
Retomando o tema favela, cito uma composição em que se revela um detalhado radiograma das comunidades situadas no Distrito Federal. O trecho mostra que os problemas da periferia não se restringem a uma ou outra comunidade, são problemas comuns a qualquer favela no país: Brasília periferia, Santa Maria é o nome dela/ estupros, assaltos, fatos corriqueiros/ desempregados se embriagam o dia inteiro/ a boca mais famosa é o puteiro (Gog: Brasília periferia).
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O primeiro verso desse rap, “aqui a visão já não é tão bela”, é sintomático da oposição ostensiva que o rap estabelece entre a favela e a cidade. MV Bill, por sua vez, ironiza de forma cruel a visão romantizada da favela como lugar dotado de uma beleza pitoresca, ao mesmo tempo em que estabelece, de forma muito sutil, um parâmetro para a cisão entre a favela e a zona sul carioca, parodiando a famosa composição de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, “Garota de Ipanema”: Que coisa linda, cheia de graça família disputando o seu almoço na praça (MV Bill in Cidade Negra: A voz do excluído).
Acrescente-se que não é apenas a violência da polícia ou da bandidagem que torna a favela um lugar perigoso. O Racionais, como vimos anteriormente, faz questão de lembrar que na favela não se encontra “nenhum clube poliesportivo/ pra molecada freqüentar, nenhum incentivo”. Por outro lado... se quiser se destruir está no lugar certo/ tem bebida e cocaína sempre por perto/ [...]/ Smith, Taurus, Rossi, Dreyer ou Campari/ [...] nomes que estão no nosso meio para matar (Racionais: Fim de semana no parque).
Um discurso que Gog referenda: Do fundão Ceilândia/ mais precisamente da expansão do Setor O/ onde tiros, tiras, pó/ misturados dão um problema só” (Gog: Matemática na prática).
E MV Bill concorda de pronto: Cocaína, maconha, revólver, cachaça/ a última opção tá na birosca, é liberada/ quase de graça, é álcool e mata (MV Bill: Traficando informação).
Todavia, MV Bill aborda o problema por um viés ainda mais complicado e difícil de lidar. Sabe que o “inimigo” a que o rap tanto se refere não está simplesmente em um hipotético lado de lá, no chamado asfalto. Tem uma atitude crítica interessante ao cha-
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mar a atenção para o fato de que o poder que massacra a sua comunidade não está apenas nos bairros ricos, nas biroscas, nas bocas-de-fumo, nos Departamentos de Polícia ou no Estado. Percebe que a grande astúcia do “sistema”, foi fazer o “povo lutar contra o povo”. Um exemplo: Um preto não quer ver o outro preto bem/ isso é verdade não é caô acredite/ [...]/ o inimigo usa terno e gravata/ mas ao contrário a gente aqui é que se mata/ através do álcool, através da droga/ destruição na boca de fumo, destruição na birosca/ fazendo justamente o que o sistema quer (MV Bill: Traficando informação).
Por outro lado, é preciso notar que a visão do rapper sobre a favela não é unívoca. Ao mesmo tempo em que denuncia as mazelas, os problemas e os contrastes sociais, declara-lhe o seu amor e o seu débito. Foi da favela que o rapper retirou a energia que agora pulsa em sua música. Em “Fórmula mágica da paz”, do Racionais MCs, esse sentimento ambivalente comparece em toda sua amplitude: Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo que eu tenho/ a minha vida é aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir mas eu não vou/ não vou trair quem eu fui quem eu sou/ gosto de onde eu estou e de onde eu vim/ ensinamento da favela foi muito bom pra mim (Racionais: Fórmula mágica da paz).
Para o rapper, a favela (a sua área) é o seu habitat. Apesar das minas explosivas – o álcool, as drogas, a violência –, é ali, do seu lado da fronteira, que o rapper travará o combate contra o sistema. David Shusterman assinalou que o hip-hop aborda temas universais como a injustiça e a opressão, mas permanece orgulhosamente como uma música de gueto, “adotando como temática suas raízes e seu compromisso com o gueto negro urbano e sua cultura” (Shusterman, 2000: 152). O autor ainda nota que a maioria dos rappers especificam os seus domínios com precisão, não apenas citando a cidade como também o
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bairro de sua origem: Compton, Harlem, Brooklin ou o Bronx (Shusterman, 2000: 153). É possível que esta seja uma característica universal da cultura hip-hop espalhada pelo mundo. Por mais que se internacionalize, o rap se empenha em manter-se local e afinado com os interesses de suas respectivas comunidades de origem. A geografia periférica é tão importante para o rapper que os três priorizados aqui, Gog, MV Bill e Racionais, escreveram raps para homenagear não só a sua própria comunidade, mas a favela de maneira geral. Esse é um procedimento que os aproxima de Bezerra da Silva, que compôs um samba – “Aqueles morros” – em que homenageia as favelas do Rio de Janeiro: Antes aqueles morros não tinham nomes/ foi pra lá o elemento homem/ fazendo barraco, batuque e festinha/ nasceu Mangueira, Salgueiro, São Carlos e Cachoeirinha/ [...]/ Jacarezinho, Turano, Sossego e o Morro Azul/ gosto de todos mas o Cantagalo que é o meu lugar.
No Rio de Janeiro, da favela Cidade de Deus (“CDD minha área tá no meu coração”), MV Bill canta as comunidades que fazem parte do seu roteiro, atribuindo-lhes características que fecham as rimas: Lugar que bicho pega, Vila Operária/ Rio das Pedras, moradia precária/ [...]/Boa Vista, Favela do Pira, Querosene pra ser inimigo basta ser PM (MV Bill: Sem esquecer das favelas).
Em dado momento, o rapper revela: Eu tô na favela e a favela tá em mim.
Gog, por sua vez, nos leva para uma longa viagem através da capital do país. Naturalmente, o seu roteiro também é a vasta zona periférica: Aqui a visão já não é tão bela Brasília periferia, Santa Maria é o nome dela
e os bairros se sucedem, cada um com seus problemas e suas virtudes:
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No Gama a fama é o drama sensacionalista/ jornais, revistas, segunda sai a próxima lista/ pânico na população/ mas esqueceram a escolinha de futebol do Bezerrão/ do samba no salão, que já é tradição/ [...]/ Novo Gama, no Ipê, no Jardim Ingá, em Corumbá/ aqui lembra o Paranoá/ as pessoas, as ruas, sei lá... (Gog: Brasília periferia).
No disco Sobrevivendo no Inferno, a faixa “Salve” mostra o ponto de vista do Racionais MCs. Indica os bairros que – partindo das favelas da zona sul de São Paulo para as outras zonas da cidade, e depois ao grande ABC, para chegar às favelas do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santos, Belo Horizonte e cidades-satélite pobres do Distrito Federal – delimitam as fronteiras da nação dos “manos”. Para Caio B. de Mello, trata-se de uma tomada aérea do plano do observador que, “ao descer ao inferno sobe às alturas de onde se pode alçar o golpe de vista da totalidade da experiência social, que não é bela” (Mello, 1999: mimeo). Esse autor percebeu uma interessante conexão entre a faixa “Salve”, que é a última do disco, e a primeira: “Jorge da Capadócia”, composição de Jorge Benjor (a qual já assinalei como um raro caso de cover realizado por artistas de rap): Jorge sentou praça/ na cavalaria/ eu estou feliz porque eu também/ sou da sua companhia.
A faixa “Jorge da Capadócia”, diz-nos Mello, anuncia a formação de um núcleo de resistência, um exército das pessoas ameaçadas da periferia: “Uma companhia, enfim, na dupla acepção da palavra: companhia como subdivisão de batalhão do exército da periferia e companhia como ato voluntário” (Mello, 2000), desejo de acompanhar, fazer parte do movimento de “todos os aliados espalhados pelas favelas do Brasil” (Racionais: “Salve”). Cantada sobre a mesma base musical de “Jorge da Capadócia”, o rap “Salve” expressaria, de acordo com o raciocínio de Mello, a materialidade objetiva de Jorge, de sua cavalaria, de sua companhia, uma vez que nomeia as comunidades que a integram:
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Se liga aí Jardim Evana, Parque do Engenho, Gerivá, Jardim Rosana, [...] Vila Calu, Branca Flor, Paranapanema e Aracati [...] Mangueira, Borel, Cidade de Deus [...] Expansão, B Norte, B Sul, aí pessoal do sul, Restinga [...] Rádio Favela, BH. E pra todos os aliados espalhados pelas favelas do Brasil. Todos os DJs, todos o MCs que fazem do rap a trilha sonora do gueto (Racionais: Salve).
Dois dos três raps citados na passagem acima terminam da mesma maneira, desculpando-se com o ouvinte – não qualquer ouvinte, mas o morador das favelas, o “mano” – caso a comunidade deste não tenha sido incluída na letra. MV Bill diz: Desculpe se sua favela eu não citei/ estará presente no próximo rap que eu sei/ orando pelos seus e pelos meus/ a todas as favelas, fé em Deus... (MV Bill: Sem esquecer das favelas).
E Gog: Se não passamos pela sua cidade/ com certeza ela estará na próxima viagem/ periferia, esta foi nossa mensagem (Gog: “Brasília periferia”).
O que importa para o rapper é que nenhuma “companhia” se sinta excluída do exército espiritual que a cultura hip-hop pretende arregimentar. É neste mesmo sentido que a designação “mano” é importante, como percebeu Maria Rita Kehl: “eles procuram ampliar a grande frátria dos excluídos, fazendo da ‘consciência’ a arma capaz de virar o jogo da marginalização” (Kehl, 1999: mimeo). A favela passa a ser o espaço onde o rapper pode estar à vontade, sentir a sensação prazerosa de pertencer a algo, a uma comunidade. Por outro lado, o endurecimento da relação com a sociedade faz quem vem de fora experimentar uma sensação de deslocamento, de ser objetivamente exterior àquela realidade e até mal vindo. A letra de “Hey boy”, do Racionais, deixa isso bem claro:
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Hey boy o que você está fazendo aqui/ meu bairro não é seu lugar/ [...]/ a vida aqui é dura/ [...] onde a miséria não tem cura/ [...]/ a solução é roubar/ e seus pais acham que a cadeia é nosso lugar.
Evidentemente, esse estranhamento mútuo ressalta o aspecto de violência, de agressão mesmo, contido na voz que o rap dirige ao outro. Maria Rita Kehl expressa esse sentimento de modo contundente. Diz a autora que, não sendo um igual, torna-se difícil gostar deles e “mais difícil ainda falar deles. Porque eles não nos autorizam, não nos dão entrada. ‘Nós’ estamos do outro lado” (Kehl, 1999: mimeo).6 6 A autora explica ainda que só é possível falar desse rap, do seu lugar de branca de classe média, na medida em que se compromete com o seu discurso, com aquilo que ele denuncia.
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Antes dos rappers, os sambistas ocuparam o posto de portavozes da favela. O samba cumpriu, e continua cumprindo, um inestimável papel na história da sociedade e da música brasileiras. Ganhou o estatuto de música brasileira por excelência, porque foi capaz de engendrar, conforme se depreende da leitura de O mistério do samba, de Hermano Vianna, uma tal empatia por parte de setores da elite que logrou se configurar num lado musical do processo de fusão e cruzamentos que formou a sociedade brasileira, “uma empatia que poderia, na utopia freyreana, reunir sobrados e mucambos” (Vianna, 1995: 90). O rap, entretanto, parece propor o avesso dessa história toda. Sem dúvida, nomes como Bezerra da Silva, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, entre outros, gozam de grande prestígio entre os rappers. Contudo, acredito que essa preferência se dá porque são sambistas profundamente apegados à realidade das favelas, incluindo aí tudo o que lhe diga respeito, mesmo a criminalidade. Bezerra da Silva é, por sinal, um dos poucos sambistas sampleados (o que no hip-hop, na maioria dos casos, equivale a uma homenagem) por artistas de rap. Gog, em uma de suas composições, assim se refere ao sambista: aí rapaziada vai rolar pra vocês, nada mais nada menos que o mestre dos mestres, Bezerra da Silva (Gog: Dia-a-dia da periferia).
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Manifestações de apreço como essa são raras, mas isso não indica necessariamente pouca afinidade do rap com o samba. É verdade que há casos de rechaço veemente ao hip-hop e outras manifestações culturais tidas como alienígenas e alienantes. Nei Lopes e Wilson Moreira, no samba “Goiabada cascão”, reclamam que samba de verdade, batido na palma da mão, Já não tem na praça/ Mas como era bom/ Hoje só tem discoteca e só tem som de black/ Só imitação (Lopes e Moreira, 1978: Goiabada cascão).
Este samba foi atualizado no disco mais recente de Nei Lopes, De letra e música: Hoje só tem pop-rock, só tem hip-hop, só imitação (Lopes, 2001: Goiabada cascão).
A postura de Nei Lopes, para mim, é expressiva de um pensamento que postula uma certa “pureza” das manifestações culturais brasileiras – notadamente, as de origem negra – a qual lhes garantiria nacionalidade e autenticidade. Nesse caso, estou de acordo com Hermano Vianna, que, mesmo reconhecendo a considerável força da idéia de preservação da autenticidade do samba, questionava: “quem define o verdadeiro ritmo do samba?” (Vianna, 1995: 123). Houve recentemente casos de aproximação e até de parcerias, não só entre autores como entre as próprias estéticas do samba e do rap. Este foi o caso da participação de Leci Brandão no CD do rapper paulista Rappin Hood (Sujeito homem. Trama, 2001). Na faixa “Sou negrão”, mencionada anteriormente, não apenas a sambista e o rapper cantam juntos, como a batida típica do rap funde-se ao ritmo característico do samba, marcado pelos instrumentos de percusssão. No entanto, ainda que eventualmente os ritmos do samba e do rap se casem, é perceptível o divórcio entre os discursos de um e outro. Um velho samba, que foi muito popular à época de seu lançamento, contava que “Um menino da Mangueira/ recebeu pelo Natal/ um pandeiro e uma cuíca/ que lhe deu Papai Noel/
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[...]/ [e] foi correndo organizar/ uma linda bateria/ carnaval já vem chegando”. Algumas décadas depois, o Racionais parece parodiar a letra da composição de Rildo Hora e Sérgio Cabral: No último Natal Papai Noel escondeu um brinquedo/ prateado, brilhava no meio do mato/ um menininho de dez anos achou o presente/ era de ferro com doze balas no pente/ e o fim de ano foi melhor pra muita gente (Racionais: Fim de semana no parque).
Enquanto o menino da Mangueira achava sua felicidade recebendo de presente instrumentos de percussão, que garantiriam o próximo carnaval, o menino do Capão Redondo acha sua felicidade através da violência, não da alegria. Em suma, o texto do rap vai na contramão do discurso muitas vezes integrador que outras manifestações populares, e não apenas o samba, sempre mantiveram, por mais críticas da realidade que fossem. Se falo apenas do samba aqui é porque esta foi, na minha opinião, a que mais profundamente se enraizou no imaginário nacional. Nas palavras de Hermano Vianna, o encontro ocorrido em 1926, que reuniu de um lado intelectuais e representantes da arte erudita capitaneados por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Villa-Lobos, todos provenientes de “boas famílias brancas”; e, do outro lado, sambistas “negros ou mestiços saídos das camadas mais pobres do Rio de Janeiro”, entre os quais Donga e Pixinguinha, pode servir como alegoria para a “invenção de uma tradição”, nomeadamente “aquela do Brasil mestiço, onde a música samba ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade” (Vianna, 1995: 20). Nesse sentido, o rap organiza-se de modo diferenciado da forma como se organizou o samba desde os anos 20. Para Cláudia Matos, o malandro, figura típica do samba naquele período, é um ser de fronteira, ele “não fala apenas para os seus, ao contrário, ele quer se fazer ouvir do outro lado da fronteira, quer abrir caminho para o bloco passar. A vocação para a mobilidade pressupõe o atrito e a troca” (Matos apud Santiago, 1998: 21). Na análise que Silviano
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Santiago faz desse mesmo texto, essa vocação é responsável por transformar a cultura negra própria do Rio de Janeiro, em uma cultura que diz respeito ao país inteiro. O rapper pode também ser visto como um ser de fronteira. Acontece que a linha divisória, no seu caso, é significativamente mais rígida. Se o sambista construía um texto que se interpenetrava, evidente e intencionalmente, com o “discurso literário, branco, burguês” (Matos, 1982: 46), o rapper por sua vez construirá um discurso que a princípio se opõe àquele. Pode-se dizer que o rapper se coloca, ao mesmo tempo em que é colocado, do outro lado da fronteira: seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status nem fama/ seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis (Racionais: Capítulo 4, versículo 3).
No caso do rap, há mais atrito que troca. Enquanto o samba deu ensejo a um amplo circuito de trocas, homenagens e parcerias, chegando a ser considerado como o ritmo nacional por excelência, o rap restringiu esse relacionamento a poucas manifestações de admiração. O exemplo de “Fórmula mágica da paz”, gravada pelo Racionais no CD Sobrevivendo no Inferno e, mais recentemente, o episódio da censura ao clipe de “Soldado do morro”, do rapper MV Bill, são ainda exceções. No primeiro caso, a gravação – e, por extensão, o restante do CD – recebeu elogios da parte do artista considerado uma das principais, senão a principal, referência da MPB: Caetano Veloso. A partir daí, segundo reportagem da revista Showbizz, o grupo seduziu a classe média e ganhou elogios de todas as facções da música brasileira. Gilberto Gil declarou que Caetano o havia convencido de que a música deles representa um “salto no rap popular”, e que a poesia deles “é de uma contundência extraordinária”. Já Da Gama, guitarrista da banda pop/reggae Cidade Negra, acha Mano Brown “um grande comentarista político do gueto” (Showbizz, 1998: 26).
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O caso do clipe de MV Bill – denunciado pela polícia e por um programa jornalístico da Rede Globo de Televisão1 como apologista do tráfico de drogas e da violência por mostrar traficantes de verdade interpretando o próprio papel – não foi muito diferente. Mais uma vez, Caetano Veloso entrou no meio do fogo cruzado que opunha a imprensa, o Estado e o rap, assumindo o papel de mediador entre dois lados aparentemente conflitantes da sociedade brasileira. Inclusive, o lançamento do clipe, em 25 de dezembro de 2001, na Cidade de Deus, onde o rapper vive até hoje, contou com a presença de Caetano Veloso, Djavan, Dudu Nobre e a banda Cidade Negra. No ano anterior, o cineasta Cacá Diegues havia lançado o filme Orfeu, no qual parte da trilha sonora era composta por rap, embora a trilha oficial fosse assinada por Caetano Veloso. Cabe lembrar que, na análise que Hermano Vianna fez do samba, esse papel de mediação entre dois mundos distintos era desempenhado por Freyre e seus amigos, que teriam atuado como “salvadores da pátria mestiça”, porque, foram capazes, “contra os desejos da elite ‘re-europeizada’, de reconhecer o valor tanto de Pixinguinha quanto do arroz-doce” (Vianna, 1995: 90). Apesar disso, a relação do rap com a sociedade de modo geral, inclusive o meio artístico, ainda é relativamente tensa, ou de menosprezo recíproco. O trabalho do Racionais e o de MV Bill gozam de certo prestígio além das fronteiras,2 o que não quer dizer que todo o rap venha a se beneficiar desse prestígio. Cláudia Matos percebeu que “com o culto da malandragem, o mundo negro, pobre e marginal do samba chega à fronteira cultural de classes [...], sem todavia cruzá-la de vez” (Matos, 1982: 67). De certa forma, o rap faz o mesmo movimento. Acontece que, em vez de transitar pela fronteira, como o malandro, ele se arma em 1 A Rede Globo depois reviu essa posição, atribuindo-a à manifestação pessoal do apresentador William Waak, do Jornal da Globo. 2 Ice Blue, do Racionais, comenta, com certa ironia, sobre o fato de os playboys gostarem da música do grupo: “Eles gostam do que é bom. Carro importado, comida boa. Se curtem a gente, é porque somos bons” (In Showbizz, 1998: 28).
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barricadas. Talvez se possa dizer que, por enquanto, o rapper está mais no front que na fronteira entre dois mundos – herdeiros da casa-grande e senzala, dos sobrados e mucambos, dos condomínios e favelas. Daí, a meu ver, o papel do mediador, que no caso do samba mostra-se tão bem sucedido, deve ser relativizado no caso do rap. Porque, neste momento, parece-me inviável desfazer a fronteira entre os dois mundos sem que se efetive a transformação radical da ordem política, econômica e social no Brasil. O texto de Freyre que cito a seguir, publicado em 1977, ilustra de forma interessante a questão. Se eu omitisse a data do artigo e o fato de o autor referir-se ao fenômeno black soul, em ascensão naquele momento, dir-se-ia que ele, Freyre, criticava a disseminação do rap entre os negros brasileiros. “Será que estou enxergando mal? Ou terei realmente lido que os Estados Unidos vão chegar ao Brasil [...] norte-americanos de cor [...] para convencer os brasileiros também de cor de que seus bailes e suas canções ‘afro-brasileiras’ teriam que ser de ‘melancolia’ e de ‘revolta’? E não, como acontece hoje [...], os sambas, que são quase todos alegres e fraternos” (Freyre apud Hanchard, 2001: 138). Na seqüência do trecho, Freyre deplora que o modelo de negritude proposto pelo soul seja do tipo “provocador de ódios” e que “às vezes [traga] a ‘luta de classes’ como instrumento da guerra civil”. Mais uma vez, a diversidade brasileira só é elogiável na medida em que se preservem as condições de liderança do homem branco, e portanto de subalternidade do negro e das outras etnias, e a relativa harmonia das relações raciais no país. O fato é que se o soul já representava uma ameaça à alegria e à fraternidade que Freyre identificou no samba, o rap dará um passo ainda mais decidido. Retomando as diferenças de discursos que vinha assinalando entre o rap e o samba, cabe ainda uma palavra. Um dos mais belos sambas da história, de autoria de um dos seus maiores compositores – Zé Keti –, intitulado significativamente “A voz do morro”, proclama:
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Eu sou o samba/ a voz do morro sou eu mesmo sim senhor/ [...]/ sou eu quem leva alegria/ para milhões de corações brasileiros/ [...]/ vamos cantando essa melodia pro Brasil feliz.
Se Zé Keti personifica o samba, Gog faz o mesmo em relação ao rap, apontando em direção totalmente outra: Rap nacional é o terror que chegou/ é o terror/ meu estilo meus planos de guerra/ comunidade do morro que não se rende à lei da selva/ [...]/ o verme que corrói a madame no cemitério até o osso/ Eu sei não sou a Disneylândia/ eu sou os becos das quebradas escuras da Ceilândia/ [...]/ eu sou o crime em pessoa... (Gog: É o terror).
Agora o ritmo dos morros, das favelas, não pretende levar a alegria, mas uma mensagem de desafio, de reação e de transformação de uma realidade opressiva. Tampouco essa mensagem é lançada a “milhões de corações brasileiros”. Mano Brown se diz apenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de cinqüenta mil manos (Capítulo 4, versículo 3).
Por isso, pode-se dizer que o público do rap é restrito àqueles com quem os rappers querem dialogar. Refiro-me ao público pretendido pelos rappers, não ao que acabou consumindo seus discos. Este abarca um amplo espectro, que parte da juventude pobre da periferia e chega até a juventude rica dos bairros nobres da cidade, passando por intelectuais, artistas e demais pessoas interessadas na novidade radical que grupos como o Racionais, a meu ver, representam na sociedade brasileira contemporânea. Esse público, todavia, formou-se à margem da vontade dos rappers que priorizo aqui. Marshall Berman, em entrevista ao caderno Mais!, da Folha de São Paulo, afirmou que “o paradoxo do rap é que a música é ouvida não só por pessoas que de fato vivem em situações de perigo mas também por pessoas que levam uma vida tradicional, que estudam medicina ou direito” (Berman, 2001). Maria Rita Kehl, no texto já citado aqui, percebeu bem a relação nova entre artista e público estabelecida pelo rap. Falando da
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apresentação dos Racionais a que assistiu durante comício do Partido dos Trabalhadores, em 1o de maio de 1999, a psicanalista comenta sobre o “grande exército de fãs dos Racionais”: “Vale falar em fãs, no caso deles? Não, com certeza deve haver um termo que indique outro tipo de interação entre a multidão de jovens pobres e os grupos de Rap que os representam. É como se cada um deles se considerasse um rapper em potencial, capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo, nas rimas obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais, executando a dança que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma” (Kehl, 1999: mimeo). A dança, a performance reforçam o conteúdo das letras dos raps. Em meio ao público, as notas repetitivas e opressivas, a fala grave, a postura de denúncia muitas vezes expressa por vocábulos nada sutis, tudo isso se adequa a uma dança contida, “que não autoriza sensualidade nenhuma”. Até nisso se faz sentir a diferença imposta pelo rap: ao contrário das rodas de samba, dos bailes funk, dos afoxés, das festas de soul etc., onde o corpo executa passos frenéticos, extravasando uma alegria incontida, o público do rap acompanha o ritmo com um ligeiro balançar do corpo, ou a simulação de gestos calculados de hostilidade (apontar o dedo como se fosse uma arma, cruzar os braços, fechar a cara) ou de afirmação de seu eu (apontar para si mesmo, bater a mão fechada no peito, segurar a genitália). Gestos que contribuíram para marcar os rappers com a pecha de abusados, grosseiros. Na gíria que lhes é familiar: cheios de marra! Segundo o dicionário Aurélio, marra pode significar algo realizado “mediante emprego de violência”, como na expressão popular “na marra”. Por outro lado, o verbo marrar significa “bater com força”. Já o substantivo marra é também sinônimo de marrão, “grande martelo de ferro com que se quebram pedras”. Finalmente, marrão, sempre segundo o Aurélio, também é a “rês bravia, selvagem, indomável”. À falta de uma etimologia mais específica, os três sentidos listados se aproximam do sentido que a linguagem
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popular conferiu ao termo: o de uma atitude superior, muitas vezes arrogante, indomável. Na cerimônia de entrega do Prêmio Hutúz, todo o discurso inicial da repórter Glória Maria, apresentadora do evento, ao lado de Thaíde, girou em torno do comentário sobre o rap ser “cheio de marra”. A marra é uma afronta aos “inimigos da favela”, que no entender de Gog “são a burguesia e o alto escalão” (Gog: “Prepare-se”), e, sobretudo, a máquina policial da sociedade, que os preferia submissos, calados e conformados. Na matéria da revista Showbizz, já citada anteriormente, KL Jay, do grupo Racionais MCs, afirma: “Somos os pretos mais perigosos do país e vamos mudar muita coisa por aqui” (Showbizz, 1998: 31). Em sua interpretação dessa declaração, Kehl diz o seguinte: “Há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto agrada à elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão – ou seja: do medo – de nossa ‘boa gente de cor’” (Kehl, 1999: mimeo). “Homem na estrada”, por exemplo, é um rap que se tornou emblemático, uma espécie de hino para aqueles cinqüenta mil manos espalhados pelas periferias do país. Sua letra quilométrica ganhou fama inesperada ao ser lida pelo senador da República Eduardo Suplicy, numa sessão ordinária do Senado. Conta uma história freqüente do dia-a-dia de inúmeras favelas espalhadas pelo Brasil. É a narrativa de um ex-presidiário – lembrando que o presídio é outro espaço que define a geopolítica do hip-hop – que tenta mudar de vida, mas é impedido pelas forças que o oprimem. A opressão, como se verá, não se limita à polícia ou ao “sistema”, como pode parecer à primeira vista, mas compreende uma rede complexa de fatores que vão surgindo ao longo de inúmeras letras de rap. Eis o trecho inicial do rap em questão: Um homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade, a sua liberdade, que foi perdida, subtraída/ e quer provar a si mesmo que realmente mudou/ que se recuperou e quer viver em paz, não
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olhar para trás/ [...]/ sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim/ muitos morreram sim, sonhando alto assim/ me digam quem é feliz, quem não se desespera/ vendo nascer seu filho no berço da miséria,/ um lugar onde só tinham como atração o bar/ e o candomblé pra se tomar a benção (Racionais: Homem na estrada).
O tom realista busca revelar a miséria, a violência, a discriminação racial e social ocultas pelo discurso dominante da época atual, que prioriza a divulgação triunfalista da modernização do país, conforme se pode verificar nos discursos de seus dois últimos presidentes. Enquanto a sociedade à sua volta celebra os últimos avanços da ciência e da tecnologia, o rap assim descreve o lugar de moradia do homem na estrada: Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e sujo/ porém seu único lar, seu bem e seu refúgio/ cheiro horrível de esgoto no quintal/ [...]/ um pedaço do inferno é aqui onde eu estou.
Como poderia daí partir qualquer exaltação de um Brasil feliz? Retomando a referência do samba malandro, é possível identificar uma decisiva mudança de atitude na visão de mundo dos artistas da favela de uma geração e outra – com exceção, talvez, de Bezerra da Silva, que é uma espécie de elo de ligação entre duas gerações e estéticas diferentes vinculadas em algum grau à favela. Tudo isso diz respeito a uma experiência que se modificou radicalmente da metade do século para o seu final. Com a passagem de um meio urbano relativamente integrado – em que o espaço da cidade era invadido pelo morro, para alegria geral – em direção à divisão mais impenetrável entre morro e asfalto, entre condomínios e favelas, tem-se simultaneamente a conversão do antigo malandro armado de navalha e levando os outros na conversa, no moderno traficante, de fuzil e comandando o crime pelo telefone celular. É, portanto, dessa experiência nova – a qual implica um distanciamento entre o marginal e os outros – que o rapper vai se nutrir. Neste contexto, um elemento inesperado ganhará valor maior: a cor da pele.
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CAP.07
O que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim desde seu primeiro movimento. Albert Camus
No disco Sobrevivendo no Inferno, do Racionais, a voz de Primo Preto, convidado especial do grupo na faixa “Capítulo 4, versículo 3”, expõe a ferida aberta pela música rap: “em cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; [...] a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo” (Racionais: Capítulo 4, versículo 3).
A estatística parece falar por si, mas ela apenas deflagra o discurso. Este sim vai pretender pôr em cheque o discurso da democracia racial no Brasil; o tema das contradições sociais brasileiras é agora colocado em termos raciais. Se isso parece pouco relevante, talvez fosse o caso de analisar a reação da imprensa a essa novidade. Em muitos casos, a mídia mostra-se surpresa, em outras indignada. Às vezes, o fato de os rappers serem pretos, pobres e morarem na favela conduz à apressada associação entre rap e violência. Micael Herschmann, que pesquisou a visão da mídia em geral sobre o funk e o hip-hop, notou que, além da imprecisão dos jornalistas – que tratavam indistintamente funk, hip-hop, punk, heavy metal e outros –, algumas matérias conside-
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ravam-nos manifestações culturais violentas. Segundo Herschmann, apesar de terem sido os primeiros a denunciar a campanha de criminalização do funk e propor um trabalho de conscientização junto aos funkeiros, os rappers ligados ao movimento hip-hop foram igualmente massacrados (Herschmann, 2000: 109). Mais esclarecedor que os textos contingenciais dos jornalistas é o artigo que Hermano Vianna, um antropólogo antenado com as manifestações culturais da periferia, fez publicar na Folha de São Paulo. Nesse artigo, Vianna narra sua aventura numa escola de samba do Rio de Janeiro, onde foi assistir a um show dos Racionais MCs. Sua impressão diante da quadra “superlotada” por uma platéia que sabia cantar “letras quilométricas do começo ao fim, [...] como se a banda no palco estivesse entoando a mais perfeita coleção dos mais assoviáveis hits pop”, revela algumas questões importantes. No discurso apresentado pelos Racionais na quadra da Escola de Samba Tradição, a primeira novidade que Hermano Vianna percebeu é que agora há negros e há brancos: “Não há mais indefinição mulata entre uma ‘raça’ e outra, pelo menos não no Brasil descrito no rap dos Racionais, pelo menos não como valor a ser cultivado como motivo de ufanismo cultural. Então, há também quem diga que o sucesso dos Racionais é sinal de uma ‘americanização’ no modo como os brasileiros passaram a pensar suas relações raciais. Eis o Brasil pós-Casa-Grande-e-Senzala. Eis a voz não-cordial da periferia do Brasil” (Vianna, 1999: 5). Três questões interrelacionadas surgem aqui: a) o rap revelaria uma “americanização” no modo de pensar as relações raciais dos brasileiros; b) porque, ao contrário de momentos anteriores, no seu discurso há diferenciação racial, explícita, entre negros e brancos; c) esse discurso representa um desafio às noções de Brasil herdadas da obra de Gilberto Freyre e, em outra dimensão, de Sérgio Buarque de Holanda: trata-se de um discurso nãocordial. Essas questões, já abordadas em capítulos anteriores, serão daqui por diante consideradas a partir da perspectiva dos rappers incluídos neste estudo.
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É preciso dizer que o Racionais não inaugurou a postura de contestação daquilo a que Hasenbalg chamaria a “tranqüila manutenção das desigualdades raciais” (Hasenbalg, 1985) no Brasil. Desde a fundação da Frente Negra Brasileira, quase meio século após a abolição da escravatura, a história do país conheceu altos e baixos no que concerne à mobilização política de cunho racial, num movimento pendular que se refletia tanto em meio à intelectualidade quanto na cultura popular. Não é de hoje que os afro-brasileiros, baseando-se em diferentes formas de expressão, vêm buscando caminhos para a afirmação de sua negritude, em um espectro de políticas de identidade e manifestações artístico-culturais por todo o país. O movimento soul, que ganhou força a partir da década de 60 em centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Porto Alegre e Belo Horizonte, representou um importante passo, como anotou Peter Fry, no “processo da formação da identidade negra no Brasil” (Fry, 1982: 15). Os blocos afro, na Bahia sobretudo, desde os anos 70 têm trazido à tona um vigoroso discurso negro, baseado na ancestralidade africana. Ilê Aiyê, Olodum, Filhos de Gandhi, entre outros, perpetuaram em Salvador uma cena que certamente consolida essa cidade como a mais negra do país, não apenas no que diz respeito à presença percentual na população, mas pela afirmação decidida dessa condição. É importante destacar o papel da música negra neste processo. Constituindo-se como uma forma privilegiada de comunicação para diferentes comunidades que, através da música, preservam algum sentido de uma origem comum, a música tem sido uma forte aliada para a afirmação de identidades específicas. Para Muniz Sodré, as instituições lúdicas afro-brasileiras representam, antes de mais nada, afirmações comunitárias. Tais afirmações se dariam “tanto pela exibição da pujança de formas e de vitalidade corporal, presentes nas danças e nos cânticos, como pela reterritorialização dos lugares marcados pelo poder esta-
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tal para a movimentação dos subalternos” (Sodré, 1999: 212). Na opinião do autor, a música – ele menciona textualmente o samba, o rap e o funk – é capaz de relativizar barreiras sociais fortemente estabelecidas em nossa cultura. Retomando o artigo de Hermano Vianna, parece-me que para o antropólogo, se bem entendi o seu argumento, a única maneira de relativizar o nosso inevitável posicionamento periférico no contexto globalizado atual seria engendrar contextos complexos e heterogêneos – leia-se: mestiços – a fim de estarmos “disponíveis para surpresas, transformações e novas músicas que combatam tudo aquilo que nos torna, muitas vezes com muito orgulho, periféricos” (Vianna, 1999). Note-se que o autor afirma, com certa ironia, ser o rap uma maneira orgulhosa que os jovens negros da periferia brasileira encontraram de se renderem à globalização e, portanto, à hegemonia estadunidense. Fica em aberto a seguinte questão: Por que o funk também não seria uma manifestação de igual teor? Afinal, em outros artigos (e no livro, que foi resultado de sua tese de mestrado, O mundo funk carioca) o autor mostra um grande interesse por essa forma musical, igualmente assimilada por jovens negros das favelas (e até com maior sucesso). Logo no início do artigo, Vianna chega a mencionar o fato de os jovens da periferia em Moçambique – onde também assistiu a um show de rap, que motivou o tal artigo – ou no Brasil vestirem-se de modo idêntico, ou ostentarem o mesmo comportamento: “Maputo, 24/10/97. Primeiro show de rap realizado em território moçambicano [...]. A platéia, excitadíssima e elegantíssima [...], parecia que nunca tinha feito outra coisa na vida além de freqüentar shows de rap. Aparentemente, não havia diferença entre aquele show — em matéria de danças, roupas, resposta do público e comportamento no palco — e qualquer outra apresentação de rap realizada em qualquer outro lugar do mundo” (Vianna, 1999: 7). O autor tem o cuidado de valer-se do advérbio “aparentemente” para relativizar a sua opinião, mas seu discurso é ambíguo.
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Ao mesmo tempo em que realça o conteúdo crítico das letras de rap, insinua que o triunfo da cultura hip-hop representa o triunfo da globalização sob a hegemonia dos Estados Unidos: “o primeiro show de rap realizado no país demonstrou, com louvor, que a juventude tomou gosto pela globalização americanizada, com uma rapidez e uma esperteza impressionantes”. O caráter “rápido” e “esperto” do gesto da juventude disfarçam, de modo sutil, que se trata de uma adesão à “globalização americanizada”, expressão de insofismável carga negativa. Considerando que os jovens funkeiros, entre tantos outros jovens, também adotam uma forma de se vestir e se comportar muito parecida, o problema me parece estar em outro lugar. O discurso dos funkeiros adota uma postura pouco crítica,1 com ênfase na festa e letras de conteúdo erótico ou auto-proclamatório. Não se pode esquecer que essa postura já estava presente na primeira geração norte-americana do rap, o qual “começou como uma música para dançar” e exibir a “destreza do DJ e a personalidade e os talentos de improvisação do rapper” (Shusterman, 2000: 148). Já os rappers brasileiros recuperam uma tradição posterior de seus congêneres norte-americanos, os quais, segundo Steven Best e Douglas Kellner, vêem-se como “guerreiros ideológicos” e representantes das classes oprimidas. Agem como “intelectuais orgânicos”, na acepção gramsciana da expressão, a serviço das camadas subalternas. Também defendem que os grupos subordinados devem mobilizar sua ira no sentido da ação política e da insurreição (Best & Kellner, 1999: mimeo). Iniciados através das lições do grupo estadunidense Public Enemy, provocaram, dada a contundência de suas letras e atitudes, o temor de um planeta negro (“A fear of a black planet”, canção do Public Enemy). Então,
1 Embora nem por isso sempre despolitizadas: versos como “eu só quero ser feliz/ andar tranqüilamente na favela em que nasci” (Cidinho e Doca: “Rap da felicidade”) são bastante politizados. Mas não deixam de indicar uma certa acomodação com as condições sociais que dão origem às favelas, o que passa longe do ideário político do rap.
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talvez seja verdade que o rap traga uma novidade, um diferencial em relação a todas as outras formas de expressão que o antecederam. Para ilustrar esse fato tomemos o exemplo do soul. Sobre a ascensão do fenômeno black soul, na década de 70, Renato Ortiz percebeu que ela se dá em sintonia com a promoção do samba a ritmo nacional, o que acabou por esvaziá-lo de sua especificidade de origem, “que era ser uma música negra”. Portanto, “quando os movimentos negros recuperam o soul para afirmar a sua negritude, o que se está fazendo é uma importação de matéria simbólica que é ressignificada no contexto brasileiro. É bem verdade que o soul não supera as contradições de classe ou entre países centrais e periféricos, mas eu diria que de uma certa forma ele ‘serve’ melhor para exprimir a angústia e a opressão racial do que o samba, que se tornou nacional” (Ortiz, 1985: 43-4). Algo semelhante acontece com o rap. Com o acréscimo de um aspecto não presente nas outras formas culturais mencionadas até aqui: agora a exaltação da negritude combina-se à franca oposição ao branco. Num rap famoso, Thaíde rememora os seus tempos de infância, em que freqüentava os bailes soul (“que tempo bom que não volta nunca mais”). No final da composição, ele indica o caminho que, a seu ver, tomou toda aquela movimentação dos anos 70 e 80: O tempo foi passando, eu me adaptando/ [...]/ observando a evolução radical de meus irmãos/ percebi o direito que temos como cidadãos/ de dar importância à situação/ protestando para que achemos uma solução/ por isso black power continua vivo/ só que de um jeito bem mais ofensivo (Thaíde, 1996: Sr. Tempo Bom. Grifo meu).
O “jeito bem mais ofensivo”, entre outras coisas, assinala a radicalização do discurso. Não se trata mais de simplesmente afirmar uma identidade negra, o velho “I’m black and I’m proud” de James Brown. Agora é o caso de essa identidade opor-se à branca. E este me parece o real motivo da preocupação de Her-
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mano Vianna. O rap vai colocar de forma enfática a sua discordância em relação ao modelo da democracia racial, ou do Brasil cordial, como notou Vianna. A expressão, através da música, do crescente sentimento de revolta dos negros subalternos nas favelas do Brasil é uma demanda que tampouco os blocos afro-baianos, a despeito da ênfase na propagação da identidade afro-brasileira e da ligação política e cultural às noções de Terceiro Mundo e de negritude, poderiam atender. No caso do Olodum, por exemplo, como informa Hermano Vianna, “negritude e terceiro-mundismo têm grande fluidez, adquirindo significados e pesos diferentes em situações e momentos diversos de sua atividade”; além disso, o grupo “insiste em se propagandear como a maior democracia racial do planeta” (Vianna, 1995: 139). Em entrevista concedida a Vianna, o diretor cultural do Olodum, João Jorge, chega a afirmar que a cultura brasileira representa a síntese de um conjunto amplo de cores, povos, costumes..., e que “a música só pode ser brasileira [...] se ela puder ser essa síntese, se ela não excluir, não for excludente” (apud Vianna, 1995: 140). Essa frase é praticamente a síntese do que eu denominaria de um ponto de vista freyreano, democrático-racial, da cultura e da sociedade brasileiras. É exatamente nesse ponto que os rappers propõem um caminho inteiramente outro em relação àquele que se vinha desenhando. Venho tentando demonstrar que o rap trafega na contra-mão dessa corrente do pensamento brasileiro, para o qual a mestiçagem, a integração e o relacionamento não conflitivo das diferenças são valores a preservar custe o que custar, ainda que não se reconsidere a distinção entre o que é hegemônico e o que é subalterno. O rap propõe um novo tipo de relação: para os rappers, “preto é preto, branco é branco e a mulata não é a tal”.2 Conforme
2 Este é um trecho da canção “Americanos”, em que Caetano Veloso faz referência ao povo dos Estados Unidos. Trata-se de uma paródia dos versos do compositor João de Barro, o Braguinha, em um sucesso carnavalesco de 1948, no qual cantava: “branca é branca, preta é preta, mas a mulata é a tal”.
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destacou Maria Rita Kehl, “eles apelam para a consciência de cada um, para mudanças de atitude que só podem partir de escolhas individuais; mas a auto-valorização e a dignidade de cada negro, de cada ouvinte do Rap, depende da produção de um discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição brasileira indica” (Kehl, 1999: mimeo). Emblemática dessa postura é o rap “Racistas otários”, do Racionais MCs. Nessa composição a mensagem que o grupo pretende transmitir fica evidente logo no início: “Racistas otários nos deixem em paz/ pois as famílias pobres não agüentam mais”. De forma direta, sintética e certeira o Racionais relaciona os aspectos social e racial da questão, deixando claro que a discriminação no Brasil não é apenas de fundo social e que a pobreza e a cor da pele representam dois problemas distintos. A percepção, por parte dos rappers, de que estão lutando não apenas contra o racismo, mas contra o discurso hegemônico – que garante não haver esse fenômeno no Brasil – surge de forma muito esclareceradora no final: O Brasil é um país de clima tropical/ onde as raças se misturam naturalmente/ e não há preconceito racial. Ha, ha, ha (Racionais: Racistas otários).
O trecho é a reprodução da voz gravada de um amigo do grupo (segundo me informou o DJ KL Jay). A voz do locutor é propositadamente solene, professoral. Um dado a mais a ser atingido pela ironia do grupo: a crença na mistura natural entre as raças e a ausência de preconceito no Brasil só pode, na visão do Racionais, ser idéia de uma camada intelectual distante da realidade das classes populares. É com sarcasmo que enfrentam esse discurso, denunciando-o como uma ficção. Depois, os três últimos versos retomam a seriedade da proposta: nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos/ o preconceito e o desprezo ainda são iguais/ nós somos negros também temos nossos ideais (Racistas otários).
Em outra composição, a crítica toma ares de debate ideológico.
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Quem é preto como eu já tá ligado qual é/ nota fiscal, RG, polícia no pé/ escuta aqui:/ o primo do cunhado do meu genro é mestiço/ racismo não existe comigo/ não tem disso/ é para sua segurança.../ Falou, falou deixa pra lá/ vou escolher em qual mentira vou acreditar (Qual mentira vou acreditar).
O trecho acima representa, na forma do rap, um diálogo entre o personagem – alter-ego do rapper – que sai de casa para curtir a noite e é abordado por uma patrulha (as falas em itálico representam a voz do policial). A escolha dos termos é precisa, não há engano quanto às mentiras nas quais o rapper vai escolher acreditar. Quando o policial que o revista no trecho acima reproduz o discurso “racismo no Brasil não existe”, o rapper só pode encarar com ironia a afirmação. É, então, no sentido contrário que o discurso do rap vai se construir. Seu esforço é o de revelar para os negros essas verdades que parecem negligenciadas por resultado de um processo exitoso de hegemonia racial. Embora haja exemplos de uma atitude irônica nas letras ou nos samples de um número significativo de raps, a seriedade (chamemos assim) é que domina a grande maioria das composições. A ênfase na afirmação de uma identificação negra capaz de engendrar uma comunidade de pares – “se você se considera um negro/ pra negro será: mano” (“Voz ativa”) – sugere que é a partir da congregação dos manos (os cinqüenta mil citados em “Capítulo 4, versículo 3”, ou mais) que surgirá um novo momento da história da presença negra no Brasil. Trata-se de um momento decisivo, ao menos pelo que deixa transparecer o texto do Racionais: e a profecia se fez como previsto/ 1997 depois de Cristo a fúria negra ressuscita outra vez (Capítulo 4, versículo 3).
Nesta mesma composição poderemos perceber uma característica comum aos raps que citarei a seguir: a tensão entre a pregação política do grupo e o fato de nem todos os negros adotarem a mesma postura. Se aqueles que se assumem como negros são considerados manos, os que negam sua condição representarão tudo aquilo contra o que os rappers irão se voltar.
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Um dia um PM negro veio embaçar/ e disse pra eu me pôr no meu lugar/ eu vejo mano nessas condições não dá/ será assim que eu deveria estar?/ Irmão o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio, jornal, revista e outdoor/ (...)/ depois te joga na merda sozinho/ é, transforma um preto tipo A num neguinho (Capítulo 4, versículo 3).
A transformação de um preto “tipo A” – termo que no jargão rapper paulista designa os negros conscientes – num “neguinho” – que por sua vez designa os negros que não assumem a cor/raça e aceitam passivamente sua condição inferiorizada, muitas vezes entregando-se ao álcool e às drogas – representa um duro golpe para o projeto sociopolítico do hip-hop. Para o rapper, a maneira de vencer a opressão racial/social de que são vítimas na sociedade reside numa atitude digna, politicamente engajada e racialmente orientada. Gog, por sua parte, retoma na maioria das vezes uma perspectiva de conteúdo acentuadamente africanista. Em suas composições é fácil perceber que o rapper faz questão de reafirmar sua filiação a um dos lados de uma divisão racial que, no seu entender, é bastante visível na sociedade brasileira. Não só o rapper fica do lado do povo, mas coloca essa opção numa perspectiva histórica; os próprios termos pelos quais opta denotam que seu olhar se estende até o período colonial (“plebeu” x nobre; “escravo” x senhor), quando as divisões sociais teriam fornecido os subsídios das contradições que vigoram na atualidade: “Eu sou plebeu até a cabeça e o apogeu/ no negro escravo correu sangue meu/ meu ancestral sofreu e o seu?” (Gog: É o terror).
Perspectiva que se reforça em outro rap, no qual Dino Black, um dos integrantes do grupo,3 afirma: Tenho orgulho de ser negro a raça negra ainda hoje é escravizada (Gog: Qual é o pó?). 3 O grupo se desfez em 2001. Dino Black atualmente faz parte, com os outros remanescentes do Gog, do grupo Viela 17 (alusão a uma viela da favela de Brasília onde moram alguns dos rappers).
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Igualmente esclarecedora é a visão de MV Bill. Em “Pare de babar”, o rapper não perdoa o preto, sobretudo o da favela, que “puxa o saco dos playboys” (“Eu fico muito puto com os pretos como nós/ que ficam como papel higiênico dos boys”). Bill começa pela crítica contundente ao que para ele caracteriza o playboy: Como pode um otário que sempre se dá bem/ dar as costas pra pobreza que toda favela tem?/ morando num lugar luxuoso...
A partir daí a crítica se volta para os negros que negam a sua identidade, buscando comportar-se de acordo com o padrão playboy (branco e rico): Ainda tem cara que fica babando ovo de playboyzinho mesmo sabendo que pelas costas é chamado de neguinho mulatinho, escurinho, moreninho, macaco.
É importante notar que, para o rapper, não há dúvidas de que essa atitude (a de bajular o playboy) representa uma fuga da identidade negra e revela o desejo de identificação com a identidade branca: Se liga, preto por fora, branco por dentro/ eu falo a verdade, você me ironiza, eu não me arrependo.
Um comportamento que deriva, como o rap denuncia a todo momento, da falta de informação: Você não se informa, não tem consciência, não sabe de nada (Pare de babar).
Por isso o refrão indica a esperança do rapper: Espero que você aprenda como nós e pare de babar o ovo dos playboys.
O final dessa composição é interessante, a mensagem é reendereçada ao playboy, numa passagem em que MV Bill, de certa forma, abre uma brecha para o reconhecimento de que existe, ainda que tênue, uma possibilidade de relacionamento sincero e amistoso entre brancos e negros. Depois de enunciar versos em que o “playboy” é tratado como “filho da puta”, que só vem
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à favela para gastar com “piranha e pó”, e de afirmar que está “falando somente a verdade”, o rapper aconselha: Se existe algum playboy que não sabe o que fazer só vista a carapuça que serve pra você (Pare de babar).
Ora, parece evidente nas passagens citadas acima que os rappers trabalham com um conceito de sociedade birracial, dividida em negros de um lado (o lado de baixo da pirâmide social) e brancos de outro (o lado de cima). Agora, como percebeu Hermano Vianna, há negros, há brancos. Caetano Veloso detectou esse aspecto trazido pela cultura hip-hop, percebendo também o seu conteúdo de novidade: “Grupos de rap, compostos de favelados que cantam e compõem em português, vêm criando um estilo independente com uma ênfase no confronto de raças nunca antes vista na nossa cultura popular, o que faz com que todo o movimento [...] ilustre a hipótese de o Brasil tender hoje para o biracialismo, em oposição simétrica a uma tendência americana para o multirracialismo” . (Veloso in Bahiana, 2000: mimeo). MV Bill é quem, a meu ver, vai propor a ruptura mais explícita com o modelo multirracial. Primeiro, no videoclipe da música “Soldado do morro”, em que narra a experiência de jovens favelados envolvidos com o tráfico de drogas. Antes de a música propriamente dita se iniciar, o rapper, na pele de um repórter de telejornal, introduz um discurso que explica a razão pela qual tantos favelados optam pela vida no crime. Nesta fala, o Brasil que aparece é a contraface daquele que conhecemos através do discurso mais difundido sobre nós mesmos: é incrível como no país do Carnaval e do futebol existam verdadeiros campos de concentração, onde crianças matam e morrem ao desenvolverem seu trabalho para os traficantes (MV Bill, 2001: Soldado do morro).
O Brasil do Carnaval se mostra, por exemplo, nos sambas que Cláudia Matos, em Acertei no milhar, denominou “apologéticonacionalistas”. Um exemplo clássico desse gênero é o “Hino do
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Carnaval brasileiro”: “Salve a morena/ a cor morena do Brasil fagueiro/ [...]/ salve a lourinha/ dos olhos verdes cor da nossa mata”, de Lamartine Babo. Cláudia Matos mostra como, nesse tipo de samba, as gradações hierárquicas entre etnias e classes sociais simplesmente desaparecem. Aqui, “morenas, louras e mulatas se equivalem em brilho e brasilidade” (Matos, 1982: 52). Esse samba, cuja interpretação do Brasil, ao que me parece, é ainda hoje sedutora, mostra apenas uma faceta do prisma social brasileiro. Por isso, Cláudia chama a atenção para o caráter perfeitamente monológico do texto, “tanto quanto um outro que se encarniçasse em apresentar o povo brasileiro como um eterno sofredor que só tivesse para si a fome, a ignorância, a miséria, a opressão” (Matos, 1982: 52). Cabe indagar se não seria o rap uma espécie de texto avesso ao apologético-nacionalista, e tão monológico quanto. Ao que me parece, em alguns momentos, o discurso rapper radicaliza-se a ponto de apresentar embaraçosos laços com o ponto de vista que pretendia refutar, nomeadamente o discurso propriamente racista e o da democracia racial. Vejamos o caso do rap “Declaração de guerra”. A composição imagina uma guerra em que os negros brasileiros finalmente fazem justiça depois de mais de três séculos de opressão: Acenda a vela à meia noite/ é o código da revolução/ os generais nem imaginam que os pretos estão do lado de cá (MV Bill: Declaração de guerra).
O rapper se mostra desencantado com promessas, sobretudo as do governo, que nunca se realizaram ao longo da história do Brasil: Chega de ouvir esse discurso social chega de ouvir o lenga-lenga racial.
Agora, sua intenção é formar o exército dos sem-terra, sem-fama, sem-grana, dos trombadinhas, mendigos e traficantes, para o qual convoca “as putas, pobres, padres, índios e bichas”, num
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apelo que curiosamente remete a uma canção de Caetano Veloso: “Índios e padres e bichas, negros e mulheres/ e adolescentes/ fazem o carnaval” (Veloso, 1984: “Podres poderes”). Desta vez, no entanto, o tom do discurso é virulento, violento e radical: Vida longa aos pretos/ fim de vida aos brancos/ fim do açoite a sede da alforria nos conduz a um caminho incerto.
Interessante é a mensagem dirigida às facções do narcotráfico, exigindo que “parem com as guerras vermelhos e terceiros4/ somos brasileiros”. A partir deste ponto o discurso do rapper incorre em algumas contradições que merecem atenção. Ao apelar para a união entre negros favelados que, ao optarem pelo crime, acabaram tornando-se – para continuar na linha de pensamento de MV Bill – “irmãos inimigos”, ele recorre a um conceito tipicamente europeu, portanto branco, que é a nacionalidade. Além disso a palavra “brasileiros”, a rigor, deveria incluir negros, índios e... brancos; além de japoneses, italianos, alemães e os mais variados hibridismos étnicos e culturais. Ao mesmo tempo, as afirmações de Bill envolvem um grande risco: em certo sentido, elas essencializam a identidade negra. Dino Black, ex-integrante do grupo de Gog, já tinha expressado essa confiança numa essência racial irredutível. Referindo-se a um convidado especial que participou da gravação de uma faixa no disco do grupo, Dino Black assim se expressa: Tydoz, um branco com atitudes negras (Gog: Qual é o pó?).
Disse Hegel que os fatos e personagens importantes na história do mundo sempre ocorrem duas vezes. Karl Marx completaria dizendo que a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa (Marx, 1987-1988: 7). Nos anos 30, Francisco Alves, então o maior
4 Referência às duas principais facções do narcotráfico no Rio de Janeiro: Comando Vermelho e Terceiro Comando.
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cantor do país, fez um show em que interpretava músicas de Ismael Silva, sambista negro do Estácio e um dos “inventores” do formato das escolas de samba. Ovacionado, Francisco Alves, instado pela platéia, convidou Ismael para subir ao palco. Ato contínuo, o cantor apresentou o sambista: “Este é Ismael Silva, o preto de alma branca!”. Não diria que a frase pronunciada por Dino Black mais de 70 anos depois chegue a ser uma farsa na exata acepção da palavra, mas é bastante contraditória. Ele, Dino, não chega a inverter simetricamente a proposição infeliz de Francisco Alves; o branco não tem a “alma” negra, mas as “atitudes”. Ao contrário do que se pode inferir deste verso do Racionais: se você se considera negro, para negro será mano (Racionais: Voz ativa).
Aqui parece que a cor da pele é que define quem é negro e quem não é, numa atitude que acaba se aproximando da maneira pela qual a sociedade brasileira classifica, e portanto discrimina, racialmente os indivíduos no Brasil. Certamente, este é uma postura atribuível ao que Gayatri Spivak chamava “essencialismo estratégico” (apud Hall, 2003: 344). Um momento necessário na afirmação da identidade negra, em que pese as contradições envolvidas aí. Cabe, então, perguntar, como Stuart Hall, se ainda estamos nesse momento. De todo modo, creio que a afirmação positiva da identidade contida em grande parte das letras de rap representem uma efetiva, e afetiva, mobilização do “essencialismo estratégico”. O recorte muito dicotômico entre “negros” e “brancos” já me parece um passo, embora compreensível, para além da estratégia. Por outro lado, a própria diversidade interior ao rap, conforme expus na introdução, demonstra o grande fracionamento de modos de ser que implicam atitudes diferentes, opostas até, que comprovariam a inviabilidade de estruturar – a partir de critérios raciais, sociais ou de engajamento na cultura hip-hop
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– uma identidade essencial, não apenas assumidamente negra, mas francamente oposta à identidade branca. Cabe indagar: numa guerra como a imaginada pelo rapper MV Bill, quantos “brancos” e quantos “negros” iriam real e simetricamente corresponder à organização bipolar prevista em seu sonho? Um rapper como Suave, do Jigaboo, propõe em seus versos uma discussão que problematiza a afirmação identitária tão decidida que encontramos na retórica de MV Bill ou Gog (via Dino Black). Qual é a cor do teu estilo, e que predomina/ alguns têm pouco outros têm bastante melanina/ a minha cor é transparente como um copo d’água/ porque pra mim a tua cor não quer dizer nada/ eu faço rap sendo preto, branco ou amarelo/ não sou racista nem nazista sou da raça mista/ não discrimino mas às vezes sou discriminado/ por ser um rap louro, branco e de olho claro (Jigaboo: Qual a cor?).
Por outro lado, a adesão do público negro e pobre poria abaixo qualquer crença nesse sentido: embora importante, o número de pessoas que aderem à política racial preconizada nas letras dos raps ainda é significativamente menor, no Brasil, do que aquele que prefere a proposta de outras estéticas, em sua maioria absolutamente conciliadoras, quando não francamente filiadas ao ideário da mestiçagem – mais ou menos em termos freyreanos – como valor maior. Os próprios dados fornecidos pelas pesquisas do censo demonstram que permanece uma distância entre possuir determinadas características atribuíveis à raça negra e sentir-se negro. Todos os rappers incluídos neste estudo, em maior ou menor grau, expressam de maneira dramática o reconhecimento dessa contradição. Talvez seja justamente esse reconhecimento que induza à radicalização do discurso por parte dos rappers que, alheios às questões mal resolvidas que possam interferir em seu trabalho, estão, através de suas músicas e performances, concretizando o desejo, que Gilberto Freyre tanto temia, de formação de uma comunidade diferenciada dentro do espaço da nação. Segundo Freyre, “a possibilidade de as diferenças deixarem de interagir, mantendo-se
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absolutamente afastadas, é um perigo constante para qualquer sociedade [...]. A ameaça [está] na ‘constituição de um ‘Nós’ dentro do ‘Nós’ nacional” (Freyre apud Vianna, 1995: 88). Um movimento que justifica o título desta seção: “a nação não-cordial”. Em agosto de 1999, Toure publicou artigo no New York Times que causou muita polêmica. O autor defendia a prerrogativa dos homens negros na condução do que ele denomina “a nação hip-hop”. O primeiro parágrafo do referido artigo diz o seguinte: “Eu vivo em uma nação que nenhum cartógrafo jamais respeitará. Um lugar com sua própria língua, cultura e história. É uma nação tanto quanto Itália ou Zâmbia. Um lugar que meus conterrâneos chamam de Nação Hip-hop, provavelmente invocando todo o orgulho nacionalista acumulado através da história. O caminho de nossa nacionalidade foi pavimentado por um punhado de pais: Muhammad Ali com sua infinita arrogância, Bob Marley com sua verdadeira música rebelde, Huey Newton com seu audacioso estilo político, James Brown com sua obsessão pelo funk”(Toure, 1999). Toure articula todo o seu texto em torno da idéia da cultura hip-hop como uma espécie de nação dentro da nação. Nos Estados Unidos, pode-se dizer, inclusive, que essa nação dispõe de uma economia própria, movimentando milhões de dólares anualmente. Mas o primeiro aspecto que Toure destaca é a existência de referências históricas para os negros de hoje, simbolizadas nas figuras de homens cuja atividade – artística, desportiva ou política – foi decisiva para mobilizar a auto-estima da comunidade negra americana. No Brasil o processo é semelhante. Além da influência notória de Bob Marley e James Brown, as letras e os discursos dos rappers criaram ídolos, na maioria das vezes herdados dos movimentos negros anteriores, os quais servem de estímulo à conformação pretendida pelo hip-hop de uma identidade negra legítima e brasileira. Segundo o Racionais: Precisamos de um líder de crédito popular/ [...] que seja negro até os ossos/ um dos nossos (Racionais: Voz ativa).
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Zumbi dos Palmares é, por conta disso, citado como herói por inúmeros raps. Artistas como Jorge Benjor e Tim Maia também são sempre mencionados. Há uma certa escassez de nomes, o que motiva a denúncia, comum no rap, de que a história do Brasil foi falsificada – “lavagem cerebral, vamos acordar nossos irmãos/ [...] / nossa história totalmente manipulada” (Gog: “Qual é o pó?”) – mediante a rasura da participação dos afro-descendentes. X,5 líder do extinto grupo de rap Câmbio Negro, do Distrito Federal, compôs um rap, intitulado “Esse é meu país”, em que narra uma outra possibilidade de Brasil. O rapper, desde o primeiro verso, aponta os quesitos centrais que deveriam ser respeitados no seu ideal de nação: “Igualdade racial, social/ negro e branco tratado de igual pra igual”. Esse seria o Brasil dos sonhos dos rappers. E no caso desse rap, a narrativa é desenvolvida na forma de um sonho mesmo. A música termina com o som de um despertador, acordando o rapper para uma realidade diametralmente oposta à que seu discurso encenou. Antes de acordar, no entanto: Boas escolas, analfabetismo inexistente/ saúde em alta, bons hospitais, atendimento eficiente/ mortalidade infantil há muito eliminada/ pobreza não se vê, foi erradicada, criminalidade cai 90%/ todos têm moradia, ninguém ao relento/ policiais educados, segundo grau completo/ recebem salário digno, equipamento moderno/ não abusam do poder, não há brutalidade (Câmbio Negro: Esse é meu país).
O rapper não esquece quase nenhum – faltou mencionar as questões indígena e homossexual, pelo menos – dos segmentos sociais alijados do processo de modernização do país: “Mulheres no governo, com certeza invejável/ tratadas como se deve, com o respeito devido”; “Vários negros no Senado, trabalho reconhecido/ anos de faculdade, lugar ao sol merecido”; “Prêmio Nobel dado a um físico nordestino”; “Idosos têm os seus direitos assegurados”. 5
Lê-se /éks/, não confundir com o rapper Xis.
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Na obra dos rappers estudados aqui, é possível perceber frestas por onde se revela, mais que a crítica ao modelo vigente, o sonho de uma outra possibilidade de nação, como se pode depreender do rap de Gog: não, meu mundo não é esse aqui. O meu é um sonho ainda a construir (Gog: Prepare-se).
O Racionais expressa isso de forma contundente quando canta “eu vou procurar/ sei que vou encontrar/ a minha fórmula mágica da paz” (Racionais: “Fórmula mágica da paz”), ou então em “Mundo mágico de Oz”: Sair um dia das ruas é a meta final/ viver decente sem ter na mente o mal/[...] será que Deus tá provando minha raça?/ Só desgraça/[...] é preciso morrer pra Deus ouvir minha voz? ou transformar aqui no mundo mágico de Oz (Racionais: Mundo mágico de Oz).
Em ambos os casos, é fácil detectar como a aridez do mundo que o rapper percebe nas suas composições só autoriza uma solução se for por meio de algo além da capacidade e da compreensão humana, de algo impalpável, do campo do impossível ou do divino. Em “Gênesis”, Mano Brown declama: Deus fez o mar, as árvores, as crianças, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as armas, as bebidas, as putas.
Acontece que o rapper vive no mundo dos homens, onde raramente acontecem milagres. Por isso, na maior parte do tempo o rapper canta a dureza da vida nas periferias dos centros urbanos. Dureza que se reflete nas palavras que o rapper escolhe para compor suas canções. Já assinalei anteriormente que os fonemas oclusivos, com destaque para o surdo /p/, têm uma presença marcante em algumas letras de rap, notadamente nas de MV Bill. Certamente isso acontece porque palavras de uso recorrente no rap, como “preto”,
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“pobre”, “polícia”, acabem fazendo com que o fonema se destaque, mera coincidência. Mas também é possível que as constantes reproduções onomatopaicas dos sons de tiros sendo deflagrados reforcem essa impressão. O caso é que, coincidentemente ou não, Gog compôs um rap onde o fonema em questão adquire uma nova dimensão. Intitulado “Brasil com p”, o rap expressa justamente o Brasil que o rapper vê, que é a antítese do país com o qual o rapper sonha, a nação que ele, a um só tempo, denuncia e repudia. Pesquisa publicada prova/ Preferencialmente preto, pobre, prostituta pra polícia prender/ Pare, pense: por quê?/ [...]/ Presídio, porões, problemas pessoais, psicológicos/ perdeu parceiros, passado, presente/ pais, parentes, principais pertences/ [...]/ prevejo populares portando pistolas/ pronunciando palavrões/ promotores públicos pedindo prisões/ pecado, pena: prisão perpétua (Gog: Brasil com p).
Das cento e dezessete palavras contidas na letra, apenas uma não começa pela letra “p”, a última do último verso: “palavras pronunciadas pelo poeta, irmão”. A repetição do fonema concorre para expressar uma experiência social extremamente contraditória, na qual os “pretos”, os “pobres”, as “prostitutas”, numa palavra, os párias sociais, vivem numa situação rebaixada, desfavorecidos em todos os sentidos. Por outro lado, o recurso formal demonstra uma destreza digna dos jogos verbais realizados pelos repentistas brasileiros. Contudo, no caso dessa composição é possível evocar da repetição dos “pês” a sensação de prisão – mais uma palavra iniciada por essa consoante. Ao repetir incessantemente o fonema, o poeta cria um clima sufocante, um labirinto do qual não há saída possível. A única saída, eu arriscaria dizer, está no ouvinte, aquele a quem o poeta se dirige. Afinal, o único vocábulo que não se inicia por “p” é justamente o vocativo “irmão”, o único que escapa do círculo vicioso criado pelo rapper. Mesmo a si próprio Gog designa como poeta, não como rapper, talvez querendo dizer que sozinho ele não é capaz de romper o encadeamento perverso do Brasil com “p”, isolado ele é prisioneiro do círculo. É necessário que “a
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congregação dos manos”, aqueles cinqüenta mil a que se refere Mano Brown, dê vazão à revolta expressa pelo rap de maneira a realmente “mudar as coisas por aqui”, como quer KL Jay. O que Gog está dizendo na sua composição é que talvez este seja o único caminho capaz de romper com o Brasil com“p” e dar lugar ao novo. No título do livro indiquei minha compreensão do rap como forma poética que tem na revolta um de seus principais ingredientes. Segundo Octavio Paz, revolução e revolta têm a mesma origem (rodar, enrolar, desenrolar), mas a primeira implica uma visão cosmogônica e histórica, a outra representa o presente caótico ou tumultuoso. Portanto, “para que a revolta cesse de ser alvoroço e ascenda à história propriamente dita, deve transformar-se em revolução” (Paz, 1996: 262). Digo isso porque, remetendo à epígrafe que escolhi para este trabalho, creio que o caminho da revolta é ascensional. Com todas as contradições e erros, diante de tudo que li, ouvi e percebi, acredito que o rap brasileiro trouxe uma grande novidade no campo estético e outra no campo social. Há pouco mais de um século e meio, homens brancos, num momento crítico de definição de identidade, começaram a forjar, através de suas narrativas românticas, o discurso que deu forma à nação brasileira. Hoje um novo discurso se eleva, e ele mostra seu inconformismo frente ao fato de ter sido excluído naquele primeiro momento. Agora esse inconformismo explode, nos samples dos DJs e nas vozes do rap. Não podemos ignorar que os sonhos e as utopias contidas nas letras, nos gestos e nos traços destes negros artistas apontam para um tempo em que o equilíbrio entre a nação “cordial” e a nação excluída será, finalmente, possível. Ou não será ascensional o caminho da revolta.
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ANEXO
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ANEXO
contra a
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casa-grande
Não há perigo de que o problema negro venha surgir no Brasil. Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. Oliveira Viana
Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. [...]. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada [...]. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém mais seria capaz de indicar nele um filho da tribo retinta dos tapanhumas.
O restante da história é conhecido: lavando-se na mesma água “suja da negrura do herói”, Jiguê ficou da “cor do bronze novo”, enquanto Maanape, devido ao fato de a água encantada ter-se esborrifado para fora da cova no segundo banho, permaneceu negro, “só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa” (Andrade, 1985: 29-30). E assim, no romance de Mário de Andrade, Macunaíma e os dois irmãos alegorizam a velha fábula – ou mito, como prefere Renato Ortiz (1985: 35) – segundo a qual o Brasil é formado pelo encontro das três raças: a indígena, a negra e a branca. Já retornarei ao tema das três raças. Por enquanto registre-se que, fábula ou mito, essa idéia tem ainda muita força e mais de um exemplo busca demonstrar a sua verdade. Desde o episódio histórico das lutas de resistência à invasão holandesa, em
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1654, no estado de Pernambuco, em que se destacaram o negro Henrique Dias, o índio Felipe Camarão e o branco André Vidal de Negreiros, cerrando fileiras na defesa do Império, até hoje se pode sentir essa presença, conforme ironiza Marilena Chauí em sua avaliação dos mitos fundadores da nação brasileira: “Sabemos todos que somos um povo novo, formado pela mistura de três raças valorosas: os corajosos índios, os estóicos negros e os bravos e sentimentais lusitanos” (Chauí, 2000: 6). O questionamento, e mais ainda a oposição, a esse mito fundador será a causa de um sem-número de problemas para a reflexão acerca da questão racial no Brasil. Não que incomode a percepção dessa origem tripartite, tampouco os contatos, as miscigenações e os hibridismos que entraram nessa relação. O aspecto perturbador seria antes o abismo entre o reconhecimento dos três elementos na construção da identidade nacional e a situação desfavorável vivida por duas das pontas desse triângulo e, em certa medida, pelos frutos de suas interações. Lidar com esse problema, neste país, não é tarefa das mais fáceis. Na opinião de Antônio Sérgio Guimarães: “Qualquer estudo sobre o racismo no Brasil deve começar por notar que, aqui, o racismo é um tabu” (Guimarães, 1999: 37). Não apenas nos diversos trabalhos teóricos, mas também nas conversas de família ou de bar, parece haver um certo consenso de que a questão racial não representa um problema no Brasil. É possível que isso aconteça devido a duas razões principais. Em primeiro lugar, porque, até este momento, tem imperado uma resoluta indefinição racial1 por parte do povo brasileiro. Basta dizer que o resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do IBGE, em 1976, revelou 135 definições de cor diferentes por parte dos entrevistados, embora uma parte considerável delas, notadamente as mais estranhas (“cardão”, “cor-firma”,
1 O conceito é, sem dúvida, problemático. Seu uso neste trabalho será discutido adiante.
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“enxofrada”, “roxa”, “saraúba”) não representassem mais que um percentual irrisório do total, que no final das contas resumiam-se às tradicionais branca, negra ou preta e diversas tonalidades de morena. De qualquer forma, resta até hoje o que percebeu Skidmore, “o reconhecimento por parte de brasileiro e visitantes mais atentos de que os termos raciais não estão muito bem definidos na sociedade brasileira” (Skidmore, 1994: 151). Em segundo lugar, porque a construção de uma nação orgulhosamente mestiça, alheia a conflitos de ordem racial e étnica, representou na história do país o discurso vitorioso. Não é exagerada a percepção de Guerreiro Ramos, de que toda uma geração de estudiosos (e seus leitores) aderiu de uma maneira ou de outra à temática da democracia racial, a ponto de refutar pronta e ferozmente qualquer argumentação contrária, de cunho acadêmico ou não, a essa visão do Brasil como paraíso racial (Ramos, 1957). Somente a partir da década de 50 haverá mudanças significativas nesse quadro. Até essa época, o debate acerca da questão era dominado pelo discurso que advogava a inexistência de conflitos de ordem racial entre nós. Mesmo as nuanças possíveis de se encontrar de um autor para outro, em última instância, concorriam para os mesmos efeitos. No final, a idéia de Brasil como país isento de semelhantes tensões acabava prevalecendo.2 Haver, no mesmo continente, uma nação em que o racismo se exercia de forma inequívoca e em que as diferenças étnicas eram mais nítidas acabava reforçando esse discurso, fornecendo sempre um argumento aparentemente irrefutável: “Racistas são os Estados Unidos, o Brasil não!”. Com efeito, o modelo norte-americano, diz Guimarães, era evidentemente baseado na violência, no conflito, na segregação enfim. Esse modelo, que ficou vulgarmente conhecido como Jim Crow, era “sancionado por regras precisas de filiação grupal, baseadas em arrazoados biológicos que definiam as ‘raças’”. Quanto ao 2
Ver as obras, por exemplo, de Gilberto Freyre, Donald Pierson, Marvin Harris e os primeiros escritos de Thales de Azevedo.
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modelo brasileiro, este optava por uma “refinada etiqueta de distanciamento social e uma diferenciação aguda de status e de possibilidades econômicas, convivendo com eqüidade jurídica e indiferenciação racial, baseado sobretudo em diferenças fenotípicas, e cristalizado num vocabulário cromático” (Guimarães, 1999: 39). A rigor, prevalece no Brasil uma forma de percepção racial baseada preferentemente na cor, não na hereditariedade. Essa característica será estudada por Oracy Nogueira, que propõe a diferenciação entre preconceito de marca e preconceito de origem, este último baseado na regra de uma gota de sangue (one drop rule). O preconceito racial de marca se exerce quando o que o sustenta é a aparência do indivíduo, tomando por pretexto para as suas manifestações os traços físicos, a fisionomia, os gestos, o sotaque. O de origem se revela “quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra as conseqüências do preconceito” (Nogueira, 1985: 79). A combinação dessas dificuldades impõe o que, a meu ver, é o problema maior: o fato de que realmente há especificidades no tocante às relações raciais no Brasil que precisam ser pensadas sem dogmatismos. Como apontou Oracy Nogueira, a simples afirmação de sua existência é insuficiente, “uma vez que não é possível ignorar o flagrante contraste entre o clima de relações interraciais que predomina nos Estados Unidos e o que caracteriza o Brasil. Ademais, o reconhecimento da existência do preconceito leva à questão seguinte de se saber se, num e noutro países, o preconceito apenas difere em intensidade ou se a diferença deve ser considerada como qualitativa” (Nogueira, 1985: 79). Apesar de o método comparativo (entre Brasil e EUA) não ser a prioridade neste trabalho, cabe assinalar que essa é uma dificuldade a mais para a análise das relações raciais no Brasil. Sobretudo em virtude de estar lidando com o rap, uma forma que se cristalizou nos Estados Unidos, a sombra das questões raciais nesse país acaba sempre pairando sobre qualquer ini-
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ciativa de se analisar o caso brasileiro. De qualquer forma, é no contexto das dificuldades apontadas aqui que me proponho a estudar a forma pela qual o rap coloca as questões de identidade, raça e nação no Brasil na passagem do século XX ao XXI.
Da raça ao racismo Minha intenção aqui é menos passar a limpo as reflexões sobre o conceito de raça e suas implicações sociais do que propor uma base sobre a qual o objetivo prioritário deste trabalho foi estabelecido. Refiro-me à sugestão de que o texto rapper possa constituir-se como uma forma estética crítica das noções de cordialidade e democracia racial, que se impuseram como uma poderosa auto-imagem do Brasil. Esses conceitos não serão encarados exclusivamente segundo as formulações de seus respectivos autores, mas também segundo as interpretações nem sempre ortodoxas que lhe foram acrescentadas pela sociedade em geral. Quero dizer que serão levados em consideração os novos sentidos que os conceitos passaram a ter em virtude de seu uso no universo extra-universitário, ou do chamado senso comum, o qual se caracteriza, conforme Alfredo Bosi, por seu “caráter difuso, mesclado intimamente com toda a vida psicológica e social do povo”, ao contrário da prática acadêmica, que é concentrada e especializada, quase sempre versando sobre materiais “já trabalhados pela literatura específica dos temas” (Bosi, 1992: 320). Afinal, os próprios rappers pertencem a esse universo, e a crítica que fazem das idéias de Brasil expressas por aqueles conceitos deve-se menos à leitura da bibliografia especializada que à sensibilidade com que percebem, a partir da observação atenta da cultura na qual vivem, os processos contraditórios entre o que ouvem aqui e ali sobre a nação brasileira e o que vêem no dia-a-dia de suas comunidades. Na construção e na análise desses conceitos – a democracia racial, a cordialidade (na acepção vulgar) e seus correlatos – que assombram a consciência da nação, um autor desempe-
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nhará papel central: Gilberto Freyre. Toda a literatura a respeito da problemática da identidade nacional, após a década de 1930, converge necessariamente para a sua obra, sobretudo Casagrande & senzala. A importância de Freyre no âmbito deste trabalho reside no fato de que talvez seja possível sintetizar a visão dos rappers sobre o Brasil como anti-freyreana. Aqui, seja qual for o acesso que os rappers tiveram à sua obra, o Brasil dos manos é, na maioria das vezes, o oposto daquele surgido da obra de Freyre e de suas inúmeras interpretações. Porém, antes de chegar a este ponto, uma vez que se falou muito até aqui de raça e racismo, noções às quais inevitavelmente retornarei no decorrer deste trabalho, talvez caibam duas ou três palavras a respeito desses conceitos. O verbete “raça” do Dicionário de Relações Étnicas e Raciais define: “um grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma origem comum” (Banton, 2000: 447). Naturalmente, esse é apenas o começo da história. A partir dessa formulação sumária ocorrem tantas modificações no conceito, as quais variam de acordo com os diferentes contextos históricos, culturais, sociais etc., que já não é possível defini-lo numa única sentença. Na verdade, desde princípios do século XVI, o termo tem conhecido vários significados (ver Banton, 2000: 447; Cashmore, 2000: 451-3). Em outros termos, a discussão sobre raça muitas vezes conduziu a um pensamento que a entendia como alguma essência, uma determinação biológica que não dependeria de interpretação ou de contextos específicos. Um pensamento que, atualmente, está amplamente desmentido. Afinal, a própria história da humanidade evidencia que a noção de raça pura não se sustenta – as misturas são a constante. Aliás, sob o ponto de vista da ciência genética, sequer existem raças. O que há é a incessante mistura entre os diversos povos. Ainda assim, considero de pouco rendimento simplesmente descartar a noção de raça uma vez que, queiramos ou não, ela continua a definir formas determinadas de relações sociais. Paul Gilroy,
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um crítico feroz dos movimentos de absolutização ou essencialização da marca racial, também lembra que o problema com as tendências que simplesmente abandonam o essencialismo racial, por considerar a “raça” um constructo inoperante, é que elas têm se mostrado “insuficientemente consciente[s] do poder de resistência de formas especificamente racializadas de poder e subordinação” (Gilroy, 2001: 87). Mal ou bem, continua sendo a raça, entendida como tal ou como marca de classe/status social, que define quem sobe pelo elevador social e quem vai pelo de serviço. Estou de acordo com Antônio Sérgio Guimarães quando diz que, apesar da repulsa que possa suscitar o conceito de “raça”, uma vez que faz passar por realidade natural “os preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos”, é preciso reconhecer que sob o ponto de vista social, o conceito goza de plena realidade. E, de resto, “o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite” (Guimarães, 1999: 9). O que significa dizer que o conceito de raça resiste à sua própria precariedade. Porque, apesar de todo o esforço dos biólogos, desde a metade do século XX, em demonstrar a inviabilidade da categoria raça como meio de classificação dos seres humanos, ela tem permanecido decisiva nos diferentes estudos que se preocuparam com os destinos da nação. Também para Jacques D’Adeski, o fato de, geneticamente, ser impossível a classificação de raças conforme o modelo da taxionomia clássica (brancos, negros, amarelos etc.) não implica que se tenha de abandonar o conceito de raça. Baseando sua argumentação no trabalho de Pierre-André Taguieff, D’Adeski busca demonstrar a importância da manutenção do termo. Afinal, como bem observa Taguieff, para o homem comum os complexos modelos teóricos dos geneticistas contemporâneos não significam muita coisa (D’Adeski, 2001: 45). Por isso, ele continuará a perceber (e a discriminar, por vezes) os indivíduos segundo
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aquelas características que lhe são mais visíveis – a cor da pele, a forma do nariz, a textura do cabelo – e que remetem quase inevitavelmente ao que se entende por raça. Afinal, a atitude racista se nutre de diferenças fenotípicas, como a cor da pele. Dessa maneira, a noção de raça, por mais que a Biologia a tenha posto em questão, permanece um elemento maior da realidade social, na medida em que põe em marcha formas coletivas de diferenciação que podem estimular comportamentos discriminatórios. Isso é tanto mais importante quanto se sabe que, no Brasil, criou-se desde muito cedo a convicção de que o racismo não criou raízes. Joel Rufino dizia que “a idéia de que ‘aqui não temos desses problemas’ está profundamente enraizada em nossas cabeças” (Santos, 1984: 40). É possível dizer que a idéia de nação mestiça, acomodando as diferenças de raça em prol de uma unidade fraterna entre a casa-grande e a senzala, ou entre os sobrados e os mucambos, informou a crença generalizada de que não há racismo no Brasil – “pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura” (Freyre apud Vianna, 1995: 83). Uma outra maneira de enxergar a questão seria colocá-la em termos de diferença e diversidade. Aí veremos que, no Brasil, exaltou-se sempre a diversidade, mas sempre se evitou a discussão mais aprofundada a respeito da diferença. Afinal, o Brasil diverso, miscigenado, fruto do encontro das três raças é uma auto-imagem que teve muito sucesso em se afirmar. Por outro lado, sempre que um discurso que privilegiasse a diferença se insinuou, suas asas foram logo cortadas. É sintomático que Wilson Martins, por exemplo, tenha escrito recentemente que “o clima de animosidade racista [...], perpetuado nos Estados Unidos, não se verificou no Brasil e só se manifesta quando o insuflam as chamadas associações de defesa, cujo caráter racista é inegável” (in Freyre, 2001: 16). Em outras palavras, para o tipo de pensamento expresso por Martins, a diversidade brasileira só é bem-vinda por ter assegurado a formação da nacionalidade brasileira em um contexto
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razoavelmente adverso, quando vários prognósticos condenavam o seu futuro em virtude da miscigenação. Admitindo que este foi, sem dúvida, um passo importantíssimo, não me é possível deixar de notar que, quando essa diversidade se via ameaçada por quaisquer manifestações de diferença, de afirmação de uma identidade que escapasse ao escopo da miscigenação, isso significava a manifestação de características anti-brasileiras. É interessante, por exemplo, como Freyre lida com o assunto. Defendendo a grandeza da literatura brasileira, que “não cede o primeiro lugar a nenhuma outra na América Latina” (2001: 46), entre cujos autores pontificavam não poucos mestiços, Freyre dirá que, por exemplo, Machado de Assis e Lima Barreto eram ambos mulatos, porém “o primeiro jamais tocava no assunto enquanto Barreto, por vezes, dramatizava sua condição de ‘negro’ e ‘plebeu’ de modo de certa forma não brasileiro” (2001: 46-7. Grifo meu). O que é digno de nota, uma vez que não se trata de um caso isolado. Afinal, para Freyre, até mesmo o suicídio do presidente Getúlio Vargas, um gesto violento e incompatível com nossa índole pacífica, foi considerado uma atitude “nãobrasileira” da parte de um político (Freyre, 2001: 48). O que Wilson Martins e Freyre negligenciam é que as “associações de defesa” ou os “Limas Barretos” da vida são personagens que se dão conta de que a diferença, como diria Muniz Sodré, não é um ponto de partida, mas de chegada. “Ponto de partida são as possibilidades concretas de diferenciação” (Sodré, 1999: 15). Neste sentido, a discriminação significa o não reconhecimento do outro nesse processo de diferenciação. Ora, para Martins, as associações de defesa é que são racistas e não as pressões externas que lhes dão origem. O mesmo vale para Lima Barreto, que não se reconheceu nas possibilidades estreitas que a sociedade mestiça brasileira lhe oferecia e, num ambiente fortemente racista como aquele do começo do século, teve que “dramatizar sua condição de negro” porque seu ponto de partida era muito limitado. O poema “Emparedado”, de Cruz e Sousa, exemplifica
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bem de que modo eram fechadas, em sua época, as possibilidades de diferenciação na sociedade brasileira e como era difícil para o artista não “dramatizar” a condição negra, pelo menos quando esta era indisfarçável. “Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça” (Cruz e Sousa, 1961: 665). Aqui a diferença aparece muito mais como parte de escolhas, nem sempre tranqüilas, às vezes inconscientes, outras conflituosas. Mas essas escolhas representam o desejo dos homens de participar da sociedade, da nação, em condições de igualdade. Nesse ponto, começa a atuar o racismo, de forma evidente ou sutil. O fato é que ainda hoje, “as relações humanas são atravessadas e muitas vezes determinadas por diferenças materializadas na variedade dos modos de crer, perceber, trabalhar, vestir-se e parecer somaticamente. A estética negativa do estrangeiro lastreia sempre os julgamentos na prática do Gesichtskontrolle (controle de rostos), ou seja, a decisão cotidiana sobre quem pode entrar em clubes, boates, restaurantes de luxo ou mesmo ser aceito para seguros de automóveis” (Sodré, 1999: 17). Enquanto o “controle de rostos” for uma prática comum em nossa sociedade, a noção de raça continuará tendo sua importância, pelo menos como noção cultural e social (não biológica), até porque só a partir daí se poderá pensar a questão das “relações raciais” no Brasil. Apesar das notórias diferenças com a realidade dos Estados Unidos e de outros países, também aqui o debate a respeito de grandes temas, como identidade nacional e democracia, não poderá passar ao largo do problema racial. Como completou Sodré, a respeito do Gesichtskontrolle, “o nome da prática é alemão mas sua incidência é transnacional” (Sodré, 1999: 17).
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Só branco em minha alma crivada de raças: estratégias de branqueamento. De meados do século XIX até o início do XX, as doutrinas que propugnavam a raça como uma determinação biológica davam o tom dos estudos a respeito das diferenças raciais. Segundo as conclusões desses pretensos cientistas, tornava-se evidente a distinção entre as raças em termos de superioridade e inferioridade irredutíveis. Naturalmente, a raça negra era exposta como inferior, em contraste com a branca, superior. A “água encantada” na qual se lavou Macunaíma3 certamente faria muito sucesso, caso não pertencesse unicamente ao reino da ficção. Naquele momento, a mestiçagem implicava graves problemas para o projeto de formação da nação brasileira, uma vez que a presença da marca negra (e também indígena) no processo traria uma nódoa, uma mancha difícil de “limpar”, que inviabilizaria o desenvolvimento de uma civilização moderna nos moldes ocidentais. Esses problemas foram resolvidos de forma diferente nas obras dos autores que lidaram com a questão da identidade brasileira. Sílvio Romero e Nina Rodrigues, por exemplo, tinham opiniões díspares. O primeiro acreditava numa solução – o branqueamento da população – a concretizar-se em dois a seis séculos. O segundo, mais pessimista, refutava essa hipótese, considerando a nação brasileira irremediavelmente condenada pela marca negra na
3 A analogia que faço desde o início deste capítulo entre o trecho citado de Macunaíma e as teorias raciais que vingaram no Brasil tem caráter meramente ilustrativo. A obra de Mário de Andrade é mais complexa que o tratamento dado aqui e, para que tivesse algum desdobramento além do retórico, mereceria uma análise muito mais aprofundada. De resto, assinalo minha concordância com Muniz Sodré: “apesar de assimilador de diferenças [...] em seu percurso, Macunaíma não se adequa ao paradigma da mestiçagem com que acena a maioria das obras identitárias [...]. Na verdade, o próprio de Macunaíma é não ter identidade viável, seja indígena, negra, branca ou mestiça. É um personagem singular, logo inassimilável pelos padrões identitários oficiais, embora interpretável como figura que nacionaliza a invenção” (1999: 96).
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cultura e no fenótipo dos brasileiros. Em comum entre os dois, e praticamente entre todos os outros pensadores da época, o fato de proclamarem a superioridade do branco e a prerrogativa do modelo europeu na afirmação da nacionalidade brasileira. É difícil indicar uma exceção indiscutível no panorama das teorias surgidas na época. Manoel Bonfim, por exemplo, que se diferenciava substancialmente de outros autores, como os citados, ainda assim não deixava de proclamar sua crença na superioridade do padrão europeu de cultura. (ver Ortiz, 1985; Sodré, 1999). Em sentido semelhante ao de Romero, é bastante esclarecedor o pensamento de Oliveira Viana (ver Skidmore, 1976; Munanga, 1999). Segundo esse autor, a importância numérica do elemento foi suprimida pela miscigenação, que o fez diluir-se na população na branca. Em suas palavras, “aqui o mulato, a começar pela segunda geração quer ser branco, e o homem branco (com rara exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio” (apud Skidmore, 1976: 90). Na interessante percepção de Kabengele Munanga sobre as afirmações de Viana, a mestiçagem cumpriu um papel decisivo na desconstrução da identidade negra. “A elite ‘pensante’ do país tinha clara consciência de que o processo de miscigenação, ao anular a superioridade numérica do negro e ao alienar seus descendentes mestiços graças à ideologia do branqueamento, ia evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em outros países”, ao mesmo tempo em que garantiria a liderança do país ao segmento branco. (Munanga, 1999: 78. Grifo meu). Esse processo é mostrado, de modo inequívoco, num quadro do pintor espanhol Brocos y Gómez. O título do quadro é sugestivo: Redenção de Cam. Ao contrário da tela As meninas, de Velásquez, cujo rigor e inventismo formal intrigou toda a geração posterior de intérpretes, e cujo entendimento talvez não tenha sido captado plenamente nem mesmo por Foucault na sua conhecida descrição do quadro, a de Brocos y Gómez implica uma menor distância entre as palavras e as coisas, permite um entendimento mais
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imediato e prático de sua “representação”. Foi o que fez o médico e antropólogo físico João Batista de Lacerda. No I Congresso Universal das Raças, realizado em agosto de 1911 na Universidade de Londres, João Batista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional, representou o Brasil na qualidade de delegado oficial do governo brasileiro. Seu objetivo: “defender a tese do branqueamento da raça através da mestiçagem, como forma de resolver os conflitos e a questão racial brasileira” (Seyferth, 1985: 83). Esse esforço traduziu-se na publicação de um texto, publicado como “Memória” apresentada ao referido Congresso e intitulado Sur les Métis au Brésil. No quadro, uma senhora negra, já idosa, olhando para o alto, no rosto uma expressão que poderia ser de gratidão; sentados, um casal – a mulher de pele escura, o homem de pele clara –, no colo da mulher um bebê branco, de fenótipo indisfarçavelmente europeu. A legenda que o acompanha não deixa margem a dúvidas: “Le nègre passant au blanc, à la troisième génération, par l´effet du croisement des races”. Giralda Seyferth acha que o quadro é mais significativo do que a própria explicitação da teoria no texto da “Memória”. E mais importante que a previsão nele contida seria a postura das personagens, em especial a da senhora negra, e a ausência do avô materno. “O marido é branco, seus ancestrais são dispensáveis. Ele não precisa legitimar a cor da sua pele; o que importa é a aparência, não os seus ancestrais, uma vez que a suposição básica do branqueamento é a superioridade dos genes brancos” (Seyferth, 1985: 87). Aliando perspectivas teóricas contidas no pensamento de Gobineau – que, apesar de seu racismo visceral, admitia a existência de miscigenações positivas – com pressupostos do darwinismo social, a partir dos quais tornava-se possível acreditar que se poderia chegar à raça pura através da diversidade, João Batista de Lacerda conseguiu formular uma teoria otimista, na ótica do racismo, sobre o futuro da nação, uma vez que previa a inevitável extinção das raças não brancas mediante um processo de
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seleção sexual que, enfim, iria “purgar” os descendentes dos mestiços dos seus traços negros. Desse modo, estipula em um século o prazo para o desaparecimento do mestiço na população brasileira e, nesse mesmo período, “prevê a extinção do negro em razão de sua incapacidade de se assimilar à civilização” (Seyferth, 1985: 93). Até agora, nada indica que qualquer das previsões realizadas na virada do século XIX para o XX venha a se realizar. Na passagem do XX para XXI, depois de tudo isso, os rappers têm proclamado com veemência uma identidade negra que parece ignorar, ou antes contrariar, os discursos eugenistas do passado ou os que celebravam a contribuição negra e o hibridismo da nação. Esse segundo ponto de vista ganha fôlego na década 1930, a partir da publicação de um clássico: Casa-grande & senzala. Superando os traumas da formação mestiça da nação brasileira, que imperaram nos anos anteriores, a partir dessa década passa-se a uma concepção favorável desse aspecto, o que dará origem a outros problemas, entre os quais o do mito da democracia racial.
Gilberto Freyre e a democracia racial Já comentei que a idéia de Brasil como uma democracia racial vem sofrendo sérios abalos desde a década de 50, quando foi organizada a série de estudos sobre a questão racial no Brasil patrocinada pela Unesco (cf. Maio, 1997). As comemorações pelo centenário da Abolição, em 1988, também foram um relevante marco representativo do questionamento a essa idéia de Brasil (cf. Hanchard, 2001). Por minha vez, desejo incluir o rap – principalmente aquele produzido a partir do início da década de 90 – como uma das mais importantes formas de contestação do mito. Mais recentemente, no final de 2001, houve uma importante mudança nesse contexto. Com a fala do ministro da Justiça José Gregori reconhecendo a existência de racismo no Brasil,
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em declaração oficial com vistas à III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, o governo brasileiro, talvez pela primeira vez na história, admite o que os movimentos negros no Brasil já vinham denunciando há muito tempo: que a democracia racial brasileira não corresponde a uma realidade absoluta. Mesmo assim, não se deve desprezar a força de que goza esse conceito na sociedade brasileira. Ele representa ainda a autoimagem através da qual o brasileiro passou a se ver após a Abolição (um período superior a um século, portanto), e que foi quase sempre um motivo de orgulho, apesar de todas as contradições. Como demonstra Marilena Chauí, “a força persuasiva dessa representação transparece quando a vemos em ação, isto é, quando resolve imaginariamente uma tensão real e produz uma contradição que passa despercebida. É assim, por exemplo, que alguém pode afirmar que os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças” (Chauí, 2000: 8). Numa síntese bastante apurada, Kabengele Munanga explica que o mito da democracia racial “exalta a idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades nãobrancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade”. Esse mito teria se aprofundado de tal modo na sociedade brasileira que acabaria servindo para encobrir os conflitos raciais. Assim, abriu espaço para que todos se reconhecessem como brasileiros e, por outro lado, criou empecilhos à tomada de consciência por parte das comunidades subalternas sobre suas características culturais, as quais, segundo Munanga, poderiam ter contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. (Munanga, 1999: 80).
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Esse processo pode ser exemplificado por uma experiência pessoal narrada pelo antropólogo Peter Fry. Nos Estados Unidos, Fry teria descoberto, justamente quando pensava estar apresentando uma iguaria tipicamente brasileira para amigos afro-americanos nos EUA, que havia lá um prato semelhante, chamado soul food, igualmente uma herança culinária de um prato elaborado pelos escravos com as sobras do porco desprezadas pelos seus senhores. A diferença é que lá, soul food é símbolo da cultura negra americana. Aqui, a feijoada é praticamente um símbolo nacional. Fry argumenta ainda que também o samba e o candomblé “são, em grau maior ou menor, utilizados como símbolos nacionais brasileiros e, como tal, exibidos em cartazes e guias turísticos” (Fry, 1982: 47 et passim). Essa indistinção ocasionou, por outro lado, a expropriação de referenciais da negritude para a história da cultura branca, de modo que heróis reconhecidos como negros em outros lugares, passam por brancos no Brasil (cf. Hanchard, 2001). Desse modo percebe-se que a democracia racial é limítrofe do fenômeno conhecido por fábula das três raças. Para Roberto DaMatta, esta foi a solução encontrada pela elite nacional, ainda no século XIX, para justificar, racionalizar e legitimar as diferenças internas do país uma vez concretizada a independência, considerando-se que, agora, tornava-se urgente a invenção de uma identidade para a nação que surgia. A ideologia que sustentaria esse processo se daria, na opinião do antropólogo, na forma da fábula das três raças, “uma ideologia que permite conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade, sem que se crie um plano para sua transformação profunda” (DaMatta, 1984: 68). Entretanto, Renato Ortiz problematiza a terminologia proposta pelo antropólogo, propondo em seu lugar a noção de mito. Em Cultura brasileira e identidade nacional, Ortiz entende que o conceito de mito sugere “um ponto de origem, um centro a partir do qual se irradia a história mítica” (1985: 38). Se no pri-
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meiro momento, entre o final do século XIX e começo do XX, o mito é considerado ambíguo, no segundo ele já pode se afirmar, graças ao movimento realizado justamente por Gilberto Freyre. Inicialmente, devido às dificuldades próprias a um período de transição, a afirmação da nacionalidade esbarrava nas teorias racistas ou racializadas que, no mínimo, desconfiavam da mestiçagem. Nas palavras de Ortiz, isso implicava obstáculos concretos que impediam o mito das três raças de se ritualizar, porque as condições materiais para a sua afirmação eram apenas simbólicas. Nesse momento “ele é linguagem e não celebração” (Ortiz, 1985: 39). Já a partir dos anos 30, sobretudo com a publicação de Casagrande & senzala, acontece um importante deslocamento nessa situação. Com a passagem da noção de raça para a de cultura (graças à influência do culturalismo de Franz Boas), através da qual passa a ver “o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural” (Freyre apud Araújo, 1994: 27), Freyre rompe com o racismo que permeava o pensamento de cunho sociológico anterior e consagra-se como aquele que irá recuperar aspectos positivos e importantes da mestiçagem para o processo de formação do Brasil (Ortiz, 1985: 40 et passim; Araújo, 1994: 28). “O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional” (Ortiz, 1985: 41). De qualquer modo, as análises de Ortiz e DaMatta confluem num ponto básico. Fábula ou mito, a construção da origem nacional baseada na união das três raças se constituiu “na mais poderosa força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar idealmente sua sociedade e individualizar sua cultura” (DaMatta,
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1984: 68). Essa força continuou a atuar até os dias de hoje. A despeito dos movimentos em sentido contrário, é perceptível o mal-estar que esse debate ainda provoca. Em Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre demarcou a esfera em que o tema da identidade brasileira passaria a se desdobrar a partir da publicação do livro, em 1933. Uma idéia central para a elaboração do entendimento do Brasil contido em sua obra será a de equilíbrio de antagonismos. Freyre indica, já antes do início da colonização, a presença de distintas forças culturais – “a européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista” – agindo sobre o português e “fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam” (Freyre, 1992: 82). Trata-se de um dualismo de cultura e de raças que será um antecedente importante da própria formação brasileira, garantindo-lhe a plasticidade, a flexibilidade, o equilíbrio, a indefinição; características sempre referenciadas por Freyre no tocante à sociedade brasileira, desde o início equilibrada sobre antagonismos, desarmonias. (Freyre, 1992: 82). Até mesmo o título de dois de seus principais livros – Casagrande & senzala e Sobrados & mucambos –, como argutamente percebeu Elide Rugai Bastos, denotam uma dicotomia em que de um lado a casa-grande e o sobrado simbolizariam a dominação; de outro a senzala e o mucambo representariam subordinação; e finalmente a conjunção “&” entre as palavras, designaria a interpenetração de ambos (Bastos, 2000). Daí, chega-se a uma importante sugestão de Gilberto Freyre: a de que no Brasil os extremos tendem à confraternização, à conciliação. Este seria um traço especialíssimo da formação brasileira, e não à toa está referido ao longo de praticamente toda a obra Casa-grande & senzala: “Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas, quando nos completarmos num todo não será com o sacrifício de um elemento ao outro” (Freyre, 1992: 390).
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Sem deixar de reconhecer as contradições inerentes à sua própria formulação, Freyre postula uma certa excepcionalidade4 das relações sociais e raciais no país, centrada na mencionada confraternização, que terá uma poderosa ingerência sobre praticamente toda a reflexão a respeito desse problema (o das relações sociais e raciais), até os dias de hoje. Nas suas palavras: “Sem que no Brasil se verifique perfeita intercomunicação entre seus extremos de cultura – ainda antagônicos e por vezes até explosivos, chocando-se em conflitos intensamente dramáticos como o de Canudos – ainda assim podemos nos felicitar de um ajustamento de tradições e de tendências raro entre os povos formados nas mesmas circunstâncias imperialistas de colonização moderna dos trópicos”. Em suma, o contato entre o conquistador e o indígena jamais implicou, sob a ótica do autor, a antipatia ou o ódio tão evidentes nos países de colonização anglo-saxônica e protestante (Freyre, 1992: 226). Isso porque, aqui no Brasil, essas relações foram suavizadas pelo “óleo lúbrico da profunda miscigenação, quer a livre e danada, quer a regular e cristã sob a bênção dos padres e pelo incitamento da Igreja e do Estado” (Freyre, 1992: 226). A excepcionalidade racial do Brasil em face das outras nações americanas – embora Hasenbalg (1996: 235) explique que, na verdade, essa suposta excepcionalidade possa ser reivindicada por diversos países da América Latina – consistiu na pedra de toque da teoria de Freyre, pois foi o que permitiu definir a singularidade brasileira em meio às outras nações, superando o trauma da mestiçagem. Esse delicado equilíbrio de antagonismos é que permitirá a Freyre caracterizar a sociedade brasileira como mestiça, resultado do cruzamento de raças, culturas, costumes em favor da consolidação de uma idéia de nação que não conseguia se resolver, já em princípios do século XX, devido ao peso que o 4 Carlos Hasembalg tece uma série de questionamentos a esse respeito (ver Hasembalg, 1996).
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pensamento pessimista sobre a mestiçagem racial tinha na discussão. Esse é, sem dúvida, um grande mérito do trabalho de Gilberto Freyre. “Reconhecendo o valor da influência dos negros e dos índios, a reflexão desenvolvida por Gilberto parecia lançar, finalmente, as bases de uma verdadeira identidade coletiva, capaz de estimular a criação de um inédito sentimento de comunidade pela explicitação de laços, até então insuspeitos, entre os diferentes grupos que compunham a nação” (Araújo, 1994: 30). Até então, prevaleciam os rigores pseudo-cientificistas já mencionados páginas atrás. Sobretudo se levarmos em consideração que nessa época ainda havia quem acreditasse em medição de crânio como método de avaliação racial, o que Freyre contraria: “Aliás na inferioridade ou superioridade de raças pelo critério da forma do crânio já não se acredita; e esse descrédito leva atrás de si mesmo muito do que pareceu ser científico nas pretensões de superioridade mental, inata e hereditária, dos brancos sobre os negros” (Freyre, 1992: 353). No entanto, a questão não é tão simples quanto parece. As contradições a que me referi um pouco acima – entre os extremos antagônicos de cultura e a sua suavização através do processo de miscigenação – não constituem um aspecto episódico de Casa-grande & senzala, mas participam, intrinsecamente, da obra em seu todo. Por isso, Hermano Vianna salientava no livro as passagens que poderiam constar do “panfleto mais furioso que pretenda refutar o tal mito da democracia racial” (Vianna, 2000: 21). Realmente, é possível encontrar desde o prefácio cenas de “senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”, até a denúncia da “sifilização do Brasil” pelos portugueses, recorrente em várias páginas do livro. E isso sem contar os casos em que as senhoras, e não os senhores, cometem as violências: “Não são dois nem três, porém muitos os casos de
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crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes” (Freyre, 1992: 392-93). Pode-se dizer que o centro aglutinador dessas tensões seja o patriarcalismo, a força centralizadora do senhor, a unir em torno de si, autoritariamente, as várias pontas desses extremos. Ricardo Benzaquen de Araújo destaca o patriarcalismo como uma das categorias que recebem maior destaque em Casa-grande & senzala. Ela nos remeteria “ao ideal de uma família extensa e híbrida [...], na qual senhoras e escravas, herdeiros legítimos e ilegítimos convivem sob a luz ambígua da intimidade e da violência, da disponibilidade e da confraternização” (Araújo, 1994: 54). Vale ressaltar, no entanto, que o entendimento da mestiçagem, conforme a interpretação de Freyre, impõe mais incertezas e ambigüidades que a mera afirmação do caráter harmônico das relações entre senhores e escravos no Brasil colonial nos fazia crer. Nada em Casa-grande & senzala parece restringir-se a um único aspecto, a apenas o seu lado positivo ou negativo. As disparidades concorrem para acentuar a extrema heterogeneidade da formação da sociedade brasileira. Freyre parece mesmo fazer questão dessa complementaridade de antagonismos. Chegava mesmo a sugerir que, a despeito de ainda haver um enorme vácuo entre os dois extremos de cultura, em nenhum outro lugar, fora o Brasil, se verificaria “igual liberalidade com o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil” (Freyre, 1992: 123). Entretanto, Araújo compreende a miscigenação em Casa-grande & senzala como um processo em que as identidades envolvidas não se dissolvem, não dão lugar a uma nova figura. Com isso, o mestiço se afirmaria como alguém que preserva a “indelével lembrança das diferenças presentes na sua gestação (Araújo, 1994: 44). Porém, nessa forma mosaical proposta pelo autor há peças que, a meu ver, não se encaixam perfeitamente. As propriedades singulares de cada povo que formou o cadinho
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brasileiro podem não ter desaparecido, mas se dissolveram inevitavelmente no processo de hibridização. No Brasil a política da miscigenação sempre se desenvolveu em busca de uma essência brasileira, com prejuízo de outras identidades que se diluíam em meio à consolidação da identidade nacional por excelência. Já vimos o que se pensava a respeito na passagem do século XIX para o XX. Posteriormente, Freyre vai elevar o nível da conversa, reconhecendo o valor do negro e do índio. Mesmo assim, quando vislumbrava o futuro da Nação, mostrava-se satisfeito em perceber que “os negros estão agora desaparecendo rapidamente do Brasil, fundindo-se com os brancos e com os ameríndios e constituindo-se numerosa população de ‘morenos’” (Freyre, 2001: 139). Por isso, não estou inteiramente de acordo com Ricardo Benzaquen de Araújo, quando a certa altura afirma: “diferença, hibridismo, ambigüidade e indefinição: parecem ser estas as principais conseqüências da idéia de miscigenação utilizada em CGS” (Araújo, 1994: 46). Com relação à ambigüidade e à indefinição, sua análise não poderia ter sido mais precisa; entretanto desconfio do item diferença, até porque, como reconhece Araújo, essas características não implicam qualquer diminuição ou perda para Portugal, vale dizer para o branco dominante. Creio que a diferença só tinha valor na medida em que referendava a capacidade do homem branco de dominar os antagonismos em si próprio – uma vez que Freyre vê o português desde antes da expansão colonial como meio-termo entre Europa e África – e subjugar uma realidade pontuada de extremos opostos (Freyre, 2001: 140). Não há, como vimos, espaço na teorização de Freyre para as manifestações de diferenças disruptivas, que provocassem ruídos no equilíbrio de antagonismos que formou o amálgama nacional. Mesmo as descrições de violência e crueldade entram como um senão no contexto mais geral de harmonização dos contrários que, segundo Freyre, prevaleceu na construção da nação brasileira. Na sua preferência por títulos duplos – Casa-grande &
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senzala, Sobrados & mucambos ou o nunca concluído Jazigos & covas rasas – não houve como encaixar o quilombo, que talvez constituísse uma iniciativa não brasileira da parte dos africanos escravizados no Brasil. Cabe perguntar: isso significa que Freyre tenha, como sugerem muitos críticos, diagnosticado nossa situação colonial como uma representação paradisíaca? Sobre este ponto, ele é bastante ambíguo. Ao comentar passagem de Oliveira Lima em que este afirma o caráter promissor da solução brasileira para a questão racial, Freyre se mostrará consciente de não ser o Brasil nenhum paraíso. Mas, “quanto às relações raciais, a situação brasileira provavelmente é a que mais se aproxima daquilo que se imagine como um paraíso nesse setor” (Freyre, 2001: 42). A questão da democracia racial de Freyre seria, então, fruto de interpretações equivocadas. Segundo Ricardo Benzaquén de Araújo e Hermano Vianna, essa responsabilidade teria sido injustamente depositada na conta de Gilberto Freyre. Porém, os autores não indicam quem exatamente teria feito o depósito. O sujeito dessa oração continua indefinido, embora se saiba que a discussão ganhou fôlego a partir da publicação dos trabalhos dos sociólogos que integraram o chamado grupo da USP, sobretudo Florestan Fernandes (cf. Guimarães, 1999), do qual participava Fernando Henrique Cardoso, que foi presidente do país entre 1994 e 2002. Muitos textos que tematizam esse assunto, quando falam em democracia racial, vinculam-na à figura de Freyre, mas não informam onde colheram a informação. Michael Hanchard, por exemplo, abre o capítulo 3 de seu livro, intitulado precisamente “Democracia racial”, com uma longa citação de Casa-grande & senzala, na qual Freyre aborda o caráter confraternizante do português. Daí, Hanchard conclui que “a variante brasileira [da excepcionalidade racial], pontuada pelo mito da democracia racial, aparece em sua forma mais elaborada em Casa-grande & senzala, Sobrados & mucambos e outros trabalhos de Freyre”.
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Neste capítulo, o autor determina três tarefas para si, entre as quais realizar: “uma leitura crítica da elaboração do mito da democracia racial por Gilberto Freyre” (Hanchard, 2001: 61-62). Entretanto, o autor não fornece uma única linha em que Freyre tenha utilizado as palavras que dão nome ao mito. A que mais se aproxima fala em democracia social (Freyre apud Hanchard, 2001: 71. Grifo meu). Ao que parece, Hanchard interpretou as palavras de Freyre segundo o entendimento mais comum, o de que social aqui é sinônimo de racial. O fato é que praticamente toda a crítica refere a formulação do conceito de democracia racial inevitavelmente à obra de Gilberto Freyre, notadamente Casa-grande & senzala. Contudo, não há neste livro – e tudo indica que em nenhum outro do autor – nenhuma página onde apareça ipsis litteris o termo “democracia racial”. É possível então que o polêmico conceito tenha aparecido menos em decorrência das afirmações do autor, que mais parecia evitá-lo, que das inúmeras interpretações da sua obra. É forçoso concordar com o antropólogo Hermano Vianna, para quem a atribuição a Freyre pela criação do mito deve-se a leituras apressadas de Casa-grande & senzala (Vianna, 2000). Em um texto apresentado à ANPOCS em 2001, Antônio Sérgio Guimarães parte da produção jornalística e acadêmica de intelectuais pioneiros no estudo das “relações raciais” para traçar a “cronologia de cunhagem do termo ‘democracia racial’”. Segundo o autor, tudo indica que a expressão foi usada pela primeira vez por Roger Bastide. Num artigo publicado no Diário de São Paulo no dia 31 de março de 1944, Bastide refere-se a uma visita que teria feito a Freyre pouco antes, em Apipucos, narrando sua visão da mistura de raças no interior do bonde onde viajava de regresso para a cidade: “isso constituía uma bela imagem da democracia social e racial que Recife me oferecia [...], na passagem crepuscular do arrabalde pernambucano” (Bastide apud Guimarães, 2001: 6. Grifo do autor).
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Guimarães localiza também o primeiro uso do termo na literatura acadêmica especializada: em 1952, na introdução ao primeiro volume de uma série de estudos sobre relações raciais no Brasil, patrocinados pela Unesco, Wagley escreveria que “o Brasil é renomado mundialmente por sua democracia racial” (apud Guimarães, 2001: 2). Nessa data, ao que parece, o conceito já desfrutava de uma forte difusão. Seu uso era importante sobretudo porque se contrapunha, na esfera política, à ascensão do nazi-fascismo na Europa, cuja repercussão chegava também ao Brasil. Coincidentemente ou não, este é também o momento em que o conceito começa a receber as primeiras críticas. Freyre, ainda de acordo com Guimarães, só virá a utilizar a expressão em 1962, no bojo da construção do luso-tropicalismo como teoria para a análise da realidade brasileira. Freyre desfere um ataque ao espaço que os negros brasileiros vinham cedendo à idéia de negritude, esboçada no circuito África-Caribe por Leopold Senghor, Aimé Césaire, Franz Fanon entre outros. Dirá Freyre que, sendo ele um “adepto da ‘vária cor’ camoneana”, não poderá admitir nem a mística da negritude nem o mito da branquitude: “dois extremos sectários que encontrariam a já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem” (apud Guimarães, 2001: 12. Grifo meu). Mais adiante, na década de 60, Florestan Fernandes vai conceber a idéia de democracia racial como um mito, num contexto em que a democracia, no seu sentido mais abrangente, estava sendo duramente cerceada. Em 1964, como anotou Guimarães, amadurecia a idéia de que a democracia racial não era mais um projeto ou um ideal a se concretizar (Guimarães, 2001: 13). “As circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com que o mito da ‘democracia racial’ surgisse e fosse manipulado como conexão dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes, comportamentos e ideais ‘aristocráticos’ da ‘raça dominante’. Para que sucedesse o inverso, seria preciso que ele caísse nas mãos dos negros e dos mulatos; e
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que estes desfrutassem de autonomia social equivalente para explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins, como um fator de democratização da riqueza, da cultura e do poder” (Fernandes apud Guimarães, 2001: 14). Com isso, rompia-se o pacto vigente entre 1945 e 1964, que incluía os negros, seja como movimento organizado, seja como elemento fundador da nação. A partir do golpe militar, junto com os direitos civis parece ter desaparecido também a crença na “democracia racial”. De agora em diante, lembrariam dela como um mito. De certo modo, um engodo a ser rejeitado definitivamente. Mas de outro, como preferiria Peter Fry (e Antônio Sérgio Guimarães também), como uma chave importante para a compreensão da sociedade brasileira. Sem poder ser inteiramente responsabilizado pelo “mito” – na verdade, ele talvez tenha nascido de uma conjunção de fatores protagonizada sobretudo pelos autores citados aqui (Bastide, Wagler, Florestan) –, e sem ter propriamente cunhado a expressão,5 Freyre não deixa de colaborar para a sua legitimação. Não é por acaso que ele faz pouco do termo enquanto a sua evidência permanece de certo modo consensual na sociedade, mas recorre a ele imediatamente quando a situação se polariza na África e a idéia de “negritude” ganha espaço no Brasil (Guimarães, 2001: 13). A meu ver, com toda consideração pela profundidade e alcance da obra de Gilberto Freyre, o Brasil da democracia racial é um pouco o efeito de sua reflexão e também de sua imaginação. Hoje, os antagonismos brasílicos vêm-se equilibrando cada vez mais precariamente. E a urbanização talvez tenha afastado demais as casas-grandes das novas senzalas, as quais vão ganhando cada vez mais os contornos de quilombos – lugares também de resistência e conflito, não mais apenas de interpenetração. 5 Guimarães lembra que Freyre era até avesso a ela, “posto que evocava uma contradição em seus termos (as raças são grupos de descendência e portanto fechados, ao contrário da democracia que ele, Freyre, pregava)” (Guimarães, 2001: 12).
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A voz cordial Ao lado da democracia racial, outro conceito procura dar conta da especificidade do Brasil: o de cordialidade. Curiosamente, a expressão proposta por Sérgio Buarque de Holanda foi, desde o início, mal interpretada; e o uso mais corrente do termo hoje remete justamente às interpretações equivocadas, passando por cima de seu sentido original. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque preconizou que a cordialidade seria a nossa contribuição para a civilização: “daremos ao mundo o homem cordial” (1995: 146). Essa expressão – que na verdade diz respeito à indistinção entre as esferas pública e privada que caracterizaria nossa formação social – continua rendendo confusões, sempre entendida como sinônimo de bondade. Não vou me deter muito neste debate. Para quem desejar se aprofundar mais indico a leitura de Literatura e cordialidade, de João César de Castro Rocha. Ali veremos que a acepção cotidiana da cordialidade, que é a mais freqüente, tem muito a ver com a visão de Gilberto Freyre, que associava a sociabilidade brasileira à miscigenação. Em Sobrados & mucambos, Freyre afirmava que “a simpatia à brasileira transforma esse rito como já dissemos essencialmente apolíneo de amizades entre homens em expansão caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de cordialidade” (apud Castro Rocha, 1999: 164). Por esse viés, a idéia de cordialidade é instantaneamente assimilada à de democracia racial, dando origem a uma espécie de par explicativo de nossa singularidade de nação: o Brasil cordial, terra da democracia racial. Isso me parece ficar claro, por exemplo, em um texto como o de Joel Rufino dos Santos, que num capítulo de seu livro O que é racismo? (Santos, 1984: 42) convida “as pessoas que ainda crêem na ‘democracia racial brasileira’, ‘na cordialidade inata do brasileiro’, e balelas que tais, a prestarem um pouco mais de atenção à sua volta”. Passa daí à citação de casos de tortura e racismo denunciados nos jornais.
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O mesmo pode ser identificado num texto de Muniz Sodré, onde argumenta que “a obra de Gilberto Freyre atrai os que não duvidam da democracia racial nem de sua cordialidade idiossincrática” (Sodré, 1999: 104); ou numa passagem em que Roberto DaMatta coloca o termo ao lado da questão das três raças, criando um plano em que a hierarquização e o conflito na sociedade brasileira são contrapostos por esta questão, que uniria “a sociedade num plano biológico e natural, domínio unitário, prolongado nos ritos de umbanda, na cordialidade, no carnaval, na beleza da mulher (e da mulata) e na música...” (DaMatta, 1984: 70). Certamente, é à noção descrita por João César de Castro Rocha – à acepção de base freyreana – que se referem aqueles que duvidam desse caráter cordial de nossas relações sociais. Como cordialidade remete, etimologicamente, àquilo que vem do coração, é natural que se associe esse conceito a aspectos positivos como bondade, afetividade, gentileza. E também que se insista no fato de que o brasileiro já nada tem de cordial. Mesmo assim, é impressionante a força, a quase unanimidade que essas noções acabaram adquirindo numa nação que abriga a segunda maior população negra do mundo (atrás apenas da Nigéria). Isso, a meu ver, começa a mudar radicalmente com a popularidade do rap, notadamente do grupo Racionais MCs, uma vez que estabelece com a sociedade uma relação mais densa e mais tensa do que os movimentos negros até aqui puderam lograr, trazendo para a arena das manifestações culturais populares um conteúdo, digamos, hostil e menos esperável por parte dos entusiastas do Brasil miscigenado. Creio mesmo que Gilberto Freyre talvez entendesse que os rappers têm uma forma não-brasileira de expressar-se culturalmente. A identificação pela imprensa e setores da intelectualidade da crescente hostilidade, inclusive a proveniente do discurso rapper, contrapõe-se não à cordialidade como proposta por Holanda, mas àquela oriunda da obra de Freyre ou, mais amplamente, das interpretações do senso comum.
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Pode-se até discutir se a cordialidade ainda dá o tom de nossas relações sociais. Mas, sem dúvida, há pelo menos duas décadas é perceptível a radicalização da hostilidade no ambiente urbano contemporâneo. Embora esse não seja um fenômeno novo, ele autoriza, ao lado dos textos preferentemente celebrativos, uma leitura a contrapelo, mais duramente crítica, do legado de Gilberto Freyre. Para Muniz Sodré, por exemplo, as críticas que lhe são dirigidas têm fundamento na medida em que sua obra se apresenta como um manancial de fórmulas conciliatórias e, por outro lado, porque a síntese cultural levada a cabo pela mestiçagem não foi capaz de erradicar o racismo. Segundo esse ponto de vista, “conciliação e síntese são caminhos da discriminação que não se assumem como estereótipos de dominação” (Sodré, 1999: 104). A meu ver, o resultado das tentativas de formação – e, às vezes, de imposição, como salienta Sodré – de uma identidade brasileira baseada na miscigenação teve como resultado uma situação na qual o indivíduo até reconhece o que ele não é, nem pode vir a ser: “branco”. Mas ele também sabe o que, definitivamente, não quer ser. E, diante não apenas do que se pode ler em obras acadêmicas mas também do que se pode observar nas relações sociais cotidianas, o que ele não quer ser é “negro”. Ao assumir e promover a identidade racial negra, os rappers dão início a um processo de auto-definição que pode ser tão produtivo quanto positivo. Afinal, os artistas do mundo hip-hop já são racializados de antemão. O processo de racialização é dado sempre de fora; é o olhar do outro que define, rotula e, às vezes, estigmatiza. Os rappers, por sua vez, trabalham essa questão em outro patamar: o da afirmação positiva da condição racial e, por extensão, territorial, valorizando a identidade negra e favelada. Desde já, quero deixar claro: não acredito que virar pelo avesso o traço negativo que marca a racialização das relações possa representar uma solução definitiva e permanente. Estou tentando dizer que, num país que se julga imune a tensões de natureza racial,
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todos os problemas que os negros e outras etnias vivem se devem, conseqüentemente, a razões sociais, não raciais. Como, na minha opinião, os problemas raciais existem de fato, pergunto-me: como superar esta situação se se parte do pressuposto de que não há racismo, nem raças!, e que no Brasil é tudo misturado e harmônico? Acho que esse é o papel determinante que os rappers estão cumprindo, o de exibir a ferida. A partir do rap podemos discutir as coisas como elas são. Não biologicamente, é claro, mas socialmente há negros, há brancos (como notou Hermano Vianna) e a relação não é nada cordial.6 Neste momento, então, as possibilidades concretas de diferenciação passam a apresentar uma perspectiva melhorada, mais abrangente. O indivíduo agora acha um espaço mais confortável para ser negro e, mais importante, pode escolher ser negro. 6 Já mencionei haver manifestações anteriores na história cultural brasileira que realizam um movimento semelhante. Entretanto, a ênfase que o rap coloca na questão racial e, sobretudo, a insistência na desconstrução do “mito da democracia racial” me parecem realmente informações novas trazidas pela música rap.
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MV BILL, em uma edição do Conexões Urbanas, evento promovido pelo Grupo Cultural AfroReggae em favelas do Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae. PUBLIC ENEMY, Fear of a Black Planet (1990). Capa do CD. PUBLIC ENEMY, ingresso para show. São Paulo, 1991. AFRIKA BAMBAATAA, ilustração a partir de foto. DMN, H.Aço (1999). Capa do CD (detalhe). VIELA 17, SNJ, APOCALIPSE 16, entre outros. Montagem capas de CD. (arquivo pessoal) DUIN, grafiteiro da Santa Crew (crew de Santa Teresa, no Rio de Janeiro). Foto: Ierê Ferreira/arquivo AfroReggae. AIRÁ, O CRESPO. Grafiteiro carioca. OS GÊMEOS. Graffiti (detalhe). Vigário Geral, Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae). DUGHETTU, grupo carioca. Foto: arquivo pessoal/ Oficina de Fotografia do grupo Spetaculu. THAÍDE E DJ HUM. Preste Atenção (1996). Detalhe do encarte do CD. Foto: JC Santos. RAPPIN HOOD. Foto: arquivo F&A. JORGE LUCIANO, B.Boy. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae). DJ TR, da Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Já atuou ao lado do rapper MV Bill (a quem considera o principal responsável por sua iniciação no movimento). Foi coordenador da ATCON (Associação Atitude Consciente). É membro da Zulu Nation Brasil e autor de Acorda Hip-hop! - Despertando um Movimento em Transformação (publicado na mesma coleção em que saiu este livro). Também foi Pesquisador do Projeto “Geração Hip-hop” (SESC-RJ/ FINEP) e Educador Social. (Arquivo LUB – Liga Urbana de Basquete).
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DEF YURI, rapeador, compositor, colunista, produtor e ativista da cultura hip-hop, desenvolveu trabalhos no projeto Coalizão Social e na ONG Viva Rio, com foco em arte, cultura, segurança pública, direitos humanos, justiça social, rede de participação cidadã, prevenção à violência, comunicação e campanhas temáticas como “Hip-hop na linha de frente contra o tabaco” e “Aliança hip-hop pelo sim”. Em 2005, atuou em Porto Príncipe, Haiti, como consultor do programa de desarmamento, desmobilização e reinserção da ONU. Foto: Arquivo pessoal. DJ KL JAY, Racionais MCs. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo Afro-Reggae. ATITUDE FEMININA, grupo de rap brasiliense. Foto: Welber de Souza. GOG, rapper brasiliense no evento de lançamento do CD Hip-Hop pelo Rio. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae. MANO BROWN, Racionais MCs. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae. DJ KL JAY, KL Jay na Batida, Equilíbrio (2002). Detalhe do encarte do CD. DJ RAFFA, um dos principais produtores de rap do Brasil. Filho do maestro Cláudio Santoro, Raffa começou no hip-hop como b-boy. Integrou o grupo Os Magrellos. Tornou-se engenheiro de som, produtor e uma grande referência da cultura hip-hop no país. Foto:Márcio Motokane. JAPÃO, rapper do grupo Viela 17, Brasília. Foto: Márcio Motokane. DMN, H.Aço (1999). Detalhe do encarte do CD. GOG, rapper. Foto: Jandir Ribeiro. MV BILL, apresentação no Conexões Urbanas, evento promovido pelo Grupo Cultural Afro Reggae em favelas do Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae. CÂMBIO NEGRO, grupo de rap brasiliense. Capa do CD Câmbio Negro (1998). BATUQUE NO GUETO, Bragga. Grafite (detalhe). Favela Furquim Mendes, em Vigário Geral, Rio de Janeiro. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo AfroReggae. RACIONAIS MCs, Sobrevivendo no Inferno (1998). Capa CD (detalhe).
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REDENÇÃO DE CAM, Brocos y Gómez (1895). Óleo sobre tela (reprodução). NEGA GIZZA, Cidade de Deus. Foto: Ierê Ferreira/ arquivo Afro Reggae. GOG. Foto: Jandir Ribeiro. CELSO ATHAYDE, produtor e empresário de hip-hop, coordenador da Central Única de Favelas - CUFA, recebendo o Prêmio Orilaxé (categoria Direitos Humanos), do AfroReggae, em 2006. Foto: Rogério Resende. MANO BROWN, Racionais MCs. Foto: Ierê Ferreira.
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Sobre o autor Nascido no bairro de Olaria, subúrbio carioca, Ecio Salles é mestre em Literatura Brasileira pela UFF. Sua dissertação abordou a produção textual da cultura hip-hop no Brasil. Foi coordenador de Pesquisa e Conteúdo do grupo artístico Afro Samba, do Grupo Cultural Afro Reggae; hoje, integra o Conselho Editorial da revista do grupo, a Conexões Urbanas. Atualmente, é doutorando em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ.
Este livro foi composto em Akkurat. O papel utilizado para o miolo foi o Pólen Bold 90g/m2. Para capa o papel é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2. A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica Imprinta Express LTDA. em novembro de 2007, no Rio de Janeiro. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.