Terceiro carril e coexistência de bitolas para o tráfego de mercadorias

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Joaquim Brito dos Santos / Francisco Asseiceiro

Terceiro carril e coexistĂŞncia de bitolas para o trĂĄfego de mercadorias

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Terceiro carril e coexistência de bitolas para o tráfego de mercadorias

Título: Terceiro carril e coexistência de bitolas para o tráfego de mercadorias Autores: Joaquimm Brito dos Santos e Francisco Asseiceiro Coordenação editorial: Transportes & Negócios / Riscos Editora Imagem da capa: Adif

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Os textos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores e não vinculam nem a ADFERSIT nem o TRANSPORTES & NEGÓCIOS

Março 2014

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Bitolas de via-férrea Designa-se por bitola de uma via-férrea a distância entre os bordos interiores dos carris que a constituem. Contam-se no mundo mais de duas dezenas de bitolas, oito das quais existem em Espanha, entre a mais estreita de 600 mm em três locais de interesse turístico e a mais larga de 1674 mm na Linha 1 do Metro de Barcelona, passando, entre outras, pela bitola ibérica de 1668 mm na rede convencional da ADIF, pelos curiosos 1445 mm do metropolitano de Madrid e pela bitola internacional, de 1435 mm, em algumas linhas do metro de Barcelona, no metro de Sevilha, nas linhas de alta velocidade e nas novas ligações aos portos mediterrânicos e cantábricos.

Fig. 1 - Terceiro carril entre Girona e Figueres (Catalunha)

Em Portugal, são cinco as bitolas em serviço: bitola ibérica na rede de via larga da REFER; bitola internacional no Metro do Porto, Metropolitano de Lisboa, Metro Sul do Tejo em Almada e Seixal, e Elevador do Bom Jesus em Braga; bitola métrica (1000 mm) na via estreita da REFER e no Caminho de Ferro Sintra-Atlântico; bitola de 900 mm nos elétricos da Companhia de Carris de Ferro de Lisboa e bitola de 600 mm utilizada nos minicomboios da Praia do Barril e da Praia da Caparica. 5


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Fig. 2 - Via algaliada na ligação Douro - Corgo

A construção de caminho de ferro pesado com diferentes bitolas foi um fenómeno comum em vários lugares do mundo, mas logo na segunda metade do século XIX procedeu-se à unificação de bitolas em muitas das redes. Vinte anos após a abertura ao público da primeira linha inglesa, em 1825, com bitola de 1435 mm, esta bitola foi estabelecida em 1845 pelo Parlamento inglês como bitola unificada inglesa, e fixada em 1907 na Conferência Internacional de Berna como bitola normal. Em Espanha, a Real Ordem de 1844 fixou a bitola em seis pés castelhanos, 1674 mm, para a rede ferroviária de interesse geral. Nos anos cinquenta do século XX esta bitola foi estreitando até aos actuais 1668 mm para reduzir a folga entre rodados e carris. A bitola internacional é a mais comum com cerca de 60% da extensão total das ferrovias mundiais. As bitolas largas e estreitas correspondem respectivamente a 23% e 17%, segundo algumas fontes. A tendência actual nalgumas regiões do mundo é de expansão da bitola internacional, principalmente nas zonas limítrofes das redes onde já existe, e nos metros ligeiros urbanos. Porém, no transporte de mercadorias conta bem mais a uniformização de bitola do que a sua medida, o que sublinha a importância, em 6


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muitos casos, das bitolas largas e das bitolas estreitas existentes em vários países e continentes.

Coexistência de bitolas Mudar a bitola num sistema ferroviário implica estudar os processos de coexistência de bitolas e serão estes processos que determinam o sucesso da mudança. Existem muitos casos de vias de três ou de quatro carris em que coexistem pares de bitolas há várias décadas. A construção ou adaptação dessas linhas para duas bitolas correspondeu à necessidade de coexistência de sistemas ferroviários diferentes, por exemplo na interface entre zonas montanhosas e zonas mais planas de um mesmo país ou região, ou nos limites de áreas de influência económica, com vertente colonial, geopolítica, etc. Salvo nos casos de grande destruição de infra-estruturas ferroviárias, como na Segunda Guerra Mundial, os processos de mudança de bitola pressupõem coexistência de bitolas por períodos de tempo que se admitem por vezes longos e até mesmo indeterminados. A duração da exploração a duas bitolas na mesma via dependerá da vitalidade das solicitações que determinam o uso de cada uma delas, passando-se à utilização de uma única bitola nessa linha ou corredor quando a outra bitola se torna obsoleta, sem actividade económica que a suporte.

Fig. 3 - Terceiro carril entre Tardienta e Huesca (Aragão)

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Mudar a bitola num sistema em exploração é um processo de dimensão muito superior à simples mudança de posição dos carris numa travessa. A complexidade está nos restantes componentes da infra-estrutura ferroviária em serviço: material circulante tractor e rebocado, oficinas e parques de material circulante, terminais portuários e fabris, plataformas logísticas, estações e todos os feixes de linhas com inúmeros aparelhos de mudança de via e demais instalações. A designação muitas vezes usada de mudança de bitola não incorpora o factor tempo que a coexistência de bitolas por definição contém. Planear uma mudança de bitola para que num determinado dia, semana ou mês a exploração de uma linha ou porção de rede passe a efectuar-se com material circulante de outra bitola é uma tarefa inviável na maioria dos casos minimamente complexos. A mudança de bitola é apenas a resultante da aplicação de processos de coexistência de bitola que as especificidades territoriais, de rede, e principalmente económicas, determinem, permitindo flexibilidade e ajuste de opções em cada fase. São estes processos de coexistência sucessivos e alinhados com uma estratégia global orientada que importa estudar em resposta a diferentes utilizações para os quais a ferrovia vai sendo solicitada a cumprir a sua função. Assim, pensar numa mudança de bitola subvalorizando a importância da coexistência de bitolas em termos das tecnologias disponíveis e do factor tempo, afigura-se perigosamente redutor. Para exemplificar, consideremos um exercício académico de planeamento de mudança da bitola ibérica para internacional numa pequena linha quase isolada da Rede Ferroviária Nacional, como é o caso da Linha de Cascais. Mudar os carris nas travessas é sempre o mais fácil, mas o desafio começa a partir daí! As implicações são múltiplas : no material circulante, nos 8


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parques de recolha, nas oficinas de manutenção, nas plataformas de embarque, no alinhamento da catenária, no gabarit de obstáculos, nas ligações aos terminais, etc, etc, e não podemos esquecer os custos dessas operações e as consequências para a operação comercial. No actual quadro de liberalização do transporte ferroviário de passageiros e de mercadorias, no contexto da UE, a coexistência de bitolas na mesma linha permite ao Estado deixar para os diversos operadores a decisão de optarem pelo uso de uma ou outra bitola, em função do material circulante de que dispõem. Se se optasse por mudar uma linha das redes ibéricas para bitola nternacional, os operadores ferroviários, que actualmente detêm material circulante de mercadorias em bitola ibérica, ficariam nesse momento impedidos de circular nessa linha com todas as consequências para o Estado decorrentes dos compromissos do licenciamento.

Património ferroviário existente A coexistência de bitolas é também determinante no processo de valorização do património ferroviário existente – material circulante e infraestrutura – e da sua integração com o tecido económico e as actividades produtivas, em particular indus-

Fig. 4 - Terceiro carril no troço de ensaios Olmedo-Medina del Campo

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O país dispõe de uma rede construída há mais de 150 anos dotada de linhas, muitas delas electrificadas, ramais, pontes e viadutos, estações, instalações oficinais, ligações a portos e fábricas, com continuidade para Espanha, milhares de veículos – todo o tipo de material tractor e rebocado – que não se pode eliminar nem fazer de conta que não constitui um activo relevante. Não se está agora a iniciar a instalação de um sistema ferroviário e a rede de bitola ibérica existe e assegura efectivamente a ligação aos portos e às fábricas, no contexto actual de tráfego predominantemente ibérico. De facto, 70% da carga transportada por rodovia nas importações e exportações entre Portugal e os restantes países da UE faz-se com Espanha! Neste país, tal como em Portugal, a rede ferroviária de bitola ibérica está subaproveitada, representando o modo ferroviário apenas cerca de 5% da quota de mercado. Se não tem sido fácil aumentar a quota do transporte ferroviário neste importante contexto económico da Península Ibérica, muito mais difícil será demonstrar que tal se conseguirá além Pirenéus.

Quadro 1 - Alguns países com troços de via com duas bitolas

Para esse primeiro objectivo ibérico há que aproveitar as potencialidades do património construído, e sucessivamente, de acordo com as necessidades, introduzir o terceiro carril nas linhas vocacionadas para o tráfego de mercadorias, ligando-as às linhas com terceiro carril que vierem a ser também assim remo10


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deladas do lado espanhol. Entre Medina del Campo e a fronteira portuguesa de Vila Formoso está prevista a instalação do terceiro carril (quadro 2); numa segunda fase, em função da intensidade da procura do tráfego de mercadorias em bitola internacional nas linhas com terceiro carril, haverá que ponderar, então, a necessidade de novas linhas em bitola internacional ligando-as às linhas de bitola internacional do lado espanhol com pendentes compatíveis com o transporte de mercadorias até à fronteira francesa, sabendo-se que as linhas que saem de Madrid para norte, em bitola internacional, apenas têm pendentes adequadas para o tráfego de passageiros.

Vias de três e de quatro carris Ambas as soluções são válidas desde que garantam a coexistência de bitolas. Quando a diferença entre bitolas é suficientemente grande, como por exemplo entre a bitola métrica e a bitola internacional ou qualquer das bitolas largas, a coexistência de bitolas pode ser assegurada com quatro carris na mesma travessa, o que apresenta vantagens em termos de distribuição de cargas e de posição do fio de contacto no caso das linhas electrificadas.

Fig. 5 - Linha com travessa para quatro carris

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Nesta fotografia recente pode observar-se um troço de via em bitola 1000 mm preparada para receber os carris da bitola de 1674 mm, perto da fronteira entre a Índia e o Bangladesh, na região indiana de Assam. Neste exemplo, a travessa de quatro carris permite a coexistência de bitolas. A diferença entre a bitola ibérica e a bitola internacional não é suficientemente grande para que na mesma travessa sejam colocados os quatro carris em posição de garantir a coexistência de bitolas; a coexistência destas bitolas apenas é possível com três carris, acrescentado um carril no interior dos dois carris da bitola ibérica.

Fig. 6 - Via de três carris com travessa centrada no semieixo

Em ambos os países ibéricos foram construídos nas últimas décadas do século passado muitos quilómetros de via férrea com travessas de quatro furações, sendo as duas exteriores para a bitola ibérica e as duas interiores para a bitola internacional. Estas travessas, que se convencionou designar por polivalentes, não permitem a coexistência de bitolas pois apenas podem ser instalados os dois carris de uma bitola de cada vez. Pensava-se na altura que quando se pretendesse abandonar a 12


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bitola ibérica bastaria mudar os carris para a posição da bitola internacional, fixando-os nas furações interiores. Era o procedimento admitido na fase idílica da migração de bitola, quando a questão era pensada essencialmente ao nível dos carris e das travessas.

Fig. 7 - Linha de alta velocidade Ourense-Santiago em bitola 1668 mm

O único caso de aplicação conhecida de travessas polivalentes com efectiva utilidade é o da primeira linha de alta velocidade da Galiza, entre Ourense e Santiago, na extensão de 87,5 km, projectada para a bitola 1435, em via dupla electrificada. No entanto, a ADIF optou, numa primeira fase, por instalar a via em bitola ibérica com travessas polivalentes, evitando que esse troço ficasse isolado até à colocação em serviço da linha completa de alta velocidade Madrid-Galiza, prevista para finais de 2015. Com esta solução evitou-se a construção de novos aparelhos de mudança de bitola e a instalação de terceiro carril na linha Santiago-A Corunha, traduzindo-se, como refere a ADIF, numa importante poupança tanto em investimento como em exploração. Nesta situação particular, a travessa polivalente cumpre a sua função. Será de facto fácil mudar a posição dos carris para as fixações interiores para que fiquem com a bitola internacional, pois este troço ligará nas extremidades aos novos troços de alta velocidade nessa altura ainda sem serviço. 13


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Fig. 8 - Adaptação da travessa polivalente para a via de três carris

Em Junho passado, nas VII Jornadas Internacionais da Fundación Camiños de Hierro, em Córdoba, a ADIF apresentou um estudo ainda não concluído sobre um sistema de chapins que permite aproveitar as travessas polivalentes instaladas nalguns troços do corredor mediterrânico, dotando-as de condições para nelas ser instalada via de três carris que possibilita a coexistência das bitolas ibérica e internacional.

Evolução do terceiro carril em Espanha No processo de aplicação do terceiro carril em Espanha, distinguem-se pelo menos as seguintes fases: i) Construção de um tramo de ensaios concluído em 2001, em Medina del Campo, perto de Valladolid, num troço de via desactivado, com 14,1 km de extensão de via a três carris e diversos equipamentos e aparelhos de via essenciais para a constituição de um sistema 14


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integrado com duas bitolas. Este tramo de ensaios tem uma recta de 10 km o que permite circular até 250 km/h; ii) Posteriormente, procedeu-se à instalação do terceiro carril entre as estações de Tardienta e Huesca, na zona pirenaica de Aragão, numa extensão de 21,4 km, ainda num regime de exploração condicionado; iii) De seguida, foi instalado o terceiro carril em dois troços de via na Catalunha, entre o terminal portuário de Morrot e Nudo de Molet e entre Girona e Figueres na extensão total de 86 km, tornando possível a circulação de comboios de mercadorias em bitola internacional entre o porto de Barcelona e a fronteira francesa, no itinerário esquematizado na figura 9.

Fig. 9 - Ligação porto de Barcelona - fronteira francesa

Esta ligação de mercadorias em serviço desde Dezembro de 2010 utiliza o troço Nudo de Mollet - Girona, da linha da alta velocidade Barcelona-fronteira francesa já construída para tráfego misto de passageiros e mercadorias. No total, esta ligação tem 168 km dos quais, 81 km em via dupla e 87 km em via única. Os sistemas de segurança instalados neste corredor são ASFA e ERTMS; iv) Na próxima fase irão ser concretizados os investimentos anunciados pelo Ministério de Fomento espanhol em 19 de Outubro de 2011 (quadro 2). 15


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Alguns aspectos técnicos da via de três carris O dimensionamento das travessas e o estudo da posição desencontrada das fixações interiores dos carris mais próximos terão sido os aspectos de mais fácil resolução. Em seguida resolveu-se a problemática dos aparelhos de via e da catenária e, por último, noutro patamar de dificuldade técnica, as questões da sinalização solucionadas com recurso a contadores de eixos.

Fig. 10 - Catenária e painel de controlo na via de três carris Troço Girona-Figueres

Os equipamentos de via foram repensados para a via de três carris, designadamente os aparelhos de mudança de via (AMV), aparelhos de dilatação (AD), aparelhos carriladores (AC) e foi criado o aparelho de mudança de lado do terceiro carril (AML). De igual modo foram criados AMV com funcionalidades novas para dar resposta ao maior número de condições de desvio que o terceiro carril introduz. O estudo de implantação dos AMV em plena via obedece a uma regra que não existia na via de dois carris. Por questões óbvias de segurança não pode haver situações em que na plena via a lança fique na posição ilustrada na figura 12, quando o itinerário está permitido no ramo directo. 16


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Acresce que este AMV - instalado na entrada da estação de Huesca - tem ainda uma cróssima adicional junto da lança, contribuindo para fragilizar o sistema. Apenas em locais de baixas velocidades, em estações terminais, como é o caso de Huesca, e não havendo alternativa,se pode considerar a aplicação dum AMV deste tipo.

Fig. 11 - Travessas normais e de três carris e pormenor da fixação Troço Girona-Figueres

Fig. 12 - AMV não permitido em plena via Estação terminal de Huesca

Em plena via as condições básicas de instalação dos aparelhos de via encontram-se esquematizadas nas imagens seguintes, sendo: a - AMV de bitola internacional; b - AMV de bitola ibérica; c – AML do terceiro carril. 17


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Fig. 13 - Instalação dos AMV na via de três carris

Estes esquemas não esgotam a matéria, já que existem muitos outros tipos de desvios. Estes apenas procuram evidenciar a necessidade de utilização dos AML. Para evitar a situação não permitida em plena via indicada na figura 12, o ramo desviado do AMV de bitola internacional tem de sair para o lado oposto ao terceiro carril e o ramo desviado do AMV de bitola ibérica tem que sair para o lado em que está o terceiro carril. Dado que frequentemente as necessidades de instalação dos AMV não permitem seguir esta regra, é então preciso mudar de lado o terceiro carril. Ora é justamente por esta razão que foi concebido o AML.

Fig. 14 - Instalação de dois AMV de bitola internacional com saída para lados opostos

Fig. 15 - Instalação de dois AMV de bitola ibérica com saída para lados opostos

O AML assinalado com a letra c, necessário instalar entre os dois AMV da mesma bitola com desvios para lados opostos, tem a extensão aproximada de 30 m. O recurso a este aparelho introduz sérias dificuldades nas adaptações a realizar para introduzir o terceiro carril onde existem vários AMV muito próximos, ou mesmo topados, em locais de manifesta falta de espaço. 18


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Fig. 16 - Aparelho de mudança de lado do terceiro carril

Na imagem anterior, o terceiro carril muda do lado esquerdo para o lado direito e pode observar-se pela posição das agulhas que o comboio que se aproxima circula pelos carris da bitola ibérica. Na imagem seguinte pode ver-se a situação que justifica a instalação deste AML, diferente e de maior complexidade em relação às apresentadas nos dois esquemas anteriores. Trata-se de uma zona onde o terceiro carril muda de via através de dois AMV em bitola internacional assentes em diagonal passando da que está à direita, na imagem, para a que está à esquerda. Neste local, o layout inclui os seguintes aparelhos e tipos de via: a AMV de bitola internacional; b - AMV de bito- Fig. 17 - Aparelhos de via para três carris la ibérica; c – AML do Troço Girona - Figueres 19


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terceiro carril; d - via dupla de bitola ibérica; e - via com terceiro carril. Note-se que o carril exterior do AMV de bitola internacional apenas cruza um carril e que o carril exterior do AMV de bitola ibérica cruza dois carris. Este AMV de bitola ibérica faz diagonal com o AMV normal de via a dois carris que se vê no canto superior direito da figura 17.

Fig. 18 - Terceiro carril. Mudança de via em fim de troço a três carris Troço Girona - Figueres

O terceiro carril pode mudar de posição em três situações: i) Mudança de lado numa mesma via através de um AML; ii) Mudança de via, por exemplo da via ascendente para a via descendente, numa via dupla – com sinalização banalizada – através de uma diagonal constituída por dois AMV de bitola internacional, como se vê na primeira imagem da figura 18; iii) Mudança na extremidade da via a três carris para duas vias independentes cada uma com a sua bitola, como se pode observar na segunda imagem da figura 18. As imagens da figura 19, no mesmo local, permitem constatar as condições de implantação de uma diagonal que liga o itinerário em bitola ibérica, numa via dupla em que uma das vias tem o terceiro carril. O pormenor da cróssima evidencia que nenhum factor de insegurança acresce relativamente a 20


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um AMV para vias normais de dois carris pelo facto de serem cruzados dois carris em vez de um. Do lado da lança não se verificam diferenças.

Fig. 19 - Diagonal em bitola ibérica. Pormenor da cróssima com o terceiro carril. Troço Girona - Figueres

Fig. 20 - Via de três carris. Aparelho carrilador e aparelho de dilatação Troço Girona - Figueres

A ponte metálica na figura 21 tem na sua aproximação o AC e o AD da figura 20 e ambos foram adaptados para as novas condições da via. O carril de segurança que assegura a continuidade com o AC está à distância que impossibilita o verdugo do rodado da bitola ibérica de tocar no talão do aparelho de dilatação do terceiro carril. 21


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Fig. 21 - Via de três carris. Ponte metálica Troço Girona - Figueres

Há que garantir que o movimento máximo do AD não implica um deslocamento excessivo do talão para a zona de passagem do verdugo da roda, devendo atender-se conjugadamente à posição mais adequada do carril de segurança.

Fig. 22 - Comboio de mercadorias na linha de alta velocidade Barcelona fronteira francesa

A instalação do terceiro carril nos dois troços de via de bitola ibérica (Figura 9) permite a circulação de comboios de mercadorias entre o porto Barcelona e a fronteira francesa utilizando um troço de 82 km da linha de alta velocidade apta para tráfego misto. 22


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Coexistência de bitolas para o tráfego de passageiros O sistema de coexistência de bitolas baseado na via com a introdução do terceiro carril, destina-se essencialmente ao tráfego de comboios de mercadorias. Em relação ao tráfego de comboios de passageiros, o sistema de coexistência de bitolas é predominantemente baseado no material circulante, dotado para o efeito de bogies de bitola variável. Este sistema é economicamente viável apenas no material circulante de passageiros.

Fig. 23 - Aparelho de mudança de bitola em Roda de Bará (Tarragona)

Segundo a ADIF, existem 13 aparelhos de mudança de bitola (AMB) na rede espanhola, onde se realizam anualmente 24 000 operações de mudança de bitola sem paragem. Os AMB vão-se deslocando para sucessivos pontos de enlace entre as novas linhas de bitola internacional e as linhas de bitola ibérica. O primeiro AMB entrou em funcionamento em 1969 e desde então tem-se verificado evolução técnica significativa, sendo que a última geração permite a mudança de bitola do material circulante CAF e Talgo. 23


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Três documentos de referência Regressando à questão do tráfego de mercadorias, atente-se o que a este respeito referem os três importantes documentos, Plano Estratégico de Infraestruturas y Transportes (PEIT-2005), PEIT-Mercancías 2010 e Nota de Prensa - Min. Fomento - 19/10/2011: i ) O PEIT-2005 é omisso em relacionar expressamente o tráfego de mercadorias com as novas linhas em bitola internacional; de facto, nenhuma das linhas de alta velocidade, em serviço, que irradiam de Madrid, têm pendentes adequadas para mercadorias; ii) Posteriormente, no PEIT-Mercadorias 2010, sem abordar a questão da bitola, é contudo prevista a “Liberación de capacidade en líneas convencionales para mercancías” e a “Apuesta económica del Mº Fomento-ADIF para acondicionar la Red Convencional para el TFM”. Finalmente, sobre o plano de acção para a

Fig. 24 - PEIT Mercancías 2010. Página 46

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melhoria das infraestruturas ferroviárias leia-se a página 46 do PEIT-Mercancías. É no âmbito do conceito de intervenção sintetizado neste documento que se enquadra a ligação em bitola internacional aos portos de Santander e Bilbau no Cantábrico e aos portos da costa Mediterrânica de Barcelona a Algeciras, bem como a introdução do terceiro carril nas linhas de bitola ibérica vocacionadas para o tráfego de mercadorias. iii) A nota de imprensa do Ministério do Fomento de 19/10/2011 divulga os investimentos aprovados pela Comissão Europeia e sintetizados no quadro 2, que incluem 15 973 milhões de euros para a instalação do terceiro Quadro 2 - Revisão da Rede Transeuropeia de Transportes Proposta do Governo espanhol aceite pela Comissão Europeia

Considerações finais Estes sistemas de coexistência dão corpo ao que estabelece o PEIT-2005: “El esfuerzo español para incorporar las condiciones de interoperabilidad contempla la paulatina y coordenada incorporación del ancho de vía UIC a la red española, previendo una adecuada compatibilidad sobre las líneas existentes y las nuevas”. A “compatibilidade sobre las líneas existentes e las 25


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nuevas” referida no PEIT-2005 traduz a necessidade de coexistência sobejamente salientada ao longo deste texto. Nos esquemas seguintes apresentam-se dois casos de potencial aplicação de via a três carris em Portugal.

Fig. 25 - Esquema de faseamento da linha de alta velocidade Lisboa-Porto

Este primeiro caso permite, numa primeira fase, descongestionar os troços de maior intensidade de tráfego da Linha do Norte, nas aproximações a Lisboa e Porto, sendo os dois primeiros troços de 50 km construídos com terceiro carril. A ligação porto de Aveiro – Vilar Formoso, com terceiro carril, justifica-se em termos de exploração já que a Linha da Beira Alta apresenta actualmente folga de capacidade, a que acresce o facto de ter continuidade do lado espanhol com o mesmo tipo de via prevista entre Fuentes de Oñoro e Medina del Campo (Quadro 2). A prudência do lado espanhol com a opção pelo terceiro carril neste troço, contrasta com a 26


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precipitação insustentável da ideia de construção de uma nova ligação em bitola internacional de Aveiro até fronteira, sabendo-se que aí ligará à via de três carris espanhola, no corredor convencional.

Fig. 26 - Esquema da ligação entre o porto de Aveiro e Vilar Formoso, com terceiro carril

A ligação para o tráfego de mercadorias entre Sines e Caia aqui apresentada reduz em 170 km o itinerário que ainda hoje se pratica, com passagem pelo Entroncamento, Abrantes e Torre das Vargens. Entre Évora e Caia, esta ligação já estava prevista no projecto da alta velocidade embora com outra concepção. Caso se confirme, como tudo parece indicar, a chegada da bitola internacional a Caia e desde que exista solução credível para o tráfego de mercadorias nesta mesma bitola, de Madrid 27


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para Norte, está colocada do lado português a aplicação do terceiro carril, nalguns troços do itinerário Sines-Caia.

Fig. 27 - Esquema da ligação Sines-Caia em bitola ibérica e em bitola internacional

Como se observa no esquema da Figura 27, entre Sines e Grândola e entre Évora e Caia serão troços novos com terceiro carril. Entre Grândola e Pinheiro e entre Águas de Moura e Poceirão será introduzido o terceiro carril na via existente. Por fim, entre Pinheiro e Águas de Moura será construída uma via em bitola internacional sobre a plataforma já existente, ainda sem utilização. As outras ligações apresentadas no esquema dizem respeito ao tráfego de passageiros. Esta solução de ligação valoriza o património existente numa perspectiva de optimização de soluções e recursos. Estes são três exemplos de opções que aproveitam vantagens da coexistência de bitolas ou, preferindo-se, de compatibilidad de bitolas. E importa salientar a relação entre o desenvolvimento do caminho de ferro em Espanha e a sua pujante indústria siderúr28


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gica e metalomecânica, de produção de carris, componentes de via e material circulante, integrando sectores afins de mais elevado nível tecnológico. E tudo tem acontecido à revelia da discussão sobre a necessidade da bitola standard… que na verdade é um “não problema”, e nunca o será futuramente se adoptarmos a via bibitola de 3 carris! Liberdade total aos operadores. Para Portugal, o mercado real para transporte de mercadorias por meio ferroviário resume-se basicamente à Península Ibérica. A alteração futura desta evidência, que naturalmente seria desejável, passaria pela condescendência da SNCF e da DB, abrindo corredores e negócios que dominam, mas tanta fé é coisa que não temos. Na melhor das hipóteses podemos sonhar em levar mercadorias até à fronteira Espanha/França e saímos de jogo! O futuro do transporte ibérico de mercadorias por caminho de ferro tem muito mais a ver com factores “menores”, como terminais adequados, comprimento máximo dos comboios, pendentes até 12‰, electrificação nas zonas de fronteira entre os dois países, e já agora, com alguma reindustrialização do país que possa criar produtos que os espanhóis queiram comprar... Quanto à bitola para esses transportes estamos bem, obrigado: qualquer uma serve, e por isso é avisado construir linhas com terceiro carril. Copiando os espanhóis.

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Títulos publicados: * JUP - Janela Única Portuária, o Simplex do Mar Fernanda Nunes Ferreira * O sucesso financeiro dos Caminhos de Ferro da Índia Luís Manuel Lopes Ascensão * Sines como ativo geoestratégico nacional Paulo Jorge Pires Moreira * A economia do transporte público na acessibilidade urbana Carlos Gaivoto * O desempenho do terminal de contentores: modelo conceptual Vítor Caldeirinha * A governação das autoridades portuárias em Portugal e Espanha Abílio Marques Afonso * Regulação do Serviço Público de transportes Cristina Caetano * O “caso” do Metro Sul do Tejo António Vila Verde Ribeiro * Um risco histórico: Rede ferroviária europeia e competitividade da economia Mário Lopes * Flexibilização do sistema ferroviário europeu: modelos integrados vs. modelos separados Nuno Marques * Aeroportos e companhias aéreas redesenham parcerias estratégicas Fátima Rodrigues * Transportes: deficiências dos processos de decisão sobre projectos estratégicos Mário Lopes * Precisamos do caminho-de-ferro de mercadorias? Então, vamos tratar disso Ricardo Félix

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