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Paradigmas e antecedentes ambientais Biblioteca de Babel
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GEORGES PEREC
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metrรณpole; metrรณpole; catalogador; catalogador; referencial bibliogrรกfico. referencial bibliogrรกfico.
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GEORGES GEORGES PEREC PEREC
Precisamos contar essa história mais uma vez. Ela já está velha, provavelmente esquecida. Há oito anos atrás ela foi registrada. Depois de tantos anos notou-se que muita coisa mudou, para melhor e para pior. O fluxo do Tempo e da História fazem bem seu papel. Disso, nada inesperado. A necessidade de recontar essa história vem de dois motivos: primeiro pela recomendação sempre perspicaz de Theodor Adorno, mestre da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, de que alguns fatos históricos devem ser sempre lembrados, não esquecidos apesar do forte desconforto que sua lembrança traz; lembrados para não serem repetidos. O outro motivo para esse retorno da história é também um retorno: passados oito anos do “silêncio na Metrópole-cidade” e do ressurgimento dos 11 “estranhos” montados em suas vacas pintadas, um outro desses “estranhos” sobreviventes reapareceu, o 12º. Primeiro a história, de novo. Depois falamos sobre esse novo “estranho” que foi encontrado. Oito anos atrás esse texto foi publicado (não reparem na ingenuidade de alguns trechos, nem nos pequenos escorregões da escrita, o autor era jovem e inexperiente) como introdução do capítulo “M – Metrópole”, da dissertação “Uma odisseia paulistana: uma documentação retroativa sobre o São Vito”1 Imaginemos uma cidade. Agora pensemos que essa cidade cresça inesgotavelmente. Um dia essa cidade se tornou uma metrópole. A maior metrópole. Essa cidade, agora chamada Metrópole, ao crescer, forma uma sombra sobre ela mesma. Ela é auto-sombreada. Essa “sombra metropolitana” impede que a Metrópole se desenvolva coerente e saudavelmente. Cria-se um princípio de caos metropolitano. A sombra começa a preocupar. Mas, como sempre, ela é entendida como um elemento transicional, uma consequência do crescimento, do progresso. A metrópole a absorve bem. Transforma a sombra em uma entidade inerente à sua própria formação. O que antes era uma lamentável deformação de crescimento desenfreado, agora é parte constituinte da Metrópole. Pior que isso, a sombra se torna irrecuperável. Chega a um ponto em que a Metrópole-mãe não consegue mais crescer. A sombra-filho faz a progenitora derrapar em seu desenvolvimento. A Metrópole cresce sem se movimentar. Ela se aglomera sobre si mesma. E esse movimento é tão intenso que se torna impossível estancá-lo. Aparentemente existe uma euforia frenética com relação a esse crescimento. Mas como tudo na natureza, esse crescimento tem um limite físico. O pico está sendo atingido. Silêncio na Metrópole-cidade. Não se enxerga mais a sombra. Nem a cidade.
1 SILVA, Ricardo Luis. Uma odisseia paulistana: uma documentação retroativa sobre o São Vito. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.
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Agora imaginemos um legendário grupo de sobreviventes. Aparentemente os únicos que se salvaram de anterior implosão urbana. Esse grupo, traumatizados após o acontecido, se refugiam um uma caverna. Vivem lá durante anos. Aos olhos exteriores, imagina-se que estão esperando a fumaça baixar. E como a fumaça é densa, o retorno do grupo à superfície deve demorar. Vivem em isolamento. Isolados do mundo exterior, mas acompanhados constantemente de imagens da Metrópole que habitavam. Certamente, estas imagens tornaram-se, no exílio, a fonte de vida dos sobreviventes. Fica claro que é preciso transmitir esse conhecimento-vivência na Metrópole.
Imaginemos agora que a fumaça enfim baixe. No primeiro amanhecer vemos os rostos maltratados dos sobreviventes surgindo no horizonte. Todos eles são levados a um recinto escuro. Neste recinto, um a um, os agora chamados “estranhos”, começam a falar. Todos, sem exceção, descrevem a Metrópolecidade. Cada um com seus instrumentos particulares. As histórias são fascinantes. A Metrópole-cidade parece retornar das cinzas, como uma fênix, nas “palavras” de cada um dos Estranhos.
Os onze “estranhos” anunciados eram: os cartunistas Laerte e Angeli, o escritor Fernando Bonassi, os arquitetos Rem Koolhaas e Paulo Mendes da Rocha, o poeta e jornalista Mário de Andrade, os curadores Marcello Dantas e Kátia Canton, o músico e poeta Arnaldo Antunes, o fotógrafo Bob Wolfenson e o artista plástico Oscar Oiwa. As vacas cavalgadas eram as esculturas intervencionadas da exposição urbana CowParade São Paulo 2005. Cada um desses elementos apresentou a Metrópole que conheciam, a que tinham na memória. Cada um apresentou uma Cidade possível, apresentações diversas. Cada um dos “estranhos” utilizou suas próprias e familiares ferramentas de escritura. Narrativas instigantes que nos provocaram a perceber os espaços urbanos da Metrópole sob outras possibilidades. O 12º “estranho” que apareceu agora, passados oito anos, motivo de nosso retorno àquela história é um homem chamado – até onde conseguimos averiguar em seus pertences – Georges Perec, mas que tem como “nome de guerra” entre os “estranhos” o título de “Catalogador” (informação que conseguimos com o próprio indivíduo). O “Catalogador” foi encontrado nos arredores do Mercado Municipal – epicentro da implosão urbana de oito anos atrás, e local da já mencionada caverna. Ele estava tentando sair de um edifício abandonado da região puxando uma carroça de madeira, semelhante a dos catadores de papelão, repleta de cadernos de anotações, blocos, agendas, cadernetas, folhetos, brochuras, papelotes, livros, papéis soltos, envelopes, pastas, caixas, arquivos mortos, álbuns de fotografia, latas de rolos de películas cinematográficas, maços de cigarro, sacos e sacolas com coisas e mais coisas. Seu aspecto chamou muito a atenção, pois, diferente dos já “invisíveis” catadores que sempre estão acompanhados de seus companheiros caninos, o “Catalogador” vinha andando pela rua com um gato preto suavemente recostado sobre seu ombro direito. Além dessa peculiaridade, o corte e “formato” de seus cabelos e de sua barba/cavanhaque destoavam muito do restante dos cabeludos e barbudos “lumberssexuais” da moda nesta estação.
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Logo que foi reconhecido como um possível “estranho” pela população que circulava pelo local (já que a história de oito anos atrás foi ampla e exaustivamente televisionada em todas as emissoras em programas de mais alta qualidade e até mesmo nos mais “Datenescos”) o “Catalogador” foi conduzido, com seu gato e carroça, até nosso CIDpS Centro de Investigações e Documentações pós-Sombra. Assim que foi recebido, foi identificado e “marcado” como todos os outros onze. Esse registro inicial deixou o indivíduo muito agitado e desconfortável, atitude que teremos que investigar posteriormente. Ao tomarmos conhecimento do enorme conteúdo de sua carroça e de seu codinome, achamos prudente solicitar a presença imediata de especialistas em catalogação: bibliotecários, inventariadores, galeristas, escrutinadores, burocratas de escritório, colecionadores, pesquisadores acadêmicos, acumuladores e obsessivos em geral.
Enquanto entrevistávamos o “Catalogador”, numa conversação prolixa mas bastante tranquila e fluente, nossos especialistas inventariaram todo o conteúdo que carregava em sua carroça. Logo de início conseguimos obter as informações básicas: Georges Perec é seu nome de registro, inexplicavelmente tem 45 anos já a 34 primaveras, é francês de Paris, é judeu de origem polonesa e fumante. Apaixonado por jogos de palavras, palavras cruzadas, textos com restrições e complexos jogos matemáticos, catálogos e listas, de espécies de espaços, memórias, tempos, banalidades, coisas, acontecimentos e objetos cotidianos. É obsecado pela fotografia escrita, ou “Pinacotextos” como coloca Bernard Magné em um dos papeizinhos que encontramos na carroça. Adorador da vida cotidiana, do Tempo (efêmero e incontrolável) e, principalmente, da cidade de Paris; mas não por ser Paris, e sim por ser CIDADE. Ao se debruçar sobre Paris, ele está se debruçando sobre a Cidade, que poderia ser qualquer uma, inclusive a nossa... Por isso Perec, ou o “Catalogador”, se torna tão particular, acima dos outros onze. Além de sua inexplicável saída tardia, seu amor pela Cidade, sua obsessão pelo espaço urbano cotidiano, pela leitura e apreensão da Metrópole, faz com que esse “reaparecimento” mereça destaque e lugar exclusivo. O que teremos aqui será um campo referencial, um inventário de coisas produzidas e catalogadas por esse “estranho”. Um campo metalinguístico, um mapa dentro do mapa. No seu interior, caminhos e indicações para um perder-se na obra de Perec. Se eu tento definir o que procurei fazer desde que comecei a escrever, a primeira ideia que me vêm é que jamais escrevi dois livros iguais. (...) minha ambição de escrever seria a de percorrer toda a literatura do meu tempo sem jamais ter o sentimento de voltar nos meus passos ou de caminhar novamente pelos meus próprios traços e de escrever tudo o que é possível a um homem de hoje escrever: livros grandes e curtos, romances, poemas, dramas, livretos de ópera, romances policiais, romances de aventura, romances de ficção científica, folhetos, livros para crianças. (Perec apud Burgelin, 1988. In FUX, 2010, p. 13)
O que estamos percebendo com o processo de inventário feito pelos nossos especialistas é que esse material poderá servir como fonte de pesquisa para investigadores da Cidade, mas com a peculiaridade de não ser um campo tradicional de contato, mas sim uma válvula de escape, campo de manobra, ladrão. Uma experiência humana externa à arquitetura e ao urbanismo, uma evidência de outra possibilidade de leitura e escritura da Cidade.
No meio de nossa “conversa” o indivíduo começou a se comportar de uma forma diferente, inquieto, reticente, como se estivesse sentindo falta de alguma coisa, uma ausência desconfortável. Pelo histórico que começamos a estabelecer, logo percebemos que era uma certa abstinência, tanto por fumar um cigarro quanto pela distância que sentia de sua carroça. Para podermos dar continuidade à entrevista, providenciamos imediatamente as duas coisas: o levamos até a área – externa – onde sua carroça e seus pertences estavam sendo inventariados, assim o cigarro poderia ser aceso e a entrevista poderia continuar, inclusive melhorando qualitativamente pois o indivíduo exemplificava suas respostas mostrando e manipulando algum dos itens inventariados.
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(Londres) Continua sendo ainda o símbolo do que é uma cidade: algo tentacular e perpetuamente inacabado, uma mistura de ordem e de anarquia, um gigantesco microcosmos onde se amontoa tudo o que os humanos produziram ao longo dos séculos. (PEREC, 2008, p. 86)
Uma das primeiras coisas que solicitamos ao “Catalogador”, para retomar o fluxo e a cadência da conversa interrompida, foi que falasse mais de quem era, numa espécie de autobiografia, até para sabermos com quem estamos falando. Para isso ele se valeu de algumas coisas de sua carroça. Se levantou, encostou o cigarro no canto da cadeira onde estava sentado, se dirigiu até a mesa onde os especialistas colocavam os itens já inventariados, pegou alguns deles e retornou até sua cadeira com os braços carregados, abraçando cadernos, livros e fotos. A primeira coisa que nos mostrou foi um pedacinho de papel solto, assinado também por Bernard Magné, com algumas palavras escritas, nos dizendo que o que tinha no colo não eram diários biográficos, mas sim: “ÆNCRAGES” – Ancrage + Encre (Ancoradouro + Tinta de escrita em francês) Autobiografemas _ textos com características formais (temáticas, aritméticas, geométricas) com ecos biográficos
Perec nos contou muitas coisas, a conversa foi longa e envolvente, muitas vezes “ilustrada” por folheadas em alguns dos livros resgatados, principalmente os intitulados (todos os títulos estão escritos à mão sobre as capas de papel craft com letras capitulares feitas com Letraset): W ou le Souvenir d’enfance (Ed. Denoël, 1975), Je suis né (Éditions du Seuil, 1990) e Je me souviens. (Ed. Hachette, 1978). As informações principais que conseguimos registrar dessa longa conversa foram: Nasce Georges Peretz, em Paris no dia 07 de março de 1936 e morre (morre?) Georges Perec em Ivry-sur-Seine no dia 03 de março de 1982. Filho de pais judeus poloneses imigrantes na França em 1920 e casados em 1934, o pai chamado Icek Judko Peretz (1909-1940) se alista no exército francês durante a Segunda Guerra Mundial, morrendo em campo, aos 31 anos, em decorrência de um ferimento de estilhaços de granada não tratados. A mãe Cyrla (Schulewicz) Peretz (1913-1943) foi levada a Auschwitz pelo Nazismo e executada em 1943, aos 30 anos de idade. Um ano antes, em 1942, Perec é enviado a Villard-de-Lans num trem da Cruz Vermelha pela própria mãe, onde é acolhido e fica aos cuidados dos tios paternos, Esther (várias dedicatórias em seus textos são para “E”) e David Bienenfelds, que o adotam formalmente em 1945, já morando em Paris. Já jovem, enquanto estuda História e Sociologia na Sorbonne, escreve pequenos ensaios para as revistas “La Nouvelle Revue Française” e “Les Lettres Nouvelles”. Em 1958 presta o serviço militar no 18º regimento de infantaria em pára-quedas e no ano seguinte, após ser dispensado, casa-se com Paulette Petras. Se mudam para Sfax, na Tunísia, entre 1960 e 1961, onde Paulette trabalhou como professora (fato que contamina evidentemente o futuro livro Les Choses). Em 1961, de volta a Paris, começa a trabalhar como arquivista no Laboratório de Pesquisa Neurofisiológica, dentro da unidade da Biblioteca de Pesquisa, financiada pelo CNRS (Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica), e instalado no Hospital Saint-Antoine. Seu trabalho era mal remunerado, mas mesmo assim, se manteve nele até 1978.
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Publica seu primeiro livro em 1965, Les Choses. Une histoire des années soixante, pela editora Julliard. Uma narrativa influenciada ainda pelo Nouveau Roman e construída em torno dos objetos, das coisas, dos pertences acumulados por um jovem casal francês, Sylvie e Jérôme, numa espécie de inventário de “tudo o que pode ser dito a propósito da fascinação que exercem sobre nós os objetos.” (PEREC, 2012, orelha da capa).
Em um texto chamado <notas sobre o que busco>, Perec apresentou os quatro polos de sua escritura: <o mundo que me rodeia, minha própria história, a linguagem, a ficção>. Assim, seus textos se debruçam às vezes sobre a sociologia (Les Choses, Espèces d’Espaces, Penser: classer...), às vezes na sua autobiografia (W ou le Souvenir d’enfance, Je me souviens...), em outros momentos no puro exercício Oulipiano e, finalmente, nas formas novelescas (La Disparition, La Vie mode d’emploi, romans). Mas Perec insiste muito em que esses quatro polos de escritura se transladam, se mesclam e <plantam, talvez, enfiam, a mesma pergunta, ainda que com perspectivas particulares>. (NETTEL, 2008, p. 9)
Em 1972 participa da fundação do jornal de esquerda política “Cause Commune” com Jean Duvignaud (seu professor no ensino médio) e Paul Virilio (arquiteto). Escreve palavras cruzadas para a revista “Le Point” a partir de 1976 e para a “Télérama” entre 1980 e 1981. Ganha uma residência literária na Universidade australiana University of Queensland em 1981. De volta da sua viagem à Austrália, é diagnosticado com câncer de pulmão em consequência de ser um fumante intenso. No meio das coisas que Perec trouxe para sua cadeira, haviam três quadros emoldurados e protegidos por um vidro já meio fosco e riscado. Em cada um deles havia uma espécie de certificado, diploma. Eram os comprovantes dos prêmios recebidos por ele: o Prêmio Renaudot de 1965 pelo livro “Les Choses”, o Prêmio Jean Vigo de 1974 pelo filme “Un homme qui dort”, e o Prêmio Médicis de 1978 pela publicação do livro “La vie mode d’emploi, romans”. Dentre os itens em processo de “re-catalogação” encontramos uma carteirinha com a foto de Perec e vários documentos com anotações, fórmulas matemáticas, tabelas, esquemas gráficos, infográficos, listas com nomes numerados, esquemas alfabéticos. Todos esses itens tinham em comum uma sigla específica: OuLiPo. Foram categorizados e agrupados em uma grande mesa branca para posterior análise. A conclusão preliminar após a categorização é que se trata de um grupo, uma sociedade, um coletivo de intelectuais dispostos a fundir a literatura com a matemática. Um assunto que merece maior investigação e aprofundamento num outro momento, ficamos apenas com alguns fragmentos transcritos e resumidos pelos nossos especialistas: • OuLiPo – sigla constituída pelas iniciais do título Ouvroir de Littérature Potentielle, sendo traduzido livremente como Oficina (ou talvez grupo de trabalho/produção) de Literatura (em) Potencial. Mais tarde soubemos que se formaram vários outros grupos com estruturas e intenções semelhantes, mantendo a mesma lógica de nomeação: OuPeinPo (Pintura), OuMuPo (Música), OuBaPo (Quadrinhos, comics), OuHisPo (História), OuPhoPo (Fotografia), OuArchPo (Arquitetura), OuPolPo (Política), OuGraPo (Desenho gráfico), OuCiPo Cinema), OuTraPo (Tragicomédia), OuCuiPo (Gastronomia). • Ata da primeira reunião instituindo o grupo, datada de 24 de novembro de 1960 em Paris e assinada pelos fundadores, o escritor Raymond Queneau e o matemático e professor François Le Lionnais. • O OuLiPo foi uma célula de trabalhos e discussões práticas do Collége ‘Pathaphysique, espécie de “faculdade” fundada em 1947 pelo professor Alfred Jarry.
• Frase em papel isolado, aparentemente atribuída a Raymond Queneua “A busca de novas estruturas e padrões que podem ser usados por escritores de qualquer maneira que gostarem”.
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• A raiz de toda fundamentação teórica e prática do OuLiPo baseia-se na ideia de escrever o máximo possível utilizando técnicas restritivas e proibições.
• Contamos 38 membros integrantes da OuLiPo, dentre eles escritores, matemáticos, professores universitários, engenheiros. Alguns nomes nos chamaram a atenção: Georges Perec, Italo Calvino, Marcel Duchamp.
Fotografia de um dos encontros do grupo OuLiPo, em Boulogne, 1975. Perec ao centro, de camisa branca.
•Intitulavam-se francamente em oposição ao Surrealismo e sua escrita automática. Questão que, averiguado com outros pesquisadores – por exemplo Silvana Vieira da Silva2, parece falsa. A proximidade da escrita dos membros dos Grupo DADA e posteriormente dos membros do Surrealismo são muito próximos conceitualmente de muitos escritos de membros do OuLiPo. • O OuLiPo tinha uma seção de pesquisa exclusiva para encontrar e catalogar possíveis Oulipianos anteriores à fundação do grupo, o que era chamado de “plagiaires par anticipation” ou plagiadores por antecipação. •Encontramos uma infinidade de informações sobre as técnicas, ferramentas, proibições e restrições, ou “contraintes”, criadas e utilizadas pelos Oulipianos. Os que mais chamaram nossa atenção são: • S+7 (as vezes chamado N+7): Substituir todos substantivos de um texto pelo sétimo substantivo seguinte na lista de um dicionário. Pode ser executado em outros grupos léxicos, como verbos; também podem ser utilizados outras base literárias, como o Alcorão, a Bíblia. • Bola de Neve: Poema em que cada linha é composta por apenas uma palavra, e cada palavra tem uma letra a mais que a anterior.
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• Lipograma: Texto escrito que exclui uma ou mais letras da escritura do texto. O nosso “Catalogador” tem um exemplo incrível de utilização dessa restrição: o texto, com mais de 300 páginas, La Disparition (Ed. Denoël, 1969) foi escrito inteiramente sem a vogal “e”, a mais comum na língua francesa. Além disso, o enredo do romance gira em
2 SILVA, Silvana Vieira da. Ecos do Surrealismo e o grupo OuLiPo. Lettres Fraçaises, n. 10, v. 2, Araraquara, 2010.
torno justamente do desaparecimento dessa letra.3 • Monovocalismo: Texto escrito com apenas uma das vogais. Mais uma vez Perec tem um excelente exemplo: Les Revenentes (Ed. Julliard, 1972) foi escrito utilizando apenas a vogal “e”. • Palíndromo: Texto que pode ser lido da esquerda para a direita e vice e versa, mantendo o mesmo significado. O maior palíndromo já escrito é de Georges Perec, com 5623 caracteres e intitulado Le Grand Palindrome, ou 9691 Edna’ d niluom ua cerep segroeg (1969) • Restrições do prisioneiro (ou restrições Macao): Uma espécie de lipograma onde a(s) letra(s) omitida(s) apresentam “ascendentes” ou “descendentes” [b, d, j, p...] • Alguns Oulipianos e suas datas de entrada no grupo: Georges Perec (1967). Italo Calvino (1973) e Marcel Duchamp (1962). Este último era o correspondente norte-americano do OuLiPo. • http://www.oulipo.net • Papel solto com frase assinada por Marcel Bénabou e Jacques Roubaud: Literatura sobre tensão “um autor Oulipiano é um rato que constrói um labirinto para si próprio e pretende sair dele depois.” Depois de mais de 11 horas de entrevista, 3 paradas para fumar um cigarro ou dois, O “Catalogador” parecia cansado e resolveu se retirar, pois um homem precisa dormir. Já o processo de inventariar os objetos da carroça de Perec estava a todo vapor. Nossos especialistas são incansáveis. Tudo está sendo numerado, descrito, categorizado, organizado. Enfim, depois de 3 dias, todas as catalogações do “Catalogador” estavam catalogadas. Para documentar esse material entramos em contato com o mesmo pesquisador que acompanhou os 11 “estranhos” de oito anos atrás. Parecia evidente e promissor que o mesmo olhar e as mesmas intenções deveriam ser aplicadas também a esse “novo” material. O pesquisador contatado compareceu imediatamente. Investigou e escrutinou todo o material inventariado com um olhar interessado nas leituras urbanas, como há oito anos atrás.
3 Foi recentemente traduzido para o português por Zéfere, num complexo jogo de tradução e transformação. Aqui ganhou o nome de “O Sumiço” e está publicado pela editora Autêntica.
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Após um longo tempo debruçado sobre todo aquele material que Perec carregava em sua carroça, nosso pesquisador interessado em leituras urbanas resgatou alguns “trapos” que seriam dignos de uma reprodução organizada: o conteúdo do material selecionado é: 1 lista de livros; 2 pedaços de papel soltos, do tipo post-it, com definições diversas; 1 lista de fragmentos de texto retiradas de um livro, acompanhados de comentários feito por terceiros (existe um interesse especial nesses fragmentos por conta de várias indicações de exercícios e métodos de leituras urbanas); 1 lista-índice de fragmentos e resumos de textos encontrados dispersos e depois agrupados em um único volume, também acompanhados de comentários de terceiros; 1 excerto de um guia da cidade de Paris elaborado por Perec e apresentado por um senhor que parece ser um grande amigo; 4 indícios-resumos de trabalhos pontuais relacionados com a temática das narrativas
urbanas; 1 pequena lista de fragmentos de textos-comentários encontrados; 1 lista de curiosidades Todo esse material contribuirá como um campo de ideias, exemplos, referências àqueles que se debruçam sobre as leituras urbanas interessadas nas inutilidades, banalidades, fragmentárias, ordinárias, infraordinárias da vida cotidiana.
1. Lista de livros relevantes para as leituras urbanas.
Un homme qui dort [Um homem que dorme] - 1967 Espèces d’Espaces [Espécies de Espaços] (sem tradução portuguesa) - 1974 Tentative d’èpuisement d’un lieu parisien [Tentativa de esgotamento de um local parisiense] - 1975 La vie mode d’emploi, romans [A vida modo de usar, romances] - 1978 Penser: classer [Pensar: classificar] (sem tradução portuguesa) - 1985 L’infra-ordinaire [O Infraordinário] (sem tradução portuguesa) - 1989 Perec/rinations [Perec(g)/rinações] (sem tradução portuguesa) - 1997
2. Pedaços de papel soltos, do tipo post-it, com definições diversas.
ECFRASIS do grego antigo ecphrasein ek = fora, phrasein = pronunciar. Representação verbal de uma representação visual. Enumeração exaustiva. Descrição de elementos estritamente visuais e pormenorizados até a exaustão.
Um ÆNCRAGE – número 11 dia oficial da morte da mãe de Perec 11/02/1943
“(...) onze matizes de cor e três valores chave (...)” (PEREC, 2005, p. 61)
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dois Æncrages de Perec...
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11 x 3 = 33 (número de fragmentos dessa tese!)
3. Lista de fragmentos de texto retiradas de um livro, acompanhados de comentários feito por terceiros. (Espèces d’Espaces, 1974). “Espécies de Espaços é um espaço que fala do espaço. É um texto que é um espaço tecido ao redor de múltiplas noções configuradas habitualmente como espaço. Não é precisamente o espaço cósmico ou astronômico, mas sim esse espaço tão cotidiano e familiar de nosso habitat (o urbano) que adquire aqui estatuto de protagonista, que se converte em objeto de estudo e de elucubração.” (CAMARERO, 1999, p. 15)
“O livro em princípio parece ser disperso, como uma intenção de recolher os fragmentos disseminados de uma totalidade que, sem dúvida, existiria apenas como uma ideia vaga e flutuante. Depois, a minuciosa estruturação hierárquica que ordena os capítulos (sem numeração, porque a hierarquia já inclui a ordenação qualitativa) estende o livro como um tapete, de modo e maneira que o leitor-visualizador destes espaços fragmentados possa percorrer o espaço do livro tão livre e criativamente com lhe apeteça.” (CAMARERO, 1999, p. 15-6)
“Mas existem livros como este onde certa operação [ter um começo e um fim] não basta. O livro não termina na última página lida ou numerada como última: muito pelo contrário, cada novo ponto de inserção do olhar do leitor resulta em um começo inesperado de leitura que, também, não tem porque acabar em um ponto determinado, porque esse ponto não existe e pode não existir tampouco a vontade do leitor de terminar, nesse lugar preciso, sua leitura.” (CAMARERO, 1999, p. 17-8)
“Esta inflexão operada sobre o ato criativo moderno define também uma característica da literatura realmente nova: escritura e leitura não precisam ser atos antagônicos e o leitor é chamado a ser muito mais ativo e protagonista, compartilhando com o autor a atividade escritural. Com o qual já não haveria um escritor e um leitor, mas sim dois escritores: o autor e o leitor.” (CAMARERO, 1999, p. 18-9)
“Semelhante técnica não necessita planos nem bússolas, nem tampouco um manual, nem um/uma guia, nem sequer o índice (que está incluído mesmo assim), unicamente basta em deixar-se levar, quer dizer, apenas ler e ler, aqui e ali, sempre em frente... Ou atrás, começando pelo final se esse for o desejo e retrocedendo seção por seção até o início.” (CAMARERO, 1999, p. 16)
“Porque no espaço não existe sequência, apenas extensão, e o percurso sempre pode variar, a menos que situações ou condições muito especiais lhe impeçam de modo muito severo. Essa extensão fragmentada, disseminada, dispersa, não é mais que a reprodução o representação descrita detalhadamente do mundo e das coisas, mas de um modo que revela certa desumanização desse entorno onde o homem tem perdido o protagonismo que sempre deveria ter conservado.” (CAMARERO, 1999, p. 16-7) A2_4 ... 11
“Não há limite para o leitor-andarilho que estiver acometido por um acesso de bulimia espacial: como o livro percorre todos os espaços, desde a página (onde o leitor obviamente se encontra) até a essência do espaço-espaço, passado por uma tipologia bem urbana e globalizadora, então a única coisa a ser feita é deixar-se levar através de inúmeros fragmentos de espaços onde se estruturam os diferentes tipos de espaço.” (CAMARERO, 1999, p. 16)
FALTA DE
POSIÇÃO NO DESCOBRIMENTO DO
BARRA DE PASSEIO PELO GEOMETRIA DO OLHAR QUE EXPLORA O
A CONQUISTA DO
O CAMINHANTE DO
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TORRE DO ÀS MARGENS DO OS GRANDES A EVOLUÇÃO DO
A ODISSEIA DO
ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO ESPAÇO
LIVRE FECHADO PRESCRITO CONTADO VERDE VITAL CRÍTICO DESCOBERTO OBLÍQUO VIRGEM EUCLIDIANO AÉREO CINZA TORCIDO DO SONHO
TEMPO MEDIDO MORTO DE UM INSTANTE CELESTE IMAGINÁRIO NOCIVO BRANCO INTERNO QUEBRADO ORDENADO VIVIDO SUAVE DISPONÍVEL PERCORRIDO PLANO TIPO AO REDOR
SONORO LITERÁRIO
(PEREC, 1999, p. 21)
“O objeto deste livro não é exatamente o vazio, e sim o que existe ao redor, ou dentro. Mas, finalmente, no princípio, não há grande coisa: o nada, o impalpável, o praticamente imaterial: a extensão, o exterior, o que é externo a nós, aquele pelo qual nos deslocamos, o meio ambiente, o espaço do entorno.” (PEREC, 1999, p. 23)
“No final das contas, os espaços se multiplicaram, se fragmentaram e se diversificaram. Existem de todos os tamanhos e espécies, para todos os usos e para todas as funções. Viver é passar de um espaço a outro fazendo o possível para não debater-se.” (PEREC, 1999, p. 25)
“Vivemos no espaço, nestes espaços, nestas cidades, nestes campos, nestes corredores, nestes jardins. Parece evidente. Talvez devesse ser efetivamente evidente. Mas não é evidente, não é um caminho óbvio.” (PEREC, 1999, p. 23)
“(...) não existe um espaço, um belo espaço, um belo espaço ao nosso redor, existem inúmeros pequenos pedaços de espaços, e um desses pedaços é um corredor do metrô, e outro desses pedaços é um jardim público; outro, de tamanho bem mais modesto em sua origem, adquiriu dimensões colossais e terminou sendo Paris, enquanto que um espaço vizinho, não menos dotado no início, agora se contentou em ser Pontoise (pequena cidade a noroeste de Paris).” (PEREC, 1999, p. 24)
ÍNDICE A página A cama O quarto O apartamento O imóvel A rua O bairro A cidade O campo
“Escrevo: vivo na minha folha de papel, a cerco, a percorro. Provoco espaços em branco, espaços (saltos, no sentido de descontinuidades, passagens, transições).” (PEREC, 1999, A página, p. 31) “Viver em um quarto. O que é isso? Viver em um local, é apropriar-se dele? O que é apropriar-se de um local? A partir de que momento um local é verdadeiramente de alguém? Quando se colocam de molho três pares de meias numa bacia plástica rosa? (referência à atitude do protagonista do livro Un Homme qui dort) Quando se requentam espaguetes em um fogareiro? Quando se utilizam todos os cabides disponíveis do guarda-roupa? Quando se fixa na parede um velho postal que representa o sonho da Santa Úrsula de Carpaccio? Quando se experimentam ali as ânsias da espera, ou as exaltações da paixão, ou os tormentos das dores de dente? Quando se coloca cortinas desejadas nas janelas e papel de parede e raspar o parquet.” (PEREC, 1999, O quarto, p. 48-9)
O país O mundo O espaço Repertório
“Pequeno pensamento plácido nº 2: o tempo que passa (minha história) deposita resíduos que vão se amontoando: fotos, desenhos, carcaças de esferográficas rotuladoras já secas há muito tempo, pastas, copos quebrados e copos descartáveis, embalagens de charutos, caixas, borrachas, cartões postais, livros, pó e guloseimas: coisas que chamo de minha fortuna.” (PEREC, 1999, O quarto, p. 49) A2_4 ... 13
Europa
“Desta enumeração (ambientes em um apartamento) – que poderia continuar facilmente – pode-se tirar estas duas conclusões elementares que prolongo a título de definições: 1. Todo apartamento é composto de uma quantidade variável, mas limitada, de peças; 2. Cada peça tem uma função particular.” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 53)
“Reconhecer que os arredores [talvez as periferias] têm uma forte tendência a deixarem de ser coisas ao redor.” (PEREC, 1999, A cidade, p. 97)
“Não sei, não quero saber, onde começa e onde termina o funcional. O que me parece em todo caso é que na divisão modelo dos apartamentos atuais, o funcional funciona segundo um procedimento unívoco, sequencial e nictemeral (de manhã até de noite): as atividades cotidianas correspondem a fases horárias e para cada fase horária há uma peça correspondente no apartamento.” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 54)
“De um modo apenas mais transgressivo pode-se pensar em uma repartição baseada não mais nos ritmos mensais, mas em ritmos heptadianos: isso resultaria em apartamentos de sete peças chamadas, respectivamente: o segundatório, o terçatório, o quartatório, o quintatório, o sextatório, o sabadotório e o domingotório.” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 57-8)
“Olhar o que acontece quando a cidade acaba.” (PEREC, 1999, A cidade, p. 97)
“Certamente nos faz falta um pouquinho mais de imaginação para representarmos um apartamento cuja divisão estivesse fundada em funções sensoriais: é fácil conceber o que poderia ser um gustatório ou um auditório, mas a que poderia parecer um vistatório, um fumatório, ou um apalpatório...” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 57)
“De um espaço inútil: Em várias ocasiões tratei de pensar em um apartamento onde existisse uma peça inútil, absoluta e deliberadamente inútil. Não se tratava de uma despensa, não era um dormitório suplementar, nem um corredor, nem um alpendre, nem um recanto. Seria um espaço sem função. Não serviria para nada, não permitiria nada.” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 59)
“Apesar dos meus esforços, foi impossível levar a cabo esse pensamento (um espaço realmente inútil), esta imagem, até o fim. Mesmo a linguagem, me parece, revelou-se incapaz de descrever esse nada, esse vazio, como se apenas se pudesse dizer do que é pleno, útil e funcional.” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 59)
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“Um espaço sem função. Não <sem função precisa>, mas precisamente sem função; não multifuncional (isto todo mundo sabe fazer), mas a-funcional. Evidentemente não poderia ser um espaço destinado unicamente a <liberar> os outros (despensa, armário embutido, guarda-roupas, estantes etc.) mas um espaço, repito, que não deveria servir para nada.” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 59-60)
“Escadarias: Não pensamos o suficiente nas escadarias. (...) Deveríamos aprender a viver muito mais nas escadarias, mas como?” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 67)
“Jamais cheguei a algo realmente satisfatório, mas creio que não perdi o tempo completamente ao tratar de delimitar esse limite improvável: tenho a impressão de que através deste esforço se transparece algo que poderia ter um estatuto de habitável...” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 61)
“Como pensar o nada? Como pensar o nada sem colocar automaticamente algo ao redor desse nada, que produziria uma cova, na qual rapidamente se colocaria algo, uma atividade, uma função, um destino, um olhar, uma necessidade, uma ausência, um excedente...?” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 60)
“Nos protegemos, nos resguardamos. As portas param e separam. A porta quebra o espaço, o fissura, impede a osmose, impõe divisórias: de um lado estou eu e mi casa, o privado, o doméstico (o espaço carregado com minhas propriedades: minha cama, meu tapete, minha mesa, minha máquina de escrever, meus livros, meus números descontinuados da La Nouvelle Revue Française...), do outro lado estão os demais, o mundo, o público, o político. Não se pode ir de um a outro nem em um sentido nem em outro: é necessária uma senha, é preciso cruzar a soleira, demonstrar que tem carta branca, efetuar uma comunicação (...)” (PEREC, 1999, O apartamento, p. 64) “Coisas que deveríamos fazer sistematicamente de vez em quando: (...) Nos imóveis em geral: - Olhá-los; - Levantar a cabeça; - Descobrir o nome do arquiteto, o nome do construtor, a data de construção; - Perguntar-se porque afinal está escrito <Gás em todos os andares>; - Tentar se lembrar, no caso de um imóvel novo, o que havia ali antes; - etc.” (PEREC, 1999, O imóvel, 77)
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“Escrevia [na adolescência] meu endereço desta maneira: Georges Perec 18, rue de l’Assomption Escadaria A 3º piso Porta da direita 16 Paris Província de Sena França Europa Mundo Universo.” (PEREC, 1999, O espaço, p. 128)
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“Trabalhos práticos Observar a rua de vez em quando, talvez com um esmero um pouco sistemático. Aplicar-se. Tomar-se seu tempo. Anotar o lugar: o terraço do café próximo ao cruzamento das ruas Bac e Saint-Germain. A hora: às sete da tarde. O dia: quinze de maio de 1973. O tempo: garanto que bom. Anotar o que se vê. Aquilo que seja importante. Sabemos ver o que é importante? Há algo que nos chame a atenção? Nada nos chama a atenção. Não sabemos ver. Devemos ir mais devagar, quase sem jeito. Obrigar-se a escrever sobre o que não tem interesse, sobre o que é mais evidente, mais comum, mais esquecido. A rua: tratar de descrever a rua, do que ela é feita, para que serve. As pessoas na rua. Os carros. Que tipo de carros? Os imóveis: anotar se são mais confortáveis, mais senhoriais; distinguir entre os imóveis residenciais e os edifícios oficiais. As lojas. O que se vende nas lojas? Não existem lojas de alimentação. Ah! sim, há uma padaria. Perguntar-se onde as pessoas do bairro fazem as compras. Os cafés. Quantos cafés existem? Um, dois, três, quatro. Porque este foi escolhido? Porque o conhecemos, porque bate sol, porque tem uma área externa coberta. Os demais comércios: antiquários, vestuário, música, etc. Não dizer, não escrever <etc.>. Obrigarse a esgotar o tema, inclusive se apresentam aspectos grotesco, ou fútil, ou estúpido. Entretanto não vimos nada, somente repertoriamos o que já havíamos repertoriado a bastante tempo. Obrigar-se a ver com mais sensibilidade. Descobrir um ritmo: a passagem dos carros: os carros chegam aos grupos porque acima e abaixo da rua estavam parados nos semáforos. Contar os carros. Observar a placa dos carros. Distinguir os carros matriculados em Paris dos demais. Anotar a ausência de taxis apesar de que precisamente parece que existem muitas pessoas que os aguardam. Ler o que está escrito na rua: colunas Morriss, bancas de jornais, anúncios, placas de trânsito, graffiti, folhetos soltos no chão, placas dos comércios. Mulheres bonitas. Os saltos demasiado altos estão na moda. Decifrar um pedaço de cidade, deduzir evidências: a obsessão pela propriedade, por exemplo. Descrever a quantidade de operações que o condutor de um automóvel realiza quando estaciona para ir apenas comprar cem gramas de geleia: - Estacionar fazendo uma certa quantidade de manobras - Desligar a chave da ignição - Retirar a chave, o que coloca em marcha um primeiro dispositivo antirroubo - Subir a janela da porta dianteira esquerda - Travar esta porta - Verificar se a porta traseira esquerda está travada; caso não esteja: abri-la, acionar a trava pelo interior, fechar a porta com uma batida, verificar se efetivamente está travada - Dar uma volta ao redor do carro; minimamente, verificar se o porta-malas está bem fechado e travado - Verificar que a porta traseira direita está travada; caso não esteja, realizar novamente o conjunto de operações já efetuadas com a porta traseira esquerda - Subir a janela da porta dianteira direita - Fechar a porta dianteira direita - Travar a porta - Antes de distanciar-se, dar uma olhada ao redor para assegurar-se de que o carro ainda está ali e que ninguém virá levá-lo.” (PEREC, 1999, A rua, p. 84-7)
“Agrada-me caminhar por Paris. Às vezes durante toda uma tarde, sem rumo preciso, mas também não à deriva, mas tratando de deixar-me levar. Às vezes pegando o primeiro ônibus que para. Ou até preparando cuidadosamente, sistematicamente, um itinerário. Se tiver tempo, gostaria de conceber resolver problemas análogos ao das pontes de Koenigsberg ou, por exemplo, encontrar um trajeto que, atravessando Paris de ponta a ponto, somente tivesse em conta ruas que comecem pela letra C.” (PEREC, 1999, A cidade, p. 101)
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“Decifrar um pedaço de cidade. Seus circuitos: porque os ônibus vão de tal local a tal local? Quem elege os itinerários, e em função de que? Perceber-se que o trajeto de um ônibus parisiense intra-muros está definido por um número de duas cifras, de que a primeira faz referência ao ponto do centro e a segunda ao ponto da periferia. Encontrar exemplos, encontrar exceções: todos os ônibus cujo número começa com a cifra 2 partem da estação de Saint-Lazare, com a cifra 3 da Gare d’Este; todos os ônibus cujo número termina com um 2 chegam, a grosso modo, até o 16eme arrondisement ou até Bologne. (Antes se usava letras: o S, que tanto gostava Queneau, agora é o 84; comover-se com a recordação dos ônibus de plataforma, a forma dos bilhetes, o cobrador com sua maquininha presa na cintura...) As pessoas na rua: De onde vêm? Para onde vão? Quem são? Pessoas com pressa. Gente sem pressa. Aglomerações. Pessoas prudentes que colocaram suas capas de chuva. Cães: são os únicos animais visíveis. Não se veem pássaros – sem dúvida sabemos que existem pássaros – muito menos ouvidos. Poderíamos vislumbrar um gato deslizando-se por baixo de um carro, mas esse fato não acontece. Total, que não acontece nada. Tratar de classificar as pessoas: as que são do bairro e as que não são do bairro. Não parece que haja turistas. A época não é favorável, além disso o bairro não é especialmente turístico. Quais são as curiosidades do bairro? A casa de Salomon Bernard? A igreja de Saint-Thomas-d’Aquin? O número 5 da rua Sébastien-Bottin? O tempo passa. Beber uma dose. Esperar. Notar que as árvores estão longe (ali, no Boulevard Saint-Germain e no Boulevard Raspail), que não há cinemas, nem teatros, que não se vê nenhuma obra aparente, que a maioria das casas parecem ter obedecido as prescrições de acabamento das fachadas. Um cachorro, de uma espécie rara (galgo afegão? Galgo africano?) Um Land-rover que parece equipado para atravessar o Saara (isso e tudo mais, anotamos apenas o insólito, o particular, o miseravelmente excepcional: deveríamos fazer o contrário). Continuar até que o lugar se faça improvável até termos a impressão, durante um brevíssimo instante, de estarmos em uma cidade estrangeira, ou melhor ainda, até não entendermos já o que acontece ou o que não acontece, que o lugar se converta em um lugar estrangeiro, que inclusive já não se saiba que isso se chama uma cidade, uma rua, imóveis, calçadas... Que caiam chuvas diluvianas, quebrando tudo, que cresça o mato, trocar as pessoas por vacas, ver como surge King-Kong ou os personagens de Tex Avery na esquina da rua Bac com o Boulevard Saint-Germain, cem metros acima dos telhados! Ou também: esforçar-se em imaginar, com a maior precisão possível, abaixo da rede de ruas, a confusão do sistema de esgoto, a passagem das linhas de metrô, a proliferação invisível e subterrânea de dutos (eletricidade, gás, linhas telefônicas, tubulações de água, rede pneumática sem a qual a vida seria impossível na superfície. Por baixo, exatamente por baixo, resuscitar o Eoceno: jazidas de calcário, a marga e a argila, o gesso, o calcário lacustre de Saint-Ouen, as areias de Beauchamp, o calcário áspero, as areias e o carvão da zona de Soissonnais, o barro argiloso, o mármore.” (PEREC, 1999, A rua, p. 87-9)
“Uma cidade: pedra, cimento, asfalto. Desconhecidos, monumentos, instituições. Megalópolis. Cidade tentacular. Artérias. Multidões. Formigueiro? (...) Como se conhece uma cidade? Como alguém conhece sua cidade? Método: Deveria deixar de falar da cidade, de falar sobre a cidade, ou melhor, obrigar-se a falar dela de forma evidente, familiar. Abandonar toda ideia pré-concebida. Deixar de pensar em termos muito elaborados, esquecer o que nos disseram os urbanistas e os sociólogos. Há algo espantoso na própria ideia da cidade; tem-se a impressão de que só poderemos fixar-nos a imagens trágicas ou desesperadas: Metrópolis, o universo mineral, o mundo petrificado, que somente poderemos acumular sem trégua perguntas sem resposta. Nunca poderemos nos explicar ou justificar a cidade. A cidade está aí. É nosso espaço e não teremos outro. Temos nascido em cidades. Temos crescido em cidades. Respiramos em cidades. Quando pegamos o trem é para ir de uma cidade a outra cidade. Não há nada de inumano em uma cidade, além de nossa própria humanidade.” (PEREC, 1999, A cidade, p. 99-100)
“Dois dias podem bastar para que comecemos a acostumarmos. (...) Começamos a tomar posse da cidade [estrangeira]. O que não quer dizer que começamos a habitá-la.” (PEREC, 1999, A cidade, p. 102)
“Exercícios: Descrever as operações que são realizadas ao entrarmos no metrô. Voltar a pensar em algumas das propostas dos Surrealistas para embelezar a cidade: • O obelisco: circundá-lo e colocar no topo uma pluma de aço; • A torre Saint-Jacques: curvá-la ligeiramente; • O leão de Belfort: fazê-lo roer um osso e girá-lo para o oeste; • O Panteão: cortá-lo verticalmente e separar as duas metades em 50 centímetros. Tentar calcular, com a ajuda de mapas e planos adequados, um itinerário que permita pegar sucessivamente todos os ônibus da capital. Tentar imaginar no que Paris irá se transformar.” (PEREC, 1999, A cidade, p. 105-6)
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“Descobrir o que não se viu, o que não se esperava, o que não se imaginava. Mas como exemplificar: não é o que havia sendo enumerado ao longo do tempo dentro do redemoinho de surpresas ou maravilhas deste mundo; não é nem o grandioso, nem o impressionante; nem sequer é forçosamente o estrangeiro: ao contrário, seria mesmo o familiar recobrado, o espaço fraternal...” (PEREC, 1999, O mundo, p. 118-9)
“Su de t rpresa o te er ven e dece mu mpo. E cido a pção d ndo d , p. star di istânc as viag 117 stan ia e ) te.” , de te ns. Ilu (PER r bo são rr EC, 199 ado 9, O
“Não tenho muito o que dizer a respeito do campo: o campo não existe, é uma ilusão.” (PERECE, 1999, O campo, p. 107)
“O mundo, não mais como um percurso que deve voltar a fazer sem parar, não como um caminho sem fim, um desafio que sempre terá que aceitar, não como o único pretexto de uma acumulação desesperante, nem como ilusão de uma conquista, senão como recuperação de um sentido, percepção de uma escritura terrestre, de uma geografia que havíamos esquecido de que somos os autores.” (PEREC, 1999, O mundo, p. 120)
“O espaço parece estar mais domesticado ou ser mais inofensivo que o tempo: em todos os lugares encontramos pessoas com relógios, mas é muito raro encontrar pessoas que carreguem bússolas. Precisamos saber as horas a todo momento, mas nunca nos perguntamos onde estamos.” (PEREC, 1999, O espaço, p. 127) “Em um momento preciso do dia, perguntar-se de uma forma mais sistemática sobra as posições que ocupam, uns em relação a outros e a nós mesmos, alguns de nossos amigos: enumerar as diferenças de nível (os amigos que, como nós, vivem no primeiro andar, os que vivem no quinto, no décimo primeiro, etc.), as orientações, imaginar seus deslocamentos no espaço.” (PEREC, 1999, O espaço, p. 127)
“Repertório de algumas palavras utilizadas nesta obra.” Uma lista alfabética de 176 palavras que foram utilizadas uma única vez em todo o livro, com exceção da palavra <cerejas> (2x).
“Jogar com o espaço: (...) Jogar com as distâncias: preparar uma viagem que nos permitirá visitar ou percorrer todos os lugares que se encontram a 314,6 quilômetros de nossa casa; encontrar nos planos, mapas do exército, o caminho que será percorrido. Jogar com as medidas: acostumar-se novamente com os pés e as léguas; tentar ter uma ideia definitiva e precisa do que é uma milha marinha (e um passo, um nó); lembrar que um “jornal” é uma medida de superfície: é a extensão de plantação que um agricultor consegue lavrar em um dia. Jogar com o espaço: Suscitar um eclipse do sol levantando o dedo (como Leopold Bloom em Ulisses). (...)” (PEREC, 1999, O espaço, p. 130)
“Gostaria que houvessem lugares estáveis, imóveis, intangíveis, intocados e quase intocáveis, imutáveis, enraizados; lugares que foram referências, pontos de partida, princípios: Meu país natal, o berço da minha família, a casa onde havia nascido, a árvore que havia visto crescer (que meu pai plantou no dia do meu nascimento), o vão da minha infância cheio de recordações intactas... Tais lugares não existem, e como não existem o espaço se torna pergunta, deixa de ser evidência, deixa de estar incorporado, deixa de estar apropriado. O espaço é uma dúvida: continuamente necessito marcá-lo, designá-lo; nunca é meu, nunca me é dado, tenho que conquistá-lo.” (PEREC, 1999, O espaço, p. 139)
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“Meus espaços são frágeis: o tempo vai desgastando-os, vai destruindo-os: nada se parecerá agora ao que era, minhas recordações me trairão, o esquecido se infiltrará nas minhas memórias, olharei algumas fotos amareladas com as bordas amassadas sem poder reconhecê-las. (...) O espaço de desfaz como a areia que desliza entre os dedos. O tempo leva-o e só me deixa uns quantos pedaços informes: escrever: tentar reter algo meticulosamente, conseguir que algo sobreviva: arrancar umas migalhas precisas do vazio que se escava continuamente, deixar em alguma parte um sulco, um rastro, uma marca ou alguns sinais.” (PEREC, 1999, O espaço, p. 139-140)
4. Lista-índice de fragmentos e resumos de textos encontrados dispersos e depois agrupados em um único volume, também acompanhados de comentários de terceiros (L’Infra-ordinaire, 1989). “Assim, o método de l’Infra-ordinaire consiste em pôr em prática uma descrição meticulosa que permita capturar as características de cada espaço, as formas de utilizá-lo, mas também a interação criadora entre o indivíduo e seus espaços no âmbito da vida diária.” (NETTEL, 2008, p. 10-1)
“A contribuição de Perec para fazer que essa espacialidade se torne visível e sensível, envolve dois níveis muito diferentes, mas complementares. De um lado, nos leva a refletir sobre a dimensão espacial da vida cotidiana e, do outro, sobre a construção tanto da identidade individual quanto da memória.” (NETTEL, 2008, p. 12)
“Um exemplo [o conceito infra-ordinaire] muito claro dos alcances que a descrição de um lugar pode ter em termos tanto analíticos como cognitivos.” (NETTEL, 2008, p. 12)
TEXTO “Approches de quoi?” [Aproximações a que?] (PEREC, 2008, p. 21-25) Publicado originalmente na revista Cause Commune n. 5, fev. 1973, p. 3-4. “Quem nos fala, me dá a impressão, é sempre o acontecimento, o insólito, o extraordinário: na capa, letras garrafais. Os trens só começam a existir quando descarrilam; (...) os aviões somente concedem sua existência quando são sequestrados.” (PEREC, 2008, p. 21)
“(...) como se a vida não devesse revelar-se nada além do espetacular, como se o eloquente, o significativo fosse sempre anormal: cataclismos naturais ou calamidades históricas, conflitos sociais, escândalos políticos...” (PEREC, 2008, p. 21-1)
“Em nossa precipitação por medir o histórico, o significativo, o revelador, não deixemos de lado o essencial: o verdadeiramente intolerável, o verdadeiramente inadmissível; o escandaloso não é o grisu [gás tóxico exalado da extração do carvão], é o trabalho nas minas. A <desigualdade social> não é <preocupante> em períodos de greve: é intolerável nas vinte e quatro horas do dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano.” (PEREC, 2008, p. 22)
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“A imprensa diária fala de tudo menos do dia a dia.” (PEREC, 2008, p. 22)
“O que realmente ocorre, o que vivemos, o restante, todo o demais, onde está? O que ocorre a cada dia e volta a cada dia, o trivial, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual. Como dar conta dele, como interrogá-lo, como descrevê-lo?” (PEREC, 2008, p. 22-3)
“Interrogar o habitual. Mas se é justamente ao que estamos habituados, não o interrogamos, não nos questionamos, não nascem questões, o vivemos sem pensar sobre ele, como se não veiculasse nem perguntas nem respostas, como se não fosse portador de informação. Isto não é nem sequer condicionamento: é anestesia. Dormimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas nossa vida, onde está? Onde está nosso corpo? Onde está nosso espaço?” (PEREC, 2008, p. 23)
“Talvez se trate finalmente de fundar nosso própria antropologia: a que falará de nós mesmos, a que buscará em nós mesmos o que durante tanto tempo temos copiado dos demais. Já não mais o exótico, senão o endótico.” (PEREC, 2008, p. 23)
“Como falar dessas <coisas comuns>, e como cercá-las, como fazê-las sair, arrancá-las da concha a qual permanecem agarradas, como dar-lhes um sentido, um idioma: que falem finalmente do que existe, do que somos.” (PEREC, 2008, p. 23) “Descrevam sua rua. Descrevam outra. Comparem-nas.” (PEREC, 2008, p. 24)
“Questionar o que parece ir tão naturalmente que cultivamos desde uma origem. Recuperar algo do assombro que experimentaram Julio Verne ou seus leitores frente a um aparato capaz de reproduzir e transportar o som. Porque existiu esse assombro, e outros mil, e foram eles os que nos moldaram.” (PEREC, 2008, p. 23-4)
“O que se trata realmente é questionar o ladrilho, o cimento, o vidro, os nossos modos à mesa, nossos utensílios, nossas ferramentas, nossas agendas, nossos ritmos. Questionar o que pareceria termos deixado de nos surpreender para sempre. Vivemos, obviamente, respiramos, obviamente, caminhamos, abrimos portas, descemos escadarias, nos sentamos à mesa para comer, nos deitamos em uma cama para dormir. Como? Onde? Quando? Por quê?” (PEREC, 2008, p. 24) “Façam o inventário de seu bolso, de sua bolsa. Questionem-se sobre a procedência, o uso e o destino de cada um dos objetos que vão sacando. Perguntem a suas colheres de chá. O que existe embaixo do seu papel de parede? Quantos gestos são feitos para discar um número de telefone? Por quê? Porque não encontramos cigarros nas lojas de comida? Por quê não?” (PEREC, 2008, p. 24)
Perec sendo entrevistado momentos depois de receber o prêmio Renaudot, em 1965.
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“Pouco me importa que estas perguntas sejam, aqui, fragmentárias, apenas indicativa de um método, ou muito um projeto. Me importa muito que pareçam triviais e insignificantes: é precisamente o que as faz tão essenciais ou mais importante que muitas outras com as quais tratamos em vão para captar nossa veracidade.” (PEREC, 2008, p. 24-5)
TEXTO “La rue Vilin” [A rua Vilin] (PEREC, 2008, p. 27-42) Publicado originalmente no jornal l’Humanité, 11 nov. 1977, p. 2. Seis pequenos textos, cada um datado, com a descrição ao vivo (réels) dos espaços e acontecimentos da rue Vilin. Todos os textos fazem parte do projeto “Les Lieux”. 1.
Quinta-feira 27 de fevereiro de 1969, por volta das 16h. (182 linhas)
2.
Quinta-feira 25 de junho de 1970, por volta das 16h. (62 linhas)
3.
Quarta-feira 13 de janeiro de 1971. (53 linhas)
4.
Domingo 5 de outubro de 1972, são catorze horas. (20 linhas)
5.
Quinta-feira 21 de novembro de 1974, por volta das 13h. (34 linhas)
6.
27 de setembro de 1975, por volta das 2 da madrugada. (3 linhas)
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Rue Vilin em 1970. Porta de acesso ao antigo salão de cabelereiros da mãe de Perec. “Coiffure pour dames”. Foto: Pierre Getzler.
TEXTO “Deux cent quarante-trois cartes postales em couleurs vèritables” [Duzentos e quarenta e três cartões postais coloridos autênticos] (PEREC, 2008, p. 43-76) Publicado originalmente na revista Le Fou Parle, n. 8, out. 1978, p. 11-16. Dedicado a Italo Calvino. 243 textos curtos que deveriam ser escritos como os textos escritos em cartões postais, mas seguindo uma estrutura de jogo e permutação matemáticas regrados da seguinte forma: A. ESTRUTURA: todo texto deverá ter cinco partes fundamentais:
1. Localização;
2. Considerações;
3. Satisfações;
4. Menções;
5. Saudações.
Por exemplo: 1º cartão postal “Acampamos próximo de Ajaccio. Tempo muito bom. Comemos bem. Me queimei de sol. Beijocas.” (PEREC, 2008, p. 43) 1. Acampamos próximo de Ajaccio = Localização; 2. Tempo muito bom = Considerações; 3. Comemos bem = Satisfações; 4. Me queimei de sol = Menções; 5. Beijocas = Saudações. B. VARIAÇÕES de cada parte fundamental:
1. Localização = Cidade (ou) Região (ou) Hotel;
2. Considerações = Tempo (ou) Siesta (ou) Bronzeamento;
3. Satisfações = Alimentação (ou) Praia (ou) Bem-Estar;
4. Menções = Insolação (ou) Atividades (ou) Encontros;
5. Saudações = Beijos (ou) Pensamentos (ou) Retorno.
Por exemplo: B.1
cidade 42º cartão postal “Aterrissamos em Deauville. (...)”; região 39º cartão postal “Estamos percorrendo o Yucatan. (...)”; hotel 31º cartão postal “Estamos no Hotel Dardanella. (...)”; A2_4 ... 23
tempo 27º cartão postal “(...) Tempo ideal! (...)”;
alimentação 243º cartão postal “(...) Comemos fora todas as noites. (...)”;
siesta 165º cartão postal “(...) Siestas demoradas (...)”; B.2 bronzeamento 242º cartão postal “(...) Grandes seções de bronzeamento. (...)”;
praia 12º cartão postal “(...) Praia imensa. (...)”; B.3 bem-estar 48º cartão postal “(...) Estamos bem. (...)”;
insolação 1º cartão postal “(...) Me queimei de sol. (...)”;
atividades 50º cartão postal “(...) Fizemos excursões. (...)”; B.4 encontros 104º cartão postal “(...) Temos conhecido um montão de gente apaixonante. (...)”;
beijos 154º cartão postal “(...) Mil e um beijos.”;
pensamentos 210º cartão postal “(...) Lembramos muito de vocês.”; B.5 retorno 96º cartão postal “(...) Voltamos no dia 21.”. Estas possíveis três variações dão como resultante a tabela: 1 2 3 4 5
A
F
K
CIDADE
REGIÃO
HOTEL
B
G
L
TEMPO
SIESTA
BRONZEAMENTO
C
H
M
ALIMENTAÇÃO
PRAIA
BEM-ESTAR
D
I
N
INSOLAÇÃO
ATIVIDADES
ENCONTROS
E
J
O
BEIJOS
PENSAMENTOS
RETORNO
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Ou seja: 3 opções x 3 x 3 x 3 x 3 = 35 = 243. Utilizando o exemplo dado acima, do 1º cartão postal: variação A-B-C-D-E. Ou então a variação K-G-M-I-O no 58º cartão postal: “Hotel Trianon. Tudo é confortável. Estamos bem. Equitação pela manhã. Voltaremos domingo à tarde.” (PEREC, 2008, p. 51). Todas as 243 combinações possíveis estão esboçadas nesse papel que encontramos entre envelopes e cartões postais dentro da carroça do “Catalogador”.
C. CONTEÚDO das variações: para cada uma das 15 variações Perec desenvolveu um inventário de frases e nomes e os distribuiu segundo uma outra fórmula de permutações. Por exemplo, para o conjunto das variações de Localização (cidade/região/hotel) ele fez uma lista com 81 nomes de cidades, 81 nomes de regiões e 81 nomes de hotéis. Cada uma das listas são compostas por 3 sub-listas (27+27+27) com um nome de cidade para cada letra do alfabeto (26) e uma letra coringa. Assim, temos 3 cidades com a letra A, três cidades com a letra B, etc.
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Manuscrito de Georges Perec. Esquema para esgotar todas as possíveis variações para a elaboração dos “cartões postais” (1978).
TEXTO “Tout autour de Beaubourg” [Ao redor do Beaubourg] (PEREC, 2008, p. 77-84) Publicado originalmente na revista Atlas/Air France, out. 1981, p. 54 e 66. Uma caminhada descritiva nas redondezas do centro cultura George Pompidou, mesclando fatos históricos, descrições factuais, memórias, sensações e percepções. Basta que haja um pouco de sol, para que, desde logo cedo, comece a festa: por aqui um grupo de engolidores de fogo ou de fortões com peitorais reluzentes e tatuagens bem visíveis; mais à frente um domador de cães inteligentes que instala com esmerada atenção seus tapetinhos, sua escadinha e a frágil plataforma em cujo topo chegarão graciosamente seus cãezinhos para postaremse sobre as duas patas contando até treze com a cauda; ali, os malabaristas, os monociclistas, os mímicos, os realejos; (...) (PEREC, 2008, p. 77)
TEXTO “Promenades dans Londres” [Passeios por Londres] (PEREC, 2008, p. 85-94) Publicado originalmente na revista Atlas/Air France, abr. 1981, p. 8-16. Estrutura semelhante ao passeio do Beaubourg, mas com pitadas de citações, lembranças de uma visita de infância, sempre estrangeira, e reflexões filosóficas. Duas surpresas esperam o viajante que chega do continente quando se encontra pela primeira vez em Londres. A primeira depende dos seus reflexos: antes de cruzar uma rua,olhará instintivamente para sua esquerda, apesar dos veículos virem da sua direita; demorará um certo tempo para que os músculos do seu pescoço se adaptem a essa nova situação. (...) A segunda surpresa será por conta dos ônibus, desses célebres veículos vermelhos de dois andares; quem vem de outro país se sentirá, no início, sem dúvida, desconcertado pela aparente complexidade dos itinerários e o nome das linhas; (...) (PEREC, 2008, p. 87)
TEXTO “Le Saint des saints” [O Santo dos santos] (PEREC, 2008, p. 95-100) Publicado originalmente na revista Vogue Hommes, n. 42, set. 1981, p. 94, 98 e 102, com o título alterado para “Ces bureaux qui révèlent votre personnalité” [Esses escritórios que revelam a sua personalidade]
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Descrições cínicas, poéticas, sarcásticas, sociológicas, etc. do “espaço” escritório, mas também do “homem-escritório”... No entanto, os escritórios dos diretores executivos e de outras autoridades muitas vezes não são vazios. Mas mesmo se os móveis, aparatos, instrumentos e acessórios estão albergados nem sempre têm muito a ver com as funções exercidas lá, eles obedecem no entanto uma necessidade mais profunda: a de encarnar, representar o homem que os usufrui e quem os tem escolhido como suas próprias marcas de status, prestígio e poder. Antes de serem escritórios são sinais, emblemas, impressões (...) (PEREC, 2008, p. 98)
TEXTO “Tentative d’inventaire des alimens liquides e solides que j’ai ingurgites au cours de l’année mil neuf cent soixante-quatorze” [Tentativa de inventário dos alimentos líquidos e sólidos que engoli no decorrer do ano de mil novecentos e setenta e quatro] (PEREC, 2008, p. 101-110) Publicado originalmente na revista Action Poétique, n. 65, 1976, p. 185-89. Mais uma tentativa impossível.... Doze pratos de embutidos, dois pratos de fiambre, n buffets frios, dois de cuscuz, três <chineses>, uma mulukheya, uma pizza, um pão banhado, um tahine, seis sanduíches, um sanduíche de presunto, um sanduíche de maionese de porco, três sanduíches de queijo Cantal. (PEREC, 2008, p. 106)
TEXTO “Still Life/Style Leaf” (PEREC, 2008, p. 111-122) Publicado originalmente na revista Le Fou Parle, n. 18, set. 1981, p. 3-6. Uma descrição minuciosa da escrivaninha de trabalho de Perec, com um loop interno, quando descreve a folha onde esse texto está escrito... No fundo esquerdo da mesa está uma caixa redonda de madeira torneada, com sua tampa, e dois pratinhos: o maior, de madeira cor castanho, contém moedas (sobretudo de 1 franco francês); o menor, de madeira escura, contém um botão de madrepérola, um dado de plástico azul cujas faces visíveis tem respectivamente dois e três pontos brancos, um clipe, umas pinças de desenho sobre as quais está escrito Posso Paris, dois alfinetes e dois pesos de cobre em forma de pirâmide truncada, que pesam respectivamente cinquenta (250 quilates métricos) e vinte (100 quilates métricos) gramas. (PEREC, 2008, p. 114)
5. Excerto de um guia da cidade de Paris elaborado por Perec e apresentado por um senhor que parece ser um grande amigo. (Perec/rinations, 1980-81 publicado em 1997). Publicado originalmente na revista mensal Télérama entre os anos de 1980 e 1981. Apresentação do livro Perec/rinations por Bernard Magné <Eu amo Paris.> <Eu amo jogar.> Georges Perec tem assim, também, dois amores. Nascido por volta de 1980, as Perec(g)/rinações, visita guiada pela capital, vinte e uma etapas para vinte arrondissements mais o sistema de metrô.
E também, ainda mais, uma exploração meticulosa do espaço com itinerários minuciosamente ajustados que são, para a geografia parisiense, como seus textos de restrições são para a literatura: por trás do pedestre de Paris, o homem
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Visite no tempo – do assassinato de Henri IV aos antigos presidentes da República, passando pela Exposição Universal de 1900, em suma <Paris e sua história> - onde a erudição imperturbável de Georges Perec ganha caminho livre.
das letras nunca está distante, inventando os percursos tautogramáticos (os nomes das ruas devem começar pela mesma letra) ou monotemáticos (ruas com nomes de aves, de cidades, de músicos) e imaginando uma deambulação alfabética, um percurso <ideal que, partindo de uma rua que começa com a letra Z passando sucessivamente por todas as letras do alfabeto>. Enriqueça seus itinerários à medida que enriquece seu vocabulário, viajar pelas <letras>, com a ajuda do alfabeto para <mudar de um espaço para outro, tentando o máximo possível não se debater>; há qualquer coisa também de metagramas onde, por transformações sucessivas, caractere por caractere, poderemos ir de Paris para Turim, Gênova ou Milão como outros transformaram a água em vinho. Adicione algumas citações incomuns, enigmas lógicos, listas e recordes insólitos semelhantes ao Guiness Book: a rua mais longa, o trajeto mais curto que alguém consegue fazer tomando o maior número de ruas. Não vamos esquecer as indispensáveis palavras cruzadas e suas definições constantemente perversas. Para entender: com essas Perec(g)/ rinações Georges Perec nos oferece, sob as aparências de uma caça ao tesouro ou de uma Paris modo de usar, um reflexo em miniatura, alegre e fiel ao seu trabalho de escritor. (MAGNÉ, 2004, p. 7-8)
EXEMPLO de uma das 21 “etapas”: (PEREC, 2014, p. 43-50)
As palavras cruzadas do VIeme arrondissement
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Enriqueça seus itinerários
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Pequena antologia parisiense
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Encontre o intruso As palavras cruzadas do VIeme arrondissement
Horizontais
I. Não vemos muito na rua, a não ser sob a forma de batata... – II. Uma rua que não se vê o fim. Reconheça. – III. Se você der a sua cultura, ela lhe dará a cultura... para recebêla no Quartier Latin... – IV. Porque ele estava frequentemente nas nuvens, ele se tornou famoso. – V. Partes muito mal divididas. Quartier Montparnasse. – VI. Na rue Danton. Nós realmente vemos todas as cores. – VII. A terça parte de uma tripa. – VIII. Hastes.
Verticais
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1. Tipo particularmente intimidador de lança-chamas. – 2. Faria sua rua muito grande e numerosa. – 3. Ele é afiliado aos Bourbons. Cartas de Voltaire. – 4. Qualifica um senhor que tem sua rua nesse Quartier. – 5. Na rue de Cherche-Midi. Uma artéria na contramão! – 6. Tomou a sucessão de Ali. Cartas de Joinville. – 7. Falamos frequentemente de botas. – 8. Imortais, mas não como os Acadêmicos.
os Acadêmicos.
Enriqueça seus itinerários Enriqueça seus itinerários O itinerário para descobrir inicia-se no Quartier de l’Europe, no VIIIe arrondissement e e passa por NOVE que começam comde a l’Europe, letra C. Ele termina, ou perto da arrondissement e O itinerário para ruas descobrir inicia-se notodas Quartier no VIII passa por NOVE ruas ou que começam com ou a letra termina, ou pertonão da estação de Saint-Lazare, perto da Placetodas Vendôme, pertoC.daEle Place de la Concorde, estação de muito Saint-Lazare, ounoperto da Place Vendôme, ou perto da cruzamentos Place de la vai demorar contando, desenvolvimento desse circuito, os dois Concorde, demorar muito contando, no desenvolvimento desse circuito, os que teremosnão que vai pular alegremente. dois cruzamentos que teremos que pular alegremente. Resposta: Da Place de Europe, pegar a rue de Constantinople até a Place Pr.-Goubaux de onde parte o Boulevard de Courcelles; vire à direita na rue de Courcelles; seguir até a rue Cardinet; ir até a avenue de Clichy que pegamos à direita; atravessar a Place Clichy e pegar a rue de Clichy; chegar na Trinité Resposta: Da Placepegar de Europe, pegar a rue de até a des Place Pr.(Place d’Estienne-d’Orves), a rue de Chaussée-d’Antin; virarConstantinople à direita no Boulevard Capucines Goubaux de onde parte o Boulevard de Courcelles; vire à direita na rue de Courcelles; que dá:
seguir até a rue Cardinet; ir até a avenue de Clichy que pegamos à direita; atravessar
a)ana rue Cambon a Place a derue la Concorde, Place Clichyaté e pegar de Clichy; chegar na Trinité (Place d’Estienne-d’Orves), rueCapucines de Chaussée-d’Antin; virar à direita no Boulevard des Capucines que dá: b)pegar na rueados até a Place Vendôme,
na rue Cambon até a de Place de la Concorde, c) na a) rue Caumartin até a estação Saint-Lazare.
Vers lui se tournent tous les yeux.
Amédée Pommier Paris, Garnier, 1866
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b) na rue dos Capucines até a Place Vendôme, c) na rue Caumartin até a estação de Saint-Lazare. Pequena antologia parisiense Paris! C’est lui Seul qu’on jalouse, Pequena antologia parisiense Lui qu’il faut absolument voir. L’Anglais fuit la Tamise et l’Ouse Pour y dépenser son avoir. Bref, il n’est vanité qui tienne, Et, bien que tout people ait la sienne, Qu’on le nie ou qu’on en convienne, Il n’est qu’un Paris sous les cieux, Plus que l’épouse de Mausole, Quiconque en est loin se desole; Comme une aiguille de boussole;
Encontre o intruso 1. Bordeaux, Brest, Lille, Lyon, Marseille, Nantes, Rouen, Strasbourg, Toulouse. 2. 21, 30, 39, 48, 57, 66, 75, 84, 93. 3. Bonaparte, Cambronne, Condé, l’Enfant Jésus, Jules Verne, Littré, Raspail, Renan. 4. Blanche, Hôtel des Invalides, Notredame de Paris, Place de l’Étoile, Place de la République, PortRoyal, Quai des Orfèvres, Réaumur-Sébastopol, Stalingrad. Respostas: 1. Toulouse não tem uma estátua na Place de la Concorde. 2. Somente o 93 não é uma linha de ônibus parisiense. 3. Todos esses nomes são nomes de ruas que levam à rue de Vaugirard, menos a rue Jules Verne. 4. Todos esses nomes de lugares parisienses são também títulos de livros ou filmes (respectivamente de: Aragon, Franju, Victor Hugo, Modiano, Louis Malle, Montherlant, Clouzot e Théodore Pliever) menos Réaumur-Sébastopol.
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TEXTO-AÇÃO
“Tentative de description de choses vues au Carrefour Mabillon” [Tentativa de descrição das coisas vistas no cruzamento Mabillon]:
POEMA-FOTOGRAFIA
6. Indícios-resumos de trabalhos pontuais relacionados com a temática das narrativas urbanas;
“La Clôture” [A Cerca], 1980.
Uma gravação em áudio de 6 horas no dia 19 de maio de 1978, descrevendo o que vê enquanto está sentado em uma caminhonete estacionada na altura do Café l’Atrium, no cruzamento Mabillon, um dos 12 lugares do projeto “Les Lieux”. Perec teve o apoio técnico de Michel Creis. Dessas seis horas apenas duas horas foram editadas e transmitidas na rádio France Culture (ACR) no dia 25 de fevereiro de 1979.
O nome do trabalho brinca com duas interpretações da palavra clôture, tanto como cerca, muro, parede, quanto com “séance de clôture”, frase que se diz para um encerramento de uma sessão. O texto é constituído por 17 poemas “hétérogrammatiques” (uma das restrições propostas pelo OuLiPo) escritos por Perec e 16 fotografias da Rue Vilin feitas por Christine Lipinska. O conjunto é acondicionado em uma caixa, sem nenhuma ordem, paginação ou numeração que indique uma lógica de leitura ou uma correspondência entre imagem e poema. Os heterogramas são constituídos por 12 versos escritos apenas com 12 letras: E – S – A – R – T – U – L – I – N – O – C – ?: as 11 letras mais comuns na língua francesa + 1 letra “carta branca”, que varia em cada verso, mas não se repete no poema.
FILME “Les Lieux d’une fugue” [Os lugares de uma fuga]. Curta metragem escrito, produzido e dirigido por Georges Perec em 1978. Com duração de 41 minutos, tem como cenário o Quartier Champs Elysees, onde nenhum personagem aparece, apenas a narração em off de Marcel Cuvelier de texto escrito por Perec em 1965 sobre uma fuga empreendida por ele da casa de sua tia Esther quando tinha 11 anos. Esse texto com fortes tons autobiográficos foi também publicado no livro Je souis né em 1990.
Perec gravando Les Lieuxs d’une fugue. Foto de Bernard Plossu, e cenas do filme, 1978.
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FILME
Caixa-poemas-fotos de “La Clôture”, de Perec e Lipinska, 1980.
“Les Lieux” [Os Lugares] (1969-1982): Trabalho inacabado e publicado em partes em diversas revistas e livros em períodos distintos (ver lista mais abaixo com detalhes dessas publicações).
PROJETO-CATÁLOGO
Os Lugares (Notas sobre um trabalho que estou realizando) Em 1969 selecionei 12 lugares em Paris (ruas, praças, esquinas, uma passagem) nos quais tinha vivido, ou que reuniam lembranças particulares. Me propus a fazer a cada mês uma descrição de dois destes lugares. Uma destas descrições se faz no próprio lugar e de forma mais neutra possível: sentado em um café ou andando pela rua, com um caderno e uma esferográfica na mão, trato de descrever as casas, os comércios, as pessoas com quais me encontro, os cartazes e, de um modo geral, todos os detalhes que atraem meu olhar. A outra descrição se faz em um local diferente do lugar: então trato de descrever o lugar de memória e evocar todas as recordações relacionadas com ele que me ocorrerem, sejam acontecimentos que ocorreram lá, sejam pessoas que encontrei lá. Quando estas descrições estiverem finalizadas, coloco-as em um envelope e lacro-o com cera. Em algumas ocasiões fui acompanhado ao lugar que estava descrevendo de um amigo(a) fotógrafo(a) que, livremente ou seguindo minhas indicações, tiraram fotos que coloquei também nos envelopes correspondente, sem vê-las (com exceção de apenas uma); também em algumas ocasiões coloquei nestes envelopes diversos elementos que mais tarde seriam suscetíveis de servir como testemunho, por exemplo bilhetes de metrô, ou mesmo recibos de consumo, ou entradas de cinema, ou panfletos, etc. Cada ano começo de novo estas descrições tendo cuidado, graças a um algoritmo que já citei anteriormente (bi-quadrado latino ortogonal, este de ordem 12), primeiramente, de descrever cada um destes lugares em um mês diferente do ano, logo, de não descrever no mesmo mês do ano o mesmo par de lugares. Esta empreitada, que se parece um pouco, em seu princípio, às <bombas de tempo>, durará doze anos, até que todos os lugares tenham sido descritos duas vezes doze vezes. Como o ano passado estive muito preocupado com a gravação de “Un homme qui dort” (no qual aparecem a maioria destes lugares), saltei o ano 73 e então não terei os 288 textos produto desta experiência até 1981 (a menos que sofra outro atraso...). Então saberei se valeu a pena: o que espero realmente não é outra coisa que deixar um registro de um triplo envelhecimento: o dos próprios lugares, o de minhas recordações e o de minha escrita.” (PEREC, 1999, A rua, p. 91-2)
Os 12 lugares: Rue Vilin (20eme), Place d’Italie (13eme), Rue de La Gaité (14eme), Avenue Junot (18eme), Rue de l’Assomption (16eme), Rue Saint-Honoré (1er), Carrefour Mabillon (6eme), Carrefour Franklin Roosevelt (8eme), Île Saint-Louis (4eme), Place Jussieu (5eme), Passage Choiseul (2eme) e Place de la Contrescarpe (5eme).
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Ao todo 133 envelopes foram lacrados dos 288 pretendidos (46%), ou seja, todas as descrições programadas entre os anos de 1969 e 1974, tanto as de memória quanto as feitas ao vivo, e as programadas para os meses de janeiro a junho de 1975, além da Place de la Contrescarpe descrita ao vivo em julho do mesmo ano. Além de apresentar o projeto no fragmento “la Rue” do livro “Espèces d’Espaces”, Perec também revela o projeto e a pasta de envelopes durante uma entrevista concedida no dia 22 de março de 1976 para o programa “Chemins” [Caminhos], do canal francês “Antenne 2”.
Localização dos “Lieux”, mapa de Saskia de Brauw. Fonte: http://www.saskiadebrauw.com/journal/2012/paris-perec-ii
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Perec apresentando o projeto “Les Lieux” no programa Chemins, em 1976.
Acima, manuscrito de Perec com tabela matricial de organização dos lugares, meses e anos para descrição. A primeira linha de cada ano representa o local a ser descrito de memória (código S, de Souvenirs), e a segunda linha de cada ano representa o local a ser descrito ao vivo (código R, de Réels). O projeto foi interrompido em 1973, por conta da produção do filme “Un homme qui dort”, mas retomado um ano depois. Depois disso o trabalho foi interrompido definitivamente, nunca sendo revelado seu real motivo. Por conta disso Perec não conseguiu publicar o livro todo, mesmo assim, alguns dos textos “envelopados” foram compilados e publicados pelo próprio Perec: “Tentative de description de quelques lieux parisiens: Guettées” [Tentativa de descrição de alguns lugares parisienses: Emboscadas] publicado na revista Les Lettres Nouvelles, n. 1, fev. 1977, p. 61-71. Sobre a rue de la Gaité, que aparece no título do texto como guettées [emboscadas], um trocadilho e brincadeira com a pronúncia das palavras em francês. “Tentative de description de quelques lieux parisiens: la Rue Vilin” [Tentativa de descrição de alguns lugares parisienses: a rua Vilin] publicado no jornal l’Humanité, 11 nov. 1977, p. 2. Também publicado no livro L’Infra-ordinaire. “Tentative de description de quelques lieux parisiens: vues d’Italie” [Tentativa de descrição de alguns lugares parisienses: pontos de vista da Itália] publicado na revista Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 16, 1977, p. 239-246. Sobre a Place d’Italie.
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“Allées et venues Rue de l’Assomption” [Idas e vindas Rue de l’Assomption] publicado na revista L’ARC, n. 76, 1979, p. 28-34. “Stations Mabillon” [Estações Mabillon] publicado na revista Action Poétique, n. 81, mai. 1980, p. 30-9. Sobre o Carrefour Mabillon.
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Chiffonnier sobre mapa de Paris. Gavarni, capa para o livro Le Diable Ă Paris, Paris, Hetzel, 1845.
7. Pequena lista de fragmentos de textos-comentários encontrados. A vertigem da enumeração se converte, portanto, em um afã do enclausuramento e da totalidade (o esgotamento), mas tudo isso sob o temor de sempre esquecer alguma coisa. (SAMANIEGO, 2011, p. 15) Entre o exaustivo e o incompleto – sustenta Perec – a enumeração é, antes de todo pensamento e de toda classificação, a marca da necessidade de nomear e de reunir, sem a qual o mundo e a vida careceriam para nós de referências. (SAMANIEGO, 2011, p. 15) Sem dúvida, a obsessão perecquiana se detém aí: se prende em um pequeno detalhe do detalhe, uma protuberância, um resquício ou um fragmento de coisa ou uma pequena porção de mundo que, de repente, sugere uma constelação. (SAMANIEGO, 2011, p. 20) Eis aí, mais uma vez, a singularidade, diríamos (crono)fotográfica, do olhar de Perec. Aproximando-se da dimensão mais cotidiana da existência, implanta sobre ela a travessia imaginada de um intervalo. Deslizando com morosidade e astúcia suprema sobre ela; esse enfoque intenso, lento, claramente anti-intuitiva, converte a própria realidade em um devaneio meditado. (SAMANIEGO, 2011, p. 22) E escritura, mais uma vez, como embalsamento: um proteger da própria coisa desaparecida em uma nova encarnação escritural. (SAMANIEGO, 2011, p. 28)
8. Curiosidades.
Três coisas curiosas foram inventariadas durante esse processo: 1. Um convite V.I.P. não utilizado para uma festa de vernissage da exposição “PERE(T)C: TENTATIVA DE INVENTARIO” no dia 28 de outubro de 2010 na sede da Fundación Luis Seoane, em La Coruña, Espanha. A exposição composta por materiais diversos de Perec ocorreu entre 29/10/2010 e 16/01/2011. 2. Uma carta escrita pelo curador Frederic Montornés, em papel timbrado do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona – MACBA, endereçada a Perec, mas ainda lacrada. A carta justificava a escolha do curador em fazer uma exposição intitulada Especies de Espacios naquele museu entre 16/06/2015 e 24/04/2016.
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3. Um rolo de filme do filme Cléo de 5 à 7, de Agnès Varda de 1962. O filme conta as duas horas da atriz Cléo enquanto aguarda o resultado de uma biópsia para saber se tem câncer. Essas horas são passadas caminhando pela cidade de Paris.
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