C2_7 | os errantes de paola

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Mecanismos Incorporadores Saco (elogios)

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OS ERRANTES DE PAOLA

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fl창neur; fl창neur; etn처grafos urbanos surrealistas; etn처grafos urbanos surrealistas; jogadores situacionistas. jogadores situacionistas.

mecanismos mecanismos incorporadores incorporadores sacosaco (elogios) (elogios)

OSOS ERRANTES ERRANTES DEDE PAOLA PAOLA


Assumir a presença do corpo no espaço urbano como maneira primordial para a constituição de um ser urbano mais disponível às dissensualidades inerentes do espaço do outro, como está sendo considerado ao estruturar-se a incorporação do Trapeiro, já não é nem um pouco inédito. Um corpo que caminha, que afeta e é afetado pelo espaço da Cidade já foi experimentado e argumentado por diversos autores. Existiu, e ainda existe, um grande campo de experimentação e pesquisa sobre a relação entre o corpo, o caminhar, a cidade, a subjetividade, a alteridade. Vários autores já se dedicaram a estabelecer critérios e a organizar essas relações, sempre dando-lhes a “corporalidade” de uma figura (às vezes, inclusive, mítica e heroica). Muitos deles, autores e figuras, são consagrados e são repetidamente resgatados e citados quando detêm-se sobre o assunto corpo/cidade/alteridade. São vários os títulos utilizados para indicar tais figuras, que, na essência, são praticamente idênticos. Afinal, a matriz de compreensão das relações corpo x espaço x alteridade é a mesma, variando olhares, caminhos, estratégias e ações. Por isso, como já visto em outros momentos, o Trapeiro não é novidade, ou melhor, muitas das características do Trapeiro também são desses outros: o Flâneur, os artistas etnógrafos Dada e surrealistas, os jogadores e criadores de situações e ambiências, os artistas do (urban) land-walk etc. Eles não são Trapeiros, alguns pedaços deles também são encontrados no Trapeiro. E, por conta do rigoroso processo científico a que nos habituamos, um trabalho acadêmico como este que está se desenvolvendo, deveria, para estabelecer paralelos conceituais, teóricos e simbólicos, debruçar-se sobre e recolher tais “sujeitos”, tais figuras, tanto no tempo quanto na teoria. Não seria estranho encontrar nessa tese, portanto, um ou mais fragmentos dedicados a eles. Seria, deveria ... Mas como em outros tempos, já assumimos que, do resultado “do rigor na ciência”, não se pode garantir muita coisa, certo? E também, vários são os pesquisadores que se debruçaram sobre esses “sujeitos”, essas figuras – tanto isolada e individualmente quanto estabelecendo uma coletânea, uma genealogia, uma linha do tempo. Assumir, por fim, o rigor científico e empreender também esse gesto já tanto experimentado, seria um recolher o já recolhido, colecionar o já colecionado, catalogar o já catalogado. Mesmo assim, tais figuras precisam constar numa tese que se dedica às mesmas questões experimentadas por eles. A questão do já recolhido, colecionado e catalogado não é motivo para omiti-los, e sim uma comprovação de suas relevâncias na discussão. Prefiro, para manter-me fiel à estrutura e à estratégia metodológica basilares desta tese, disponibilizar essas consagradas figuras – Flâneur, etnógrafos urbanos surrealistas e jogadores situacionistas – através da voz de uma autora que já os recolheu, colecionou e catalogou.

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Apesar de sua “pouca idade”, o livro já se encontra na segunda edição.

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Para marcar a presença dessas “três” figuras tão próximas do Trapeiro, figuras que fornecem alguns pedaços, partes de corpos a serem incorporadas pelo Trapeiro, me aproprio das palavras de Paola Berenstein Jacques, escritas e “colecionadas” no livro “Elogio aos Errantes”, publicado pela editora da Universidade Federal da Bahia (EdUFBA) – onde a autora é professora e pesquisadora – no final do ano de 2012, numa tiragem “justa” de 500 exemplares1. Nas cerca de 300 páginas, Paola tece um elogio


(...) da valorização de um tipo de experiência cada vez mais rara nas cidades contemporâneas: a experiência urbana da alteridade. As práticas da errância urbana – ou seja, as experiências erráticas da cidade realizadas pelos errantes citados neste livro – são pensadas como possibilidades de experiência da alteridade urbana. A principal questão em disputa, entretanto, está além da experiência da alteridade em si, já entrando no campo do simbólico, da partilha do sensível, no dizer de Jacques Rancière, ou da abertura do imaginário, como diz Ana Clara Torres Ribeiro. Na verdade, a principal potência em questão está na construção e na (contra)produção de subjetividades, de sonhos e de desejos. Assim, as narrativas urbanas resultantes dessas experiências realizadas pelos errantes, sua forma de transmissão e compartilhamento, podem operar como potente desestabilizador de algumas das partilhas hegemônicas do sensível e, sobretudo, das atuais configurações anestesiadas dos desejos. (JACQUES, 2012, p. 11)2

E como o próprio título do livro denuncia, Paola “(...) pretende elogiar os errantes, elogiar a experiência errática como possibilidade de experiência da alteridade, elogiar a valorização da experiência corporal das cidades” (p. 34). É com a figura do “errante” que a autora estabelece uma aproximação, nos faz um convite. A escolha dos errantes e de suas narrativas aqui analisadas, em cada um dos três momentos, foi afetiva: resultou de afinidades eletivas, na leitura de experiências através das narrativas errantes, que apresentaremos em várias citações. Esses errantes se relacionam afetivamente, mesmo sem se conhecer. Flâneurs, surrealistas, antropófagos, tropicalistas, letristas e situacionistas, por mais contraditório que pareça, dialogam através de suas narrativas errantes, criam uma interlocução crítica, apesar de errarem em cidades e conjunturas bastante distintas. Essas afinidades errantes instauram um mesmo processo com diferentes instâncias em momentos distintos. (p. 34-5, grifo do autor)

A autora, ao tecer tais elogios, convida, tanto o leitor quanto os errantes, a uma aproximação e faz uma pergunta: “Vocês se conhecem? Não? Vocês precisam se conhecer!”.3 Aceito o convite e a proposição da pergunta, estendendo-a também a meu leitor. Encontremo-nos e nos façamos conhecer e dialogar. Diálogos errantes com Flâneurs, etnógrafos urbanos surrealistas e Situacionistas criadores de situações e ambiências. Errantes urbanos, que também são “praticantes ordinários das cidades” (Michel de Certeau), “homens lentos” (Milton Santos) e “sujeitos corporificados” (Ana Clara Torres Ribeiro).

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2 Todas as citações, a partir desse momento, são recolhidas deste livro, por isso, desse ponto em diante, apenas figurará a indicação da página a que pertence. 3 Apesar de estabelecer uma relação de diálogo constante com os textos da professora Paola, só a conheci pessoalmente no XIV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, sediado no IAU-USP de São Carlos, em setembro de 2016. Na ocasião, sempre que cruzávamos com outros colegas, ela nos fazia a mesma pergunta: “Vocês se conhecem? Não? Vocês precisam se conhecer!”. Enfim, afinidades errantes!


Um primeiro localizador possível do livro Elogio aos errantes: os códigos CDDs de algumas das principais bibliotecas universitárias brasileiras (uma espécie de coordenada geográfica para uso em GPS). IAU-USP = 304.2 J19e

UFBA = 316.334.56 J19

IPPUR-UFRJ = 307. 76 J19e

CCMN-UFRJ = 304.2 J19e

FAUMACK = --------------

FAUUSP = -------------

FAAP = ------------

UNESP = ------------

IFCH-UNICAMP = 301.36 J165e

UFSC = 316.334.56 J19

FAU-UNB = 711.01 J19e

ARQ-UFRGS = 711.4-111.3 J19e

EA-UFMG = 307.76 J19e

CT-UFPR = 304.2 J19e

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4 Código CDD (Classificação Decimal de Dewey) no livro = 304.2; Grupo 300 = Ciências Sociais; 304.2 = Ecologia Humana, Antropologia Ecológica, Geografia Humana.

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Como sou habitual (quase um “Stalker” tarkovskiano) por esses caminhos errantes elogiados por Paola, sinto-me impelido a oferecer um mapa ao meu leitor. Um mapa que não necessariamente facilite o caminho, mas torne a errância interior mais intensa. Um mapa que não indica os caminhos internos no texto, função de um sumário ou índice remissivo, mas aponta para os desvios que ele proporciona. Não é um mapa para os perdidos, é sim um mapa para aqueles que procuram mais.


PRÓLOGO. Experiência / Errância / Errantologia

FLANÂNCIAS: multidão e anonimato ELOGIADO ELOGIADO

DERIVAS: participação e jogo

ELOGIADO

ELOGIADO

EPÍLOGO. Desorientação / Lentidão / Incorporação

ELOGIADO ELOGIADO

ELOGIADO ELOGIADO

ELOGIADO

DEAMBULAÇÕES: estranhamento e fugacidade

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01 - Paola Berenstein Jacques (1968) Arquiteta pesquisadora brasileira 02 - Jean Baudrillard (1929-2007) Sociólogo francês 03 - Jeanne Marie Gagnebin (1949) Filósofa suíça 04 - Giorgio Agamben (1942) Filósofo italiano 05 - Jean-François Lyotard (1924-1998) Filósofo francês 06 - Georges Didi-Huberman (1953) Filósofo francês 07 - Jacques Rancière (1940) Filósofo francês 08 - Michel Foucault (1926-1984) Filósofo francês 09 - Nicolas Edme Restif de la Bretonne (1734-1806) Escritor francês 10 - Georg Simmel (1858-1918) Sociólogo alemão 11 - Victor Hugo (1802-1885) Escritor francês 12 - Louis-Sébastien Mercier (1740-1814) Escritor francês 13 - Edgar Allan Poe (1809-1849) Escritor norte-americano 14 - Charles Baudelaire (1821-1867) Poeta francês 15 - Honoré de Balzac (1799-1850) Escritor francês 16 - Siegfried Kracauer (1889–1966) Jornalista alemão 17 - João do Rio (1881-1921) Jornalista brasileiro 18 - Émile Zola (1840-1902) Escritor francês 19 - Walter Benjamin (1892-1940) Filósofo alemão 20 - Ana Clara Torres Ribeiro (xxxx-2011) Socióloga brasileira 21 - Michel de Certeau (1925-1986) Historiador francês 22 - Milton Santos (1926-2001) Geógrafo brasileiro 23 - Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) Filósofo e Psicanalista franceses 24 - DADA (1916-1924) Grupo anti-arte europeu 25 - Tristan Tzara (1896-1963) Artista romeno 26 - André Breton (1896-1966) Escritor francês 27 - Louis Aragon (1897-1982) Escritor francês 28 - Surrealistas (1924-1966) Grupo artistas internacional 29 - Oswald de Andrade (1890-1954) Escritor brasileiro 30 - Flávio de Carvalho (1899-1973) Artista brasileiro 31 - Antropófagos modernistas (1922-1930) Grupo artistas brasileiros 32 - Johan Huizinga (1872-1945) Historiador holandês 33 - Internationale Lettriste (1952-1957) Grupo arte/política internacional 34 - Guy Debord (1931-1994) Filósofo francês 35 - Internationale Situationniste (1957-1972) Grupo arte/política internacional 36 - Antropófagos tropicalistas/superantropófagos (1967-1974) 38 - Lina Bo Bardi (1914-1992) Arquiteta Ítalo-brasileira 39 - Waly Salomão (1943-2003) Poeta brasileiro

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37 - Hélio Oiticica (1937-1980) Artista brasileiro


01 - JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. 02 - BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991. 03 - GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. 04 - Agamben, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 05 - LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. 06 - DIDI-Huberman, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 07 - RANCIÈRE, Jacques. Partilha do sensível. Estética e Política. São Paulo: Ed. 34, 2005. 08 - FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 09 - BRETONNE, Restif de la. As noites revolucionárias. São Paulo: Estação Liberdade, 2015. 10 - SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. 11 - HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Cosac Naify, 2002. C2_7 ... 8

12 - MERCIER, Louis-Sébastien. Le Tableau de Paris. Paris: La Découverte, 2006. 13 - POE, Edgar Allan. O homem da multidão. In: BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.


14 - BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 15 - BALZAC, Honoré de. A comédia humana, vol. 1 – 9. Rio de Janeiro: Globo, 2012. 16 - KRACAUER, Siegfried. Rues de Berlin et d’ailleurs. Paris: Gallimard, 1995. 17 - RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 18 - ZOLA, Émile. Le ventre de Paris. Paris: Gallimard, 2002. 19 - BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. 20 - RIBEIRO, Ana Clara Torres. Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia. In: Revista Brasileira de Educação Médica, v.24, n. 1, jan./abr. 2000. 21 - CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 20ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013. 22 - SANTOS. Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. 23 - DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1-5. São Paulo: Editora 34, 2004. 24 - DICKERMAN, Leach; WITKOVSKY, Matthew. (ed.). The Dada Seminars. Nova Iorque: D.A.P., 2005. 25 - GUINSBURG, Jacó (org.). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008. 26 - BRETON, André. Nadja. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 27 - ARAGON, Louis. O Camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 28 - GUINSBURG, Jacó (org.). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008. 29 - ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, maio 1928. 30 - CARVALHO, Flávio de. Ossos do mundo. Campinas: Editora Unicamp, 2014. 31 - ANDRADE, Mário de. Paulicea Desvairada. São Paulo: Casa Mayença, 1922. 32 - HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2012. 33 - JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva. Escritos Situacionistas sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 34 - DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 35 - JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva. Escritos Situacionistas sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 36 - VELOSO, Caetano. Antropofagia. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. 37 - OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

39 - SALOMÃO, Waly. Me segura qu’eu vou dar um troço. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003.

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38 - BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1994.


Antes de deixar-lhes livres para errar pelo texto de Paola Berenstein, é preciso salientar que “Elogio aos errantes” foi escolhido dentre tantos outros textos que tratam da “retrospectiva” corpo/cidade/alteridade não apenas pelo fato da afetividade e aproximação teórica, conceitual e referencial que tenho com a autora. Para o olhar interessado no Trapeiro, aquele livro vai além da apresentação e reflexão das figuras errantes. O texto é preciso ao catalogar, conceitual e teoricamente, os agentes e suas respectivas experiências errantes. As flanâncias, esse primeiro momento de nosso histórico errante, seriam então errâncias diretamente relacionadas à experiência corporal do perder-se lenta e voluntariamente no meio da multidão, do se deixar ser engolido pelo anonimato de tantos outros nas calçadas das grandes cidades. (p. 73) Os errantes que fizeram deambulações não estavam mais, como nas flanâncias, embriagados pela experiência e pelo choque da multidão nas ruas. Eles provocam a multidão, a devoram, entram nas passagens, se tornam passagens; como o trapeiro, recolhem trapos, sobras, restos da cidade, e se embriagam com a própria fugacidade moderna. (p. 131) Para resumir, pode-se dizer que o errante faz seu elogio à experiência principalmente através da desterritorialização do ato de se perder, da qualidade lenta de seus movimentos e da determinação de sua corporalidade. As três dinâmicas poderiam ser consideradas como resistências críticas ao pensamento hegemônico do urbanismo contemporâneo que ainda busca certa orientação, rapidez e, sobretudo, esterilização da experiência e presença física, corporal, nas cidades contemporâneas. (p. 305)

Mas, ao ler o elogio feito aos “Errantes da Paola”, percebe-se que tais errantes não são figuras iguais ao Trapeiro, eles não são a mesma coisa. Afinal, nem deveriam. São figuras peculiares, semelhantes em grandes questões mas diferentes em características essenciais. Arriscaria dizer, incluindo ele na lista, que o Trapeiro apresentado nessa tese é também Errante. O que talvez seja interessante é perceber o quanto há contaminações dos Errantes de Paola na constituição do Trapeiro. Como já dito acima, vários pedaços dos Errantes são recolhidos e incorporados pelo Trapeiro. Basta um observar interessado nas características dele durante a errância pelas páginas do livro para perceber que os “elogiados” têm pedaços no Trapeiros. (...) é a ambiguidade da figura que ele [Baudelaire] recria, o Flâneur, que faz parte dessa modernização e não poderia existir sem ela: a figura do flâneur é fruto da modernidade e da grande cidade; ao mesmo tempo que faz parte do contexto urbano da modernização, faz uma crítica contundente à efetivação prática das grandes reformas urbanas. (p. 47)

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[João do Rio] flana por partes da cidade que ele sabe que vão desaparecer em breve, que já estão desaparecendo, vive seu próprio tempo, mas já o vive como quem está diante de uma preciosidade efêmera. Não chega a ser um nostálgico, mas consegue ver uma potência naquilo que está em vias de desaparecimento. Descreve quadros urbanos e personagens das ruas em vias de extinção, quer captar, desvendar, decifrar, construir essa “alma encantadora das ruas”, da própria cidade, e o faz através de suas flanâncias pela cidade do Rio de Janeiro. (p. 67)


A escolha do lugar banal para a 1ª visita [Dada], uma igreja pouco conhecida, quase abandonada, com jardim que parecia um terreno baldio, em área turística da cidade – que escapou a Haussmann –, não parece tão casual. (p. 94) Trata-se de uma coleção de ossos, cujo colecionador [Flávio de Carvalho], que nos remete ao trapeiro de Baudelaire, faz um tipo de arqueologia antropofágica. (p. 112) Uma coleção de ossos é portanto mais importante a um observador que os ossos do próprio observador (...). A sensibilidade do homem são, precisamente, os ossos do mundo organizados em coleção (...). O homem vive no seu mundo, mas raramente se dá ao trabalho de examinar o mundo em que vive. Um exame dos objetos do mundo e das coisas encontradas no correr da vida, não somente desperta nova sensibilidade no indivíduo, e que antes se achava adormecida, mas também estabelece uma ligação anímica maior entre o indivíduo e o objeto examinado (...). De uma coisa jogada no acaso do mundo, ele se transforma numa coisa transbordando de sugestibilidade, ele adquire “atmosfera”. (...) Sem dúvida, por uma ironia natural, as recordações da história se congregam nos resíduos abandonados pelo homem e não destruídos, (...) toda a força que orienta a pesquisa do homem surge da grande sugestibilidade dos resíduos do mundo. (Flávio de Carvalho apud JACQUES, p. 112) Mas interessa perceber em seus [Os Surrealistas] relatos literários, principalmente em suas narrativas errantes, certa atitude etnográfica surrealista, um tipo de etnografia voraz (trouvailles) – essa busca do estranhamento do próprio cotidiano, a partir da atração pelos resíduos, pelas sobras da fugacidade urbana, num jogo contínuo entre familiar e estranho (unheimlich) – em suas deambulações urbanas. (p. 118) O livro de Aragon (...) foi crucial para seu [Walter Benjamin] projeto inacabado de livro sobre as passagens parisienses, que ele “editou” – mais do que escrever, ele, como o trapeiro de Baudelaire, recolhia resíduos, citações, de diferentes fontes – durante treze anos. (p. 120)

O homem em farrapos de Flávio de Carvalho se aproxima dos personagens de Baudelaire e de João do Rio: é esse homem em farrapos nas ruas, esse Outro urbano radical, que de fato dita as modas, que anuncia as criações em suas formas de inventar, por necessidade de sobrevivência, outras formas de vestir, de habitar, de viver. (p. 135)

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André Breton deambulava também pelo Marché aux Puces (mercado das pulgas) de Saint-Ouen, nas portas de Paris, onde ele exercia, como outros errantes já citados, seu devir trapeiro ou colecionador, em busca de potência do que está em extinção, em vias de desaparecer, do antiquado, do que contrasta com a modernização ao redor. (p. 122)


Espécie de poetizar do urbano » as ruas e as bobagens do nosso daydream diário se enriquecem » vê-se q elas não são bobagens nem trouvailles sem consequência (...) (Hélio Oiticica apud JACQUES, p. 164) No texto [de Hélio Oiticica] (...), podemos ver também uma referência clara aos surrealistas, com a ideia de trouvailles, que em outros momentos ele chamou de objets trouvés, resíduos e outras sobras urbanas, diretamente relacionados à questão do acaso objetivo e também da iluminação profana. (p. 165) Todos os pedaços do Rio de Janeiro têm para mim um significado concreto e vivo, um significado que era essa coisa que eu chamo de “delírio concreto”. (Hélio Oiticica apud JACQUES, p. 181) Assim, ela também deambula pela primeira capital do país, Salvador. Lina Bo Bardi frequentava as feiras de artesanato popular das cidades nordestinas como os trapeiros surrealistas frequentavam os mercados de pulgas parisienses: a busca de acaso objetivo e da iluminação profana, de objets trouvés ou de trouvailles do cotidiano, como dizia Oiticica. (p. 196-7) Na cidade “luminosa”, moderna, hoje, a ‘naturalidade’ do objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa. (Milton Santos apud JACQUES, p. 282)

Os Errantes de Paola fornecem interessantes fragmentos de figura alegórica para a incorporação empreendida pelo Trapeiro. Vários deles são rapidamente percebidos, alguns inclusive dão até um certo brilho ao corpo surrado do Trapeiro.

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Preciso agradecer a Paola pelas apresentações.


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