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CAIXAS E VALISES: OBSERVANDO E EXPERIMENTANDO MARCEL DUCHAMP
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Paradigmas e antecedentes ambientais Estrutura
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estrutura metodológica; estrutura metodológica; montagem; montagem; boîtes. boîtes.
paradigmas e antecedentes ambientais paradigmas e antecedentes ambientais estrutura estrutura
CAIXAS E VALISES: CAIXAS E VALISES: OBSERVANDO E EXPERIMENTANDO OBSERVANDO E EXPERIMENTANDO MARCEL DUCHAMP MARCEL DUCHAMP
“Tudo que já fiz de importante poderia estar em uma pequena valise”. Marcel Duchamp, 1952.
Este fragmento é didático. Visa explicitar uma intenção metodológica, compositiva e estratégica. Explicitar, não apresentar. Pois a intenção, o discurso não é criação minha. Aproprio-me, pelo menos conceitualmente, para constituir um processo metodológico de leitura da Cidade, de um procedimento estabelecido pelo artista plástico (?) francês Marcel Duchamp. Um procedimento metodológico que não foi, e não é, exclusivo do artista, mas que nas mãos dele foi explorado profundamente, pois como sintetiza Paz (1978, p. 90), “A arte de Duchamp é intelectual e o que nos revela é o espírito da época: o Método, a Ideia crítica no instante em que se reflete (...)”. Uma intenção metodológica porque pretendo com essa tese estabelecer uma outra maneira de estar na Cidade e também uma reflexão sobre o próprio fazer da pesquisa. Intenção compositiva que assumo na organização, estruturação e formatação do conteúdo quando apresento os fragmentos de texto, elogios e imagens, na tentativa, pelo menos conceitual, de “dispersão” do volume encadernado. Intenção estratégica como uma fundamentação e apresentação de uma ação, um procedimento, uma forma concreta de apropriação do assunto debatido. Intenções que encontro e observo em Duchamp. Marcel Duchamp foi um artista difícil de classificar na história e teoria da arte moderna. Pós-impressionista para alguns, Cubista para outros, às vezes Dadá e outras vezes Surrealista, ele será aqui considerado, para efeitos de genealogia do texto, um artista conceitual. Nascido no final do século XIX, Duchamp desenvolveu logo cedo em sua produção artística um olhar crítico e subversivo aos paradigmas da tradição pictórica da Arte daquele período. Com seus ready-made ou o Grande Vidro, por exemplo, fragilizou a pintura e a escultura modernas, introduzindo nestes suportes expressivos algo além da fruição estética e da representação pictórica ou simbólica. Esse algo além era a validade da Arte. Ao inutilizar um espaço expositivo ou assinar uma obra como Rrose Selavy (seu alter-ego feminino), ou até mesmo intitular de obra de arte um objeto ordinário como um mictório, Duchamp inaugura uma nova e irreversível forma de fruição da obra de arte, a conceitual.
Extrapolando as questões visuais e formais da pintura, Duchamp inventa e investiga um suporte outro para a arte, a Caixa. Um híbrido entre livro, escultura, pintura, registro, manual de instruções, catálogo, ready-made, a Caixa foi, para Duchamp, um suporte para o discurso, para o conceito. É nessas Caixas de Duchamp que encontro um ponto de fixação, aprofundamento e apropriação para uma experimentação das três intenções mencionadas acima.
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Considero a pintura como um meio de expressão, e não como um fim. Um meio de expressão entre muitos outros e não um fim destinado a preencher toda uma vida. Isso é o que acontece com a cor, que é somente uma das maneiras de expressão e não a finalidade da pintura. Em outras palavras, a pintura não deve ser exclusivamente visual ou retiniana. Também precisa afetar o cérebro, nossa vontade de entendimento e compreensão. (DUCHAMP, In JIMÉNEZ, 2012, p. 231, tradução do autor)
De acordo com o Dictionnaire général du surréalisme et de ses environs, CAIXAS (Boîtes) = Brincar com os objetos, com o aberto e o fechado, o secreto e o revelado, o grande e o pequeno, o leve e o pesado, com os materiais mais opostos; recusar ao mesmo tempo (ao menos provisoriamente) a pintura e a escultura; reencontrar os esconderijos da infância e simultaneamente os túmulos; evocar o simbolismo feminino das caixinhas; domesticar um pouco o amor e a morte; sonhar com os modos de habitar, de abrir ou fechar as portas. (BRETON, In DAHER, 2001)
Duchamp, sempre refletindo sobre sua própria produção, colocando-a em cheque a cada novo olhar, experimenta pela primeira vez, em 1914, a composição de uma caixa como uma outra possibilidade de compreensão do seu trabalho: A Caixa de 1914 (La boîte de 1914). Em uma embalagem de papéis fotográficos da Kodak – a fotografia começava a se estabelecer no meio artístico como forma de expressão – Duchamp acumula e organiza uma série de 16 páginas fac-símile de notas manuscritas e desenhos de estudo de seu trabalho em gestação, La mariée mise à nu par sés célibataires, même. Com essa coletânea, repetida 5 vezes, Duchamp dá início a uma reflexão sobre a originalidade, autenticidade e reprodutibilidade da obra de arte. Não mais apenas uma obra única e exclusiva, mas a disseminação concreta de seu valor artístico. Uma mesma obra poderia estar em 5 lugares simultaneamente. Claro que aqui a questão vai além da reprodução da obra, já estabelecida pelas técnicas de gravura. Para Duchamp, a questão era a obra que poderia ser única, mas era múltipla. Essa primeira caixa-coleção proposta pelo artista subverte também outro elemento constituinte do universo da arte e sua fruição: o observador. Ao possuir uma dessas caixas, o observador ganha um novo status perante a obra de arte, ele tem a permissão do artista para manipular a obra e não apenas observá-la. E ao manipulá-la, o observador transforma-se também em um pequeno curador e seu espaço particular em um pequeno museu. A decisão de como essas notas e desenhos serão dispostas fora da caixa e como elas serão lidas e fruídas não dependem mais da vontade do artista ou do curador do museu ou galeria, mas sim apenas do observador. Percebendo essa dinâmica criada com a caixa de 1914, Duchamp explora novamente a experiência da coleção de arte em miniatura e nômade em uma edição seriada de 320 unidades, que recebe o nome de A Caixa Verde, 1934 (La boîte verte, 1934). Uma caixa de papelão reforçado e coberto com um tecido aveludado verde com a inscrição em letras brancas La mariée mise à nu par sés célibataires, même na capa. Dentro da caixa Duchamp reproduziu 94 fotografias de desenhos, esquemas e notas manuscritas usadas para a elaboração da obra de mesmo nome, chamada também de O Grande Vidro. (...) a Caixa Verde, essa coleção de 93 documentos, publicado em 1934 e que constitui uma espécie de guia ou manual para o Grande Vidro. (PAZ, 1978, p. 09, tradução do autor)
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Se distingue da maioria dos textos modernos – porque esse quadro [Grande Vidro] é um texto – no qual o autor nos deu uma chave: as notas da Caixa Verde. Já mencionei que é uma chave incompleta, como também é o Grande Vidro; além disso, as notas são, a sua maneira, outro quebra-cabeças, signos dispersos que devemos reagrupar e decifrar. A Noiva... e a Caixa Verde constituem um sistema de espelhos que trocam reflexos; cada uma delas ilumina e retifica a outra. (PAZ, 1978, p. 39, tradução do autor)
Mais uma vez Duchamp coloca em questão a originalidade da obra e transforma o processo de criação – notas, esboços, esquemas de construção – em parte da expressão
artística. Não existem mais bastidores ou experimentos equivocados na produção artística de Duchamp. O texto também é imagem, também é obra. Esta maneira especial de editar os escritos [não como livros, mas em caixas] coloca em evidência sua plasticidade: os fac-símiles das palavras, da escritura, se colocam em pé de igualdade com os dos desenhos e esquemas, e portanto, com as figuras e componentes plásticos do “Grande Vidro”. Duchamp não queria compilar esses textos na forma habitual do livro, como testemunhamos na nota 66: «fazer um livro redondo, quer dizer, sem começo nem fim, como se as folhas estivessem soltas e fossem ordenadas pela última palavra da página repetida na página seguinte (sem numeração de páginas)». Com as caixas, Duchamp encontrou a alternativa que havia estado buscando. (JIMÉNEZ, 2012, p. 20, tradução do autor)
O artista ainda experimentaria essa dinâmica em outras três caixas: Caixa-aviso (Boîte Alerte) de 1959-60 (em parceria com Mimi Parent), A Caixa-em-valise (La boîte-em-valise) de 1941 e No infinitivo, a caixa branca (À L’infinitif, la boîte blanche) de 1966. Os conteúdos destas caixas continuam sendo reproduções miniaturizadas de suas pinturas, desenhos, ready-made e anotações pessoais. Nestas duas últimas, Duchamp aprofunda ainda mais a possibilidade de construção curatorial das obras, utilizando novas técnicas de reprodução fotográfica, impressões em papéis transparentes e texturizados, introdução de elementos tridimensionais e sistemas de encaixes e deslizamentos de partes internas das caixas. James Johnson Sweeney – E sua valise? Marcel Duchamp – Outra nova forma de expressão. Ao invés de pintar algo, pensava em reproduzir, em miniatura, os quadros que mais me agradavam, deixando-os com um volume muito mais reduzido. Não sabia como fazêlo. Pensava em um livro, mas não me agradava a ideia. Então me ocorreu a possibilidade de uma caixa onde todas minhas obras se encontrariam reunidas como em um museu em miniatura, um museu portátil, por isso que instalei a caixa em uma valise. J. J. S. – Ela se tornou uma espécie de ready-made memorandum, certo? (JIMENEZ, 2012, p. 232, tradução do autor)
A segunda tática utilizada por Duchamp para a dispersão do livro – o que chamei de suas “páginas em liberdade” – prossegue em um efeito análogo por acabar com a encadernação unitária, em favor da proliferação de anotações ou folhas de papel independentes. A Caixa Verde (1934), coleção de notas referentes ao Grande Vidro, é o exemplo mais proeminente desta prática, mas suas raízes são anteriores ao período Dada de Duchamp. Em 1914, Duchamp produziu uma série de cinco obras em que várias notas e um desenho foram reproduzidos como fotografias e acondicionadas em caixas de material fotográfico. O texto é aqui transposto para fotografia em uma manifestação do que, três anos depois, Apollinaire chamaria livres d’images. A libertação da página a partir de qualquer ordem fixa realizada por Duchamp parece ter sido
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Da primeira a última caixa, Duchamp utiliza a proposição da montagem e da desmontagem constante e cíclica do pensamento e da produção artística, um quebra-cabeças. A cada nova composição, possível graças ao formato de lâminas avulsas agrupadas e não um livro com as páginas costuradas e sequenciais, os elementos “colecionados” se apresentavam de uma forma diferente e acionavam uma outra possibilidade de leitura do conjunto. Cada elemento da caixa ganha um novo olhar a cada nova organização, a cada nova alteração de seus vizinhos. Nas palavras de Duchamp, “O espectador faz o quadro”.
disciplinada em Rendez-vous du Dimanche 6 Février 1916 ... de 1916, na qual uma grade de quatro quadrados é construído a partir de cartões postais cobertos com um absurdo texto datilografado, além disso, esta nomeadamente grade é assombrada pela conceitualmente mobilidade geográfica infinita – as páginas são cartões postais que poderiam, em teoria, terem sido enviados de qualquer lugar. (JOSELIT, 2005, p. 225-6, tradução do autor)
Enfim, é na observação do procedimento que Duchamp estabeleceu nas caixas (tanto com relação ao fruidor que se torna leitor, curador e editor da obra, ao ser chamado e internalizado no processo, quanto com relação à estratégia de fragmentação e liberação da ordem de composição e interpretação do discurso) que encontro fundamento para uma ação que será experimentada na tese, não só metodologicamente, mas também compósita e estrategicamente. Além dessas questões estruturais à pesquisa, algumas provocações serão levadas daqui para um outro fragmento do percurso da tese: Seria possível transpor o procedimento das caixas de Duchamp para a leitura e apropriação da Cidade? Essa experiência faria algum sentido científico? Poderíamos estar na Cidade com uma valise? Ou uma caixa?
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A Caixa de 1914 (La Boîte de 1914).
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A Caixa Verde (La mariée mise à nu par ses célibataires, même, La Boîte Verte), 1934.
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Caixa-na-valise (La BoĂŽte-em-valise), 1941.
Caixa alerta, cartas luxuriosas (Boîte Alerte, missives lascives), 1959.
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No infinitivo, a Caixa branca (À l’infinitif, la Boîte blanche), 1966.
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Marcel Duchamp com sua Caixa-na-valise, 1942.
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