B_2 | os tempos do trapeiro

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Alegoria Central O Trapeiro

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OS TEMPOS DO TRAPEIRO

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trapeiro; trapeiro; linha tempo; linha do do tempo; vestígios históricos. vestígios históricos.

alegoria central alegoria central o trapeiro o trapeiro

OS TEMPOS DO TRAPEIRO OS TEMPOS DO TRAPEIRO


Chiffonnier Rag-picker Trapero Lumpensammler Skrotplukker Тряпичники (tryapichnik) Trapeiro1 Personagem tipicamente urbano, o trapeiro não possui muitas qualidades, suas características são básicas e pode ser representado desvinculado de algum gênero, idade ou raça. Trapeiro, trapeira, o pequeno trapeiro, o velho trapeiro, o trapeiro francês, o trapeiro chinês etc. Investiga e se apropria dos restos e inutilidades das cidades com três ferramentas simples e vulgares: uma vareta com um gancho na ponta, para revirar e vasculhar os trapos e montes de lixo; um saco ou cesto de palha para carregar os itens recolhidos; e uma lanterna ou lampião para iluminar os caminhos escuros das madrugadas na Cidade. Sua existência nunca foi efetivamente registrada e documentada pela história oficial, sempre ficando, como é esperado e característico, nas margens e bordas da Cidade, da sociedade. Para dar conta, pelo menos parcial, dessa situação, o que se segue aqui é uma coletânea de tempos do trapeiro na história – da arte, da literatura, da cidade, da sociedade. Essa coletânea se assemelha, e deve ser entendida assim, com um típico álbum de família, já bastante velho, pouco acessado, configurado cronologicamente e com várias partes faltando, ou por esquecimento da memória ou por abandono inconsciente da história, ou até mesmo por desconhecimento. Um detalhe importante a ser ressaltado é a forte e maciça presença de elementos franceses nessa coletânea. Isso não significa que os tempos do trapeiro somente aconteceram naquele país, mas sim uma ressonância natural resultada da predileção e familiaridade com os autores franceses, tanto da arte quanto da literatura e filosofia. O trapeiro! qual é o parisiense que não cruzou durante a noite na rua com este personagem singular? Com a capa e o saco nas costas, a lanterna na mão esquerda e o gancho na mão direita, ele inspecionou a cidade nas caminhadas pelas ruas da capital. (PAULIAN, 1910, p. 03)

1 Gravura de autor desconhecido, pertencente ao livro “Mémoires”, de Monsieur Claude (Chefe de polícia e segurança no período do Segundo Império em Paris), editado por J. Rouff et Cie, 1884.

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O trapeiro é tão antigo quanto o mundo. O tempo todo há pessoas, reduzindo as suas necessidades às mais simples, buscando uma maneira de viver e morar com mais facilidade, recolhendo as migalhas de uma condição mais abastada. (PAULIAN, 1910, p. 04)


SÉC. XIII - XVIII

Le chiffonnier-ferrailleur, autor desconhecido, séc. XV.

Les Cris de Paris “Choros”, gritos e micro canções para anunciar a passagem do vendedor ambulante, que mais tarde se tornariam personagens urbanas da cidade. Os gritos dos vendedores ambulantes tem origem na Idade Média. Primeira forma oral de publicidade, eles eram parte integrante do ruído das cidades. Um dos mais antigos testemunhos históricos sobre os gritos de Paris (Les cris de Paris) nos é fornecido pel’O Livro dos trabalhos (Le livre des métiers) de Etienne Boileau, um compêndio produzido em 1261-68, onde o autor descreve os modos e costumes dos comerciantes de rua. A gritaria aparece como um serviço público sob a dependência da autoridade real, com regras, condutas e restrições. Homens, mulheres e crianças andavam nas ruas e gritaram seus produtos ou serviços para atrair os compradores. Cada comércio tinha o seu próprio grito característico. Um dos gritos mais conhecidos dos trapeiros era: “J’achete vieux fer, vieux drapeaux. Aussi la menagere sage, en ramassant petits lambeaux, fait tout server a son menage.” “Aceito ferro velho, cortinas velhas. Assim como a dona de casa inteligente, pega pequenos pedaços/trapos que servem para toda sua faxina.”

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Em alguns momentos da história, o trapeiro era chamado, além do mais conhecido Chiffonnier, também por termos como Locquetier (farrapeiro), Pattier (vendedor de coisas velhas), Drillier (pedaços de jóias) e Biffin (Gancho).


1698

Autor desconhecido, s/d.

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“Desde 1698, um longo decreto legal proíbe os trapeiros de perambular pelas ruas e bairros após a aurora”. (PAULIAN, 1910, p. 06)


1751

Ilustrações da Diderot Encyclopédie Paris, mostrando as etapas de manipulação dos trapos para a transformação em matéria-prima para produção de papel.

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Imagens 1 e 2 - Sala para separação e seleção dos trapos; sala para remoção de botões, grampos e outros elementos estranhos. Imagens 3 e 4 - Sala com pilões, movidos à água, para maceração e fragmentação dos trapos. Imagem 5 - Sala com tacho para fermentação dos trapos macerados.


1761

IndĂşstria de papel Holyoke, s/d.

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Gravura de Joseph J. de la Lande, Art de faire le papier. Sala de triagem dos trapos em fĂĄbrica, ou moinho, de papel.


Le Chiffonnier. Charles Joseph Travies, em Physionomie de Paris, 1840

1782

Honra ao trapeiro! “Eu disse, esta palavra indizível! Será que serei perdoado? Você vê esse homem que, com a ajuda do seu gancho, coleta tudo o que encontra no lamaçal, e atira-os no seu saco? Não se afaste, não precisamos ser orgulhosos, sem falsa delicadeza. Esse humilde trapo é a matéria bruta que irá adornar nossas bibliotecas e os preciosos tesouros da mente humana. Esse trapeiro precede Montesquieu, Buffon e Rousseau. Sem o seu gancho, meu livro não existiria para você, caro leitor; que poderia não ser uma coisa ruim, eu garanto. Mas você não teria livros: você deve àquele trapo que virará papel, cuja origem, para o trapeiro, parece tão humilde. Todos esses trapos transformados em pasta, e isso será usado para conservar as chamas da eloquência, os pensamentos sublimes, as generosas características das virtudes, os atos mais memoráveis de patriotismo. Todas essas voláteis ideias serão fixadas tão rapidamente quanto foram concebidas. Todas essas imagens, tiradas do intelecto, serão fixadas, impressas e coladas; e apesar da natureza, que leva o homem genial à morte, estes desabafos irão agora pertencer ao mundo, e não irão perecer com o homem. Honras ao trapeiro!”

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Louis-Sébastien Mercier, no livro Tableau de Paris.


1823

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Litogravura Les ExtrĂŞmes se touchent (Os extremos se tocam), de Hippolyte BellangĂŠ.


1828

A função do trapeiro é regulamentada por decreto real, o trabalhador deveria usar crachá (medalha de latão) emitido pela polícia + lanterna + vassoura para limpar a bagunça das calçadas após revirarem os montes de lixo. Credencial dada inicialmente para ex-presos em troca de informações, depois para velhos e aleijados, mais tarde até mesmo para crianças. Com isso, forma-se uma guilda hierarquizada: Chiffonnier (trapeiro), Placier (arrumador), Coureur (corredor).

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Trapeiras em Paris, autor desconhecido, s/d.


1834

Uma figura memorável circula pelas ruas de Paris declamando textos em Grego e Latim enquanto recolhe os trapos, o Chiffonnier Philosophe (Trapeiro Filósofo), chamado Liard. Provavelmente semi-analfabeto, repetia o que “lia” nos restos que recolhia.

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Gravura de Charles-Joseph Traviès de Villers.


1843

Félix Pyat e um trapeiro, gravura de Cham, s/d.

“O trapeiro, este filósofo da noite, que se aventura cidade adentro com seu saco nas costas e seu gancho em mãos. Não tenho certeza se temos o direito de classificar sua indústria entre os comércios menores. Na maioria das vezes, o trapeiro é um filósofo sério e solene que dorme durante o dia e trabalha à noite. O trapeiro é tão implacável e tão paciente quanto sua sina: ele aguarda, mas quando a hora de sacar seu gancho chegar, nada consegue frear seu braço. Um mundo inteiro passou pelo seu saco! As leis do império apressam-se a se juntar aos decretos republicanos nessa cova provisória; todos os poemas épicos desde Voltaire passaram por ali; todos os jornais, à trinta anos, se afundam nesse abismo sem fundo, que devora continuamente o que é constantemente renovado. O saco do trapeiro é a grande ladeira abaixo onde todo o lixo da prosa, verso, eloquência, imaginação e pensamento descem. A esse respeito, o trapeiro é uma figura bastante singular, que merece sua própria história especial. O trapeiro é muito superior a um fabricante: ele é um magistrado, um magistrado que julga irrevogavelmente a glória humana. Ele é ao mesmo tempo juiz, agente e executor.”

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Jules Janis no livro Un hiver à Paris.


1857

Le vin des chiffonniers (O vinho dos trapeiros), de Charles Baudelaire. Muitas vezes, a luz rubra de um lampião Cuja chama se bate ao vento em turbilhão No vidro, em bairro antigo, dédalo lodoso Onde humanos se agitam em mar tempestuoso, Vê-se um trapeiro vir, a cabeça meneando, A bater nas paredes qual poeta, tropeçando, E sem se preocupar com espigões, seus sujeitos, Expande o coração em gloriosos projetos. Ele faz juramentos, dita leis sublimes, Arrasa o malfeitor, as vítimas redime, E, sob o firmamento, qual pálido estendido, De esplendores se embriaga, e de merecimento. Sim, a gente acuada por mágoas do lar, Moída por trabalho e a idade a atormentar, Desancada e dobrando sob escombros vis, O vômito confuso da enorme Paris, Retorna, perfumada de um odor de talhas, Seguida de parceiros, limpos nas batalhas, Bigodes a pender, bandeiras ancestrais. As flâmulas, as flores e arcos triunfais Erguem-se diante deles, solene magia, E na ensurdecedora e luminosa orgia Dos clarins, sol ardente, gritos e tambor, Eles trazem a glória ao povo ébrio de amor!

Pra afogar o rancor e ninar a indolência Desses velhos malditos morrendo em silêncio, Por Deus, arrependido, o sono foi criado; O homem o vinho fez, do Sol filho sagrado! (BAUDELAIRE, 2011, p. 130-1)

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É assim que através da Humanidade estulta O vinho rola ouro, Pactolo que exulta; Pela garganta do homem canta ele os seus feitos E reina por seus dons como um rei de direito.


1860

O trapeiro é valorizado. Relato de um trapeiro chamado Desmarquest: Primeiro, existem aqueles que nasceram no negócio dos trapos; os filhos dos trapeiros nunca conheceram outra atividade. Depois, existem muitos outros que, como eu, no inverno de 1860-61, estando sem trabalho, me tornei um trapeiro no período noturno, por medo de ser reconhecido. Usava um chapéu de abas largas que cobria até os olhos. Naquele momento eu conseguia 6 ou 7 francos cada noite de trabalho (até meia noite ou uma hora da madrugada). Quando o bom tempo retornou, e havia novamente trabalho como carpinteiro, eu não aceitei nenhum e continuei recolhendo trapos, tomando coragem e trabalhando durante o dia. Ganhando apenas 3,75 francos por dia na carpintaria, eu preferia recolher trapos pois era mais lucrativo e tinha mais liberdade. (BARBERET, 1886, p. 103-4, notes d’un chiffonnier).

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Alguns trapeiros enriqueceram, comprando os trapos recolhidos pelos “coureurs” e “placiers” e revendendo para a indústria têxtil e, principalmente, a indústria do papel, impulsionada pelo crescimento da imprensa. Segundo Sabine Barles (2005), estima-se que havia 15 mil trapeiros em Paris e mais de 100 mil na França, na segunda metade do século XIX. A autora também apresenta uma tabela com os preços médios obtidos da venda dos materiais coletados pelos trapeiros parisienses na década de 1860. Destaca-se a grande variedade de “materiais e objetos” que circulavam nos sacos dos trapeiros, coureurs e placiers; principalmente trapos de tecidos, cabelos e ossos. Como já dito anteriormente, os trapos de tecidos eram usados na produção de papel, restos de cabelo eram transformados em barbantes, cordas, pincéis, e os ossos humanos e de animais: tutano era retirado para auxiliar no refino do açúcar da beterraba, produção de botões, pentes e cabos de cutelaria, base de gelatinas e colas, fertilizante e fonte de fosfato para a fabricação de fósforo.


As trapeiras, de Géniole, s/d.

1862

Victor Hugo, no seu romance seminal Les Misérables (Os Miseráveis), apresenta rapidamente, dentre tantas personagens urbanas “miseráveis”, uma velha trapeira: Aqui a trapeira interveio: - Comadres, os negócios vão mal. O lixo está que é uma porcaria. Não jogam mais nada fora. Comem tudo. - Ainda há gente mais pobre que a senhora, D. Vargoulême. - Ah! isso é verdade – respondeu a trapeira com deferência -, eu, ao menos, tenho uma ocupação. Houve uma pausa, e a trapeira, cedendo ao desejo de ostentação que constitui o fundo do homem, acrescentou: - De manhã, quando volto para casa, trato logo de separar as minhas coisas: por isso, o meu quarto está cheio de montes. Ponho os trapos num cesto, os talos numa panela, os panos de linho no armário, os de lã na cômoda, os papéis velhos no canto da janela, o que serve para comer numa tigela, os pedaços de vidro na lareira, os chinelos atrás da porta e os ossos debaixo da cama.

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(HUGO, 2002, p. 947, quarta parte, livro décimo primeiro, momento II)


1864

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The Parisian Rag-pickers, do russo Vasily Perov.


1866

Charge da revista semanal inglesa Punch, or the London Charivari, mostrando o imperador francês Napoleão III vestido de trapeiro, num diálogo com o chanceler prussiano Otto von Bismarck: PAZ – E NÃO PEDAÇOS! Bismarck: “Perdão meu amigo, mas nós realmente não podemos permitir que você recolha nada por aqui.” Napoleão (o trapeiro): “Puxa, não diga, senhor! Não é a menor consequência.”

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Caricatura de autor desconhecido, s/d.


1859-1870

Le Buveur d’absinthe (1859) e Le Chiffonnier (1965), de Edouard Manet.

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Durante quase dez anos, na década de 1860, Manet assumiu uma tarefa de registrar numa série de pinturas, incentivado e inspirado pelo amigo Charles Baudelaire, alguns personagens urbanos que viviam nas ruas e terrenos vazios nos arredores do seu estúdio. Duas obras fundamentais dessa coleção, que foram reprovadas nos salões artísticos da época e causaram grande incômodo à sociedade burguesa, acostumada a ser registrada pelos pintores dos salões, são as pinturas “O bebedor de absinto” de 1859, uma clara referência ao trapeiro/poeta Baudelaire (O vinho dos trapeiros), e “O trapeiro” de 1965.


Litogravura de Desrosiers à Moulins, s/d.

1869

“Veja esse trapeiro que passa, curvado. Sua pálida lanterna; há nele mais coração do que em todos os seus companheiros de rua. (...) Mas, de onde ele está localizado, o olhar penetrante do trapeiro continua incansavelmente em suas trilhas, em meio à poeira!”

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Conde de Lautréamont, Les chants de Maldoror (Os cantos de Maldoror: canto 2, estrofe 4).


Chiffonniers, de Paul Geniaux, s/d.

1883

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No dia 24 de novembro deste ano, a prefeitura de Paris lança uma regulamentação para padronizar os tipos e possíveis dimensionamentos das latas de lixo na cidade. Foram adotados três tipos de contenedores: o primeiro para orgânicos; o segundo para panos e papel; e o terceiro para vidro e cerâmica. Os três poderiam ter duas versões de tamanhos, 80 ou 120 litros.


Le chiffonnier philosophe, caricatura de Honoré Daumier, 1847.

1884

No dia 07 de março, é lançada a lei municipal de Eugene Poubelle, chamada Enlèvement des ordures ménagères, règlement (Coleta de lixo, o regulamento), onde as definições sobre os contenedores seriam definitivamente regulamentadas, considerando inclusive os dias e horários de coleta para cada uma das categorias. Além disso, a lei torna proibido aos trapeiros de mexer nas latas de lixo, podendo apenas recolher os resíduos encontrados no chão das calçadas.

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Antes da lei municipal, o chefe de família com esposa e três filhos ganhava 10 francos por dia, uma média de 2 francos por pessoa. Quando foi proibido esvaziar a lixeira em vias públicas, 50% dos resíduos utilizáveis que o trapeiro costumava coletar foi perdido para a indústria francesa. Então, ao invés de 2 francos por dia, o trapeiro ganhava míseros 1 franco. Eu sou um comerciante de trapos! Antes da lei, eu empregava seis homens e um certo número de mulheres. Eu costumava comprar em média, 500 francos de resíduos por dia; desde a aprovação da lei, eu tenho comprado apenas 140 ou 150 francos; ao invés de seis homens, eu emprego apenas três. E de dez ou doze mulheres, eu demiti a metade. Agora, esses homens e mulheres que não trabalham mais para mim, não conseguem trabalho com meus colegas comerciantes de trapos também. Eles estão nas ruas de Paris, sem conseguir trabalho. Obviamente será difícil para essas mulheres conseguirem trabalho como costureiras ou fazendo lingerie, essa é a crise que estamos sofrendo. (Declaração de M. Potin, mestre trapeiro, para o comitê dos 44, uma comissão parlamentar sobre a situação dos trabalhadores parisienses. In BARBERET, 1886, p. 70).


1899-1900

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Eugène Atget fotografa pequenos comerciantes e vendedores de rua na velha Paris, catalogando-os no álbum “Le petits métier de Paris”. O trapeiro é uma personagem recorrente.


1900

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Pintor realista-impressionista Irlandês, Henry Allen (1865-1912) apresenta duas trapeiras indo em direção à fábrica de papel nos arredores de Dublin.


1902-1904

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Cartões postais típicos da cidade de Paris no começo do século XX, representando não só os sítios turísticos, os espaços cotidianos da cidade, mas também os personagens urbanos.


1908 Música La Fille du chiffonnier de Adolphe Bérard (1879-1946), com letra de Paul Pickaert e Adolphe Stanislas.

Montre, fouille les vieux chiffons Les vieilles loques, les guenilles C’est pour ma gosse aux cheveux blonds Pour élever mon trésor, ma fille Que je trime ainsi jusqu’au jour Où cette enfant, ma seule richesse Courageuse et forte à son tour Sera mon bâton de vieillesse Le chiffonnier reçut un jour une lettre C’était sa fille qui lui disait ceci : Pardonne-moi et daigne me permettre De t’expliquer ma fuite du logis J’ai un amant plusieurs fois millionnaire, J’ai domestiques, voiture, diamants Si vous voulez dès demain ne rien faire Maman et toi vous aurez de l’argent De l’argent ? On.... les vieux chiffons Répondit l’père plein de rage Tu peux garder tous tes millions, Tes valets, tes équipages T’as vendu ta beauté, ton cœur Désormais, tu n’es plus ma fille Mais sache que souvent l’honneur Se cache sous une guenille

Uma noite de inverno por uma noite pálida Ela nasceu, não tendo nenhum berço Ganhou a pilha de trapos esquecida no saco Que o pai carregava em suas costas Imediatamente convocar a família Quase meia-noite coragem para trabalhar E todo feliz por ter uma filha O trapeiro cantava com alegria no coração: Observe, procure os trapos Os velhos farrapos, os panos É para a minha cria, com cabelos loiros Para enaltecer o meu tesouro, minha filha Que eu trabalhava até hoje Onde esta criança, a minha única riqueza Valente e forte, por sua vez Será a minha bengala na velhice O trapeiro um dia recebeu uma carta Era a sua filha, que lhe disse: Perdoe-me e deixe-me dignar Para explicar-lhe a minha fuga de casa Eu tenho um amante milionário, Eu tenho casa, carro, diamante Se você não intervir no futuro Mamãe e o senhor terão dinheiro Dinheiro? Temos... os trapos Respondeu o pai cheio de raiva Você pode guardar todos os seus milhões, Os seus servos, seus subalternos Você vendeu a sua beleza, o seu coração Agora, você não é mais minha filha Mas sempre saiba que sua honra Está oculta sob um farrapo B_2 ... 25

Un soir d’hiver par une nuit pâlotte Elle naquit, n’ayant pour tout berceau Qu’un tas d’chiffons oubliés dans la hotte Que le papa reprenait sur son dos Là maintenant faites mander la famille A peine minuit du courage au labeur Et tout heureux de posséder une fille Le chiffonnier chantait la joie au cœur:


1910 ÉCOLES

DES

BIBLIOTHÈQUE

1

ET

FAMILLES

DES

LA

DU CHIFFONNIER

1- HOTTE v$_

PAR

LOUIS OUVRAGE

D'après

PAULIAN

ILLUSTRE

J.

DE

P.

FÉRAT,

4 GRAVURES

etc.

RENOUARD,

ÉDITION

CINOUILME

PARIS

LIBRAIRIE

HACHETTE 79,

BOOLEÏUD

SAIVT-GEHM\IN,

ET

C'r

79

1910 Dro.hdt

l"rt'I1"I,

'Ild< IrII<h"-11tJU r< tt"£!

O deputado, escritor, estudioso e entusiasta das relações humanas na cidade moderna, Louis Paulian, depois de ter passado quase dez anos, transvestido, entograficamente, acompanhando os mendigos do centro da cidade; experiência que publicou no livro de 1893, Paris qui mendie. Publica em 1910 uma grande homenagem aos trapeiros parisienses, La Hotte du chiffonnier, algo como “o saco/capa do trapeiro”. No livro, Paulian apresenta vários fatos históricos, trágicos e cômicos, trapeiros famosos, grandes transações realizadas pelos mestres trapeiros, leis, normas e restrições municipais que caíram sobre homens e mulheres que viviam de recolher os trapos da cidade. Na apresentação do livro, uma dedicatória apaixonada e devotada:

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Aos meus amigos, os trapeiros, que, noite após noite, sem perceberem o estudo que estava realizando, me guiaram através deste estranho mundo que habita a cidade, nas lanchonetes Biron, nos bailes no Vieux Moulin e morrendo estoicamente em uma pilha de lixo; a vós que me fizeram ver e tocar o dedo que muitas vezes força a privação dos trapeiros, os sopros e a miséria em direção a liberdade, sem conceber e obedecer a nenhum mestre, eu dedico este livro. (PAULIAN, 1910, p.01)


1913

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Eugène Atget acompanha os personagens urbanos de Paris, inclusive o trapeiro, fotografando seus costumes, suas moradias, suas relações sociais, compilando toda essa documentação em um álbum específico, chamado “zoniers”. Os trapeiros e suas famílias, expulsas da região central da cidade, modernizada por Haussmann e a jovem indústria do turismo, se deslocam para a periferia limítrofe de Paris, numa região apelidada de La Zone. Uma faixa de terra de mais ou menos 300 metros de largura que contornava Paris entre os anos 18411919, junto das fortificações abandonadas de Thiers (fortifs), onde, então, não era permitida a construção de nenhuma edificação. A La Zone se tornou a área dos trapeiros, ciganos e mambembes.


1920 Cartão postal da década de 1920. Autor desconhecido.

“(...) o dia amanheceu na avenida enquanto os trapeiros designados para aquela porção da rua vão habilmente vasculhar com seus ganchos as últimas latas de lixo. Em seguida passam os garis municipais, escovando os paralelepípedos sob finas camadas de água. Depois, é a vez dos caminhões de coleta a aparecer. Ávidos pelo lixo que os coletores de restos enfiaram dentro das latas, sem nenhum escrúpulo tilintando as latas, avisando os zeladores dos edifícios para buscar seus recipientes, e fazendo com que as empregadas domésticas nos andares superiores fechassem novamente as venezianas”.

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(SIMONIN, 1971, p. xx)


1928

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A vida dos trapeiros que moravam na La Zone, próximo à Porte de Clignacourt, foi registrada em um documentário mudo e preto e branco de 28 minutos, dirigido e filmado por Georges Lacombe, intitulado La Zone: Au pays des chiffonniers. O filme apresenta, numa mistura de realismo cru e um espaço construído na fantasia, as relações humanas, sociais, espaciais, urbanas e objetuais que os trapeiros tinham perante a explosiva modernização e turistificação da cidade de Paris, disputando corpo a corpo com a indústria do lixo e da reciclagem os resíduos da grande cidade.


1940

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Cartaz inglês do período da 2ª Grande Guerra incentivando e reconhecendo, mesmo anedoticamente, a importância da presença do trapeiro na coleta e reutilização dos resíduos modernos.


1949

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Ex-parlamentar francês, o padre Henri Grouès (conhecido também pelo seu “nome de guerra” da época das lutas da Resistance, Abbé Pierre [padre Pierre]) fundou o Les Chiffonniers d’Emmaüs (referência a uma comunidade palestina), uma fundação de apoio aos trapeiros desabrigados, antigos moradores da La Zone. Apesar da resistência por parte dos trapeiros profissionais, vários se inscreveram nos programas da fundação. Hoje a fundação atende mais de 18000 pessoas na França e existem 337 grupos em 37 países em todos os continentes.


1954

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Escritor e tradutor francês, Boris Simon-Gontcharov (1913-1972) escreve um romance biográfico do Abbé Pierre e os moradores da fundação, publicado com o nome de Les chiffonniers d’Emmaüs.


1955

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Seguindo o lançamento do livro de Simon-Gontcharov, o diretor, roteirista e ator francês Robert Darène (1914- ), produz um longa metragem baseado e homônimo ao livro de Boris, utilizando muitos dos moradores da fundação como atores e figurantes.


1958

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Em uma cena do filme Mon Oncle, numa típica provocação sutil e bem humorada, Jacques Tati constrói uma resistência e um saudoso choque entre o trapeiro, vinculado à primeira e “velha” modernização do final do século XIX, com a colossal e ainda atrapalhada indústria do plástico do pós-segunda guerra. Uma pequena participação que auxilia na construção geral de um dos argumentos do filme: a convivência ainda tensa e tênue entre a tradição (e a humanidade) com a nova tecnologia (e a racionalização).


1977

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Jopie Huisman (1922-2000), trapeiro holandĂŞs que se intitulou artista-trapeiro. Pintor hiper-realista, Huisman recolhia objetos e os catalogava em suas pinturas. Talvez a mais representativa seja a tela De schatten van oude Jouke (Tesouro do velho Jouke).


1989

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Diretor francês Denis Amar (1946- ), produz um longa metragem sobre a biografia do padre Abbé Pierre durante o rigoroso inverso de 1954. O título do filme é Hiver 54, l’Abbé Pierre.


Villa d’un chiffonnier, Eugène Atget, 1912.

2003

O apanhador de desperdícios Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. (BARROS, 2015, p. 149)

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O poeta brasileiro Manoel de Barros, ao poetizar sobre a sua infância, constrói uma ingênua e sensível aproximação ao trapeiro, que o poeta chama de “apanhador de desperdícios”.


2016

Catador de papelão Marcos Vinícius, 2016.

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Marcos Vinícius é catador de papelão no centro da cidade de São Paulo. Passa o dia circulando pelas ruas da capital com sua carroça-assemblage. Canta e assobia, sempre que possível. São momentos raros, ele confessa, pois o peso do material carregado e a irregularidade e inclinação de seus caminhos o forçam a uma respiração dura e articulada aos esforços do puxar, subir, frear, desviar. Durante a noite “repousa” corpo e veículo sob a marquise aqui da esquina. Até procuraria e recolheria mais materiais durante as horas da madrugada, período de menos movimento nas ruas da cidade, mas todo filho de deus precisa descansar, justifica o homem respirando como se ainda carregasse sua carroça nas costas. Em dias alternados, o tempo exato para sobrecarregar de papel e papelão a caçamba de sua carroça, Marcos passa pela cooperativa de reciclagem da Bela Vista e descarrega todo seu material recolhido. Sai de lá com cerca de R$ 40,00 que deposita orgulhoso, mas ao mesmo tempo melancólico, em um “cofre” (uma velha lata de óleo de cozinha transformada) escondido sob a caçamba da carroça. Tem família, que habita uma casa improvisada da favela da Fumaça na beira da represa Billings. Marcos tem 5 filhos com Josiane, sua esposa há 20 anos. Ele os visita pelo menos 3 vezes por mês, quando encontra um local seguro no centro da capital para deixar sua carroça. Mas Marcos Vinícius não é um trapeiro. Não faz parte da família. Do trapeiro só lhe resta a semelhança física, pois nada mais coleciona, apenas coleta e repassa. Do ruído inútil e contrassensual do ancestral personagem, este nosso catador do século XXI não faz mais parte, pois apesar de ser marginalizado e invisível é inteiramente capturado pelo aparelho capitalista, neoliberal e racionalizado da indústria da reciclagem. É uma engrenagem do sistema; meio descompensada e mambembe, é verdade, mas uma engrenagem. De tudo que recolhe, nada é resignificado por ele. Nada fica com ele. Nem teria porque ficar, complementa argumentando nosso catador, pois carregar algo que vale alguma coisa pela cidade e não convertê-lo em dinheiro seria até irracional, certo? Não há lugar em nosso catador para a subversão, individuação e subjetividade, apenas espaço para a alienação e sofrimento sistêmicos e racionalizados. Era de se esperar... que pena.


Apesar de verossímil, a história de Marcos Vinícius não é real, não existe. Marcos Vinícius não existe. Entretanto, pedaços dele devem estar presentes certamente em algum João do papelão, Tião catador, Zé Maria da carroça... O que se tira daí é a narrativa, a potência da percepção.

Mas, infelizmente, já muito distante das questões seminais do trapeiro como personagem urbano, efeito lógico decorrente da transição tecnológica empreendida pela sociedade do consumo, da obsolescência programada, da utilização em escala global de materiais mais sintéticos e de total reaproveitamento e transformação, chegamos no século XXI com os catadores de materiais diversos em um momento dentre os tempos apresentados que talvez seja necessário ter, retroativamente, uma postura semelhante ao antigo trapeiro, recolhendo os restos deixados por todos esses tempos anteriores e dar-lhes outro significado. Reconfigurar sua condição, apropriar-se dos rastros deixados pelos tempos do trapeiro. Transformar o trapeiro em Trapeiro. Assim como o poeta, resignificar o personagem real em alegoria poética (espectral, inclusive). Assim como o filósofo, resignificar a condição trapeira em discurso, teoria, conceito. Enfim, resignificar o trapeiro em hipótese para, depois, experimentá-la, colocá-la à prova.

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Ter o Trapeiro como tese.


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2017-


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