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HÁ UMA FLÂNEUSE?
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flanagens flanagens urbanas; urbanas; percepção percepção corporal; corporal; gênero. gênero.
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HÁHÁ UMA UMA FLÂNEUSE? FLÂNEUSE?
Este é um fragmento totalmente arbitrário, sem fundamentação teórica, científica, conceitual; sem argumentação, pretensão, estruturação. Ele tem embasamento empírico, propósito, inquietação, desejo de virar alguma coisa... pelo bem e sentido delas. Explico. Consideremos a observação interessada da multidão feita pelas personagens de E.T.A. Hoffmann em 1822, como ponto de fundação de uma linha genealógica dos personagens urbanos interessados nas leituras urbanas subjetivas. Considerando ainda que, como segundo momento dessa linha genealógica, está a personagem convalescente de Edgar Allan Poe, que observa, em 1840, a multidão através da vitrine de um café londrino, e que, furtivo, posteriormente, decide seguir um homem desconhecido pela cidade. Certamente o ponto seguinte dessa linhagem de leitores/escritores da Cidade moderna seria o artista-repórter Sr. G, poeticamente apresentado por Charles Baudelaire em 1863, e intitulado de Flâneur; figura “inaugurada” por Rousseau no século XVIII. Principalmente para Walter Benjamin, interlocutor filosófico de Baudelaire no começo do século XX, o Flâneur se torna o personagem urbano símbolo da Cidade moderna, o primeiro a experimentar corporal e anonimamente, oscilando entre a aura e o rastro da modernidade, as transformações urbanas decorrentes do desenvolvimento tecnológico resultado da modernização da sociedade urbana. “Errer est humain, FLÂNEUR est parisien.” Victor Hugo Com todo esse interesse e reflexão filosóficos, o Flâneur e a flanagem [flânerie] recebem os holofotes da história e se convertem em situação máxima para as investigações urbanas vinculadas ao indivíduo, às percepções, ao caminhar, às memórias e à vida cotidiana. Mas a figura do Flâneur, assim como imortalizou Benjamin via Baudelaire, foi a figura heroica da Cidade Moderna. Caberia hoje, numa sociedade hipermoderna, com sua condição Junkspace, assumirmos essa persona como possibilidade de leitura e incorporação do espaço urbano? E uma pergunta ainda mais “visceral” na configuração dessa figura: o Flâneur é a representação do cidadão ocioso, pequeno burguês e homem. Seria possível pensarmos nas características clássicas do Flâneur – observador apaixonado, incógnito na multidão – assumindo o feminino, o ser mulher na Cidade?
Por mais pura ingenuidade, beirando a ignorância ou falta de reflexão sobre a realidade, acreditava na “assexualidade” do Flâneur, ou pelo menos do ato de flanar. Caminhar pela cidade, observando apaixonadamente qualquer instante, coisa, acontecimento,
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Uma pergunta aparentemente circunstancial na atualidade (2016), onde o debate sobre gênero – igualdade, aproximações, empoderamentos, diversificações – é frequentemente resgatado e atualizado (não por menos, finalmente). Mas antes uma pergunta honesta e decorrente de um processo ingênuo da parte deste pesquisador tão preocupado e envolvido com as questões de apropriações e experiências corporais e subjetivas nas cidades. Uma reflexão iniciada após o reconhecimento, cada vez mais evidente, das dificuldades empreendidas por várias alunas (principalmente durante as aulas de PI3) ao assumir as possibilidades de leitura de determinados territórios urbanos de São Paulo, especialmente a região da Sé e República (zonas centrais da cidade). A cada retorno à sala de aula, a cada momento de resgate das experiências das flanagens, a cada construção narrativa sobre o cotidiano urbano, ressaltava uma certa superficialidade e pobreza de relatos e registros, mesmo vindo de alunas notadamente dedicadas e interessadas.
mantendo-se envolvido e ao mesmo tempo incógnito e afastado da multidão, tendo disponível todo o corpo para tal “leitura”, me parecia algo bastante claro como sendo possível ao “ser humano/urbano”, qualquer que um que fosse, desde que assumida a intenção e a disponibilidade para tal. Nunca havia me ocorrido que, em nossa sociedade tão marcada pela condição masculina dos espaços urbanos, a presença do corpo feminino seria a tal ponto percebida que praticamente inviabilizaria qualquer ato ou processo perceptivo de uma mulher nesses espaços. Não se evoca um corpo puro, pré-cultural, pré-social ou pré-linguístico, mas um corpo como objeto social e discursivo, um corpo vinculado à ordem do desejo, do significado e do poder. (...) O que está em jogo é a atividade e a atuação, a mobilidade e o espaço social concedidos às mulheres.1
Com as evidências dos fatos ocorridos e a evidente explicitação dessa condição de gênero, muitas perguntas e inquietações surgiram: numa sociedade marcadamente masculina, uma mulher consegue observar mais do que é observada, ver mais que ser vista2, perceber mais que ser percebida? O caminhar da mulher consegue ser livre e despreocupado, consegue se desvencilhar do olhar da plateia masculina, que transforma esse caminhar em uma constante performance, passarela, vitrine ou mostruário? Enquanto, sob os olhos dos homens (generalizado enquanto sociedade), a mulher é transformada – estupidamente, insisto – em objeto vivo, como seria possível constituir uma percepção subjetiva (do sujeito) dos espaços vividos? Como a mulher incorporaria a rua e seu cotidiano se a sociedade a qual faz parte constituiu historicamente relações depreciativas a termos como “mulher da rua”, “mulher pública”? São relações muito antagônicas se pensarmos nos termos “homem das ruas”, ou “homem público”. Como caminhar incógnita pela Cidade se a sociedade tende à (implícita ou explicitamente) controlar e definir sua presença nos espaços públicos via sua sexualidade, geralmente vista como caótica, ameaçadora e subversiva; uma espécie de natureza selvagem a ser subjugada pela cultura masculina? As mulheres do século XIX muitas vezes foram retratadas como excessivamente frágeis e puras para o mar de lama da vida urbana e se viam comprometidas quando saíam à rua sem um propósito específico. Portanto, as mulheres legitimaram sua presença indo às compras – provando, ao comprar, que elas não estavam à venda. (SOLNIT, 2016, p. 393)
Esse controle faz da sexualidade feminina uma questão pública, e não privada? Teria a mulher antes de qualquer processo de percepção e experiência urbana, que lidar com a construção social que sinonimiza a visibilidade e presença urbana à acessibilidade e disponibilidade sexual (seja moral, verbal, ou até mesmo física)? Para incorporar o Flâneur, a mulher precisaria estabelecer uma barreira material, e não moral nem a sua vontade pessoal, para que ela se torne inacessível e incógnita aos transeuntes? Seria
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1 GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 14, p. 45-86, jun. 2015. ISSN 1809-4449. Disponível em: <http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/ view/8635340>. Acesso em: 31 out. 2016. 2 Basta notar o recorrente aparecimento de “mulheres observadas” em textos de Baudelaire (A uma passante), de Breton (Nadja) e de Aragon (Prostituta), por exemplo, como elementos de desejo, mistério, conflito, atenção...
preciso se fantasiar para sair à rua? Uma persona sobre outra persona? E que fantasias poderiam ser essas? Fantasiar-se de homem? Desfazer-se se sua própria subjetividade e individualidade? O quanto as consequentes percepções seriam válidas e constitutivas? Ou seria melhor fantasiar-se do outro oposto? De prostituta? Seria possível “estabilizar” tal processo de objeto de visibilidade através do excesso e escancaramento da visibilidade? Será que a mulher só conseguiria desfrutar da “liberdade de ser ignorada” caso ela se “masculinizasse” ou se “super vulgarizasse” a ponto de, em ambos os casos, não ser mais desejada pelos homens (no segundo caso pela eliminação explícita da “gratuidade”)? E o que fazer enquanto nossa sociedade ainda carrega esses e outros enormes paradigmas e pré-conceitos masculinos, que alternativas seriam possíveis à mulher que deseja experimentar a cidade como o Flâneur? Existiria a possibilidade da Flâneuse? Ainda mais, seria possível um homem (este pesquisador) responder a todas essas perguntas? Não ocorreria mais uma vez, dentro da sociedade, o atendimento masculino aos falsos “desamparos” e fragilidades femininos? Não seria mais uma vez o homem suprindo a necessidade de resposta e retirando da mulher sua subjetividade e possibilidade de resposta? Pois bem, algumas são as mulheres que se dedicam a encontrar respostas, ou pelo menos argumentos, para a relação do corpo feminino, da cidade e da experiência vivida. E como bom Trapeiro, recolho-as e coleciono-as: •
Rebecca Solnit – A história do caminhar. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
• Amy Murphy – Traces of the Flâneuse: from “Roman Holiday” to “Lost in translation”. Journal of Architectural Education, Hoboken, NJ, v. 60, n. 1, p. 33-42, set. 2006. ISSN 1531-314X. Disponível em http://onlinelibrary.wiley.com/wol1/doi/10.1111/j.1531-314X.2006.00058.x/full. em: 31 out. 2016. •
Acesso
Michelle Perrot – Mulheres públicas. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
• Griselda Pollock – Modernity and the spaces of femininity. Vision and Difference: Feminism, Femininity and the Histories of Art. London: Routledge, 1988. • Elizabeth Wilson – The invisible Flâneur. New Left Review, London, UK, v. 1, n. 191, p. 90-110, jan-fev. 1992. Disponível em <http://newleftreview.org/I/191/elizabethwilson-the-invisible-flaneur> Acesso em: 31 out. 2016. • Elizabeth Wilson – The sphinx in the city: Urban Life, the control of disorder and women. Los Angeles: University of California Press, 1992. • Katharina von Ankum – Women in the Metropolis: Gender and Modernity in Weimar Culture. Los Angeles: University of California Press, 1997. • Deborah Parson – Streetwalking the Metropolis: Women, the city and modernity. Nova York: Oxford University Press, 2000.
• Janet Wolff – Gender and the Haunting of Cities (or, the retirement of the Flâneur). In D’Souza, Aruna and McDonough, Tom (eds.). The Invisible Flâneuse? Gender, public space, and visual culture in the nineteenth-century Paris. Manchester: Manchester University Press, 2008.
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• Lauren Elkin – Flâneuse: Women walk the city in Paris, New York, Tokyo, Venice and London. London: Penguin Books, 2016.
• Janice Mouton – From Feminine Masquerade to Flâneuse: Agnès Varda’s Cléo in the City. Cinema Journal, Austin, TX, n. 40:2, p. 3-12, jan. 2001. Ouvindo-as, percebo em todas elas uma ambiguidade e quase impossibilidade de estabelecer estratégias concretas da incorporação da Flâneuse. Enquanto não mudarmos a relação que essa sociedade tem com a presença do corpo da mulher no espaço público, talvez ela não consiga estabelecer uma relação franca, direta e incógnita com a multidão e a Cidade, via Flâneuse. Talvez a figura possa ser outra: uma figura onde o gênero do indivíduo esteja já escamoteado? Talvez essa figura não possa ser o Trapeiro?
FLÂNEUR
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Flâneur. HUART, Louis. Physiologie du Flâneur. Caricatura de Honoré Daumier.
TRAPEIRO
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Le flâneur prolétaire. HUART, Louis.Physiologie du Flâneur. Autor desconhecido.
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Flâneur. HUART, Louis. Physiologie du Flâneur. Caricatura de Honoré Daumier.
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Les chiffonniers. Gravura de Charles Joseph Travies de Villers.
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