Assim vi meu
pai
Socorro Mello Tajra Teresina - PI 2022
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firma a autora não pertencer ao mundo literário. Mas, inserida no contexto universitário, se faz clara a percepção da necessidade do registro de depoimentos que venham a permitir a transmissão de fatos históricos verdadeiros, de grande valor para a continuidade do processo da pesquisa histórica de um povo e da transmissão do seu conhecimento através das gerações. Se considerarmos que Leônidas de Castro Mello desempenhou as funções de governador eleito constitucionalmente, interventor, deputado federal e senador, permanecendo no cenário político como uma figura pública por mais de 30 anos, é natural e mesmo esperado, as divergências de opiniões no que diz respeito às tomadas de decisões, sua forma de governar e a sua caracterização pessoal como um ser humano. ASSIM VI MEU PAI, procura mostrar ao leitor, através do depoimento de quem com ele conviveu dia a dia, os traços marcantes da sua personalidade colaborando para que guarde a História sua imagem verdadeira.
Assim vi meu
pai
Socorro Mello Tajra Teresina - PI 2022
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AGRADECIMENTOS A Zózimo Tavares Presidente da Academia Piauiense de Letras Ao acadêmico Dílson Lages Ao acadêmico Elmar Carvalho A Dib João Tajra Neto pela assessoria técnica
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Sumário
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6 Assim vimos Leônidas Melo 10 Caminhos de Leônidas Mello 18 Prólogo 22 Infância em barras e juventude em Teresina. Um resumo do texto original, cap. I e II
60 O médico do século 68 O primeiro casamento 40 O magistério 76 O casamento com Ducarmo como ele nos contava 82 Trajetória política 92 A descendência 96 Do Karnak para a Frei Serafim em 1945 100 Como congressista no Rio, uma vida simples 104 Barras, a fazenda Santa Rita 116 Afastado da política: o sítio São Raimundo 126 Um fato interessante 128 O cotidiano da vida familiar 136 A autobiografia “Trechos do Meu Caminho” 1ª Edição 144 O lancamento da 2ª edição de “Trechos do Meu Caminho” 148 Sua despedida 152 Um encontro inesperado 154 Considerações sobre o livro “Tempos de Leônidas Mello” do jornalista Afonso Ligório Pires de Carvalho
160 Traços da personalidade de Leônidas Mello 168 Referências bibliográficas 5
Assim vimos Leônidas Melo
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- O homem que passou mais tempo governando o Piauí, durante todo o século 20; - O governante das grandes obras do Estado, na primeira metade do século passado; - O idealizador e construtor do HGV, o maior hospital público do NorteNordeste à época de sua inauguração (1941); - O iniciador do processo de modernização de Teresina; - O governante que, na Ditadura Vargas, durante a qual não era preciso prestar contas a ninguém, fazia questão de dar transparência e publicidade aos seus atos; - O governante que, de uma canetada só, aposentou três desembargadores, para colocar um irmão no Tribunal de Justiça do Piauí; - O governante que deixou o Palácio de Karnak, após dez anos de poder, debaixo de insultos, provocações e humilhações dos adversários; - O governante que viu passar pelas suas mãos vultosas quantias de recursos públicos e saiu pobre do governo, sendo visto com frequência a distribuir leite de sua pequena vacaria, de porta em porta, numa atividade honesta para complementar a renda familiar; - O ex-todo-poderoso de outrora praticava esse ofício porque, como médico que há mais de 15 anos não exercia a profissão, havia perdido a clientela e o salário de professor do Liceu não dava para o sustento da família; - Da humilhação à exaltação: derrotado nas urnas logo após deixar o governo, ele seria eleito deputado federal quatro anos depois. Em seguida, senador da República. Uma consagração popular, com os piauienses reconhecendo a sua monumental obra e fazendo justiça a um dos homens públicos mais retos de todos os tempos. *** Estas e outas histórias cercam a vida pública e privada do médico Leônidas de Castro Melo (1897 – 1981), secretário-geral do Estado, governador e interventor do Piauí depois da Revolução de 30.
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Ele governou o Estado em uma das fases mais conturbadas de sua história. Enquanto entregava a maior obra pública do Piauí – o Hospital Getúlio Vargas – explodia em Teresina a onda de incêndios criminosos de casas de palha, um episódio que até hoje não foi devidamente esclarecido. Leônidas Melo deixou um livro de memórias – Trechos do Meu Caminho, lançado em 1976 e publicado em segunda edição em 2020, pela Academia Piauiense de Letras. Uma radiografia do Piauí de sua época e uma bela peça literária, pelo extraordinário valor estético com que foi escrito. Agora, serenados todos os ânimos e com o devido distanciamento histórico, ele é mostrado pela memória afetiva da filha, professora Socorro Melo, a única sobrevivente dos cinco irmãos. A descrição que ela faz do pai ajusta-se perfeitamente à imagem da figura pública do ex-interventor – um governante que a história exalta pelos grandes feitos e pelo humanismo dos seus gestos, e que venera pela sua conduta ética incorruptível. Os que se interessam pela história do Piauí e, particularmente, pelo homem Leônidas Melo e seu tempo, muito terão a aprender com este livro. Zózimo Tavares Presidente da Academia Piauiense de Letras
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Caminhos de Leônidas Mello
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primeira edição de Trechos de meu caminho, de Leônidas de Castro Mello, data de 1976. Vi esse livro na casa de uns parentes barrenses de meu pai. Já não recordo se o tomei emprestado, ou se apenas lhe li algumas páginas. Morando numa pensão, perto da velha Casa Saló e da sede do Sambão, numa área intermédia entre o mercado velho e o Liceu, certo dia criei coragem, e me dirigi à COMEPI – Companhia Editora do Piauí, e lá, com certa timidez, pedi que me fosse fornecido um exemplar. Quem me atendeu foi falar com o presidente da editora, que quis conversar comigo. Eu lhe expliquei, sem dúvida, por que tinha interesse em ter o livro e como dele tomara conhecimento. Devo ter dito que minha família, por parte de meu pai, era de Barras, terra natal do autor. O diretor que me atendeu deve ter sido Deoclécio Dantas; gostaria que tenha sido ele, cuja digna trajetória política e jornalística acompanhei, à distância. Algumas décadas mais tarde nos tornamos colegas na Academia Piauiense de Letras, quando travamos amizade e passamos a nutrir recíproca admiração. O certo é que de lá saí com um exemplar, que li e reli com prazer. Recomendei a meu pai que também o lesse. Em virtude de viagens e mudanças residenciais, ou talvez por causa das devoradoras traças e goteiras, o perdi, mas nunca esqueci vários de seus trechos verdadeiramente antológicos. Vivia eu nessa época uma fase um tanto difícil de minha vida, pois em junho de 1975, aos 19 anos de idade, fora morar em Parnaíba, e em setembro desse mesmo ano viera assumir emprego nos Correios, em Teresina. Era inexperiente em emprego e nunca deixara a casa de meus pais. Conquanto tenha dito Leônidas que escrevera suas memórias “sem qualquer pretensão a mérito literário”, até porque jamais se dedicara a estudos filológicos, devo dizer que as li com muito interesse e atenção, e até com muito gosto, mesmo sendo eu na época um leitor compulsivo de ficção e poesia. Alinho o seu livro entre as obras memorialísticas que mais admirei, entre as quais cito Memórias e memórias inacabadas, de Humberto de Campos, Confesso que vivi, de Pablo Neruda, Ensaio autobiográfico, de Jorge Luis Borges, Ensaio de autobiografia, de Boris Pasternak, e entre as várias escritas por Pedro Nava.
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Apesar da restrição feita pelo próprio autor, como assinalei acima, considero ter o livro boas qualidades literárias, mormente no âmbito memorialístico e autobiográfico, além da importância que possui para a história recente de nosso estado, pelo seu teor confessional e por ser o depoimento de uma testemunha presencial e privilegiada, conforme demonstro a seguir. Advirto, de logo, que não irei, aqui, tratar das notáveis e inúmeras obras físicas que o professor, médico e político Leônidas de Castro Mello realizou em sua paradigmática e profícua administração, mormente no campo da medicina e da educação, nem tampouco das melhorias que ele implementou na prestação de serviços públicos. Não bastassem as qualidades da redação, tais como concisão, objetividade, clareza, correção gramatical, há que se elogiar o seu estilo fluente, colorido, vívido, que dá ao livro certo sabor de romance, inclusive pelo fato de o autor ter intercalado às narrativas e descrições vários diálogos, em que tentou reconstituir, da maneira mais fiel possível, como ele fez questão de frisar, o discurso direto de vários personagens que lhe cruzaram o caminho. Embora o livro seja um depoimento memorialístico, e que por essa razão pudesse ser muito subjetivo e pessoal, podemos lhe aferir a objetividade e mesmo a imparcialidade, porque algumas afirmativas são corroboradas por transcrições jornalísticas e de livros, e porque, do meu conhecimento, o seu livro nunca foi refutado e também porque o seu autor sempre teve uma reputação de homem veraz e honesto, tanto na vida pública quanto na particular, não obstante todos estejamos sujeitos a eventuais equívocos, ainda que circunstanciais ou diminutos. A obra, enriquecida pelos textos preambulares de Dílson Lages Monteiro, Maria do Socorro de Castro Melo Tajra e Dirceu Arcoverde (1ª edição), é antecedida por um prólogo, em que Leônidas faz uma espécie de resumo de sua trajetória de homem público, e das principais razões que o levaram a escrever suas memórias, a que se seguem os trechos de seu caminho, de caráter pessoal, titulados: Meus pais, Infância, Um parêntese necessário, Adolescência e Juventude. A partir de Maturidade – vida profissional (ligeira referência) – Vida Pública – Política, as demais partes
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pouco se referem a sua vida privada, tais como vida de casado, paternidade, amizades pessoais, lazer, vida social etc. Ou seja, quase tudo que é relatado, após Juventude, diz respeito a sua vivência e embates políticos. Muito me comoveu a parte Infância, em que ele narrou a sua profunda e pura amizade ao menino Zuza, que foi companheiro de brincadeira, estudos e escola. Nesse trecho, o leitor pode ter uma ideia de como eram os costumes, a infância, as brincadeiras, o lazer e o estudo numa cidade interiorana do porte de Barras. Esse capítulo é movimentado, cheio de diálogos, e nele são descritas as lutas de seu pai, o comerciante Regino Lopes de Mello, a sua postura de aluno exemplar, ante uma escola simples, de alfabetização, dirigida por um professor rígido, o Mestre Freitas, que não se escusava a fazer uso do “instrumento didático” palmatória, contudo eficiente nos limites de seu grau elementar de magistério. São comoventes, como disse, certos episódios da amizade entre os meninos Zuza e Leônidas, especialmente os que se referem à doença e morte inesperada e precoce de Zuza. O trecho Infância, por certos detalhes, por certos pormenores dignos da boa romancística, me fez lembrar, sem que eu esteja exagerando, Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fico com a impressão de que Leônidas deve ter lido alguns bons romances ou ao menos algumas das melhores obras memorialísticas e autobiográficas. Fiquei com a certeza, da leitura dessa e de outras partes do livro, de que poderia ter escrito um bom romance, se a isso tivesse se dedicado no outono de sua vida. Essa convicção me vem do seu estilo límpido, da sua habilidade na urdidura de diálogos e entrechos, bem como em várias descrições da paisagem, revestidas de beleza e emoção, em que não lhes falta o condimento de verdadeira prosa poética. Também não lhes falta uma dose bem medida de pitoresco ou pinturesco, como neste trecho: “(...) eu me distraía também vendo as mulheres que iam apanhar água e voltavam com as latas na cabeça, equilibradas sobre rodilhas de pano. Voltavam sempre aos grupos, com os braços inteiramente livres, as latas em perfeito equilíbrio. Passavam conversando alto, às vezes gesticulando. Eu procurava distinguir a melhor equilibrista e escutava as conversas. Além das mulheres, havia a turma de moleque que passava tocando jumentos muito mansos com cargas de
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ancoretas. Todos iam buscar o líquido precioso para o abastecimento da casa no dia seguinte. Alguns assobiavam músicas que eu conhecia. Isso tudo me distraía.” Em 8 de março de 1912, quando tinha em torno de 15 anos, após insípida e incipiente experiência como balconista do comércio de seu pai, Leônidas foi prosseguir os seus estudos em Teresina. Relata as peripécias da viagem, em lombo de animais, em época de forte invernada, em que o Marataoã estava bravio e transbordara de seu leito, em alguns pontos se alargando por mais de dois quilômetros. Assim, já não acredito serem hiperbólicos os versos do poeta barrense Pedro Alves Furtado, quando comparou o Marataoã a um imenso mar oceano. É que o vate se referia ao rio na época das rigorosas chuvaradas. Seu pai, aconselhado a adiar a viagem, teria perguntado em resposta: “Eu já enfrentei as águas do Amazonas, como não enfrentarei as do Marataoã?” Descreve, com perícia, beleza e emoção, as dificuldades dessas perigosas travessias, a beleza deslumbrante desses alagadiços e lagoas, dos tabuleiros e colinas, em que as matas e as carnaubeiras se refletiam no espelho das águas. Cita as fazendas e as casas em que pernoitou nessa longa e cansativa viagem. Mais de duas décadas e meia depois meu pai faria essa mesma viagem, quando foi ser aluno interno do Diocesano, numa época restritiva em que mui poucos piauienses conseguiam cursar o antigo ginásio. Já me alongando em demasia, devo pisar no freio. Contudo, ainda algo desejo acrescentar. Como disse, senti falta de que o autor pouco tenha falado de sua experiência de marido e de pai, sem entrar, claro, em intimidades que só lhe dizem respeito. Tendo ele tido a coragem e a sinceridade de falar de suas rivalidades e mesmo inimizades políticas; de abordar o rumoroso e controvertido episódio da aposentadoria compulsória dos desembargadores José de Arimathéa Tito, Esmaragdo Freitas e Simplício de Sousa Mendes e de relatar as suas dificuldades administrativas e políticas, e até mesmo as suas aperturas financeiras e decepções, era de se esperar que ele fosse esclarecer os episódios da queima de palhoças e casebres no período de seu governo.
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Contudo, nada falou sobre esses “fogos”, que seus detratores lhe atribuíam, de forma direta ou indireta. Soube, já não me recordo se através de leitura ou de conversa, que ele chegou a anunciar a um seu parente que iria revelar a verdade. Mas depois voltou atrás, alegando que não queria magoar ou denegrir a memória de ninguém. Também ouvi dizer que um dia, de forma inesperada, muitos anos após esses incêndios, o major Evilásio Vilanova, figura por muitos considerada um tanto sombria e sinistra, a quem esses crimes eram imputados, quando ele comandou a Polícia Militar do Piauí e a chefia de Polícia (Segurança Pública), o procurou em sua residência, e lhe pediu para conversarem em particular, sem o testemunho de ninguém. Nada se soube dessa conversa, já que Leônidas lhe manteve o mais absoluto sigilo. Maria Genovefa de Aguiar Morais Correia, no seu livro memorialístico Genu Moraes – a Mulher e o Tempo, também estranhou o silêncio de Leônidas sobre esse assunto, que ainda hoje causa controvérsias e especulações, conforme se pode ler na página 363: “Em seu livro Trechos do meu caminho, publicado em 1976, no governo Dirceu Mendes Arcoverde, pela Comepi – Companhia Editora do Piauí, extinta no governo Wellington Dias, o Dr. Leônidas de Castro Mello fala sobre praticamente tudo que aconteceu no período, primeiro como governador constitucional, eleito pela Assembleia Legislativa do Estado, depois como interventor federal, indicado pelo presidente Getúlio Vargas. Mas não toca no assunto dos incêndios. O Deoclécio Dantas, que era presidente da Comepi na época da publicação do livro, me disse que originalmente Trechos do meu caminho tinha um capítulo falando sobre os incêndios. O livro estava sendo preparado quando, um dia, o Dr. Leônidas de Castro Mello entra em sua sala de trabalho, e pede para revê-lo. Ali, na sua frente, ele tirou o capítulo relativo ao assunto. Sobre seu ato, explicou que estava fazendo aquilo porque um dos acusados de ser mandante dos incêndios acabara de falecer e ele não queria atingir a memória do morto. Ora, quem faleceu na época, que poderia ser citado na obra, foi o Dr. José Cândido Ferraz. Ele foi a Cleveland, nos Estados Unidos, para se tratar, e lá faleceu em 23 de junho de 1975.”
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Em suas memórias, Leônidas narra dois fatos curiosos, que, pela sua estranheza, podemos entender como pertencentes ao reino do sobrenatural. Talvez ambos possam ter contribuído para que ele tenha se tornado espírita. Um foi a profecia, feita pelo estudante Clodoaldo Martins Ferreira, ainda em sua adolescência, de que ele governaria o Piauí. O mais curioso é que o “profeta” nunca teve esse dom premonitório, nem antes e nem depois desse augúrio referente a Leônidas. E o outro, acontecido mais ou menos na mesma época, foi a visão do espírito de sua irmã, falecida precocemente. Acredito que os dois fenômenos possam ter aumentado a sua fé em Deus e na espiritualidade. Sempre acreditei que Leônidas de Castro Mello foi um homem honrado, e o próprio Simplício Mendes, seu desafeto, veio a admitir isso anos mais tarde. Por isso, nunca acreditei que ele pudesse ser o responsável pelos incêndios dos casebres. Foi um homem honesto em sua vida pessoal e na condição de governante do Piauí, tanto que logo ao deixar o governo, sem o seu subsídio, passou a enfrentar dificuldade financeira, depois superada. E foi um homem bom, até porque a sua religiosidade a isso lhe induzia, assim como a sua índole. Leônidas tinha muito o que contar, e contou. Tinha muito o que dizer, e disse. E, principalmente, soube contar. Assim, as suas memórias são quase o romance de sua vida, e podem ser lidas com prazer e emoção, porque vertidas em bela fatura literária. Elmar Carvalho Magistrado e escritor brasileiro, ocupa a cadeira 10 da Academia Piauiense de Letras.
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Prólogo
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oucos meses após a morte de meu pai, Leônidas de Castro Mello, perdemos nossa casa da Av. Frei Serafim, nº 1909. Fechamos, pela última vez, o grande portão de ferro com a certeza de que era absolutamente necessário que minha mãe, Maria do Carmo de Castro Mello, passasse a residir próximo de uma das filhas. Foi doloroso, principalmente para ela, que ali passou muitos anos ao lado daquele que fez sua felicidade desde os 14 anos de idade. Ducarmo, como ele a chamava, tinha pelo marido Leônidas muito mais que admiração. Sabíamos da dificuldade que ela teria em se adaptar às duas perdas: a do marido, seu grande amor e modelo de vida, e da casa, cenário de tantas recordações! Enquanto fazíamos a mudança, encontramos muitos documentos pessoais e fotos. Procuramos organizá-los e daí surgiu a ideia de, aproveitando as fotografias, escrevermos algumas palavras que, somadas às fotos e cópias de documento, poderiam ser interessante material para uma visão complementar da personalidade de meu pai, considerando o que deixou escrito, em “Trechos do Meu Caminho”, sua autobiografia.
A residência de Leônidas de Castro Mello na Av. Frei Serafim, 1909, em Teresina, Piauí, 1944.
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Queiramos ou não, o tempo colabora para o esquecimento de pessoas e fatos. Nosso desejo é fazer chegar, aos seus descendentes, amigos, estudantes e pesquisadores, informações que não constaram de sua autobiografia, mas, com certeza, contribuirão para uma imagem mais próxima de um médico, professor e político que possui um lugar na História do Piauí, representa exemplo de dedicação a sua terra natal, onde, por mais de 30 anos, ocupou os cargos de Vereador, Secretário de Estado, Governador, Interventor, Deputado e Senador. Leônidas de Castro Mello era uma personalidade marcante. Tranquilo, mas de decisões firmes, possuía uma liderança nata, o dom da oratória e uma profunda religiosidade, herdada dos pais e que se fez refletir na honestidade inquestionável de suas ações, evidenciando um respeito profundo pelo ser humano e a coisa pública. Em sua autobiografia “Trechos do Meu Caminho”, lançada em 1976, pelo governo de Dr. Dirceu Mendes Arcoverde, antes de falar sobre fatos relativos à sua vida política, o autor fez uma bela e comovente narrativa de sua infância, em Barras do Marathaoan, sua cidade natal e do seu difícil percurso em busca de conseguir sua graduação como médico na Bahia e Rio de Janeiro. O texto encanta pela riqueza de detalhes e permite que o leitor tenha uma visão dos valores morais que lhe foram passados pela família e que se reafirmaram presentes em todos os momentos posteriores de sua vida. Acreditando que nem todos aqueles que se dispuserem a ler a presente narrativa tenham lido a autobiografia, “Trechos do Meu Caminho”, apresentamos aqui um resumo do texto original do que se refere a sua infância, para que o leitor fique com uma imagem mais completa do percurso de vida de Leônidas de Castro Mello. Os textos são de redação própria. Muitas lembranças da vida familiar que afloraram e que constituem conteúdo interessante para conhecimento de sua história de vida. Falamos do seu carinho à cidade natal, Barras do Marathaoan, de sua vida familiar simples na cidade do Rio de Janeiro, do seu retorno ao Piauí depois de deputado e senador. Das dificuldades financeiras que enfrentou e como as superou.
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Acrescentamos algumas cópias de artigos de jornais de Teresina sobre sua pessoa, textos que servem para a comprovação de algumas informações quanto à maneira missionária da medicina que exerceu no Piauí, a partir de 1921 e a imagem positiva de homem público que nos deixou. Finalizando, fizemos algumas considerações sobre o livro do jornalista Afonso Ligório Pires de Carvalho, “Tempos de Leônidas Mello”, que apresenta as conclusões de uma pesquisa superficial sobre as queimadas de casas de palha, ocorridas em Teresina na década de 40. Reconhecendo o valor do registro dos fatos históricos constantes da autobiografia de Leônidas de Castro Mello, “Trechos do Meu Caminho”, entramos em contato com a Academia Piauiense de Letras, buscando conseguir a publicação de uma segunda edição, quando recebemos todo o apoio do então presidente, Nelson Nery Costa, que em prestigiada reunião da APL, em 22 de janeiro de 2020, lançou a 2ª edição da obra. Vale lembrar que, em 2 de janeiro de 1978, essa mesma Instituição concedeu o Título de Sócio Benemérito ao autor, em reconhecimento aos relevantes serviços prestados às Letras, às Artes, à cultura da terra piauiense e à Casa de Lucídio Freitas. Como filha, sentimos a responsabilidade de reafirmar o que muito foi dito ou dizer o que talvez ainda não tenha sido dito sobre os valores que direcionaram as decisões e todo o agir na trajetória da vida política e familiar de meu pai. Fica aqui a nossa contribuição para que, não só sua descendência, mas todos aqueles que se interessem pela História e a Política do Piauí possam conhecer um pouco da personalidade e da vida de Leônidas de Castro Mello. Deixamos aqui registrados estes fatos pelo temor de que possam ser apagados pelo tempo...
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Infância em barras e juventude em Teresina Um resumo do texto original, cap. I e II
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a cidade de Barras, no dia 15 de agosto de l897, nasceu Leônidas de Castro Mello. Barras era uma cidade pequena, onde todos se conheciam. Ele, como todos os outros meninos do lugar, empinava pipa no mês de maio e gostava do banho no Rio Marathaoan. Brincava sempre sozinho, a disciplina na família era rígida e não permitia a ausência de casa sem um bom motivo. Muito cedo, começou a ajudar seu pai no seu comércio, que ficava situado em frente à sua residência. O pai chamava-se Regino Lopes de Mello, comerciante bem conceituado na cidade. Em sua loja simples de interior, vendia perfumes, tecidos e artefatos agrícolas para os pequenos agricultores. A mãe, Maria Florença de Castro Mello, cuidava da casa. O casal obedecia a todos os preceitos da Igreja Católica e participava ativamente das solenidades religiosas e das festas da padroeira de Barras, Nossa Senhora da Conceição. Leônidas foi o sexto filho e teve como irmãos Otávio de Castro Mello, Eurípedes de Castro Mello, Rosa de Castro Mello, Otília de Castro Mello, O pai de Leônidas de Castro Mello, Cinobelina de Castro Mello, José de Regino Lopes de Mello Castro Mello e Olinda de Castro Mello. A casa da família ficava bem próximo ao Rio Marathaoan, na Rua Taumaturgo de Azevedo, em terreno todo murado, apenas uma pequena parte cercada com madeira, local onde D. Florença cultivava flores. O restante do quintal era repleto de árvores frutíferas, principalmente, cajueiros, mangueiras, goiabeiras e sapotizeiros. Na época de frutas, pássaros encantavam o menino Leônidas, ele os admirava. Gostava de brincar sozinho embaixo das árvores. Em suas palavras:
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Não sei por que, mas quando brincava no quintal, apesar de sozinho, experimentava uma vaga expressão de felicidade, consequência possivelmente da tranquila beleza e fragrância do ambiente. (MELLO, 1976, p. 33).
Esse amor à natureza o acompanhou sempre, apresentando-se de forma nítida, anos depois, ao se tornar professor de Historia Natural no Liceu Piauiense e na Escola Normal. Era costume do pai de Leônidas, Regino, quando os filhos faziam 8 anos, começarem a frequentar a escola local que ficava na praça da igreja, onde residia o “mestre” Freitas. Ali Leônidas aprendeu a ler e a escrever as primeiras palavras. Sempre demonstrou muito desejo de estudar e, meses antes de entrar na escola, ele pediu ao Leônidas de Castro Mello seu irmão Otávio, bem mais velho, para lhe ensinar a “carta do ABC”. Assim, aos oito anos, quando passou a frequentar a escola do mestre Freitas, já conhecia todas as letras. Da infância vivida em Barras, precisamos lembrar um fato que marcou seriamente a vida do menino Leônidas. Como já falamos anteriormente, era uma criança que, quase sempre, brincava sozinho, conhecia poucos meninos de sua idade e raramente os via. Chegou a Barras, vindo de Angical, cidade do médio Parnaíba, o mecânico e sapateiro José Rodrigues, que deveria montar uma máquina de benefici-
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ar algodão para o pai de Leônidas. Após a montagem do motor, o Sr. José Rodrigues resolveu fixar residência em Barras. Era uma família de poucos recursos, mas voltada para o trabalho honesto. Passados alguns dias da chegada do Sr. Zé Rodrigues a Barras, a mãe de Leônidas (chamada Marocas pelos mais íntimos), por recomendação do marido, chamou Leônidas dizendo: Meu filho, lave seu rosto e seus pés bem limpinhos, lave as mãos e vista uma roupinha melhor para você ir comigo fazer uma visita na casa de “seu” Zé Rodrigues (naquele tempo, as senhoras e moças não saíam senão acompanhadas, ainda que por um menino. [...] (Leônidas) E lá fomos nós à Rua da Tripa, minha mãe com uma blusa branca muito frouxa enfeitada de bordados e uma saia de zuarte escura com raminhos brancos, muito larga, tão comprida que chegava ao chão. (MELLO, l976, p. 42)
Ao chegar, foi recebida, muito atenciosamente, pela mulher do seu Zé Rodrigues, D. Clara. A conversa estava agradável entre as duas quando D. Marocas, virando o rosto para uma moça que costurava na sala, perguntou: “É sua filha? Só tem esta?” (D. Marocas) “Não, tenho duas moças e um menino do 'tope' do seu.” (Clara) Chamaram: “Zuza”. E Zuza surgiu na sala. Leônidas olhou fixamente Zuza, e este o convidou para olhar o Rio Marathaoan que passava atrás da casa. A partir de então, os dois meninos não se separavam. A simpatia foi recíproca e logo combinaram que Zuza, no dia seguinte, fosse passar o dia com Leônidas. Zuza admirava Leônidas por vê-lo como alguém inteligente porque já sabia a carta do ABC. E Leônidas admirava Zuza, por ser muito esperto e ágil quanto aos seus movimentos. Eles, assim, se completavam. Ficaram inseparáveis nas brincadeiras. Chega um dia em que Leônidas comenta sobre o início de suas aulas no colégio do professor Freitas e logo desperta em Zuza o desejo de também ir à escola. Mas, muito triste, o menino comenta com Leônidas que seu pai não aprovaria a ideia, porque havia
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gasto o dinheiro durante a mudança para Barras. Não teria dinheiro para comprar o fardamento e os cadernos. Zuza almoçava sempre na casa de Leônidas. Aguardava encostado, em uma parede da sala, que D. Marocas lhe entregasse seu prato. Certo dia, quando a família já se encontrava na mesa, repentinamente, Zuza aproximou-se do Sr. Regino Lopes, pai de Leônidas, que, vendo o menino ao seu lado, parou seu almoço para ouvir Zuza que diz: “Seu Regino, o senhor me dá uma roupa para eu ir para a escola com o Leônidas?” E assim, o corajoso Zuza ganhou não apenas a farda, mas também o pagamento da escola. Pegaram o almoço e foram os dois almoçar. Leônidas, feliz, comentando o ato de coragem do amigo. Ficaram inseparáveis. Um dia, Zuza não apareceu, como de costume, para juntos irem à Escola. No dia seguinte, também não, e Leônidas ficava angustiado pela ausência do seu grande amigo. Logo a mãe de Zuza foi avisar que ele estava com muita febre. A doença de Zuza se prolongava e ele definhava. Leônidas foi visitar Zuza e saiu tão impressionado com a aparência do amigo que perguntou à mãe se achava que Zuza ia morrer. Em um domingo, quando o movimento da loja do Seu Regino era mais intenso, Clara, irmã de Zuza, chorando muito, entrou na loja e avisou que Zuza havia morrido e seu pai estava em Angical. Leônidas, ao ouvir a notícia, passou mal, desmaiou. Levaram-no para casa, e o farmacêutico da cidade, que se fazia às vezes de médico, recomendou umas gotinhas em água açucarada. Lêonidas dormiu. Permaneceu muito nervoso, sem conseguir conciliar o sono por vários dias. Ele, em sua meninice, achava que Deus teria sido cruel e injusto, tirando a vida de Zuza. Ele não se conformava. O menino havia morrido por falta de um médico. A perda do grande amigo ficou sempre presente nas lembranças de Leônidas. Daí um dos motivos, que, mais tarde, fizeram-no cursar Medicina. Ao completar 11 anos, por exigência do pai, passou a trabalhar na loja. Não sentia satisfação no trabalho, realizava-o como uma obrigação. Em 1908, uma nova escola, pertencente ao Dr. Arimathéa Tito, foi inaugurada em Barras. Leônidas pediu ao pai para frequentá-la, no que recebeu a aquiescência imediata com a condição de não deixar seu trabalho na loja.
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O colégio foi instalado na Rua Taumaturgo de Azevedo, mesma rua em que morava a família do Sr. Regino. Matriculado no novo estabelecimento de ensino, Leônidas deveria estudar Elementos de Geografia, Gramática Portuguesa e Aritmética Elementar. Ao retornar da matrícula e já com os livros e os cadernos comprados, recebeu do pai a recomendação de que deveria fazer seus estudos à noite, porque o balcão da loja não era lugar apropriado para leituras. Em sua autobiografia, Leônidas nos diz o seguinte: “Todas as noites, à luz trêmula de uma vela de carnaúba estudava a matéria do dia seguinte.” (MELLO, l976, p. 97). Sua dedicação era exemplar, mesmo à luz de velas, ele encontrava grande satisfação no estudo. Ao terminar o ano letivo na escola do Dr. Arimathéa Tito, Leônidas ficou como 2° melhor aluno, foi premiado em solenidade organizada pela escola e recebeu, como prêmio, um livro. Esse fato levou ao pai um sentimento de muito orgulho. Recebeu satisfeito muitos abraços e cumprimentos dos amigos e conterrâneos por conta da premiação do filho. Por essa época, Leônidas já tinha em mente vir completar seus estudos em Teresina. Estava determinado. Viveu dias de grande ansiedade. Não sabia se contaria com a permissão paterna. Como abordaria o pai para tal assunto? Pensou bastante por várias noites. Resolveu então que a melhor forma seria escrever uma carta ao pai “fazendo meu pedido em termos de respeito e acatamento à sua autoridade de pai, porém, insistentemente justificando e defendendo minha pretensão.” (MELLO, 1976, p. 103). E a carta foi feita no horário em que, costumeiramente, estudava, para que não despertasse curiosidade. Ei-la: Barras, 1° de março de 1912. Meu pai: Como sabeis, o desejo é uma das grandes forças. Pois é levado pelo grande desejo que tenho de estudar que atravesso grandes montanhas de acanhamento e venho pedir que me mande estudar em Teresina. Quero ir agora com o senhor
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quando o senhor for para o Maranhão. O senhor me deixará no colégio em Teresina e continuará sua viagem. Sei que estou pedindo um sacrifício, mas quem sabe se no futuro o senhor não será recompensado como foi o pai do Dr. Arimathéa que ficou tão contente com a formatura dele e fez tanta festa? Peço que me satisfaça, não me negue e pode confiar em mim. Com muita fé em Deus e no senhor, aguardo sua resposta. Do seu filho obediente, Leônidas
A carta foi entregue a uma tia de nome Cyló, pessoa merecedora do respeito por todos os familiares pela cultura e por ser uma pessoa beminformada e atualizada, graças às assinaturas de jornais que lhe chegavam às mãos. Leônidas lhe solicitou a intermediação junto ao pai no sentido de conseguir o seu intento: continuar os seus estudos em Teresina. Seus planos deram certo e logo recebeu o chamado do pai para uma conversa. Escutou, então, do pai, Regino: Regino: Moço, recebi sua carta e vou levá-lo comigo para Teresina, mas quero dizer-lhe que não poderei sustentá-lo nos estudos por muitos anos para você se formar [...] e não poderei porque não tenho recurso para isso [...] Você irá comigo, estudará este ano e no vindouro fará concurso para telegrafista. Olhe, aqui em Barras têm passado muitos telegrafistas e todos vivem tranquilamente, sustentam a família com conforto. Você concorda? Leônidas: “Sim, senhor!” Regino: “Pois já dei ordem à sua mãe para arrumar sua 'viagem'.” (MELLO, l976, p. 107)
Foi em 8 de março de 1912, o dia da esperada viagem. Tempo de muita chuva na região de Barras. O início do percurso seria muito dificultado pelo chão coberto das águas, ora rasa, ora mais profunda e correntes. Já sabiam.
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Saíram por volta de quatro horas da manhã. Atravessaram o rio Marathaoan em uma canoa. Em seguida, com calças arregaçadas montaram e iniciaram viagem. Seguiam o fio do telégrafo para que não se perdessem. Passaram por Cabeceiras, Campo Maior e “Altos do João de Paiva,” onde se hospedaram em casa coberta de palha e sem conforto. No terceiro dia de viagem, ao anoitecer, chegaram ao Rio Poty, de onde avistaram Teresina na outra margem. Como era noite e a travessia era considerada perigosa, pernoitaram na casa do “passador”. Pela manhã, entraram, a cavalo, até o centro da cidade de Teresina. Leônidas cavalgando ao lado do pai e o “pajem”, que trazia as redes e o baú, alguns metros atrás. Ao chegarem à Rua Grande (atual Álvaro Mendes), avistaram o letreiro do hotel em tinta vermelha pintada na fachada verde: “Hotel 15 de Novembro”. Apearam, entraram e foram recebidos pelo proprietário, Seu Justino. Após as amabilidades da recepção, foi seu Regino ao colégio, pagou um trimestre adiantado e fez o pagamento de duas fardas para o filho. No dia seguinte, pela manhã, no gabinete do Diretor do “Instituto 21 de Abril”, Professor Antônio Carvalho Filho, Regino apresentou Leônidas, dizendo que estava tranquilo, pois sabia do elevado conceito do colégio. Apertaram-se as mãos em despedida pai e filho. Leônidas ficou sozinho no gabinete do Diretor enquanto este acompanhou seu pai até à porta de saída. E, pela primeira vez, sentiu um vazio ao seu redor. Sentiu a falta do apoio do pai. A partir daquele momento, deveria guiar os próprios passos. Após uma prova de avaliação de conhecimentos, foi encaminhado pelo Diretor ao aluno Clodoaldo Martins Ferreira que, como prefeito da instituição de ensino, deveria orientá-lo quanto ao regimento. Habituou-se ao colégio sem dificuldades e de forma saudável. Estudava muito e, em pouco tempo, fez grandes amigos. Apenas uma coisa o preocupava: garantir o seu retorno ao colégio no ano letivo seguinte. Após o encerramento do ano, outra vez, recorreria às cartas. Solicitou dos professores Dr. Carvalho Filho, Dr. Adalberto Correa Lima e ao Dr. Francisco Pires de Castro, todos da instituição, cartas aconselhando seu pai a não
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interromper seus estudos. Leônidas sabia que o pai continuava com o desejo que ele fizesse o concurso para telegrafista. Mas, quanto a isso, estava determinado a ser sincero e, ao retornar à Barras, falaria com o pai sobre suas intenções de continuar seus estudos e formar-se em Direito. Durante o período de férias, Leônidas estudava duas horas todas as manhãs. Sentado à mesa da sala, observava atento seu pai que passava sem nada lhe dizer e ficava preocupado com seu retorno às aulas. Passados os primeiros dias de férias, certo dia, à hora do almoço, Seu Regino pediu que o filho sentasse ao seu lado e disse-lhe que havia lido com atenção as cartas que lhe trouxera e, como tivera algum lucro em seus negócios, resolvera que ele voltaria ao colégio, dizendo: “Volte, continue a estudar e proceda bem. No fim do ano vindouro, combinaremos o que você deve fazer.” (MELLO, 1976, p. 118) OS ESTUDOS EM TERESINA Corria, então, o ano de 1912. As aulas deveriam começar em 1º de fevereiro e Leônidas, como queria, retornou a Teresina em 16 de janeiro de 1913. Ao final daquele ano, já com destaque como um dos melhores alunos, foi escolhido para orador nas festividades comemorativas do dia 7 de setembro. Recordando sua trajetória escolar, Leônidas narra fato interessante que o marcou, quando estudante em Teresina: Clodoaldo Martins Ferreira era “prefeito” da Instituição e amigo de Leônidas, um pouco mais velho, bastante educado, gozava de absoluta confiança do Diretor. Um dia, quando já soava a campa do final do recreio, Clodoaldo fez sinal para que Leônidas o esperasse. Ficaram apenas os dois debaixo de um pé de fruta-pão. Clodoaldo aproximou-se, ficou de frente para Leônidas e, em voz pausada e baixa, disse: Olhe, quero dizer-lhe uma coisa muito importante, mas é para você ouvir e calar. Não falar absolutamente para ninguém. Se você falar, será levado à chacota e será exposto ao ridículo. Mas resolvi dar-lhe este aviso tanto para você conti-
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nuar estudando, como para que, quando deixar o colégio, não praticar atos que possam prejudicar o seu futuro. Olhe, preste bem atenção, quando você ficar homem, será governador do Piauí.
Leônidas, espantado, fitou-o bem, esfregou os olhos com a impressão que o amigo havia ficado doido, endoidecido de repente. Sentiu medo e saiu devagar enquanto o amigo Clodoaldo, em voz alta dizia: “Olhe lá, não fale a ninguém.” Leônidas passou a observar o comportamento de Clodoaldo nos dias que se seguiram. Apresentava conversas e comportamentos inteiramente normais. Clodoaldo nunca mais falou sobre o assunto e Leônidas também resolveu que o melhor seria esquecer. Não fazia o menor sentido para ele. Mas, ao despedirem-se na saída do Colégio, Clodoaldo, abraçando Leônidas, repetiu ao seu ouvido: “Não se esqueça do que lhe disse naquele dia à hora do recreio. Você verá que vai acontecer...” Em abril de l935, Leônidas vai eleito Governador do Estado do Piauí, assumindo em 3 de maio de l935. Passados dois meses, já no Governo, Clodoaldo faz uma visita a Leônidas, que o recebe de braços abertos. Apertam-se as mãos e Clodoaldo diz: “Nada venho pedir ao Governador, quero apenas abraçar-lhe e dizer que tudo aconteceu, como previ.”, segundo Mello (l976, p. l26). Este fato foi contado por Leônidas para muitos amigos e familiares. Algo marcante também aconteceu por esses tempos em que Leônidas ainda estudava no “Instituto 21 de Abril”, em Teresina, aos 16 anos. Ele vivenciou um fato que classifica como paranormal. Esse acontecimento, segundo suas próprias palavras, determinou sua escolha pelo curso de Medicina e o fez ser um espiritualista convicto. Aos que se interessarem, remeto-os às páginas 129 e 136 da autobiografia “Trechos do Meu Caminho”. Nessas páginas, encontramos o fato narrado em detalhes.
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OS ESTUDOS NA BAHIA Em 16 de janeiro de 1914, ele sai de Barras, agora com destino à Bahia. Leônidas pretendia graduar-se em Medicina. Para tomar o navio, com destino à Bahia, era preciso chegar ao porto de Tutóia no Maranhão. Foi uma viagem sofrida, oito dias montado em costa de burro. Ao chegar a Tutoia, ficou hospedado dois dias na casa de Dr. Nestor Veras. No terceiro dia, pela manhã, o vapor “João Alfredo” atracou na praia de Tutoia. O médico do porto, Dr. Mirocles Veras, irmão do Dr. Nestor, interferiu no sentido de conseguir que o baú das roupas de Leônidas fosse levado até o navio. Houve dificuldade em função do tamanho do baú. Transcrevo páginas da autobiografia as quais narram fatos vividos nesse período. Diz Leônidas em “Trechos do Meu Caminho (MELLO, l976, p. 137): A bordo prostrei-me com terrível enjoo a vomitar dia e noite. No segundo dia, um dos companheiros de camarote (éramos quatro) convenceu-me de que, se eu tomasse um banho, melhoraria. Com enorme esforço, consegui levantar-me e ir até o banheiro bem distante [...] Confesso que nunca havia visto um banheiro provido de banheira com duas torneiras. Despi-me. Entrei na banheira. Mas ao abrir uma das torneiras, projetou-se sobre meus pés um jato de água fervendo. Sofri queimaduras nos dois pés. Vesti-me como pude e voltei ao camarote em situação pior. Além do enjoo, as queimaduras. Só em Recife, onde o vapor demorou dois dias, meu sofrimento teve trégua. Embora com as queimaduras ainda doendo, pude sair de bordo calçado apenas de meias, ir à cidade, respirar um ar sem o horrível cheiro de camarote e tomar, calmamente, saborosa canja no “Restaurante Leite”.
Na Bahia, foi recebido por dois antigos colegas do colégio de Teresina. Eles levaram Leônidas para uma república (era como se chamavam os locais onde residiam estudantes) de pernambucanos e maranhenses. Leônidas não
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se adaptou. Dos estudantes que lá residiam, dois eram extremamente maleducados e não tinham o estudo como hábito. O que ele tinha em mente era entrar para o curso de Medicina, mas, ao se informar sobre os programas de admissão aos vários cursos na secretaria da Faculdade, verificou que havia muita matéria que ele desconhecia por completo. De janeiro a março, era pouco tempo para estudar tudo. Assim resolveu optar por Odontologia, curso que pareceu oferecer a possibilidade de aprovação. Foi bem-sucedido, conseguiu aprovação e passou a frequentar as aulas e a estudar com afinco. Na república, o ambiente não favorecia. Assistiu a um dos pernambucanos esbofetear um estudante maranhense e até a riscá-lo com um punhal. Leônidas vivia ali constrangido, mas o dinheiro que recebia do pai como mesada não dava para pagar uma pensão, precisava ficar na república. Certo dia, inesperadamente, encontra com o antigo amigo de Teresina: Esmaragdo Ramos. Ele estava passando pela Bahia, indo para o Rio, onde ia estudar Medicina. Encontrou Leônidas facilmente, pois levara o endereço. Foram almoçar juntos e, depois de ciente da situação difícil em que se encontrava o amigo e conterrâneo, convenceu-o de que o melhor seria acompanhá-lo e irem para Rio. Lá poderiam morar juntos e cursar Medicina. Foram tirar logo as passagens, compraram uma maleta, passaram na república para as despedidas e lá ficou o baú de sola de tantas recordações, feito em Barras. Foi substituído por uma maleta. Pela madrugada, o vapor levantou ferro. O CURSO DE MEDICINA NO RIO DE JANEIRO No Rio, foram recebidos por um tio de Esmaragdo: Aquiles Moura. Este já havia alugado um quarto amplo e bem mobiliado onde se alojaram. Ficava na Rua Riachuelo, nº 19, casa de uma senhora portuguesa. No dizer de Leônidas, era um quarto quase luxuoso e sentiu que estava bem alojado. No dia seguinte, ele telegrafou ao pai avisando que se encontrava no Rio, dando o endereço e pedindo que aguardasse uma carta sua.
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Na carta afirmou que deixara a Bahia por recomendação médica, pois sua saúde não estava bem. Evitou falar que abandonara o curso de Odontologia com fim de estudar para o exame de admissão do curso de Medicina para não contrariar o pai. Por esse tempo, para que uma carta chegasse do Rio de Janeiro até Barras, passavam-se quase dois meses. Foi quando recebeu resposta do Seu Regino, seu pai, desejando-lhe saúde e informando que não lhe poderia enviar mesada maior do que lhe enviava na Bahia, porque seus meios não permitiam. Esmaragdo dispensou então o pagamento do que Leônidas lhe devia, ficando para quando estivesse em melhor situação. Aqui começaram as maiores dificuldades para que Leônidas realizasse seu sonho de cursar Medicina. Esmaragdo, como tinha recursos, buscou professores, comprou os livros e todas as tardes trazia os apontamentos. À noite, das 20h às 23h, estudavam juntos. Estudavam muito, o desejo de cursar Medicina era objetivo firme de ambos. No horário diurno, Leônidas estudava sozinho, e concluiu que deveria usar parte do dia para um trabalho que lhe pudesse render algum dinheiro. Recorre novamente às cartas que já lhe haviam proporcionado duas vitórias. A primeira, ao convencer o pai de que deveria estudar em Teresina e a segunda, através dos professores, para seu pai, quando conseguiu continuar seus estudos na capital. Agora, através de telegrama, solicitou ao pai que lhe conseguisse algumas cartas de pessoas influentes destinadas ao Marechal Pires Ferreira, então senador e com grande prestigio político no Rio. Um mês aproximadamente, e as cartas chegaram. Apresentavam Leônidas como um moço inteligente, estudioso e que desejava vencer, pedindo um modesto emprego com que pudesse manter-se e prosseguir nos estudos. No dia que se seguiu ao recebimento das cartas, Leônidas, tomado pela decisão de conseguir um trabalho, dirigiu-se à casa do Marechal Pires Ferreira. Pegou um bonde em direção à Gávea, bairro elegante do Rio, onde ficava a residência do Marechal. Muro alto, do portão ele viu uma grande casa, com enormes varandas bem iluminadas. Do portão de entrada à casa, uns cem
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metros de distância com uma alameda de belas palmeiras imperiais. Olhou o número, conferiu com o do envelope e apertou o botão da campainha. Um rapaz de uns vinte anos, aproximando-se do portão, perguntou o que ele desejava. Leônidas solicitou então que avisasse que um conterrâneo era portador de algumas cartas para o Marechal e que desejava entregá-las pessoalmente. O empregado voltou à casa e, logo que retornou, o fez entrar, mandando que esperasse em um banco sob uma grande árvore, pois o Marechal estava terminando o jantar. O Marechal logo apareceu. Aparência marcante, de pijamas de dormir e boné, alto e com suíças brancas e cheias. Sentou-se ao lado de Leônidas no banco do jardim. Este se identificou como sendo de Barras enquanto o Marechal, sem ler, colocou as cartas no bolso e perguntou qual o assunto das cartas, pois estavam já abertas. Explicou Leônidas a necessidade de conseguir um trabalho para que pudesse concluir os estudos do curso de Medicina. Novamente tentou identificar-se através dos pais e outros conterrâneos de Barras, mas a todos o Marechal afirmava não conhecer, solicitando a Leônidas que colocasse seu nome e endereço em um envelope e entregasse na portaria do Senado. Explicou que havia muitos pedidos anteriores e que deveria demorar um pouco para que fosse atendido. Se quisesse, poderia procurá-lo no Senado, mas não em sua residência. Levantou-se e estendeu a mão, despedindo-o. Leônidas saiu triste, sem nenhuma esperança de conseguir o seu intento. Achou grosseiras as maneiras do Marechal e concluiu que nunca mais procuraria o senador Pires Ferreira. A inscrição na Faculdade estava próxima e tinha que ser paga. Leônidas recorreu então para seu irmão Otávio, em Barras, que prometeu o valor necessário, mas não enviou. O pai, Regino, não deu mais notícias. Chegado o último dia das inscrições, não havia saída para Leônidas, teria que enfrentar novamente o Marechal, e, desta vez, na Portaria do Senado. Preenchida as identificações necessárias, um funcionário solicitou que Leônidas o acompanhasse até uma sala de espera onde o senador deveria atendê-lo. Muitas pessoas também esperavam. Ficou ali à espera, aproximadamente, uma hora.
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Enfim surgiu o Marechal trajado de preto, longo sobretudo que chegava abaixo dos joelhos. Trazia na mão o impresso [...] Avançou até o meio da sala, parou, levou o impresso até próximo aos óculos e perguntou: - Quem é Leônidas de Castro Mello? (MELLO, 1976, p 144)
Leônidas expôs suas dificuldades, e encerrando, solicitou do Marechal que lhe emprestasse a quantia de cento e vinte mil reis. O velho recuou uns dois metros e bradou: “Você está doido, moço, pedindo dinheiro emprestado nesses tempos de moratória? Peça a seu pai que ele lhe manda o dinheiro.” E afastou-se, deixando Leônidas decepcionado, não tanto pela negativa, mas, principalmente, pelos modos grosseiros do velho. Firmei, em definitivo, nunca mais procurar tal criatura, o que realmente aconteceu por todo o resto da sua vida. Pergunto a mim mesmo como e por que homem tão grosseiro e de tão má educação atingiu os mais altos postos militares e políticos. (MELLO, 1976, p. 144)
Após a decepção com o Marechal, Leônidas procurou esquecer o episódio, caminhando lentamente pela praia da Glória. Nesse bairro, moravam muitos estudantes e teve ocasião de encontrar dois amigos do Piauí: Arthur Oliveira e Álvaro Fortes. Palestraram em um banco do jardim, apreciando a beleza da Baía de Guanabara. Leônidas contou sobre o encontro com o Marechal. Álvaro, então, sugeriu que Leônidas procurasse Dr. Joaquim Pires, homem de bom coração, tendo prestado ajuda a muitos piauienses: “Vá, conte-lhe sua história. Ele tem escritório de advocacia à Rua do Ouvidor, próximo à Rua 1º de março. Entre 4 e 6 da tarde, é quase certo lá. Todos os dias. Não deixe de ir.” (MELLO, 1976, p.145) Leônidas encontrou facilmente o escritório do Dr. Pires. Homem simpático, de pouca estatura e muito comunicativo, sentado à sua mesa de trabalho, apontou uma cadeira, e delicadamente perguntou: “Então és de Barras? E então o que tu queres, meu filho?”
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Sua delicadeza fez bem a Leônidas que lhe contou, calmamente a sua história. Ainda não havia acabado de falar, e Dr. Pires lhe entregou os cento e cinquenta mil réis para a inscrição. Saíram juntos do escritório e conversando animadamente. Dr. Pires informou que deveria ter o nome do pai de Leônidas em um livro de assentamento com os principais nomes políticos do Piauí. Leônidas concordou dizendo que o pai era, há muitos anos, presidente do Conselho Municipal, em Barras. Despediram-se com o convite de Dr. Pires para que Leônidas fosse à sua residência para jantar em companhia de outros piauienses. Feliz e com o dinheiro na mão, na manhã seguinte, seguiram Esmaragdo e Leônidas para a Faculdade de Medicina que ficava na Praia de Santa Luzia, a aí fizeram as inscrições como candidatos ao Curso de Medicina. Foram ambos aprovados. Ao retornar ao escritório de Dr. Pires para a devolução do empréstimo, ele não aceitou e justificou dizendo que o dinheiro ficaria para compra dos livros de que, certamente, Leônidas iria precisar. Esse fato levou Leônidas a uma reflexão sobre as atitudes daqueles dois homens, a quem havia recorrido, um irradiando e praticando a bondade e compreensão, o outro a estupidez e incompreensão. E, santo Deus, eram irmãos. (MELLO, 1976, p. 148)
Leônidas pensou satisfeito! Era acadêmico de Medicina. Recebeu o dinheiro que tinha pedido a Otávio, seu irmão, com atraso. Já havia feito sua matrícula no 1º ano do Curso de Medicina. Comprou, então, um terno de casimira, uma camisa e um par de sapatos. Estava vestido e poderia frequentar as aulas. Na semana seguinte, teve a agradável surpresa de receber a mesada que seu pai mandava, majorada. Leônidas havia passado um telegrama para Barras comunicando ao pai sua aprovação no Curso de Medicina e, como resposta, recebeu uma carta do pai que se dizia satisfeito e majorando sua mesada.
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“Na tarde do dia em que chegou essa carta, fui à Igreja da Lapa, próxima à Rua Riachuelo, dar graças à Deus por tudo quanto sua infinita misericórdia me concedera.” (MELLO, 1976, p. 148) É interessante atentar que Leônidas, apesar de longe dos familiares manteve sempre sua religiosidade e a educação formal que havia recebido dos pais, o que muito o ajudou. Desde o início das aulas, um sentimento de alegria e entusiasmo se manifestava, ele sentia que algo estava mudando. Se antes ele passava o dia sozinho no quarto, agora vivia, quase o dia inteiro, na faculdade em aulas ou participando de brincadeiras estudantis junto aos colegas, quase em número de 300. O aumento da mesada permitiu que se vestisse melhor e que frequentasse teatros e cinemas. Em “Trechos do meu Caminho”, sua autobiografia, encontramos a seguinte afirmação: “Como que renasci em outro ambiente, haurindo novos ares que me fortaleceram para prosseguir no esforço pela conquista das minhas aspirações.” (MELLO, 1976, p. 149) Quando Leônidas chegou ao 3º ano do curso, achou que era a hora de começar a frequentar hospitais que permitissem o contato direto com os doentes. Depois de muito empenho, conseguiu ser admitido para servir, gratuitamente, na Santa Casa de Misericórdia, cujo prédio ficava ao lado da Faculdade de Medicina. Foi designado para a 8ª enfermaria chefiada pelo Dr. Sílvio Muniz. Essa enfermaria ficava ligada à 7ª, cuja chefia era do grande professor Miguel Couto, consagrado o maior clínico da época. Entre as duas enfermarias, ficava uma sala que servia de vestiário e, logo em seguida, uma sala menor que servia de laboratório, destinada à realização de exames de modo que atendia às duas enfermarias. Ao entregar o memorando que o apresentava ao Dr. Muniz, um alemão de fisionomia trancada e pouca conversa, este o olhou dos pés à cabeça e disse: Estou de fato com uma vaga na enfermaria, mas devo preveni-lo de que aqui só fica quem for pontual na frequência.
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Tenha responsabilidade e queira aprender. Você satisfaz essas condições?
Leônidas respondeu dizendo: “Sim, senhor. Serei pontual e desejo aprender.” (MELLO, 1976, p.150) Dr. Sílvio bateu a campainha e logo apareceu uma freira, já com algumas rugas, mas de semblante simpático e sereno. Ele solicitou que ela chamasse o Câmara, no laboratório. Veio um rapaz baixinho, magro, mas de olhar expressivo que era o encarregado do laboratório. Dr. Sílvio então informou a Leônidas que ele trabalharia por umas três semanas no laboratório. Depois ficaria responsável por seis leitos na enfermaria. Porém o estágio no laboratório estendeu-se por um mês, ficando Leônidas habilitado a fazer qualquer dos exames de que algum interno da enfermaria viesse a necessitar. Findo o estágio, Câmara o levou então à presença de Dr. Sílvio, atestando que o estagiário já estava em condições de atender os doentes. Um toque de campainha de Dr. Sílvio e surge a irmã que recebe ordens para que os leitos de 16 a 20 ficassem sob a responsabilidade de Leônidas. A irmã, sorridente, informa que já conhece Leônidas do laboratório. Diariamente, às 7 horas, ele chegava à enfermaria, vestia o avental branco onde se lia: “Leônidas Mello - 3º ano” e cumpria rigorosamente as normas estabelecidas pela Instituição. Ao findar de 1917, o clima de amizade entre Dr. Sílvio e Leônidas já estava estabelecido e, certo dia, após o trabalho, pergunta o médico se Leônidas poderia ir, à tarde, até seu consultório porque desejava falar-lhe. Leônidas chegou antes das três, como combinado. As três, chega Dr. Sílvio e passam para a sala do seu consultório. Sentado, Leônidas escuta: Leônidas, tenho sempre alguns doentes a domicílio que tomam injeções em casa. O rapaz (um acadêmico) que me fazia este serviço casou e mudou-se para o Paraná. Tu não queres substitui-lo? Isto te dará, mais ou menos, duzentos mil réis por mês [...]
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E em seguida Leônidas respondeu: “Quero e agradeço ao senhor, além de prova de confiança, recebo como um auxílio, pois minha mesada é pequena.”. (MELLO, 1976, p.152) Esse foi o primeiro dinheiro que recebeu na profissão e representou um grande bem-estar espiritual e a disposição de lutar e vencer todos os obstáculos do caminho. Fazia um ano que Leônidas trabalhava, gratuitamente, na 9ª Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia. Como todos os dias, ele foi receber no consultório do Dr. Silvio Muniz, a relação com o nome dos doentes a atender e os respectivos endereços. Leu e um nome lhe chamou atenção... leu novamente o que estava escrito: “Esposa do Deputado Armando Burlamaqui. Aplicar injeção endovenosa pela manhã, entre 8.00 e 9.00 h.” Ele já tinha ouvido muitas referências sobre o deputado, já sabia que era oficial de Marinha, piauiense e deputado federal pelo Piauí, e ainda diziam ser de grande prestigio político a ponto de entrar a qualquer hora no palácio do Catete. “Compadre do Presidente da República; dava-se com todos os ministros” (MELLO, 1976, p.153). Às oito da manhã, já se encontrava Leônidas tocando a campainha da residência do Deputado Armando Burlamaqui que ficava à Rua Marquês de Abrantes. Foi atendido por uma empregada, mas, apenas entrou, apressouse a lhe cumprimentar o próprio Deputado, que pareceu estar a sua espera. “Bom dia, deputado, venho da parte de Dr. Sílvio Muniz aplicar uma injeção.” (Leônidas) “Isto mesmo, estava a sua espera. [....] Venha aplicar-me também uma injeção. Mas a minha é no músculo. Acompanhe-me ao escritório, disse o Deputado”. (Deputado Burlamaqui) Leônidas observou os móveis, todos de jacarandá polido, os quais davam ao ambiente um tom de austeridade e distinção. Analisou detalhadamente a beleza desses cômodos. Solicitou lavar as mãos e ao retornar o Deputado Burlamaqui perguntou se ele era carioca. Leônidas responde ser seu conterrâneo, do Piauí. O deputado que se encontrava sentado, levantou-se e, aproximando-se, falou com alegria do prazer em conhecê-lo, acrescentando a seguir que Dr.
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Sílvio Muniz era seu médico fazia muito tempo e que havia feito excelentes referências sobre a pessoa de Leônidas. Mostrando-se curioso, perguntou se ele era de Teresina. Ao terminar de aplicar a injeção em Dr. Armando Burlamaqui, Leônidas despediu-se dizendo do prazer e da honra em conhecê-lo. Ao comparecer à casa do Deputado para aplicar a última injeção em sua esposa, em diálogo atencioso, Burlamaqui falou da necessidade de conversar sobre um assunto do seu próprio interesse com Leônidas. Ficou com o endereço e telefone para, em breve, entrarem em contato. De volta para casa, pegou o bonde na Praia do Flamengo. Ficou curioso. Não podia imaginar para que o Deputado precisaria falar-lhe. Passaram-se dois meses e nenhum chamado aconteceu. Resolveu não pensar mais no assunto. Certo dia, em horário do jantar, sentado à mesa junto com os demais companheiros de pensão, tocou o telefone e em seguida disse a proprietária: “Dr. Leônidas, é para o senhor, o Deputado Armando Burlamaqui quer falar-lhe.” Levantei-me apressadamente, um tanto afobado, cheio de curiosidade: “Pronto, Deputado, às suas ordens.” (Leônidas) “É tempo de termos a conversa de que lhe falei. Venha jantar comigo amanhã, às 19 horas.” (Deputado Burlamaqui) “Certo Deputado, aí estarei. Será um prazer muito honroso jantar com o senhor, mas poderei ir a qualquer outra hora que o senhor prefira.” (Leônidas) “Venha mesmo jantar comigo. Terei satisfação.” (Deputado Burlamaqui) “Então tudo certo, Deputado. Às dezenove horas, aí estarei.” (Leônidas) “Até amanhã.” (Deputado Burlamaqui) “Até amanhã. Muito obrigado pelo honroso convite, Deputado.” (Leônidas) (MELLO, 1976, p.155) Às 19 horas, Leônidas já se encontrava na residência do Deputado. Foi conduzido até o escritório. Cumprimentaram-se. Leônidas sentou-se ao lado da escrivaninha escutando atento à fala do interlocutor. O deputado Burlamaqui disse que desejaria escutar sua opinião quanto a um assunto de seu interesse, pedindo a Leônidas que ouvisse o que tinha a dizer:
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Talvez não saiba que sou tuberculoso. Tenho lesões pulmonares unilaterais, do lado direito, há muito tempo, mas vou resistindo e vivendo bem, graças ao tratamento a que me submeto há mais de doze anos; de dez em dez dias Dr. Adeolindo Pinto faz-me um pneumotórax artificial que mantém o pulmão doente imobilizado, sem funcionar. Isto me tem permitido viver sem sofrimento. Não vou ao Piauí há mais de 20 anos e tenho um grande desejo de rever minha terra, alguns parentes que tenho por lá e também de visitar o túmulo de meus pais. Porém, lá não existe médico especialista que conheça e pratique este tratamento! Pois bem, desde que o Sílvio Muniz me deu ótimas informações suas, ando a pensar que, com sua ajuda, ainda poderia ir ao Piauí. [...] Para isso, porém, seriam necessários uma orientação prévia, segura, e antecipado esforço de sua parte (MELLO, 1976, p. 156).
O Deputado Burlamaqui expôs então a Leônidas que, para que atingisse o seu intento, seria preciso que ele se especializasse em doenças pulmonares, frequentasse diariamente o consultório do Dr. Adelino Pinto, para exercitar a prática do pneumotórax e defendesse tese de doutoramento em Pneumotórax Artificial. Acertaram, então, o deputado Burlamaqui interferindo junto a Dr. Muniz para a especialização, e Leônidas dizendo do prazer em atender ao conterrâneo. Deixaram o escritório e passaram à sala de jantar, local de distinção e conforto onde uma empregada portuguesa atenciosamente os atendeu. Ao despedirem-se, o deputado Burlamaqui recomendou que Leônidas pensasse uns oito dias na proposta e depois o procurasse na Câmara para dar sua resposta. Passados os oito dias, Leônidas foi à Câmara. Fez-se anunciar. O Deputado o recebendo, perguntou: “Pensou bem no nosso assunto?”. Leônidas, sorrindo, respondeu que achava perfeitamente viável desde que não saísse prejudicado no valor mensal de trabalhos que prestava a Dr. Muniz, que eram indispensáveis à sua manutenção no Curso de Medicina. Escutou do deputado que, quanto a esse problema, ele resolveria com Dr. Muniz e com-
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binaram um novo encontro a fim de tomarem as providências necessárias, para breve. No encontro seguinte, o Deputado falou a Leônidas da compreensão do Dr. Muniz e tudo com ele estava acertado. Ele continuaria a frequentar a enfermaria, e ele, Burlamaqui, havia preparado uma carta para que Leônidas levasse ao Diretor da Imprensa Oficial, com o intuito de conseguir um “gancho” para substituir o que iria deixar de receber do Dr. Muniz com as aplicações de injeções em pacientes. Ao retornar à sala de espera, o Deputado Burlamaqui já trazia um envelope na mão, recomendando que, no dia seguinte, Leônidas procurasse o porteiro na Imprensa Oficial e dissesse do desejo de entregar a carta pessoalmente ao Diretor, que também era piauiense. Assim aconteceu. O porteiro atendeu dizendo que ia avisar. Logo voltou e pediu a Leônidas que o seguisse. Foram até ao gabinete do Diretor que se encontrava em uma mesa com muitos papéis desordenados. O porteiro saiu. O Diretor levantou os olhos, largou o papel que lia bruscamente e perguntou: “O que deseja, amigo?”. Aí Leônidas logo respondeu: “Venho entregar esta carta.” Recebendo o envelope que estava aberto, o Diretor leu o cartão, olhou para Leônidas, tornou a ler demoradamente, e só então mandou que o mesmo se sentasse. Em seguida, perguntou a Leônidas: “Você é do Piauí? Sou, sim, senhor Em voz alta e nada agradável foi dizendo: ”Aqui tenho pessoal de sobra, mas não posso faltar a este homem. Ele diz que você é estudante. De que tempo dispõe? “(Diretor) Algumas horas à noite. (Leônidas) O Diretor tocou a campainha e mandou chamar o Chefe da Seção de Expedição. Diz Leônidas em sua biografia: veio um homem engravatado, deixando ver, quando falava, magníficos e alvos dentes.” (MELLO, 1976, p. 160). O Diretor disse-lhe: “Este moço vai ser admitido como extranumerário para o trabalho noturno na sua seção. Converse com ele e dê-lhe algum serviço.”
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“Sim, senhor.” “O homem engravatado virou-se para mim, fitou-me e convidou-me acompanhá-lo. [...] Entre pilhas de jornais e rolos de papel em branco, uma grande mesa, velha e suja, de uns dois metros de comprimento e duas cadeiras. Sentou-se, mandou que eu me sentasse, e disse sorrindo, com um sorriso meio preso: Como é seu nome? Leônidas. Seu nome completo:” Leônidas de Castro Mello. Abriu uma das gavetas, tirou um livro, e escreveu meu nome em uma das páginas. Você poderá chegar até às oito e meia da noite. Seu serviço será ajudar o “amarramento”. À noite eu explicarei melhor, iremos até lá. “Posso vir hoje?” (Leônidas) “Pode, sim, e acrescentou: - Seja pontual no serviço porque as faltas serão descontadas.” (Chefe) (MELLO, 1976, p. 161) À noite retornou, encontrou o chefe em seu posto e logo pediu que Leônidas o acompanhasse. Chegaram a uma enorme sala com cavaletes que seguravam tabuas de pinho em cima das quais se encontravam pilhas de jornais. Operários encostados à mesa amarravam pacotes de exemplares do Diário Oficial e Diário do Congresso. Havia uma outra turma que carregava os pacotes para outra sala, onde eram colocados sobre o piso de cimento. Pela madrugada, carros dos Correios apanhavam os jornais. O chefe, olhando para Leônidas, explicou que ele poderia escolher, trabalhar no empacotamento ou no transporte dos fardos até a outra sala. Leônidas respondeu que preferia ficar no transporte dos pacotes. Ele havia observado que os operários que ali trabalhavam tinham melhor aparência dos que os amarradores que se vestiam com camisetas sujas e rasgadas. Tirou o paletó e começou a transportar de dois a dois os pacotes de jornais. De vez em quando, sentava-se com os companheiros sobre as pilhas de jornais e descansavam um pouco e conversavam.
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Leônidas voltou a pé para casa que ficava cerca de um quilômetro da Imprensa Oficial. Caminhava pensativo. A natureza do trabalho nada tinha a ver com a condição de acadêmico de medicina e não contribuía em nada na sua formação. E, mesmo antes de chegar a casa, já havia decidido que procuraria um outro trabalho. Ficaria apenas até arranjar outro emprego, porque não podia ficar sem dinheiro. Resolveu voltar a falar com o Comandante Burlamaqui. Expôs a situação e logo recebeu a concordância. Ficou acertado de irem juntos até a Imprensa. No dia seguinte, partiram em carro oficial da Câmara dos Deputados. O Comandante Burlamaqui falava das qualidades do amigo Diretor da Imprensa Oficial e Leônidas se limitava a ouvir. O prestígio do Comandante na Imprensa era notório. Muitos o cumprimentavam e, facilmente, tivemos acesso ao Gabinete do Sr. Castelo, o Diretor. Percebeu Leônidas que existia uma intimidade entre os dois pela forma como se falavam. Então, o Comandante Burlamaqui explicou para Castelo: Eu desejo fazer alguma coisa por este rapaz, mas não tenho como, apenas desejo, tenho interesse pessoal no caso; interesse grande, pois estou a prepará-lo para ser meu médico assistente em futuro próximo. Acontece que o rapaz é pobre, mas é excelente estudante, de exemplar conduta. Você não acha que é dever do Estado amparar os moços como ele? É isso que eu quero de você. O serviço que lhe deram não está de acordo com a sua condição de quartanista de medicina. Pense no meu interesse em ajudá-lo e eu lhe serei gratíssimo pelo que fizer em seu benefício. (MELLO, 1976, p. 164)
“Certo, Armando, (tratamento com amável intimidade) em caso como este, o dinheiro que o Estado gasta é investimento em curto prazo.” (MELLO, 1976, p. 164) O Diretor Castelo chamou então seu Chefe de Gabinete e solicitou que providenciasse, imediatamente, uma portaria contratando, pelo prazo de dois anos, Leônidas de Castro Mello como Auxiliar de Gabinete da Diretoria, percebendo duzentos mil réis mensais.
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Assim, Leônidas passou a receber duzentos mil réis do Estado até o final do seu curso de Medicina. Resolvido o problema financeiro, ficou frequentando o consultório do Dr. Adelino Pinto, no Largo da Carioca, onde, a princípio, sentiu dificuldades no relacionamento. Procurava ouvir atentamente, limitava seu trabalho às recomendações recebidas e, com três meses, já estava integrado ao trabalho do consultório e era tratado com a intimidade de colegas. Quando Leônidas cursava o 5º ano de Medicina, o assistente do Professor Adelino Pinto na sua clínica adoeceu, ficando ausente do trabalho por algum tempo. Leônidas, então, já inteiramente seguro o substituiu. O Professor Adelino aceitou bem a substituição e não contratou outro assistente. Leônidas não cogitou nenhuma remuneração. Uma das vezes em que o Comandante Burlamaqui esteve na clínica para seu costumeiro tratamento, perguntou ao Professor como ia Leônidas e se estava em condições de acompanhá-lo ao Piauí. A resposta veio de imediato: “Você irá tão bem assistido como se eu fosse com você.” (MELLO, 1976, p. 166). Leônidas que estava presente sentiu-se envaidecido. Poucos dias depois, o Comandante Burlamaqui ligou solicitando um encontro na Câmara. Cumprimentaram-se cordialmente e o Comandante informou, sorridente, a Leônidas que , pensando em sua formatura, no ano seguinte, conseguira outro trabalho para ele na Saúde Pública. Dessa vez, iriam juntos ao Diretor, Prof. Carlos Chagas. No dia seguinte, às 11 horas, conforme foi acertado, já se encontrava Leônidas à espera do Comandante, ao lado do Palácio Tiradentes. Em carro oficial, juntos, dirigiram-se à Diretoria Geral de Saúde Pública, subordinada ao Ministério da Educação, situada à Rua do Resende. No dizer de Leônidas, em sua autobiografia, “O Professor Carlos Chagas nos recebeu bondosamente e com fidalguia de trato”. (MELLO, 1976, p. 167) Feitas as apresentações necessárias, o Prof. Carlos Chagas informou ao Comandante que o caso de Leônidas já estava resolvido, ele seria admitido como suplente, na turma de acadêmicos vacinadores. O trabalho não prejudicaria seus estudos, uma vez que não estaria sujeito a ponto e deveria apenas atender às convocações que raramente aconteciam. Passou a receber,
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mensalmente a quantia de 150 mil reis da Diretoria Geral de Saúde somados ao que já recebia da Imprensa Oficial. Em contrapartida, Leônidas cumpriu fielmente o que havia prometido ao Comandante Burlamaqui. Especializou-se em doenças pulmonares e defendeu tese de doutoramento sobre “Pneumotórax Artificial no Tratamento da Tuberculose Pulmonar”. “A arguição da tese - aprovada com distinção - foi feita por mestres de renome, dentre os quais o Professor Miguel Couto, consagrado na época, como a maior sumidade da medicina” (MELLO, 1976, p. 163) Colou grau de doutor em Medicina no dia 30 de dezembro de l920 e, no diploma que lhe foi conferido, consta a “distinção” concedida na defesa de tese. As duas primeiras páginas da tese foram páginas de gratidão em oferecimento aos pais e ao Comandante Armando Burlamaqui. Na véspera de sua colação de grau, Leônidas foi à residência do Comandante entregar pessoalmente um exemplar da tese. Ao receber e ler a página que lhe era dedicada, ficou bastante emocionado, abraçando Leônidas e dizenNa formatura em medicina pela Faculdade de do: “Você será um homem Medicina do Rio de Janeiro, em 1921. vitorioso na profissão, como na vida social.” (MELLO, 1976, p.163). Passados os momentos da emoção, o Comandante Burlamaqui convidou-o para que almoçasse com ele no dia dois de janeiro. Mas, antes de sair,
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Leônidas perguntou: “E a nossa viagem, Comandante?” (Leônidas) “Tudo preparado, as passagens já estão comigo, inclusive a sua. [...]” (Comandante Burlamaqui) “E o “Forlanini”? (aparelho destinado à aplicação do pneumotórax).” (Leônidas) “Já está aqui.” (Comandante Burlamaqui) “Preciso examiná-lo bem, antes de levá-lo para bordo. Quero eu mesmo acondicioná-lo na caixa.” (Leônidas) “Tens razão, é um aparelho muito frágil. Exige cuidado especial. Estou a pensar que é melhor vires almoçar em vez de jantar.” (Comandante Burlamaqui) “Também acho.” (Leônidas) “Combinado, vem ao meio-dia. Depois do almoço, examinarás o aparelho [...].” (Comandante Burlamaqui) Segundo Mello (1976, p. 168):
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O almoço teve a presença de D. Evelina, à cabeceira da mesa. Ao fim da refeição, fui surpreendido com o “espocar” de uma garrafa de champanha, aberta para comemorar minha formatura e servida em belas taças de cristal. O comandante levantou a taça com naturalidade e formulou votos que eu tivesse uma vida profissional de grande projeção. D. Evelina, muito religiosa, desejou que Deus me desse sempre felicidades. Sensibilizado, agradeci com um muito obrigado, aquele honroso almoço eu nunca esqueceria.
No dia seguinte, quando Leônidas trabalhava na enfermaria, recebeu de um mensageiro da Câmara Federal um envelope contendo a cópia do telegrama encaminhado pelo Comandante Burlamaqui para seu pai em Barras, pela sua formatura. Rio - Coronel Regino Mello - Barras Cumpro, com imensa satisfação, grato dever de felicitar prezado amigo pelo brilhante êxito do Leônidas na defesa de sua tese, aprovada com distinção. Seguirá em minha companhia a 5 de janeiro, via Maranhão. Abraço cordial - Armando Burlamaqui.
Em “Trechos do Meu Caminho”, diz Mello (1976, p. 169): Experimentei intensa alegria. O pensamento me transportou a Barras. Tive a impressão de que via meu pai, vestido no seu terno de brim pardo, chapéu de baeta preta, a andar de casa em casa dos amigos, mostrando a todos o telegrama recebido. Este telegrama foi publicado na imprensa de Teresina, jornal “O Piauí”, janeiro de 1921.
MÉDICO - RETORNO AO PIAUÍ Partiram, então, do Rio de Janeiro, em um dos melhores navios do Loyde que fazia linha para o norte. Com 13 dias de viagem, chegaram ao Mara-
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nhão. Nesse mesmo dia, Leônidas fez a primeira aplicação de pneumotórax em seu cliente. Tudo correu perfeitamente, e o Comandante ficou satisfeitíssimo. Ficaram dois dias no Maranhão para um pouco de repouso, necessário ao tratamento e, no terceiro, rumaram para Teresina em trem especial e confortável. Por considerar dados históricos interessantes, transcrevemos as palavras de Leônidas no decorrer de “Trechos do Meu Caminho”, que diz o seguinte: A recepção na chegada foi festiva e solene. Na estação da estrada de ferro, ao tempo ainda na cidade de Flores, (hoje Timon, Maranhão, fronteira a Teresina) estavam o Governador do Piauí, engenheiro João Luiz Ferreira; o prefeito de Teresina, Capitão do Exército Manoel da Paz; o bispo do Piauí; o Presidente do Tribunal de Justiça; o presidente da Assembleia Legislativa; o Comandante da Força Federal; deputados; desembargadores, outras autoridades federais e estaduais. O prefeito e o Juiz de Direito da cidade de Flores. Bandas de música, foguetes. Poucos me conheciam, mas minha pessoa chamou a atenção de todos porque desci do trem abraçando e conduzindo a grande caixa de madeira polida (0,40 x 0,30m) com o aparelho “Forlanini” que eu não confiava a ninguém dada a fragilidade do mesmo, todo de vidro. Olhavam-me curiosos, eu bem trajado, anel de médico no dedo carregando a enorme caixa. (MELLO, 1976, p. 169)
À margem do Parnaíba, um vaporzinho fluvial aguardava toda a comitiva para o transporte a Teresina. Chegada também festiva com banda de música e foguetes. Uma comissão de senhoras levaram flores para D. Evelina. Seguiram a pé até a residência do Coronel Antônio Ferraz, parente e amigo do Comandante Burlamaqui e onde ficou hospedado. Leônidas hospedou-se no “Hotel Arias”. Quase sempre almoçava e jantava com o Comandante, que falava sempre que desejava visitar Amarante, Floriano, Oeiras e Parnaíba. Assim, partiram via fluvial, em vapor expresso, alugado pelo Governo do Estado. Faziam parte da comitiva o Governador João Luiz Ferreira, o Dr. Mario Batista, dentre outros. Dois dias de viagem para chegarem a Amarante, após um banquete na residência do Sr. Ribeiro
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Gonçalves e um baile, prosseguiram viagem para Floriano, onde Leônidas fez nova aplicação do pneumotórax. Ficaram dois dias para descanso e seguiram para Oeiras, dessa vez de automóvel, enfrentando uma estrada de piçarra inacabada. Voltaram a Teresina, onde ficaram dez dias. Seguiram, então, para Parnaíba no mesmo vapor que os conduzira a Floriano. Em Parnaíba, as comemorações foram maiores e com reuniões solenes. No princípio do mês de março, o Comandante Armando iniciou sua viagem de retorno. Leônidas o acompanhou até São Luiz, onde lhe aplicou o último tratamento. Ainda na cama, em repouso, pediu a Leônidas que sentasse em uma cadeira ao lado da cama e disse: “Quero agradecer-te o excelente serviço profissional que me prestaste com inexcedível dedicação e quero também pagar os teus honorários, sei que és pobre. Quanto te devo?” (Comandante Burlamaqui) “Comandante, respondi, o valor de meus serviços o senhor já me pagou há vários anos e várias vezes [...]” (Leônidas) “Eu já esperava essa atitude, Leônidas, e por isso mesmo tenho um presente para você [....]”(Comandante Burlamaqui) O Comandante Burlamaqui pediu a D. Eveline que pegasse um telegrama, e em seguida Leônidas o leu com a maior atenção: Seu rapaz já nomeado, caráter efetivo para quadro médicos que servem Rio. Tem prazo trinta dias assumir, podendo ser prorrogado por mais trinta pt. Foi grande minha satisfação atender pedido caro eminente amigo ASS Diretor Geral Departamento Saúde. (MELLO, 1976, p. 172)
Leônidas ficou emocionado com o gesto de gratidão e amizade. Era a oportunidade de ficar vivendo tranquilamente no Rio, onde poderia conseguir todos os êxitos profissionais. Mas, a obstar isto, estava o desejo que sempre tive de fixarme em Teresina, próximo à minha família, dando-lhe a pos-
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sível assistência. Durante todo o meu curso, jamais me afastei desse propósito. Sensibilizado, agradeci. (MELLO, 1976, p. 172).
O Comandante Burlamaqui replicou que Leônidas não deveria sacrificar seu futuro ficando em Teresina, confidenciando-lhe que Dr. Adelino Pinto tencionava convidá-lo para ser seu assistente em sua Clínica, no Rio. Envolvido em enorme insegurança quanto à decisão a tomar, Leônidas pondera que, considerando o prazo que tinha para assumir o trabalho no Rio, teria tempo de visitar sua família em Barras e conversar com o pai. Telegrafaria, então, comunicando sua decisão. Acompanhei o Comandante Burlamaqui até o camarote especial no navio. Abracei-o com emoção e saudade, pois no meu íntimo perdurava a quase certeza de ficar no Piauí. Nunca mais nos vimos. Ele morreu poucos anos depois [...] (MELLO, 1976, p. 173)
Leônidas voltou a Teresina. Viagem desconfortável com muitas paradas, fagulhas e fumaça do trem. Ao retornar, fez breve visita ao Governador para a transmissão de notícias do Comandante Burlamaqui. Nesse tempo, Teresina não tinha automóvel e o transporte em animais era comum, até mesmo no centro da cidade. Nas residências, do lado externo, ficavam argolas, para que os visitantes amarrassem os seus cavalos [...]. E foi neste cenário de cavaleiros que subiam e desciam a rua que, da janela do quarto do hotel: avistei, ainda a distância, a condução que vinha receberme...era o mesmo velho e fiel Eduardo, pajem que, em 1913, entrou na cidade, cavalgando ao lado de um jovem que sonhava um dia ser médico. Acenei-lhe. “Pronto, doutor”. Abracei-o afetuosamente. [...] “Podemos viajar hoje Eduardo?” (MELLO, 1976, p. 174)
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Eduardo comentou com Leônidas as dificuldades que enfrentariam durante a viagem e os preparativos para a recepção de sua chegada a Barras: “Olhe, doutor, até a banda de música está ensaiando dois dobrados, um se chama 'Leônidas Mello' e o outro '16 de março', que é o dia da chegada.” (MELLO, 1976, p. 177) A RECEPÇÃO DA CHEGADA A BARRAS Barras já estava em festa. No quintal de Sr. Regino, capões, leitões e perus. Doces dos mais diversos já encomendados para a grande recepção à chegada de Leônidas. A cidade borbulhava em torno do grande acontecimento - o retorno do filho da terra, como médico, empolgava a todos. A festa começou na fazenda “Murici”, de propriedade de Francisco Teodomiro, já bem próximo a Barras. Leônidas aí encontrou, entre muitos, seu irmão Otávio Mello e seu cunhado Eurípedes Castelo Branco. Da comitiva de recepção, fazia parte um preto conhecido por “Lampião”, encarregado de soltar os foguetes, cuja explosão já seria ouvida em Barras. Estamos em 16 de março 1921, e a recepção seria feita à moda das pequenas cidades interioranas do Piauí. Procurando descrever os fatos em sua autenticidade, transcrevemos o momento do reencontro emocionante de Leônidas com o pai em sua cidade natal. Às quatro e meia da tarde, estávamos outra vez à margem do Marathaoan, em frente à cidade, no chamado Porto do Fio, onde devíamos atravessar. [...] Na margem oposta uma concentração de muita gente levantava os braços em saudação, agitava lenços, dava 'vivas`, [...] subiam aos ares dezenas de foguetes. Metade da população da cidade, pelo menos, ali se encontrava. Um bote da Prefeitura, enfeitado de folhas de palmeiras, flores naturais e bandeirolas coloridas, cortava as águas em nossa direção. No bote apenas os remadores e meu pai sentado à proa, metido no seu terno de brim de linho pardo, novo, gravata e chapéu preto. Ao avistá-lo, experimentei grande emoção e, quando o abracei, não pude conter as lágrimas.
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Abracei-o com toda a efusão de minh'alma. Ele se emocionou também, tornou-se muito pálido, não pode proferir palavra. Estreitou-me demoradamente contra o peito ofegante. Da outra margem do Rio, já na cidade, dirigimo-nos à igreja onde fui dar graças a Deus pela minha formatura. Eu ia à frente, ladeado por meu pai e Monsenhor Boson; o povo, em grande cortejo, nos seguia. À porta da igreja, a banda de música executou o hino nacional à nossa chegada. No interior do templo, em dois genuflexórios ornamentados com flores, um ao lado do outro, eu e meu pai nos ajoelhamos e oramos. Terminada a oração de graças, Monsenhor Boson fez emocionante prédica alusiva ao ato. Da igreja, o numeroso cortejo desceu a rua Grande (Taumaturgo de Azevedo) para a casa de meu pai. Em nossa casa, o cortejo foi também recebido ao som do hino nacional, pois para lá fora a mesma banda de música, alguns minutos antes de sairmos da igreja. (MELLO, 1976, p. 180)
Muitos discursos foram feitos por amigos. Leônidas foi o último a falar, oportunidade em que agradeceu ao pai todas as oportunidades para que se fizesse médico. Bebidas foram servidas à noitinha, no baile. Diz Leônidas que seu pai, que não dançava há mais de vinte anos, dançou valsa e quadrilha sob aplausos. “No dia seguinte, realizou-se lauto banquete”. Que variedade de pratos! Quanta iguaria, quanta fartura! Ao mesmo tempo em que se realizava o banquete, na praça do mercado se distribuía aos pobres a carne de dois bois gordos, especialmente reservados para este fim. Segundo Mello (1976, p. 180): Durante o banquete, na sala contígua, a banda de música executava belas valsas e outras peças do seu repertório [...]. Às sete da noite, reiniciaram-se as danças [...] meu pai fez questão de duas noites de baile.
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Uma coincidência quis que Leônidas realizasse o desejo de servir como médico aos seus conterrâneos neste mesmo dia. Aconteceu que sua cunhada Nina Mello, a esposa de Otávio, entrasse em trabalho de parto enquanto eram realizados os discursos do banquete de sua recepção em Barras. A parteira que fora chamada não conseguia fazer o parto afirmando que a criança já havia morrido. Otávio saiu desesperado para a casa do pai. Os discursos foram interrompidos e os músicos pararam por ordem do Coronel Regino. Leônidas pediu licença e acompanhou o irmão. Encontrou a parteira sem esperanças. Examinou a cunhada. [...] Vi que a criança, vinha em apresentação anormal, útero cansado, contrações fracas. Imediatamente apliquei uma injeção de pituitrina, pratiquei massagens externas. As contrações tornaram-se fortes, a criança nasceu ...virei-me para Otávio e disse: “Pode beber o vinho da comemoração”. “Tudo bem, papai, pode voltar e mande continuar a festa, de aqui a dez minutos eu e Otávio estaremos lá.”
Com o choro da criança, Coronel Regino, o avô, já estava com a cabeça metida na porta do quarto com expressão de felicidade. E daí, disse: “Graças a Deus, meu filho.” (MELLO, 1976, p. 181) No dia 17 de abril, ainda em Barras, Leônidas recebe um telegrama inesperado: RIO – Dr. Leônidas Mello – Barras Piauí: Governo Federal criou Serviço Assistência Veterinária rebanhos nordeste. Acordo legislação regula matéria Chefia Estados só poderá ser exercida por médico ou veterinário. Você foi nomeado para organizar e chefiar serviços Piauí pt Estou providenciando nomeação auxiliares. Conveniente ir Teresina, aguardar instruções pt Peço ouvir sempre João Luiz, governador do Estado – abraços Armando Burlamaqui.
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Com o telegrama nas mãos, Leônidas foi tomado de dois sentimentos: a alegria da amizade de Burlamaqui em desejar ajudá-lo e a tristeza de ter que se afastar do seu objetivo maior: queria era exercer a medicina, ainda pensou em telegrafar recusando o convite. Mas, atendendo recomendação paterna, respondeu a Armando Burlamaqui agradecendo o interesse de sua pessoa e comunicando que, em breves dias, estaria em Teresina onde faria contato com o Governador. Chegou a Teresina no dia 5 de maio de 1921. Foi ter com o Governador na intenção de não aceitar o cargo. O Governador, então, pediu que ele aguardasse alguns dias a mais, quando voltariam a conversar sobre o assunto, já que não havia recebido orientação oficial do Governo Federal. Em um domingo, encontrava-se Leônidas no hotel, quando o Sr. Arias bateu à porta do quarto dizendo que o governador lá se encontrava para fazer-lhe uma visita. Cumprimentaram-se e o governador disse que resolvera aproveitar o domingo para visitá-lo e esconder-se ali no hotel por algumas horas. No quarto duas redes. “João Luiz escanchou-se na rede, apoiou o corpo para trás, levantou os braços, segurou os punhos” (MELLO, 1976, p. 136) [...]. E após tomar conhecimento da negativa de Leônidas para a função, recomendou calma e orientou para que ele tomasse posse na Delegacia e ficasse aguardando, já que acreditava na morosidade das medidas do Governo Federal, o que ia permitir a Leônidas tempo para cuidar de sua profissão de médico. Em setembro, chegaram as instruções para a instalação do Serviço e, em outubro, as verbas necessárias. A Delegacia do Serviço de Indústria Pastoril foi instalada à Av. Antonino Freire. Em 1922, o Governo Federal comunica a abertura de concursos para preenchimentos dos cargos de Chefes de Serviços nos Estados. Leônidas, apesar das garantias que lhe foram apresentadas pelo Comandante Armando Burlamaqui quanto à sua nomeação, resolveu agradecer todas as atenções e respondeu dizendo que sua situação como médico era boa e já lhe permitia desistir do cargo. Este foi o primeiro cargo federal que exerceu no Piauí.
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Antes dos fatos acima relatados, logo ao retornar de Barras, Leônidas procura um local para a sua residência e consultório. Aluga, então, uma casa na Rua Coelho Rodrigues, próximo à Praça Rio Branco e faz anunciar a instalação do seu consultório no jornal “O Piauí”, o mais lido da época, nos exemplares de 24 de maio de l921 e dias seguintes. Enquanto residiu no Hotel Arias, recebia muitas pessoas em busca de uma consulta. Nessas oportunidades, explicava que no hotel não poderia dar consultas, mas anotava os endereços e sempre ia à casa dos doentes, atendia com interesse e dedicação. Assim, quando abriu seu consultório no dia 19 de junho de 1921, já possuía clientes em vários pontos da cidade. Por não dispor de dinheiro, o consultório do jovem médico foi instalado ao lado de sua residência e com excessiva modéstia. Leônidas, a respeito, em “Trechos do Meu Caminho”, afirma: Um biombo de mescla branca, em grade de madeira, dividia a sala em dois compartimentos; no da frente, pequena mesa destinada ao porteiro e seis cadeiras para os consulentes; atrás uma mesa com alguns livros, servindo de escrivaninha, uma cama sofá para exames e ainda outra mesa pequena com tampo de marmorite. Sobre esta, uma garrafa de álcool, uma seringa algumas caixas de injeções. A modéstia era tão grande que chegava ao desconforto. (MELLO, 1976 p. l94)
O tempo passava, e Leônidas sentia que seu conceito profissional ganhava terreno. Após três anos de dedicado trabalho, em 1924, era o médico de maior clientela em Teresina. Teve, como grande amigo, o médico Afonso Ferreira, cirurgião competente. Leônidas, como clínico, e Afonso Ferreira, como cirurgião, desenvolveram um trabalho conjunto. Dr. Afonso Ferreira deixou Teresina, e sua clientela ficou aos cuidados de Leônidas. Além do atendimento em consultório, Leônidas viajava muito, sempre para atender clientes em José de Freitas, Campo Maior, Barras, União. E essas viagens muito contribuíram para que, em pouco tempo, adquirisse um terreno à Rua Coelho Rodrigues, onde construiu sua primeira residência e,
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ao lado, o seu consultório no mesmo terreno, separado da casa apenas por um pequeno jardim. Construção simples, mas um bom prédio. Instalou seu consultório com hall para um porteiro, sala de espera, sala de consultas, sala para pequenas intervenções e ainda dependência para um laboratório de análises clínicas. Comprou todo o equipamento médico na “Casa Lohner”, no Rio. Ao término das atividades do dia, no jardim, ele, em confortável cadeira preguiçosa, reunia-se com um grupo de amigos, todas as noites. Foi uma época feliz como ele mesmo afirma em sua autobiografia. ________________________________________ Ao término deste resumo dos capítulos I e II, do livro “Trechos do Meu Caminho”, esclarecemos que os fatos aqui resumidos receberam no original belíssima redação, com detalhes minuciosos que encantam o leitor e permitem uma visualização perfeita das cenas evocadas. Assim, recomendamos, aos que puderem, a leitura do original da obra de Leônidas de Castro Mello, “Trechos do Meu Caminho”. Apresentamos aqui o resumo da infância e juventude do autor, considerando que, na vida em sociedade, os valores morais são essenciais e transmitidos inicialmente pela família, determinando o comportamento, despertando o sentimento de cidadania e o desejo de contribuir para melhoria da própria comunidade. Toda e qualquer formação se inicia no lar e na escola, daí a importância desses fatos narrados na cidade de Barras e em Teresina. Acreditamos que aqui narrando os fatos ocorridos na infância de Leônidas, em Barras, contexto social em que se inseria sua família com valores que aí lhe foram repassados, possamos contribuir para uma melhor compreensão de sua personalidade e suas atitudes, como médico e político, sempre leal ao bem comum e respeito aos seres humanos.
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O médico do século
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uando alcançamos uma idade avançada, no meu caso, 71 anos, lembranças que se acomodaram por muitos anos na profundeza da alma, afloram, como a mostrar quem somos integralmente. Somos dos que amam viver com intensidade o momento presente, mas reconhecemos a importância das vivências do passado. Somos o resultado de todas as experiências que nos são transmitidas pelos que nos antecederam e portadores dos valores próprios de nosso ambiente sociocultural. Com o passar do tempo e a chegada da maturidade, vai despertando, lentamente, nossa reflexão crítica e nossa individualidade, mas os valores básicos permanecem cristalizados e fortes, determinando atitudes. Acabamos de relatar parte da história de uma vida, mas, especificamente, fatos que se referem às experiências vivenciadas na infância e juventude daquele que, mais tarde, seria a figura central de minha vida, meu pai: Leônidas de Castro Mello. Ele nos deixou uma herança de incalculável valor. Sua vida não foi fácil. Ele superou todos os obstáculos de um menino pobre para conseguir seu sonho de ser médico. Sofreu humilhações e decepções, mas elas não o fizeram desistir. Venceu e retornou a sua terra natal. Conquistou com sua competência e carinho seu espaço como médico na sociedade piauiense. Meu pai amava a profissão de médico e a exerceu com enorme senso humanitário. Podemos constatar sua forma missionária de exercer a medicina no artigo do jornalista J. Miguel de Matos, membro da Academia Piauiense de Letras, publicado no jornal Estado do Piauí, edição do dia 12 de junho de 1977, que anexamos. Nunca desejou ser político. Sua ascendência a cargos políticos veio como consequência da grande popularidade de sua pessoa como médico, da sua dedicação ao magistério como professor de História Natural e da sua excepcional liderança como Diretor da Escola Normal e do Liceu Piauiense, acrescentando-se o fato de haver desempenhado as funções de Secretário Geral do Governador Landri Sales, o que marcou o início de sua vida como político. Aceitou sua candidatura como Governador na convicção de que, como tal, teria reais possibilidades de conseguir tratamento especializado, fora do Piauí, para uma de suas filhas portadora de sério problema auditivo.
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Nesta página e nas duas seguintes, artigo de J. Miguel de Matos publicado no Jornal “Estado do Piauí”, em 12 de junho de 1977.
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Foi governador eleito institucionalmente e interventor, de 1935 a 1945, quando realizou um dos seus maiores sonhos, em suas palavras: “o Hospital Getúlio Vargas é a menina dos olhos do meu governo”. Ele desejava oferecer para seus conterrâneos um hospital que atendesse aos avanços da ciência médica. Fez construir o Hospital G e t ú l i o Va rg a s , somente com recursos do tesouro do Estado do Piauí, Hospital Getúlio Vargas em 1941, quando inaugurado. nada recebendo do governo federal. O Hospital Getúlio Vargas foi inaugurado, em Teresina, em 3 de maio de 1941. A construção dos dois primeiros pavimentos foi acompanhada pelo engenheiro Cícero Ferraz de Sousa Martins, ficando previsto a construção de um terceiro andar, o que veio a se concretizar posteriormente.
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No ano 2.000, recebeu o título de Médico do Século, como reconhecimento histórico de seu trabalho em favor da medicina e saúde no Estado do Piauí. Essa homenagem foi uma promoção da TV Cidade Verde. É interessante a leitura do depoimento de Dr. Alcenor Barbosa de Almeida sobre esse acontecimento, justificando a concessão do título concedido a Dr. Leônidas de Castro Mello, documento que reproduzimos a seguir, considerando a excelência da redação e conteúdo
Nesta página e na seguinte, parecer do Dr. Agenor Barbosa de Almeida concedendo voto para o concurso “Piauiense do Século”, na área de medicina.
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Placa Homenagem concedida a Leônidas de Castro Mello como “Médico do SÉCULO XX
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O primeiro casamento
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m 1922, Leônidas de Castro Mello casou-se com Aldenora Batista da Costa, natural de José de Freitas que faleceu precocemente no ano de 1924. Desta união nasceu uma filha, Maria Augusta Mello. Maria Augusta casou-se com Dr. Gerardo Majela Fortes Vasconcelos, conceituado médico ortopedista, em Teresina. Do casal, Leônidas ganhou três netos: Aldenora, Lúcia e Gerardo. Os netos, Gerardo Vasconcelos Filho e Lúcia, ao casarem, passaram a residir fora do Piauí. A neta Aldenora Vasconcelos, casou-se com o médico pernambucano Dr. Isânio Mesquita, e sempre residiu em Teresina. Seus filhos Gerardo Vasconcelos Mesquita e Isânio Mesquita Filho formaram-se em Medicina, com especialização em ortopedia, ocupando lugar de destaque na Medicina do Piauí. Vale acrescentar que o relacionamento entre os filhos das duas uniões de Leônidas sempre foi de muita amizade.
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O magistério
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eônidas de Castro Mello gostava do magistério. Em 1923, já como médico em Teresina, abriu em sua residência um curso para aulas particulares de História Natural. Curso noturno, das 20 às 22h, três vezes por semana. Foi tanta a procura por parte dos alunos da Escola Normal e do Liceu, que se fez necessário estabelecer o número de vinte alunos por turma. Neste mesmo ano, esses alunos reunidos e, por iniciativa própria, foram ao Diretor da Instrução - Dr. João Pinheiro - pedir a nomeação de Dr. Leônidas para professor interino do Liceu. Meses depois, ele prestou concurso e se fez professor efetivo catedrático do Liceu Piauiense. Podemos sentir a dediDesignação como lente interino do Liceu Piauiense cação que tinha meu pai ao magistério na afirmação que ele faz na sua autobiografia: “Afirmo aqui [...] que, de todos os cargos que exerci em minha vida pública foi o único que disputei e o que mais desejei.” (MELLO, 1976, p. 200). Esta afirmação é verdadeira: várias vezes, andando comigo no jardim de nossa casa da Av. Frei Serafim, ele admirava a beleza das flores, retirava uma do galho e sorridente me explicava como acontecia a florada e falava da perfeição das leis da natureza. Em seu sítio “São Raimundo” ou em sua fazenda “Santa Rita”, em Barras, ele se mostrava um atento admirador da natureza. Em “Trechos do Meu Caminho”, encontramos um artigo publicado pelo jornal “O Momento” de 15 de agosto de 1935 em Teresina, logo no início do seu Governo, atribuído ao jornalista Artur Passos, fazendo referência à dedicação de Leônidas ao magistério:
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No magistério Leônidas tem sido um dos pioneiros da cruzada generosa e benemérita contra o nosso vergonhoso analfabetismo. Faz parte da legião dos patriotas incansáveis que consideram a educação do povo o problema nacional por excelência. No Liceu e na Escola Normal, permanecem a lembrança viva dos seus ensinamentos e os traços grandiosos da sua compostura na direção desses dois brilhantes institutos que possuímos e que muito honram a nossa civilização e a nossa cultura. E tal foi a atmosfera moral que a sua palavra deixou no respeitoso círculo das duas casas de ensino, tal o sedimento indestrutível para a mocidade pensar e vencer, que esta, agradecida e saudosa, sempre vibrante de carinho e entusiasmo, venera a figura do mestre querido, temporariamente afastado de suas nobres funções, em bem da nossa terra e em favor de nossa gente. (MELLO, 1976, p. 296)
Em “Trechos do Meu Caminho”, também: Registro aqui, de relance, que tive a felicidade de ver meu nome ligado à construção do atual “Colégio Estadual do Piauí”, obra iniciada no governo Landri Salles (eu era então Secretário Geral do Estado) e concluída no meu Governo. Alguns anos depois, já no governo, construí também o edifício destinado ao Museu Histórico, Biblioteca e Arquivo Público [...]. (MELLO, 1976, p. 14)
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Nomeação para o cargo efetivo de lente do Liceu Piauiense
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Nomeação para Diretor do Liceu Piauiense
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Designado para Professor de História Natural na Escola Normal Oficial
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O casamento com Ducarmo como ele nos contava
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eônidas, como médico, viajava bastante para atender clientes em diversas cidades do interior do Piauí. Em uma dessas viagens, indo para José de Freitas, encontrou seu irmão Otávio e a esposa Nina em um carro, dirigindo-se para Barras. No banco de trás, deitada displicentemente, encontrava-se uma moça. Era noite e a lua clareava seu rosto mostrando uma pele muito alva e cabelos pretos. Leônidas admirou a beleza da A esposa de Leônidas de Castro Mello: Maria do Carmo de Castro Mello. moça, na verdade, quase uma menina. Não se conteve e perguntou ao irmão quem era. Otávio respondeu: “É Ducarmo, minha cunhada, irmã de Nina.” Pernoitaram em José de Freitas, Leônidas, depois de atender à cliente, falou aos amigos do desejo de ficar até o dia seguinte, e também que gostaria que fosse realizado um baile e pediu ao amigo de José de Freitas que, se possível, fizesse a festa à noitinha. Tinha prestígio em José de Freitas, e o baile aconteceu. Leônidas dançou toda a festa com Ducarmo, Maria do Carmo de Castro Carvalho e já falou na possibilidade do casamento para dezembro. Ducarmo, moça simples do interior, muito timidamente disse que já tinha um pretendente em Barras. Leônidas insistiu e acertou que no final do ano viajaria a Barras e então resolveriam o casamento. Assim aconteceu. Ela estava com 14 anos, e ele, com 30.
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Casaram-se no dia 22 de dezembro de 1937, às 17 horas, na residência do irmão Otávio de Castro Mello, perante o juiz de direito da comarca, Dr. José de Arimathéa Tito, tendo como testemunhas os coronéis José Fortes e Gervásio Raulino da Silva Costa, José de Castro Mello, Auta de Castro, Maria José de Castro Melo e Dalila Uchôa. Apesar de ter apenas 14 anos, ter vivido sempre em Barras e possuir só o curso primário, Leônidas afirmou muitas vezes para filhas: Sua mãe é uma mulher inteligente. Por todos estes anos que me acompanha sempre soube se portar com conveniência e muita elegância. Nunca me causou um problema. É uma mulher admirável.
Foi um caso de amor verdadeiro de ambas as partes. Já em idade avançada, era costumeiro ele colher uma flor no jardim, ir até onde ela estivesse na casa, beijá-la com muito carinho e entregar-lhe a flor dizendo: “É para meu anjo”. Discussões, às vezes, tinham, mas nunca em voz alta ou com palavras grosseiras. Tudo corria de forma muito cordata. Aos 70 anos, à tardinha, costumava colocar uma cadeira no jardim e sentava-se lendo. Estando presentes algumas das filhas e a esposa passasse, por algum motivo, ele sempre repetia: “Minha filha, sua mãe ainda é uma mulher bonita.” É preciso reconhecer que, como uma quase adolescente à época do casamento, com uma convivência diária, Ducarmo absorveu muito da personalidade do marido. A formalidade da vida social e política ficou como uma marca em sua vida. Ela era formal em todos os momentos. Ela trouxe, para a residência da Frei Serafim, a formalidade que o casal viveu por dez anos, quando Leônidas se encontrava à frente do governo do Estado.
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Leônidas e Ducarmo na propriedade de Milton Brandão, 1949.
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Dedicatória no livro “Trechos do Meu Caminho
Brindando com a esposa em recepção em sua residência.
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Missa em comemoração aos 50 anos de casamento, em 1978, na capela do “Colégio Sagrado Coração de Jesus, com a neta Michele, os netos Flávio e Marcelo.
Missa na capela do Colégio Sagrado Coração de Jesus
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Trajetória política
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ão temos por objetivo aqui abordar a vida política de Leônidas de Castro Mello. Essa trajetória, ele a relatou com detalhes em sua autobiografia “Trechos do Meu Caminho”. Nos limitaremos a acrescentar que como político, no Piauí, ocupou, dentre outros, os seguintes cargos: Conselheiro Municipal (hoje vereador)..........de 1929 a 1932; Governador (eleito constitucionalmente).......de 1935 a 1937; Interventor Federal (decreto em anexo)..........de 1937 a 1945; Deputado Federal...........................................de 1951 a 1955; Senador Federal.............................................de 1955 a 1963. Efetivamente os dois últimos anos do mandato de senador foram cedidos ao seu suplente José de Mendonça Clark, em virtude de problemas de saúde. (MELLO, 1976, p. 441). Reproduzimos, como anexo, a relação completa dos cargos eletivos, federais e estaduais, ocupados, para eventual consulta. Esses dados seguem de acordo com a sua autobiografia . Gostaríamos de acrescentar o excelente trabalho do historiador Wilson Carvalho Gonçalves “Chão de Estrelas”, no qual, em verbete à página 126, apresenta de forma sucinta, mas muito expressiva, a biografia de Leônidas de Castro Mello.
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Relação de cargos Federais
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Relação de cargos Estaduais e Eletivos
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Ofício encaminhando o decreto designando Leônidas de Castro Mello interventor no Estado do Piauí.
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Decreto de nomeação como Interventor Federal
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Na saída de missa realizada na Igreja Nsª. Srª. do Amparo, em Teresina, em comemoração ao aniversário de governo.
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Leônidas Mello assiste a desfile militar em homenagem ao aniversário de governo.
Leônidas Mello agradecendo almoço oferecido pelo Ministro da Guerra, no Rio de Janeiro, em 12.08.1942.
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Durante visita do Ministro da Guerra às obras do quartel
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Retrato de Leônidas de Castro Mello doado ao Museu Histórico em 3 de maio de 1939, em nome dos municípios.
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A descendência
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os cinco filhos, apenas os três primeiros, Maria Augusta (do primeiro casamento), Yolanda e Regino vivenciaram a primeira fase da vida política do pai, ou seja, a época em que esteve à frente do governo do Estado de 1935 a 1945. As duas últimas, Socorro e Rita, nascidas em 1945 e 1947, respectivamente, vivenciaram apenas a segunda fase, ou seja, o período dos mandatos de Deputado Federal e Senador. FILHOS: Maria Augusta Melo Yolanda de Castro Melo Regino de Castro Melo Maria do Socorro de Castro Melo Rita de Cássia de Castro Melo NETOS: Aldenora de Melo Vasconcelos Lúcia Maria de Melo Vasconcelos Gerardo Vasconcelos Filho Leônidas de Castro Melo Neto Flavio de Castro Melo Marcelo de Castro Melo Liana de Castro Melo Bernardo Melo Neto Michele de Castro Melo Tajra Dib João Tajra Neto BISNETOS: Gerardo Vasconcelos de Mesquita Isânio de Mesquita Diana Vasconcelos Lopes Jesuíno Vasconcelos Lopes Eliane Castelo Branco Vasconcelos
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Luciane Castelo Branco Vasconcelos Cristiane Castelo Branco Vasconcelos Viviane Castelo Branco Vasconcelos Juliano Tapety Melo Krysna Marques Brígido Melo Cauã Brenner Melo Tajra Paixão Lucas Dib Brito Tajra Luiz Gustavo Melo Campelo João Bernardo Melo Campelo Bernardo Martins Carvalho Melo Ricardo Valle de Castro Melo Gabriel Martins Carvalho Melo Rita de Cassia Valle de Castro Melo
Com os netos Leônidas Neto, Marcelo Mello, Flávio Mello em pé; Michele Tajra, Dib João Tajra e Liana Mello no colo.
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Para todos os filhos, era sempre perceptível o desejo do pai, Leônidas, de mantê-los afastados da sua vida política. Ao retornarmos definitivamente do Rio de Janeiro, após ele deixar o mandato de senador, recebemos dele esta recomendação: devíamos evitar qualquer comentário sobre a politica do Piauí, no nosso convívio social em Teresina. Só fiquei conhecendo o nome de pessoas que, de bem ou de mal, partilharam da vida política de meu pai, após a publicação de sua autobiografia “Trechos do Meu Caminho”. E, como pode-se constatar, ele limitou-se ao período em que se encontrava à frente do governo do Estado, 1935-1945. Nasci em fevereiro de 1945. Com a sua eleição para Deputado Federal, mudamos para o Rio de Janeiro. Eu com cinco anos e minha irmã Rita com três. Lá passei minha infância e adolescência. Assim, aqui registro momentos da vida familiar, na sua fase de congressista, como deputado e senador, e situações que vivenciei quando ele se afasta, definitivamente, da política. O objetivo para o que aqui apresento é simples: deixar para os descendentes o testemunho de uma filha que recebeu o privilégio de ter como pai um homem de família modesta que lutou para adquirir uma formação superior e sempre optou por uma vida extremamente simples, independente de todos os privilégios e cargos que desempenhou. Dedicou sua vida a contribuir para o desenvolvimento do seu amado Piauí e para o bem-estar de sua família. De uma honestidade inabalável, foi, como político e médico, uma personalidade marcante pelo profundo respeito que tinha para com a coisa pública e para com os seres humanos.
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Do Karnak para a Frei Serafim em 1945
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e acordo com o historiador Wilson Gonçalves ficou como interventor até 9 de novembro de 1945, deixando o Palácio do Karnak, Leônidas dirigiu-se diretamente para sua residência situada à Av. Frei Serafim, 1909. Uma casa ampla, cujo projeto foi do Engenheiro Cícero Ferraz Martins, concluída no ano de 1944. Apesar de afastado do poder, muitos eram os amigos e políticos que, diariamente, costumavam reunir-se com Leônidas. À noitinha era comum uma grande quantidade de cadeiras colocadas no jardim de sua casa, onde, muitas vezes, alguns encontros prolongavam-se pela noite. Com base no exposto, eis que há de se constatar um posicionamento onde Mello (1976, p. 363) se expressou da seguinte maneira: Apesar de tudo o que aconteceu, não desanimei, não fugi do campo da luta. Fiz da minha residência, ampla e ao centro de grande terreno, verdadeiro clube político, onde recebia amigos e correligionários. Todas as noites a casa se enchia. Mantive em circulação nosso jornal, que mandava imprimir em Caxias ou S. Luiz do Maranhão, pois as empresas particulares de Teresina, atemorizadas, negavam-se a aceitar contratos para a sua impressão.
Comprovando ser uma liderança política, em 1950 foi eleito Deputado Federal e em outubro de 1954, Senador.
Residência de Leônidas de Castro Mello situada à Avenida Frei Serafim, 1909, na década de 40.
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No terraço de sua residência com a esposa Ducarmo, Arão Parente e Zelinda Parente no batizado da filha Socorro, 1945.
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No jardim de sua residência, Leônidas Mello segura a filha ao colo, 1946.
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Como congressista no Rio, uma vida simples
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leito Deputado Federal em 1949; em 1950, Leônidas decidiu então levar a família para a capital da República, na época, Rio de Janeiro, e com sua eleição para o senado, lá permanecemos até 1961, quando retornamos definitivamente ao Piauí. Ao deixar Teresina, eu, Socorro, tinha 5 anos, e minha irmã Rita, 3 aninhos. Os mais velhos Yolanda e Regino foram para o Rio um pouco depois. Yolanda retornou logo ao Piauí, onde seu relacionamento se fazia mais fácil em função de sua surdez. Meu pai buscou sempre por uma solução para o problema auditivo da filha, mas nunca conseguiu alcançar este seu objetivo. Regino, aos 22 anos, encontrando-se no Rio, fez concurso para o Banco do Brasil e casou-se em seguida, com uma maranhense, Violeta Correa, vindo morar em Teresina. Apesar de haver cursado Medicina no Rio e das constantes viagens durante o Leônidas Mello em pronunciamento período em que se encontrava no Congresso Nacional no governo do Estado do Piauí, meu pai nunca se adaptou à capital da República. No Rio, levava uma vida retraída e sempre se mostrava saudoso do Piauí.
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Das vantagens próprias aos cargos de congressista, ele não fez uso, sequer tinha um carro e levava uma vida extremamente simples. Nunca tivemos regalias ou luxos. Moramos em vários apartamentos bons, mas sempre alugados. Como pai, ele nos fazia sentir que queria sua família de volta à sua terra natal. Assim justificava o fato de não comprar imóveis no Rio. Moramos sempre em apartamentos alugados, todos em Copacabana, pequenos e mobiliados com o mínimo necessário. Utilizávamos transporte coletivo em toda a nossa permanência no Rio. O único privilégio que concedeu aos filhos foi uma excelente educação. Frequentávamos bons colégios e lugares que contribuíram positivamente para nossa formação. A vida social limitava-se a compromissos com amizades antigas do Piauí e familiares que residiam no Rio. Algumas vezes uma peça de teatro ou musical, frequentava com minha mãe. Gostava de levar as filhas para peças de teatro infantil. Dessa época, tenho as melhores recordações de minha infância. Morávamos à Rua Duvivier, altura do Posto 2, em Copacabana. Abaixo do nosso prédio, instalaram-se famosas boates, onde à noite o movimento era intenso e, durante as madrugadas, havia muito barulho. Mudamos, então, para a Rua Domingos Ferreira, também em Copacabana, bem próximo a um antigo cinema - Rian. Infelizmente, apesar do local maravilhoso, próximo ao mar, tínhamos um problema sério de racionamento de água. Por essa época, a zona sul da cidade do Rio de Janeiro passava por séria crise com o racionamento de água. Ficou nítida em minha memória a figura de meu pai segurando depósitos para juntarmos água mínima necessária à casa! Nesses momentos, ele, sorrindo, dizia lembrar com saudade seu rio Marathaoan, em Barras. Eu e minha irmã Rita cursávamos o antigo primário e tínhamos um pai cuidadoso com nossos estudos. Com ele, fazíamos diariamente nossas tarefas escolares. Supervisionava tudo com muita calma. Complementava as explicações dos livros com exemplos. Ele fazia tudo parecer mais fácil. Afinal, ele havia sido um excelente professor já no Liceu Piauiense, nós é que não sabíamos!
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Após as tarefas do colégio, ele nos dava sempre uma hora de aula de inglês. Sentíamos que ele gostava dessa atividade. Conseguia fazer o estudo ficar interessante. Foi meu melhor professor! Nos finais de semana, íamos à praia pela manhã e, à tarde, ele nos levava sempre ao cinema, de preferência ao CINEAC, que ficava no centro do Rio. Assistíamos a documentários e filmes infantis. Após o cinema, seguíamos para a “Confeitaria Colombo”. Chá com torradas ou chocolate e docinhos num ambiente espelhado com tapetes vermelhos e grandes lustres. Era um cenário de sonho, sonho que é nítido até hoje. Mas, como pai, ele sabia aproveitar a oportunidade e, com muita discrição, nos ensinava o comportamento adequado à mesa, como usar o enorme guardanapo de linho branco e até como lavar as pontas dos dedos na lavanda, após o chá. Era muito gostoso: o lanche e a sua presença cuidadosa. Sem dúvida alguma, foi um pai muito presente em nossa vida diária. Mas, apesar de todas as vantagens que a cidade do Rio de Janeiro oferecia, nosso querido pai Leônidas estava sempre pensando no Piauí. Muitas tardes, atravessávamos a Av. Atlântica para chegar até a praia. Quando encontrávamos alguém, com um anzol pescando, ele chegava perto para uma conversa que sempre citava, com saudade, suas pescarias às margens do Rio Marathaoan. Emocionalmente, ele sempre esteve ligado ao Piauí. Afirmava que não queria que suas filhas crescessem sem ligações com a família e a terra onde nasceram. Assim, em 1956, viemos passar alguns meses no Piauí. Eu estava com 11 anos e Rita, com 9. Tivemos, então, a oportunidade de reencontrar os familiares em Teresina, mas o que marcou realmente este momento foi uma viagem a Barras, onde ficava a Fazenda Santa Rita.
A casa da Fazenda Santa Rita, em Barras, Piauí, em 1956.
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Barras, a fazenda Santa Rita
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aíamos de Teresina em um caminhão fretado, desses de carroceria. Meu pai, com um boné cinzento de malha, ia sentado junto ao motorista com Ducarmo ao seu lado. Em cima, na carroceria, as crianças e a bagagem. A viagem era uma alegria só, principalmente para nós duas, eu e Rita, que vivíamos em apartamento e sem muito contato com a natureza. Minha mãe sempre convidava outras meninas, primas, para nos fazerem companhia. Ivone, Gracinha Mota e Amparo (Maria do Amparo Carvalho Viana), esta última estava sempre presente e até hoje é uma prima-irmã em função da grande convivência que tivemos. Ela aparece conosco em uma das fotos aqui registradas no banho no rio Marathaoan. Em Barras, o caminhão parava em frente à casa do meu tio Otávio Mello, que lá residia e ali se abraçavam os dois irmãos, Otávio e Leônidas, e as duas irmãs Nina e Maria do Carmo. Logo chegavam muitos amigos e parentes e a casa ficava cheia. Compadre Otávio, como o chamava meu pai, era uma figura alegre, gostava de contar Na porta da residência do irmão Otávio Mello, com a piadas, sempre reunia em esposa Ducarmo e uma das filhas ao colo. Ao centro o amigo José Jucá Marinho e a esposa sua casa um séquito de pesOdete Marinho e Nina Mello, irmã de Ducarmo. soas que trabalhavam na cozinha. Mulheres que vendiam doces, os agregados da família, e todos, juntos, faziam grande movimento quando lá chegávamos. Na sala de jantar, uma grande mesa de madeira a se preparar para o almoço. Toalha branca e travessas de louça com leitão assado, carneiro, sarapatel e linguiça caseira. De sobremesa, doces da terra: caju, mangaba, goiaba. Mas Leônidas gostava mesmo era do doce de casca de limão, ali ele, pesso-
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almente, já encomendava algumas latas do doce para levarmos na volta a Teresina. Por esse tempo, ainda viviam em Barras quatro dos seus irmãos: Rosa, Olinda, Dosinha e Otávio. Saíamos visitando todos. Na casa de nossa Tia Rosinha, era servido um licor de jenipapo, feito por ela e famoso na cidade. Ela retirava, cuidadosamente a garrafa e os copinhos do “petisqueiro”, armário pequeno com uma tela protetora na frente, que ficava na sala, onde um peitoril dava para um pequeno e florido jardim. Minha Tia Dosinha (Cinobilina de Castro Gonçalves) era casada com um dos grandes comerciantes da cidade, Sr. Raimundo Gonçalves, mais conhecido como Sr. Dico. Moravam em um belo casarão que se destacava pela beleza da arquitetura, piso de tábuas de madeira e com portas e janelas altas que quase chegavam ao teto. Como mobiliário da sala, conjunto de cadeiras em trançado de palha, muito usado àquela época. Guardanapos de “crochet” enfeitavam a casa. Tia Dosinha, vestia-se sempre de branco, apresentava um semblante calmo, cabelos lisos, já grisalhos e uma forte personalidade que contrastava com a delicadeza ao receber. Uma família grande, de muitos filhos. Um deles, Wildson de Castro Gonçalves e sua esposa Socorro, eram os mais próximos e compadres dos meus pais. Quando nos encontrávamos na fazenda Santa Rita, na roda de conversa que se fazia à noitinha, costumavam sempre aparecer Wildson e Dr. José Lages, este, um conceituado médico em Barras. Após o jantar, numa rede segura de um lado em um tronco de cajueiro e do outro em uma das colunas do terraço, meu pai sentado, mostrava alegria quando na escuridão, ao longe, surgiam os faróis de um carro, anunciando a chegada de parentes ou amigos. Ele chamava logo a velha cozinheira Idalina e, sorrindo, pedia que providenciasse o café. Idalina gostava das brincadeiras que “seu dotô” como dizia com ela e os dois sorriam juntos. Anos depois, viúva, minha Tia Dosinha veio morar em Teresina, na Praça do FRIPISA, onde faleceu após os cem anos. Entre muitos dos seus descendentes, destaco um dos seus netos, o médico cardiologista Dr. Wildson de Castro Gonçalves Filho que acompanhou sempre toda a nossa família. Um profissional reconhecido em Teresina pela competência e liderança.
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Olinda, também irmã de Leônidas, não casou. Morava em um casarão em Barras e costumava passar temporadas conosco na casa da Av. Frei Serafim. Faleceu em Teresina. O irmão Eurípedes de Castro Mello, desembargador, casado com Lina Pires Mello, morou em Teresina. Quando veio a falecer, morava à Rua Monsenhor Lopes. Era frequentador assíduo de nossa casa. Seus filhos: Maria das Dores Melo Freitas, José Regino e Antônio sempre mantiveram com nossa família uma estreita relação. Voltando ao almoço em casa do meu Tio Otávio, inesquecível acontecimento de minha infância em Barras, aquele burburinho de pessoas a entrar e sair da casa para nós era bem diferente do cotidiano de nossa vida no Rio. Ao término do almoço, os dois irmãos descansavam e, no início da tarde, partíamos, no mesmo caminhão. Havia uma parada obrigatória na casa da irmã Olinda. Ela guardava a louça e panelas do serviço diário da fazenda. Com os caixotes no caminhão, partíamos. Na carroceria, a cada freio, risos, tombos e uma gritaria alegre. Meu pai, sentado na boleia, com seu boné cinzento, de tempos em tempos, lançava um olhar cuidadoso para a carroceria. Sua expressão era de felicidade. Ele estava em sua amada cidade de Barras do Marathaoan. A fazenda Santa Rita ficava próxima à cidade, quase à margem do rio. Casa antiga com largas paredes de adobo, teto sustentado com troncos de carnaúba, um terraço que circulava a casa e piso de ladrilhos rústicos cor de barro. Nos Fachada da Fazenda Santa Rita. Leônidas aparece à direita, na rede, seu local preferido. Aí, sob os arcos, ele recebia os amplos dormitórios, clientes da redondeza para consulta. O curral aparece à esquerda da casa. troncos, também da
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carnaúba, cortavam na horizontal o cômodo sugerindo o local para que as redes fossem armadas. As portas e janelas eram fechadas com uma tranca de madeira que era sustentada por garras de ferro em suas laterais. Mobiliário, quase nenhum. Apenas uma grande mesa para as refeições com algumas velhas cadeiras e tamboretes feitos com couro de bode e tachas. Uma cantareira de madeira escura sobre a qual ficavam dois potes de barro se encostava em uma das paredes, garantindo ali a água para o uso doméstico que o velho e fiel “Lampião” trazia do rio Marathaoan. Acima dos potes, luziam alguns canecos de alumínio, areados com areia do rio, aos cuidados de Idalina e suas filhas, Maria do Carmo e Masinha, encarregadas da cozinha. Elas chegavam cedo da manhã, apontavam ao longe, no final do cercado de arame da fazenda, em fila, com latas equilibradas na cabeça, e traziam muitos filhos ainda pequenos. Ao chegarem, acendiam o fogo de lenha que logo crepitava aquecendo as panelas pretas de ferro. Um grande forno de alvenaria garantia os assados ou bolos caseiros. É preciso lembrar que, logo ao chegar à fazenda, era providenciada a matança de um boi e um carneiro para suprir a alimentação de todos que nos cercavam e suas famílias. A velha Idalina, já com mais de setenta anos, recebia ordem do patrão para que nada faltasse. Era um tempo de fartura para os agregados, todos moravam em um local chamado Xique-Xique. Em uma das laterais da casa se observavam figueiras altíssimas, cujos velhos troncos e raízes se mostravam salientes e retorcidos. Árvores, que, desta maneira, faziam verdadeiras esculturas no chão e proporcionavam um ar sombrio e misterioso ao local. A casa antiga foi acrescida de um grande terraço em arcos, apresentando um aspecto mais moderno. Ao redor fruteiras, atraíam os pássaros: mangueiras, cajueiros e umbuzeiros. Era aí que meu pai armava sua rede de tucum, deitava-se a escutar o barulho gostoso da passarada e, com certeza, a lembrar-se da casa paterna em Barras, quando criança. Na parte mais antiga da construção, em uma das grossas paredes dos terraços originais que cercavam a casa, havia um nicho com porta de vidro. Lá ficava a imagem de Santa Rita de Cássia. Ao chegarmos à fazenda, antes de qualquer coisa, rezava-se o terço aos pés dessa imagem.
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Meu pai, de cabeça baixa, com um dos joelhos apoiado no chão de tijolo rústico, era a expressão da humildade em contrita oração. Todos presentes. Era um momento sublime. D. Olinda, minha Tia, “puxava” o terço. Esse ritual era feito quando chegávamos e quando partíamos. Com a venda da fazenda, essa imagem de Santa Rita ficou com minha irmã Rita de Cássia de Castro Melo, assim chamada em homenagem à Santa. Já fora do cercado de arame, em frente ao portãozinho que dava acesso à casa, um grande tamarineiro fazia a sombra que convidava o gado ao descanso. A casinha branca do vaqueiro Tibúrcio ficava ao lado, e, ligando as duas casas, o curral, também construído de troncos de carnaúba. Aí, todas as manhãs, tomávamos um leite mugido, leite este que espumava nos copos de alumínio. Acordávamos bem cedo. Após o café com cuscuz, beiju, bolo frito e biscoito caseiro, que era chamado de “ Fs e Rs”, era a hora do banho no rio Marathaoan. O local que sempre frequentávamos ficava muito próximo da casa da fazenda. Chamavam à época de Porto Fundo. O barrense Leônidas colocava uma toalha e a tarrafa de pesca no ombro. Levava na mão uma tigela branca esmaltada, com carne de sol assada e um pirão de farinha de mandioca com leite. Seria o nosso lanche, e um pouco, para as iscas da pescaria. O percurso até o rio era breve, mas, para nós, cheio de encantamento e surpresas. Passávamos em frente ao curral e à casa do vaqueiro, e dali seguíamos por uma picada de chão arenoso com plantas rasteiras. Nas laterais do caminho os tucunzeiros: belas palmeiras de onde pendiam grandes cachos de pequenos frutos amarelos quando maduros. Caminhávamos por cerca de uns cinco a dez minutos e, de repente, a picada se abria para um grande lajeado, onde se viam as águas correntes do rio Marathaoan brilharem sob a luz do sol. O cenário era lindo. Grandes pedras escondidas em vegetação formavam as duas laterais e, no meio, o lajeado de um tom amarelado recebia as águas mansas que, quebrando em pequenas ondas, faziam um convite ao banho. Aí
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acontecia o maior encantamento das férias. As melhores lembranças que guardei do Piauí estão nesse cenário. Talvez por ser, para nós, àquela época ainda crianças, um cenário inteiramente novo em função do que vivíamos no Rio de Janeiro. Segurando a tarrafa de pesca, meu pai jogava às águas pequenas porções do pirão de mandioca e, de imediato, na superfície da água, pequenos círculos ondulantes se formavam anunciando que peixes foram atraídos. Daí, então, ele lançava sua tarrafa, sempre esperançoso de vir algum peixe maior para o jantar. O Piau e o Mandi eram os seus peixes preferidos. Algumas vezes, era usado o “jequi”: uma espécie de gaiola, feita com talos de bambu, com uma passagem Leônidas jogando a rede de pesca no Rio Marathaoan afunilada em um dos extremos por onde entravam os peixes atraídos pela mandioca colocada como isca. Uma vez que entravam, não conseguiam escapar. Nesse tipo de pescaria, sempre nos acompanhava “Lampião”. Não sei a razão desse apelido. Mas era um mulato de baixa estatura e musculoso que sempre usava chapéu de palha e calça arregaçada até o joelho. Fiel a “Leônidas Mel”, como ele chamava meu pai. Era o mesmo que, muitos anos antes, foi o encarregado de acender os foguetes quando da chegada a Barras do recém-formado médico, nos idos anos de 1922. Portanto, ele o acompanhava desde os tempos de juventude. Lampião bebia muita cachaça e, bêbado, subia nos bancos da praça da igreja matriz de Barras, a fazer, em alta voz e confusas palavras, seus elogios ao patrão de tantos anos. Lampião era encarregado de suprir os potes da cozinha da
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fazenda Santa Rita com água tirada do rio Marathaoan, água carregada em duas grandes tinas de madeira, com o local de enchê-las tampado com rolha de buriti, sob o lombo de um burro. Sem dúvida, Lampião era uma figura marcante no dia a dia da Leônidas com as filhas Socorro e Rita Fazenda Santa Rita. Como falei anteriormente, o curral do gado, localizado entre a casinha do vaqueiro Tibúrcio e a casa da fazenda onde ficávamos, era construído com troncos de carnaúba colocados na horizontal. Uma das cenas que, pela beleza, marcaram minha vida: ao entardecer, eu subia e sentava na carnaúba mais alta e esperava ouvir distante o cantar do “aboio” do vaqueiro Tibúrcio. Ele trazia o gado de volta para a noite no curral. O som do aboio ia se tornando mais próximo e, misturado com o som dos chocalhos amarrados ao pescoço em algumas rezes, criava uma cantiga bonita no pôr do sol do horizonte. E eles vinham se aproximando cada vez mais nítidos. O vaqueiro, os chocalhos e o som do aboio. Outra cena que vivenciei na Fazenda Santa Rita e ficou O banho no Rio com a esposa Ducarmo em minha memória, correse a filha Rita pondia às consultas atendidas
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Banho no Porto Fundo, no Rio Marathaoan com a filha Socorro, 1956.
pelo médico Dr. Leônidas. A clientela era simples, nordestinos dos arredores de Barras, no Piauí. Acontecia, muitas vezes, pela manhã. Os moradores da redondeza, aproveitando a presença do “doutô”, vinham se consultar. Ao acordarmos, eles já estavam à porta da fazenda, debaixo do grande tamarineiro. Após tomar o seu café, não o político, mas o médico dedicado, dirigia-se ao grande terraço em arcos que ficava na frente da casa, colocava sobre o peitoril: papel, caneta e alguns medicamentos (aqueles que atendiam às doenças mais comuns no interior). E, ali mesmo, de pé, ia recebendo-os, um a um. As mulheres quase sussurravam seus males, talvez por timidez, já os homens eram mais desinibidos. Interessante era o vocabulário que usavam. Mas o Dr. Leônidas era também nascido em Barras e os entendia perfeitamente. Atendia com muita calma e, às vezes, se emocionava ao final da consulta, quando recebia sempre um agradecimento: eram ovos amarrados por um guardanapo, era um leitãozinho, um capão, doce de mangaba ou um saco com pequis. E o “doutô” das Barras do Marathaoan vivia um momento de felicidade! Ele tinha uma proposta interior: prestar aos que lhe cercavam, sempre, a ajuda que fosse possível.
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Na cachoeira que ficava próximo à fazenda: Ducarmo com as filhas Socorro e Rita.
As primas Amparo Carvalho (Viana) e Ivone, Socorro e Rita no Marathaoan.
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Eu, assistindo de longe, percebia a emoção que ele sentia. Ali estava o Leônidas que superou dificuldades de toda a ordem para ser médico e, naquele momento, realizava seu sonho: ajudar seus conterrâneos. Talvez ele lembrasse de seu maior amigo de infância: Zuza, o menino de Barras que morreu aos seis anos, por falta de atendimento médico. Fato que marcou sua vida, conforme narrado no início deste relato. Nossa permanência na fazenda era enriquecida com essa troca de sentimentos verdadeiros: o bem-querer de Leônidas por Barras e a amizade singela dos Barrenses. Em uma bela homenagem, o hospital de Barras recebeu seu nome: “Hospital Regional Leônidas Mello”. Assim, Barras do Marathaoan era a amada terra de meu pai, e sempre lembrada.
Leônidas recebe os amigos de Barras no terraço de sua residência ladeado pela esposa. Em pé à esquerda: o ex-prefeito Raimundo Triunfo, o médico José do Rego Lages, Zenaide Rebelo Lages e o Juiz Geraldo Magela de Carvalho.
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Afastado da política: o sítio São Raimundo
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o findar o mandato de senador, retornamos definitivamente do Rio de Janeiro. Foi no início de 1961. Eu estava saindo de uma adolescência, com 16 anos, e minha irmã Rita com 14. Dessa vez, ao retornarmos a Teresina, tudo foi bem difícil. Meu pai deixou a política em péssima situação financeira. Assisti, muitas vezes, a seu estado de angústia ao ter que reduzir nossas despesas e sua dificuldade em comunicar esse fato a minha mãe. Possuíamos uma propriedade que ficava em Teresina, atrás do Quartel da Policia Militar, no bairro da Piçarra. Como não havia calçamento até lá e pouquíssimas pessoas ali moravam, o percurso parecia longo e árido, mas na realidade ficava próximo. Pela localização, o sítio era chamado de São Raimundo e foi a alternativa que se nos ofereceu para amenizar a crise financeira. Nesse sítio, meu pai Leônidas construiu dois grandes galpões e aí instalou uma pequena granja. Foi essa a solução que encontrou para suprir nossas despesas. O sítio era demarcado com uma cerca de arame e o portão de acesso ficava bem distante da casa. Esta, uma casa simples, cercada por terraços, paredes brancas e janelas pequenas em tábuas pintadas de azul. Os cômodos não tinham forro. Era uma casa aconchegante e, nos meses de chuva, o barulho da água no telhado trazia uma sensação de frescor. Ao entrarmos pelo largo portão de madeira, cujas duas metades eram fechadas apenas por uma corrente, víamos, de um lado, uma cajazeira imponente, muito alta, e logo a seguir uma sequência de buganvílias em várias cores e sempre floradas. Do outro lado, as Em seu sítio São Raimundo, cercado pelos pombos.
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laranjeiras, pés de bacuparis e chegando à casa, mangueiras que faziam um sombreado de dar gosto. Ao lado, à esquerda da casa, ficava um grande cercado em tela de arame com uma pequena construção de alvenaria que abrigava um pombal. Pelas manhãs, ao chegar ao sítio, o recémsaído da política, Leônidas Mello, jogava milho aos pombos ao som de um apito e eles vinham em revoada ao seu redor. Era o momento de viver a paz franciscana a que ele fez jus em função dos muitos anos de inquietude e preocupações pelo que passou, principalmente quando à frente do governo do Estado do Piauí. Esta cena ficou registrada em uma das fotos. Por trás da casa, um poço tubular fornecia água para uso doméstico e, em um grande tanque de cimento, jorrava forte. Ali era o local de alegres encontros da família, especialmente aos domingos. Mas, durante a semana, o avô Leônidas tinha a companhia diária da neta, como mostra a foto. Todos os dias, por volta das dez horas, Leônidas preparava um copo com uma azeitona e uma dose de Martini gelado. Vestia seu calção de banho e, despreocupadamente, aproveitava a ducha de água cristalina. Nesses momentos, ele gostava da companhia dos netos. Com a neta Michele no sítio São Raimundo, 1977.
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A granja no sítio São Raimundo
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O restante do grande terreno era repleto de cajueiros e mangueiras dos mais variados tipos. Muitos tinham sido plantados por ele mesmo. Como sempre foi amante da natureza, ele sentia um prazer especial na época das frutas. Ele as apanhava para nosso consumo e, muitas vezes, para presentear amigos. O caju alagoano e o manguito Guedes eram os mais escolhidos. A manga Imperador também era famosa por não ter fibra e ser muito doce. Ele guardava um canivete especial no sítio para descascar suas laranjas, tirar as castanhas dos cajus e saboreá-los ali mesmo sob a sombra das fruteiras. Assim o Sitio São Raimundo foi o encanto e solução de vida para meu pai, ao deixar a política. Meu querido pai fazia o percurso, dirigindo seu “jeep”, de sua residência na Av. Frei Serafim até este seu sítio, diariamente. Estacionava na sombra das mangueiras, diante da casa, chamava o caseiro, também Raimundo como o sítio, e seguiam para a coleta dos ovos em grande cesta. Retornava para casa onde a venda já era acertada e cobria algumas de nossas despesas. Além da casa onde morávamos, o sítio foi o que lhe restou e, da pequena granja, ele tirou o sustento por algum tempo. O advogado Dr. Melquisedeque de Castro Viana afirmou em trabalho de pesquisa de sua autoria: Nenhum político esteve mais tempo no poder do que Leônidas de Castro Mello e, no entanto, entrou pobre e saiu com os mesmos haveres, numa demonstração de sua ilibada conduta, admirada até por seus adversários em época passada.
Para consolidar tais afirmações, menciono, em resumo, o que publicou o jornal “O Dia”, em sua edição de 6 de março de 1973: EX-GOVERNADOR DEVOLVE SOMA QUE NÃO É SUA: uma verdadeira lição de desprendimento foi dada pelo ex-governador Leônidas de Castro Mello, ao reclamar à Secretaria da Fazenda contra uma ordem de pagamento concedida a seu benefício no valor de 60 cruzeiros. O ex-
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governante, depois de fazer os cálculos reais, procurou funcionário da Procuradoria da Fazenda para fazer a reclamação “pois estava recebendo mais do que lhe era devido...”
Eu, Socorro, tinha então dezessete anos e não conseguia compreender como uma pessoa que permaneceu governador e interventor por dez anos, depois deputado e senador, ao deixar a política, encontrava-se em situação financeira tão precária. Na minha imaturidade, eu não conseguia entender. Apesar da vida simples que sempre tivemos, minha adolescência vivida no Rio era confortável e feliz. Moramos sempre em apartamentos alugados e em Copacabana. Deixamos o da Rua Duvivier e passamos a residir na Rua Domingos Ferreira. Já nos últimos anos do mandato de senador, mudamos para o bairro do Leme, para a Rua Aurelino Leal com Av. Atlântica. Estudei em bons colégios. Em casa, não tínhamos luxo, somente o essencial, mas nada nos faltava. Eu tinha minha turma de praia, adolescentes como eu, gente alegre que gostava de música. Colegas do colégio que moravam por perto.
Texto publicado no jornal “O Dia” de 06.03.73, p. 3.
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Todas as noites, após o jantar, eu descia para me reunir com amigos embaixo do prédio. Sempre havia festinhas informais embaladas pelo rock de Elvis Presley. O local era de muitos e bons restaurantes. A vida noturna era frequentada por artistas famosos à época. Meu cotidiano era simples, mas muito alegre, me satisfazia plenamente. Talvez meu pai, sempre ligado ao Piauí, não se sentisse assim, porém eu era feliz e não imaginava todos os desafios que teríamos de enfrentar mais tarde no Piauí. Teresina dos anos sessenta: uma cidade com todas as características de uma cidade interiorana. Não havia asfalto, o calçamento era de paralelepípedos e apenas nas principais ruas; as construções eram baixas, somente poucos prédios. Comércio acanhado. Não havia supermercados. Não havia televisão. As famílias que constituíam a elite social eram todas conhecidas e frequentavam o Clube dos Diários, local onde aconteciam festas muito formais. A luz da cidade era desligada às 21 horas e, em função disso, não havia vida noturna, especialmente para as mulheres. A não ser o clube quando em dias festivos, não tinha alternativas. Restaurantes apenas um ou dois, cujos frequentadores eram sempre homens em sua maioria. Lanchonetes existiam com oferta de pastéis, sorvetes e alguns tipos de refrigerantes ou sucos. O cinema Rex e Teatro 4 de Setembro. A mudança foi muito brusca. Nada me parecia justo. E ainda havia a difícil situação financeira. No meu pensar cotidiano, todos esses fatos se juntavam e eram incompreensíveis. Eu admirava meu pai. Sem a menor dúvida, ele era um homem inteligente, mas eu queria voltar a ter minha vida “normal”, aquela que eu sempre vivera em minha adolescência. Contudo, ao completar 18 anos, o que escutei vinha de um pai em tom quase solene e entristecido: “Procure um trabalho, nossa situação financeira não está nada boa!” Não havia alternativa senão começar a trabalhar. E em outubro de 1964, aos dezenove anos, tive minha carteira de trabalho assinada pelo diretor da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP). Lá fiquei por quase dez anos. Comprei eletrodomésticos para maior conforto em casa e, não era
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raro, meu pai bater cedinho pela manhã, à porta do meu quarto, para acertarmos valores para a despesa de casa. Com os dias preenchidos com trabalho em tempo integral, encontrei mais condições para me adaptar ao Piauí, mas permaneci com a ideia de voltar ao Rio. Para mim, já estava muito claro que não poderia contar com ajuda financeira de meu pai. Eu teria que encontrar outra alternativa. Consegui uma bolsa para um curso de Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas e, como desejava, voltei ao Rio. Por essa época, eu já tinha 26 anos e meu relacionamento com meu pai era bem mais maduro, ele já possuía a segurança de que eu sabia fazer minhas escolhas. Ele havia me proporcionado condições para isso com o exemplo de sua própria vida. Durante toda minha permanência no Rio, não tive problemas financeiros. Mas, por várias vezes, ele me enviava algum dinheiro. Como eu não precisava e sabia da difícil situação que ele enfrentava no Piauí, guardei os valores enviados e ao retornar entreguei-lhe. Ele recebeu e apenas me abraçou! Cito esses fatos apenas para comprovar, de forma inequívoca, a honestidade como um dos traços marcantes da personalidade daquele que esteve à frente do governo do Piauí por dez anos. Enfrentou, como todos que detêm o poder, acusações incabíveis que o tempo se encarregou de reparar. Hoje seu nome é exaltado na história do Piauí pela sua grandeza moral e honestidade. Este é o maior legado e exemplo que deixou para seus descendentes. Em sua autobiografia “Trechos do Meu Caminho”, meu pai fala dos momentos de dificuldades financeira em que se encontrou ao deixar o governo do Estado do Piauí, em novembro de 1945, e da demonstração de amigos fieis que lhe prestaram ajuda, inclusive financeira, conforme ocorreu em sua residência, quando liderados por Ascendino Pinto de Aragão: Chegaram, pontualmente, às oito horas, cerca de uns cinquenta amigos. Minha casa à noite era sempre aberta, iluminada, movimentada pela presença de amigos e correligionários. Os que chegaram incorporados, acrescidos dos que haviam chegado antes, formavam um grupo numeroso que
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se espalhou pelo interior e pelo jardim. Eu me sentia confortado e prestigiado... Ascendino falou em nome dos companheiros e, em seu curto mas incisivo discurso, disse que ali estavam para reafirmar solenemente uma verdade que eu já conhecia: os que ali se encontravam não eram apenas correligionários políticos, mas também amigos dedicados, solidários comigo em qualquer tempo e em qualquer situação. E perorou pedindo que lhes permitisse contribuir com pequeno auxílio financeiro para a educação de meu filho (Regino, então adolescente) E entregou à minha senhora, presente à reunião, um ramalhete de flores ao qual estava atado um envelope contendo cheque no valor de trinta contos de réis. (MELLO, 1976, p. 372)
Leônidas superou a crise financeira quando, em 1946, foi nomeado para o Tribunal de Contas do Estado e eleito seu Presidente. Em suas próprias palavras: as dificuldades financeiras que passei tão grandes foram que algumas vezes tive de vender objetos de valor estimativo que possuía, por intermédio de parentes e pessoas amigas que guardavam sigilo para evitar divulgação e comentários [...]
Vale salientar que ainda em sua autobiografia, à mesma página, meu pai expressa sua gratidão ao ex-deputado federal Ezequias Costa: Seis anos depois de encerrada minha vida pública, conhecedor das dificuldades com que me mantinha, conseguiu em 1967, fosse eu admitido como associado do Instituto de Previdência dos Congressistas do qual eu passei a receber pensão mensal de quatrocentos e oitenta cruzeiros (480,00) que então representava valioso auxílio. (MELLO, 1976, p. 372)
Hoje, aos 70 anos, entendo perfeitamente que os objetivos de vida de meu pai não se resumiam em acumular riqueza. Ele era um homem profun-
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damente religioso, espírita convicto, que sempre viu na vida um instrumento para a evolução moral do ser humano. Seus ideais transcendiam o imediato do cotidiano. Como filha, eu o admirava. Meu pai Leônidas era um homem de grande sensibilidade, sereno, moderado, mas de decisões firmes. Tinha o dom da oratória e uma liderança nata aliada a uma maneira atenciosa ao tratar com as pessoas, independente da situação social que ocupasse. Nunca teve ambição pelo poder. Veio de uma família pobre, mas de valores morais bem estabelecidos e possuía uma religiosidade profunda que norteava todas as suas atitudes.
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Um fato interessante
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em dúvida, Leônidas de Castro Mello era profundamente sensível. Gostava de uma boa música e de teatro. Admirava a poesia. Escrevia muito bem; como prova, deixou sua autobiografia. Tinha o dom da oratória. Era discreto, mas alegre. Tinha bom humor, era um ser humano que sabia tirar da vida as peculiaridades interessantes e até ironizava fatos que lhe aconteciam, como este que me contou sorrindo muito. Com idade avançada, já não dirigia. Como de costume, pela manhã sempre ia para o seu Sítio São Raimundo. Pegava um taxi e seguia conversando com o motorista. Certa vez, chegando ao cruzamento das Avenidas Miguel Rosa com Leônidas Mello, o motorista lhe perguntou: “O senhor conheceu este tal de Leônidas Mello?”. Leônidas, em seguida, sorriu e respondeu: “Não, por quê?” Disse, então, o motorista: “Ora, como é que se bota o nome de uma pessoa tão desconhecida em uma rua!” Leônidas sorriu e não disse nada, mas pensou o que diria o motorista se soubesse que estava ao lado daquele que dava nome à rua.
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O cotidiano da vida familiar
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om as dificuldades financeiras enfrentadas ao se afastar da política, Leônidas, que carregava uma labirintite e tinha a saúde abalada, já não participava de reuniões sociais como antes. Sua determinação em deixar a política também contribuiu muito para este seu afastamento da vida social de Teresina. Ele estabeleceu sua rotina diária: pela manhã, ia até Sítio São Raimundo, retornava para o almoço, subia para seu quarto, que ficava na parte superior da residência e descansava uma parte da tarde. Ao descer, colocava uma confortável cadeira no terraço ou jardim, em sombreado, e ali ficava lendo. Nos últimos dias de vida, sua leitura era sempre a de livros relacionados à doutrina espírita. Ele trazia o interesse sobre esse assunto desde o falecimento de sua irmã Otília, e ele, com 16 anos, era ainda estudante, em Teresina, no ano de 1912. Aos interessados, remeto ao livro “Trechos do Meu Caminho” à p. 127 (MELLO, 1976) onde encontramos a narrativa detalhada deste este fenômeno, caracterizado como extrassensorial. Esse acontecimento o marcou de maneira forte e foi fator decisivo para que ele se decidisse pelo estudo de Medicina. E era no jardim que Leônidas permanecia até o entardecer. Poucos continuaram e frequentar a nossa casa após meu pai deixar a política. Uns três ou quatro, dentre eles o vizinho, General João Henrique Gayoso e Almendra, Odorico Rosas, seu irmão Eurípedes Melo, Anastácio Madeira Campos, e alguns sobrinhos. Após o jantar, voltava ao jardim, onde quase sempre, familiares se juntavam. Por volta das 22h, carregando uma garrafa com água, Leônidas subia firme a escada. Muitas vezes, quando precisava lhe falar algo antes que dormisse, assisti a esta cena, algo que gravei para sempre: meu pai sentavase em sua rede branca e, com a mão na testa, de cabeça baixa em expressão contrita, permanecia por longo tempo em oração. Com a saúde precária, já não gostava de compromissos, comparecia apenas àqueles em que sua presença se fazia absolutamente necessária. Uma das últimas solenidades a que se fez presente foi no Palácio de Karnak, oportunidade em que recebeu o grau de Grã-Cruz da Ordem Estadual do Mérito
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Renascença do Piauí, em 24 de julho de 1976, quando estava à frente do governo do Estado do Piauí Dr. Dirceu Mendes Arcoverde. Leônidas nunca expôs tristeza ou depressão, mesmo diante de um grave problema que abalava a sua saúde aos 80 anos. Como médico, ele sabia do que se tratava e da gravidade, mas nunca deixou transparecer. Sempre observei seu comportamento social com admiração, observava sua diplomacia ao enfrentar, quando surgiam, problemas. Muito cauteloso, ele me ensinou que, muitas vezes, a formalidade é necessária em nosso cotidiano, até mesmo como uma forma de nos defendermos! Nas reuniões familiares, essa formalidade desaparecia completamente. Foi um avô muito carinhoso que sempre esteve presente nas comemorações da família e, muito especialmente, nos aniversários dos netos. Nessas ocasiões, Leônidas com Ducarmo comemorando o aniversário do neto Dib João Tajra Neto. Vendo-se Nadir Thomas Tajra, satisfeito e sorridenDib João Tajra e Isabel Thomas Tajra. te, demonstrava todo o sentimentalismo que sempre carregou dentro de si. Ele os abraçava com muito carinho. Com os genros, Leônidas foi um sogro amigo, sempre se relacionou bem com todos. Dr. Gerardo Vasconcelos, casado com sua primeira filha, Maria Augusta, foi seu médico desde o tempo em que era Governador. Dr. Bernardo Melo, farmacêutico, casado com Rita, pertencia a uma tradicional família piauiense, e sempre teve convívio alegre e fraterno com o sogro, que lhe dedicava extrema confiança.
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Professor Fernando Dib Tajra, sociólogo, descendente de família síria, casado com Socorro em 1974, ambos professores da Universidade Federal do Piauí, manteve com o sogro excelente convívio. Vale salientar que Leônidas Mello, no ano de 1936, recebeu, como homenagem da Jovem Colônia Síria do Piauí, uma tela (reprodução de retrato) com cartão em metal, traduzindo o reconhecimento de toda a colônia síria, pelos trabalhos realizados como médico e político. Outro fato que aproximou muito Fernando do sogro foi, depois do casamento, passarmos a residir no Sítio São Raimundo, para onde meu pai se dirigia todas as manhãs. Algumas cenas da vida nos marcam profundamente. Uma destas se mostra como nítida em minha memória. AconteLeônidas era um avô muito carinhoso. Na primeira foto, ele abraçando a neta Michele, ceu no dia que sucedeu na segunda, o avô Leônidas e avó Ducarmo ao nascimento de minha em aniversário de um ano da neta Michele. filha Michele. Ao visitar a neta recém-nascida, ele a tomou nos braços, fixou o olhar sobre ela e lágrimas desceram em sua face. Disfarçando a emoção, sorriu e expressou admi-
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ração pelo olhar vivo da neta. Eu também me emocionei! Senti o quanto a nossa ligação era forte. Nunca esqueci essa cena! Seu relacionamento com a neta Michele foi sempre muito especial. Como na grande maioria das famílias, aos domingos, o almoço era preparado para filhos e netos. O avô Leônidas gostava de ouvir as aventuras ocorridas durante a semana. Ele relembrava as suas e também as contava. O almoço era então animado. A mesa já não recebia tantos lugares, e outra mesa, ao lado, era preparada para os netos ainda pequenos. Tinha domingo com “borracho” assado pela nossa querida Maria José que passou 60 anos de sua vida na casa, como ela dizia, de “Sua Excelência o douto”. Em outros, carneiro com arroz, galinha ao molho pardo, Tela a óleo oferecida a Leônidas de Castro Mello pratos da culinária do interior do pela Jovem Colônia Síria do Piauí, no ano de 1936. Piauí que eram os prediletos de Leônidas. Na sobremesa, a torta de banana, o delicado doce de casca de limão ou de laranja salpicado com uma porção de queijo de coalho ralado! Tais sobremesas sempre presentes em nossa casa. Mesa bem-posta, com dois copos em cada lugar, guardanapos brancos bem dobrados, sucos e refrigerantes servidos pela dedicada servidora D. Raimunda com seu uniforme azul-marinho e avental branco. Minha mãe era muito formal. Mesmo na mesa diária, ela cobrava a formalidade que aprendeu quando, quase menina, frequentava as rodas sociais e dos compromissos do palácio de Karnak.
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Mas a festa especial para meu pai, Leônidas, era o Natal. Realmente um dia diferente para ele. Afinal a espiritualidade fazia a grande marca do seu percurso de vida. Durante todos os anos em que vivemos na casa da Av. Frei Serafim, às 18h do dia 24 de dezembro, ele mandava que fossem acesas todas as luzes da casa. Na grande sala de jantar, o vitral colorido com a reprodução da Praia de Botafogo ganhava vida. Uma grande árvore de Natal com luzes coloridas piscavam e encantavam as crianças que a cercavam ansiosas para descobrirem seus nomes na grande pilha de pacotes coloridos. Era, realmente, uma noite de luz, paz e muito amor! No centro da sala de jantar, a mesa, de um colonial torneado, recebia a toalha rendada e arranjo natalino especial, de frutas e bolas de vidro colorido. O aparelho de jantar, de uma porcelana fina com frisos dourados, utilizado nos dias festivos, dava requinte ao ambiente. Os talheres cuidadosamente arrumados anunciavam a ceia. Não havia convite, mas filhos, netos e os parentes mais próximos iam chegando. A figura alta e magra de Leônidas, já nos seus 70 anos, em sua camisa de cambraia de linho, sempre de mangas longas, recebia todos com abraços e, sorridente, pedia que esperassem para participar de nossa ceia de Natal, onde não podia faltar o tradicional peru, empadas, creme de camarão, saladas e na sobremesa, dentre outras, a rabanada natalina. Tudo feito em casa pela nossa querida Maria José, um ser de luz que viveu mais de sessenta anos com meus pais e hoje, já idosa, perambula, meio perdida, pela minha casa como a procurar seu amado patrão. A supervisão da minha mãe “Ducarmo”, como Leônidas a chamava, na rotina da casa, era rigorosa nos detalhes. Como já me referi, ela nunca perdeu a formalidade social e também vivia intensamente o grande momento religioso. Em novembro, já começava, com a lista de presentes, os arranjos natalinos e a arrumação do jardim. Mandava pintar, com cal branca, todos os jarros e muros que cercavam nossa casa. Quando via a cena, que se repetia todos os anos, meu pai sorria dizendo: “Sua mãe já começou a pintura de branco dos jarros...deixa ela fazer, quero vê-la feliz.”
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Ele, Leônidas, nos deixou primeiro, e sua Ducarmo, anos depois, em 4 de abril de 2007, mas, todos nós, que partilhamos esses momentos de intimidade e alegria, ao lembrar, aí encontramos a vivência de um dos grandes valores de nossas vidas: uma união familiar de muita paz e carinho. Nunca assistimos a discussões em voz alta ou palavras grosseiras. Era um clima de brincadeiras. O Leônidas formal dava lugar à informalidade. Contava fatos interessantes acontecidos em sua vida. Lembrava as curiosidades das cidades do interior. Era uma presença alegre!
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A autobiografia “Trechos do Meu Caminho” 1ª Edição
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eônidas de Castro Mello escreveu seu livro “Trechos do Meu Caminho”, parte em Brasília e parte em Teresina, no ano de 1961. Em 15 de agosto de 1976, dia em que completou seus 79 anos de vida, viu sua autobiografia editada pela Companhia Editorial do Piauí (COMEPI), com apresentação por parte do então governador do estado, Dr. Dirceu Mendes Arcoverde. Em jantar festivo em sua residência, comemorou o evento. Ficamos com quinhentos exemplares que recebemos no dia do lançamento. Na maioria, dedicados a filhos, noras, netos, bisnetos e amigos em um jantar festivo. Foram percebidas Leônidas escreve dedicatória em seu livro várias falhas e erros de “Trechos do Meu Caminho” agosto de 1976 impressão, mas não havia mais tempo para correções. Era intenção de meu pai tirar uma nova edição com as correções devidas, no ano de 1977. Ele não conseguiu realizar esse seu intento. Fizemos contatos junto à Academia Piauiense de Letras, visando a uma segunda edição. Deixamos os comentários quanto à valoração da obra para os que a tiverem lido e nas muitas publicações em jornais da época. Essas informações e outras referentes às correções necessárias constam de uma carta enviada pelo amigo e conterrâneo, Haroldo Amorim Rego, datada de 3 de fevereiro de 1976, a Leônidas. Esse documento encaminhamos à Academia Piauiense de Letras, visando às devidas correções, para a possível publicação da segunda edição. Enviamos também carta do Professor Arimathéa Tito, com a mesma finalidade.
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Leônidas de Castro Mello com a esposa Maria do Carmo, em seu escritório na residência da Av. Frei Serafim, 1909, por ocasião do lançamento de seu livro “Trechos do Meu Caminho”.
Merece destaque um dos parágrafos de “Trechos do Meu Caminho”, onde Leônidas fala claramente de um dos objetivos do livro, como logo a seguir expresso: Pelo que amigos e inimigos, correligionários e adversários, jornalistas criteriosos e jornalistas subornáveis, disseram e escreveram de mim, ninguém, em tempo algum, poderia julgar-me com acerto, tal a diversidade, o desencontro de opiniões. Estas páginas esclarecerão a verdade e permitirão ajuizar do homem que fui. Elas refletirão os meus sentimentos, propriamente, o meu temperamento, o meu caráter. Não sendo uma autobiografia, fornecerão, contudo, elementos que bastem a um esboço da minha individualidade moral. E será esse o melhor legado que deixo aos meus descendentes. (MELLO, 1976, p. 14)
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Familiares de Leônidas por ocasião de recepção para lançamento do livro “Trechos do Meu Caminho”
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Artigo publicado no jornal “O Liberal” em 5 de setembro de 1976
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Continuação do artigo publicado no jornal “O Liberal” em 5 de setembro de 1976
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Artigo publicado no jornal “O Dia” em 15 de agosto de 1976
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O lançamento da 2ª edição de “Trechos do Meu Caminho”
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oi quando fui tomar um café na casa de uma amiga. Ela mostrou-me um texto volumoso e me perguntou: você já viu isto? Passei a vista, rapidamente, e me surpreendi. Era o texto do livro “Trechos do Meu Caminho”, escrito por meu pai. Logo na primeira página uma foto que eu desconhecia, não constava do original e tinha uma legenda onde se lia: Ela dançava e gritava – bode melado! Realmente achei estranho e perguntei se ela permitia que eu ficasse com o texto alguns dias. - Sem problemas, ela respondeu. Um jornalista andava a divulgar a futura impressão do livro como uma nova edição ampliada por ele, isto é apenas a boneca. Pode levar. Coloquei o texto na bolsa e parti direto para a casa de minha irmã Rita, esposa de Dr. Bernardo Melo. Como eu, eles ficaram assustados. Imediatamente começamos a conferir as palavras do texto original com as do pretendido pelo jornalista piauiense como uma edição ampliada. Incrível, a pretensa edição era, rigorosamente, idêntica à original apenas acrescentada da maldosa foto. Falamos então com um conceituado advogado que, após ler cuidadosamente, fez o contato necessário com o referido jornalista, avisando que, se publicado, o texto seria recolhido. Depois desse fato, fiquei no firme propósito de conseguir a nova edição de “Trechos do Meu Caminho” para que ficasse à disposição dos leitores com a merecida respeitabilidade e credibilidade. Leônidas Mello era Sócio Benemérito da Academia Piauiense de Letras. Resolvi procurar a Academia. Eu sabia ser o Presidente da APL o Dr. Nelson Nery Costa, mas não o conhecia. Tinha conhecimento de que nossos pais haviam sido amigos leais. Sou tímida, mas um dia pela manhã consegui uma audiência com o Presidente. Fui até a Academia, esperando encontrar um senhor de idade, com vasta cabeleira branca e toda a costumeira formalidade dos acadêmicos. Mas eu estava preparada e decidida! A secretária pediu que eu entrasse.
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Bati suavemente na porta. Olhei! Sentado à minha frente estava um jovem sorridente... Cheguei a desconfiar que não era o presidente! Seria? Era, sim. O Dr. Nelson Nery Costa. Tudo ficou mais fácil, conversamos, falei do fato acontecido e saí com a promesNa solenidade da APL, o Presidente Nelson Nery Costa, sa de que o livro seria o Prefeito de Barras, Carlos Monte, a filha de Leônidas Mello, Socorro, e o Prefeito de Teresina, Dr. Firmino da Silveira Filho, publicado e a certeza em 22.01.2021 que eu havia conhecido não só o “Presidente”, mas uma pessoa extremamente cativante, culta e com uma grande capacidade de trabalhar pela cultura do Piauí. O lançamento da 2ª edição de “Trechos do Meu Caminho” foi solenemente realizado no dia 22 de janeiro de 1921, no auditório da Academia Piauiense de Letras, cumprindo o protocolo habitual da APL.” Ao final da sessão, solicitei que o Presidente ofertasse um exemplar do livro a cada um dos, ainda pequeninos, bisnetos de Leônidas Melo, simbolizando este gesto a transmissão do conhecimento através das gerações para Na foto, Prof. Nelson Nery, presidente da Academia Piauiense de Letras, entrega o livro “Trechos do Meu Caminho” que a história permaneça aos bisnetos de Leônidas de Castro Mello. viva.
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Sua despedida
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oi no inicio do mês de maio de 198l, Leônidas subiu para deitar-se já muito frágil. Todos nós percebíamos. Mas ele nunca comentou para a família que estivesse com qualquer problema mais sério de saúde. Não desceu mais. Passou a não se alimentar. Emagreceu muito. O genro Bernardo Melo, sempre solícito, providenciou uma cama hospitalar que foi colocada no quarto, ao lado do santuário onde estava, entre outras, a imagem de Santa Rita. Ele de onde estava deitado, através da larga janela do quarto, avistava o azul do infinito e me dizia: “Breve estarei lá.” Muitos da família o visitavam, mas muito pouco ele falava. Teve a assistência constante de Dr. Isânio Lemos de Mesquita, casado com sua neta Aldenora Vasconcelos, e Dr. Antônio Dib Tajra, irmão do genro Fernando Dib Tajra. Na madrugada do dia 25 de maio de 1981, minha mãe chamou-me reservadamente. Sentei ao seu lado e ela, chorando, me falou de um pedido que meu pai lhe havia feito. Ele pediu que ela me entregasse a estátua de bronze que ficava em seu escritório - A Vitória - reprodução de um lutador grego com a coroa de louro na cabeça, simbolizando um vencedor dos jogos olímpicos da Grécia antiga. Eu não consegui falar nada. À hora, todos estávamos tomados de tristeza. O pedido me surpreendeu! Depois, pensando um pouco, lembrei que muitas vezes meu pai me repetia com muito carinho, a frase: “Filha, você é uma vitoriosa. Conseguiu tudo que queria na vida e nunca pedi nada para você”. Ele sempre dizia essa frase sorrindo e me abraçava. Só então relacionei a frase, repetida tantas vezes, com o bronze que representava a Vitória e ficava em uma coluna em seu escritório. Foi o momento mais emocionante de minha vida e o presente mais significativo que eu poderia receber! Com esta emoção vibrando em todo meu ser, voltei ao quarto onde ele se encontrava em seus últimos momentos. Todos os filhos presentes, parentes mais próximos e amigos. De mãos dadas o cercamos em orações. Às 2 horas da manhã do dia 25 de maio de 1981, ele partiu. Seu corpo foi velado em nossa casa. Poucos estavam presentes. Não houve tempo para a divulgação da sua morte.
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Às 9 horas da manhã do mesmo dia, a cidade despertou com a sirene do cortejo fúnebre que, por determinação do então governador, Dr. Lucídio Portela, foi realizado com as honrarias de Chefe de Estado. Percorreu, pela última vez, sua amada cidade em carro do corpo de bombeiros como se a sirene anunciasse sua partida e o final de sua missão no Piauí. No cemitério São Judas Tadeu, recebeu uma última homenagem através de palavras pronunciadas pelo amigo, Dr. João Clímaco de Almeida. Um fato interessante foi, após o seu falecimento, em uma das gavetas da cômoda que ficava no seu quarto, encontrava-se um pequeno pacote branco com a inscrição: “Para ser aberto no sétimo dia de minha morte.” Ao abrirmos o pacote, lá estava: o rascunho do requerimento que minha mãe deveria fazer solicitando a pensão a que fazia jus, junto ao Tribunal de Contas do Estado; um cartão agradecendo, em espírito, a ser entregue ao Exmo. Sr. Governador, Dr. Lucídio Portela, e uma carta aos seus filhos, recomendando união. O cartão de agradecimento trazia, no início, as palavras “em espírito” o que comprova, efetivamente, a solidez de sua crença espiritualista. Através dos fatos aqui narrados, pode o leitor avaliar alguns traços da personalidade do médico, político, pai, avô e bisavô Leônidas de Castro Mello. Aqui deixo meu testemunho de que meu pai foi, em todos os momentos de sua vida, um homem que pautou seu comportamento numa religiosidade profunda e respeito aos seres humanos, independente de posição social. Admirava a vida e a perfeição da natureza. Humilde em todas as posições que ocupou, jamais usou o poder para usufruir de vantagens pessoais. Sua meta era o bem comum. Reconhecendo a figura pública que representa, os móveis que constituíram seu escritório pessoal, na residência da Av. Frei Serafim, de 1944 a 1981, foram doados pela família ao Museu do Estado do Piauí e lá se encontram em exposição. Pertence e encontra-se também no Museu, um retrato de corpo inteiro em óleo sobre tela de Leônidas de Castro Mello, doada em 1939 pelos prefeitos interioranos do Piauí. A tela passou por um delicado processo de restauração, realizado pelas restauradoras Elenilce Soares Mourão e Maria Sueli dos Santos Nery na oficina da Secretaria de Cultura do Estado do Piauí.
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O mobiliário do escritório de Leônidas de Castro Mello, doado ao Museu do Estado do Piauí. A imagem que aparece sobre a mesa é de Nossa Senhora da Conceição, da Igreja de Barras, que visitava a família por ocasião da foto.
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Um encontro inesperado
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eu pai, como falei, faleceu em 25 de maio de 1981. Agosto desse mesmo ano, não lembro exatamente o dia, mas aconteceu poucos dias antes do Dia dos Pais. Era ainda tempo do telefone fixo. Ele toca. Eu atendo. A pessoa do outro lado da linha se identifica e diz: Socorro, quem está falando aqui é Maria. Você não me conhece, mas sei que seu pai faleceu faz pouco tempo e, com a proximidade do Dia dos Pais, lembrei de você e gostaria de lhe fazer um convite.
E aí, a seguir veio o convite: “Eu gostaria que você fosse comigo a uma reunião no meu centro espírita. É no Parque Piauí. Se eu passar aí, você irá comigo?” Respondi ao convite, dizendo: “Claro, com muito prazer!” Daí, ela, Maria disse: “Então combinado, passarei aí e iremos juntas.” No dia e hora acertada, entrei no carro de uma pessoa extremamente simpática! Conversamos todo o percurso sobre a espiritualidade. Até então, eu nunca havia participado de reuniões desse gênero. Entramos, a sala já estava repleta. Arranjamos um lugar para sentar bem distante da mesa onde aconteceria a reunião. Ouvi a oração inicial. Gostei. Foram feitas várias comunicações e depois todos os médiuns da mesa concentraram-se. A sala ficou em absoluto silêncio. O dirigente da sessão, levantando a voz, perguntou: “Quem é Socorro Mello?” Fiquei espantada. Levantei a mão. O dirigente pediu então que eu me aproximasse da mesa. Levantei e fui. Um dos médiuns, chorando, me estendeu a mão. O dirigente olhou para mim e disse: “Aperte a mão dele: é seu pai.” O sentimento que me invadiu eu não saberia descrever! FIM
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Considerações sobre o livro “Tempos de Leônidas Mello” do jornalista Afonso Ligório Pires de Carvalho
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C
omo uma figura pública, muitos admiraram Leônidas de Castro Mello, mas muitos o julgaram indevidamente, atribuindo à sua pessoa atos e crueldades que jamais cometeu, fato comum que marca a vida daqueles que detêm o poder por longos períodos. Entre as acusações mais conhecidas, está a de ser o mandatário das queimadas dos casebres de palha, fato que ocorreu em Teresina, na década de 40, quando ele estava como interventor. Essa foi uma das mais descabidas acusações. Quem o conheceu sabe o quanto ele sofreu nessa ocasião. Para nós, filhos que com ele convivemos diariamente, essa acusação chega a ser revoltante e absurda. Por considerar um fato histórico e de conhecimento público, farei algumas considerações, tomando por base o resultado de trabalho de pesquisa, realizado pelo jornalista Afonso Ligório Pires de Carvalho, intitulado: “Tempo de Leônidas Mello” (1994), em concurso instituído pela Academia Piauiense de Letras em convênio com a Assembleia Legislativa do Piauí. O parecer da Comissão Editorial, relativo à premiação da obra do referido jornalista, acha-se assinado pelas respeitadas figuras da cultura piauiense: Prof. Wilson de Andrade Brandão, Prof. Paulo de Tarso Mello e Freitas e Prof. Raimundo Nonato Monteiro de Santana. É datado de 25 de fevereiro de 1994. Na opinião desses três pilares da cultura piauiense, o trabalho de Afonso Ligório Pires de Carvalho traduz resultado de uma pesquisa honesta pela exposição criteriosa dos fatos, recomendando-o para a publicação, pelo seu “extraordinário valor histórico e literário” (CARVALHO, 1994, p. 12) O conteúdo do livro “Tempos de Leônidas Mello” tem, como fundamentação da pesquisa bibliográfica, um acervo constituído por 29 referências, depoimentos e entrevistas realizadas com historiadores e personalidades que possuem representatividade na vida social e cultural piauiense. Sem dúvida, trata-se de valioso trabalho que representa real contribuição à história do Piauí e merece ser lido por todos que se dedicam com seriedade à pesquisa histórica neste Estado. A conclusão do parecer da comissão editorial afirma, de forma conclusiva, pelos depoimentos tomados:
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resultado conducente a inocentar o Governador Leônidas Mello, pela conduta retilínea, seu comportamento exemplar e pela sua honestidade, já foi absolvido pelo povo piauiense que o elegeu, depois do governo ditatorial, Deputado federal e Senador da República (CARVALHO, 1994, p. 11)
Transcrevo aqui parte do depoimento do ex-governador, ex-deputado federal e senador, Francisco das Chagas Rodrigues, que consta do livro em referência: A impressão que guardo depois de haver conhecido Leônidas Mello de perto, é que ele jamais poderia ter autorizado ou apoiado tais atos profundamente desumanos. (CARVALHO, 1994, p. 81)
Do mesmo livro, no depoimento de um dos maiores representantes da cultura piauiense, Prof. José Camilo da Silveira Filho, ex-reitor da Universidade Federal do Piauí, afirma: Leônidas foi homem politicamente de conduta irrepreensível, vertical, ... era um homem de diálogo e entendimentos, isto em termos de política e foi assim que exerceu sua liderança. (CARVALHO, l994, p. 94)
Reconhecendo o valor do trabalho de pesquisa em referência, deixo expressar aqui a minha discordância quanto à afirmação do autor, em um dos parágrafos da página 22 do livro aqui em questão. Enunciado este que diz o seguinte: Em casa, sem nada fazer, exceto receber correligionários que a princípio iam prestar-lhe solidariedade, pedir conselhos ou instruções sobre suas campanhas. O seu dia a dia tornou-se monótono, o inverso de quando estava instalado em Karnak, com reduzido tempo até para as refeições. As horas agora lhe sobravam, inclusive para cochilos prolongados na rede, depois do almoço, que por vezes consumiam a tarde inteira de ócio. (CARVALHO, 1994, p. 22)
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Remeto os leitores da História do Piauí ou interessados em melhor conhecer a vida de Leônidas de Castro Mello, às páginas 361 a 365 de sua autobiografia: “Trechos do Meu Caminho”, (1ª edição, 1976) quando o mesmo se refere aos tempos que se seguiram ao término do seu governo. Muito ao contrário do que afirma Afonso Ligório, ao deixar o Karnak, Leônidas Mello continuou como maior líder político da época. Em sua casa, à Av. Frei Serafim, o movimento era intenso. Ele participava ativamente de comícios e viagens ao interior do Estado. Se sua liderança não tivesse continuado como veio a ser, jamais teria sido eleito deputado federal e senador, quatro anos após deixar o governo. Como filha, desejo aqui deixar registrado o meu depoimento: conforme ficou claro, através de fatos relatados nas primeiras páginas desse texto, meu pai, o médico Leônidas de Castro Mello, veio de uma família de poucos recursos, mas lhe soube transmitir qualidades valorosas que nortearam toda a sua vida. Sua presença era agradável. Tinha o dom da oratória e era um líder nato. Ele era firme quanto às suas decisões, mas extremamente cuidadoso ao tomá-las. Sua vida toda foi marcada pelo grande respeito ao ser humano. Possuía uma fé que trazia de suas origens e a manteve sempre. Tinha em sua biblioteca inúmeras publicações espíritas e, em seus últimos anos de vida, essa era sua leitura. Nunca se deixou levar por vaidades ou usou o poder dos cargos que ocupou em sua carreira política, de vereador, governador, interventor, deputado e senador para usufruir de vantagens, senão àquelas a que tinha por direito. Não aceitava o uso da violência ou perseguições para atingir seus objetivos. Na Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do Estado do Piauí, a 1º de junho de 1937, encontramos a seguinte afirmação: No desempenho do honroso mandato que me confiastes continuo a observar, como norma precípua, o absoluto respeito à lei e aos direitos de todos os cidadãos. Jamais mandei ou insinuei a quem quer que esteja investido de uma parcela de autoridade, mínima que seja, às práticas condenáveis. Ao contrário disso, ao incumbir de qualquer missão os que me
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ajudam no pesado encargo de governar, sempre lhes recomendo que sua ação se faça sentir prudentemente, sob o amparo de nossas leis e inspirada nos altos sentimentos de Justiça.
Reafirmo aqui que sua humildade era tão verdadeira que muitos foram os inimigos que, posteriormente, se fizeram amigos. Ele perdoava sempre. Apesar de todos os cargos que ocupou, ele sempre manteve uma humildade coerente com seus princípios religiosos, era humilde a ponto de aceitar ajuda financeira dos amigos, quando necessitou, em várias ocasiões. Não acumulou bens durante sua vida política. Deixou para a família a casa onde residia e um sítio situado no bairro Piçarra, em Teresina. Sua meta sempre foi contribuir para com o bem comum. Nada mais importante para ele do que sua terra natal, Barras, e o seu Piauí. Acompanhei este seu amor passo a passo, era um sentimento muito forte. Exerceu a Medicina de forma humanitária. Nunca deixou de atender àqueles que o buscavam sem condições de pagar consultas. Estas afirmações podem ser facilmente identificadas nos textos precedentes. (Ver Artigo incluso de J. Miguel de Matos publicado no Jornal “Estado do Piauí”, em 12 de junho de 1977) O texto publicado em jornal da época contribui para confirmar estas minhas palavras. Poderia um homem com tais características de personalidade autorizar atos cruéis como estes das queimadas dos casebres? Após eleito constitucionalmente em 1935, foi designado interventor federal em 23 de novembro de 1937, no período ditatorial do presidente Getúlio Vargas. A palavra “ditador” é por si, estereotipada, envolvendo pressupostos nem sempre verdadeiros a quem ocupa este cargo. Foi assim que alguns, erroneamente, estenderam a Leônidas de Castro Mello a responsabilidade pelas ocorrências maldosas e cruéis que aconteceram na década de 40, enquanto ele se encontrava no poder. Mas é preciso lembrar que ele havia sido eleito constitucionalmente, pela vontade do povo piauiense, que já o conhecia desde 1921, como médico,
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professor e secretário geral do governo de Landri Sales. Muitos já o conheciam de perto. Quem governa não o faz sozinho. Delega competência a pessoas em quem confia. Muitas vezes, a formalidade social de encontros em gabinetes não traduz a real personalidade de assessores. Esse é um risco que corre qualquer administrador. Mas, passados tantos anos, como afirma Afonso Ligório no seu “Tempos de Leônidas Mello”, a justiça se fez. Foi absolvido pelo povo do Piauí. Infelizmente, meu pai faleceu bem antes da publicação das várias declarações através das quais a justiça se fez em relação à sua pessoa, mas muito antes de falecer, ele soube perdoar a tudo e a todos, exercitando a religiosidade que sempre direcionou seus atos.
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Traços da personalidade de Leônidas Mello Este texto foi destinado à solenidade de 70 anos do Hospital Leônidas Mello, em Barras, em 24.01.2019
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escritor Herculano de Morais afirmou que: “a alma de uma cidade está nos percursos das vidas que a constituíram”. Assim, a alma de Barras encontra-se, um pouco, no percurso da vida de um dos seus filhos: Leônidas de Castro Mello. Vamos retornar no tempo. 1897, Barras já se tornara uma cidade. O majestoso Rio Marathaoan a envaidecia e testemunhava a sua história. Por esse tempo, ali estavam os grandes casarões baixos com suas muitas portas e janelas, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, a escola do Mestre Freitas e a loja do Cel. Regino, na esquina da Rua Grande. Estes foram os principais cenários da infância de Leônidas de Castro Mello, em Barras. Foi em 15 de agosto de 1897 que, Regino Lopes de Mello e Maria Florença de Castro Mello receberam Leônidas. Era o sexto filho do casal. Um menino que cresceu saudável entre o arvoredo do quintal e as águas do Marathaoan, mas sob a disciplina rígida, como exigia a educação da época. Aos oito anos, na escola do Mestre Freitas, aprendeu a ler, escrever e as quatro operações. Foi nesta primeira escola que surgiu, nítida, uma das qualidades de Leônidas que o acompanharia para sempre - a liderança. Mestre Freitas percebeu logo e o designou para “decurião”. Ao final de três anos, o Mestre visitou o Cel. Regino e disse: “Venho falar-lhe sobre Leônidas: quero comunicar-lhe que, o que sei ensinar, ele já aprendeu!” Cel. Regino colocou a mão no ombro de mestre Freitas e disse: - “Mestre, há trabalhos que o dinheiro não paga, o seu é um deles!” Convidou o mestre Freitas para ir até a sua loja e lhe presenteou com o linho pardo para um terno!
Ao completar 11 anos, Leônidas começou a ajudar nas vendas, da loja do pai. Era o ritual de formação em comércio do Cel. Regino Lopes de Mello! Mas seu filho, não se sentia feliz, atendia somente à exigência do pai. Ele sentia que seu destino não estava no comércio. Desejava estudar, este, sim, era o seu desejo, prazer e vocação!.
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Instalando-se em Barras o Colégio do Dr. Arimathéa, vencendo o medo, o quase menino, Leônidas, enfrentou a autoridade do pai. Tomou coragem e pediu que ali o matriculasse para prosseguir seus estudos. A liderança do menino Leônidas já havia se mostrado na escola do mestre Freitas! A coragem, necessária ao líder, surgiu quando Leônidas via seus horizontes além da casa paterna. Ele já estabelecia seus próprios caminhos. Continuou a ajudar o pai na loja. Estudava pela manhã e, no horário da tarde, ficava a atender as vendas, lembrando a recomendação do pai: “estude suas lições à noite, o balcão não é lugar para leituras!” Assim, todas as noites, à luz trêmula de uma vela de carnaúba, ele estudava a matéria do dia seguinte. Na festa da padroeira, 8 de dezembro, ao término do ano letivo, aconteceu uma solenidade ao ar livre, ao lado da escola do Professor Arimathéa. A festa teve enorme comparecimento. Leônidas ficou como o segundo melhor aluno. Subiu ao palco segurando a bandeira nacional, recebeu um prêmio e se fez orgulho para o pai. Encerrada a cerimônia, todos desejavam cumprimentar o Cel. Regino, que, pleno de felicidade, recebia os abraços dos conterrâneos. Mas nosso Leônidas queria ir mais longe. Para isso precisava vir para a capital, Teresina. Conseguir a aprovação do pai era agora mais difícil, ele sabia. Mas estava decidido, iria para Teresina, fosse como fosse. A autoridade paterna ainda era temida. Resolveu que faria uma carta ao pai, pediria a ajuda da tia Cynó, figura de prestígio. Ela entregaria a carta. “ Barras. 1º de março de 1912. Meu pai: Como o sabeis o desejo é uma das grandes forças. Pois é levado pelo grande desejo que tenho de estudar que atravesso grandes montanhas de acanhamento e venho pedir que me mande estudar em Teresina. Quero ir agora com o senhor, quando o senhor for para o Maranhão. O senhor me deixará no Colégio, em Teresina e continuará sua viagem. Sei que estou pedindo um sacrifício mas, quem sabe, se no futuro o senhor não será recompensado como foi o pai do Dr. Arimat-
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héa que ficou tão contente com a formatura dele e fez tanta festa? Peço que me satisfaça, não me negue, e pode confiar em mim. Com muita fé em Deus e no senhor aguardo sua resposta. Do seu filho obediente, Leônidas”
Conseguiu e, nas águas de março de 1912, enfrentou paus e pedras, mas, com a promessa de vida no seu coração, conseguiu chegar a Teresina! Ingressou no “Instituto 21 de Abril”, cujo Diretor, Antônio Carvalho Filho, era também natural de Barras. Leônidas dizia-se satisfeito física e espiritualmente. Tinha um comportamento exemplar e estudava muito. Nas comemorações do 7 de setembro, foi escolhido orador. Leônidas possuía o dom da palavra. A oratória, que tanto lhe serviria no futuro! À liderança, à coragem e ao dom da palavra, somava-se uma profunda religiosidade, herdada dos pais, que direcionou toda sua vida. Era um espiritualista convicto. Em sua autobiografia, ele afirma ter plena “convicção que possui o ser humano algo de superior e indestrutível, imperceptível aos nossos sentidos e que sobrevive à matéria”. Eis aí mais um traço marcante de sua personalidade. Com dezessete anos, em 1914, deixa Barras. Agora, com destino à Bahia. Sua pretensão era cursar medicina. A viagem de Barras a Tutoia seria de oito dias em costa de burro, acompanhado de um pajem. Lá tomaria o navio. Na Bahia, constatou não se encontrar ainda preparado para enfrentar a seleção para o curso de medicina, optou por Odontologia. Morou em uma república de estudantes, a mesada não lhe permitia maior conforto. Mas ainda não estava satisfeito. Decidiu-se então pela medicina. Um antigo colega de Teresina, Esmaragdo Ramos, passando pela Bahia e sabendo da situação desconfortável em que se encontrava, o convenceu que o melhor seria, juntos, fossem para O Rio de Janeiro onde cursariam medicina. Esmaragdo tinha recursos e custeou as despesas dos dois, ficando Leônidas de pagar-lhe quando pudesse. A saga da vida de Leônidas, como estudante de medicina no Rio de Janeiro, foi desafiadora. Passou por dificuldades e situações até humilhantes. O
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que o pai lhe enviava não era suficiente. Trabalhou na Imprensa Oficial, carregando fardos de jornais no ombro para suprir suas despesas. Mas a vida parece conspirar a favor dos que lutam. Ao cursar o terceiro ano de medicina, Leônidas recebeu, da Direção da Santa Casa, onde estagiou, a designação de aplicar injeções na esposa de Armando Burlamaqui. Ele já sabia que se tratava de oficial da Marinha e Deputado Federal pelo Piauí, com grande prestigio. Dirigiu-se à residência do Comandante Burlamaqui. Identificou-se como conterrâneo e recebeu atenção especial. Tornam-se próximos, e Burlamaqui fala a Leônidas de sua grave enfermidade pulmonar e do desejo de visitar o Piauí. Sugeriu a Leônidas que se especializasse em doenças pulmonares. Assim, poderia acompanhá-lo, como seu médico, ao Piauí. Burlamaqui conseguiu a ajuda financeira para Leônidas concluir o curso e especializar-se em doenças pulmonares. No dia 30 de dezembro de 1920, Leônidas de Castro Mello colou grau em medicina com defesa de tese. Acompanhou o Deputado Burlamaqui ao Piauí, fazendo-lhe o tratamento necessário, com pleno êxito. A chegada a Barras foi noticiada na Imprensa de Teresina em 14 de abril de 1921. Este momento é um dos mais emocionantes narrados em seu livro, “Trechos do Meu Caminho”. Leônidas estava, depois de nove anos de ausência, na margem do Rio Marathaoan em frente à sua cidade, Barras. Na margem oposta a banda de música executava dobrados feitos para a data. Foguetes explodiam, enquanto a população que se concentrava às margens do rio acenava lenços brancos. Um bote, enfeitado com bandeirolas e flores naturais, com o pai sentado à proa, no seu terno de linho pardo, gravata e chapéu preto, cortava as águas do Marathaoan. Aproximava-se. “Ao avistá-lo, experimentei grande emoção e o abracei com toda a efusão de minha alma. Não pude conter as lágrimas (...) ele se emocionou também, tornou-se muito pálido, não pôde proferir palavra.”
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Seguiram para a Igreja de N S da Conceição para agradecer a Deus pela formatura. Leônidas ladeado pelo pai e Monsenhor Bozon. À porta da Igreja, a banda de música executou o hino Nacional. E, ao final, ajoelhados, oraram pai e filho. Em 1923, em Teresina, com clientela bem formada, Leônidas construiu sua residência à Rua Coelho Rodrigues e, ao lado, seu consultório. Até 1935, sua vida como médico decorreu em ritmo de trabalho e prosperidade. Mas, desde os tempos de estudante, um dos grandes desejos de Leônidas era ingressar no magistério. Chegou a ministrar, em sua residência, um curso noturno de História Natural. Posteriormente, prestou concurso e tornou-se Professor Catedrático da mesma disciplina na Escola Normal e no Liceu Piauiense, onde ficou como Diretor de 1931 a 1933. Leônidas afirmou em Trechos do Meu Caminho: “De todos os cargos que exerci na minha vida pública o de professor foi o único que disputei e o que mais desejei” A excelente administração, nesses dois Institutos educacionais, demonstrou a sua liderança e capacidade para a articulação política, era mais uma faceta de sua marcante personalidade. Reconhecendo essas qualidades, Landri Sales, Interventor Federal à época, o nomeou para Secretário-Geral do Governo do Estado do Piauí, em 14 de julho de l933. Era o início de uma intensa carreira política. Como Secretário de Governo, articulava bem. Em pouco tempo, contava com a confiança e apoio de prefeitos e chefes políticos do interior do Estado. Por insistência do interventor Landri Sales e do Partido Nacional Socialista do Piauí, aceitou candidatar-se a governador. Eleito, tomou posse em 3 de maio de 1935. Meu pai nunca alimentou o desejo de ser político. Ao fechar seu consultório para assumir as funções do cargo de governador, ele afirma que foi tomado de imensa tristeza. Em suas palavras: “Apoiei os cotovelos sobre a secretária(...). Iria ser fechado meu consultório onde, por tantos anos, ganhei
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o pão tranquilamente fazendo o bem a quantos me procuravam, semeando gratidão e fazendo amigos. Um enorme arrependimento se apoderou de mim. Era tarde!” Com o Estado de Guerra, foi designado Interventor Federal em 4 de outubro de 1937. Uma de suas principais metas foi melhorar a saúde do seu Estado. Construiu o Hospital Getúlio Vargas, inaugurado em 3 de maio de 1941 e fez da medicina do Piauí referência para todo o Nordeste. Deixou o governo do Estado em 1945, mas continuou com liderança política, sendo eleito, em 1951, deputado federal e, em 1954, Senador. Durante todo o período de Congresso, não adquiriu bens. Afastou-se definitivamente da política em 1961, pobre. Tinha sua casa e uma granja, que lhe permitiu sobreviver com dignidade. Cito a honestidade como mais um dos traços de sua personalidade. O contexto social, a família e as escolas de Barras formaram os valores de base da personalidade de Leônidas, uma estrutura psicológica forte e decisiva para que se tornasse um grande médico, exímio professor e líder político de honestidade inquestionável. Barras lhe passou um respeito profundo pela vida e pelos seres humanos. Hoje, Leônidas de Castro Mello continua presente em sua Barras do Marathaoan, através do Hospital Regional. Assim vi meu pai!
Este texto foi destinado à solenidade de 70 anos do Hospital Regional Leônidas Mello, em Barras, baseado na autobiografia TRECHOS DO MEU CAMINHO.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARVALHO, A. L. P. de. Tempos de Leônidas Mello. Teresina - PI: Academia Piauiense de Letras, 1994. GONÇALVES, W. C. Chão de Estrelas da História de Barras do Marathaoan. Teresina - PI: Halley S.A. Gráfica e Editora, 2006. MELLO, L. de C. Trechos do Meu Caminho. Teresina - PI: COMEPI, 1976.
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aria do Socorro de Castro Melo Tajra é piauiense, natural de Teresina. Prestou concurso para a Universidade Federal do Piauí no ano de 1971. Designada Secretária da Reitoria e do Conselho Diretor da UFPI, participou do processo de implantação do Campus da Ininga junto à equipe técnica vinda da Universidade de Brasília, UNB. Exerceu diversos cargos de chefia na Administração Central da UFPI, pelo período de dez anos consecutivos, dedicando-se posteriormente ao magistério. É Graduada e Licenciada em Filosofia pela UFPI e Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da UFPI onde ministrou as disciplinas Metodologia da Ciência e História da Filosofia Grega, até sua aposentadoria. Escreveu o livro “ASSIM VI MEU PAI” aos 71 anos.
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ELMAR CARVALHO e WASHINGTON RAMOS revisão de textos. TUPY projeto gráfico, diagramação e tratamento de imagens.
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