SJOÃO FERNANDES
PRESIDENTE DO TURISMO DO ALGARVE
entamo-nos com chá e café à mesa da cafetaria do Oceanário – falhado o plano original do café do Teatro Camões, compôs-se um cenário mais adequado para um encontro com um homem que tem o mar e o ambiente como formação.
João Fernandes diz-se “tripeiro, alfacinha e marafado”. Explica: “Nasci no Porto, mas cresci no Lumiar, porque os meus pais vieram para Lisboa quando eu tinha 3 anos; e depois fui para Engenharia do ambiente na Universidade do Algarve, sem perceber bem se ia para a província ou para a praia, e acabei por descobrir que tinha ambas e que gostava.” Ao fim de um ano, já os pais achavam que tinha enlouquecido ao garantir-lhes que não viveria noutro sítio, mas essa vontade, essa sedução do Algarve entranhara-se-lhe na medula e lá ficou até hoje. “Faro é capital de distrito mas tem o conceito da cidade de 15 minutos, tem aeroporto, praia e hospital a essa distância, levo o miúdo à escola a pé. Tenho tudo o que há numa grande cidade com o conforto de uma cidade pequena, em proximidade e com a liberdade de viajar para o mundo.”
Com os pais a trabalhar na área de formação profissional e a irmã designer, João era “a ovelha negra da família”. As questões ambientais sempre tiveram prioridade nas suas preocupações e escolheu o curso de Engenharia do Ambiente em consciência. “Queria mudar o mundo. Qualquer jovem tem aspirações de fazer a diferença na vida das pessoas, é saudável que assim seja – e ainda tenho”, confessa, assumindo orgulho no trabalho cumprido, por exemplo na reutilização de águas tratadas para regar campos de golfe, projeto inovador que assumiu na primeira linha ainda antes dos anos 2000.
A verdade é que viver no Algarve alienado do turismo é virtualmente uma impossibilidade, e o jovem engenheiro, entretanto mestre em Gestão e Engenharia, foi-se apaixonando pela área. Uma “casualidade” dessa missão, nos tempos em que geria as estações de águas residuais numa ETAR localizada numa zona do país sob enorme stresshídrico. E nem vê estranheza na proximidade das áreas: “O turismo direcionou-se para o ambiente há muito; a própria génese das entidades regionais de turismo, as primeiras estruturas regionais por setor, por uma questão
UM ENGENHEIRO DO AMBIENTE QUE QUIS MUDAR O MUNDO
E “QUANDO FOR GRANDE” QUER SER TURISTA
de necessidade foram as mais avançadas no saneamento básico”, exemplifica. Depois explica como o seu percurso o conduziu do ambiente à atividade a que acabou por dedicar 20 anos de vida. “Eu dava formação a jardineiros de campos de golfe, sobre impactos ambientais, e a ETAR (da multinacional francesa que construiu o canal do Suez) onde estava era pioneira na região nessa matéria; fiz os primeiros estudos sobre a utilização de águas residuais para rega e orgulho-me disso”, sublinha, lembrando que hoje, 25 anos passados sobre essa incursão pioneira, um dos grandes investimentos do PRR para o Algarve se debruça sobre o tema em que se envolveu no início da carreira, chegando a fazer os primeiros referenciais em formação para golfe, de operadores ambientais e o curso de Manutenção de Campos de Golfe – caminho que havia de conduzi-lo à direção de escolas de hotelaria, e daí à Região de Turismo do Algarve.
Conta-me dos seus primeiros trabalhos, que ganhou o primeiro dinheiro como monitor em colónias de férias e de como foi, em 1991, “ajudar umas amigas” a recolher inquéritos dos Censos. E recorda até esses tempos com saudade, rindo-se perante a recordação de ser perseguido por cães e acarinhando a memória das velhinhas que lhe davam chá e bolachas e o faziam ficar a ajudá-las no preenchimento dos inquéritos. O primeiro emprego, porém, foi bem mais sério. Tendo valências em formação pedagógica e escasseando os engenheiros do Ambiente, foi convidado a ficar a dar aulas na Universidade do Algarve, uma experiência rica e que lhe dava a desculpa perfeita para cumprir o seu plano de ficar a viver a Sul e ainda por cima a trabalhar na área para que tinha estudado. Teve ainda outra experiência a dar aulas, numa escola de miúdos com dificuldades, preterindo convites mais
ambiciosos mas que o obrigavam a deixar o Algarve.
Nessa primeira década a Sul, não havia horários nem fins de semana, mas lá ia conseguindo conciliar os trabalhos com as saídas à noite e os convívios com os “grandes amigos” que fez. “Posso dizer que uma tive juventude e início de trabalho atribulados; foi um sítio e um tempo onde fui feliz”, diz, a rir. “Até me casar, aos 31 anos – um ano depois de conhecer a minha mulher, ela vestida de homem, eu de mulher, para a festa de Carnaval –, tive uma vida muito boémia, bem vivida.”
LIDERAR EM EQUIPA, TER VISÃO ABRANGENTE
Os tempos do Lumiar, onde se embrulhara na vida do bairro e de que recorda ainda com saudade os Santos bairristas, estavam definitivamente arrumados. Exceção feita, claro, aos amigos de infância, com quem marca almoços regulares e que o visitam frequentemente. “Já Torga dizia que o Algarve é como um dia de férias na Pátria”, ri-se, explicando a riqueza de quem vive ou passa férias ali. “É engraçado porque cada pessoa tem o seu Algarve, seja Albufeira ou Tavira, Portimão ou a Costa Vicentina. O meu é Faro, onde vivo há 18 anos com a Teresa, onde nasceu há 11 anos o Gonçalo, onde tenho a vida profissional. Mas também é Monchique e Alcoutim, cuja realidade é totalmente diferente do imaginário de quem visita; e as praias mais selvagens de Vila do Bispo ou Aljezur, tão diferentes da pacatez lindíssima de Vila Real de Santo António. O meu Algarve é um pouco disto tudo e eu gosto de me sentir algarvio em pleno.”
Diz-me que a chegada a presidente do Turismo do Algarve implicou uma candidatura exigente e uma série de passos esforçados, com muita aprendizagem. Pisei cada degrau da escada: fui estagiário, técnico, dirigente intermédio de 2.º grau, depois de 1.º grau, superior de 2.º grau e agora presidente.” E se a vitória foi difícil e por poucos votos – enfrentava um histórico autarca sendo, ele próprio, um outsider– a ideia de respeito mútuo que conseguiu manter deixa-o satisfeito. Como sorri com a lembrança de ter avaliado a vantagem de avançar também para a Associação de Turismo da região (que representa mais de 400 entidades privadas), conse-
guindo com essa presença transversal mais sinergias e trabalho conjunto que potenciam resultados positivos – um exemplo que pegou ao Centro, Norte, Alentejo.
Dessa experiência de emprego público e emprego privado, tira lições: que há bom e mau dos dois lados, que um cargo público implica critérios mais apertados e exigência superior, mas também traz mais constrangimentos à execução. “O emaranhado de leis , muitas delas transpostas da legislação comunitária, é um caos. Não concordo com Brexit,mas entendo-os neste aspeto: os europeus autoimpõem-se muitos limites à agilidade das organizações. E isso desaproveita o empreendedorismo e a inovação, traz mais burocracia sem garantir transparência.”
Talvez por isso e pela experiência adquirida a lidar com estas questões complexas, diga que não assume méritos a solo. “Aprendi muito jovem que não era ‘o maior da minha rua’ e que só com trabalho de equipa se chega a algum lado. O meu legado seja esse, de ter sempre trabalhado com pessoas, lado a lado, para juntos conquistarmos os desafios.” Assume porém que terá deixado as marcas da sustentabilidade pelas organizações por onde passou, da experiência da água da ETAR para o golfe ao plano desenhado para a eficiência hídrica da região, juntando agricultura, turismo, municípios e Agência Portuguesa do Ambiente numa solução múltipla, que garanta redundâncias – soluções de maior eficiência no gasto de água, reaproveitamento de águas residuais, criação de novas fontes de abastecimento (captar a Norte) e dessalinização.
TECNOLOGIA, CAÇA E AGRICULTURA PARA UM TURISMO SUSTENTÁVEL
Com visão direta sobre os desafios da região a que há muito aprendeu a chamar casa, João Fernandes não limita o retrato do Algarve do futuro à sua área de atividade. Diz, aliás, que é preciso diversificar a base económica algarvia, nomeadamente à agricultura, à inovação. “Até para bem do turismo, que é uma verdadeira esponja: é o primeiro a adotar novas tecnologias, soluções susten-
“CADA PESSOA TEM O SEU ALGARVE. O MEU É FARO, ONDE VIVO, MAS TAMBÉM MONCHIQUE E ALCOUTIM, CUJA REALIDADE É TOTALMENTE DIFERENTE DO IMAGINÁRIO DE QUEM O VISITA. E SÃO AS PRAIAS SELVAGENS DE VILA DO BISPO OU ALJEZUR, TÃO DIFERENTES DA PACATEZ LINDÍSSIMA DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO. SINTO-ME UM ALGARVIO EM PLENO.”
“MUITOS DESCONHECEM QUE 40% DO TERRITÓRIO DO ALGARVE É PROTEGIDO, QUE HÁ CASCATAS NO INTERIOR, QUE ALCOUTIM É UM DESTINO DE CAÇA E COMO ISSO AJUDA A SUSTENTABILIDADE.”
táveis, integra tudo o que está em volta”, diz. E dá exemplos: “73% dos empreendimentos turísticos em 2019 tinham já planos de eficiência hídrica; aparece um hospital privado e faz-se turismo de saúde; cultiva-se e faz-se agroturismo e enoturismo... Com a vantagem de que aproveitamos e incorporamos o que é produzido à nossa volta: 80% dos bens vendidos num hotel são comprados localmente.” É a noção das vantagens laterais que o faz trabalhar em grande proximidade com o Algarve Tech Hub, vendo muitas dessas empresas internacionalizarem-se à boleia do turismo (plataformas de reservas, por exemplo). E rejeita a ideia de uma agricultura destrutiva. “Há culturas intensivas que mancham a paisagem, como as estufas na linha do Parque Natural da Costa Vicentina, mas a agricultura é necessária e tem valor. E está em evolução, por exemplo no uso mais eficiente de água”, diz, lembrando que “os agricultores são pessoas de bem” que nada querem ter que ver com os maus exemplos que por vezes surgem. Defende, porém, algum cuidado acrescido no licenciamento de espaços agrícolas: “Um hotel, para abrir, tem de explicar onde vai alojar trabalhadores, que água e de onde vai consumir, etc.; uma unidade agrícola quase basta que se enquadre no PDM.”
DEPOIS DO TURISMO, SER TURISTA
João descreve o Algarve como um Portugal deitado, com problemas semelhantes aos que se aponta ao país. “Há problemas de interioridade, há desafios vários, há necessidade de valorizar as pessoas através de empregos menos precários, mais qualificados, de chamar empresários inovadores. E há os desafios da sustentabilidade, que são também oportunidades – para o turismo de natureza, pela ligação entre agricultura e turismo, etc. E felizmente temos tido resultados.”
Com a sustentabilidade em cima da mesa, pergunto-lhe sobre o peso do mais relevante destino de turismo cinegético do país, Alcoutim, cuja transformação e profissionalização é ignorada por grande número de portugueses. Confirma. “Há muita gente que desconhece que 40% do território do Algarve é protegido, que há cascatas no interior da
região, que é um destino de caça privilegiado e como isso tem contribuído para a sustentabilidade de Alcoutim. O turismo cinegético é um valor acrescentado para a preservação de espécies, para manutenção de habitats, para o controlo de espaços que podem estar sujeitos a incêndios, dinamização económica da região e ocupação do território”, elenca. E conclui: “Já se olha para a caça de forma diferente, porque passou a ser escrutinada. Há sempre quem prevarica, mas Alcoutim é uma boa experiência.” Até no lince ibérico, que circula livremente no antigo território do contrabando. Aos que falam em pressão turística responde com uma proporção e uma conclusão. “Albufeira tem 40 mil habitantes e chega a ter 400 mil pessoas... se Lisboa tivesse este rácio as estacas da Baixa não aguentavam. Perdoem-me a expressão, mas temos por vezes tiques de novo-riquismo. Nunca vi um argentino dizer mal de Messi... eu lembro-me bem de Alfama e outros bairros de Lisboa estarem sujos, degradados e serem perigosos e decadentes. Hoje orgulhamo-nos deles e até queremos lá viver! O turismo melhorou-nos muito. Não podemos negligenciar os impactos que qualquer atividade humana tem, mas o turismo é uma força do bem. E temos um país incrível, rico e diversificado, ideal para a atividade. Além de ainda sermos disponíveis para o serviço, o que é uma grande vantagem –também para a integração: nós tornámo-nos muto mais cosmopolitas e globais por recebermos pessoas. No Algarve, as questões de preconceito são muito menos presentes graças ao turismo. Receber o que é diferente, acolhê-lo com hospitalidade propicia essa adaptação.”
João também gosta de viajar –para fora, mas sobretudo pelo país, cuja beleza e riqueza sempre o surpreende, de Norte a Sul e Ilhas. “A nossa gastronomia é um tratado!”, vinca. E quando acabar esta missão, onde se vê João? “A viajar. Quando for grande quero ser turista.” Ri-se. Depois legenda: “Gostava de viajar com tempo.” E mais não sabe. Ainda que seja homem de planos, diz que a vida o ensinou que as coisas têm uma forma de simplesmente acontecerem. Por isso não gasta muita energia com projeções pessoais. “Talvez gostasse de doutorar-me em Economia... Depende das oportunidades que houver no Algarve”, conclui, tão indisponível para fazer vida noutro sítio hoje como aos 20 anos.