O Algarve não é aqui

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11-06-2016 | Fugas

Capa Algarve

O Algarve não é aqui Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos. Mas também de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. Trezentos quilómetros “só com os caminhos e o corpo”. Francisca Gorjão Henriques (texto) e Enric Vives-Rubio ( fotos)

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e noite, Alcoutim é só silêncio. As ruelas brancas, de casario baixo, afluem para o rio e não se ouve uma porta, uma televisão, raramente um carro. Até que, chegados à margem do Guadiana, lá vêm os sons de um jantar em família, as vozes bem altas e animadas. E de onde vêm elas? De uma casa qualquer em Espanha. Se podemos ouvi-las com toda a distinção é porque do lado de cá não se passa nada. Ou quase nada. Está tudo mais calmo desde que a estalagem fechou, diz-nos Camané, que tem um restaurante com o seu nome. Se esta viagem deve começar em Alcoutim, então que se vá de véspera e se comece por aqui, com um belo ensopado de enguia, com poejo e pão frito em azeite. Também poderia ser javali estufado, perdiz à algarvia ou coelho frito. Os veados e javalis atravessam o rio, muitas vezes para um desfecho fatal. “A caça tem tido muita procura. Dizem que aqui há a melhor perdiz vermelha” – e Camané é um dos que gosta de lhes apontar a espingarda. Avistámos uma de manhã, quando nos pusemos a caminho, logo no início da Via Algarviana.

São 8h30 quando começamos esta espécie de peregrinação, sem Deus nem promessa: trezentos quilómetros a pé, de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, atravessando as serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique, numa linha quase sempre paralela ao mar. Trezentos quilómetros de sossego, vistas amplas, ar puro nos pulmões. Percorrem-se em 14 dias (só tínhamos 12, por isso saltámos duas etapas) por caminhos estreitos, às vezes íngremes, outras vezes (poucas) em asfalto, sem guia nem grupo organizado, apenas seguindo todas as indicações que estão em postes, pedras ou muros. Foi por isso uma sorte ter quase sempre a companhia da Anabela Santos, coordenadora da Almargem, associação de defesa do património ambiental do Algarve, responsável pela Via Algarviana (que foi inaugurada em 2009, tentando seguir o caminho da peregrinação de São Vicente; não se sabe quantas pessoas a fazem porque qualquer pessoa pode fazê-la autonomamente, mas o milhão e meio de euros investido já foi superado pela dinamização económica local, diz a bióloga). Sem ela mal daríamos pelas preciosas orquídeas selvagens

que nos surpreendem pelo caminho, ou pelas pútegas escondidas entre as folhas. Cada etapa termina numa vila, aldeia ou monte onde se encontra alojamento, come-se, arranja-se lanche e forças para o dia seguinte. Comecemos então a caminhada, um pouco antes do ponto em que avistamos a tal perdiz. Saímos de Alcoutim com o rio à nossa direita, subindo vagarosamente, sem falta de fôlego. Do lado andaluz, um castelo velho pintado de novo, todo branco. Do lado algarvio, amendoeiras abandonadas ainda com os frutos do Outono, porque ninguém se dá ao trabalho de os apanhar – não compensa o preço, sobretudo pela concorrência da amêndoa californiana. Com as oliveiras é diferente: ainda há muita gente a fazer o seu próprio azeite. Por entre o grauvaque, que é abundante, despontam os sargaços em flor, os cardos, usados para fazer coagular o queijo fresco de cabra, as marioilas, cujas folhas felpudas eram antigamente usadas para lavar a loiça (sobretudo os alguidares da matança do porco), um serapião (orquídea selvagem quase grená,

Tiragem: 32857

Pág: 4

País: Portugal

Cores: Cor

Period.: Semanal

Área: 25,70 x 30,75 cm²

Âmbito: Informação Geral

Corte: 1 de 14


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