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\u201CVIVO A M\u00DASICA COMO UM DEPENDENTE QU\u00CDMICO VIVE DE SUAS SUBST\u00C2NCIAS\u201D
INQUIETO, CRIATIVO, INCONFORMADO, O GUITARRISTA EDGARD SCANDURRA LANÇA DOIS NOVOS PROJETOS, FERMENTA INCONTÁVEIS OUTROS E CELEBRA A FASE CHEIA DE ENERGIA DO IRA!, DE VOLTA APÓS UM HIATO DE SETE ANOS
Por Alessandro Soler, do Rio
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Nos últimos meses, o nome do guitarrista Edgard Scandurra apareceu envolvido em, pelo menos, três projetos de repercussão. O lançamento oficial do single “Bici Bike Magrela”, que estimula o transporte sustentável e ganhou voz pela banda infantil Pequeno Cidadão, cocriação do músico; a expectativa pela chegada do álbum “EST”, aguardada parceria com Silvia Tape; e a apresentação bombástica do Ira! ao lado de Tony Tornado e Rappin' Hood no Rock in Rio, no fim de setembro. Sem dúvida, a volta recente da banda lendária liderada por Scandurra e Nasi, depois de sete anos de intervalo, foi uma injeção de gás num cara criativo, sempre ligado, inconformado. Mas a fase particularmente prolífica, ele atesta, não é ponto fora da curva: “O prazer de tocar, criar, compor, arranjar, sugerir, solar, cantar é tão grande que, quando estou sem fazer isso, me sinto solitário e triste. É como passar dias numa praia maravilhosa e, de repente, acordar dentro de um ônibus lotado sentindo alguém tentando roubar a minha carteira”, compara o guitarrista, tido pela crítica como um dos maiores da nossa música, e que já tem a cabeça povoada de novos e inquietos planos.
Essa explosão de trabalho parece ter um ímpeto renovado. Estamos assistindo a um Edgard Scandurra versão 2015 parecido com o Scandurra do início do anos 80, ou seja,"imparável"?
Eu inventei um hashtag que representa muito bem o que eu sou dentro da música: um operário do rock. Vivo a música como um dependente químico vive de suas substâncias. O prazer de tocar, criar, compor, arranjar, sugerir, solar, cantar é tão grande que, quando estou sem fazer nada disso, me sinto solitário e triste. É como passar dias numa praia maravilhosa e, de repente, acordar dentro de um ônibus lotado sentindo alguém tentando roubar a minha carteira. Isso existe em mim desde os anos 80, quando, por necessidade, tocava em muitos projetos, já que nenhum dava realmente grana suficiente para viver. Com a soma, podia pagar ao menos meu aluguel. Mas depois isso virou uma necessidade vital. Acho que realmente eu sou “imparável” e vou seguir dessa maneira até não poder mais. E isso será lá no finzinho.
O que inspirou a parceria com a Silvia? E o que o álbum “EST” lhe permite dizer de diferente?
Com Silvia Tape surgiu uma parceria maravilhosa, um encontro das minhas músicas com as suas letras, e o que seria apenas algumas canções se transformou num disco, num conceito que eu vinha buscando havia muito. Sempre quis ouvir minhas canções em vozes femininas, e a voz e a poesia da Silvia me encantaram. A diferença está na sonoridade que conseguimos nesse trabalho. Muitas cantoras, hoje em dia, se destacam na música brasileira, mas há muitas semelhanças nos timbres, na maneira de gravar, e eu não queria que nosso trabalho fosse mais um álbum para agradar à geração hipster. Nesse disco está a nossa maneira de entender o que seria o pop dos sonhos, a música que gostaríamos de ouvir ao ligar o rádio.
A volta do Ira! foi muito celebrada pelos amantes do rock nacional. Mas não há dúvida de que essa cena é hoje muito diferente da que já foi. O rock brasileiro vive uma crise? Mudou muita coisa desde 2007, quando vocês resolveram se separar?
O rock perdeu seu lugar como principal música para a juventude expressar tanto suas alegrias quanto suas frustrações. Virou a subcultura da subcultura, enfeitada por bandas de baixa qualidade, comerciais, inventadas por produtores que viam no rock a mesma máquina de fazer dinheiro que viram no pagode, no axé, no samba. Vejo que, agora, artistas que se diziam MPB celebram seus discos de rock, o que é muito bom! O rock sempre sofreu crises de identidade e sofre com entressafras tão duradouras como a seca no Saara. Politicamente falando, com essas crescentes manifestações de direita, beirando o fascismo, e com a desilusão com a esquerda, creio que há um ambiente muito rico para a guitarra voltar a gritar por justiça e liberdade e tomar seu lugar como importante meio de comunicação dos anseios das almas humanas.
Esse espírito contestador, inconformado, sempre esteve presente. Basta um olhar rápido sobre a sua obra para saber. Mudaram as causas mas não mudou o Scandurra?
Eu me considero um músico canhoto e de esquerda. E, quando falo em esquerda, falo da luta por conquistas sociais. Não consigo entender artistas de rock, vindos dos tempos da ditadura, marchando lado a lado com saudosos dos tempos de chumbo. O socialismo não é feito por simpatizantes da União Soviética ou por barbudos cubanos, mas por pessoas que lutam por coisas claras e básicas para a população. Quando se aprova a união entre pessoas do mesmo sexo, estamos dando conquistas sociais inestimáveis a pessoas que sempre foram alvo de piadas de mau gosto. Quando se discute a liberação da maconha, trata-se de estratégia para combater o tráfico e as mortes que ele causa. São todas lutas da esquerda. Sou a favor de impostos contra as grandes fortunas, das cotas para as minorias, de justiça aos torturados pela ditadura. Não compactuo com abusos econômicos e desmandos, de qualquer matiz ideológica. Se há erros num governo, não importa se direita ou esquerda, têm de ser corrigidos e punidos, mas que não se leve ninguém às fogueiras dos julgamentos precoces. Tenho muito medo de que o ódio das coxinhas feitas em azeite faça os avanços sociais retrocederem.
Outra bandeira que levantou recentemente é a do transporte sustentável, com a canção “Bici Bike Magrela”, com o Pequeno Cidadão...
Quanto mais bicicletas, menos carros, menos poluição, menos estresse, e isso é óbvio!
Mas houve quem o atacasse no território cinza da internet por aparecer ao lado do prefeito Fernando Haddad, que lidera uma cruzada por mais ciclovias em São Paulo, não sem muita polêmica e raiva por parte da população. Como responde às críticas?
Esse território cinza é muito grande, não acha? Às vezes acho que uma pessoa só, com muita paciência, cria vários perfis na internet para atacar ideias alheias. Eu aprendi a gostar de ciclovias na Europa, onde, muitas vezes, os carros param para os pedestres atravessarem a rua e não são usados para ir à esquina comprar pão. Muita coisa tem que ser feita para melhorar a vida das pessoas. Não é só andar de bicicleta. Mas as ciclovias são uma enorme conquista. Quando ando de bike, roubando uma frase da Taciana Barros, eu me sinto um pouco criança. O vento no rosto me traz lembranças maravilhosas. Combater isso é sinal de ignorância e intolerância. Quando ouço um taxista reclamando das ciclovias, acho engraçado, pois os ciclistas são cidadãos que querem deixar seus carros em casa, ou seja, fortes candidatos a clientes dos táxis. Na verdade, me sinto orgulhoso quando vejo minhas opiniões atacadas por gente que faz parte dessa cinzenta massa intolerante.
E o Pequeno Cidadão? Pode falar um pouco sobre o projeto e o que motivou?
É um projeto maravilhoso, pois apresentamos não só musicas infantis para as crianças, mas para os pais que sabem que desse caldo (Taciana, Antonio Pinto e eu) surge um som que agrada também aos adultos que cresceram nos vendo nos palcos. De certa maneira, ajudamos o rock, levando nosso som psicodélico aos pequenos, além de transmitir de maneira romântica e divertida mensagens de cidadania.
E como anda a produção do anunciado álbum de inéditas do Ira!? Sai mesmo no ano que vem? O que esperar dele?
Esse disco vai sair, mas será um trabalho muito difícil, pois temos nosso passado como principal concorrente. Temos que fazer “o disco”, e isso não se faz com data para terminar, embora eu sempre tenha trabalhado bem sob pressão. Já começamos a compor. Vamos ver o que rola. Agora, não consigo conceber a ideia de um trabalho que apenas aumente nossa discografia. Então, as pessoas podem esperar o melhor, algo que marque essa nova formação de maneira inesquecível.
No que toca a trabalhos solo, você já está há uns bons anos quieto, sem álbuns de inéditas. Com tanto projeto coletivo, tem espaço para trabalhar sozinho no momento?
Poxa, eu posso parecer arrogante, mas acho que esses trabalhos coletivos são, também, meus trabalhos solos, pois atuo de maneira incisiva nesses projetos, dando uma boa parcela da minha cara a eles. Um disco meu, só meu, deve vir, mas antes quero me dedicar ao “EST”, ao próximo do Ira!. E, se tudo der certo, a um disco com André Abujamra, que temos em mente há muito tempo e combinamos que de 2016 não passa!
Com tantas parcerias e tantos projetos de diferentes calibres, como anda a arrecadação de direitos autorais? É uma fonte importante de ingressos para você?
São uma fonte muito importante de renda para mim. Claro que tenho altos e baixos no que toca aos valores, pois variam segundo a execução das minhas composições. Agora, com mais de 50 anos de idade, estou começando a olhar para uma possível aposentadoria num futuro não tão distante. Hoje em dia, acho que está mais fácil observar a arrecadação dos direitos autorais e conexos, pois a tecnologia permite mais controle. Existem aplicativos que reconhecem uma música que toca num clube ou numa rádio e estão à disposição de todos. No que toca às tantas mudanças que temos visto e que trouxeram maior transparência ao mundo da gestão coletiva dos direitos autorais, vejo isso como sinal de amadurecimento da classe artística, que se mobiliza pelo interesse mútuo, bem diferente do anterior cada um por si. O debate deve ser intenso e, na prática, mostrar resultados. Há mais de 30 anos recebo valores periódicos de direitos autorais e vivo muito disso, mas confesso que me mantenho mais no lado “lúdico” da profissão, delegando a vigilância a outros. Mas acho que todo cidadão devia saber um pouco de direito e um pouco de contabilidade para não ir como o vento, para um lado ou para outro, enquanto outros tratam de agir.