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Fenomenologia
Afenomenologia tradicional, como disciplina fi losófi ca, foi inaugurada por Edmund Husserl (1859-1938) no início do século XX como uma investigação do “retorno as coisas mesmas” e crítica aos métodos científi cos tradicionais que desconsideram as características subjetivas e metafísicas da complexidade humana (BULA, 2015, p .27) . Posteriormente, mais fi lósofos vão enriquecer o debate fenomenológico, como Heidegger (19891976) ao considerar a fenomenologia um “método” ou “forma de ver” e MerleauPonty (1908-1961) ao trata-la como “a essência da percepção” (HERNÁNDEZ, 2019) .
A incorporação do estudo dos fenômenos no âmbito da teoria da arquitetura vai buscar um retorno a elementaridade do lugar e do habitar humano, que escapam a ciência tradicional . Seus dois mais famosos teóricos, Juhanni Pallasma (1936-, Finlândia) e Christian NorbergSchulz (1926-2000, Noruega), assumirão diferentes desdobramentos nessa busca pela incorporação da fenomenologia na arquitetura .
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O pensamento fenomenológico propõe uma crítica ao funcionalismo defendido pelo movimento moderno europeu, que “deixou de fora o lugar como o “aqui” concreto com sua identidade particular” (NORBERG-SCHULZ, 2006, p . 445) . A chamada “estetização” também é combatida, referindo-se a outras correntes pós-modernas em arquitetura caracterizadas por uma experimentação formal e semiótica . Tais correntes são acusadas de “protagonizar a visão e impor uma espécie de ditadura do olho, que produz edifícios de formas exuberantes que não dialogam com as populações locais e nem consideram as características do lugar em que serão implantados, seus materiais e tectônica” (MIROCZNIK, 2019, p .2) . Defende-se que essas posturas “despiram a arquitetura de suas dimensões bioculturais mais profundas, perdendo sua essência metafísica, tornando-se um produto funcionalizado e mercantilizado” (PALLASMAA, 2017, p .33) .
Em termos gerais, é possível evidenciar um panorama de como é estruturada a fenomenologia arquitetônica . Entre variações terminológicas de cada autor,
há sempre o entendimento de uma esfera físico-material que se entrelaça a esfera mental-abstrata por meio da relação com o homem e dá origem ao espaço vivenciado . No diagrama deste trabalho (imagem 1), a esfera físicomaterial chamamos de ‘tectônica’, a “totalidade de coisas concretas que possuem substância material, forma, textura e cor” e a esfera mental-abstrata chamamos de ‘essências’, sendo os signifi cados existenciais, intenções e valores refl etidos sobre a tectônica pelo indivíduo . O ‘ato’ é a ação humana no espaço tectônico que é o responsável por dar luz às essências . Essa fusão origina o espaço vivido e a totalidade desses elementos é o que caracteriza o ‘lugar’, defendido por Norberg-Schulz .
ESPAÇO EXISTENCIAL, Juhani Pallasmaa
Pallasmaa ao defi nir ‘espaço vivido’, tratado anteriormente, coloca as esferas físico-material e mental-abstrata como entes indivisíveis (imagem 2) . Como forma de diferenciar o 'espaço vivido' do espaço físico e geométrico, passa a chama-lo de ‘espaço existencial” . É impossível trata-lo em termos científi cos tradicionais pois está mais próximo a uma noção onírica . O ‘espaço existencial’ é fundamentado em ‘essências’, que são signifi cados ‘bioculturais’ secretos e pré-conscientes, além de encontros existenciais e ressonâncias que o ser humano atribui ao espaço físico . Segundo ele, “vivemos em mundos mentais, nos quais o material e o espiritual, bem corno o vivenciado, lembrado e imaginado constantemente se fundem” (imagem 3) (PALLASMAA, 2018, p . 23) . A fenomenologia da arquitetura vai se amparar em conceitos intimamente relacionados com as essências do habitar, como: lugar, atmosfera, tempo, memória, imaginação e identidade .
Imagem 2: Esquema da composição do "espaço existencial"
LUGAR, Christian Norberg-Schulz
Norberg-Schulz toma os textos de Heidegger predominantemente como referência . Ele trata a fenomenologia da arquitetura como um método para criação de lugares dentro de lugares, numa tentativa de revelar os significados latentes do ambiente . Sendo o conceito de ‘lugar’ tratado como uma totalidade qualitativa de natureza complexa . É, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada . Primeiro o lugar é esse espaço que carrega um ‘caráter’, ou seja, uma qualidade essencial que o constitui, desenvolvida a partir da interação com o ser humano, resgatando a noção romana de genius loci, o ‘espírito do lugar’, um ‘outro’ que as pessoas precisam aceitar para habitar . Construir, para Norberg-Schulz, é reunir os significados apreendidos por experiência “afim de criar para si um imago mundi ou um microcosmo, que dê concretude a esse mundo” (NORBERG-SCHULZ, 2006, p .453) . Ou seja, um mundo dentro de um mundo, um lugar dentro de um lugar .
ATMOSFERAS, Peter Zumthor
O termo “atmosferas” se popularizou na arquitetura de Peter Zumthor (1943, Suíça) . Refere-se a “ambientes que possuem o poder de comunicar com nossa percepção emocional em sua totalidade” (ZUMTHOR, 2006, p . 13) . O conceito, portanto, se relaciona com o entendimento de “espaço existencial” cunhado por Pallasmaa . Na busca por dar luz a essas atmosferas, Zumthor cita algumas relações espaciais que, articuladas e desvendadas, vão enriquecer as qualidades experienciais e essenciais da arquitetura . Entre elas estão: “corpo na arquitetura”, “consonância dos materiais”, “sons do espaço”, “temperaturas no espaço”, “entre a serenidade e a sedução” e “luz sobre as coisas” .
O “corpo na arquitetura” diz respeito à expressão material do projeto, enquanto “consonância dos materiais”, é a preocupação de como os materiais se dialogam . Em “sons no espaço”, Zumthor trata o edifício como um grande instrumento que coleciona, amplia e transmite os sons . Há um destaque para as sensações psíquicas das ‘temperaturas do espaço’ . “Entre a serenidade e a sedução” diz respeito à quarta dimensão da arquitetura: o tempo, se relacionando com a proposta de "promenade architecturale" de Le Corbusier: a apreciação do percurso como estratégia projetual . Inerente às sensações espaciais, não poderia faltar “A luz sobre as coisas”: uma investigação do comportamento da luz sobre os materiais (ZUMTHOR, 2006) .
TEMPO
Segundo Pallasmaa (2017, p . 118), as edificações são “depósitos e museus do tempo e do silêncio”, uma vez que “estruturas arquitetônicas tem a capacidade de transformar, acelerar, desacelerar e parar o tempo” . O modernismo é acusado de transformar a forma como tempo é trabalhado no ambiente, transformando arquitetura como um documento de tempo benevolentemente lento em uma arquitetura mais rápida, apressada e impaciente . Desta maneira, há uma necessidade de resgatar a lentidão do tempo apagada pela aceleração da modernidade e manter as marcas do
tempo histórico nas edificações pois estruturam nosso entendimento do mundo .
MEMÓRIA
A arquitetura pode ser um importante mecanismo da memória porque: materializa e preserva o passado do tempo e o torna visível; “concretiza a lembrança ao conter e projetar as memórias”; e por último, “estimula e inspira tanto a recordar quanto o imaginar” (PALLASMAA, 2018, p . 15) . Há partes de nós projetadas e ocultas nos locais onde habitamos . Ao revisitar um lugar em que estivemos no passado, uma enxurrada de lembranças presas por nós àquele lugar é catalisada .
IMAGINAÇÃO
A habilidade de imaginar dever ser considerada “a mais humana e essencial de nossas capacidades” (PALLASMAA, 201, p . 81) . A avalanche de imagens excessivas, insignificantes e não hierarquizada, características da pós-modernidade, nos tira essa oportunidade importante de imaginar porque imagina por nós . É na imaginação que nos colocamos em certa vivência e desenvolvemos nossa empatia . IDENTIDADE E LAR
Norberg-Schulz, em sua leitura arquitetônica de Heidegger, considera a identidade e a orientação os conceitos chave para se criar uma base de apoio existencial, sendo as duas funções psicológicas envolvidas no habitar humano . Por identidade, entende-se “ter uma relação amistosa com determinado ambiente”, fundamento para o sentimento de pertencer a um lugar; enquanto a orientação é a condição que nos torna capaz de ser aquele “homem peregrino” (NORBERG-SCHULZ, 2006, p .457) .
O homem moderno frequentemente deu uma importância desregrada a esse ser peregrino e negligenciou a identidade, querendo desbravar, ser livre e conquistar o mundo, sem criar raízes e um domicílio fixo. Isso pode ter ajudado a tornar comum essa perda de lugar em nossa cultura de abundância, uma inabilidade de nos mesclarmos com o mundo, proporcionando um vacuo existencial e um perpétuo tempo presente, temas recorrentes da arte contemporânea (PALLASMAA, 2017) .
O problema traz à tona a importância do conceito de lar para a humanidade . O lar não pode ser entendido enquanto uma construção física que responde a um programa funcional básico . Seu conceito é complexo e difuso . O lar é um ambiente físico e ao mesmo tempo metafísico, que integra memórias, medos, desejos, passado, presente, aspirações futuras, amores, nostalgias . . . . Tudo isso converge na construção de uma extensão do seu eu identitário (PALLASMAA, 2017) .
Cidade-lar e o espectadorperformer
Acidade pode ser compreendida como o artefato humano mais complexo e significativo. Nela, “as atividades e funções se interpenetram e entram em contato umas com as outras, criando contradições, paradoxos e uma excitação de natureza erótica” (PALLASMAA, 2017, p . 48) .
Estabelecer uma atmosfera de lar em um ambiente tão complexo e paradoxal é um grande desafio. Enquanto no lar tudo é familiar e identificável, a cidade lida a todo momento com a tensão familiaridade x estranhamento . Segundo Suurenbroek (et al, 2019), os moradores da cidade podem familiarizar-se com os ritmos da cidade e seus habitantes através da criação de “domínios públicos” . Trata-se de locais específicos que são usados por uma diversidade de pessoas, de vários grupos, classes e estilos de vida . Para entender esse conceito, usa-se frequentemente a metáfora da cidade como teatro, onde os habitantes são, ao mesmo tempo, público e performers . Determinados grupos usam o espaço urbano em suas interações internas e mostram inconscientemente a outros grupos quem são por meio de seu comportamento e estilo . Da mesma forma, esse grupo que se expos, visualiza outros grupos e suas relações . Esses pequenos intercâmbios de fundo fazem com que as pessoas se familiarizem com as ‘performances’ de outros habitantes . Podem se identificar ou buscar ser diferente deles, mas apesar disso, criase uma espécie de confiança mútua (Suurenbroek, et al, 2019), .
Tais interações, com o passar do tempo, criam um vínculo pleno com um local . O ambiente começa a ganhar significados específicos e criar um “senso de lugar”, a constante busca da fenomenologia arquitetônica . Esse senso de lugar induz uma sensação de lar, a experiência de sentir-se pertencente e seguro no espaço .
Os habitantes da cidade são simultaneamente o público e os performers
FENOMENOLOGIA X INOVAÇÃO TECNOLÓGICA
Muitos discursos de base fenomenológica na arquitetura são contrários ao uso excessivo da tecnologia digital, pois operam de forma alienante ao indivíduo, destituindo deles experiências corpóreas, significativas e poéticas. Atos carregados de significado existencial são sintetizados em um click. Pode-se exemplificar isso através da imagem poética do fogo: entendido como esse elemento que aquece nossa pele, com essências primitivas, e ao preparar um alimento, compreendemos seu modo de operação, as relações de causalidade que nos elucidam o funcionamento do mundo e das coisas . O fogão elétrico nos priva do contato direto com o fogo e suas essências ao automatizar experiências (GRÜNKRANZ, 2010) .
“De modo geral, a arte possui uma relação dual com a tecnologia. Diversas formas artísticas aceitam e fazem uso de inventos tecnológicos, mas, ao mesmo tempo, dão as costas à racionalidade e à utilidade tecnológica. A técnica de construção mais engenhosa permanece sendo mera habilidade de engenharia se a estrutura for incapaz de iluminar o enigma da existência humana subjacente à racionalidade técnica, e incapaz de criar uma metáfora para nossa existência. Fundamentalmente, a arte sempre termina por constatar a inutilidade da tecnologia e da racionalidade.” (PALLASMAA, 2017, p. 67)
Há uma postura crítica dos teóricos da fenomenologia arquitetônica quanto a essa “obsessão” pela novidade e originalidade da pós-modernidade, como uma “necessidade estratégica da cultura do consumo” . Para Pallasmaa (2018), “as construções humanas têm a tarefa de preservar o passado e nos permitir experimentar e compreender o continuum da cultura e da tradição” .
Diante dessas desavenças que a fenomenologia tradicional estabeleceu com a tecnologia e a inovação, o intuito deste trabalho encontra obstáculos sérios uma vez que a arquitetura responsiva trata justamente de inovação e incorporação de tecnologia digital . Para ser possível essa associação, é necessário recorrer a uma atualização da metodologia fenomenológica que admite o uso da inovação digital denominada “Pós-fenomenologia” .