Luz e Trevas: Cr么nicas de Solaris Paladinos Category: Livro MCN: CDHFF-PSC6L-2EJAY 漏 copyright 2013-02-15 20:59:21 - All Rights Reserved
Prólogo O sol matutino despontava logo acima do oceano calmo que se estendia por quilômetros de distância, até onde a visão poderia alcançar. Gaivotas brancas voavam em um grande número. Era o momento da migração, onde cada um deveria cuidar do outro. Bolhas foram vistas logo abaixo da água, e um peixe-voador pulou de encontro ao ar da manhã. Fazia um frio especial naquele porto quase esquecido pelos Deuses. Estava tudo revirado e bagunçado no cais. Cordas foram jogadas de maneira desajeitada, e pequenos peixes apodreciam no sol. Afinal, ninguém se importava com nada quando o assunto era fugir o mais rápido possível, sem olhar para trás. Aquele porto, o Fosso, como era chamado agora, foi onde as tropas de Mallak um dia desembarcaram e atacaram o Continente Solaris, numa batalha sangrenta, onde muitas vidas encontraram seu fim. Nem mesmo o poder de todos os reinos reunidos foi capaz de eliminar rapidamente a ameaça. Mas o passado ficara para trás, e os únicos que podiam ter acesso total ao Fosso eram os Paladinos. A Companhia dos Paladinos existia por mais de cinco séculos, cuidando e monitorando todo o continente de Solaris. Eram a única força treinada para acabar com as constantes investidas das tropas do Necromante. Eram guerreiros natos treinados na natureza da luz, prontos para expulsar o mal que se escondia por cada sombra. O mundo conhecido pelo homem era dividido por aquela guerra maldita haviam mais tempo do que os mais sábios poderiam contar. No começo, constantes guerras aconteciam, com navios inimigos atracando nos diversos portos e despejando a horda monstruosa contra os vilarejos mais próximos. Geralmente, para servir na Guarda dos Paladinos, eram pegas as crianças de alto nascimento que já sabiam ler e escrever, recursos que fariam a diferença num acordo diplomático. E de todos os que se inscreviam, apenas um pequeno punhado era qualificado para poder continuar no Castelo. Cerca de cinco destes paladinos rondavam aquelas regiões litorâneas, analisando o horizonte, esperando encontrar um galeão vindo de encontro ao porto, mas o que mais encontravam eram os comerciantes das Ilhas próximas a Solaris. Pimentas, mostardas, azeitonas, vinagres e outras especiarias eram o que eles mais traziam. Poucos vinham com carregamentos de armas e armaduras. Mas tudo isso era inspecionado pelos paladinos que lá estavam. Andando de um lado para o outro, em silêncio, dois homens morenos e altos, com armaduras completas a proteger cada centímetro de seu corpo, olhavam para as árvores e para o oceano infindável. - Godrik, não sei você, mas estou cansado desta merda. – disse o maior dos dois. Uma cicatriz cortava seu olho esquerdo até a linha do lábio superior. - Reclama demais, Touro. – Godrik respondeu, sem tirar por um momento as mãos de cima do cabo de sua espada. – Se quiser, corra para as florestas, posso ficar aqui sozinho. Tudo o que menos preciso é de alguém reclamando em meu turno inteiro. - Fui feito para lutar, e não para servir de segurança num porto abandonado. – Touro sentou-se sobre um barril velho, que rangeu ante seu peso.
Godrik olhou-o com braveza. Odiava quando alguém reclamava da boa vida que levava. Não que a vida de um paladino fosse a melhor de todas, mas nada faltava àqueles homens. - Está errado. Você foi treinado para proteger Solaris de ataques das Terras Escuras. - Há anos que não somos atacados. – Touro rebateu, resmungando. Pulou do barril e pôs-se a andar compulsivamente, olhando para a mata fechada atrás de si. A madeira do cais estava velha e apodrecida, parecia que em algum momento ele cairia na água salgada e seria tragado pelos monstros que ali viviam. - Anos atrás, nós pensamos assim e fomos atacados neste mesmo porto em que você está reclamando. – Godrik virou-se de costas para o amigo e se aproximou da beirada do cais. Ele sentia a brisa marítima entrar nas suas narinas, o sal causando comichão. O sol crescia cada vez mais, incólume e solitário no horizonte, trocando confidências com as águas calmas. Pequenas ondas começavam a se quebrar contra a madeira do cais. - Pelo menos poderíamos tentar deixar isso um pouco mais agitado do que está. – Touro propôs, parando do lado do amigo. - O que sugere? – Godrik olhou para o guerreiro ao seu lado, antevendo a resposta. - Uma batalha. – Touro respondeu, sorrindo. Godrik riu e se afastou, sem desviar os olhos de Touro, que o encarava, esperando qualquer movimentação para que o combate começasse. Como era de costume dos paladinos, eles sempre testavam suas táticas de guerra com os companheiros. O mais velho, neste caso Godrik, aproveitava para notar os movimentos e dizer algo sobre a qualidade do guerreiro. - Você nunca ganhou de mim, Touro. O que o faz pensar que ganhará desta vez? Touro não respondeu por palavras. Desembainhou a espada e correu os três metros que o separava de Godrik e atacou. Levantou a lâmina acima da cabeça desceu para acertar em cheio o crânio de seu companheiro. Godrik, de espada em mãos, se defendeu e respondeu com um chute na barriga de Touro, que foi pra trás. Ambos ficaram por um tempo a se encarar. Olhos nos olhos, e nada mais existia ali senão eles e o cais. Godrik manejou sua espada e a rodou rente ao seu corpo antes de girar e tentar golpear horizontalmente Touro, que pulou para trás e tentou estacar. - Essa foi boa. – disse Godrik ao desviar da lâmina pulando para o lado. - Estou treinando mais. – Touro falou, ofegante, enquanto levantava a espada para mais uma investida. O som de aço batendo contra aço era muito maior do que qualquer outro barulho por ali, até mesmo do que os cantos dos pássaros. As espadas retiniam, o cais tremia, os homens brigavam. Suor escorria das têmporas de cada um e caía nos olhos, fazendo com que ardessem mais do que nunca. Mas nenhum ali estava disposto a parar. Touro foi para mais um ataque, o peito queimando, e Godrik parou a espada em sua lâmina. Ambos ficaram por algum tempo disputando força e tentando descansar o máximo possível. Aquelas espadas
eram pesadas e difíceis de manusear, porém eles eram treinados nas artes de guerras pesadas. - Desista. – Touro disse. Ele era um dos mais fortes da Companhia de Paladinos. - Não. – Godrik respondeu. E num piscar de olhos, Touro estava no chão. - Rasteira não vale! – disse ele, levantando-se com a cara emburrada. - Diga isso numa batalha e matará seu inimigo de rir. – Godrik guardou a espada e riu. Estava rindo quando virou seus olhos para o mar, mas logo o sorriso que havia em seu rosto havia sumido. - O que houve? Cansou de rir da minha cara? – Touro dizia, enquanto se levantava. A armadura parecia estar mais pesada que antes. Apoiou-se em um joelho e fitou o amigo. Os olhos de Godrik estavam parados encarando o mar. Touro seguiu seu olhar e também ficou bestificado com o que via. Um galeão mercante estava a menos de vinte metros do porto. Ela era enorme e toda escurecida pelo tempo. Trazia um nome em seu casco. Porão dos Mares. - Toque a trombeta para que parem. – disse Godrik, empunhando sua espada. Até um tempo atrás, não havia sinais de nenhuma galé mercante, porém lá estava ela, tão próxima do porto que Touro sentia que podia até tocá-la. Suas velas eram imponentemente brancas, e balançavam suavemente ao toque do vento. O paladino puxou todo o fôlego que podia e o soltou em sua trombeta. Ahooooooo. Por favor, que recolham as velas e os remos. Por favor, que recolham as velas e os remos. Por favor... Era tudo o que Godrik pedia. Não queria guerrear naquele dia. E talvez, por ironia do destino, os Deuses haviam ouvido as preces do paladino. O navio recolheu as velas, jogou a âncora e retirou os remos. A água estava mais agitada também, o que aumentava ainda mais a desconfiança dos dois paladinos, de ombros colados um ao outro, protegendo o companheiro de qualquer ataque, que felizmente não veio a acontecer. Depois de um longo tempo de espera, um barco caiu no mar, e dentro dele cerca de cinco homens. Godrik guardou sua espada, mas continuou com a mão esquerda pousada sobre o cabo. Touro também esperava que eles se comunicassem. O pequeno barco vinha vagarosamente, os remos levantando e descendo nas águas salgadas do Fosso. Quando estavam a cinco metros de distância do cais, um rapaz magrelo e mirrado sorriu e disse: - Ahoe! Como vão companheiros paladinos? - Olá mercante. De onde são e o que trazem? – perguntou Godrik. - Somos do Vale Salgado. Trazemos azeites, salsinha, pêssegos e pimenta-doreino. – respondeu o homenzinho. Vale Salgado ficava mais ao sul das Ilhas. Era um lugar horrível para se produzir qualquer tipo de alimento. O solo era infértil logo depois do maremoto que devastou a região e tornou toda a região salubre. Mais um dos atos terríveis de criaturas como Mallak. E aquilo fez com que algo alertasse Godrik de encrenca. Seu dedo polegar pressionou o cabo da lâmina, e ela saiu alguns centímetros de sua bainha. Ele
encarou Touro, que havia entendido a mesma coisa. É impossível criar alguma coisa no Vale Salgado. Os homens jogaram suas cordas e as amarraram no cais. Desceram um por um. O primeiro foi o mirrado mercante. Ele possuía olhos vesgos e uma barba rala que lhe dava a aparência de quem não tomava banho há décadas. Ao seu lado estava um negro de músculos bem definidos e uma espada curva em sua cintura. Ele possuía uma tatuagem de um corvo de um lado de seu peito. Se parecem muito com piratas. Pensou Touro, desembainhando lentamente sua espada com a ponta do polegar. O homem mirrado notou o movimento e sorriu, seus dentes podres todos aparecendo. Aquilo era nojento, até mesmo para os paladinos acostumados a coisas piores. - Meu nome é Ananias. – disse o homenzinho. – Este é Passoforte. – Apontou para o negro musculoso de olhar carrancudo. – Estes outros são Pinga Mole, Saco de Aço e Olho de Vidro. - Piratas. – disse Godrik, mostrando sua espada completa. Passoforte também desembainhou a sua. - Sim, já fomos piratas. Uma vez! E deixamos isso de lado. – Ananias falou, sorrindo e abanando a mão enquanto explicava. – Hoje somos mercadores do Vale Salgado. - Não há maneiras de plantar nada em Vale Salgado. – Touro rebateu. - E quem disse que plantamos? Este carregamento é de Pedra Valente. Ainda que não sejamos piratas, trabalhamos por conta própria e cobramos por isso. Godrik encarou Ananias por um tempo, seus olhos estavam semicerrados, como se ele tentasse enxergar a alma do antigo pirata. Por algum motivo, não confiava naqueles homens. Seria mais fácil para nós se matássemos estes cinco e depois fizéssemos uma vistoria no navio. - Ainda não acreditam em nós? – Pinga Mole, um gordo com óculos fundo de garrafa perguntou, sua voz era esganiçada, como se cada palavra era um desafio. - Sinceramente, não acredito em nada do que vocês disseram. – Touro disse. E também desembainhou a espada. Passoforte grunhiu e se aproximou pronto para o ataque, mas Ananias interveio. - SEM BRIGAS! - Deem o fora deste cais antes que percamos a paciência, piratas. – Godrik estava bem mais nervoso do que Touro estava acostumado a ver. - Escute aqui, paladino. – Ananias também parecia estar ficando irritado com aquela situação, mas seu tamanho não passava nenhum medo aos paladinos. – Estamos com aquele navio cheio de especiarias que vão estragar se fizermos mais uma viagem com elas. E logo que voltarmos, teremos ouro e prata esperando por nós, a menos que entreguemos o carregamento. O que podemos fazer? Queria saber Godrik. Ao mesmo tempo em que não acreditava naqueles homens, sentia quase como se os conhecesse. Ele olhou para Touro e notou que seu amigo pensava na mesma pergunta que ele. - Para onde o alimento será enviado? – perguntou finalmente. - Ao vilarejo de Gars. – respondeu Saco de Aço, recebendo um olhar de afronta de Ananias.
Durante um tempo os dois paladinos encararam os antigos piratas, sem nada para dizer. Godrik lançou um olhar para Touro e acenou para um canto mais afastado. Precisavam conversar à sós. Touro meneou para os homens e saiu, o cais ainda rangendo e suas botas tilintando. - Não confio nestes homens. – disse Godrik, olhando de soslaio para Ananias e Passoforte. - Muito menos eu. Mas e se estiverem dizendo a verdade? – Touro trocou a base de um pé para o outro, e embainhou a espada. O leve raspar de aço cortou o ar. – Além do mais, Gars fica próximo ao nosso reino. Não haverá problemas. Godrik pensou por um instante, ouvindo a brisa suave tocando os galhos das árvores logo atrás, tão densas que cobriam quase toda a trilha que os levava de volta ao reino. - E então? – a voz de Ananias se levantou, acima de qualquer outro ruído. Touro sacudiu a cabeça e se aproximou do pequeno pirata. Godrik o seguiu. - Estão liberados, apenas para desembarcar os alimentos. Acompanharemos a entrega. - Que seja. – Ananias deu de ombros. O pequeno pirata andou até a beira do cais e assobiou. Logo vários barcos começaram a despencar nas águas, carregando pesados caixotes, cheios de especiarias. Godrik e Touro acompanhavam a tudo, olhando hora ou outra para Passoforte, esperando qualquer movimento precipitado do pirata. - Quais notícias trazem? – perguntou Touro, quebrando o silêncio incômodo do cais. - Dizem que a Frota de Vento foi destruída. – Ananias contou. – Os mercadores da Ilha Leste disseram que é possível ver seus cascos ainda pairando na água. – Seu tom de voz estava carregado de misticismo, mas parte dele também parecia estar sendo irônico. - Guerra naval? – Godrik perguntou. O primeiro barco com a primeira caixa chegou. Não pode ser verdade, não pode. - Dizem que foi algo pior. – Olho de Vidro olhou para o paladino, apenas seu olho verdadeiro se movimentou e o encarou. O outro ficou parado em sua órbita, a enxergar o nada. - Falam sobre krakens e serpentes marinhas gigantes. – completou Saco de Aço. - Quão gigantes? – foi Touro quem se pronunciou agora. Dois homens traziam nos braços a grande caixa. - Gigantes o suficiente para enrolar uma caravela três vezes. – Ananias falou, sorrindo. Mais um barco havia chego. E a caixa era bem maior. Touro lançou um olhar para Godrik, tentando encontrar nos olhos do companheiro algum motivo para que também desconfiasse da veracidade dos fatos. Infelizmente não achou. Então sua mente vagou pela notícia de que a Frota de Vento havia sido devastada. Aquela companhia de guerra era uma das maiores que já chegaram a navegar juntas pelo Mar Pleno. Trirremes, Galeões, Dracares, dentre outros navios mais poderosos formavam a Frota de Vento. Eram como os Paladinos das Terras de Solaris. E Touro sabia que se eles realmente houvessem caído, os portos ficariam sem defesas. Já para Godrik, a notícia era um pouco mais particular. Seu irmão, Feanor, fazia parte da Frota, e se as fontes fossem realmente confiáveis, não houveram
sobreviventes. As criaturas malignas dos mares, criadas e enviadas das Terras do Necromante, não deixavam ninguém vivo para contar a história. Destruíam as embarcações, todas elas, e comiam os cadáveres afogados, até mesmo de quem ainda estava vivo. Godrik olhou para o horizonte, para além da galé. Viu o sol e esperou pode ver seu irmão com seu navio intacto. Naquele momento, era o que ele mais queria. Entraria no mar, se aquele lugar não fosse amaldiçoado para os paladinos. Meu querido irmão. Que Tssaf, senhor dos mares, cuide de você. Rogou ele. Sentiu a brisa marítima brincar com seus cabelos. Uma lágrima desceu pelo seu rosto. Com o canto dos olhos ele viu mais um barco chegar com uma caixa, menor que as anteriores. - Bom, com a última das cargas entregues, o nosso caminho agora será mais longo e cansativo. – Ananias falou, sorrindo desbocado. - Eu os acompanharei. – disse Godrik, voltando-se para falar com os antigos piratas. – Touro, fique aqui e continue guardando o porto. Touro poupou saliva, acenando positivamente com a cabeça e em seguida cumprimentando seu comandante. Godrik tinha um aperto de mão forte, mas nem toda a sua força podia esconder os olhos avermelhados e o rastro de uma lágrima incômoda que deslizou pela sua bochecha. Não sabia por que o paladino chorava, e não achou bom perguntar. Um homem com coração de pedra teria que ter excelentes motivos para que derramasse uma gota sequer. O vento trazia a maresia, e o sol cozia os paladinos enfurnados em suas armaduras pesadas. Já os marinheiros já estavam mais tranquilos, com vestes esfarrapadas leves. No momento de erguer os caixotes, Passoforte foi quem pegou o mais pesado. Seus músculos definidos trabalhavam em conjunto para erguer a caixa cheia de especiarias. Os outros carregavam de dois em dois. O único que não chegou a se esforçar foi Ananias, que dava as ordens. - Eu poderia realmente esperar no meu navio o regresso dos meus marinheiros, mas eles são tão burros quanto uma porta. Portanto mostrarei o caminho antes que se confundam. - Será rápido. Um pouco mais pra frente, no meio destas árvores, há algumas carroças. Escondemos para a proteção de alguns comerciantes e para nossa própria proteção. – Touro falou tão sério quanto podia. Um silêncio se abateu naquele caís logo depois disso. Touro desejou boa sorte para seu companheiro e comandante e voltou a olhar para as ondas, onde em algum lugar krakens e serpentes marinhas estavam aterrorizando frotas e destruindo vidas. Depois de alguns minutos, transpondo os limites do caís e atingindo a floresta densa, Godrik mostrou a localização das carroças. Eram novas, não pareciam sofrer com a intempérie, nem mesmo rangiam. Logo mais ao lado, cavalos fortes descansavam sob as sombras de uma macieira, comendo capim e exercitando as pernas o máximo que podiam. - Ótimo, achei que nós teríamos que servir como burros de carga. Hahaha! – Ananias falou, apontando para a carroça, onde as caixas eram depositadas. Eram, no total, cinco carroças e dez cavalos, o suficiente para levar toda a carga. Agora, o cheiro salgado da brisa marítima ficava para trás, dando espaço para um odor mais silvestre. Pardais revoavam, papagaios observavam dos galhos frondosos da macieira.
- Olha, Ananias. – disse Olho de Vidro. – Papagaios. Todo pirata tem um. Ananias aplicou um safanão em seu subordinado e sussurrou algumas coisas, não deixando de transpor toda a sua raiva. Talvez Olho de Vidro tenha falado algo que não deveria. Godrik estava totalmente certo disso. Ainda não podia acreditar de maneira alguma que aqueles homens haviam deixado de ser piratas para seguir a carreira de mercenários mercantes. Uma vez pirata sempre pirata. Passoforte arrumava as carroças, colocando de maneira bem organizada cada caixa. Enquanto isso, Godrik trazia os cavalos. Nenhum dos equinos resistiu ao ser puxado pelas rédeas. Eram animais treinados e fortes, prontos para percorrer longas distâncias em poucas horas. O paladino ainda esperava voltar para o caís no fim da tarde. O vilarejo de Gars, conhecido assim por ficar próximo ao reino de Garssek, não era tão longe do caís. Uma hora ou duas, dependendo de como estaria a estrada. Não eram relatados saques por aquelas redondezas havia tempo, mas era sempre bom ficar de olhos bem abertos. Godrik seguiria ao lado da caravana em seu próprio cavalo. Um corcel preto que ele gostava de chamar de sombra. Gabava-se para seus companheiros paladinos de aquele ser o cavalo mais rápido da companhia. E de fato era mesmo. E aquele animal nunca cansava. Podia percorrer distâncias incríveis, mas nunca cansava. Sempre num mesmo ritmo. Os fracos raios solares passavam entre as folhas das árvores e dava alguns pontos luminosos naquela floresta densa. A trilha era quase imperceptível, há muito tampada pela relva. Godrik viu com o canto dos olhos uma cobra coral se arrastar para longe dos visitantes inesperados. - Andem logo com isso! – gritou Ananias. - Ananias, se me permite a pergunta... – começou Godrik, olhando de cima para o rapaz mirrado. – Por que deixou para trás sua vida de pirataria? Ananias olhou-o, como se estivesse retornando ao mundo somente naquele momento. Demorou um tempo para responder. Chutava insistentemente as pedras que se interpunham na trilha. - Acho que encontrei a redenção. – começou. Quando Godrik pensou que não ele não falaria mais nada, Ananias continuou – Acredita em redenção? - Não. – o paladino respondeu. - Pois acredite. Arrependi-me de todas as vidas que matei. Aquele não era eu. Matava por prazer e estuprava todas as mulheres que eu via pela frente. Era um maldito. Não me arrependo do ouro que roubei, das mercadorias que saqueei. Mas me arrependo por ter assassinado tantas vidas inocentes. - Seu amigo grandalhão não parece ter se arrependido de assassinar. - Passoforte? Ele é um guerreiro feroz, mas não tem coração. Uma maldição dada pelas próprias mãos do Necromante. Ele não amará nunca mais. E em compensação, é burro como uma porta. Godrik olhou para o guerreiro à sua frente. Realmente ele possuía uma cicatriz que cortava seu peito de um mamilo até metade do abdome. Seus olhos eram duros e sua feição era de raiva e dor. E desprezo. - Mas a menos que eu ordene, ele não atacará ninguém. Respeita-me mais do que qualquer um nesta terra. Não porque sou mal ou coisa do gênero, mas porque ele ainda possui uma única coisa na mente. Gratidão. - E o que você fez para ganhar a gratidão de um brutamontes daquele?
- Salvei-o. Levei-o embora quando ainda era jovem, e disso ele ainda não se esquece. Foi antes de perder o coração, mas ele ainda se lembrará até quando morrer. Apanhava dos pais como um cão condenado. Matei os dois. Fiz ele assistir. Deveria ser duro para um filho ver isso, mas ele dissera aquilo para mim. Olhou em meus olhos e falou “Mate meus pais!”. Não pude negar. – Havia verdade no tom de voz de Ananias. Ele olhava constantemente para a trilha. Em breve já poderiam prosseguir. – Cortei a cabeça do velho e joguei-a pela janela. Passoforte, no auge de seus dez anos, gritou de euforia. A mão estava encurralada, olhando com escárnio para o filho. “MALDITO!” Ela gritou. Perguntei a ele o que queria que eu fizesse com a velhota das tetas caídas e ele não tardou a responder: “Prenda-a aqui e ateie fogo na casa.”. - E assim você fez, devo supor. – Godrik olhou com certa repugnância para Ananias. Um homem tão pequeno e capaz de tamanha crueldade. - Mas é claro! Ainda lembro-me dos gritos dela. “VERME! CRIA DOS INFERNOS!” Incrível como os xingamentos logo se transformaram em berros de dor. Ela implorava para que eu cortasse logo a garganta dela. Mas eu não o fiz. Vi nos olhos de Passoforte o quanto ele estava gostando daquilo. No fim das contas, ele era um bom garoto. - Chefe, - Saco de Aço se aproximou, cortando o assunto. – Estamos prontos para ir. - Ótimo. Vamos acabar logo com isso, Sir Godrik. Ponham esta carroça em movimento! – Ananias gritou, subindo logo em seguida na primeira carroça, ao lado de seu companheiro Passoforte. Godrik já vinha sentindo desde quando saíra daquele porto. Não ia gostar nem um pouco daquela viagem. Uma vez piratas sempre piratas.
Edson “Shadow” Junior tem 17 anos de idade e é escritor amador desde os 12, período onde descobriu a leitura e a escrita. Desde então não parou mais de escrever, sempre criando novos universos e boas histórias. É membro do grupo Universo Nova Frequência há dois anos. Participou do primeiro e-book do grupo, Frequência Z, escrevendo pela primeira vez algo com fundo de terror. Possui o pseudônimo de Shadow Warrior, por onde é conhecido nos demais fóruns. No momento está na produção de um livro e já tem mais dois na fila, com histórias inéditas.