Leviatã #01

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Leviatã Capítulo 1 Escuridão. Talvez a mais profunda que toda a cidade de São Paulo já havia visto em seus tantos anos de vida. A lua estava encoberta pelas pesadas nuvens que se moviam preguiçosas no topo do mundo, numa espécie de marcha forçada para um destino tão longínquo quanto o mais impossível sonho. Um cigarro foi aceso em frente à 2ª Delegacia da Mulher do Estado de São Paulo. Dois policiais, um gordo e outro suficientemente magro para entrar em um quadro avançado de anorexia, estavam encostados em uma viatura. Pareciam conversar apenas para passar o tempo, nada mais. A cada dez segundos que se passavam, cerca de dez mulheres sofriam de abusos em todo o Brasil, mas mesmo assim eles não pareciam realmente se importar. E se importar com o que? Não haviam chamados, como então poderiam adivinhar que uma moça indefesa qualquer estivesse sofrendo severos ferimentos por todo o corpo? Era impossível para eles, porém para os olhos que os analisava de cima, era tudo parte da mais profunda preguiça de dois policiais corruptos e inúteis para a sociedade. Mas os olhos que os enxergava de cima mantinha sua atenção presa somente a eles e à conversa que se desenrolava vagarosamente. - Estou falando, o cara acabou com a cara dela e da criança. – sussurrou o mais gordo, dando uma tragada no cigarro. Um fio de fumaça praticamente imperceptível a olho nu subiu até se dissipar com o vento frio da noite. - A Marisa sabe disso? – perguntou o mais magro. - Com certeza não! Se a delegada ficasse sabendo disso, teria fodido com o esquema. – o gordo tinha uma mania que os olhos-que-os-enxergava-de-cima odiava. Suas mãos pareciam estar vivas, não podendo se conter ao lado do corpo. Mas realmente não era aquilo que havia despertado a atenção do vigilante. - E que esquema é esse, cara? – o magricelo perguntou. É um laranja prestes a ser corrompido. Pensou os olhos-que-os-enxergava-de-cima. Novamente as mãos nervosas. - Seguinte. A vadia é uma puta mesmo. Acontece que o bebê veio uns anos atrás aí. Ela decidiu parar, mas o marido dela que na verdade é o patrão, não quer nem saber de perder o seu principal investimento. Sem ele, o cara não paga a gente e não podemos fingir de cegos quanto ao tráfico de drogas que ele também faz. Simples assim, uma mão lava a outra. E por outro lado, a criança pode vir a ser parte do investimento também. - Fala em pedofilia?


- Bem, eu estava pensando em aviãozinho, mas esse pode ser também... Não seria má ideia. Mas que maldito. Pensou consigo mesmo o vigia. Já sabia qual seria o seu primeiro trabalho. Agora só tinha de esperar o momento certo para agir. Em sua primeira noite de patrulha, ele sentia seu estômago revirar dentro de sua barriga. Sentia a saliva se acumular em quantidade significativa em sua boca e parecia que iria vomitar a qualquer momento. Seus músculos estavam tensos e seus sentidos mais aguçados do que nunca. O gordo ficou sozinho cerca de meia hora depois e cerca de seis cigarros também. O ar noturno era quebrado pelas suas tosses repentinas de um viciado que tem seus pulmões em estado de putrefação. Ótimo. Pensou o vigilante. Agora ele prestava atenção a cada movimento daquele saco de banhas que parecia não ter força o suficiente para se manter em pé e tinha de ficar apoiado em sua viatura. A rua estava deserta. Certamente aquele seria um excelente momento para agir, não fosse pelas câmeras de segurança que ficavam na frente da delegacia. Precisava atrair a atenção do rotundo para longe dali, de uma maneira ou de outra. De repente, um lampejo surgiu em sua mente e uma ideia floresceu como uma rosa em um deserto. De onde estava, no terraço de um sobrado ao lado da própria delegacia, ele podia ver um beco escuro, que servia de garagem dos oficiais para seus carros utilitários. Ali seria perfeito. *** Getúlio, ou Sargento Getúlio, apreciava o último cigarro de seu maço, vendo a fumaça se erguer em um filete e sumir pela escuridão. Podia sentir o forte calor que corria em seu peito e o gosto de menta que circulava em sua boca. Ah, como aquilo o acalmava. Em breve estaria nas ruas, procurando um desgraçado em quem botar a culpa de suas contas atrasadas e da foda que não havia dado com sua mulher ainda naquela noite e que provavelmente não iria dar. Isso pelo menos ele dizia por si mesmo, pois ainda acreditava que sua mulher estava naquele exato momento sobre o tal de Ricardão e dizendo em voz alta o quão corno ele era. Ainda não acreditava em como havia vindo parar naquela maldita delegacia de mulheres! Desde quando mulheres mereciam delegacia? Afinal, apanhar do marido servia como um ressalto de quem mandava ali no pedaço, e certamente não eram elas. Mas enfim, naquela noite, do jeito que ele estava puto, algum garoto iria pagar pelos seus problemas. Iria enquadrar qualquer um, até mesmo aqueles meninos que saem com as bíblias de baixo do braço, retornando de um culto abençoado, amém. E que Deus o perdoasse se este moleque maldito não estivesse com um baita


carregamento de droga dentro do Livro Sagrado. Afinal, na Rocinha tudo era possível, e as coisas piores eram mais possíveis ainda. Agora só tinha de esperar o seu companheiro Guilherme, ou Soldado Guilherme, terminar de tomar o seu cafezinho próximo da mesa do comandante, para dar aquela puxada nas bolas dele e ver se conseguia um cargo melhor. Tirando o fato de que o soldado era um merda completo, Getúlio se sentia como aquele preto ator, Denzel Washington, em Dia de Treinamento. Preparando um maldito de um mauricinho que nunca havia visto a maldita desgraça da maldita rua da maldita cidade de São Paulo. E que ele se fodesse se não se enturmasse com o verdadeiro sistema. Descobriria que naquela cidade não havia BOPE e muito menos Capitão Nascimento para ditar as regras e dizer quem era o certo ou o errado. Havia apenas o sistema, e como o próprio Wagner Moura dizia: O sistema é foda. Tragou mais uma vez o seu cigarro e olhou pela rua. Completamente vazia, exceto pelos carros que corriam do outro lado da avenida. Queria já estar ali no meio, a caminho de sua casa, e se deitar com sua mulher e fingir que não sentia a galhada aumentando mais e mais em sua cabeça. Calmo e com a respiração tranquila, ele fechou os olhos e inspirou o ar imundo da noite. E de repente um som cortou o seu barato. Era o alarme de um carro que vinha ali do beco dos oficiais. - Filho da puta de gato safado. – disse ele, avançando com uma das mãos na arma, já abrindo o coldre, pronto para atirar no maldito bichano... E se não fosse um gato? Neste exato momento ele puxou sua Beretta 9mm. e encostou-se na parede da entrada do beco. O alarme permanecia alto. – Porra, vou ganhar uma baita promoção se eu matar um desgraçado tentando roubar o carro do comandante... Ah se vou. E se virou para o beco, a arma em punho mirando desajeitado para todos os vãos daquele lugar escuro e silencioso, quebrado apenas pelo som ritmado do maldito alarme. Sentia o coração bater mais forte e as pernas fraquejarem. Merda, como ele se sentia impotente ali, sozinho. Se pelo menos Guilherme estivesse ali, ele teria tomado mais coragem e dado uma de herói. Mas não havia ninguém ali para ele impressionar. E talvez fosse pela sua lerdeza e sua falta de prática que ele não viu um vulto negro se aproximar de suas costas. *** Ele lançou uma pedra do terraço sobre o teto de um carro preto. O alarme disparou com toda a força, cortando o ar como se fosse navalha, o silêncio sendo quebrado como um vidro frágil. O vigilante prendeu a respiração sem perceber, olhando para baixo e vendo que o gordo se aproximava com uma das mãos sobre a arma, em passos cautelosos de um medroso.


E então de repente ele a sacou, como se tivesse pensado na possibilidade de um assaltante estar ali, esperando para atacá-lo sem dó nem piedade. E ele estaria certo, exceto pelo fato de aquele a lhe conferir cada passo não era um ladrão, mas sim um inimigo profundo daquele tipo de gente. Ouviu-o dizer algo sobre promoção e não pôde deixar de sorrir por baixo de sua máscara. Sim, uma máscara de hóquei modificada. Não possuía os furos iguais à máscara do Jason Vorhees, e muito menos a sua parte traseira era destampada. Não, ela cobria sua cabeça inteira, até a parte superior de sua nuca. A máscara era completamente lisa, exceto pelo baixo relevo em formato de “V” onde seria o nariz e sobe até o topo da cabeça. O buraco para os olhos eram cobertos por lentes grossas e aquilo que parecia ser uma boca estava curvada para baixo, numa aparência de mais profunda tristeza. Nos dois cantos periféricos de sua “boca” havia duas espécies de círculos que pareciam poder ser girados como um boneco a quem se dá corda. E ela toda era negra com detalhes dourados em volta dos olhos e na linha fina que era sua boca. E ainda havia o sobretudo a lhe cobrir o corpo. Por baixo dele usava uma calça de moletom das Forças Especiais, uma camuflagem urbana. E uma camisa negra sem qualquer estampa. Logo abaixo, havia um colete Kevlar que ele esperava não ter de precisar tão cedo. Haviam itens por baixo de seu sobretudo, mas que não eram possíveis de serem discernidos. E havia também o coturno amarrado na altura de sua canela. Uma figura bem amedrontadora. Como num filme, o gordo encostou-se à parede de entrada do beco. O vigilante apenas o observava, esperando o momento certo para agir. Agora o maldito estava armado, e aquilo era um problema. Nem mesmo o colete kevlar por baixo de sua camisa podia salvá-lo sempre. O rotundo virou-se como um policial profissional em mais um daqueles filmes de ação e começou novamente a andar com passos curtos para dentro do beco. Era agora. Tinha de ser. Com a habilidade de um gatuno ou de um profissional no parkour, ele desceu do terraço do sobrado até o chão do beco, há seis metros de altura. E caiu em silêncio, seu sobretudo esvoaçando, mas não emitindo nenhum ruído que se sobrepusesse ao som do alarme, que já começava a irritar o seu ouvido. O gordo não o viu se aproximar. Mantinha sua total atenção nos carros mais à frente. - Estou armado! – gritou ele, numa voz que parecia relutante em sair. - Eu sei. – sussurrou o vigilante em seus ouvidos. Um choque pareceu correr o corpo do policial à sua frente. No momento não houve reação. O vigia esperou até que ele se virasse. Sua forma estava oculta pelas sombras da delegacia e do sobradinho ao lado. Com uma velocidade repentina adquirida apenas pelo medo, o policial se virou com o braço direito estendido, pronto para mirar a sua arma para a cabeça do vigilante, que já havia previsto o movimento. Em defesa, ele ergueu sua mão e


segurou o braço flácido do homem gordo. Em seguida torceu-o com uma técnica especial para desarmar o oponente. A arma caiu no chão e nem sequer disparou. O maldito não sabia nem mesmo destravar uma arma. Com um grito de dor a lhe escapar da garganta, o policial caiu no chão, ainda com a mão rendida a ser segurada, inútil. O vigilante viu sua identificação: Getúlio. - Olá, Getúlio. – disse ele com uma voz tão fria que era capaz de congelar a espinha de qualquer pessoa que tivesse o nome sujo. O alarme do carro parou. - Por favor! Eu não fiz nada! Eu juro! – gritou ele, em meio a soluços de um choro que o vigilante gostaria e muito de ver. Cães sarnentos como aquele mereciam estar ali onde aquele estava, aos seus pés, pagando o preço por seus atos pútridos contra a Justiça, abusando de pessoas bondosas que não podiam revidar. - Oh, como você é santo! – o vigilante disse com um tom irônico. O gordo não podia ver, mas havia um sorriso em sua face naquele momento, por baixo da máscara. – Então eu acho que deve morrer antes que faça alguma coisa. – completou, aproximando ainda mais a sua face da de Getúlio e apertando sua mão com mais força ainda. Sentiu os ossos estalarem. O policial mais uma vez guinchou de dor. Se aquele barulho continuasse, em breve haveriam outros policiais por ali. - O que você quer? Me fala! – gritou ele. O vigilante gostou quando notou o pânico real tomando conta do corpo de seu oponente. Ah, como queria matá-lo ali mesmo, mas ainda precisava dele. - Quero a localização do filho da puta que você acabou de falar para o seu amiguinho. O desgraçado que arrebentou a mulher e a criança. – o vigilante não precisava nem mesmo erguer a voz. Acreditava que o povo temia quem falava baixo. E parecia ser realmente verdade aquilo. - Quem? Eu não conheço esse cara! Nem sei de quem você ta falan... AAH! Minha mão! – ele gritou assim que os ossos que restavam em sua mão se quebraram com a pressão. O vigilante largou o membro inútil e aplicou um potente soco na face do policial corrupto. Getúlio pareceu apagar por um momento, mas tornou a tentar se erguer com apenas uma mão de apoio. - Não minta pra mim, seu verme! Diga onde ele mora e talvez eu poupe a sua vida. – e mais um soco, e outro, sangue espirrou na parede próxima de onde eles estavam. Getúlio parecia prestes a perder a consciência, mas continuava a tentar olhar para o seu agressor. - O cafetão? Henrique? – ele perguntou. - Sim. – o vigilante respondeu, fechando os punhos com força. Quero matá-lo. Vou matá-lo. Não! Você não vai matá-lo. Ah se vou. Estou dizendo que não.


A sombra de dúvida que antes passava pela mente de Getúlio pareceu desanuviar. Ele encarou o vigilante e sorriu, alguns dentes agora faltando e que podiam ser encontrados no chão. Pequenos pontos brancos pontuando o lugar totalmente escuro. - Ah sim. O cafetão. – o policial passou sua localização para o vigilante, esperando assim que ele ficasse finalmente em paz. - Se estiver mentindo, eu volto e termino serviço. – alertou. - Não estou. Pode confiar. – Getúlio falou, com total inocência. - Jamais. – o vigilante já ia se virando e o policial começava a se levantar, sentindo uma dor latente em sua mão. Então a figura escura voltou e disse: - Aliás. Diga aos seus companheiros que o Leviatã vai atrás deles. - O que? – perguntou o corrupto, mas não teve chance de entender mais nada. Com total violência, o vigilante que se proclamava Leviatã agarrou sua cabeça e a chocou contra a parede três vezes. Tudo ficou escuro na mente de Gregório, apagado no meio daquela viela estreita. Não estava morto, mas teria sequelas. O Leviatã nem sequer se importava com isso. Alguns minutos mais tarde, quando os policiais finalmente saíssem de sua hibernação para ver os gritos que estavam acontecendo ali ao lado, encontrariam o corpo de seu amigo com um dano grave no crânio, com sangue a se romper por vários ferimentos, inclusive das orelhas e do nariz. Não estava morto, apenas fora de jogo, do modo que o vigilante queria. - Mas que porra é essa? – perguntou-se Guilherme, com um copo de café ainda quente em suas mãos. Ele olhou para cima, na esperança de ver o atacante de seu companheiro Getúlio, mas não havia nada ali senão a sombra daquele sobradinho. Finas gotas de chuva começaram a se desprender das nuvens, lavando ali todo o sangue impuro daquele maldito corrupto deitado, sendo atendido por seus companheiros. - Quem fez isso não pode estar longe. Vamos procurá-lo. – disse um tenente. Os soldados acenaram positivamente. Mas de nada valeria aquele esforço. O Leviatã já estava longe, indo em direção a mais um covarde. Durante o percurso que tinha de percorrer a pé, ele pôde deixar a adrenalina baixar aos poucos em seu sangue. Andava encostado às paredes, onde as sombras se atenuavam naquela noite chuvosa. Os pingos eram gelados e nem mesmo o seu sobretudo de couro escurecido podia evitar que suas roupas se encharcassem. Preciso de um automóvel, e rápido. Ah, como eram fáceis as coisas nos quadrinhos. Não precisava se preocupar com o meio de locomoção de um super-herói, pois de alguma maneira ele estaria lá o mais rápido possível. Antes mesmo de o Batman ter o seu Batmóvel, ele chegava com classe e acabava com os bandidos. Ninguém sequer se importava em como ele havia chego ali.


O percurso era longo, mas serviu para lhe lavar a alma e acalmar-se diante do fim de seu primeiro dia de trabalho. Em algum lugar da Zona Leste um desgraçado covarde estava abusando de sua mulher e de sua criança, que Leviatã não fazia a mínima ideia de quantos anos ela teria. E isso importava? Não, claro que não. O julgamento já havia sido feito. Ele só esperava agora que as vozes em sua cabeça, as duas benditas vozes que funcionavam como o anjinho e o diabinho, dessem o seu melhor veredicto. Três quartos de hora depois, ele estava lá, parado em frente a um portão de ferro comido pela ferrugem e um muro cor-de-rosa. Estranho, ele usa a cor mais feminista para pintar o seu muro. Pensou o Leviatã, do outro lado da rua, sentindo as gotas de chuva penetrarem em sua máscara de lã. O vento frio agora o fazia congelar, mas o vigilante não se importava com isso. Seu sangue estava quente, pronto para pegar o maldito dentro daquela casa. Atravessou a rua deserta. Abriu o seu sobretudo e retirou dali dois socoingleses. Colocou-os em suas mãos gélidas e por cima calçou suas luvas novamente. Agora ele estava preparado. A casa ficava no final de uma descida íngreme de cimento e grama, em algumas partes. Um carro estava numa garagem improvisada com pedaços de calhas, e um Ford Scort 1986 tomava um banho que lhe parecia ter sido negado por anos. O portão estava fechado e o muro possuía fios de arame farpado e cacos de vidro. Como se isso fosse impedir o derradeiro fim do covarde. - Retardar sim, mas impedir jamais. – sussurrou Leviatã, abrindo mais uma vez o seu sobretudo e retirando dali uma espécie de tesoura afilada na ponta. Subiu no portão com o máximo de silêncio, sentindo o metal ranger sob o seu peso. Encontrou o arame farpado a alguns centímetros de seu rosto e o quebrou com a tesoura. Em pouco tempo, já estava tudo em condições para que ele passasse sem se machucar. Realmente, a vida de um vigilante não era nada fácil. Assim que pulou o portão, viu a luz de uma das janelas se acenderem. Com a rapidez de um felino, Leviatã pulou para o lado, para a cobertura do muro e ficou ali, em silêncio. Ouviu vozes que pareciam ser do homem e da mulher. Ele gritava com ela. - Não é porque está chovendo que você vai deixar de trazer dinheiro pra casa. – dizia ele. - Mas o Lucas está doente! Por favor, me deixa ficar aqui com ele pelo menos essa noite. – havia um toque de desespero e choro na voz daquela mulher. Aquilo só serviu para florescer ainda mais o ódio que vinha sentindo. - Eu quero que o seu moleque se fôda. E é melhor limpar essa porra de lágrima da cara e ficar feliz, porque se o cliente reclamar tu vai levar uma surra como nunca levou, ta me entendendo? - Por favor Mauro! Não faz isso comigo! O Lucas só tem três anos! Ele precisa de cuidados! Me deixa ficar com ele.


Um tapa. Um grito. Um choro de sentimento ferido. Outro ataque do covarde. Leviatã podia ver suas sombras se movendo por trás de uma cortina suja como a de um Motel barato. E talvez realmente aquilo fosse um motel barato para desgraçados covardes. - Não me bate, por favor! – ela gritou em meio aos soluços. Outro tapa seguido daquilo que parecia um chute. A mulher parecia agora estar com dificuldades de respirar, buscando o ar da maneira que um bebê busca a sua chupeta. - Não te bater, Bianca querida? Eu vou te bater sim! Cadela! – outro chute, um soco, um tapa. Gritos e mais gritos. O choro de uma criança cruzando aquele espaço de judiação. Leviatã não suportava mais. Iria agir. Correu a distância inclinada que o levava até a porta da casa que ficava ao lado do carro. Sentia o fogo tomar-lhe o corpo todo. A raiva tornava a sua visão enegrecida. Uma força brotava de seu interior e ele sentia uma vontade imensa de extravasá-la na face daquele desgraçado. E mesmo correndo, não era possível ouvir os seus movimentos. Chegou à porta. Ouvia os socos e pontapés ainda com mais clareza. Com o ombro esquerdo, ele arrombou a entrada. Lascas de madeira daquela porta velha voaram pela sala de estar. Os olhos de um covarde fitaram-no com desespero e surpresa. O desgraçado estava preparado para dar mais um soco na face de sua própria esposa, da mulher que ele deveria amar até o fim de sua vida. - Mas que porra...! – gritou ele, virando-se para o Leviatã. O vigilante não esperou mais. Avançou em direção a ele. O homem era grande e bem forte, mas nem mesmo o cara mais forte do mundo poderia aguentar a fúria daquele mascarado correndo para acabar com aquele covarde e seu ato de mais profundo desprezo. Leviatã pulou em direção àquele que deveria ser Henrique (o nome viera à sua mente somente naquele momento) e seus corpos voaram em direção ao corredor que levava ao quarto do casal. Os dois caíram com um forte estrondo no chão. O vigilante se ergueu ainda montado sobre ele e desferiu dois potentes socos na face do brutamonte. Quando os soco-ingleses tocaram a face do covarde, sangue começou a se desprender dos ferimentos. Henrique urrou de ódio e agarrou uma das mãos do mascarado e em seguida segurou o seu pescoço. O aperto fora tão forte que o Leviatã sentia sua visão começar a anuviar. O cara era forte, ele tinha de admitir. Ele já começava a sentir a falta de ar e novamente o seu corpo começava a lutar contra a vontade de apagar. A dormência nos braços e pernas. O que iria fazer agora? Com uma força descomunal, o cafetão jogou Leviatã longe. A televisão e a estante onde ficava se quebraram com o peso do vigilante. Henrique começou a se colocar de pé e o mascarado tentava recompor-se. Sentia fortes dores nas costas e na cabeça. A visão começava a voltar ao normal e seus sentidos também. Antes que


pudesse fazer qualquer coisa contra, ele foi atingido pelo que parecia ter sido um trem em alta velocidade, mas que se revelarem sendo apenas a investida de Henrique. Leviatã passou pela porta e entrou pela janela do carro. Novamente a dor em seu corpo todo, agora com cacos de vidro penetrados em sua pele das costas. Ele estava dentro do carro, deitado sobre o banco dos passageiros, tentando novamente se levantar. Olhou pela janela e viu o covarde se aproximando com um sorriso triunfante e louco nos olhos. - Entra na minha casa e acha que pode foder com meu negócio? – ele perguntou, mas não esperava ouvir respostas. Sangue também saia de sua face, nos lugares onde o Leviatã havia lhe atingido. O mascarado foi pego pelos pés e foi puxado para fora do carro. Um caco de vidro estava na janela ainda, como uma defesa que se recusava a cair. Leviatã sentiu todo aquele pedaço entrar em sua perna assim que foi puxado. Soltou um gemido de dor e foi lançado novamente para dentro da casa. Mas o que esse cara usa? Ele se perguntou. A coisa toda estava fugindo de seu controle. Com dores profundas em todo o seu corpo, ele permaneceu deitado. Henrique caiu sobre ele como um touro, no meio de suas pernas. Aquele havia sido o seu erro. Pois por baixo daquela máscara, o Leviatã era um mestre em Jiu-Jitsu e MuayThai. E se um não lhe servia, o outro tinha de fazer a sua parte. Como uma cobra, ele puxou Henrique para a sua guarda, trancando o corpo do brutamonte no meio de suas pernas e fechando uma espécie de cadeado em suas costas. - Você só pode gostar de apanhar, não é possível. – disse Henrique, com um sorriso sádico no rosto. E deu mais socos potentes no mascarado, que se defendeu como pôde até o momento certo de agir. E então ela apareceu e ele, como um cão esperando que alguém lhe lançasse a bola, agarrou-se a essa oportunidade. O braço direito de Henrique se esticou para lhe dar mais um murro na face. Leviatã desviou-se para o lado e segurou o punho de seu adversário com a mão direita também. Em seguida, ainda segurando o braço, o vigilante saiu com seu quadril para fora do corpo do oponente e passou sua perna direita na face do covarde. Uma bela chave de braço que nem mesmo o cafetão poderia ter previsto. Com uma força repentina, Leviatã puxou o braço de Henrique para baixo e levantou o seu quadril. O covarde desgraçado gritou de dor e o vigilante sentiu os ossos e até mesmo o cotovelo cederem ante o peso. Agora aquele membro superior estava torcido num ângulo estranho. Leviatã ouviu a mulher gritar de pânico. Ou talvez fosse de alívio? Ele não saberia dizer. Agora tinha de terminar o seu trabalho. Henrique estava caído ao chão, segurando o braço quebrado em três lugares e com os olhos fechados, como se tentasse segurar a dor apenas não olhando para ela. O mascarado atacou novamente. Pulou por cima do desgraçado e atacou sua face várias vezes. Nem mesmo as dores


antigas puderam impedir o herói de fazer aquilo. Apenas a raiva o movia naquele momento. Havia dado mole, pegado leve achando que seria mais um imbecil como aquele policial maldito. E acabou vendo que não era bem aquilo. Vira que não devia subestimar o seu oponente, que também o subestimou. Uma bela lição que terminava ali, ao som de ossos se partindo na face do homem, de olhos virando apenas uma gelatina ante os socos potentes e dentes sendo engolidos. E nem mesmo por isso Leviatã parava de bater. O sangue já encharcava a sua mão, mas mesmo assim ele continuava a pontuar o rosto daquele filho da puta com seus punhos cada vez mais fortes. Não ouvia mais nada, nem mesmo os gritos da mulher pedindo a ele que parasse, que Henrique já havia pagado pelo seu erro ali. - Ele nunca vai pagar o suficiente. Este filho da puta. – gritou ele novamente e acertou mais uma sequência de socos, um deles acertando a garganta de Henrique. O cafetão engasgou e parecia que ia perder a consciência. Leviatã ergueu a sua face com a mão direita e murmurou: - Nem pense em dormir, seu desgraçado, pois eu ainda não terminei com você. Se acha bom para bater em mulheres? Hein? – mais um soco. – Hein? – outro. – É bom bater em mulheres, não é? Elas dificilmente revidam. – e outro e outro e outro. Henrique murmurou alguma coisa e Leviatã se aproximou para ouvir melhor, pois em sua mente as duas vozes gritavam enlouquecidas. Mate ele! Não mate ele! Mate! Não! MATE!!! NUNCA! - Me desculpa. – disse o desgraçado, em meio a soluços e espasmos de dor. Leviatã riu. - Não é pra mim que deve desculpas. - Me... Me mata. – sussurrou ele novamente. - Estou tentado a isso, seu desgraçado. Mas não vou fazê-lo. Deixarei para que o povo decida isso por mim. E mais um soco e o desgraçado apagou. Leviatã deixou que ele dormisse. Não precisaria mais dele por enquanto. E foi só quando ele parou que notou o quanto as suas mãos doíam. Seus braços também pareciam ter carregado toneladas sobre eles durante um longo tempo. Com tais dores, ele se aproximou da mulher, com profundas marcas de violência. Ela era jovem e muito bonita, não precisava passar por aquilo. A criança ainda gritava, mas Leviatã não foi lá acalmá-la. - Você está bem? – ele perguntou com uma voz tão calma e serena que nem parecia ser sua de verdade. A mulher olhou-o com espanto. - Quem é você?


- Me chamo Leviatã. – respondeu ele. - O mesmo nome do demônio... - Sim... E não. Leviatã é o xerife dos mares. É aquele que protege os peixes menores dos maiores e opressores. Este é o significado de meu nome. A mulher fez como quem tinha entendido e exibiu um meio sorriso, nervosa. - Ele uma hora vai acordar. – disse ela, agora com medo e olhando para Henrique como quem olha para o próprio demônio. - Sim. Mas eu não acabei com ele ainda. - O que vai fazer? – ela olhou-o num misto de esperança e mais medo ainda. - Vou dar um jeito para que ele nunca mais volte a lhe importunar. - Então acho que devo lhe agradecer. Obrigada. – ela se aproximou e deu um beijo em sua máscara, agora salpicada com sangue. - Não precisa agradecer. – disse ele, virando-se para partir. - E como posso te encontrar? – perguntou Bianca, com os olhos brilhando. - Não pode. Mas saiba que estarei lá. – respondeu. E só retornou ali apenas uma vez, e foi para trazer o corpo de Henrique para fora. *** AGRESSOR DE MULHERES. Era o que tinha escrito no muro à tinta preta, logo acima da cabeça daquele desgraçado, que foi amarrado com arame farpado na parede, na região do pescoço, punhos, barriga e pés. Abertos como se estivesse crucificado. Mas, diferente de Jesus, não seriam os romanos a lhe judiarem, e sim o povo. Leviatã já não estaria mais lá para ver o final de Henrique, mas ficara sabendo pelo noticiário pela manhã, antes de sair para trabalhar, que uma multidão enfurecida havia levado a óbito um personal trainer da academia mais próxima da região. A polícia não foi capaz de deter a multidão enfurecida, que lançou pedras e logo em seguida atearam fogo. A esposa foi indiciada, mas uma carta foi encontrada junto a ela. Segundo a repórter do telejornal da manhã, no pedaço de papel estava escrito:


LEVIATÃ ESTEVE AQUI OS PEIXES MENORES SE REVOLTAM CONTRA OS MAIORES. E ISSO APENAS COMEÇOU. ASS: L

De seu sofá na frente da televisão, ele só pôde sorrir. Gostaria de saber como os políticos e corruptos estariam se sentindo naquele momento. Mas já sabia que havia conseguido o seu intento. Existe semente melhor do que a do medo, plantada no coração daqueles que devem alguma coisa no cartório? Leviatã sentia que já sabia a resposta. E gostou muito, muito dela.


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