Quatro Rainhas - Parte 1 - Anderson Oliveira

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Anderson Oliveira

Quatro Rainhas

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Quatro Rainhas Category: Literatura MCN: CVV76-8HACP-R8WU4 Š copyright 2013-02-16 22:16:28 - All Rights Reserved

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Parte 1

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A Ninja Adriana nem se lembrava como aconteceu aquela mancha no seu sofá que se destacava entre suas pernas. Apenas uma de muitas. Possivelmente era uísque, ou macarrão, ou vômito de uísque com macarrão. Não fazia diferença. O sol da manhã entrava através da cortina velha. Ela não percebeu o dia amanhecer. A comida chinesa já estava fria sobre a mesa, entre seus papéis e peças de roupa. As duas katanas repousavam na parede do quarto ao lado aguardando polimento. A TV estava ligada, mas ela não prestava atenção. Jogada no sofá de calcinha e camiseta branca, acariciava uma de suas cicatrizes do antebraço esquerdo enquanto se lembrava do encontro que teve na noite anterior. Era lua nova, então a escuridão era sua aliada. Os becos do centro da cidade fediam, como de costume. Ela vestia um sobretudo por cima do seu traje. O traje que ela mesma fez, de couro preto, baseado no uniforme do clã. Inclusive a máscara. Além de proteger sua identidade, desorientava seus inimigos e honrava o velho clã. Ainda que o que ela fizesse não fosse nada honrado. Contratos. Poucas cláusulas. Caçar, invadir, matar e sumir. Às vezes roubar. Aquela noite não foi diferente. A vítima era um policial. Foi fácil encontrar o carro dele em frente ao motel fuleiro. Entrar no estabelecimento também, só precisava esconder as armas embaixo do sobretudo e tirar a máscara. O instinto ajudou a localizar o quarto, a perícia a abrir a fechadura. A espada atravessou a garganta da vítima rapidamente enquanto ele transava com uma prostituta. Ele mal sentiu. A puta gritou quando o sangue quente jorrou no seus peitos, então precisou ser 5


silenciada. A assassina limpou o sangue naquele lençol encardido e foi embora pela janela. Estava feito. Sem desafios. Logo mais iria telefonar para o mandante, dizer o código e em seguida um pacote com dez mil reais estaria esperando por ela no local combinado. Simples assim. Na maioria das vezes era simples, e isso a deixava entediada. Onde estavam os desafios? Onde estavam os adversários que rendiam uma boa luta? O que será que a garota loira que a desafiava de vez em quando estava fazendo? Apenas questionamentos vagos de uma mercenária de saco cheio. Adriana sempre fora estourada. Isso a fez romper com a família e com o clã. O velho clã. O ninjutsu era tradição da família Watanabe, e essa tradição cruzou o mundo com a imigração dos primeiros gaijins. Todo o rigor do treinamento físico, toda a sabedoria da doutrina faziam parte da sua vida desde a primeira infância. Mas para quê? Apenas por tradição? Adriana achava um desperdício tantas habilidades, tantas formas de matar, para nunca usá-las. Inúmeras vezes levantava essa questão ao seu sansei e ao seu pai, quando não fomentava a desordem entre seus colegas aprendizes. Na adolescência se tornou displicente, mais interessada em festas, bebida e namorados do que nas tradições. Quando seu conservador pai se cansou de sua rebeldia e a expulsou de casa apenas com a roupa do corpo, ela não teve dúvidas de como poderia se virar. Seu primeiro crime foi invadir a casa onde antes morava e roubar as duas katanas do pai, herança de sua família há mais de duzentos anos. Só precisaria delas para iniciar sua empreitada. O uniforme feminino do clã, largo, de tecido grosso e pesado, com a máscara tradicional dos shinobi, serviu de inspiração para seu traje provocante de couro preto. A insígnia do clã ainda trás no 6


pescoço, o que certamente é razão de vergonha para eles. Após o trabalho com o policial, passava em frente a Catedral da Sé remoendo esses velhos pensamentos quando percebeu que estava sendo seguida. Olhou de soslaio, seus olhos orientais piscaram atrás de uma mecha de cabelo castanho. Viu apenas um homem. Talvez não precisaria matá-lo. Foi em direção a igreja, procurando sua sombra. O homem chegava cada vez mais perto. Ela encostou na parede de pedra sabão da catedral e esperou. A mão direita já no cabo da katana sobre seu ombro. Podia ouvir seus passos anunciando sua aproximação. Ele não fazia questão de ser discreto. Esse seria seu erro. Já puxava a espada da bainha quando, para sua surpresa, ouviu o homem chamar seu nome. O nome que usava quando vestia a máscara. — Dama de Espadas. Sua voz era grave, mas estranhamente calma. Não parecia temer a morte. A Dama de Espadas não lidava bem com esse tipo. Sacou a espada, deixando a outra ainda às suas costas. Se posicionou de frente para o homem. O homem que não teme a morte não vive uma boa vida. Viu seu rosto com clareza. Careca, branco, entre quarenta e cinquenta anos, um e oitenta de altura. Não parecia ser muito forte com aquele terno preto. Era bem magro, inclusive. As mãos estavam à vista, na frente do corpo. Um anel na esquerda. Seria fácil acabar com ele, se fosse preciso. — O que quer? — ela disse, girando a espada na mão duas vezes, cortando o ar com seu aço. — Lhe oferecer um trabalho. Me disseram que é a melhor. Talvez fosse. Pelo menos nessa cidade. 7


O homem a olhava impassivo. Sua boca era um corte fino no seu rosto rosado e liso, escondendo uma fileira de dentes pequenos. Na noite não podia dizer a cor dos seus olhos, apenas se via poços negros e profundos. Não olhe em seus olhos, algo pareceu lhe dizer. — Prossiga. — ela disse. Resolveu que iria ouvir sua proposta. — Um nome. Pessoa importante. Bem vigiada. Acostumada a receber ameaças. — ele dizia pausadamente. — Quão importante é essa pessoa? — ela ainda segurava a espada, com o lado sem fio rente ao antebraço enluvado. — Chefe da máfia. Tem planos para fazer alianças com as maiores organizações criminosas do mundo. Yakuza, tríade, Cosa Nostra, a máfia russa, cartéis do México e América Central, facções do Brasil... e com a Igreja Católica. — disse acenando para a parede da Catedral atrás dela. — Talvez... precisará de ajuda. Talvez. — Diga-me o nome. E o preço. — Viktor Andreiko. Dois milhões de dólares. — deixou um sorriso torto após proferir as palavras. — DEZ milhões. E eu escolho minha equipe. — o sorriso desapareceu. — Por dez milhões, terão que provar que são as melhores. — Ele deu as costas, olhando o céu escuro. — Um serviço pequeno, mas tão difícil quanto. Tem dez dias para reunir sua equipe, então entrarei em contato novamente. Espero que não 8


falhe. Ele se foi. A Dama de Espadas ficou observando ele caminhar até sumir de vista. Só então guardou a katana. De volta ao seu apartamento, bebericando um gole de vinho tinto, se preparando para entrar no banho, aquilo não saia de sua cabeça. Dez milhões. Nunca teve a chance de faturar tão alto com um único serviço. Só havia um problema: ela blefou. Não tinha uma equipe para escolher. Sempre trabalhara sozinha, não sabia seguir ou dar ordens. Isso a fez deixar o clã. Mas, se quisesse esse dinheiro, seria melhor mudar de hábito. Ainda que precisasse dividir o dinheiro com mais alguém, teria o bastante para todos. Só precisava chamar alguém tão bom quanto ela. Despiu-se pela casa, entrando na água fria. Seus cabelos agora molhados aderiram às costas até a altura das nádegas. Tinha um corpo atlético, mas voluptuoso, mesmo com sua estatura baixa. Seu corpo era uma de suas armas, que sempre usava para a distração. Muitos homens tinham uma atração irracional pela sua descendência asiática. Ainda mais quando, diferentemente do padrão asiático, ela era dotada de seios entre médios e grandes. Seus lábios eram carnudos e rosados, ainda que poucas vezes carregassem um sorriso. Estava longe dos trinta anos, mas já se sentia velha, após anos como uma mercenária. Dez milhões poderia ser sua aposentadoria. Adriana Watanabe poderia ter uma vida normal e a Dama de Espadas nunca mais existiria. Mas precisava de uma equipe. Uma boa equipe. Esse pensamento a irritava, pois só conhecia uma pessoa tão boa quanto ela para o serviço. Alguém que estaria disposta a arriscar a vida por tanto dinheiro, com habilidade e frieza para executar a missão. Só uma pessoa. 9


Adriana vestiu uma roupa: calça jeans preta, uma blusa branca sob uma jaqueta de couro vermelho. Calçou botas de cano curto, pegou uma bolsa e saiu. Precisaria pensar. Pensar em uma estratégia. Pois a pessoa que precisava para a missão estava trancafiada em uma cela. — Maldita seja. — disse, deixando seu apartamento, colocando seus óculos escuros quando pisava na rua. A única pessoa adequada para a missão era sua maior rival.

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A Arqueira O uniforme bege estava sujo e puído. E ele cheirava azedo. Fazia um ano que estava na Penitenciária Feminina da Capital, dividindo espaço com outras mulheres imundas e insanas, mas para Helena Arquete parecia toda uma vida. Culpa do maldito motoqueiro e da princesinha das selvas. Sempre cutucava a cicatriz em sua barriga, logo acima da sua tatuagem tribal, causada por uma flecha da adversária e ex-amiga. O ferimento a deixou lenta e febril, e sua fuga foi prejudicada. Só se lembrava de cair do telhado sobre o toldo de um bar cheio de gente. Quando acordou estava algemada a uma cama de hospital. Seus homens, aqueles desgraçados, a abandonaram naquela noite. Foi mandada para a prisão assim que obteve alta, e aqui está até hoje, aguardando seu julgamento. Na fila do almoço, ela se destacava. Uma cabeça mais alta que as demais detentas. Magra como uma modelo, mas tão castigada que mais parecia uma mendiga. Seus cachos que tinha tanto orgulho eram agora embaraçados e sem brilho. Mesmo assim, sua beleza e altivez era motivo de ódio e cobiça das outras mulheres. — Olha lá, lá vem a magrela desfilando na passarela! — zombou uma mulher de cem quilos e um bigode mais espesso que do diretor da prisão. Suas companheiras riram com ela. Helena chupou os dentes. Fazia semanas que essa baleia merecia uma lição. Olhou ao redor. As carcereiras estavam por todo o lado. Um bocado de feijão esverdeado foi jogado na sua bandeja, junto com arroz quase cru. A gorda ainda ria. Seu bigode era obsceno. Seus dentes eram podres e tortos. Ela era um 11


alvo bem grande. A acertaria com uma flecha há quilômetros de distância. O que não faria com um garfo há apenas três metros. Foi divertido. A mulher gritou como uma porca. O sangue jorrou de seu olho direito. Suas comparsas não se atreveram a se aproximar. Levou alguns segundos até as carcereiras abrirem espaço entre a multidão que observava o espetáculo. Helena só sentiu seus cassetetes no quinto golpe, quando a acertaram no joelho. — Para a solitária! Agora! — berrou uma das servidoras do Estado. Helena sorriu enquanto era levada, vendo a gorda estatelada no chão. Adorava a solitária. Ficava livre das malditas bandidinhas que se achavam grande coisa. Não se importava com o escuro e com o mal cheiro da apertada cela. Para quem já vivera na selva, entre cobras e insetos do tamanho de seu punho, aquilo era fácil. Mas o uniforme velho a incomodava. O tirou completamente, ficando só de calcinha, fazendo flexões de braço. Seus 1,88m praticamente cobriram toda a cela, da porta a parede oposta. Havia perdido massa na prisão. Sempre fora magra, mas o sedentarismo a deixava mole e flácida. Seus músculos rígidos dos braços, pernas e abdome estavam sumindo. Era necessário ter braços fortes para usar o arco com precisão. Precisava ter pernas rápidas para correr atrás da caça, ou fugir dos caçadores. Precisava ter um corpo bonito, quando a violência não poderia ser usada. Deveria malhar. Fez flexões até perder a conta, até seus braços tremerem e até não conseguir tirar os mamilos róseos do chão. Depois virou de costas, cruzou os braços sobre os seios pequenos e respirando fundo começou uma série de abdominais. O suor escorria na sua 12


nuca e sua testa. Gostava disso. Sempre tinha o corpo quente e suado na selva, na sua infância livre e feliz. Mas isso foi antes. Antes de seu pai, o Indianista Chico Arquete ser assassinado por índios carajás durante um violento protesto contra grandes senhores de terra. Seu pai fora enviado pela FUNAI para negociar com os nativos, mas eles o tomaram como refém e o mataram depois. Helena se viu sem rumo, com apenas doze anos de idade. A simples presença de sua pequena amiga, a indiazinha Iandé, do povo Guajá, de repente lhe causava ódio. Para Helena, todo indígena, independentemente da tribo, era culpado pela morte do seu pai. Então aquela que antes era sua irmã, passou a ser sua maior inimiga. Helena caiu no mundo, usando suas habilidades de caça e arqueirismo ela passou a roubar. Não demorou até matar sem remorso. Depois descobriu que poderia vender seus dons como matadora de aluguel. Anos nessa vida lhe deram fama, dinheiro e poder. Até que um contrato a levou novamente a tribo Guajá. Não foi difícil matar alguns índios desgraçados. Mas foi só cruzar com Iandé novamente, esta tomada por um desejo de vingança pelas mortes que Helena causou, e sua vida teve um revés. Quando não aguentava mais fazer outra abdominal, deitou no chão frio e adormeceu. Acordou com o coturno da carcereira nas suas costelas e seu grito rouco nos ouvidos. — Levanta, Arquete! Levanta! Vista suas roupas, por Deus! Você vai ser transferida. Presidente Bernardes te aguarda! — Nem fui julgada ainda. — disse, se contendo para não quebrar a perna da mulher. — O diretor determinou que você é perigosa demais pra ficar aqui. Agora vamos, porra! 13


Sim, ela era perigosa, gentileza dele perceber isso. Vestiu seu uniforme e deixou-se ser algemada. De cabeça erguida foi conduzida até o caminhão. Seria muito bom deixar aquele lugar. Teria uma cela só pra ela entre os maiores criminosos do país. Algo mais digno, afinal de contas. Havia um modesto comboio lhe aguardando. Além do caminhão de transporte de prisioneiros, duas motos e uma viatura. A viagem seria longa, no entanto. Junto com ela no caminhão dois homens armados a vigiariam. — Bom, rapazes... o que contam de novo? — ela disse, mas eles não responderam. — Vamos lá, não quero ficar aqui por horas em silêncio. Fora que faz muito tempo que não fico entre quatro paredes com homens... — e de uma forma bem sensual, completou: — Me digam algo bem sacana. — É melhor calar essa sua boca, sua vadia. — respondeu um dos guardas lhe apontando seu rifle. — Isso... “vadia”... é um bom começo. — ela sorriu. A coronha do rifle acertou sua têmpora. O guarda segurou a mão, senão ela teria morrido, mas nem sequer desmaiou. Porém mordeu a língua e sentiu o gosto do sangue. O maldito iria pagar por isso, iria sim. O comboio seguia já por quase duas horas quando viraram bruscamente para a direita. Helena pôde ouvir o motorista falar algo sobre um engarrafamento na Marginal. Sua audição ainda estava apurada. Seus outros sentidos também. Podia sentir, pelo trepidar do veículo, que passavam por uma rua irregular. Esfregou as algemas nos seus pulsos. Até poderia removê-las com o tempo, mas os rifles dos dois brucutus a intimidavam. Sem outra opção, recostou a cabeça na parede do 14


caminhão e fechou os olhos. Os abriu quando ouviu o som de tiros. Em seguida o caminhão freou bruscamente a lançando contra o chão. — Levanta! — o guarda a puxou pelo braço como se ela fosse lixo. Outro ponto pra ele. — O que está havendo aí fora? — perguntou o segundo guarda no rádio. Após alguns segundos veio a resposta: “Fomos atacados. Um carro veio em nossa direção. Demos tiros de advertência, mas ele não parou, atropelou as motos e nos acertou. Mas... não há motorista”. — Não compreendi, pode repetir. — Com olhar incrédulo, o guarda ouviu a sentença: “Repetindo: não há motorista”. — Isso é ridículo. — disse o outro, ainda segurando Helena, com a arma contra sua cabeça. — Vou lá fora, cuide da prisioneira. — o homem sacou as chaves do cinto e destrancou a porta traseira. Helena ouviu ela ranger. O maldito ainda segurando firmemente seu braço. O outro guarda desceu na rua. A paisagem a sua frente era deserta. Pareciam estar entre muros de fábricas e galpões. Os homens da viatura que os escoltava estavam com armas na mão. Mas de repente todos sumiram na fumaça. Fumaça branca. O agente que outrora tinha descido voltava para dentro, mas algo o deteve. Ele arqueou para a frente, baixando os braços e arregalando os olhos. Helena então viu quando o sangue escorreu por seu colete e a ponta afiada de metal o rompeu. Mas era uma vadia, mesmo! Helena aproveitou o momento e deu uma cabeçada do desgraçado que a prendia. Com as mãos arrancou o rifle dele. A 15


arma escorregou pelo chão de alumínio e caiu junto ao corpo do outro guarda. Antes que o primeiro pudesse sacar sua pistola, Helena o chutou, sentindo a adrenalina percorrer seu corpo. Depois levou as mãos ao seu pescoço, usando a corrente da algema para estrangulá-lo. Fez isso sem presa, mal dando atenção aos tiros e gritos do lado de fora. Aquele maldito iria ter o que merecia. Quando percebeu que o desgraçado parou de se mexer, se levantou. Pegou a pistola em seu coldre. Dois tiros na cabeça. Estavam quites. Resolveu que iria levar a arma e desceu para rua. Só viu homens mortos, em poças de sangue. Alguns tinham membros decepados. A fumaça branca já havia baixado, e no meio da carnificina Helena a reconheceu. Aquela sua roupa fetichista era escandalosa demais para passar despercebida. Um top justo com um generoso decote, uma saia curta, botas até as coxas e luvas até os braços, tudo em couro preto, com pequenos detalhes em branco. A gargantilha trazia um pingente e aquela máscara ridícula escondia seu rosto. As espadas estavam nas suas mãos, mas ela logo as guardou com um rápido movimento. Helena se aproximou. — Quero sua ajuda. — a Dama de Espadas disse, com a mesma voz de quem pede um café na padaria. — Isso não muda nada entre nós. — respondeu Helena, olhando ao redor para os agentes mortos. — Não sou sua amiga. — Não quero sua amizade. Quero sua ajuda. Vai receber muito bem por isso. — Quanto? — Dois milhões. — Helena fitou bem os seus olhos de japonesa. Dama de Espadas não piscou, não desviou o olhar. Mas era uma vadia, então devia estar mentindo. Devia ter mais 16


dinheiro na jogada. — Tire-me daqui e conversaremos. E assim foi. Horas depois Helena estava no apartamento da Dama de Espadas, livre das algemas. Deixara a pistola que pegara do guarda sobre a mesa de centro e acariciava seus pulsos enquanto ouvia a ninja contar sobre a missão. A mulher tinha tirado a máscara, mas mantinha o resto do traje, incluindo as espadas. Helena estava louca para se livrar das calças beje, e só não as tirava ali mesmo porque iria se sentir vulnerável perto da segunda melhor mercenária do país. — Então é isso. Acabar com o chefe da máfia... mas antes teremos um serviço mais simples, para provarmos nosso valor. Então o dinheiro é nosso, cada uma pega sua parte, e faz o que bem entender com ela. — Adriana, era esse seu nome?, dizia pegando uma garrafa de vinho e servindo um trago para Helena. Esta sorveu a bebida num gole só, sentindo o calor descer por sua garganta. Há muito não provava a bebida. Estava livre, enfim. — Precisaremos de mais gente. Uma operação assim é coisa grande demais só pra duas espadas e um arco. — Não conheço ninguém que esteja a minh-- a nossa altura. — era engraçado vê-la tentando ser gentil. Helena teve que conter o sorriso. — Porque não existe ninguém. — pelo menos não do lado certo. A princesinha da selva era tão boa quanto ela, e Helena sabia que a ninja loira que Adriana enfrentava era melhor do que ela. Até aquele motoqueiro da favela seria muito bom com todas as suas armas. Se a Arqueira Negra ainda tivesse seus homens... eram uns paspalhos, mas custavam pouco e eram descartáveis. 17


Então uma lembrança a assaltou. Sim, ela podeira servir. Tinha habilidades, ainda que lhe faltasse profissionalismo. Mas pelo preço certo... — Só se... — começou a dizer para Adriana. — Conheço alguém. É boa com armas, mas é novata. E digamos... tem um bom coração. — Você confia nela? — Você confia em mim? — Não. — Digamos que confio mais nela do que em você. — Bom. Pode chamá-la.

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A Cantora Sentada na cama do pequeno quarto alugado, ela limpava sua arma. Uma Magnum 38 cromada, irmã gêmea de outra que repousava em seu colo. Atrás de si o violão aguardava um novo jogo de cordas. Ela vestia um shorts de algodão azul e uma blusa rosa. Seus chapéus estavam pendurados na parede, junto com o disco de platina. A fivela do cinto estava a sua frente, e nela tinha o desenho de um belo cavalo. Se lembrou de Cometa. Cometa era um bom cavalo. Carmen se lembrava que saia escondida de seus pais, no meio da noite, para ir até a cocheira cuidar do animal. A vida na fazenda era maravilhosa. Não era uma fazenda grande, mas para Carmen era todo seu mundo. O campo, os bichos, as festas, a música... Sua mãe lhe dizia que Deus lhe dera muitos dons. A música era um deles. Aos cinco anos já tocava violão e arriscava cantar as velhas modas que o pai ouvia com sua voz infantil. Ao passo que foi crescendo, aprimorou sua arte, estudando e praticando, participando das festas do interior, das feiras e dos concursos. Aos quinze ganhou seu primeiro grande prêmio. Seus pais a incentivaram muito a partir daí. Conheceu outras cidades, algumas capitais. Conheceu gente importante no ramo musical. A carreira de cantora parecia inevitável. Com dezoito anos gravou seu primeiro CD por uma importante gravadora. Lhe falaram para escolher um nome artístico. Ela escolheu ser Carman Sant'Andreas, e assim estreou nacionalmente como grande revelação da música sertaneja e country. Vieram os convites para shows, para programas de TV e o tão sonhado estrelato. Com isso veio o deslumbramento da 19


jovem do interior, o dinheiro aos montes, os homens aos seus pés. As festas da roça deram lugar para as baladas das grandes cidades. Seus pais cada vez mais distantes, com empresários, produtores e fãs entre eles. E muitos aproveitadores. Em uma carta da mãe soube que Cometa havia sido sacrificado após quebrar a perna. Chegou a chorar pelo tão querido animal, mas quando comprou sua McLaren ele foi esquecido. Ficou pouco tempo com o carro, pois o perdeu quando, após sair de uma festa, bateu o veículo contra um caminhão. Declararam que estava embriagada. Foi o primeiro escândalo da sua carreira. A fã que foi agredida veio depois. Mas a imprensa exagerou. A menina tentou beijar Carmen a força, e a cantora apenas a empurrou. Ter tido uma noite de sexo com ela não significava que teria outra. Carmen adorava sexo, fosse com meninos ou meninas. Misturado com álcool e dinheiro, essa era uma combinação perigosa. Os constantes escândalos minaram sua carreira. Mas verdade seja dita, suas músicas nunca foram obras primas. Sucessos momentâneos, modinhas que logo eram esquecidas quando um novo vídeo fazia sucesso no You Tube. O problema foi que Carmen custou a perceber isso. De repente a estrela da música era lembrada como a senhora dos escândalos e das bebedeiras. Uma senhora falida que havia perdido o carro, a casa e tudo mais. Então sua música não servia mais de nada. Por causa da carreira deixara de estudar. Por causa da depressão se entregara cada vez mais a bebida. Não haviam mais fãs, e seus produtores e empresários foram embora. Tinha vergonha de voltar para a 20


família de mãos abanando. Recorreu a empréstimos no banco e quando não conseguiu pagá-los, recorreu a agiotas. Quando não conseguiu honrar também essas dívidas, sua vida ficou em risco. Certo dia homens armados invadiram o quarto de hotel onde estava. Três deles, gritando e xingando. Foi quando Carmen se lembrou de outra habilidade que Deus havia lhe dado: o uso de armas. Seu pai, militar reformado, a ensinara desde pequena a atirar. Ela atirava em latas e em discos lançados no ar. Por insistência de sua mãe, parou de praticar o esporte, pois aquilo era coisa de menino, segundo a matriarca. Mas nunca se desfez das duas armas que ganhara do pai, no dia que fez dezoito anos. Armas e um violão, foram seus presentes. Com o violão não soube aproveitar as oportunidades, seria o momento de tentar com as armas? Pelo menos precisaria sobreviver. Os invasores não esperavam que aquela garota decadente seria capaz de contra atacar. Ela saboreou suas caras de espanto quando ela tirou as armas debaixo do travesseiro. Não sentiu remorso no momento em que tirou suas vidas. O que não foi difícil, aliás. Após derrubar os três bandidos, pegou tudo que tinha de mais importante e fugiu dali. Com o violão nas costas e uma trouxa de roupas pelo braço, saltou a janela, desceu os três andares do hotel e se escondeu nos becos no momento em que a polícia chegou. Carmen Sant'Andreas, a ex cantora de sucesso, a senhora dos escândalos, agora era uma assassina. Precisou de muita sorte para se esconder. Porém a sorte havia lhe abandonado há algum tempo. Os agiotas encontraram seu paradeiro e lhe mandaram novos cobradores. Ela conseguiu 21


escapar da maioria, matando alguns e fugindo de outros, até que ela a encontrou. Estava andando no Parque da Água Branca, em São Paulo, já ao pôr-do-sol, livre dos trajes country pelos quais era facilmente reconhecida. Vestia um jeans largo, um blusão com capuz levantado e calçava uma par de tênis. Mas mesmo assim ela a encontrou. Pareceu esperar até entrar em um canto deserto do parque para atacar. A sua flecha prendeu a manga da blusa contra uma árvore. Por muito pouco não atravessou seu braço. Carmen então a viu se aproximar preparando outra flecha do arco. — Nunca vi alguém dever tanto dinheiro assim para aqueles caras. E se isso não bastasse, ter acabado com todos os homens que eles enviaram. — a mulher sorria friamente. Vestia um casaco preto, agora aberto, onde se viam flechas atadas na sua perna. — Mostre-me do que é capaz, garota. Carmen sabia que era uma cilada, mas mesmo assim sacou seu revólver no mesmo momento em que rasgou a manga da blusa para se soltar. O tiro seria certeiro, se a arqueira não tivesse se movido um segundo antes. O som do disparo fez as aves do parque se agitarem. Algumas pessoas gritaram na distância. Logo os guardas e a polícia estariam ali. — Por isso prefiro flechas. São muito mais silenciosas. — a arqueira atirou, mas Carmen só sentiu o ar sendo deslocado há centímetros do seu rosto. Correu por entre as árvores. Pulou cercas. Derrubou pessoas, incluindo guardas. Irrompeu pelo portão. Cruzou a avenida Francisco Matarazzo causando confusão e buzinaço e chegou à viela entre um banco e um estacionamento. Pensava ter despistado a perseguidora, mas uma flecha perto de si a alertou do contrário. 22


Deveria por um fim a isso. Se virou, tirando a outra arma da cintura e com as duas esperou a arqueira se aproximar. Esperou. Mas ela não veio. Pelo menos não pelo caminho por onde havia entrado. Quando percebeu isso, já era tarde demais, e a arqueira estava sobre ela, tendo saltado do telhado do banco. Conseguiu imobilizá-la e desarmá-la. — Fim da linha, garota. Você perdeu. —Acaba logo com isso. — Carmen desistira de fugir. Se sua morte poria um fim ao seu drama, então que seja. Mas para sua surpresa, a arqueira a soltou. Carmen relutou a se por de pé, mas assim que o fez, ouviu a outra dizer: — Sabe de uma coisa? Aqueles caras são uns babacas. Só aceitei o trabalho porque não tinha outra coisa pra fazer. Você tem talento, garota. Venha trabalhar comigo. Poderá ajeitar sua vida. A proposta pareceu tentadora na ocasião. Por que não? Já era uma assassina procurada, por que não usar suas habilidades de tiro para ganhar dinheiro? Aceitou a oferta e então trabalhou com a Arqueira Negra em algumas missões, integrando sua equipe. No processo recebeu treinamento com outras armas e de luta corpo a corpo. Conseguiu dinheiro, pagou algumas dívidas, renegociou outras, conseguiu um lugar para morar. Mas não podia dizer que estava feliz. Não era a vida que queria. Começou a se arrepender de todo o sangue em suas mãos. Sentia falta da fazenda, dos seus pais, do seu cavalo Cometa. Sentia falta dos palcos, da fama, dos fãs. Então certo dia disse para Helena que iria embora. 23


— Não pode ir agora! Temos um contrato muito bom! Apenas nós contra um bando de índios burros! Mas seus argumentos não a convenceram. Carmen deixou o serviço da Arqueira Negra, e acompanhou quando, após este último contrato, a mercenária foi presa. Era o certo. Uma vida de crimes deveria ter punição. E a sua própria vida não era diferente. Saudades do cavalo Cometa... Voltando desse recordatório, com a arma polida na mão, Carmen sentiu-se atraída em meter a pistola na boca, puxar o gatilho e por um fim ao fracasso que era sua vida. As habilidades que Deus lhe dera, mas ela não soube aproveitar nenhuma. Um último gole da vodca que estava rolando pelo chão. Dois goles. Respirou fundo. Mordeu a arma com força. Lembrou da primeira música sua que tocou nas rádios. Era horrível. Fechos os olhos. Alguém bateu na porta. A sanidade pareceu voltar de supetão. Deixou a arma sobre a cama e se levantou. Cambaleou um pouco. Estava acostumada com o efeito do álcool. Abriu a porta imaginando ser a dona do terreno cobrando o aluguel atrasado. Se surpreendeu quando a viu ali. — Helena? — Sou eu. Será que posso entrar? — Helena Arquete, a Arqueira Negra, fora da prisão. Vestia uma blusa azul, calça de ginastica e escondia o rosto com óculos escuros. Carmen sabia que ela não era de rodeios, então não se surpreendeu quando ela foi logo ao assunto, após se acomodar em uma cadeira: — Um trabalho em grupo. Muito dinheiro. 24


— Eu disse que parei com-— Me escuta. Muito dinheiro. Muito mesmo. Dois milhões de dólares só pra você. Sim, era muito dinheiro. O que ela teria a perder afinal? Talvez seja uma segunda chance que veio bater à sua porta. Para quem há dois minutos estava com uma arma na boca, isso representava muito. — Eu... eu aceito... Mas será só dessa vez. Pego o dinheiro, e me aposento. — Não é uma má ideia, minha querida. — Helena a olhou de um jeito estranho, como se por um momento estivesse com dúvidas. Mas foi apenas um rápido momento. — Agora venha, você precisa conhecer uma pessoa. Essa pessoa era Adriana Watanabe, a mercenária conhecida como Dama de Espadas. Carmen acompanhada de Helena a encontrou em um barzinho renomado na zona norte da cidade, numa mesa na calçada. Adriana usava uma blusa preta sob uma jaqueta de couro vermelho e bebericava um drinque colorido. Era uma mulher muito bonita apesar do ar fechado, uns cinco anos mais velha que Carmen, porém mais baixa. Para o encontro Carmen vestiu um jeans apertado e botas pretas, com uma bata verde, deixara o chapéu em casa, deixando seus cabelos encaracolados e avermelhados soltos. Adriana a cumprimentou secamente, sem fazer questão de se levantar. Assim que as recém chegadas se sentaram, ela pediu bebidas ao garçom. — Hoje é por minha conta. — Adriana disse, dando uma última golada no seu coquetel. — Helena disse que você é boa de mira. 25


— Bem... acho que sou. — Quantas armas você tem? — Duas Magnum calibre 38... — Não bastam. Talvez precisaremos de mais. — Isso me lembra, preciso das minhas coisas. — disse Helena, se referindo ao seu arsenal. Seu arco de fibra de carbono e suas flechas, seu lança arpéu e sua adaga. — Pedirei ao nosso contratador um adiantamento. Daí teremos tudo que precisamos. — Adriana disse, comendo uma azeitona de um potinho na mesa. Porém quando pegou uma segunda, se deteve com um olhar tenso. — Só há um problema: ele não deixou contato. Nem sequer um nome. — Como assim, Adriana?! — Helena se exaltou. — Esperava mais profissionalismo de você... — Espere aí, você está dizendo que-— Ei! — alguém interrompeu esse princípio de discussão. As três mulheres se viraram e viram outra mulher montada em uma Kawasaki Ninja 650R verde. Era oriental, de cabelos lisos castanho escuro, vestida com uma jaqueta verde, branca e laranja, como a de um piloto, com calça preta e botas de aparência emborrachada. Seu corpo era musculoso, sem deixar de ser feminino, e era portadora de seios grandes e lábios carnudos. — Eu sou Myea, vim com instruções para sua missão.

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A Lutadora Elas não esperavam por isso, certamente. Mas Myea sabia que deveria tomar cuidado. Ali estavam assassinas profissionais. Há três dias uma delas matou seis homens armados usando somente katanas para libertar a outra. Essa outra, um ano atrás, massacrou uma tribo indígena para conseguir seus segredos. A terceira assistiu muito faroeste quando criança, teve a carreira mais curta de uma cantora de sertanejo universitário de que se tem notícia, e acabou virando pistoleira. Myea era forte, durona e topava uma boa briga, mas nunca matara alguém. Só que agora estava disposta a fazer isso. Afinal, ele merecia. — Eu conheço você! — disse a cantora. — Você é aquela lutadora de MMA! Te vi na TV há algum tempo. — Sim, sou eu. — O que sabe da nossa... missão? — questionou a baixinha, aquela das espadas, com um ar nada amistoso. — Ele me procurou, disse que poderia ajudar. Além de seu contato com vocês, ele disse que eu poderia entrar em campo. — respondeu Myea, a mulher alta sorriu e disse: — Não se meta conosco, moça. Andar com a gente só lhe trará desgraça. Diga o que tem a dizer a vá embora. — Vocês não entendem. Não chegarão em Andreiko sem mim. E... tenho meus motivos para vê-lo... morto. — É melhor conversamos em outro lugar. — disse a ninja olhando nervosamente ao redor. — De acordo. Venham até minha casa. Eu pago o táxi. 27


As três se entreolharam e por um momento Myea achou que iriam matá-la. Mas não. Elas se levantaram, a baixinha pagou a conta e então Myea lhe entregou seu endereço num pedaço de papel. Depois ligou sua moto, colocou o capacete e as deixou. Enquanto cruzava pelas ruas da cidade naquela noite fria, pensava pela décima vez em como se viu metida nisso. Sabia dos riscos que corria, não só pela sua vida, mas pela sua imagem como atleta em ascensão. Porém esquecia todos os perigos quando se lembrava do que acontecera. E apenas um sentimento pulsava no seu coração: vingança. Não queria lembrar dessa sombra em seu passado. Então forçou um pensamento novo. Lembrou de como aquele homem estranho veio ao seu encontro. De como parecia saber de sua sede vingativa. De como ofereceu uma chance de retribuir. Estava na academia treinando. Socava e chutava seu saco de areia, soltando um grito antes de cada golpe. Seu mestre havia saído mais cedo, e poucos alunos ainda restavam ali. Seus dedos já estavam doendo. Sempre treinava intensamente, mas naquele dia sentia uma disposição nova. O suor caia no olho, mas ela não ligava. Só parou aquilo meia hora depois, quando o último aluno se foi e ela se viu sozinha. Entrou no chuveiro, deixando a água fria cair na sua cabeça, enquanto se apoiava na parede. Só então sentiu o cansaço tomar seu corpo. Treinava dez horas por dia, as vezes até mais. Já não via mais os amigos e a família, apenas o pessoal da academia, seu mestre e seu empresário. Quando encontrava com uma adversária no octágono, só pensava em finalizar logo aquilo. Mas pra quê? Para treinar mais? O treino era melhor que o jogo? O seu próprio toque era melhor que o toque de um homem? As 28


vezes pensava que sim. Pelo menos desde que aquilo aconteceu. — Certamente não foi culpa sua. Sua voz era grave e um tanto monótona. Myea sentiu seu coração pular quando a ouviu. Ele estava ali, de pé no banheiro. Vestia um casaco cinza sobre um terno preto. Sua cabeça careca brilhava contra a luz. — Segurança! — Myea gritou. Estava nua e coberta de sabão e só havia a fina porta de compressado do boxe, que cobria nem um metro e meio do seu corpo, entre ela e o sujeito. Ele podia estar armado, então não se atrevia a se mover. — Segurança!! — Não se preocupe. — ele disse, levantando as mãos em sinal de paz. Depois pegou uma toalha e estendeu para a mulher. — Não vim lhe fazer mal. — Quem é você? O que você quer?! — Myea pegou a toalha e se enrolou nela. Abriu a porta do boxe com violência, agora que estava ligeiramente vestida, se sentia mais confiante. — Me chame de Erik. — ele disse, sem qualquer expressão facial. Seus olhos eram de um azul muito claro, quase cinza. — Faço parte de uma... “rede de influências” — fez as aspas com os dedos, uma mania que Myea odiava. — e tratamos de alguns negócios. Um deles envolve uma pessoa, que segundo minhas pesquisas, tem um passado um tanto conturbado com você e sua família. Myea tinha a plena certeza de quem ele estava falando, mas mesmo assim perguntou: — Que pessoa?

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— Viktor Andreiko. — a simples menção ao nome fez a lutadora ter vertigem. — Diga a esse homem que eu não tenho mais nada a tratar com ele e sua família. Diga que-— Você entendeu mal. Não, não trabalho para Andreiko. Meu objetivo é tirá-lo de circulação. — Você diz... — Sim, queremos ele morto. — Erik fez uma pausa. Seu rosto era como uma estátua antiga, sem emoções. Sua boca era um corte na carne, sem forma definida. Myea saboreou suas palavras. Se surpreendeu quando o homem disse: — Sei que partilha do nosso desejo. — Eu... — por mais que tivesse esse desejo, nunca o expressara abertamente. Ainda mais para um desconhecido. — Ajude-me. — Ele é muito poderoso. — Eu sei. Sei que está cercado de seguranças. De assassinos. Você também estará. — Não entendo. — Tudo o que tem que fazer é encontrar umas pessoas. Matadoras de aluguel, as melhores do país, eu espero. Lhe darei documentos, e você deve entregar a elas. Faça parte do seu grupo, para executar a missão. Seja meus olhos e ouvidos. E, quando for a hora, acabe com Andreiko. Falando parecia simples. Myea sabia que nada era simples assim. Não quando o nome de Andreiko estava envolvido. Esse 30


Erik ou era completamente louco ou era pior que o mafioso. Estava pedindo para Myea se envolver com mulheres de vida desonesta, assassinas e ladras, para baterem contra o crime organizado em sua totalidade. Andreiko merecia morrer, não havia dúvidas. O problema era que Myea não podia tomar partido nisso. — Saia daqui. — disse ela por fim. Deu-lhe as costas em direção ao seu armário. O destrancou e de dentro de sua bolsa tirou uma arma de choque. — Suma da minha frente. — Ok. — ele disse, pacientemente. Depois abriu seu casaco, tirando um envelope amarelo de um bolso interno. Calmamente deixou o objeto sobre o banco ao centro. Em seguida virou-se e começou a sair em direção à porta. Porém antes de sair completamente, deteve-se dizendo: — Não diga a elas que me chamo Erik. Myea bateu na porta do armário e gritou. Soltou a arma e levou as mãos no rosto, se agachando rente à parede, não se importando quando a toalha escapou. Não conseguiu deter as lágrimas. Nada era simples para Myea. Muito menos quando o nome Andreiko estava envolvido. Minutos depois, se recompondo, se vestiu e pegou suas coisas. Estava saindo quando notou o envelope. Relutou em apanhá-lo, mas por fim o pegou e meteu na bolsa, sem nem ver seu conteúdo. Chegando em casa caiu na cama e dormiu. De manhã algo estava estranho. A primeira coisa que fez ao acordar foi checar o envelope. Haviam inúmeros papéis e um cartão de memória Mini SD. A certeza de que ela deveria entrar nessa operação era nítida, ao ponto de maldizer-se por não ter feito isso no dia anterior. Andreiko deveria morrer, e Myea 31


puxaria o gatilho. Com isso ela se viu de volta na garupa de sua moto, chegando nos portões de sua casa. Modéstia chamar de casa aquela mansão em Higienópolis, fruto do dinheiro da sua família, mantida com os recursos de sua carreira no MMA. Parcialmente de vidro, o imóvel tinha linhas modernas e era cercado por um jardim dentro de um condomínio residencial. Myea parou a moto e aguardou. O táxi não tardou a chegar. Ela pagou o motorista com um cartão de crédito Visa Infinite. As três mulheres se detiveram um pouco, observando a casa. Assassinas e ladras. Myea só esperava estar fazendo a coisa certa. Recebeu as três na sala de estar, convidando-as a se sentarem no grande sofá branco em frente a tela de LED de sessenta polegadas. Ofereceu bebidas, e todas aceitaram. Em seguida, foi até o escritório contigo e trouxe um notebook o deixando na mesa de centro. Nele, o cartão de memória estava inserido e na tela um vídeo aguardava para ser reproduzido. — Segundo o contratador — começou Myea. —, para serem dignas dos dez milhões, deverão executar esta tarefa. — apertou o play. Enquanto o vídeo era exibido, percebeu um desconforto entre as três, principalmente da parte da mais baixa. No vídeo, que ela mesma havia assistido diversas vezes, estavam as instruções de como chegar a um alvo. Alguém importante, tão cercado de segurança quanto Andreiko e pior: conhecido da mídia. Observou os semblantes da três enquanto o vídeo era rodado. Adriana e Helena pareciam analisar tudo com detalhes, como se estivessem caçando erros, falhas da conduta do seu alvo. Carmen tentava acompanhar, mas parecia confusa. Realmente era novata, como dizia o dossiê que estava no 32


envelope de Erik. O vídeo era curto, e logo chegou ao final. Adriana se recostou no sofá, pensativa. Helena sorveu o último gole do seu uísque e fitou a companheira. — Você tem explicações para nos dar. — Terá suas explicações. — devolveu a ninja com seu jeito rude. — Foquemos nessa missão. — Desculpem se não compreendo. — disse Carmen, bebericando de seu copo. — Este homem no vídeo é o governador do Estado... — Este homem no vídeo é nosso primeiro alvo. — concluiu Adriana.

Fique de olho no Universo Nova Frequência para a continuação!

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