Searacasa: Origem - Parte I

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SEARACASA ORIGEM Por Alex Nery

O sol já havia se posto no horizonte havia bastante tempo. Um luar ocasional iluminava a trilha, pois densas nuvens impediam que a lua pudesse observar plenamente a terra. A floresta, apesar de possuir árvores muito altas, não era tão densa, o que permitiria um campo de visão razoável, não fosse a quase completa escuridão, quebrada apenas pelo brilho de poucas tochas empunhadas pelos homens que viajavam naquela noite desanimadora. A comitiva seguia praticamente em silêncio absoluto. À frente, o patriarca Maddeus, um homem na casa dos seus sessenta anos, guiava firmemente sua família pelo caminho estreito. O velho homem montava seu melhor cavalo, um garanhão negro, e vestia seu manto cerimonial, uma túnica vermelha ricamente ornamentada com botões de ouro. Seus cabelos compridos e grisalhos estavam bem penteados e amarrados por uma fita negra. Logo atrás, seguiam seus filhos, noras e netos, todos também bem vestidos, embora Maddeus fosse de longe o mais notável. Maddeus ouviu mais uma vez o irritante choro de seu neto, um bebê com seis meses de vida. Antes que o líder do clã Montagnarzi manifestasse seu descontentamento, Lugard, seu filho primogênito e pai da criança, ordenou rispidamente que a mãe contivesse o barulho do filho. Samena colocou os dedos sobre a boca delicada da criança e tratou de niná-lo. Os quatro cavaleiros e a carroça que transportava as mulheres e as três crianças pequenas continuaram avançando, mesmo quando o caminho se tornou um declive em direção ao vale abaixo. A vegetação começou a rarear à medida que entravam no vale. Aos poucos a trilha coberta por folhas secas foi sendo substituída por um rastro poeirento, característico do solo negro e rochoso daquela região, que era ladeada à


esquerda pelo monte Pierdut, e à direita pela floresta cerrada de Grim S’arta, conhecida pela má fama de ser um local assombrado. Cravos, segundo filho de Maddeus, olhou para a floresta e lembrouse das histórias que ouvira quando criança. Histórias que lhe causaram vários pesadelos, mas que ao mesmo tempo eram suas favoritas. Ele gostava das histórias sobre os espíritos que habitavam Grim S’arta e de como eles devoravam os viajantes solitários. Agora, adulto, as histórias não lhe assustavam mais, mas sempre se mantivera afastado da floresta negra obedecendo às ordens expressas de seu pai, que determinara que a floresta não deveria ser explorada por ninguém. Cravos emparelhou seu cavalo com a carroça que transportava sua esposa Kyria, sua cunhada Samena e seus três sobrinhos. Com um rápido olhar ele percebeu a preocupação que ocupava o belo rosto de Kyria. - Acalme-se... – disse ele suavemente à esposa. - Estou tentando, Cravos. Mas... – murmurou a assustada mulher. - Mas o quê? – insistiu o cavaleiro, falando baixo o bastante para que seu pai não o ouvisse. - Querido... Eu não entendo o que estamos fazendo aqui. Seu pai sempre evitou esta região, sempre proibiu que atravessássemos a floresta. E agora, veste-se como se fosse a uma festa e arrasta toda a família para cá! Eu não compreendo! - Na verdade nem eu entendo, Kyria. Ele planejou esta viagem logo depois de receber a visita desse estranho mensageiro... Cravos acenou levemente com a cabeça em direção ao quarto cavaleiro da comitiva. O homem era bastante magro e esguio. Possuía um perfil afilado, um nariz agudo que, juntamente com uma barba rala, marcava bastante seu rosto. Vestia um sobretudo negro, com aparência bastante gasta, que combinava com botas igualmente usadas, o que sugeria que ele teria percorrido enormes distâncias. - Não gosto deste homem. Você esteve na mesma sala que ele, como lhe parece? – perguntou Kyria.


- Não sei seu nome. Quando ele chegou solicitou audiência com meu pai e foi imediatamente recebido. Ele nada me disse, apenas me olhou e seus olhos me pareceram muito mais antigos do que ele próprio... Não sei explicar – disse Cravos desviando o olhar da figura sombria. Neste momento Maddeus parou seu cavalo e voltou-se para o mensageiro. Murmurou alguma coisa impossível de se ouvir à distância. O homem magro apontou para a direita, em sentido nordeste. O patriarca olhou para trás, conferindo a atenção de seus seguidores, e movimentouse na direção indicada. Foi prontamente seguido pela família. A impaciência de Lugard era quase palpável. Ele puxava as rédeas de seu cavalo com força desnecessária. Assim como os demais, estava curioso sobre qual o objetivo daquela viagem inesperada. Quando fora convocado por Maddeus e avisado de que deveria preparar os cavalos, pensou em questionar o pai, mas seus questionamentos nunca acabavam em boa coisa. Geralmente era obrigado a obedecer e não tinha sua opinião levada em conta, causando apenas irritação em ambas as partes. Resolvera, então, calar-se, mas estava no limite de sua tolerância. Imaginava se teria o apoio de Cravos caso resolvesse tomar a liderança do clã ali mesmo, depondo seu pai, que estava obviamente senil. Cavalgaram ainda por cerca de trinta minutos até encontrarem uma clareira em frente ao sopé do monte Pierdut. Trinta metros adiante, a trilha encontrava seu fim junto à um íngreme penhasco. Trinta metros abaixo, corria o rio Nesfarsit, o maior da região e que cruzava todo o domínio dos Montagnarzi. - É aqui. Vamos apear – ordenou Maddeus. Maddeus desceu apressadamente do cavalo, sendo imediatamente seguido pelo estranho visitante. Lugard, antes de descer de seu animal, encarou a entrada negra da caverna que se abria à frente de todos. - Não vai querer que entremos aí, ou vai? – murmurou o primogênito rangendo os dentes. Se ouviu a reclamação do filho, Maddeus ignorou completamente. O patriarca esfregava as mãos como se buscasse calor, mas a noite era


quente o bastante para que quase todos tivessem suas roupas empapadas de suor. Samena e Kyria desceram da carroça com as três crianças. O bebê voltara a chorar, enquanto as duas crianças maiores, Ludion, um menino de oito anos, e Sabita, uma menina de cinco, tinham um aspecto choroso e assustado. Cravos apeou e amarrou seu cavalo na própria carroça. Em seguida, acariciou a cabeça das crianças tentando lhes dar algum consolo. Maddeus e o visitante cochichavam em frente à entrada da caverna, ignorando os demais. Lugard perdeu o que restava de sua pouca paciência. - E então, pai? – disse em voz alta – Saímos de nossa casa e viemos para este lugar ermo conforme quis. E agora? Maddeus lançou um olhar de desprezo ao filho. - Cale-se, idiota – respondeu o patriarca, logo dando-lhe as costas. O sangue subiu à face de Lugard, deixando-o vermelho como um tomate. - O quê?? Nos arrasta pela noite como cachorros e acha que não nos deve uma explicação? - Não lhe devo nada, imbecil. Agora CALE-SE! – ordenou Maddeus encarando o filho. Lugard desceu a mão até o cabo da espada que pendia em sua cintura. Cravos adiantou-se um passo, mas Kyria segurou-o pelo braço. - Pensa que sou um de seus escravos para ser tratado assim? Bah! Todos podem ver a sua loucura, pai. Somente um louco agiria desta maneira, trazendo-nos até aqui, nesta escuridão, sem uma escolta, nos deixando à mercê de nossos inimigos! - Pense o que quiser. EU sou o líder Montagnarzi! Meu desejo é uma ordem, e todos você existem para servirem aos meus desejos! – bradou Maddeus, também apoiando-se na espada – Ou tu, Lugard, acha que podes ser o novo líder? Bah, não és homem o bastante!


Lugard desembainhou sua espada e partiu contra o pai. Ergueu a lâmina com ambas as mãos e descreveu um amplo arco descendente, buscando atingir a cabeça de Maddeus. O velho patriarca bloqueou o golpe com sua própria espada, enquanto com a mão livre enfiou uma adaga no pescoço do primogênito. O sangue jorrou abundante. As mulheres e crianças gritaram, enquanto Cravos observava incrédulo. Com um gesto abrupto, Maddeus empurrou o corpo do filho para trás, e este caiu inerte no solo. - Mais alguém quer me questionar? Tu, Cravos? – indagou o patriarca assassino exibindo a adaga. Cravos nada respondeu. Permaneceu imóvel, contemplando o corpo do irmão, enquanto Kyria gritava ao seu lado e Samena agarrava-se aos filhos. Maddeus limpou a adaga em sua luxuosa capa. A cena pareceu não perturbar o estranho visitante, pois ele não esboçara nenhuma reação. Subitamente, ruídos vindos da caverna atraíram a atenção de todos. Algo parecia arrastar-se pesadamente na escuridão. Cravos ergueu uma tocha, buscando observar de onde vinham os sons agonizantes. Assustadas, as mulheres e crianças calaram-se. A sombra saltou por sobre Maddeus e o estranho, caindo ruidosamente sobre o corpo de Ludgard. As luzes das tochas finalmente puderam revelar o que as trevas escondiam e Cravos preferiu que não houvesse tocha alguma ali. Uma criatura semelhante a um morcego-humano, pouco mais alto do que um humano comum, levantara o corpo de Ludgard e sugava avidamente o sangue que vertia pelo corte do pescoço. Num gesto rápido, com uma das mãos, a criatura arrancou a cabeça do primogênito Montagnarzi e passou a beber o sangue do toco do pescoço, produzindo repugnantes sons enquanto espremia o cadáver. Cravos e as mulheres gritaram. As crianças correram. O monstro ergueu-se e Cravos pôde notar os detalhes daquele pesadelo. Possuía seus olhos vítreos e, juntamente com suas orelhas pontudas, tinha um nariz achatado. Suas pernas eram semelhantes às humanas, porém seus braços eram bem mais longos e


terminavam em mãos possuidoras de dedos pontiagudos. Era magro, esquelético até. Abriu os braços, exibindo uma membrana que se estendia dos braços ao tronco, e guinchou horrivelmente. Samena não aguentou a visão demoníaca e desmaiou levando o bebê ao chão consigo. Cravos instintivamente puxou Kyria para trás de si e desembainhou a espada. O monstro-morcego farejou o ar e pareceu sorrir, exibindo a boca manchada de sangue fresco. Com um salto desajeitado, porém rápido, caiu ao lado de Cravos. Empurrou o homem com facilidade, fazendo com que Cravos batesse a cabeça contra a carroça. O filho de Maddeus caiu, estonteado, no chão. A visão de Cravos escureceu por completo. Ele ainda sentia o cabo na espada em sua mão, mas não conseguia mover-se. Sacudiu a cabeça com força até voltar a perceber a luz bruxuleante das tochas. Olhou em volta a tempo de ver o monstro rasgar com suas presas o peito de Samena e lambuzar-se em seu sangue. O bebê jazia fincado no solo, perfurado pelas garras do monstro. Kyria agarrara uma tocha e tremia à olhos vistos. - Kyria! Corra! – gritou Cravos. A esposa obedeceu imediatamente. Correu até o cavalo mais próximo e agarrou suas rédeas. Porém, quando ia montar no animal, teve seu movimento interrompido pela adaga arremessada que cravara-se profundamente em suas costas. Gritou de dor e caiu ao chão. - Ninguém sai daqui até eu mandar – disse Maddeus com voz gélida. - Kyria! Nãããoooo!!! Enfurecido, Cravos levantou-se e, por um breve instante, esqueceuse do monstro animalesco. Ergueu sua espada e gritou em direção ao patriarca Montagnarzi. - Vou matá-lo por isso, pai! - Eu duvido, filho imprestável. Cravos avançou um passo em direção ao pai, mas foi detido pelas mãos da criatura que caíram sobre seus ombros. O monstro possuía uma força de dez homens e logo forçou Cravos a ajoelhar-se. O homem sentia


o calor do hálito bestial cada vez mais próximo, juntamente com o fedor de sangue. Debateu-se, tentando erguer a espada. O monstro cravou suas presas no pescoço do cavaleiro causando-lhe uma dor lancinante. Cravos sentiu as presas rasgarem seus músculos, enquanto uma língua áspera sorvia o sangue do ferimento. Sua visão tornava a escurecer. Num ímpeto de sorte, ergueu o braço armado e acertou um dos olhos do monstro. A besta guinchou, atingida talvez em seu único ponto fraco. Um sangue mais negro do que a própria noite esguichou do olho vazado, banhando tanto a criatura quanto o homem que tentava escapar do ataque. O demônio soltou Cravos e recuou um passo. Maddeus gritava algo que Cravos não conseguia compreender. Sua vista estava turva e o ferimento ardia mais do que o corte de uma espada. Ergueu-se cambaleante. Viu seu pai avançar de espada em punho e percebeu que ele iria matá-lo. A espada em sua mão direita parecia pesar toneladas. Não conseguiria defender-se. Inesperadamente, sentiu novamente as mãos do monstro-morcego agarrarem seu braços. Foi erguido do solo com violência. Não conseguia exercer nenhuma resistência. Era seu fim. O morcego o sacudiu-o furiosamente e arremessou-o pelos ares. O corpo de Cravos bateu violentamente contra a encosta do monte e o som de ossos se partindo foi percebido por todos. O corpo rolou novamente até a clareira e então o monstro-morcego o agarrou mais uma vez. O ferimento em seu olho continuava sangrando e aumentando o ódio contra aquele que o havia provocado. Torceu o corpo de Cravos como um boneco de pano, fazendo com que a coluna cervical do homem estalasse em várias partes. Por fim, arrastou-o e chutou-o para o penhasco. O corpo caiu batendo-se contra as pedras e, por fim, o restante caiu nas águas escuras do Nesfarsit. A respiração ruidosa do monstro era agora o único som na clareira. Maddeus continuava empunhando a espada, mas sabia que ela seria inútil contra aquela criatura, enquanto o mensageiro permanecera exatamente no mesmo lugar o tempo todo, sem esboçar qualquer reação. A criaturamorcego caminhou até os dois homens, lambendo o sangue de suas garras. Parou a cerca de três passos dos humanos. - Negru Noapte, meu mestre! – exclamou o mensageiro ajoelhando-se.


O monstro olhou para o humano ajoelhado e estendeu sua mão, tocando sua cabeça brevemente. O homem ergueu-se com uma reverência. - Aqui está, mestre. Maddeus Montagnarzi. Aquele que jurou devotar-se ao senhor e à sua causa sombria. Os olho são da criatura emitia agora um brilho vermelho, enquanto a órbita antes vazia pelo ferimento causado por Cravos, agora enchia-se de um visgo leitoso. O monstro caolho encarou o patriarca assassino e então ouviu-se sua gutural voz pela primeira vez: - Concedo riquezas e poder àqueles que me seguem, humano. Mas poucos são dignos de minha atenção. - Seu servo, Bataus, já me informou sobre isso, senhor. E como prova de minha disposição eu trouxe toda a minha descendência para oferecer em sacrifício, conforme me foi informado que seria do seu agrado – replicou Maddeus. - Eu poderia recusar tua oferenda – disse o monstro tocando no olho vazado -, mas me apraz encontrar vítimas que lutam ao invés dos carneiros de sempre. Sendo assim, escuta bem, Maddeus Montagnarzi: Sou Negru Noapte, e repouso aqui antes mesmo que teu avô desse o primeiro passo na terra. Bataus te trouxe até mim pois, segundo ele, és um homem poderoso e que não se detém frente a nenhum obstáculo. Pois bem, te darei poder para dominar todas as terras até onde tua vista alcança e serás o homem mais poderoso deste mundo. Que tu tens a dizer? - Vi teu grande poder, mestre Noapte, porém, já vi e vivi muita coisa em minha vida. Já matei homens com armas e com as mãos nuas, já desfrutei das mulheres dos inimigos e logo depois as afoguei no sangue de seus filhos, então pouca coisa pode me impressionar. E quando pela primeira vez encontrei Bataus e ele citou vosso nome, indaguei todos os estudiosos sob meu comando. E todos demonstraram temor quando me revelaram sua história. Uma história que me impressionou pelo poder que lhe conferia. Acreditei em seu servo e aqui estou. Resta saber o preço.


- Tu me servirás. Governarás a todos em meu nome e estenderás minha sombra sobre todos os humanos. Este é o preço – respondeu diretamente o monstro. Maddeus observou em silêncio aquela criatura sobrenatural. Percebeu que ela não apresentava mais aquele aspecto cadavérico, e parecia-lhe que haviam mais músculos sobre os ossos antes aparentes. - Eu aceito teu preço, mestre Noapte – disse por fim o patriarca. - Tua primeira missão é concluir tua oferenda, Maddeus – disse a criatura com brilho nos olhos vermelhos. - Concluir? - Esqueceste, Maddeus, que teus netos fugiram? – respondeu o morcego com um sorriso largo que exibia suas presas. - Malditos sejam! - Quero que traga as crianças. Encontre-as, pois quero prová-las esta noite! – ordenou Negru Noapte – Cumpre esta missão e falaremos de poder. - Como quiser. Os filhos de uma porca não podem ter ido longe! Maddeus apressou-se em entrar na mata, seguindo a trilha deixada por Ludion e Sabita. Havia ido longe demais, e não deixaria tudo escapar pelos dedos agora. Encontraria e traria os netos para Negru Noapte de qualquer maneira.

Continua...


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