Travessias estudos de literatura e imigração

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SHIRLEY CARREIRA ANDREA PESSANHA ANNA CAROLINA MAIA CÉLIO SARAIVA FÁBIO CUSTÓDIO LUCIANO LAGE

TRAVESSIAS: ESTUDOS DE LITERATURA E IMIGRAÇÃO


Shirley Carreira Andrea Pessanha Anna Carolina Maia Célio Saraiva Fábio Custódio Luciano Lage

TRAVESSIAS: ESTUDOS DE LITERATURA E IMIGRAÇÃO

Belford Roxo UNIABEU 2015


@ Shirley de Souza Gomes Carreira et al. Diagramação e capa: Shirley de S. G. Carreira

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) C314t Travessias: estudos de literatura e imigração / Shirley de Souza Gomes Carreira [et al.] ; Revisão: Shirley Carreira – Belford Roxo : UNIABEU, 2015.

ISBN: 978-85-98716-11-4 Esta disponível online em: www.uniabeu.edu.br 1. Literatura contemporânea 2. Memória étnica. 3. Imigrações. 4. Identidade. I. Carreira, Shirley de Souza Gomes II. Título CDD 869.3 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Luís Claudio Borges


SUMÁRIO À guisa de introdução......................................................................

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Travessias do espaço Identidade, deslocamento e mobilidade cultural.................................

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Andréa Santos da Silva Pessanha Shirley de Souza Gomes Carreira Travessias da memória A interpretação da lembrança e do esquecimento.............................

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Shirley de Souza Gomes Carreira Travessias da palavra Nas dobras da memória: identidade e pertencimento em Nihonjin, de Oscar Nakasato...........................................................................

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Shirley de Souza Gomes Carreira A saga dos imigrantes indianos nos EUA: diáspora, choque cultural, assimilação e reinvenção, na ficção de Jhumpa Lahiri......................

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Célio dos Santos Saraiva Fábio da Silva Custódio Vidas em trânsito: uma leitura de A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, e Os hungareses, de Suzana Montoro.........................

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Shirley de Souza Gomes Carreira Songdogs: a reescrita do passado pelo viés da memória................. 68 Andréa Santos da Silva Pessanha Shirley de Souza Gomes Carreira Quando o subalterno fala — construções sociais da subalternidade na literatura indiana contemporânea..................................................

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Shirley de Souza Gomes Carreira Anna Carolina Teixeira Maia Representações da identidade em “A filha única do filho mais velho” e “Só bondade”....................................................................... 85 Luciano Lage Feitosa Filho


À guisa de introdução

Esta obra resulta da pesquisa realizada no âmbito do projeto Travessias do espaço, do tempo e da memória: representações do imigrante na literatura contemporânea, contemplado no Edital FAPERJ, 14/2013 de Apoio a Projetos de Pesquisa na Área de Humanidades. Sob a coordenação da Profa. Dra. Shirley de Souza Gomes Carreira, a pesquisa foi realizada com a colaboração da Profa. Dra. Andréa Santos da Silva Pessanha e dos bolsistas de iniciação científica: Anna Carolina Maia da Silva Teixeira, Célio dos Santos Saraiva, Fábio da Silva Custódio, Fernanda Enta, Luciano Lage Feitosa Filho, Priscila de Sá Braga Fonseca e Vinícius Queiroz. Executada em um período de quatorze meses, nas dependências do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da UNIABEU, a pesquisa partiu da análise do conhecimento dos discentes de Letras e História sobre o tema da imigração no Brasil, focalizando especificamente a representação do imigrante na literatura contemporânea. O exame de obras literárias que focalizam a imigração não apenas demonstra que elas refletem fases específicas do processo de aculturação do imigrante como também revela o papel da literatura na configuração midiática da memória étnica, concorrendo para a transmissão, transformação e condicionamento dessa memória no meio social, uma vez que a imagem social do imigrante, muitas vezes estereotipada, é construída, transmitida e sedimentada pelas mídias. Esse processo é, em grande parte, desconhecido do público leitor, inclusive de alunos de cursos de graduação, que, teoricamente, em algum momento, deveriam ter tido acesso a informações sobre o panorama das migrações no Brasil e no mundo. A investigação crítico-teórica das obras A chave de casa e Primos, de Tatiana Salém Levy, Os hungareses, de Suzana Montoro, O xará, Interprete

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de Males e Terra descansada, de Jhumpa Lahiri, Songdogs, de Colum McCann, e Nihonjin, de Oscar Nakasato, permitiu traçar um perfil da representação da identidade cultural do imigrante, das fases específicas do processo de inserção social do indivíduo que passa pela experiência da desterritorialização e das relações de seus descendentes com a tradição. A pesquisa resultou também em um site permanente de consulta sobre a representação do imigrante na literatura, acessível no site da UNIABEU: http://www.uniabeu.edu.br/representacaodoimigrante A publicação desta obra representa uma contribuição para os estudos de migração em sua interface com a literatura e a história. Os autores

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Travessias do espaço

Identidade, deslocamentos e mobilidade cultural Página | 5

Andréa Santos da Silva Pessanha Shirley de Souza Gomes Carreira

No Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos, Aimée Bolaños (2010, p.167) afirma que o conceito de diáspora na contemporaneidade surge “ressemantizado”, focalizando as identidades em trânsito, seja numa perspectiva cosmopolita do sujeito diaspórico, seja na perspectiva da tensão dos discursos do lar e da dispersão, seja pelo ato tradutório da cultura. Do conceito tradicional de diáspora, associado à ideia de exclusão até o debate contemporâneo, a figura do sujeito diaspórico merece um olhar reflexivo. Em sua origem grega, diáspora tem o sentido de dispersão, de algo que se espalha. Em Global Diasporas, Robin Cohen (1997, p.1-2) identifica quatro fases nos estudos da diáspora: a primeira, ligada à interpretação original da palavra, focaliza a dispersão judaica e, pela proximidade da situação histórica, a africana e palestina; a segunda, a partir de 1980, expande-se para um uso metafórico da palavra “diáspora”, uma vez que abrange categorias diversas, como expatriados, exilados políticos, imigrantes e minorias étnicas e raciais; a terceira consiste em uma tentativa de desconstrução de elementos cruciais para o conceito de diáspora: as noções de “terra natal” e de “comunidade étnica e religiosa”, e a última, mais contemporânea, visa à discussão da fluidez do conceito de identidade. Na diáspora, o vínculo do homem ao seu espaço de origem é drasticamente rompido. O processo de desterritorialização, exceto se do ponto de vista do nomadismo, promove uma tripla ruptura: espacial, identitária e cultural.


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Entretanto, assim como há um território de partida, há um território de chegada e o processo de reterritorialização implica na transposição de todo um imaginário cultural, do sentido de uma comunidade imaginada, à qual um indivíduo pertence.

Esse local de pertencimento, a que Marc Augé (1994)

define como “lugar antropológico”, é deixado para trás e, para que o sentido de pertença se reestabeleça, novos laços necessitam ser construídos. Para o sujeito diaspórico, na maioria das vezes, o retorno ao território— geográfico ou mítico—, bem como a matriz cultural originária, é impossível, restando-lhe como recurso o détour (desvio), conforme as formulações de Glissant1, ou seja, as estratégias que desenvolve para manter viva a cultura, a preservação das tradições e o idioma natal. Os estudos da diáspora têm servido de paradigma para a análise de outras formas de deslocamento, ou seja, de outros tipos de mobilidades migratórias transculturais, ou seja, o exílio, a expatriação e a migração. E todos esses casos, o sujeito passa por um processo de exposição à outra cultura, com a qual pode ou não interagir. John Berry, psicólogo intercultural, parte do pressuposto de que “todo o comportamento é formado, até certo ponto, pelo contexto cultural dentro do qual o indivíduo foi criado e agora vive” (BERRY, 2004, p.29). Para ele, o processo de aculturação mais bem- sucedido é o de integração, que depende de reciprocidade e acomodação mútuas. A ausência desses dois elementos pode levar o sujeito à inadaptação ou a uma relação conflituosa com o país de adoção. A visão antropológica da aculturação como fenômeno define-a como mudanças decorrentes do contato entre grupos. Curiosamente, embora as mudanças sejam bidirecionais, os grupos minoritários tendem a não percebêlas claramente. Ao analisar as estratégias interculturais nos grupos em contato, Berry concebe uma gradação no processo de manutenção da cultura e identidade, que resulta no gráfico a seguir:

1

Em Les discours antillais, Glissant formula os conceitos de retour e détour aplicando-os à diáspora africana, que resultou da escravidão; condição que tornava impossível o retorno.

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Questão 1 Manutenção da cultura e da identidade

+

-

+

-

+ Página | 7 integração assimilação

Multiculturalismo melting pot

separação marginalização

Questão 2

segregação

exclusão

Relacionamento entre grupos

-

Estratégias de grupos não dominantes

Estratégias de grupos dominantes

A assimilação implica no total desenraizamento; a integração consiste em um processo simultâneo de manutenção das raízes e de interação com outros grupos; a separação é gerada pelo apego à herança cultural associado ao desinteresse em interagir com o grupo dominante e, finalmente, a marginalização ocorre mediante a perda das raízes e a concomitante rejeição do contato com outros grupos. Entretanto, a escolha nem sempre depende do sujeito. Quando é o grupo dominante que impõe certas regras de relacionamento, ou mesmo restringe a interação, a dimensão é outra, passando por estratégias que variam do multiculturalismo à exclusão. Assim, o multiculturalismo resulta de uma acomodação mútua; o melting pot (cadinho cultural) de uma assimilação conduzida pelo grupo dominante; a segregação, de uma separação imposta, e a exclusão é o resultado da imposição do processo de marginalização. Claro está que essas estratégias também se aplicam às migrações internas. O modelo de relação intercultural de Berry auxilia na concepção das diversas maneiras do sujeito posicionar-se em relação à própria cultura e à cultura dominante, levando à compreensão da formação das identidades híbridas.


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A identidade, do ponto de vista antropológico, pressupõe a existência da alteridade: apenas sei quem sou em função da existência de um outro. Entretanto, o olhar sociológico sobre a identidade, define-a a partir do sentido de pertencimento a um grupo, no espaço de interação social. Esse sentimento de pertença evolve não apenas da identidade nacional, mas também da identidade cultural e étnica. Antes do século XVIII não havia uma concepção de nação propriamente dita. Segundo Hobsbawn (1991, pp. 49-50), a condição para o surgimento da identidade nacional dependia de três critérios básicos: o povo necessitava estar associado a um Estado existente, que possuísse uma língua e uma cultura comuns, além de demonstrar força militar. Assim, a concepção da identidade nacional passa por mediações que permitem o compartilhamento do idioma, de uma história com raízes longínquas, uma tradição, um folclore, além dos símbolos oficiais que representam a nação. Os integrantes dessa comunidade se reconhecem nesses traços e a eles aderem. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a nação é uma "comunidade imaginada". A identidade cultural é o conjunto vivo dessas relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados que estabelecem a comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade. O estudo das mobilidades humanas exige também a percepção da natureza da identidade étnica, que, ao contrário da identidade nacional, ancorase a uma herança ancestral, que embora possa ser rejeitada, não pode ser alterada. Ela pressupõe o compartilhamento de elementos como cultura, raça, religião, linguagem e parentesco. No contexto da imigração, geralmente a identidade étnica se faz mais presente. O que antes era visto como um procedimento normal e rotineiro passa a emergir como um traço distintivo de identidade e unificação do grupo (PHINNEY, 2004, pp. 51-52). A organização de grupos étnicos na forma de associações ou clubes é uma das estratégias adotadas para a manutenção da memória étnica: Quanto maior a relevância da “etnicidade”, mais as suas características são representadas como relativamente fixas, inerentes a grupos, transmitidas de geração em geração não apenas pela cultura e a educação, mas

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também pela herança biológica, inscrita no corpo e estabilizada, sobretudo, pelo parentesco e pelas regras do matrimônio endogâmico, que garantem ao grupo étnico a manutenção de sua “pureza” genética e, portanto, cultural (HALL, 2003, p.70). Página | 9

Se por um lado, a primeira geração de imigrantes manifesta o desejo de perpetuação da herança cultural, por outro, a segunda geração de imigrantes é geralmente constituída de identidades híbridas, ou seja, de indivíduos que manifestam uma identidade nacional ligada ao país de residência, mas ainda mantêm traços, embora bem mais brandos, da identidade étnica. A compreensão do processo de configuração dessas novas identidades perpassa, segundo Hall (2003) o conceito derridiano de différance, uma diferença que não funciona através dos binarismos. Em Reflexões sobre o exílio, Said (2003, p.47) afirma que o século XX é, efetivamente, “a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. É também a era dos homens “traduzidos” (RUSHDIE, 1991, p.16), dos que, migrando, adotam uma postura cosmopolita, dissociada do conceito de lugar antropológico. O termo “tradução” não se reporta “prioritariamente aos processos interlinguísticos de transferência de significados, mas ao deslocamento e à inserção de sujeitos num novo meio cultural que, por sua vez, se hibridiza com a sua presença” (BLUME, 2014, p.60). Em

Recit d'une

emigration,

Fernand Dumont

sugere

que

a

desterritorialização “constitui uma condição fundamental para assegurar a seres deslocados de sua origem a disponibilidade para o novo e para a descoberta das relativizações decorrentes do descentramento identitário” (apud PORTO, 2004, p.43). Nesse processo, o idioma é uma ponte, “uma forma privilegiada de migração e de metamorfose, através da qual é possível interrogar as relações entre o Mesmo e o Diverso, as noções de fronteira, origem, cultura e o imaginário relativo a múltiplos pertencimentos” (PORTO, 2004, p.50). É no intercâmbio entre a língua estrangeira e a língua materna que se dá o processo tradutório, mas é também nesse espaço que os laços com a herança cultural se manifestam.


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De uma maneira ou outra, é nessa zona de contato que o sujeito, a partir da percepção de si e do outro, tem também a oportunidade de reinventar-se, de conferir a si próprio a experiência de uma nova identidade. Página | 10

Referências bibliográficas

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da

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Travessias: estudos de literatura e imigração

RUSHDIE, S. Imaginary homelands. Londres: Granta Books, 1991. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ______. Reflexões sobre exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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Travessias da memória Interpretação da lembrança e do esquecimento

Shirley de Souza Gomes Carreira

Considerada como a capacidade humana de inscrever e relembrar vivências experimentadas em um tempo passado, a memória vai além da esfera psíquica. Bergson, filósofo que propôs a “dessubjetivação” da memória, a compreendia como duas manifestações distintas: a memória-hábito, ou procedural, fruto da repetição de ações no âmbito de nosso acervo cultural, e a memória singular, a que denominava “ressurreição do passado”, de caráter evocativo e não filiada à repetição de comportamentos. A memória-hábito é fruto de uma narrativa coletiva. Em O tempo vivo da memória, Ecleia Bosi (2003, p.17-18) afirma que em todo mito ou ideologia há uma narrativa coletiva privilegiada, que explica, legitima e serve ao poder que a difunde. Assim, ao ser produzida no interior de um grupo ou de uma classe, ainda que apresente desvios, preconceitos e inautenticidade, a memória é transmitida, e as ideias e valores de que se alimenta vão conferir identidade àquele grupo ou classe que a produziu. Os estudos de Halbwachs (1990) sobre a memória e a história pública têm norteado essa concepção da memória como um produto social. Para ele, a memória individual existe, mas está presa à trama dos tecidos sociais e depende também das interações, do modo como o indivíduo se relaciona com a família, com seus pares e com a herança cultural. Assim, a memória individual está invariavelmente atrelada à memória do grupo a que pertence e a deste à esfera da tradição, que constitui a memória coletiva da sociedade. Claro está que Halbwachs não ignora o fato de que a memória individual ou coletiva pode modelar o passado segundo padrões e valores ideológicos permeados pelo preconceito ou por preferências.


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A memória coletiva não pode ser confundida com a memória histórica, esta também capaz de conferir às informações factuais uma narrativa moldada por grupos dominantes que buscam defender-se da erosão da mudança. Assim, não existe o “fato puro”, conforme afirma Bosi (2003, p.19), mas uma Página | 13

narrativa carregada de representações ideológicas. A memória coletiva pode ser reproduzida de tal maneira que os acontecimentos sejam vivenciados indiretamente, segundo Pollack (1992), e de tal forma que se torna, às vezes, impossível dissociar a memória herdada daquilo que realmente ocorreu. A memória da infância, via de regra, sofre a influência dos relatos de familiares, confundindo-se com a rememoração do fato em si. No ato de recordar, os indivíduos precisam utilizar convenções sociais que não são criadas por eles: a memória individual necessita das palavras e das ideias; instrumentos que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Halbwachs

reitera

a

tese

durkheimiana

da

preponderância

da

consciência coletiva sobre o indivíduo, considerando-a um fator de coesão de um grupo. Diferentemente, Pollack busca evidenciar os elementos de violência simbólica nela existentes. Em “Memória, Esquecimento, Silencio”, Pollack (1989, p.6), ao analisar criticamente a perspectiva de Halbwachs, se reporta a outro tipo de memória, subterrânea, de grupos minoritários, construída na fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, suscitada pelo trauma e perpetuada em paralelo à memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. Grupos que experimentaram o trauma da guerra ou a violência das ditaduras frequentemente optam pelo silêncio, pelo esquecimento, como que para apagar os rastros da experiência. No entanto, a perspectiva do desaparecimento das testemunhas faz com que o silêncio seja rompido, resultando em múltiplos registros do trauma. Os impasses entre a memória e o esquecimento voltam à tona sempre que há a necessidade de revolver os arquivos relacionados a conflitos, guerras


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e períodos de opressão política. Esses impasses continuam vivos em quem passa pela experiência da diáspora, de uma migração forçada. Para Huyssen (2000, p.12), o mundo contemporâneo experimenta “o paradoxo da globalização”: por um lado o homem se vê diante de um acúmulo de informações, que, embora não passíveis de um completo processamento pela mente humana, estão ao alcance da mão por meio de uma sempre crescente parafernália tecnológica; por outro, assombra-o o temor do esquecimento. Essa obsessão pela memória resulta da necessidade de um mínimo de horizonte histórico que torne possíveis o diálogo entre gerações e a leitura e a tradução entre tradições. A forma como o presente pode falar de seu passado, bem como a forma de transmissão da experiência tornou-se, assim, um profícuo campo de investigação. Para Candau (2011, p.18), “a memória é a identidade em ação” e pode , ao contrário do que se espera, arruinar o sentimento de identidade, “tal como mostram os trabalhos sobre as lembranças de traumas e tragédias”. Assim, “o jogo da memória que vem fundar a identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimentos”. Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento, elabora os conceitos de “memória impedida”, “memória manipulada” e “esquecimento de reserva”, compreendidos pelo autor na perspectiva das dimensões abusivas da apropriação da memória para o tratamento dos vestígios e testemunhos visando uma escrita historiográfica. Para elaborar esses conceitos, Ricoeur apropria-se de dois textos fundamentais de Freud: “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914) e “Luto e Melancolia” (1915). Para Ricoeur, a perda ou o trauma podem gerar um esquecimento consciente de impressões de um passado distante, associado à formação de alterações nas lembranças, que, em última analise, resulta em uma forma de defesa, tornando a construção dos sentidos do passado um processo extremamente doloroso. A memória impedida constitui uma forma de compulsão de repetição, de modo que o trajeto da memória não se completa na medida em que o sujeito

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não trabalha o fato passado transformando-o em lembrança, mas apenas o repete. A memória manipulada, por sua vez, situa-se no campo das relações de poder, pois são as relações de força que constroem e forjam versões da memória e do esquecimento. O esquecimento de reserva é seletivo e consiste em um manancial de lembranças inconscientes, arquivadas, mas disponíveis mediante o esforço para recuperá-las. Candau nos faz lembrar que as operações da memória em um sentido coletivo são também subordinadas à cultura dos povos. “Há culturas nas quais a memória, uma vez que é sempre atualizada, é percebida como um perigo para a identidade de pessoas desaparecidas”, caso dos manouches, que não falam dos mortos por temer que as lembranças possam trair a personalidade do defunto (CANDAU,2001, p.129). Contemporaneamente, arquivos, testemunhos, depoimentos, registros e relatos, na condição de locais de memória, têm sido utilizados como vestígios de um passado que foi deliberadamente esquecido pelas versões oficiais da história. As barganhas resultantes das anistias políticas passam por um processo de exposição, revelando a manipulação da memória e do esquecimento por parte de governos, totalitários ou democráticos, que têm como objetivo alcançar controle político sobre forças antagônicas. Segundo Nora (1993), a memória está sempre aberta à dialética de lembrança e esquecimento. Importa, assim, saber o que o grupo deseja lembrar e o que deseja esquecer. Por outro lado, não se pode ignorar o fato que a memória individual, em seus processos mnemônicos, não é uma mera atualização mecânica de vestígios, mas antes de tudo um processo ativo, que envolve um comportamento narrativo. A “narratividade” é necessariamente um processo mediado pela linguagem, que, por sua vez, é um produto social. Em uma obra que tem por objetivo tratar das interfaces entre memória e imigração, o comportamento narrativo associado à memória constitui um dado a ser examinado.

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Travessias: estudos de literatura e imigração

Não existe uma memória coletiva dissociada do compartilhamento ritualístico de suportes de memória. As lembranças comuns, as festas familiares, a conservação de saberes e de símbolos do grupo, como fotografias, histórias transmitidas pelos mais velhos e as comidas típicas, são fatores essenciais para a construção do sentido de pertencimento e da identidade coletiva e individual. A par da concretude dos objetos trazidos da terra natal e herdados por sucessivas gerações, é o comportamento narrativo do imigrante que se torna responsável pela transmissão da herança cultural. Narrar é preciso. A responsabilidade de transmissão evoca duas possibilidades evocadas por Candau (2011): a protomemorial e a memorial. A protomemorial age sobre os indivíduos de forma involuntária, advindo da imersão do mesmo no meio social, reproduzindo-o, conservando-o; a herança se apropriando do herdeiro de modo que este também possa apropriar-se dela (BOURDIEU apud CANDAU, 2001, p. 119). A transmissão memorial alia-se à evocação voluntária, estendendo-se aos “saberes enciclopédicos, às crenças, sensações e sentimentos, que se beneficiam da cultura de memória que promove sua expansão em extensões artificiais” (MATHEUS, 2011, p.303). A existência de “produtores autorizados” é uma condição para que os receptores percebam a transmissão como legítima. Esses produtores são os que conferem inteligibilidade à visão de mundo transmitida, ou seja, são os ancestrais, os chefes das famílias etc. Candau afirma que a crescente necessidade de memória do mundo contemporâneo é uma “necessidade metamemorial”, ou seja, uma necessidade da ideia de memória, que é indissociável da busca pelo esquecimento. A metamemória consiste na representação que fazemos das próprias lembranças, o conhecimento que temos delas. As obras de ficção sobre a imigração alimentam-se de pesquisas sobre história oral, de experiências pessoais de escritores que são eles mesmos escritores migrantes ou seus descendentes, de depoimentos e relatos. Procede, assim, a um processo de “exumação”

de tudo o que compõe a

memória dos imigrantes. No entanto, ao revirar o passado, o reinterpretam, o

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Travessias: estudos de literatura e imigração

revestem de uma nova roupagem, pautada pelo olhar contemporâneo, pelas experiências do hoje. Assim, os textos que se seguem tratarão do entrelaçamento entre a história, a memória e a literatura. O resultado é uma análise de um jogo em que enunciados históricos, recortes de memória e a ficção sobre eles se encontram e se metamorfoseiam, produzindo narrativas que, se não contam histórias reais, narram histórias que poderiam ter sido de qualquer um imigrante, em qualquer parte do mundo. Clio busca revelar as formas do passado e Mnemosyne modela-o. Ambas encontram no texto uma forma de perpetuação e a ficção acaba por tornar-se mais um dentre os muitos lugares em que se encontram, se atraem e se repelem, desafiando o leitor a ir além da palavra.

Referências Bibliográficas

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. 2. ed. São Paulo: Atelie Editorial, 2003. CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto,2011. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. MATHEUS, Letícia. Memória e identidade segundo Candau. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 302-306, dez. 2011. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/viewFile/6737/6073 Acesso em: 12 de maio de 2013. NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Tradução de Yara Aoun Khury. Projeto História, n. 10, 1993. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763 Acesso em: 2 de fevereiro de 2014. POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 5 (10), 1992. p. 200-212. ______.Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2008.

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Travessias da palavra Nas dobras da memória: identidade e pertencimento em Nihonjin, de Oscar Nakasato

Shirley de Souza Gomes Carreira

O tempo só existe porque se fazem coisas, umas após as outras, e elas, quando são evocadas, surgem em novas realidades. Oscar Nakasato (2011, p.174)

A identidade enquanto conceito pode ser compreendida em dois planos distintos: o interno, que consiste na percepção de si como membro de uma comunidade

e o externo, que corresponde ao reconhecimento desse

pertencimento como identidade social. Em sua interpretação do debate instaurado por Amy Gutman na obra Multiculturalisme: différence at démocratie, Jürgen Habermas coloca em evidência o que pensa ser consensual: o respeito pela identidade inconfundível de cada indivíduo, a par do seu sexo ou etnia, e o respeito pelas suas formas de ação, práticas e visões peculiares de mundo (HABERMAS, 2004, p. 240). Assim, pode-se dizer que a questão da identidade individual e da sua representação

social

depende

em

larga

escala

do

reconhecimento

(Anerkernnung). Estudos sobre a migração reportam-se frequentemente a fenômenos inerentes ao processo de integração de um indivíduo à nova terra, bem como ao que se convencionou denominar “choque cultural”, que envolve aspectos relativos ao reconhecimento do outro, à sua aceitação. As possíveis formas de resposta à situação da migração comprovam a dependência da identidade face ao reconhecimento. Ao migrar, um indivíduo abre mão de referenciais que ancoram a sua identidade, como, por exemplo, a

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pátria, o seu lugar antropológico (AUGÉ, 1995), o seu idioma, os seus costumes. Essa é uma tripla ruptura, como afirma Rushdie (1991, p.277-278): “Um migrante, na acepção completa da palavra, sofre, tradicionalmente, uma tripla ruptura: ele perde o seu “lugar”, adota uma língua estrangeira, e se vê cercado de pessoas cujo comportamento e códigos sociais são muito diversos dos seus”. Por mais que deseje manter os laços com a própria cultura, com a terra natal, a sobrevivência na pátria de adoção exige a integração, a adaptação. Esse processo de integração pode ocorrer de formas diferenciadas (BERRY, 1997, p.7), que variam de uma total assimilação, que afeta a identidade cultural e implica na rejeição das próprias raízes, à integração parcial, quando o imigrante é capaz de integrar-se ao novo ambiente sem, no entanto, abdicar dos seus referenciais identitários. Nem sempre o imigrante consegue adaptar-se. Há situações em que se coloca à margem da sociedade em que está inserido, seja pela recusa de interação com os atores sociais, seja pela recusa de aprender o novo idioma, assume uma condição periférica, uma espécie de protesto identitário contra a condição de imigrante. Sabemos, no entanto, que experimentamos identidades múltiplas, geradas em conformidade com os nossos diferentes interlocutores e com os cenários em que nos situamos (HALL, 2008). Adaptar-se nem sempre significa negar. Erik Erikson (1968, p.297) reporta-se a um tipo de identidade, a que denomina “surrendered identity”, que consiste em uma identidade latente, apenas “renunciada”, sujeita a uma práxis ditada pelas circunstâncias, mas que pode eclodir a qualquer tempo. Essa manipulação voluntária da identidade, gerada no processo de fricção interétnica, é, conforme afirma Oliveira (2006, p. 79) de ordem psicossocial. Este preâmbulo se faz necessário à análise do romance Nihonjin, de Oscar Nakasato, sobre o qual nos debruçaremos tendo por parâmetro a interrelação entre memória, identidade e pertencimento. O reconhecimento de si como pertencente a um grupo implica no compartilhamento de um idioma, de costumes, de uma identidade étnica ou nacional. No caso específico do imigrante, há que recorrer ao conceito de

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“identidade traduzida”, originalmente formulado por Salman Rushdie, com a expressão “homem traduzido”, ao definir identidades que são simultaneamente plurais e parciais (RUSHDIE, 1991). Essa dualidade do estatuto do imigrante é o cerne deste trabalho. Página | 21

1. Os laços da memória

A história da imigração japonesa no Brasil inicia-se em 18 de junho de 1908, data em que o vapor Kasato Maru atracou no porto de Santos, trazendo 781 imigrantes nipônicos. Todos haviam sido selecionados pela Companhia Imperial de Colonização Ltda. Vinham movidos pela busca de riqueza, uma vez que o Japão passava por um período de transformações políticas e econômicas ocasionadas pela Reforma Meiji. Na época, o Brasil vivia uma grande expansão cafeeira, necessitando de um amplo contingente de mão de obra e, justamente por isso, a imigração passou a ser incentivada. Por outro lado, o governo italiano havia proibido seus cidadãos de aceitarem transporte subsidiado para o Brasil, pois as péssimas condições de vida nas fazendas geraram muitas revoltas. Em represália, as autoridades brasileiras acusaram os imigrantes italianos de engajamento político indesejado, fomentado pelo movimento anarquista, impondo restrições aos que desejavam emigrar para o Brasil. Ante a necessidade de mão de obra, os fazendeiros pressionaram o governo brasileiro para considerar a imigração japonesa como alternativa (TAKEUCHI, 2007) A imagem do Brasil disseminada no Japão era a de uma terra em que era possível ganhar dinheiro e enriquecer com facilidade. Movidos pelo sonho de riqueza, muitos japoneses deixaram seu país, mas carregando com eles o compromisso do retorno. A ideia de uma ruptura temporária os acompanhou e talvez tenha sido a principal razão para a desilusão de muitos. Às dificuldades para ganhar dinheiro na nova terra somavam-se outras, como a diferença climática, a cultura, a alimentação, os hábitos, além da dureza das condições de trabalho e o fato de que muitos imigrantes haviam contraído dívidas ao partir para o Brasil, o que tornava ainda mais difícil atingir os objetivos.


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Esse é o background do romance Nihonjin, vencedor do prêmio Jabuti de 2012, que narra a história de gerações de uma família de imigrantes japoneses e revela a incompatibilidade entre sonhos, linguagens e vozes. Cabe ao neto do patriarca da família narrar a saga de Hideo Inabata, um japonês que emigrou de Kobe, Japão, para trabalhar nas fazendas de café do interior de São Paulo, e de seus descendentes. A construção da narrativa em Nihonjin, perceptível nas palavras do narrador, repousa no diálogo entre as informações que obtém sobre o passado, por meio de fotografias, documentos e conversas com o avô e o tio, e a sua própria capacidade criativa, que preenche as lacunas do desconhecido:

Homens e mulheres se instauram em algum momento, depois o tempo impõe os extravios. O tempo – sua reta inflexível como o traçado de uma flecha certeira no ar, sua norma inquestionável e singular— vai manchando as imagens, apagando algumas, gravando ruídos no verbo, e logo se duvida do que foi dito, ou se necessita preencher as elipses, realçar os contornos para que se possa ver, ou inventar traços em folhas em branco. Não se pode fiar em palavras [...](NAKASATO, 2011, p. 9) A fragilidade da reconstituição da memória individual é evidenciada nessa passagem do texto e, ao mesmo tempo, permite ao narrador vislumbrar nesses fragmentos de memória a forma de reconstrução de uma outra, estendida, passível de incorporar-se à história pessoal de outros migrantes. Para o imigrante, rememorar é um ritual de conexão com as origens, para manter viva a identidade étnica e cultural. Para Halbwachs (2004), as memórias são tecidas a partir da interação entre os indivíduos. Rememorar implica, assim, em contar histórias, de si próprio e do outro, engendrando a tessitura da memória coletiva. Segundo Hobsbawn (1984), o imigrante procura reinventar a ideia de pátria-mãe no país de adoção por meio das tradições, das comemorações, de modo a reafirmar a própria identidade. No romance, Hideo Inabata leva o ato de rememorar ao extremo, pois tenta compensar a distância geográfica da terra natal com uma idolatria da ideia de nação. Para ele, o Imperador, o trabalho, a família, a concepção

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patriarcal da sociedade, bem como a xenofobia tornam-se os alicerces de um purismo étnico que considera essencial à sobrevivência de sua própria identidade. É em nome dessa pureza étnica e pela certeza da superioridade dos japoneses que Hideo reprova Kimie, sua primeira esposa, por tentar fazer amizade com uma mulher negra, que conhecera na fazenda, no interior de São Paulo. Os japoneses que emigraram para o Brasil viveram um período de isolamento, já que nas fazendas para onde foram enviados havia imigrantes de outras nacionalidades, como os italianos, por exemplo. Os contatos sociais eram reduzidos, como registra Okamoto (2008, p. 30), e substituídos pela dedicação ao trabalho. No capítulo 1, há também uma passagem emblemática, que se reporta à fala de Hideo, quando este alardeia seu projeto de vida: ficar no Brasil de quatro a cinco anos e retornar para abrir um pequeno restaurante em Yokohama. Ao ouvi-lo, os demais imigrantes japoneses, que o narrador imagina em um encontro no convés do navio, em viagem para o Brasil, retrucam tal otimismo com murmúrios de saudade do Japão e dos familiares. Assim diz o texto: O Brasil ficava do outro lado do mundo, um lugar inimaginável, por mais que lhes dissessem que era uma ótima terra para ganhar dinheiro. Um país desconhecido, com homens estranhos, que podiam ser violentos, que poderiam querer impor normas difíceis ou até impossíveis de serem cumpridas por japoneses. Um país subdesenvolvido, onde podia haver epidemias. (NAKASATO, 2011, p.13) A resposta de Hideo revela o espírito com que muitos japoneses deixaram a terra natal: [...] ter uma ideia tão negativa a respeito de nossa ida para o Brasil é falta de patriotismo, é um desrespeito ao imperador. Ele quer que emigremos, que fiquemos um tempo em terra estrangeira, mas que voltemos depois, com bastante dinheiro, e ajudemos no desenvolvimento do país. Será a nossa contribuição (NAKASATO, 2011, p.14) A contrapor o otimismo de Hideo, há o desencanto de Kimie, a quem nunca fora concedida voz, nem a capacidade de sonhar. Kimie é apresentada

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ao leitor como uma personagem cujo estatuto está a meio termo entre o real e o ficcional; recuperada pela memória de Hideo em uma de suas conversas com o neto, mas recriada pela imaginação deste: “Mas gostei de Kimie, interesseime por ela. Pensei nela como personagem, alguém que nasceu da espera pela neve numa fazenda no interior de São Paulo”. ( p. 11) A ela cabe a maior decepção, ao ver a casa que habitariam na fazenda. O “cheiro que lhe parecia um pouco de urina, um pouco de comida estragada”, o piso de terra batida, os cômodos isolados por cortinas velhas penduradas em arame, a absoluta falta de móveis, acrescida da impossibilidade de comunicação em outra língua, dão a dimensão da angústia de Kimie. Dados sobre a dureza da vida dos imigrantes japoneses nas fazendas são representados no romance, como o fato de que, ao chegarem, eles encontravam casas caindo aos pedaços, vazias, e que tinham de fabricar seus móveis ou comprá-los na cidade, o que acabava se tornando muito difícil, devido ao fato de que o pagamento dependia da produção. Em Nihonjin, a agravar a situação havia o fato de que Kimie não dividiria esse espaço apenas com o marido. Em 6 de novembro de 1907, a Companhia Imperial de Colonização firmara um contrato com o governo de São Paulo, cujo objetivo era a vinda de 3000 agricultores japoneses. No entanto, deveria haver ao menos três membros em cada família, ou seja, deveria haver no mínimo “três enxadas” (TAKEUCHI, 2007, p.18). Como os parentes de Hideo e Kimie não quiseram acompanhá-los, eles se viram na necessidade de aceitar a presença de um agregado. Jintaro, o terceiro “membro” da família, carpinteiro em sua terra natal, juntara-se a Hideo na esperança de conseguir dinheiro e retornar. Ao aceitar viver sob o mesmo teto de Hideo, aceitara também a subordinação à liderança do outro. A fragilidade de Kimie, vista por Hideo, como fraqueza, é contemplada por Jintaro de outro modo. Sensível, dado a escrever poemas à luz da lamparina, ele conseguia compreender as inquietações da alma da mulher. Seus poemas reportavam-se à sua memória do Japão: a vermelhidão do céu no outono, o manto branco da neve sobre as cerejeiras no inverno, o canto do rouxinol a saudar a primavera e o canto das cigarras nas noites de verão.

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A breve relação amorosa entre Kimie e Jintaro reproduz também uma situação verossímil: a criação de um triângulo amoroso em função da constituição de famílias artificiais, sem laços de parentesco. O vínculo familiar, que originalmente contribui para o sentimento de pertença, não exerce o seu caráter integrador nesses casos, gerando insatisfação, competição e desavenças. Segundo Takeuschi (2007, p.21), os agregados eram os primeiros a abandonar a dura vida como trabalhadores contratados, fato também representado no romance, com a partida de Jintaro. A falta de avaliação dos candidatos por parte da Companhia Imperial de Imigração fez com que muitos japoneses que não eram agricultores, como Jintaro, viessem trabalhar nas lavouras. Suas mãos, longamente dedicadas a outros afazeres, provaram ser inadequadas à derriçagem do café e à tarefa de descascar o arroz. A inadequação de Kimie é emblemática, pois, com a sua pele fina, sofria mais que todos, mesmo com o esforço de Hideo e Jintaro para poupá-la do serviço pesado. Mas ainda que consciente disso, Hideo volta e meia exclamava: “─ Que mulher mole fui arranjar!” (p.39) A diferença de costumes foi um dos maiores obstáculos à adaptação dos primeiros imigrantes japoneses. Segundo Takeuchi, além do despreparo para o trabalho nas lavouras, havia ainda problemas nutricionais provocados pela estranheza em relação à alimentação brasileira: “muitos começaram a economizar na comida e terminavam por adoecer por falta de calorias e proteínas” (TAKEUCHI, 2007, p.21). A diferença climática também teve o seu papel e é representada no romance. Hideo, ao conversar com o neto sobre os primeiros tempos de sua estada no Brasil, ri da ingenuidade de Kimie, que, em seu primeiro inverno no Brasil, ficara à espera da neve: Em seu primeiro inverno no Brasil, Kimie esperou pela neve. Foi o que me chamou a atenção. A gênese, genuína, inscrita no passado de ojiichan. A partir dela surgiram os demais, algumas partes exatas, outras inexatas, pois a escritura precisa é de papel e tinta. As conversas com vovô, as entrevistas com tio Hanashiro, as leituras do livro de Tomoo Handa e a minha mania de

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arquitetar com palavras: eis a história (NAKASATO, 2011, p. 39). No relato do narrador, Kimie, com os olhos marejados “via” a neve; aquela que caía nas suas lembranças e que amenizava a tristeza, bem como a Página | 26 sua permanente sensação de inadequação. Aquele passara a ser o seu ritual no inverno: ficar à janela observando a neve imaginária cair. Ritual só interrompido com a partida de Jintaro; até que, em seu último inverno, Kimie ousou abrir a porta e ver de perto o cafezal coberto de branco. Foi onde a encontraram; já morta. A trajetória de Kimie denota a sua dificuldade de adaptação à nova terra, bem como a complexidade de sua configuração identitária: sua afasia social, sua certeza de estar no lugar errado, sua incapacidade de lidar com a saudade, de destituir-se de parte de suas raízes em prol de uma identidade mista que lhe permitisse uma existência mais esperançosa e menos infeliz em terras brasileiras. A memória é o principal laço do imigrante com a terra natal e a sua fragilidade é, uma vez mais, evidenciada no capítulo 2:

As cartas ficaram por muito tempo guardadas em uma caixa de papelão, mas se perderam na última mudança. Na memória de ojiichan, elas estavam embaralhadas, sem ordem cronológica, algumas descartadas pelo esquecimento. Uma, principalmente, reeditava-se de vez em quando, com pequenas falhas de impressão, que ojiichan procurava corrigir, talvez acrescentando dados para que sua história tivesse coerência. (NAKASATO, 2011, p. 46) É Mnemosyne quem “permite unir aquilo que fomos ao que somos e ao que seremos” (CANDAU, 2012, 59). A perda da memória equivale à perda da identidade. Hideo tenta compensar o esquecimento com a reelaboração dos fatos. Para Schnitzler (apud MUXEL, 1996, p.190), “a falsificação da lembrança é a vingança impotente de nossa memória face o caráter irrevogável de tudo o que ocorreu”.


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2. Identidades em conflito

Nihonjin aborda objetivamente não apenas o choque cultural, mas também o conflito entre as gerações de imigrantes e as dificuldades geradas pela xenofobia durante o Estado Novo (1937-1945). Após a morte de Kimie, Hideo se vira obrigado a adotar o papel de agregado, pois já não poderia ocupar uma casa sozinho. Seu contrato seria rescindido se não o fizesse. Assim, juntara-se aos Mikimura, apesar do forte sentimento de humilhação que isso lhe causara. Após algum tempo, o chefe da família, Toshio, o chamara e propusera-lhe o casamento com Shizue, sua filha. Unidos, arrendaram um sítio e passaram a trabalhar em sua própria terra. O tempo passara e nasceram-lhe seis filhos. Ao contrário dos amigos, Hideo não se conformava com a ideia de permanecer no Brasil, aceitando-o como sua nova terra. A morte da mãe, que sempre se perguntava por que o filho não retornava, já que havia prometido que seriam apenas quatro ou cinco anos, dá-lhe a certeza de que não será possível retornar. Os filhos começam a sentir o peso de serem japoneses, ao se verem alvo de brincadeiras maldosas na escola. Apesar dos esforços do pai, que sempre lhes dizia que deveriam orgulhar-se de serem japoneses e unirem-se para não se sentirem fracos, Haruo começa a perceber a sua identidade cindida: na escola é brasileiro; em casa, nihonjin: Então explicou primeiro que a professora tinha razão, já que ele tinha nascido no Brasil. Portanto, no documento, na certidão de nascimento, ele era brasileiro. Mas era só um papel, e um papel se perde, vira cinza numa fogueira, e ter nascido no Brasil fora uma imposição do destino[...] – E na alma, você é japonês. Você tem o espírito japonês. E na cara também. O que adianta você sair por aí dizendo que é brasileiro? Todos olham você e sabem que é japonês. (NAKASATO, 2011, p. 67) A resposta de Haruo enfurece o pai: “eu sinto que meu coração é brasileiro”. O castigo— sentir vários palitos de incenso queimarem nas costas até o fim, deixando sua marca na pele— é suportado, deixando como lição não

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a necessidade de pensar como nihonjin, mas a certeza de que “não poderia dizer ao pai o que ele não queria ouvir” (p.68). No dia seguinte, depois de reclamar com a professora de Haruo, Hideo faz o trajeto para casa refletindo sobre algo que lhe haviam dito: que o imperador

do

Japão

havia

enganado

os

agricultores

pobres

e

os

desempregados da cidade, dizendo que deviam emigrar porque poderiam ganhar dinheiro rapidamente no Brasil; que, na verdade, aquele fora um projeto para expulsar a população pobre. A caminho de casa, Hideo, que a princípio pensara em tirar Haruo da escola, muda de ideia, e acaba por decidir que todos os filhos, exceto Hanashiro, o primogênito, que o ajuda na lavoura, devem ir à escola, aprender bem o português, para não serem enganados no futuro. A inadequação de Haruo ao modelo de conduta que o pai lhe oferece, leva-o a ser displicente com os estudos e alvo de reclamações dos professores. A obsessão do rapaz resume-se em querer ser igual a todos os outros. Igualdade impossível após a Revolução de 1930 e durante o Estado Novo, quando uma onda xenofóbica tomou o país. Conforme afirma Takeuchi (2007), a língua japonesa foi proibida nas ruas e nos estabelecimentos comerciais, e a cultura japonesa considerada incompatível de coexistir com a brasileira. As reuniões comemorativas foram igualmente proibidas e até mesmo para mudar de residência havia a necessidade de comunicação à Superintendência de Segurança Política e Social. A figura histórica de Francisco José de Oliveira Vianna é reelaborada na ficção, onde surge como o personagem que se envolve em uma briga com Hideo, após expressar sua rejeição aos japoneses: — Nós nunca seremos um país desenvolvido com tantos negros e amarelos atravancando o nosso progresso [...] já vemos o desastre causado pela mistura de brancos e negros, essa raça degenerada que começa a frequentar nossos salões, logo teremos um bando de mestiços de japoneses e brancos infestando nossas ruas (NAKASATO, 2011, p.87). Hideo continuava fiel aos seus princípios e à tradição; era “uma ponte firme que levava seus filhos ao Japão” (p.98); ponte que Haruo se negava a atravessar. Para Haruo, alguns desses princípios eram absurdos, como o fato

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de que as mulheres não podiam sentar-se à mesa com o marido e os filhos, exigindo delas respeito e silêncio. Haruo trazia dentro de si a certeza de que, embora respeitasse o Japão como terra dos seus antepassados, era o Brasil que tinha como pátria. Dos seis filhos, apenas Haruo e Sumie se rebelam ante a vontade do pai. O primeiro, embora ainda apegado à família, defende suas ideias; a segunda, após abandonar o marido, com quem fora obrigada a se casar, e os filhos por um amor da juventude, vê-se rejeitada por todos. O romance se reporta ainda à criação de sociedades secretas, como a Shindô-Renmei,organização que perseguiu e levou à morte muitos japoneses que passaram a considerar o Brasil o seu verdadeiro lar. A colônia, ao fim da Segunda Guerra, estava dividida entre “derrotistas” (os que divulgavam o reconhecimento da derrota por parte do imperador Hiroito) e os “vitoristas”, que insistiam em manter o mito do Japão invencível. Hideo e Haruo colocam-se em lados opostos, o primeiro ainda idolatrando a terra natal, o segundo desejando que, de algum modo, os japoneses e seus descendentes percebam a derrota. Quando o filho foge para a casa do sogro, tentando escapar à sentença de morte da Shindô-Renmei, da qual sempre fora colaborador, Hideo o segue, no intuito de convencê-lo a esconder-se em outro lugar, e, involuntariamente, fornece aos assassinos o paradeiro do filho, que é assassinado. Hideo envelhece sem ter tido a oportunidade de compreender seus próprios erros e de redimir-se com o filho. Semelhantemente, deixa de conceder o perdão à filha, Sumie, embora a recorde todos os dias. O apego à tradição faz com que Hideo divida o mundo entre nihonjin (japonês) e gaijin(estrangeiro), sem dar-se conta de que o contato entre duas culturas promove mudanças em ambas. Muito embora a era Vargas tenha sido um período em que o único processo de aculturação permitido era a assimilação, a tradição sobreviveu e foi paulatinamente incorporada aos hábitos dos brasileiros, quer na alimentação, quer nos esportes, quer na religião. Quando o neto – o narrador– decide ir para o Japão, como dekassegui, assumindo para si trajetória idêntica à do avô, este teme que, como ele, o neto

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nunca retorne à sua terra. Não compreende que para o neto a viagem é como um retorno, um reencontro com algo que nunca viu, e que, no entanto, permanece dentro dele: a herança que lhe fora legada.

Considerações finais

A relação conturbada de Hideo e Haruo em Nihonjin evidencia um fato corriqueiro nos processos migratórios: o choque entre gerações. Um aspecto fundamental da experiência migratória é a redefinição das identidades culturais e nacionais, que ocorre quando os indivíduos deixam uma sociedade ou uma cultura e tornam-se parte de outra. Hideo recusa-se a reconhecer a experiência de uma identidade cindida. A voz de Haruo, por outro lado, enuncia-se a partir do “terceiro espaço”, mencionado por Homi Bhabha (1996), lócus das trocas culturais. A identificação da primeira geração com o local de origem é diferente daquela das gerações seguintes, uma vez que é pautada na memória e na experiência da ruptura e do deslocamento, gerando a necessidade de formar uma nova rede social e de negociar novas realidades econômicas, políticas e sociais (BRAH, 1996, p.194). Há no imigrante de primeira geração a preocupação com a manutenção da memória étnica, com a sua transmissão às gerações seguintes. As novas gerações, por não terem experimentado o isolamento vivido pelos primeiros imigrantes, têm outras necessidades, não encontrando sentido na manutenção rigorosa da tradição e da cultura de uma terra que não chegaram a conhecer. Alguns, como o narrador, trazem no imaginário o peso de um desejo não realizado pelos antepassados, que acaba por configurar-se como uma tarefa ainda por cumprir. O retorno dos descendentes é parte desse pacto com as origens.

Referências bibliográficas AUGÉ, Marc. Non-places: introduction to an anthropology of supermodernity. London, New York: Verso, 1995.

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A saga dos imigrantes indianos nos EUA: diáspora, choque cultural, assimilação e reinvenção, na ficção de Jhumpa Lahiri Página | 33

Célio dos Santos Saraiva Fábio da Silva Custódio

Este trabalho é o resultado de reflexões sobre a situação dos imigrantes, no momento em que se deslocam de sua pátria de origem em direção a uma nova pátria, representada na ficção da escritora Jhumpa Lahiri. Tendo como eixos da pesquisa as palavras-chave identidade, memória e migração, nossa tarefa foi a de tentar compreender como os conceitos que elas carregam reagem e afetam os imigrantes no processo de desterritorialização. Nesse sentido, os estudos de teóricos como Stuart Hall acerca da identidade cultural, de Bennedict Anderson sobre a formação da identidade nacional, e de Zygmunt Bauman sobre a necessidade humana de pertencer a uma comunidade, foram fundamentais para compreender os processos que envolvem o movimento de deixar a sua pátria de nascimento, partindo em direção a uma nova realidade, um lugar estranho, não familiar. Contudo, ainda que o arcabouço teórico do projeto fosse suficiente para compreender os processos pelos quais passa a identidade do imigrante, se fazia necessária uma fonte literária capaz de representar estes processos e nos permitir observar, além de conceitos, pessoas. E é exatamente neste ponto que a obra ficcional de Lahiri se apresenta como a escolha perfeita. Seja pela qualidade de sua produção, pela aceitação de público e crítica, ou ainda, pela enorme projeção conferida pela importância dos prêmios que conquistou, ou melhor, talvez exatamente pela junção destes fatores, esta escritora tenha sido incluída no que Cohen chama de

um seleto grupo de escritores indianos que optaram por fazer literatura indiana em língua inglesa e que, graças a seus talentos, alcançaram tamanho sucesso de público e crítica que se tornaram indispensáveis para as discussões


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atuais sobre a literatura contemporânea internacional. [...] O público brasileiro, de uma maneira geral, não os conhece. Estes jovens escritores compõe a chamada geração pós-Rushdie de literatura indiana. (COHEN, 2010, pp.81-82). Para compreender porque essa classificação é importante, é preciso antes entender quem é esse Rushdie a quem Cohen faz referência. Salman Rushdie é um escritor indiano, considerado o mais importante de sua geração, e mundialmente conhecido pelo livro Midnight’s children, pelo qual recebeu em 1981 o prêmio Booker Prize, e quem em 1993 viria a receber uma edição especial deste prêmio, tendo o livro sido considerado o melhor romance britânico daquele quarto de século. No entanto, a geração de Lahiri em sua caminhada de sucessão, não segue os mesmos passos de seus antecessores, mas se distancia deles. O argumento para este distanciamento seria o de que o Realismo Mágico tende a confundir e complicar a realidade, que já é suficientemente confusa.

Diferentemente da geração de Rushdie, esta nova geração se desvia do Realismo Mágico que tanto influenciou e marcou a geração do autor de Midnight’s Children e preocupa-se em representar simplesmente a realidade, que em si já é complicada o bastante. (COHEN, 2010, p.84) Ao mesmo tempo, há membros da academia que defendem este estilo como forma de buscar entendimento da realidade, partindo de sua complicação. Se assumirmos que o estilo usado por Rushdie e sua geração seria uma tentativa de compreender a realidade, poderíamos concluir que a mudança de direção adotada pela geração de Lahiri seria então uma tentativa de compreender outra coisa, ou a busca de outro ponto de vista sobre o mesmo assunto. E considerando o que diz Cohen (2010, p. 84), “O que é difícil para ela e para alguns outros escritores de sua geração é a busca por sua identidade”, trata-se da primeira hipótese. Ao se observar a trajetória da escritora indiana, nascida na Inglaterra e criada nos Estados Unidos da América, onde construiu um currículo acadêmico invejável, é possível perceber semelhanças com as trajetórias de vida dos

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personagens de sua criação ficcional, dando uma indicação de que sua escrita pode ser, na verdade, uma forma de busca da própria identidade. Ela diz que a sua conexão com a Índia é fundamental, mas que é, ao mesmo tempo, confusa e escorregadia e, por isso, já foi causa de sofrimento e luta. Todavia, ela Página | 35 gosta de se ver e ser vista como uma escritora norte americana, embora desde sua infância sempre foi encorajada a não perder sua “verdadeira” identidade. Ela conta que sua mãe fazia questão de criar todos os filhos de maneira indiana para que estes fizessem as coisas aos moldes pátrios, seja isso como for, e graças a isso, até hoje, ela ainda tem dificuldades em se identificar como uma americana. (COHEN, 2010, p. 84) Ao representar a realidade sem o uso do Realismo Mágico de seu predecessor, Jhumpa Lahiri, considerada por muitos como a sucessora de Salman Rushdie, busca encontrar a própria identidade, a partir do olhar lançado sobre tantos outros que, como ela, estão localizados no chamado “terceiro espaço”. Este seria, de forma simplificada, o espaço onde se localiza a identidade daquele que descende de imigrantes, mas que, por ter sido criado em um país diferente da terra natal de seus pais, acaba não sendo parte de nenhuma das culturas completamente. É exatamente o fato de ser, ao mesmo tempo, indiana, por descendência e criação, e americana, pela exposição e convivência social, que faz com que Lahiri fique presa nessa zona entre as duas culturas, que a impede de pertencer completamente a apenas uma delas. Contudo, o que poderia ser considerado apenas como um fator causador de problemas de adaptação e de construção da identidade da escritora, parece ter-se tornado o ponto de partida tanto para a sua busca pela identidade individual quanto para a construção da ferramenta que escolheu usar como forma de realizá-la: a própria criação literária. O que acaba por personificar o pensamento de Paul Ricoeur (apud BERND, 1992, p.19) quando este diz que “A identidade não poderia ter outra forma que a narrativa, pois definir-se é, em última análise, narrar”, o que é corroborado por Cohen: É este conhecimento e a confusão que surge dele que impulsiona Lahiri a escrever sobre estrangeiros em uma terra não familiar. Interessantemente, os escritores que mais a influenciaram não são indianos, mas também


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foram estrangeiros em terras não familiares, como Vladmir Nabokov, James Joyce, Mavis Gallant e William Trevor. Ela diz que o que mais chama a sua atenção nestes escritores é justamente suas conexões com algum lugar, por vezes beira a obcessão, mesmo que não se sentissem, de fato, conectados a ele. (COHEN, 2010, p. Página | 36 85) A obra de Jhumpa Lahiri é composta por quatro livros: Interpreter of maladies (Intérprete de Males), pelo qual ganhou em 2000 o prêmio Pulitzer Prize, Unaccustomed earth (Terra descansada), ambos os livros coletâneas de contos, The namesake (O xará) e The lowland (Aguapés), os dois últimos, romances. Os personagens das histórias de Lahiri fazem parte das primeiras e segundas gerações de imigrantes indianos, que vivem os dilemas de tentar ajustar a cultura de sua terra natal à cultura da sua pátria de adoção, processo pelo qual a própria autora teve que passar. Este choque cultural parece direcionar a maioria dos imigrantes e seus descendentes a três direções distintas: a cultura americana, a cultura indiana e o terceiro espaço citado por Bhabha. De certo modo, Lahiri assume as características do escritor migrante definido por Salman Rushdie em Imaginary homelands, uma vez que, a cada página, seus livros oferecem um vislumbre das dificuldades enfrentadas por imigrantes que, sob a pressão de culturas diversas, buscam definir-se identitariamente no país de adoção. Seus personagens são geralmente indianos ou descendentes de imigrantes indianos em um processo de crise de identidade, incapazes de lidar com um profundo sentimento de inadequação social. (CARREIRA, 2012, p. 81) A primeira acolhe aqueles que são assimilados, perdendo assim suas raízes, situação visível dos membros da segunda geração de imigrantes, aqueles nascidos e criados fora da Índia. Na segunda enquadram-se aqueles que mantêm suas raízes culturais, que não se permitem assimilar pela cultura do país de adoção. Nesta posição encontramos os personagens do romance que pertencem à primeira geração, nascidos e criados na Índia. A terceira acolhe aqueles que, como a própria Lahiri, não conseguem se colocar em nenhum dos lados, mas transitam entre eles, sentindo-se ora parte de um ora


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parte de outro e, vez por outra, de nenhum deles. Para Custódio (2013) “É nesse contexto da existência em uma “terra não familiar” que os personagens de Lahiri se movem e desenvolvem o que Stuart Hall denomina “identidades cambiantes” (1994, p.13)”. O Xará foi o primeiro romance escrito por Jhumpa Lahiri e nele é narrada a história de uma família bengalesa que saiu de Calcutá para tentar obter melhores condições de vida nos Estados Unidos. No romance, a história perpassa o decorrer de 32 anos, mostrando a trajetória da família Ganguli, composta por Ashoke (pai) e Ashima (mãe) Ganguli –os primeiros a chegar ao Ocidente- e por Gogol (filho) e Sonia (filha) Ganguli, nascidos e criados em solo americano. No romance, pode–se perceber que as personagens representam diferentes momentos da trajetória de um imigrante que reside num país no qual a cultura mostra-se agudamente antípoda. As representações das personagens podem ser compreendidas à luz da obra de Hall (1992). Ashima e Ashoke Ganguli representam os imigrantes de primeira geração, que evidenciam o apego às raízes, pois, a par do meio em que vivem, não são afetados pela diferença de costumes, pela comunidade local. Essa fidelidade às origens, segundo Giddens (1990, p. 37-38 ), é perpetuada a partir da veneração do passado e da memória cultural. O fragmento abaixo é situado numa maternidade americana na qual Ashima está pronta para dar luz a Gogol. Nele, pode-se observar a importância dos costumes para os membros da primeira geração: Trazem-lhe uma bandeja com suco de maçã morno, gelatina, sorvete e galinha assada fria. Patty, a enfermeira simpática do anel de noivado de diamante e uma franja de cabelo avermelhado debaixo da touca, diz para Ashima comer só a gelatina e o suco de maçã. O que é bom mesmo, porque Ashima não tocaria na galinha com a pele, mesmo que fosse permitido: os americanos comem a galinha com a pele, se bem que Ashima encontrou, não faz muito tempo, um açougueiro atencioso na Rua Prospect que se dispõe a tirar a pele para ela. (LAHIRI, 2004, p.14) Sonia, a segunda filha do casal Ganguli encarna o papel do descendente de imigrantes, para quem a manutenção da tradição não faz muito sentido. Até

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na cerimônia do arroz, o annaprasan2, Sonia age diferentemente de outras crianças bengalesas que participam desta cerimônia: São tantos convidados na cerimônia do arroz de Sonia que Ashima toma providências e aluga um prédio no campus com vinte mesas dobráveis e um fogão industrial. Página | 38 Ao contrário de seu dócil irmão, Sonia, aos sete meses, recusa toda a comida. Brinca com a terra escavada do jardim e ameaça colocar a nota de um dólar na boca. “Essa”,observa um dos convidados, “essa é americana de verdade”. (LAHIRI, 2004, p.79) Por sua vez, Gogol, o primeiro filho do casal Ganguli, encena o sujeito que tem uma identidade cindida, e, diferentemente de sua irmã Sonia, ainda que nascido nos E.U.A., não se sente totalmente americano nem tampouco indiano. A herança e os costumes indianos estão presentes e associados ao nome que lhe deram: Gogol. Por outro lado, o sentimento de inadequação à sociedade americana faz com que se rebele ante a tradição e busque identificar-se sempre como Nikhil. Sua família alimenta a sua dualidade identitária, fazendo dele um habitante de dois mundos: Aniversário de catorze anos de Gogol. Como quase todos os acontecimentos de sua vida, é mais uma desculpa para os pais darem uma festa aos amigos bengaleses. Seus próprios amigos da escola são convidados na véspera, uma ocasião doméstica, com pizzas que o pai pegou na volta do trabalho, um jogo de beisebol assistido em grupo na televisão, um pouco de pingue-pongue na saleta. Pela primeira vez na vida, disse não ao bolo confeitado, à caixa de sorvete napolitano, aos cachorrosquentes, às bexigas e às faixas pregadas nas paredes (LAHIRI, 2004, p.89) A outra comemoração, a bengalesa, é feita no sábado mais próximo da verdadeira data de seu nascimento. Com sempre, a mãe fica cozinhando dias antes, enchendo a geladeira com pilhas de bandejas cobertas de folha de alumínio. Ela cuida de preparar as coisas preferidas dele: curry de carneiro com muita batata, luchis, channadal bem grossa com passas escuras estufadas, chutney de abacaxi, sandeshes moldadas com ricota tingida com açafrão. Tudo é menos cansativo para ela do que a tarefa 2

Cerimônia indiana que marca a primeira ingestão de comida sólida, geralmente é arroz.


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de alimentar um punhado de crianças americanas, metade delas sempre se dizendo alérgica a leite, todas recusando a comer a casca do pão. (LAHIRI, 2004, pp.8990) Gogol experimenta sentimentos ambíguos em relação à sua herança Página | 39 cultural, situando-se na fronteira entre duas culturas. 1. O jogo das identidades A modernidade tardia tem acarretado mudanças no que tange as questões de identidade. Segundo Hall (1992), o sujeito pós-moderno não possui identidade fixa ou permanente. Este câmbio identitário é influenciado diretamente pelas formas como o sujeito é representado nos sistemas culturais ao redor. A instabilidade identitária e o choque cultural– principalmente quando se trata da oposição entre Oriente e Ocidente – atinge o imigrante de primeira geração de modo contundente. Em O Xará, Ashima Ganguli, dentre todos os membros da família, é a que mais sofre com o “exílio” na América.

Ashima (grifo meu) está começando a entender que ser estrangeira é uma espécie de gravidez para a vida toda – uma espera perpétua, um peso constante, uma contínua indisposição. É uma responsabilidade permanente, um parênteses no que um dia foi vida comum, só para descobrir que a vida anterior desapareceu, substituída por algo mais complicado e exigente. Como a gravidez, ser estrangeiro, Ashima acredita, é algo que desperta a mesma curiosidade de estranhos, a mesma combinação de piedade e respeito (LAHIRI, 2004, p.64). O contato com estrangeiros faz com que Ashima se sinta cada vez mais à margem da sociedade. Cada descoberta e situação do cotidiano faz com que essa sensação aumente: “Ashima (...) ao sentar na beira da cama de Alan e Judy, ela deu um grito e caiu pra trás, perplexa ao descobrir que o colchão era cheio de água” (LAHIRI, 2004, p.44). A cada nova surpresa, Ashima reage dizendo: “Só na América (frase que ela começou a usar muito ultimamente)” (LAHIRI, 2004, p.87). Kakutani (1991) afirma que a obra de Lahiri evoca um espírito complexo e conflituoso do que vem ser a migração indiana e, principalmente, a situação


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do imigrante nos Estados Unidos. Ashima é a representação de uma resistência à aceitação de novas culturas, mas como afirma Hall (1992), a identidade deslocada sofre transformações. Com a pressão imposta pelos filhos e pela sociedade em si, Ashima incorpora costumes da nova cultura: Página | 40

Sua garagem, como todas as outras, contém pás, tesouras de poda e um trenó. Compram uma churrasqueira para fazer tandoori na varanda no verão. Cada passo, cada aquisição, por menor que seja, exige deliberações, consultas aos amigos bengaleses. Existe diferença entre um rastelo de plástico e um de metal? O que é preferível, uma árvore de Natal natural ou artificial? Aprendem a assar o peru no dia de Ação de Graças, embora temperado com alho, cominho e pimenta-decaiena, e a pregar uma guirlanda na porta em dezembro, a enrolar um cachecol de lã no homem de neve, a tingir de roxo e rosa os ovos cozidos na Páscoa e escondê-los pela casa. Por causa de Gogol e Sonia, comemoram com ânimo cada vez mais o nascimento de Cristo, data que as crianças esperam muito mais que os ritos de Durga ou Saraswati (LAHIRI, 2004, p.80). Às vezes, os pais cediam aos pedidos dos filhos para que o convívio se desse de forma consensual. Esse jogo de trocas exigia sacrifícios de ambas as partes: Durante os pujos, marcados, por conveniência, para dois sábados no ano, Gogol e Sonia são arrastados para o salão de uma escola ou da associação Cavaleiros de Colombo lotado de bengaleses, onde se exige que joguem pétalas de cravos sobre uma efígie de papelão de uma deusa e comam insípidas comidas vegetarianas. Não dá nem pra comparar com o Natal, quando penduram meias no aparador da lareira, deixam leite e biscoitos para o Papai Noel, recebem pilhas de presentes e ficam em casa, sem precisar ir para a escola (LAHIRI, 2004, pp.8081). A migração cria um espaço cultural híbrido e dificilmente o casal imigrante Ganguli conseguiria manter-se livre das influências do American way of life: Ashoke e Ashima cedem também em outras coisas. Embora Ashima continue usando apenas sáris e sandálias de Bata, Ashoke, acostumado a usar calças de alfaiate e camisas a vida inteira, aprende a comprar


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roupas prontas. Troca as canetas-tinteiro por esferográficas, as lâminas Wilkinson e o pincel de pelo de porco por aparelhos de barbear Bic comprados em pacotes de meia dúzia. Embora seja agora um professor inteiramente estável, deixa de usar paletó e gravata na universidade. Como há relógios para onde quer que se Página | 41 vire, ao lado da cama, sobre o fogão onde prepara o chá, no carro que dirige para o trabalho, na parede diante de sua mesa, deixa de usar o relógio de pulso, relegando o FavreLeuba ao fundo da gaveta de meias (LAHIRI, 2004, p.81)

2. Gogol Ganguli e o terceiro espaço Ao longo do romance, as múltiplas experiências de Gogol Ganguli revelam traços de um hibridismo cultural, que, ao invés de trazer-lhe conforto, produz um sentimento de inadequação. Essa sensação é emblematizada pelo fato de ter recebido dois nomes. Quando Gogol nasceu, seus pais, Ashima e Ashoke aguardavam uma correspondência que viria de Calcutá, de uma anciã da família, que, como de costume, escolheria o nome que seria dado à criança que acabara de nascer. Entretanto, as leis americanas são bem claras quanto ao registro de crianças nascidas em solo americano, exigindo o registro imediato. Como não poderiam esperar pela correspondência, pois precisavam deixar a maternidade, Ashoke decidiu que o nome provisório da criança seria Gogol, uma homenagem a Nicolai Gogol, escritor russo que teve importância singular em sua vida—havia se livrado de um acidente por estar lendo um romance desse autor. A correspondência com o nome dado pela anciã nunca chegou, eles precisaram criar um nome oficial, um “bom nome”, já que Gogol era, de fato, um apelido: Há uma razão para Gogol não querer ir para o jardim-deinfância. Seus pais lhe disseram que naquela escola, em vez de ser chamado de Gogol, ele será chamado por um novo nome, um bom nome3, que os pais finalmente escolheram, bem a tempo de ele começar a sua educação formal. O nome, Nikhil, é artisticamente ligado ao anterior. Não é só um bom nome bengalês e 3

Um bom nome é a tradução de bhalonam, este é o nome oficial que aparece em documentos de um cidadão bengalês. O oposto deste é o daknam, que é o apelido, a forma como um bengalês é chamado pela família e amigos.


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perfeitamente respeitável que significa “aquele que é inteiro, que tudo abrange”, como guarda também uma agradável semelhança com Nicolai, o primeiro nome do russo Gogol (LAHIRI, 2004, p.71). A crise identitária de Gogol é ampliada quando os seus pais lhe contam Página | 42 a razão da escolha do apelido. Ele não demonstra satisfação com a escolha e “passa a detestar questões relativas a seu nome, detesta ter de estar sempre explicando”. Na realidade, detesta ter de dizer às pessoas que seu nome não significa nada em bengali (LAHIRI, 2004, p.93). O fato de se apresentar aos outros com um nome que foi gerado provisoriamente na sua infância e de usar oficialmente um nome rejeitado, faz com que Gogol reflita sobre quem ele gostaria de ser. Ao solicitar oficialmente a troca de nome para Nikhil, ele é inquirido sobre o motivo e responde: “‘Detesto o nome Gogol. Sempre detestei’” (LAHIRI, 2004, p.122). Para ele, a sua inadequação social é relacionada ao seu nome, pois este não se coaduna com nenhuma sociedade a que pertence: nem a americana, nem a indiana. Habitante de um terceiro espaço, o do hibridismo cultural, Gogol se defronta com questões próprias de quem tem uma identidade hifenada:

Teologicamente falando, ABCDs não são capazes de responder à pergunta ‘De onde você é?’”, declara o sociólogo da mesa. Gogol nunca ouviu o termo ABCD. Acaba entendendo que são as iniciais de “American-born confused deshi” [confuso deshi nascido na América]. Em outras palavras, ele. Descobre que C pode indicar também “conflituoso”. Ele sabe que deshi, palavra genérica para “compatriota”, significa “indiano”, sabe que seus pais e todos os amigos deles sempre se referem à Índia apenas como desh. Mas Gogol nunca pensa na Índia como desh. Ele pensa na Índia como pensam os americanos, como Índia (LAHIRI, 2004, pp.140-141). Jhumpa Lahiri sempre é indagada, em entrevistas, sobre a sua nacionalidade, sobre seus costumes, sua infância e seus sentimentos como imigrante, mas ela sempre se esquiva dizendo que a noção de nacionalidade é mais complexa do que as biografias compreendem. Em uma dessas entrevistas, afirmou que Gogol Ganguli é uma espécie de autorrepresentação dela mesma quando chegou à América. As experiências


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de Gogol se assemelham às que ela mesma viveu, como, por exemplo, a divisão entre a tradição e a adequação à comunidade local. Revelou que sentia vergonha do próprio nome,

que amigos e professores nunca conseguiam

pronunciar corretamente, das roupas utilizadas pelos pais e do próprio sotaque. Em O Xará, ela nos mostra como o questão da identidade do imigrante é desenvolvida por meio de suas personagens. Mostra como ela resulta do embate entre a tradição e a tradução, bem como evidencia a influência do American way of life nas decisões e nos costumes dos imigrantes, tanto de primeira, quanto de segunda geração. Aguapés, o segundo romance da autora, está centrado na vida de dois irmãos que cresceram juntos em Calcutá e devido às preferências profissionais e políticas acabam por separar-se. A história é contada desde os anos 1950 até o século vinte e um e tem como background o crescimento do movimento naxalita4 que é, em parte, o responsável por todo o desenrolar da história. Subhash, o irmão calmo e obediente deixa a Índia e vai para Rhode Island , a fim de estudar ciências marinhas, o que é um traço marcante na literatura de Lahiri: a diáspora que visa melhores condições de vida na América. Udayan, o irmão impulsivo se envolve com um grupo de comunistas que tinha como interesse comum o findar da miséria e desigualdade indiana e acaba sendo morto pela polícia local, na presença de seus pais e de sua futura esposa, Gauri. Ao saber da morte de Udayan, Subhash retorna à Índia, a fim de dar amparo aos pais e à Gauri, que ele soube estar grávida de seu irmão. Sentindo-se no dever de cuidar de Gauri, casa-se com ela e retorna a Rhode Island. Gauri é uma mulher fantástica, inteligente, entretanto, é assombrada por seu passado. O fato de guardar na memória o momento da morte de Udayan faz com que se distancie de Subhash, mesmo estando fisicamente presente. Percebendo o impacto da memória do passado em sua vida, Gauri tira partido do fato de estar na América, num lugar novo, no qual só conhece uma 4

O movimento naxalita foi criado a partir dos ideais revolucionários dos comunistas que visavam a democracia e a liberdade indiana.

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pessoa –o que torna o processo mais fácil- e decide reinventar-se e começar uma nova trajetória. A reinvenção de Gauri está associada à liberdade, que de acordo com Giddens (1990), se contrapõe à tradição e ao modo de vida de tipos tradicionais de culturas específicas. A modernidade põe em xeque o modo de vida de Gauri e altera o seu percurso de vida, opondo-se diretamente às suas características pessoais e ao seu cotidiano:

Alguns dias depois, ele, Subhash (grifo meu), chegou ao apartamento e não a viu sentada na sala de estar, como geralmente estava naquele horário, lendo um livro no sofá, fazendo anotações, tomando uma xícara de chá. (...) Alguns minutos depois, ele ouviu o barulho da chave na porta. O cabelo dela agora terminava de repente na altura do queixo, alterando drasticamente seu rosto. Estava de calça comprida e um suéter cinzento. As roupas cobriam o corpo, mas acentuavam o contorno dos seios, o volume do ventre. O feitio das coxas. Ele afastou os olhos, embora já tivesse se imprimido na retina a visão dos seios expostos. Onde você estava? Peguei um ônibus no centro acadêmico para a cidade. Comprei algumas coisas. Por que cortou o cabelo? Me cansei dele. E as roupas? Me cansei delas também. Ele observou enquanto ela entrava no quarto, sem se desculpar pela tremenda bagunça que tinha feito, apenas deixando ali as roupas novas que havia comprado e depois enfiando as coisas velhas em sacos de lixo (LAHIRI, 2014, pp.184-185). Diferentemente de O xará, Aguapés não trata especificamente de inadequação identitária, ainda que trate do conflito entre Oriente e Ocidente, mas focaliza em particular os interesses políticos e a sua consequência na trajetória de uma família. As representações de identidade, tendo como foco Gauri, mostram como é configurado o embate direto entre tradição, memória e liberdade. Estar “livre” ou “seguro”? Eis a questão! Quando se pensa a questão da identidade, considerando os estudos de Stuart Hall, Zygmunt Bauman e Bennedict Anderson, surge a percepção de que

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a identidade individual é uma construção cuja definição está atrelada à noção de comunidade, de pátria, do lugar a que se pertence. Observando os dilemas vividos pelos personagens de Lahiri, é possível perceber os embates constantes entre a herança cultural, a tradição, e a cultura do país de adoção, cujo resultado promove a desconstrução e posterior reconstrução das identidades. Uma vez que o ser humano se define, num primeiro momento, a partir de referenciais culturais que lhe são transmitidos por herança, ao lançar um olhar sobre a identidade individual, é possível perceber que em muitos momentos ela se confunde com a identidade do grupo, pois são simultâneas e complementares. Bauman (2001) afirma que elas estão em um conflito insolúvel, e que este conflito, esta tensão permanente, é a forja da identidade individual. Pois, em todo tempo tentamos atender os anseios a que cada uma nos direciona. O lado individual clama por liberdade, enquanto o coletivo busca a segurança, o respaldo e a corroboração da coletividade em que o indivíduo se insere. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste. [...] A tensão entre a segurança e a liberdade e, portanto, entre a comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará por muito tempo; não achar a solução correta e ficar frustrado com a solução adotada não nos levará a abandonar a busca – mas continuar tentando. Sendo humanos, não podemos realizar a esperança, nem deixar de tê-la. (BAUMAN, 2001, p. 10-11) Essa tensão está no cerne das questões enfrentadas pelos personagens de Lahiri. É ela que os move em direção ao novo, mas que, ao mesmo tempo, os mantém conectados ao passado. O movimento em direção à nova pátria, buscando oportunidades de construção de uma vida melhor para si e para a família, encontra o seu contraponto na necessidade de manter as raízes culturais, ou seja, espelha o conflito entre o individual e o coletivo. As personagens de Lahiri são movidas pela individualidade, pela busca de melhores condições de vida, a maioria optando por uma formação

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acadêmica sólida, para, em seguida, buscar posições de trabalho de destaque. Como podemos perceber na narrativa da personagem Usha, do conto “InfernoCéu”: Já fazia três anos que meus pais e eu residíamos em Página | 46 Central Square; antes disso, tínhamos morado em Berlim, onde eu havia nascido, e meu pai terminado a formação de microbiologia antes de aceitar um cargo de pesquisador no Hospital Central de Massachusetts. (LAHIRI, 2009, p. 76) Neste mesmo conto, Usha encontra Pranab, jovem indiano que vem para os Estados Unidos a fim de cursar engenharia no famoso Instituto de Tecnologia de Massachusetts e enfrenta com enormes dificuldades as diferenças culturais, chegando a pensar em desistir de tudo e voltar para Índia. Suas desventuras terminam quando ele é acolhido pela família de Usha, sendo tratado como se fosse um irmão mais novo do pai dela, Shiamal.

Ele vinha de uma família rica de Calcutá, e nunca havia precisado sequer servir-se um copo d’água antes de se mudar para os Estados Unidos para estudar engenharia no MIT. A vida como estudante de pós-graduação em Boston foi um choque cruel, e durante o primeiro mês ele perdeu quase dez quilos. (LAHIRI, 2009, p. 77) Ele ficou para um segundo jantar nessa mesma noite, depois de meu pai chegar a casa, e depois disso começou a aparecer para jantar quase todas as noites, ocupando a quarta cadeira da mesa de fórmica quadrada de nossa cozinha e tornando-se parte de nossa família na prática, assim como no tratamento. (LAHIRI, 2009, p. 77) Nos contos de Lahiri, é relevante o fato de que os imigrantes de primeira geração procuram organizar-se em “pequenas comunidades” indianas, externando um esforço para manter suas conexões com a pátria-mãe mesmo estando a milhares de quilômetros de distância. Esse tipo de organização é uma forma de defender-se da cultura americana, de não se deixar assimilar por ela. Bauman, ao discorrer sobre o termo comunidade, afirma que:


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As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa comunidade”. [...] Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e Página | 47 aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. [...] Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. Ninguém vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e alegrar-se com a nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre. (BAUMAN, 2003, p.7-8) Assim, a necessidade de conexão com a pátria-mãe é, antes de tudo, motivada pela necessidade de segurança. Mais que um desejo de se manter ligado ao passado e às memórias de suas vidas na terra de origem, os imigrantes evocam os sentimentos e sensações que a ideia de comunidade traz, para proteger as próprias identidades individuais da assimilação pela cultura americana. Além disso, a mudança de cenário e o choque cultural podem causar enormes danos à identidade individual. Nestes casos, a diferença e o sentimento de inadequação são tais que acabam por acentuar a sensação de insegurança e medo. Como se pode perceber nas palavras da personagem que dá nome ao conto “A casa da senhora Sen”. [...] “Sempre que há um casamento na família”, disse ela a Eliot um dia, “ou qualquer outra festa importante, minha mãe pede a todas as mulheres do bairro que tragam lâminas como esta, e elas todas se sentam formando um círculo enorme no terraço do nosso prédio, e passam a noite toda rindo e fofocando e picando cinquenta quilos de legumes.” [...]“É impossível dormir nessas noites, gente fica ouvindo elas falando.” Fez uma pausa para contemplar um pinheiro emoldurado pela janela da sala da sala de visita. “Aqui, neste lugar para onde o senhor Sen me trouxe, às vezes o silêncio é tanto que eu não consigo dormir.”(LAHIRI, 2001, p. 135)


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Manter essa conexão é uma forma de proteger a identidade individual. Invocar as lembranças da terra natal ajuda a manter a estabilidade do ser. As lembranças da terra natal são idealizadas para dar a sensação de segurança. A Índia da qual a imigrante do conto se recorda não é de fato aquela que deixou, é uma versão “melhorada”, que potencializa as boas sensações que Bauman afirma estarem atreladas à palavra “comunidade”. Esse processo é exemplificado no que diz Candau:

O consenso existe igualmente em reconhecer que a memória é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo: “a memória é de fato mais um enquadramento do que um conteúdo, um objetivo sempre alcançável, um conjunto de estratégias, um ‘estar aqui’ que vale menos pelo que é do que pelo que fazemos dele. A ideia segundo a qual as experiências passadas seriam memorizadas, conservadas e recuperadas em toda sua integridade parece “insustentável” (CANDAU, 2012, p.9). Assim, o que Lahiri representa em sua ficção, através das reações de suas personagens, é uma resposta à crise de identidade sugerida por Hall (2002), e que, independente da vontade de qualquer um, acaba por fragmentar as identidades individuais. Para Candau (2012, p.10): “A busca memorial é então considerada como uma resposta às identidades sofredoras e frágeis que permitiria “apoiar um futuro incerto em um passado reconhecível”.” Em um mundo que muda velozmente e no qual certezas e verdades vão desaparecendo na mesma medida dessas mudanças, para as quais muitas vezes não temos defesas, o olhar para um passado conhecido e uma casa/comunidade acolhedora torna-se uma inestimável fonte de força para seguir caminhando, ainda que o futuro seja incerto. “A memória é um elemento essencial daquilo que passamos a chamar de identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades do presente, na febre e na angústia.” (LE GOFF, 1990, p.174)

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Referências Bibliográficas

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Vidas em trânsito: uma leitura de A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, e Os hungareses, de Suzana Montoro Página | 51

Shirley de Souza Gomes Carreira5

O nomadismo e a migração sempre marcaram a condição humana (MAFFESOLI, 2001), entretanto, o deslocamento e as questões a ele atreladas, como os processos identitários e a relação do homem com o espaço, têm ocupado lugar de destaque no imaginário cultural contemporâneo. Quando Zigmunt Bauman (2001), ao refletir sobre as consequências da mundialização, reporta-se à contemporaneidade como “modernidade liquída”, ele o faz tendo em mente a fragilidade e a fluidez do tempo presente, quando todas as ancoragens que marcaram a história humana parecem se liquefazer, diluindo fronteiras e esbatendo categorias antes tidas como sólidas, como as identidades nacionais. Na literatura contemporânea, o tema da migração tem sido recorrente: primeiramente, como efeito do impacto da teoria pós-colonial; posteriormente, no rastro dos estudos sobre a identidade, focalizando, em especial, a questão do conflito que o imigrante sofre em busca da definição de sua identidade cultural. Em todas as obras que o abordam, as formas com que a herança cultural se apresenta e as possibilidades de escolha do herdeiro se delineiam ora de forma marcante, ora sutil, em representações da memória, na maioria das vezes polifônica, como a deixar entrever que lembrar não é um ato isolado, mas a conjugação de muitas memórias, experimentadas ou não.

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Doutora em Literatura Comparada (UFRJ), Professora Titular do UNIABEU- Centro Universitário. Rio de Janeiro, Brasil. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Travessias do espaço, do tempo e da memória: representações do imigrante na literatura contemporânea”, com fomento da FAPERJ (E26/111.114/2013), Coordenadora do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade, fomentado pela FAPERJ (E-26/111.740/2013). Membro do Grupo de Pesquisa Poéticas do contemporâneo: estudos de sociedade, história e literatura. shirleysgcarr@gmail.com


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O passado é um inventário das memórias alheias, que constituem relatos mais ou menos preenchidos pelo imaginário de outros e a memória individual encontra seu suporte nas percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica (HALBWACHS, 2004, pp. 57-9). Assim, é possível criar representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que se imagina ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória historiográfica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é uma imagem engajada em outras imagens” (HALBWACHS, 2004, pp. 76-78). Ao deslocar-se, o homem se vê diante de uma questão crucial, que é o sentimento de pertença. O ato de migrar, a par das circunstâncias que o geram, traz consigo conflitos que tanto podem levar ao arrefecimento dos traços de afinidades do sujeito com o território de origem, à total perda de suas raízes, como também ao reestabelecimento da identidade por meio da conciliação entre a cultura do país que ora habita e aquela de seu país natal. A essa forma particular de reorganização identitária de um sujeito em circunstâncias de exposição a uma alteridade, que resulta de um processo de apropriação e renúncia de determinadas características culturais, Fernando Ortiz denominou “transculturação”. Este preâmbulo se faz necessário como ponto de partida para a proposta deste estudo: analisar a representação do deslocamento, suas consequências, e o modo como o tema enseja trânsitos na arquitetura textual de duas obras em particular: o festejado romance de Tatiana Salém Levy A chave de casa e Os hungareses, de Suzana Montoro, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012, na categoria “Romance de estreia”.

1.

Travessias do tempo e da memória

As duas obras em questão giram em torno do deslocamento e do modo como os migrantes e seus descendentes lidam com a questão da memória. Em Memória e Identidade, Joël Candau afirma que “a memória é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do passado” (CANDAU,

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2012, p.9). Como o homem é um animal social e cultural, memória e identidade relacionam-se, efetivando o trânsito da experiência subjetiva para a coletiva. A memória opera, portanto, na construção da identidade do sujeito, pois consiste no “trabalho de reapropriação e negociação que cada um deve fazer em relação ao seu passado para chegar a sua própria individualidade” (MUXEL, 196, p.207). Candau (2012, p.22-23), ao analisar a memória, propõe uma taxonomia de suas diferentes manifestações: a protomemória, a memória de alto nível e a metamemória. Dada a importância dessa taxonomia para a análise do corpus teórico analisado, passamos às suas definições: a protomemória, ou procedural, consiste naquilo que no âmbito do indivíduo, constitui os saberes e as experiências primárias compartilhadas pelos membros de uma sociedade; a memória

de

alto

nível

é

que

evoca

deliberadamente

ou

invoca

involuntariamente as lembranças autobiográficas ou pertencentes a uma memória enciclopédica; e, por fim, a metamemória, que consiste da representação da memória individual, ou seja, a forma como um indivíduo afilia-se ao seu passado (MUXEL, 196, p. 13). Assim como existe uma memória de fato (de alto nível) e uma metamemória, que a representa, há também uma identidade que assume o estatuto de “estado” e aquela que consiste em uma “representação”, ambas constituintes do conceito de “identidade individual”. A identidade, seja ela individual ou coletiva, é, portanto, representação do modo como o indivíduo, ou um grupo, imagina-se. Candau (2012, p.36) afirma que uma sociedade pode compartilhar um conjunto de lembranças, ou seja, delimitar uma área de circulação dessas lembranças, mas as evocações individuais das mesmas são diferentes, uma vez que dependem de escolhas que cada cérebro pode fazer. A transmissão da memória não garante o seu compartilhamento, assim como é impossível garantir que dois observadores compartilhem a mesma experiência. Nesse panorama inscreve-se também a memória genealógica, ou familiar, que não apenas serve de princípio organizador da identidade do sujeito, mas busca conferir o sentido do enraizamento, do sentimento de pertencimento, da preservação de uma herança imaterial.

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Os dois romances que constituem o corpus literário deste ensaio focalizam as operações da memória e a sua participação na configuração identitária do migrante. Em Os hungareses, Suzana Montoro cria personagens que vivem em uma aldeia, “um vilarejo incrustado nos Balcãs, na bacia do Danúbio” (MONTORO, 2011, p.19); um local onde o inverno é rigoroso e o verão tórrido, que parece estar à mercê da natureza. Nesse local, os habitantes nasceram húngaros e, de um dia para o outro, “com a mesma naturalidade com que se acorda todas as manhãs” (MONTORO, 2011, p.20), tornaram-se iugoslavos, perderam o direito de usar o próprio idioma e foram obrigados a falar uma outra língua: servo-croata. A narrativa não alude a fatos históricos, nem discorre sobre o episódio político que teria obrigado os húngaros a abdicar da língua materna; sequer uma data é mencionada para situar temporalmente os eventos narrados. No entanto, ao fim do romance, a autora apresenta uma lista contendo os nomes de húngaros, por ela entrevistados, cujos relatos são os alicerces de sua obra ficcional:

Aos relatos, juntei a imaginação, deixei os personagens se intrometerem e o livro ficou pronto. Os nomes estão trocados, as histórias são inventadas, mas quem viveu no sítio [dos hungareses, em São Paulo] ou conviveu com eles sabe que é tudo verdade. (MONTORO, 2011, p.187). Estrangeiros na própria terra, órfãos da língua materna, os aldeões viram-se relegados ao silêncio, “opaco de vozes humanas, mas repleto de barulhos” (MONTORO, 2011, p.22), comunicando-se através de gestos. O silêncio forçado os obrigou a aguçarem os outros sentidos: olfato, paladar e audição.

Ficamos assim, conversadores sem fala, mas cheios de gestos. Eu gostava disso, da conversa sem som, do que se lia no canto do olhar [...] Aprendi a escutar com os olhos, a ler com o nariz, a ver com os ouvidos. A gramática dos sentidos. A partir de então tudo na nossa aldeia era possível. Acho que teríamos nos tornado para sempre um povo mudo não fossem as distâncias que impediam o reconhecer das faces e cheiros. Aos poucos,

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e com igual desembaraço, fomos retomando o uso das palavras. O resultado de tudo foi uma língua nova, mistura dos dois idiomas [...] (MONTORO, 2011, p.22) Muito embora, nesse ponto específico da história, os aldeões ainda não tenham migrado fisicamente, a mudança virtual de território enseja um processo típico das migrações: o desenvolvimento da interlíngua, um dos traços do hibridismo cultural. Rozália, mãe da narradora – e Rózsa, sua tia, assim como outras personagens do romance são pessoas inquietas, peregrinas, atraídas pelo fascínio do desconhecido, mas, contraditoriamente, ligadas às suas raízes, o que faz com que sempre retornem à aldeia natal. A história da família é narrada pela filha caçula de Rozália, desde o episódio da desterritorialização, passando pela vinda para o Brasil e a vida no sítio dos hungareses, como eram chamados os imigrantes da Europa Central e Ocidental na cidade de São Paulo em 1930. Em contraponto, há a voz de Rozália, narrando os mesmos acontecimentos do ponto de vista de quem vivenciou as situações. A mudança de voz, marcada por mudança de fonte tipográfica, oferece perspectivas complementares da história narrada. A resenha de Noemi Jaffe para a Folha de São Paulo, assim se reporta à duplicidade da voz narrativa: O duplo foco narrativo, feito principalmente pela filha da protagonista, mas entremeado de falas de sua mãe, Rosália, é explorado de forma pouco imaginativa: as entradas da mãe, que poderiam dar um sentido polifônico ao romance, são como paráfrases da trama contada pela filha. (JAFFE, 2012)6 No entanto, a voz de Rozália surge como o elemento complementar à narrativa da filha. Se com ela não dialoga, eclode como enunciadora de momentos de rememoração, imprimindo ao texto certa carga de emoção subjetiva que é determinante para a recepção do romance. Rozália conhecera a tia no dia da morte da mãe. Ainda não era nascida quando esta partira para conhecer o mundo. Órfã, passara a ser cuidada por Rósza, que, embora não fosse carinhosa, lhe transmitira os conhecimentos que 6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/72947-narrativa-de-quotos-hungaresesquot-esta-aquem-desua-tematica.shtml

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possuía: a leitura da natureza, o conhecimento sobre ervas, os indícios do tempo na natureza e até mesmo o destino dos homens nas estrelas. A chegada de um pelotão de soldados transforma a vida da aldeia, que começa a receber visitantes de todos os lugares, “gente que ia em busca de nacionalidade, pisando uma terra

elástica onde as fronteiras alargavam e

encolhiam feito acordeão. Todos à procura da identidade e da pertinência” (MONTORO, 2011, p. 30). O romance mostra como se configura a identidade nacional e o sentimento de pertença, bem como demonstra que o homem pode reconstruir o seu lugar antropológico e outras terras que não o seu lugar de nascimento. A “gente” que buscava a nacionalidade se dispunha ao desapego das origens, total ou parcial, em troca de uma “história”, de uma memória, ainda que de empréstimo. Segundo Candau (2012, p.98), a memória das origens se vincula à memória de acontecimentos e costumes que são comuns a um grupo, configurando, junto à memória das experiências individuais, o referencial identitário de um indivíduo. Assim, a identidade de um grupo de pertencimento passa pela relação ambivalente que os membros do grupo têm com os acontecimentos. A rigor, a falta de ancoragem territorial é compensada por uma memória genealógica forte e simbólica7. No universo ficcional de Os hungareses, é essa memória que move alguns personagens ao retorno ao local de origem. A agitação da estada dos soldados é concomitante à decisão de Rósza de partir. Em meio aos recém-chegados, o pai de Rozália, que julgavam desaparecido, retornara à aldeia, com esposa e filho, e a menina não ficaria só. Muito embora, tanto Rósza quanto seu amigo Gedeon soubesse que János retornara apenas por causa da casa que a filha herdara. A incompatibilidade entre Tereza, a madrasta, e Rozália é imediata, principalmente em relação à proximidade com animais, e inversamente proporcional ao apego desta ao meio-irmão, Lajos. Quando Tereza afasta-o de Bélés, o cachorro da família, Lajos começa a ganir como um cão e vida afora continua a fazê-lo sempre que está triste. 7

Candau faz distinção entre a genealogia naturalizada e a genealogia simbolizada: a primeira se relaciona ao sangue e a o solo, enquanto a segunda se constitui a partir de um relato fundador. (CANDAU, 2012, p. 137).

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Uma nova família chega à aldeia e Rozália descobre o amor, que não se concretiza devido à objeção do pai. Assim como József, o seu eleito, parte em busca de um futuro melhor, Rozália decide abandonar a terra natal, manifestando pela primeira vez a vocação de andarilha, que herdara de Rózsa. Parte sem rumo, encontrando pelo caminho grupamentos de expatriados que,

[...] feito manadas, vagavam por distâncias indefinidas. Povos misturados e confundidos atravessando os campos poeirentos. Apesar da ausência de pátria, tinham sua própria identidade. Não havia anonimato. Como nos habitantes da aldeia natal, Rozália foi reconhecendo em todos os que encontrava o mesmo desprendimento, a mesma porosidade que absorvia com igual desembaraço o espírito gregário e a solidão. (MONTORO, 2011, p.53) Com a tia, ela também partilha o recorrente impulso do retorno a casa. São os uivos de Lajos, inconformado com a sua partida, que forçam Tereza a implorar a Gedeon que traga Rozália de volta. Assim como, anos mais tarde, os mesmos ganidos precipitam a migração. Incomodada com o fato de que o filho, Lajos, vive a ganir como um cão, Tereza convence um policial a ficar com Lobo, o cão da família e, segundo ela, causador da estranha mania que o filho desenvolvera. Cativando o menino com uma lanterna, o policial o convence a trocá-la pelo cão, mostrando-se insensível ao arrependimento posterior do menino. Após a troca, tanto o menino quanto o cão demonstram uma tristeza profunda. O policial irritado com o animal, cuja apatia torna-o inútil para a caça, mata-o com um tiro entre os olhos. A morte do cão faz com que o estado de Lajos piore ainda mais. Atenta ao conselho de um médico e vencida pela estranha doença do filho, Tereza “juntou os trastes e devaneios para embarcar com a família em direção a terras promissoras que atraíam um sem fim de pessoas em busca do eldorado” (MONTORO, 2011, p. 73). A idealização do país de acolhimento, pertinente ao processo de migração, se repete no romance de Montoro: “O novo continente era visto como lugar de oportunidades, onde enriquecer era tão óbvio quanto um dia

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após o outro, e o dinheiro tão farto que poderia ser rastelado” (MONTORO, 2011, p. 73). Nesse contexto, Rózsa é uma personagem emblemática, símbolo do desenraizamento, da errância. A aura de estranheza que a cerca, sua quase irrealidade, faz dela o fio condutor da narrativa, pois perpassa as gerações, aparecendo e desaparecendo em momentos cruciais da vida de outras personagens. Se à filha caçula de Rozália cabe tecer a narrativa, unindo-lhe os fios, transcendendo espaço e tempo, para registrar a voz dos que não a têm, sobretudo por tê-la perdido em meio ao trânsito, é Rózsa quem une as pontas do romance, início e fim, a dar-lhe, assim, um movimento cíclico. Às vezes, as vozes da narradora e a de Rozália se confundem, parecendo adotar um mesmo tom, tornando difícil a percepção da alteridade. Embora para muitos esse dado possa ser indicativo de uma fragilidade do romance, há a possibilidade de interpretá-lo como um traço que une as mulheres da família, andarilhas por excelência, mas presas por um cordão umbilical invisível a terra natal. A viagem é assim descrita:

Rozália atravessou o período de adaptação com um andar cambaio que só iria se firmar anos depois. Do que mais se lembra da viagem era o assombro que tinha em relação ao navio, ao oceano e à quantidade de pessoas que lotavam a terceira classe [...] Sentia falta de tudo que tinha deixado, casa, aldeia, bichos, Jozséf, chão para pisar, e, sobretudo, um lugar de estar sozinha, em silêncio. (MONTORO, 2011, p. 87) O romance enfatiza o sentimento de estranheza dos recém-chegados:

Lembrava-se da surpresa ao conhecer os negros, o brilho encerado da pele, os dentes tão brancos que pareciam teclas de acordeão, e do estranhamento ao ver cachos de banana pendidos de cabeça para baixo nas árvores. E também a umidade morna que grudava na pele, tão estranha quanto a língua que escutava [...] por onde andaram todos os imigrantes àquela época é história conhecida e recontada por infinitas vozes. A imensidão de caminhos e descaminhos que iriam cruzar até encontrar

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parada foi coisa que nenhum deles poderia antever. (MONTORO, 2011, p. 87) O processo de aculturação do imigrante, permeado de choques e de nostalgia, é abordado no texto de modo particular, por vezes quase evasivo. Em meio à rotina de trabalho exaustiva e um domínio precário do idioma da terra de adoção, a reconstrução do sentimento de pertença é lenta e dolorosa:

Rozália teve de esperar muito para ter a sensação de estar em algum lugar. Trabalhou na colheita de café, passou para o serviço doméstico na fazenda, foi para a cidade e empregou-se numa fábrica de cordas, depois numa tecelagem, voltou ao campo para o trabalho na roça, até que o pai foi mordido por uma cobra e toda a família se mudou em definitivo para a capital. Foi aí que experimentou um gosto de estabilidade. Tinha alguma compreensão do idioma e do jeito de ser local; odores e canto de pássaros já podiam ser reconhecidos, nomeava diversas frutas e acostumava-se com o desenho diferente das estrelas (MONTORO, 2011, p.91).

A terra natal passa a ser rememorada por meio de símbolos, pequenos elos que ainda fazem com que os imigrantes sintam-se húngaros:

Aos domingos eu podia ir para casa. Sempre guardava uma sobremesa para Lajos. Um dia levei uma maçã que ele ficou lustrando com a manga da camisa durante muito tempo e depois guardou embaixo do travesseiro. Disse que não iria comê-la. Porque gosto de maçã era gosto da aldeia, um gosto que queria guardar intocado na memória. E nunca mais comeu maçãs (MONTORO, 2011, p. 93). Para muitos imigrantes, a melancolia tornou-se um peso e quando Jozséf vem para o Brasil em busca de Rozária, o faz acompanhado do pai e do irmão, que não conseguem de modo algum adaptar-se:

O irmão mais velho não conseguiu se adaptar à nova realidade, queria de volta a vida na aldeia, a fábrica de carvão, a casa no cemitério, a futura esposa. Fechou-se em desalento e recusou-se a tudo que não fosse a perspectiva de voltar. Com o pai aprendeu a beber o desgosto. (MONTORO, 2011, p. 96).

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No romance, Jozséf consegue, com muito trabalho, juntar dinheiro suficiente para enviar de volta o pai e os irmãos, ao contrário do que acontecia na maioria das vezes. O sítio dos hungareses, dado real em meio à ficção, é assim descrito:

O sítio dos hungareses era uma espécie de loteamento espontâneo com um aglomerado de casas mais ou menos próximas, um caminho entre elas e um lago servia a todas. Tio Imre fora atraído para lá por um conhecido, Gábor, um dos primeiros a fixar residência no sítio. Não era a península balcânica, mas o clima se assemelhava ao verão no sul da Hungria. As terras eram férteis e baratas e um conterrâneo foi avisando o outro, até formarse a comunidade (MONTORO, 2011, p. 114). Em A memória coletiva, Halbwachs (p.121) demonstrou que o “campo memorável”, ou seja, o conjunto de lembranças fortalece-se quando encontra um eco no pensamento coletivo, quando há convergência entre as representações que cada indivíduo mantém ou busca compartilhar com os demais membros do grupo. No sítio, o sentimento de pertencimento é resgatado, a herança cultural mantida viva por meio das danças, dos pratos típicos, do idioma natal. Quando, ao fim do romance, os membros da comunidade começam a partir e a ser substituídos por outras pessoas de diferentes nacionalidades, o elo é quebrado, o mundo começa a desordenar-se:

A gente se acostuma a muita coisa nesta vida. Mas pessoas irem embora é coisa que não dá tempo de se acostumar. Porque no lugar da pessoa fica o espaço que ela deixou e que só pode ser ocupado pela lembrança. O que resta é um vazio cheio de ausência [...] quando o sítio se esvaziou de pessoas, foi sendo ocupado pelos espaços que elas deixaram e virou uma terra de ninguém. A aldeia, eu nunca soube em que se transformou. Uma e outro são as pontas do novelo em que se desenrolou a minha vida e o que está entre são como as águas de um rio que correm da nascente à foz. Meu viver, nascido na terra dos magiares, não teria outro lugar onde desembocar senão na terra dos hungareses. Depois de tudo fiquei assim, ocupada dentro e fora por essa

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extensão indefinida de (MONTORO, 2011, p. 177).

lembranças

e

passado

Se o desfecho de Os hungareses resulta em “perambular e narrar o passado até que uma erva daninha se espalhe pela memória”, o mesmo não se Página | 61 dá em A chave de casa. O romance de Tatiana Salem Levy se situa entre a autobiografia e a ficção e narra, em tempos distintos, quatro narrativas que compõem a trajetória da protagonista e sua história familiar: a história do avô, desde sua partida de Esmirna, na Turquia; a história da doença de sua mãe; a história de uma relação amorosa plena de conflitos e perigos e, finalmente, a história da busca que a protagonista empreende pela própria identidade. Assim como a autora, a protagonista do romance é descendente de judeus turcos e nasceu em Portugal, quando seus pais estavam no exílio, e, aos nove meses, após a Lei da Anistia, veio com os pais para o Brasil. Nasci no exílio em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal. Não seria menos penoso, menos amargo, se não tivéssemos sido obrigados a fazer esse longo percurso? Por que tivemos de sair de um lugar para voltar ao mesmo lugar? Nasci no exílio, onde meus pais estavam sem querer estar. Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não estava lá. Penou, minha mãe, para me ter. (LEVY, 2007, p.25) Os capítulos são breves, com alternância de vozes, e evocam o fluir da memória. No emaranhado polifônico, predominam as vozes da protagonista, a de sua mãe, já falecida, e a de um narrador em terceira pessoa. Após a morte da mãe, vítima de câncer, a protagonista mergulha em uma imobilidade destrutiva, agravada por um relacionamento amoroso mal resolvido. Seu avô lhe dá, então, a chave da casa da família em Esmirna e a missão de ir ao encontro de suas origens.


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A entrega da chave, no entanto, tem outra finalidade: a de propiciar à neta a autodescoberta, a definição de sua identidade, respondendo, assim, às perguntas que ela faz a si mesma: “Nasci no exílio: e por isso sou assim, sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra— mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?” (LEVY, 2007, p.25) Para a narradora, sua imobilidade e sua dor são causadas pelo trauma da migração: uma carga herdada, que a faz sentir-se plural, quando o seu desejo é o de encontrar a si mesma, de definir-se, sem estar atrelada ao passado. A rememoração da história do avô é quase como uma justificativa para a sua sede presente de reinventar-se: Se ele quisesse poderia conservar seu nome, sua origem. Preferiu criar outros, dar um novo nome e uma nova origem à vida que o aguardava. Sentia que para recomeçar precisava de outra identidade: se não deixasse para trás tudo o que havia sido seu até então, estaria para sempre amarrado ao passado. (LEVY, 2007, p. 42) O avô deixara sua terra devido à impossibilidade de casar-se com a mulher que amava e algum tempo mais tarde, já no Brasil, sofreu o choque da notícia da morte da jovem, que se suicidara ante o sofrimento da separação. Em consequência, permaneceu um mês prostrado, recluso em seu quarto. Há semelhanças entre neta e avô no que diz respeito à reação às perdas. Ambos sentem-se, em um dado momento, submergir ante o peso do passado. Quando ele dá à neta a chave de casa, o faz para que, como ele fizera um dia, ela possa erguer-se e decidir qual será a sua herança, ou melhor, se há ou não relevância na manutenção dessa herança. A escrita do romance surge, assim, como um processo de luto, de escolhas, que não só visam a dar um sentido a essa herança familiar, mas também a definir a herança literária. A viagem à Turquia, no entanto, não resulta em um retorno da narradora às suas origens, mas em uma expurgação do peso do que lhe fora legado pelos ancestrais. Em A chave de casa, é a mãe já morta quem pede à filha, entregue à própria dor, que reaja; que vá à Turquia, que escreva a história de sua família.

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A escrita é o começo da viagem. Talvez, a verdadeira viagem: “Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história de chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram[...] conto

(crio) essa história para dar algum sentido à

imobilidade, para dar uma resposta ao mundo e, de alguma forma, a mim mesma” (LEVY, 2007, p. 133) A dor faz parte do aprendizado: Essa viagem que faço, esse país estranho onde vim parar, tudo isso dói. Essa nossa conversa, mãe, também dói. A história de amor que me arrancou a carne dói. A história do meu avô, a sua história, a tortura, o exílio, tudo dói. E, sobretudo, dói falar da dor. Dói escrever esta história: cada nova palavra que encontro dói. Escrever, mãe, dói imensamente: dói tanto quanto é necessário. (LEVY, 2007, p.147) A herança étnica e a desterritorialização somatizam-se no corpo da personagem. Debruçar-se sobre o próprio passado é um ritual de passagem, necessário para que os fantasmas interiores se desfaçam, para que seja possível escolher o que herdar. O tom confessional da narrativa e o relato da doença e morte da mãe, bem como de uma relação amorosa quase doentia, revelam outras travessias que a personagem se vê obrigada a enfrentar. A obra, que desvela o seu processo de construção, é como a exposição de vísceras. Com raiva, com ódio, jogo a máquina de escrever no chão e rasgo todas as folhas escritas. E também as brancas, para não correr o risco de continuar escrevendo. Percebo o quão inútil é escrever essa viagem de volta às origens. Não quero escrever nem mais uma vírgula, quero destruir o que foi escrito. Essa viagem não tem por que existir: nem de verdade, nem no papel (LEVY, 2007, p.162). A viagem ora parece ser apenas ficcional, ora surge com as características de um deslocamento físico:

Esta viagem é uma mentira. Nunca saí da minha cama fétida. [...]Tenho em mim o silêncio e a solidão de uma família inteira, de gerações e gerações. Como se toda a alegria que cada um viveu fosse se desprendendo leve no

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ar e só ficasse a tristeza. E como se essa tristeza fosse se acumulando, se acumulando até chegar até a mim. Eu sou o resultado das dores de toda uma família.[...] Nunca sai do lugar, nunca viajei, não conheço senão a escuridão do meu quarto.[...] A chave que o meu avô me deu descansa ainda ao meu lado. (LEVY, 2007, p.106) Página | 64 Ao contrário do que faziam os imigrantes de primeira geração, que recorriam à memória coletiva para a reconfiguração do seu sentido de pertencimento, legando ao passado o papel de lastro da ancoragem identitária, a protagonista de A chave de casa, membro de uma terceira geração, percorre o caminho inverso: o da libertação dos códigos dessa memória grupal, que, a seu ver, constituem os grilhões que a impedem de atingir uma definição pessoal da identidade. A descoberta da demolição da casa que fora de seu avô dá à chave a sua real dimensão na história: Todos pousaram o garfo no parto e olharam na minha direção quando perguntei: a casa do meu avô ainda existe? Raphael titubeou, depois ergueu a cabeça e, sem pestanejar, respondeu: não. Quando sua avó se mudou para o Brasil, deixou a casa vazia. Ela ficou abandonada durante muitos anos e depois acabou sendo destruída. Você queria conhecê-la? ele perguntou. Contei-lhe então que meu avô tinha me dado a chave para tentar abrir a porta da sua antiga casa. Ele me olhou com ar desconfiado: seu avô não sabia que a casa tinha sido destruída? Pega de surpresa, gaguejei e, vacilando, disse: acho que não. Mas saí de lá com a pulga atrás da orelha. (LEVY, 2007, p.164) A trajetória da protagonista em busca de si mesma é uma forma de reação a duas formas diferentes de subordinação identitária: à herança familiar e ao amante, que a submete aos seus caprichos, sem respeito à sua individualidade. É a memória que a leva também a percorrer a história da mãe, o episódio de sua prisão durante a ditadura, o exílio em Portugal, as muitas nuances da dor que parece acompanhá-la sempre:

A dor está em tudo, espalhada por todos os cantos do planeta, por todos os cantos de nós. Não existe nem


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mesmo um poro da pele que não carregue dor. Os sentimentos mudam, mas a dor persiste. Em tudo o que experimentei, lá estava ela, de um modo ou de outro (LEVY, 2007, p.147). Rememorar a história dos familiares é parte de sua viagem pessoal, Página | 65 cujo percurso é resumido na fala da protagonista ao homem que encontra em Lisboa:

Então, continuei a lhe contar. Contei como tinha sido a viagem à Turquia, as pessoas que tinha encontrado, a casa que não estava mais lá. Contei que tinha feito esse percurso para tentar sair do lugar, porque havia muito eu não me levantava da cama, no Brasil. Contei também da morte da minha mãe., da dor, do luto. Disse-lhe que falo com ela até hoje. Falo com os mortos, afirmei, com os mortos que me acompanham. E depois contei do amor que me matou: um dia eu amei um homem, e esse homem me matou. Contei da violência, dos rasgos que ele fez na minha carne, e mostrei as marcas, as cicatrizes todas (LEVY, 2007, p. 200). Esse encontro faz de Lisboa não a terra onde nasceu, onde parte da história dos pais foi vivida, mas presentifica o espaço: “E assim pude partir em paz, voltar para o Brasil com a certeza de que a minha relação com Portugal não era mais uma relação com o passado, nem do passado” (LEVY, 2007, p.205).

Considerações finais As duas obras examinadas contém representações do deslocamento, da viagem, em sua relação com a configuração da identidade. Seguem, no entanto, direções inversas. O texto de Montoro aponta para uma relação de resgate da herança cultural, de cultivo da memória étnica, enquanto que o de Levy aponta para a sua dissolução como meio de constituição de um novo eu. A polifonia está presente nas duas obras. Há, inclusive, certa semelhança na evocação de situações e eventos pelas vozes de mães e filhas. Mães ausentes, cujo discurso surge como um relato que se constrói entre a alucinação e a lembrança.


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Se, conforme afirma Eco (2012, p.137), o emaranhado da memória individual e da memória coletiva prolonga a nossa vida, como uma promessa de imortalidade, por outro, o que nos encanta na ficção é sua faculdade de estruturar experiências passadas e presentes. As protagonistas dos dois romances debruçam-se sobre as histórias dos antepassados em busca do conhecimento do seu estado presente. Ambas viajam nas asas da memória: uma como as águas de um rio que corre da nascente à foz; a outra sob o emblema de uma chave que sela e separa histórias.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa.Rio de Janeiro: Record, 2007. MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2001. MONTORO, Suzana. Os hungareses. São Paulo: Ofício das Palavras, 2011. MUXEL, Anne. Individu et mémoire familiale. Paris: Nathan, 1996.

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Songdogs: a reescrita do passado pelo viés da memória

Shirley Carreira Andrea Pessanha The past cannot be captured or reenacted, but there is a cultural need to continually try to experience the past as a way to understand the present. (TRAYERS, 2006, p.121) Muitas têm sido as obras literárias que focalizam a recuperação do passado por meio da rememoração. Ao referir-se às operações da memória, Ecléa Bosi afirma que: A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 2009, p. 47) Colum Mc Cann, autor irlandês contemporâneo, cuja obra tem tematizado a diáspora e o hibridismo cultural, propõe no romance Songdogs uma releitura do passado por meio de uma estrutura narrativa fragmentada em três tramas paralelas, que refletem a tensão entre passado e presente sem, no entanto, deixar de estabelecer uma relação de continuidade entre eles, ao mesmo tempo em que narra a história de uma família mexicano-irlandesa, fragmentada pelo desencontro entre seus membros. A primeira trama gira em torno de sete dias da vida de um jovem irlandês, Conor Lyons, que retorna à casa paterna, no condado de Mayo, enquanto espera obter o seu Green Card na embaixada americana em Dublin.

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O encontro entre pai e filho provoca um confronto de memórias que a estrutura narrativa apresenta como um álbum de fotografias. A segunda trama é construída como uma narrativa biográfica fragmentada e reconstrói a vida do pai do narrador, Michael, até o presente, Página | 69 quando a segunda narrativa se mistura à primeira. A terceira desvela alguns momentos da vida do protagonista anteriores ao retorno à casa paterna até o ponto em que se funde às outras duas, transformando-se em um tipo de epifania ao estilo de Joyce. A história é narrada em um jogo de retrocessos e antecipações. Michael, o pai do protagonista é um fotógrafo que, ao longo da vida, retratou a própria existência, os locais em que esteve, as pessoas com que teve contato, a miséria humana e as alegrias de que foi testemunha. A mãe de Conor, Juanita, abandonara a casa quando ele tinha apenas doze anos, partindo após descobrir que Michael havia publicado fotos suas, em que ela posava nua, sem o seu consentimento. Partira após destruir a câmara escura em que o marido revelava suas fotos. Conor também deixara a Irlanda após a partida da mãe e vagara pelo México e pelos Estados Unidos desde então, tentando encontrá-la em vão, até decidir-se a ir ao encontro do pai. O romance pode ser interpretado como uma jornada arquetípica, em busca do próprio eu. A questão da identidade e do pertencimento perpassa todo o romance e parte da indefinição identitária de Michael, que foi igualmente abandonado pela mãe. Quando bebê, ele fora encontrado por duas senhoras protestantes, que o acolheram e lhe deram o nome de Gordon Peters. Nome que ele posteriormente rejeitara, para adequar-se à sociedade local. Após a morte de suas guardiãs, ele embarcara em uma viagem que o levara da Guerra Espanhola, em Madri, ao México, onde conhecera Juanita. As andanças das duas personagens pela América, bem como o retorno à Irlanda, onde Conor nascera, são narradas a partir de relatos e de lembranças que eclodem ante as fotografias do álbum.


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Ao contrário dos coyotes, os songdogs do título, que jamais penetram em um local onde outros de sua espécie foram mortos, Conor necessita revirar o passado, colhendo os seus resquícios: But the past remembering universe by burstingness. CANN, p.73)

is a place that is full of energy and imagination. In Página | 70 we can distil the memory down. We can manage our stuffing it into the original quark, the point of It’s the lethargy of the present that terrifies us all. (MC

Todas as personagens são descritas como forasteiros, pessoas permanentemente em trânsito, indefinidas quanto à própria identidade. Conor emblematiza o sujeito da modernidade líquida descrita por Bauman: alguém que necessita debruçar-se sobre o passado em busca de suas raízes. As fotografias feitas pelo pai são a sua forma de acesso ao passado, ao um tempo anterior ao de sua própria existência. A personagem Cici, amiga de Juanita, com quem ele se encontra um dia, afirma que “três quartos da memória são pura imaginação” e “o restante apenas mentiras” (MC CANN, 2005, p.112). A narrativa de Conor faz parte de uma tessitura de imagens as quais ele dá sentido, sem que este corresponda à efetiva sucessão de fatos. As fotografias são uma espécie de pós-memória, pois sua relação com o objeto não é construída pela lembrança em si, mas pela imaginação (HIRSCH, 1997, p.22). Isso também se aplica às situações em que o indivíduo aceita como suas as memórias mediadas pelas histórias narradas por membros de uma geração anterior. Enquanto o pai sai para pescar, ele se entretém com o álbum e cada foto evoca uma situação diferente, com personagens, cenário, aromas e ruídos, movendo-o pela história que tenta reconstruir. Em uma passagem do romance, Conor se vê como o fotógrafo, invadindo a cena registrada, conversando com as pessoas retratadas: “They have no names when I walk to meet them, these immigrants. But I know their jobs … ” (MC CANN, 1995, p.136).


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A fotografia mostra homens e mulheres nas escadas, na parte de trás de uma casa. São imigrantes irlandeses, como bem demonstram seus trajes e fisionomias. À medida que examina as fotos, Conor recria suas histórias, conferindo a cada uma daquelas pessoas existência e destino. Página | 71

A ficção que constrói a partir das imagens não se distancia das conjeturas que surgem diante de velhas fotografias de imigrantes. Elas se misturam às velhas histórias contadas pelos pais, que até então julgava serem verdadeiras, para darem sentido à sua existência. Sua identidade cindida, meio mexicana, meio irlandesa, advém do nomadismo dos pais, pessoas para quem as raízes pareciam não fazer muito sentido. O apego às histórias do passado e àquelas que ele mesmo inventara a partir das fotografias resulta de sua necessidade de um contexto familiar, do sentido da tradição. No romance, o protagonista explica que para os índios Navajos o mundo foi criado pelos uivos de um par de coyotes. Ao comparar os pais àquele casal primitivo de coyotes, o narrador estabelece uma relação entre os uivos que originaram o mundo e as histórias que lhe conferem uma identidade. Years later, in America, I was told that Navajo Indians believed coyotes ushered in the Big Bang of the world with their song, stood on the rim of nothingness, before time, shoved their pointed muzzles in the air, and howled the world into existence at their feet. The Indians called them Songdogs. The universe was etched with their howls, sound merging into sound, and the beginning of all other songs. Long ago, when they told me their stories about Mexico, Mam and Dad, I believed they were true. And I suppose I still do. They were my Songdogs – my mother by the washing line, my father flailing his way against the current. (MC CANN, 1995, pp. 72-73) A busca pela mãe corresponde à procura da definição identitária: In bookshops … I looked at guidebooks to Mexico, wondering if my mother might step out from the pages and appear to me … In those bookshops … I decided that I would make my trip to my mother’s country, find her, make her exist for me again (MC CANN, 1995, pp. 42-43) Embora afirme para o filho que também sente falta de Juanita, Michael opta pelo esquecimento. A dialética entre a lembrança e o esquecimento permeia a história de imigrantes em toda parte do globo.


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Em um dado momento da vida, Michael optara por esquecer, por distanciar-se da esposa e do filho, por experimentar um mundo além das fronteiras da Irlanda. Conor, por sua vez, busca conhecimento do passado, de si mesmo. Página | 72

O romance evoca um velho mito irlandês, o “Salmão da sabedoria”, ou bradán feas. Nessa lenda, um salmão engolira nove avelãs caídas no poço da sabedoria e adquirira todo o conhecimento do mundo. Um velho poeta, Finn Eces, após sete anos, consegue pescá-lo e instrui um jovem guerreiro, Fion Mac Cumhaill, sobre a forma de prepará-lo. No entanto, ao fazê-lo, o jovem queima o polegar e, ao sugá-lo, acaba por sorver todo o conhecimento, restando ao velho poeta apenas o relato de tal façanha. Em sua ânsia de viver, Michael se assemelha ao velho poeta, enquanto que Conor, em sua busca de conhecimento, evoca o jovem Fion. Sua identidade cindida eclode no texto em momentos de reflexão: “In a train station, …, I pondered my dual heritage, the Irish in me, the Mexican….A child voice inside me asking: ´Who the hell are you anyway?´” (MC CANN, 1995, p. 42) O álbum registra o percurso de uma migração voluntária, outrora realizada por Michael, que nascera em 1918, no condado de Mayo, um dos lugares com os maiores índices de migração na Irlanda. O romance segue então um movimento cronológico, percorrendo os anos de 1934, 1936 e 1939, descrevendo eventos como a Grande Depressão, a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Após a guerra, Michael vai para o deserto Chihuahuan, no México, onde conhece sua futura esposa, mãe do narrador. Todo esse percurso é recuperado por meio de fotografias em preto e branco. Em “Cultural encounters em Songdogs”, Maura Xavier Garcia (2005, p. 115) chama a atenção para o fato de que a opção pela ausência de cor evidencia uma percepção do ambiente sem o envolvimento da emoção. Ela cita Kossoy (1989), para quem as cores estão relacionadas às emoções enquanto o contraste claro/escuro denota uma percepção do entorno. O romance é povoado por personagens das mais diversas origens: alemães, hispânicos, marroquinos, algerianos, asiáticos, italianos, judeus e mestiços, retratados continuamente pela câmera de Michael. A representação


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das minorias enseja uma busca, empreendida por todos, de sua própria voz, de um local de fala, o terceiro espaço mencionado por Bhabha (1997), onde fica “o fora do dentro: a parte do todo”8. De certo modo, Conor também é duplamente migrante: de sua terra natal e de sua complexa história de vida. Página | 73

Para Michael, fotografar sempre fora um modo de captar instâncias imperceptíveis ao olhar comum, de tornar imortais instantes fugidios, de cristalizar as pequenas histórias do cotidiano.

O que torna o romance

fascinante, em sua leitura a partir da memória, é o fato de que a fotografia é um registro estático de um acontecimento empírico, aberto a conjeturas, e é assim que Conor recupera o passado. Segundo Roland Barthes, “Not only is the photograph never, in essence, a memory…but it actually blocks memory, quickly becomes counter-memory” (BARTHES, p.91). A contramemória existe em função da lacuna entre a experiência real e aquela que é construída pela percepção individual. A filtragem do real, referida como “quark” no texto, captura, assim, a unidade mínima de significado da experiência vivida, apesar de desprovida de detalhes: Within the context of the novel, a “quark” is the smallest moment or event that still has meaning, a condensation of prior experience which, although it lacks detail, retains the quality of the original experience. It is the origin of a larger universe of experience. The novel seems to indicate that the photographs and the narrative are merely “quarks” due to the fact that it is impossible to capture the grand detail and momentary emotions of an entire life. But one can capture its essence in a condensed and somewhat lesser version. (TRAYERS, 2006, p.120) Conforme Trayers enfatiza, o termo quark9 é tomado por empréstimo a James Joyce, que o utilizou ao escrever Finnegans Wake. Ao tentar expandir o conteúdo das fotografias, Conor se depara apenas com a contramemória. Nenhuma memória pode ser infinitamente destilada, refinada. Fotografias distanciadas de seu contexto são apenas um flash daquilo que se viveu. A 8

9

“the outside of the inside: the part in the whole.” (BHABHA, 1997, p. 58)

Na física, quark é uma partícula elementar e um dos dois elementos básicos que constituem a matéria, mas nunca pode ser observado isoladamente.


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memória, assim, “perde seus detalhes, torna-se simultaneamente verdadeira e falsa, uma ficção baseada em fatos” (TRAYERS, 2006, p.121), que nunca corresponde à totalidade da experiência empírica. Ao fim do romance, Conor começa a entender o apego do pai ao rio, à Página | 74 atividade da pesca, pois este revela ao filho que Juanita pode ter se matado afogando-se no rio. Assim, dia após dia, Michel tentava pescar o salmão que simboliza Juanita e o passado que ele, inconscientemente, tenta resgatar. A tentativa de Conor de transformar-se em um songdog, (re)criando um universo em que a própria história está contida, falha, pois nem as histórias ouvidas em criança, nem a fala do pai que está para morrer, nem o teor das velhas fotografias são suficientes para criar um mundo em que ele possa se encontrar. O mundo que quer recriar está morto: aquele em que seus pais se encontraram, amaram-se e perderam-se um do outro; aquele em que Juanita existiu concretamente; aquele em que sua história pessoal fazia sentido. Ao perceber que o mundo que tenta recuperar é um passado inacessível em sua essência, Conor reage como os songdogs da epígrafe do livro10: segue em frente, a cantar sua canção em outras paragens.

Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. Camera Lucida: Reflections on Photography. Trans. Richard Howard. New York: Hill and Wang, 1982. BHABHA, H. Culture is In-Between. In: HALL, S.; DU GAY, P. (Eds.) Questions of Cultural Identity. London: Sage Publications, 1997, p. 53 - 60. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Cia das Letras, 2009. CUSATIS, John. Understanding Colum McCann. Columbia: University of South Carolina, 2011. GARCIA, Maura Xavier. Cultural encounters in Songdogs. Revista de Letras, São Paulo, 45 (2): 111 - 120, 2005. 10

“They move on and sing elsewhere” (McCANN, 1995).


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KOSSOY, B. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989. McCANN, Colum. Songdogs. New York: Picador, 1995. TRAYERS, Shane N. National family allegory: Irish men and postindependence novels and film. Dissertation. Texas A&M University, 2006, Página | 75 mimeo. WEBER, Eric Thomas. Morality, Leadership, and Public Policy: On Experimentalism in Ethics


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Quando o subalterno fala — construções sociais da subalternidade na literatura indiana contemporânea Página | 76

Shirley de Souza Gomes Carreira Anna Carolina Teixeira Maia

1. Introdução Em seu ensaio seminal intitulado “O subalterno pode falar?”, Gayatri Spivak levantou a questão da voz do subalterno, do seu lócus de enunciação e da relação entre a superação da afasia e o fim da condição de subalternidade. No caso específico da literatura indiana em língua inglesa, a superação está intimamente relacionada ao boom da literatura pós-colonial. Este trabalho, além de enfocar a gênese dos Estudos Culturais, busca analisar as construções sociais da subalternidade em dois romances contemporâneos da literatura indiana em língua inglesa, O Deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy, e O tigre branco, de Arvind Adiga, a fim de demonstrar como o subalterno é representado e por meio de quem o subalterno “fala”. O ponto de partida será a inter-relação entre o conceito de subalternidade e os Estudos Culturais. O campo dos Estudos Culturais, surgido na Inglaterra em 1964, com a fundação do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), tendo como foco principal as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais. Na segunda década do século XX, a emergência de olhares resistentes à estrutura dominante de poder, com foco em questões de gênero, raça, etnia e desigualdades sociais, reorientam os Estudos Culturais abrindo espaço para estudos de minorias e para o desenvolvimento dos Estudos Pós-coloniais11.

11

Pós-colonialismo refere-se a um discurso intelectual que reúne um grupo de teorias ancoradas na filosofia, ciência política e literatura; tais teorias são reações contra o legado colonial. Esse arcabouço teórico lida com a literatura produzida em países que foram colônias.


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O termo “subalterno”, do latim subalternus, tem por denotação a ideia de subordinação de um indivíduo a outro. Entretanto, desde os anos setenta, ele tem sido usado em referência às pessoas colonizadas do subcontinente sulasiático, possibilitando um novo enfoque na história de seus habitantes, até então, vista apenas do ponto de vista dos colonizadores e do seu poder hegemônico. Para Gayatry Spivak, crítica e teórica do Pós-colonialismo, que atua como professora na Universidade de Columbia, o termo “subalterno”, não deve ser compreendido apenas como uma palavra clássica para o oprimido, referindo-se apenas à condição de subordinação, mas deve ter seu sentido ampliado de modo a abarcar a ideia de marginalização, de afasia ou falta de representatividade, em decorrência do status social. Para ela, o subalterno é o que não consegue lugar em um contexto globalizante, capitalista, totalitário e excludente; é “aquele que não pode falar, pois, se o fizer, já não o é” (1998, p.275). Essa perspectiva parte, então, do princípio de que, enquanto na condição de subalternidade, o indivíduo não tem voz. Cabe, assim, a pergunta: “E quem fala pelo subalterno?” Se a condição de

subalternidade

é

a

condição

do

silêncio,

o

subalterno

carece

necessariamente de um representante. Para Spivak, a representação do subalterno está atravessada pela hierarquia opressora dominante, ou seja, quem fala se enuncia a partir de um lócus que é condicionado pelo Ocidente. Ainda que um intelectual se posicione e enuncie um discurso contra-hegemônico, ele não será capaz de evitar a cumplicidade com esses mecanismos de poder, com padrões de análise hegemônicos e com a colonização epistemológica. Por outro lado, e em direção contrária a de Spivak, teóricos como Armando Gnisci, escritor e ex-professor da Università degli Studi di Roma La Sapienza, defendem a necessidade de ausculta do subalterno. Na esteira de Gramsci, Gnisci propõe uma descolonização do pensar do Ocidente, que até agora esteve centrado na produção intelectual contra-hegemônica feita no interior da academia.

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Em suma, a quem se deve ouvir? A quem cabe, então, representar o subalterno? Este trabalho, conforme já dito, propõe a ausculta de dois autores que propõem essa fala: a representação do outro subalterno e marginalizado.

2. Ecos da voz do outro: a literatura indiana contemporânea Arundhati Roy — escritora e ativista política— alcançou projeção internacional com o romance O deus das pequenas coisas, com o qual ganhou, em 1997, o Booker Prize, o mais importante prêmio literário para obras em língua inglesa. Em seus ensaios e artigos de teor político, a autora expressa a sua preocupação com as minorias sociais e seu primeiro romance, em consonância com a sua militância política, consegue aliar uma linguagem altamente poética e singular à sua percepção da Índia como um espaço de contrastes, onde a herança cultural dos colonizadores coexiste com a tradição milenar, ambas concorrendo para a exclusão de vários segmentos sociais. O deus das Pequenas Coisas é um romance passado na Índia, no estado de Kerala, nos anos 60/70 do século XX, onde vamos encontrar uma população que, embora tenha incorporado os hábitos dos colonizadores europeus, ainda conserva a maior parte das suas tradições e tabus ancestrais, como a marginalização dos intocáveis. Na Índia, o sistema de castas ainda divide a sociedade e caracteriza-se pela divisão da população em estratos segundo a sua ocupação. Muito embora haja uma explicação religiosa para o fato, há implicações que devem ser consideradas de modo que se possa entender como o sistema funciona na contemporaneidade. Segundo a tradição hinduísta, há quatro castas varna, ou seja, derivadas do primeiro homem: os brâmanes, sacerdotes e letrados, nasceram da cabeça de Brahma; os kshatryas, os guerreiros, nasceram dos seus braços; os vayshias, ou comerciantes, nasceram das suas pernas e os shudras, servos, camponeses, artesãos e operários, nasceram dos seus pés. À margem dessa estrutura social havia os que vieram da poeira debaixo do pé de Brahma: os párias (harijans), também conhecidos como dalits ou intocáveis. As três

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primeiras castas são consideradas de pureza superior e privilégios, pois seus membros masculinos são aqueles que “nasceram duas vezes”. Todas as castas têm subdivisões que definem com precisão a atividade de cada grupo. A constituição indiana proibiu a discriminação em consequência do Página | 79

sistema de castas. No entanto, o preconceito social permanece. O antropólogo Louis Dumont afirma que o sistema de castas funciona como uma engrenagem, em que cada parte só pode ser compreendida em função da sua relação com outras partes: “no mundo das castas o ser está na relação e

os

dois

polos

da

relação

não

têm

estatuto

ontológico

independentemente um do outro” (DUMONT, 1992, p. 29). No pensamento antropológico de Louis Dumont é central a oposição entre sociedades que define como holístico-hierárquicas e individualísticoigualitárias, quando consideradas em seu nível ideológico. Assim, pode-se dizer que, na Índia, a herança da cultura britânica, exemplo desta última, coexiste com o sistema hierárquico da primeira. Nesse contexto, ela cria um microcosmo no romance que corresponde ao macrocosmo, que é a sociedade indiana. A família, cujas relações são o background para a ação romanesca, é liderada por um entomologista frustrado, que lamenta vida afora não ter conseguido dar o próprio nome a um novo tipo de inseto. De mentalidade colonizada, ele não concebe nada de bom fora do sistema de valores do colonizador britânico. Assim, envia o filho para estudar na Inglaterra, a fim de que ele usufrua o melhor que, a seu ver, o Ocidente tem a oferecer. A sua visão patriarcal faz, no entanto, com que negue à filha, Ammu, o mesmo direito, ainda que esta manifeste a vontade de prosseguir nos estudos. Em um mundo de “grandes coisas”, como o poder e o sistema de castas, o romance focaliza os seres quase transparentes, que nele transitam insignificantes e assim permanecem desde que não interfiram e não desequilibrem a ordem reinante. No romance, todas as mulheres retratadas são pessoas afetadas pelo mecanismo de exclusão social que governa não apenas a relação entre classes, mas também entre gêneros.


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Da esposa, a quem agride fisicamente, à filha a quem o pai nega apoio após um casamento fracassado, todas se apresentam como mulheres cerceadas em sua vontade e realização pessoal. Ammu, a filha, que retorna à casa paterna com seus filhos gêmeos após o divórcio, não apenas é considerada uma pária social, mas vê essa condição também estendida aos filhos, que também sofrem as agruras da discriminação. Ao apaixonar-se e relacionar-se sexualmente com Velutha, um intocável que trabalha para a família, Ammu traz sobre si a ira da família e leva o amante a um fim trágico, após uma falsa acusação de assassinato. O destino de Ammu não é menos trágico do que o de seu amante: morre em uma crise de asma em um hotel barato, excluída da família e da sociedade. Uma breve leitura de manchetes de jornais indianos pode nos mostrar o quão próxima da realidade é a ficção criada por Arundhati Roy, revelando que o preconceito e a exclusão social, característicos da situação pós-colonial, manifestam-se também através da tradição cultural indiana. A publicação de O Deus das Pequenas Coisas, em 1997, coincidiu com o 50.º aniversário da independência da Índia e, apesar do tema, foi celebrada pelos compatriotas como um sucesso que coroava o início de um período nacionalista e consumista da Índia. No entanto, os ensaios de teor político, em que questiona duramente a política indiana e a desigualdade social, fizeram com que instantaneamente passasse de escritora aclamada à ativista renegada. A viragem política de Roy enfureceu muito do seu público de casta alta, urbano, anglófono, ainda que tenha atraído outro. A maior parte dos seus novos fãs nunca tinham ouvido falar no romance, falavam frequentemente outras línguas que não o inglês e sentiam-se marginalizados devido à sua religião, casta ou etnia; sentiam-se deixados para trás pelo crescimento económico da Índia. Devoravam os ensaios que começou a escrever, distribuídos com traduções não autorizadas, e juntavamse em comícios para a ouvir falar. “Havia todo aquele ressentimento, muito compreensível, com O Deus das Pequenas Coisas, por haver uma pessoa a escrever em inglês e a ganhar imenso dinheiro”, comenta. “Por isso, quando saiu o The end of Imagination deu-se o reverso,

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uma fúria entre as pessoas anglófonas, mas também um acolhimento por todos os outros.” 12

Tradicionalmente vista pela ótica do misticismo ou pela visão saudosista e igualmente mítica dos expatriados, a Índia que se apresenta no romance de Página | 81 Roy é cruel em suas diferenças, em seus contrastes, e a voz perceptível no romance é compatível com o discurso da ativista política. Se Roy tece uma história trágica para retratar a Índia, Aravind Adiga, em O tigre branco, opta pela ironia, pela comicidade, para igualmente desvelar o lado negro da sociedade indiana. Seu romance, que venceu o Man Booker Prize de 2008, causou reação negativa na Índia, ao mostrar que, naquela sociedade, os meios escusos para subir na vida são comuns e devem ser vistos, segundo o olhar irônico do narrador, como um empreendedorismo. Em entrevista ao periódico The Guardian, em 16 de outubro de 2008, Adiga refutou os questionamentos acerca da sua capacidade de retratar uma Índia à qual visivelmente nunca pertenceu:

Well, this is the reality for a lot of Indian people and it's important that it gets written about, rather than just hearing about the 5% of people in my country who are doing well. In somewhere like Bihar there will be no doctors in the hospital. In northern India politics is so corrupt that it makes a mockery of democracy. This is a country where the poor fear tuberculosis, which kills 1,000 Indians a day, but people like me - middle-class people with access to health services that are probably better than England's don't fear it at all. It's an unglamorous disease, like so much of the things that the poor of India endure.13

12

Trecho do artigo de Siddhartha Deb, intitulado A renegada. Disponível em: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-renegada-1629655, acessado em 25/04/2015. 13 Bem, esta é a realidade para muitos indianos e é importante que se escreva sobre ela, ao invés de apenas ouvir sobre a 5% das pessoas no meu país que estão se dando bem. Em algum lugar como Bihar não haverá médicos no hospital. A política no norte da Índia é tão corrupta que é uma paródia da democracia. Este é um país onde os pobres temem a tuberculose, que mata 1.000 indianos por dia, mas as pessoas como eu - de classe média pessoas com acesso aos serviços de saúde que são provavelmente melhores do que Inglaterra - não a temem. É uma doença sem glamour, como tantas outras coisas que os pobres da Índia têm de suportar. Tradução de Shirley Carreira. Disponível em: http://www.theguardian.com/books/2008/oct/16/booker-prize. Acessado em: 25/04/2015.


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O romance é construído como cartas do narrador, Balram Halwai, ao primeiro ministro chinês, que está para visitar o país e deseja saber a “verdade” sobre o local. O narrador, que assina como “Tigre Branco”, começa a carta com uma tradição antiga: a oração ao Poder Superior, quando, ironicamente, afirma que todos puxam o saco de alguma divindade, embora seja difícil supor qual, devido às muitas possibilidades.

Veja só: os muçulmanos têm um deus. Os cristãos têm três. E nós os hindus temos 36.000.000. O que dá um total de 36.000.004 sacos divinos para V. Exa. e eu escolhermos.[...] é certo que todos esses deuses parecem trabalhar muito pouco— exatamente como nossos políticos—e, mesmo assim, continuam sendo reeleitos para ocupar tronos dourados no céu, ano após ano. Isso não quer dizer que eu não os respeite, Sr. primeiroministro! Nem pense em deixar que uma blasfêmia como essa se instale em sua mente amarela. O meu país é daqueles onde o importante é jogar em ambos os lados do campo: o empresário indiano deve ser honesto e inescrupuloso, cínico e crédulo, sonso e sincero, tudo ao mesmo tempo.(ADIGA, 2011, p.13) O narrador é um membro da casta dos doceiros, que, quando jovem, usara de subterfúgios para se tornar motorista de um rico empresário, que mais tarde, veio a se tornar sua vítima. Em O tigre branco, o sistema de castas é objetivamente representado e apontado como um mecanismo social e político de coerção. O romance é o retrato de uma sociedade apodrecida pela ganância que vai acentuando as diferenças entre aquilo que o autor considera serem as “duas Índias”: a da Escuridão, onde os pobres se digladiam por uma sobrevivência precária e a da Luz, onde a ganância domina a vida de uma classe capitalista sem escrúpulos. Balram, oriundo da Índia da escuridão, supera os obstáculos sociais, tornando-se um “bem-sucedido membro da Luz”. Em um período da história da Índia marcado pela americanização e pela globalização, Balram tem a percepção de que a única maneira de ascender socialmente em um sistema de castas é por meio do “empreendedorismo”, palavra que ele usa ironicamente para explicar todos os atos escusos de que é capaz ao longo do romance, inclusive o assassinato de Ashok, seu patrão.

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Travessias: estudos de literatura e imigração

A frase “I‘m always a man who sees ‘tomorrow’ when others see ‘today’”14 demonstra que o desejo de ascensão de Balram, aliado ao orgulho de sua própria perspicácia, torna-o suscetível à corrupção. Em uma entrevista concedida ao site Bookbrowse, à época do lançamento do livro, Adiga afirma que “There's a kind of continuous murmur or growl beneath middle-class life in India, and this noise never gets recorded. Balram is what you'd hear if one day the drains and faucets in your house started talking”15. Em outra entrevista, diz o autor: "A handful of men in this country have trained the remaining 99.9% - as strong, as talented, as intelligent in every way - to exist in perpetual servitude."16 Ao ser abordado por jornalistas com a finalidade de discorrer sobre autores que influenciaram o seu estilo de escrita, Adiga afirmou que reconhece em seus textos ecos de três autores contemporâneos em particular: Ralph Ellison, James Baldwin e Richard Wright, cujas obras tratam da relação entre raça e classe. Detendo-se especialmente na obra de Ellison O homem invisível, Adiga afirma que o narrador de O tigre branco é o seu homem invisível tornado visível, o tigre branco que escapou da jaula.

3. Considerações finais Esta breve exposição dos dois romances permite um retorno à pergunta que deu origem a este trabalho. Quem fala pelo subalterno? Se no passado, a Índia foi representada por Ocidentais e, num passado mais recente, ela foi analisada por intelectuais, muitos deles indianos, pertencentes ao corpo docente de universidades do ocidente, podemos dizer que hoje o subalterno, ao menos, é representado por

14

Sou um homem que enxerga o amanhã, quando outros só veem o hoje. Tradução da autora. Há uma espécie de murmúrio contínuo ou rosnado abaixo da vida de classe média na Índia, e esse ruído nunca foi registrado. Balram é o que você ouviria se algum dia os ralos e as torneiras de sua casa começassem a falar. Tradução de Shirley Carreira. Disponível em: https://www.bookbrowse.com/author_interviews/full/index.cfm/author_number/1552/aravind-adiga. Acessado em 25/04/2015. 16 Neste país, um punhado de homens treina outros 99,9, igualmente fortes, talentosos e inteligentes, a viver em servidão perpétua. Tradução de Shirley Carreira. Disponível em: http://www.theguardian.com/books/2008/oct/16/booker-prize Acessado em 25/04/2015. 15

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seus iguais, no sentido de que a voz que narra a Índia e suas histórias é uma voz indiana. Ainda que a narrativa seja ficcional, seu substrato não o é, e por detrás de cada personagem, cômico ou trágico, fala um ilustre desconhecido, que nos pede apenas alguns minutos de ausculta, para que possamos reconhecer a sua voz.

Referências bibliográficas

ADIGA, Aravind. O tigre branco. Trad. Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. ____. Entrevista ao site Bookbrowse. Disponível em: https://www.bookbrowse.com/author_interviews/full/index.cfm/author_number/1 552/aravind-adiga. Acessado em 25/04/2015. ____. Entrevista ao jornal The Guardian, em 16 de outubro de 2008. Disponível em: http://www.theguardian.com/books/2008/oct/16/booker-prize Acessado em 25/04/2015. CARREIRA, Shirley de S. G. Figurações do feminino na literatura indiana contemporânea. Terra Roxa e Outras Terras, v. 9, 2007. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol9/9_1.pdf Acessado em 22 de dezembro de 2014. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 1992. ROY, Arundhati. O deus das pequenas coisas. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos P. Feitosa, André P. Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

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Representações da identidade em “A filha única do filho mais velho” e “Só bondade”17

Luciano Lage Feitosa Filho

1. Introdução A identidade cultural compreende um conjunto de relações sociais e um patrimônio simbólico compartilhado historicamente por um grupo de indivíduos. Por muito tempo, as questões de identidade foram discutidas em termos de um vínculo territorial subliminar ao conceito de nação, que se consolidou na era moderna. Com as grandes revoluções surgidas em toda Europa durante o século XVIII e, principalmente, após a grande Revolução Científica, também conhecida

como

o

movimento

Iluminista,

surgiu

o

estado-nação.

O

nacionalismo serviu de força motriz para a formação de uma identidade coletiva que constituiu a base político-ideológica da integração e unificação dos grupamentos humanos. Tendo por base traços que definiam a pertença, como, por exemplo, o território e o idioma, difundiu-se o binarismo eu/outro que por muito tempo definiu as relações sociais. A identidade forjada pelo calor do iluminismo conferia ao indivíduo um caráter racionalista. Acreditava-se que o sujeito nascia com uma identidade que não mudaria jamais ao longo da sua vida independentemente da experiência individual: era uma concepção individualista de sujeito e de identidade (HALL, 1994, p.11). Para Durkheim (TOSI, 2005, p. 24 e 25), cada indivíduo é formado por dois núcleos que se adaptam e fazem com que esse sujeito evolua: a representação individual e a coletiva, onde todos estão agrupados em um único ser social. A concepção de identidade do sujeito sociológico concebia o homem como um ser influenciado pelo mundo social, ou seja, formado por meio dos seus relacionamentos interpessoais. Desta forma, as pessoas que o cercavam 17

Texto publicado na Revista Alumni da UNIABEU. Republicação autorizada.

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se tornavam mediadores culturais. Alberto Tosi, sociólogo contemporâneo, discorrendo sobre a teoria Durkheiminiana, afirma que:

[...]se destacarmos um único indivíduo da sociedade onde ele vive e o levarmos para outra sociedade ou mesmo para uma ilha deserta ele levará um pouco da sociedade consigo dentro de sua cabeça. (...) Portanto, não apenas o indivíduo faz parte da sociedade; uma parte da sociedade faz parte dele. Ao mesmo tempo, por outro lado a sociedade só existe em sua plenitude se tomarmos um conjunto, porque ela não cabe toda, completa, na cabeça de cada um. (TOSI, 2005, p. 24 e 25) Essa concepção agrega mais valor à questão da identidade por associála a uma estrutura maior: a sociedade. No século XX, a identidade passa a ser vista como algo em constante mudança, traduzindo perfeitamente a constituição do sujeito pós- moderno. A mobilidade humana através do globo após a Segunda Guerra Mundial, associada à independência de ex-colônias de países europeus, propiciou encontros

interculturais

que

se

tornaram

emblemáticos

das

novas

configurações identitárias que caracterizam o mundo globalizado. Esse deslocamento de indivíduos, tanto de seu lugar quanto de sua cultura, ou seja, dos hábitos, dos costumes, do idioma falado e do sentimento de pertença, constituiu parte da grande crise identitária da contemporaneidade. Como observa Mercer (1990, p. 43): “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”. A identidade do sujeito pós-moderno se torna, assim, provisória e cambiante, permitindo o surgimento de uma identidade mutável. O processo de identificação, neste caso, pode ocorrer em um entre-lugar, um terceiro espaço, ou seja, sedimentar-se no intervalo entre uma cultura e outra. Homi Bhabha, falando sobre o desenvolvimento deste processo afirma que:

Essas identidades binárias, bipartidas, funcionam em uma espécie de reflexo [...] Para a identificação, a identidade nunca é um a priori, nem um produto acabado; ela é

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apenas e sempre o processo problemático de acesso a uma imagem da totalidade. (BHABHA, 1998, p 85)

Para Bhabha (2000),

A hibridização não é algo que apenas existe por aí, não é algo a ser encontrado num objeto ou em alguma identidade mítica ‘híbrida’ – trata-se de um modo de conhecimento, um processo para entender ou perceber o movimento de trânsito ou de transição ambíguo e tenso que necessariamente acompanha qualquer tipo de transformação social sem a promessa de clausura celebratória, sem a transcendência das condições complexas, conflitantes, que acompanham o ato de tradução cultural.

Bhabha defende um novo conceito de cultura, transnacional – gerando o trânsito de experiências entre nações - e tradutório – criando novos significados para símbolos culturais, uma vez que, para ele, culturas são construções e as tradições, invenções, que, quando em contato, criam novas construções desterritorializadas. Este texto busca analisar a ocorrência de uma identidade híbrida, através dos contos: “Só bondade”, da escritora premiada Jhumpa Lahiri publicado no livro Terra Descansada, em 2009, e; “A filha única do filho mais velho” da escritora Eliane Ganem, publicado no livro Primos, organizado pelas escritoras Adriana Armony e Tatiana Salem Levy, em 2010.

2. O hibridismo cultural e suas representações

A identidade híbrida resulta do encontro e das trocas entre culturas. No entanto, nem todo encontro intercultural resulta no hibridismo. Na tentativa de explicar a natureza desses encontros, foram estruturados alguns modelos de aculturação que se configuram em duas correntes principais: uma unidirecional, mais antiga e convencional, em que o migrante deve abrir mão da sua própria cultura, hábitos, idioma, para adotar a cultura apresentada pela sociedade

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local, por esta ser dominante; e a outra, bidimensional, em que as possíveis relações entre uma cultura majoritária e uma minoritária são analisadas. Conforme afirma Shirley Carreira (2004, p.1):

[...] a segunda, ou modelo bidimensional, analisa a integração desse indivíduo com o novo grupo étnico e aponta para quatro orientações possíveis: integrativa, quando o ele mantém os valores étnicos originais, e boas relações com o grupo majoritário; de separação, quando o indivíduo opta por manter seus valores étnicos, sem procurar estabelecer relações favoráveis com a comunidade dominante, de assimilação, que implica o abandono da própria identidade cultural e favos da comunidade dominante; e de marginalização quando há a perda total da identidade cultural e a ausência de integração com a comunidade. Observa-se na citação acima que, em todos os aspectos, a formação da identidade está sempre ligada à sensação de pertencimento. A “miscigenação” de culturas é muito mais latente na segunda geração de migrantes, pois na primeira geração há sempre certa dificuldade ou relutância na aderência de uma nova cultura. O migrante tenta recriar memórias do passado, almeja o convívio com conterrâneos e busca perpetuar a herança cultural por meio da manutenção de hábitos e pela constância de uso do idioma natal. A transculturação ocorre, no entanto, em função da necessidade de integrar-se à nova terra. Através dela, surge “certamente uma nova humanidade” citada por Ganem, em Primos (GANEM, 2010, p 252), formado por cidadãos que não se sentem presos a um único lugar, mas que transitam bem entre duas culturas ou mais: cosmopolitas, isto é, cidadãos do mundo. Para demonstrar as representações no processo de formação da identidade híbrida, três personagens serão focalizadas: duas compostas por Jhumpa Lahiri no conto “Só bondade” e uma no texto de Eliane Ganem.

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2.1. Os modelos de aculturação e a representação do imigrante em “A filha única do filho mais velho” e “Só bondade”

Shuda, personagem principal do conto “Só bondade”, se apresenta Página | 89 como uma grande estudiosa, zelosa por seu irmão mais novo, controlada e eficaz “Competência: era esse o traço que no fundo a definia” (LAHIRI, 2009, p 151).

Filha

de

bengaleses,

nascida

na

Inglaterra

e

imigrante

em

Massachusetts, a protagonista é uma jovem de rosto redondo e traços tipicamente indianos. Ao longo do conto, ela se mostra altamente propensa à influência e é altamente suscetível às vontades do irmão (LAHIRI, 2009 p, 154- 5), o que demonstra uma necessidade de agradar as pessoas ao seu redor. No processo de construção da identidade desta personagem, observase o embate entre três culturas: uma herança indiana tradicional, um nascimento e o período inicial da infância na Inglaterra e uma mudança para os Estados Unidos. Se em um processo migratório Salman Rushdie diz que: “um migrante, (...), sofre uma tripla ruptura: ele perde o seu ‘lugar’, adota uma língua estrangeira, e se vê cercado de pessoas cujo comportamento e códigos sociais são muito diversos dos seus,...” (RUSHDIE, 1991, p 277-8 apud CARREIRA 2004, p 2), o que dizer então de um duplo processo migratório? A princípio, Shuda via sua própria trajetória como algo divino e fantástico: “[...] essa história era como o episódio de um mito grego ou da Bíblia, cheia de bênçãos e sinais proféticos” (LAHIRI, 2009, p 158). Entretanto, ao começar a observar as coisas de forma mais atenta, começa a refletir sobre o estilo de vida que a família levava em Londres e nos Estados Unidos. E é nesse momento que o fluxo de memórias surge, fazendo com que ela crie um apreço pela Inglaterra: “Aquela era uma época, imaginava Shuda, em que a imigração ainda era uma aventura” (LAHIRI, 2009, p 161). Nos processos de formação identitária nota-se, muita vezes, uma assimilação por necessidade de integração ou simplesmente para viabilizar o esquecimento de um passado atormentador e, até mesmo, para obter a sensação de liberdade. A personagem busca em sua nova situação de vida um sistema que a faça esquecer-se do passado e ao mesmo tempo a livre do peso


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que a todo o momento o narrador mostra estar sobre ela, a sua herança cultural: “mas sentia-se também livre, pela primeira vez na vida, do peso de sua família.” (LAHIRI, 2009, p 168). A fuga do seu lugar antropológico configura, também, um abandono de sua própria história, o que acaba por causar-lhe um impacto psicológico, que se revela por meio do sentimento de culpa. Embora esse sentimento seja comum nos migrantes que resolvem abandonar parte tão importante na configuração de sua identidade- o seu passado, a necessidade de ser aceito por essa nova comunidade se torna seu maior propósito. Como já foi mencionado, Shuda encontrava, em si, uma necessidade de ser benquista pelas pessoas que a cercavam, e como jamais alcançara isso dentro de seu lar buscava essa aceitação em uma nova cultura. A assimilação cultural nesse caso em específico se dá por uma escolha da própria personagem, que resolve abrir mão tanto dos costumes hindus quantos dos hábitos típicos do norte-americano, para viver um estilo de vida tipicamente inglês. Shuda, segundo o narrador “experimentou uma conexão instintiva com Londres, uma sensação de pertencimento” (2009 p, 168) apesar de todo o trânsito cultural pelo qual já havia passado, isto é, a protagonista opta por se adaptar a nova cultura, se permitindo ser assimilada por ela. Assim, decide casar-se e continuar sua vida ao lado de um indiano, também assimilado como ela, numa nova/ velha terra. Outra personagem digna de nota é Rahul; irmão mais novo de Shuda, nascido em Boston, nos Estados Unidos, que surge como personagem secundária em meio a uma família que está se acomodando na nova terra, os Estados Unidos da América. Rahul, desde o início do conto, aparece sempre cercado de atenção e grande parte deste afeto lhe era oferecido pela irmã que, antes mesmo de o seu nascimento, providenciara para que o irmão mais novo fosse muitíssimo amado: “Por fim com a chegada de Rahul (...). Ela se lembrava de como havia ficado animada, afastando as próprias coisas para o lado e abrindo espaço no quarto para o moisés,...” (LAHIRI,2009 p 157). Rahul é fino e distinto, no que diz respeito à aparência, porém, revela-se um adolescente complexo, totalmente aturdido em meio ao vício da bebida

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alcoólica e, ao mesmo tempo, um homem que tenta se reinventar e resgatar suas raízes, mas não é bem-sucedido. O peso da expectativa dos pais em relação ao seu futuro torna-se algo difícil de administrar.

Ele se transformara naquilo que todos os pais temiam, um desastre, alguém que não contribuía para o grande círculo de sucessos que os filhos de bengaleses conseguiam em todo o país, como cirurgiões, advogados ou cientistas, ou escrevendo artigos para a primeira página do New York Times. (LAHIRI, 2009 p 175) A reconfiguração da identidade nos processos migratórios apresenta três momentos distintos: o inicial, que compreende os primeiros contatos com a nova cultura e o estranhamento; o intermediário que constitui meio caminho para que se desenvolva um modelo cultural em busca da afirmação da identidade; e por fim, o resultado final, ou seja, a identidade formada. Entretanto, como afirma Hall, “nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural” (HALL, 2011, p 43). Voltando à personagem Rahul, pode-se observar que este intervalo no processo de formação é um momento de suma importância para que o indivíduo conheça e reconheça a si mesmo, como pessoa, e entenda a comunidade que está ao seu redor. Rahul, pelo efeito da bebida, desenvolve uma série de costumes que prejudicam a sua definição identitária. Com o desenrolar da história, o narrador deixa claro que a personagem, devido à dificuldade em preencher as expectativas paternas, e por causa da dependência alcoólica, demonstra desequilíbrio e agressividade, além de um comportamento depressivo. A depressão, no caso da personagem, parece derivar do excesso de cobrança por parte dos pais. Percebe-se em várias obras de escritores migrantes a representação de pais que cobram excessivamente de seus filhos, principalmente no que diz respeito a estudos e carreira acadêmica/ profissional. Na obra de Jhumpa Lahiri, em particular, grande parte dos indianos apresentados são doutores. Após ser cobrado pelos pais e a irmã sobre suas notas e o abandono de algumas disciplinas na faculdade, Rahul se isola,

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distanciando-se da vida familiar e social. Um incidente agrava a já complexa situação. Após se embriagar Rahul deixa o sobrinho, ainda bebê, dentro de uma banheira, sozinho, correndo um sério risco de se afogar. Por fim, a própria personagem revolta-se consigo mesma, observando o seu próprio fracasso como pessoa: “Ele se virou de costas para ela. Pressionou a cabeça em um dos armários, virando-a de leve de um lado para o outro, praguejando consigo mesmo entre os dentes.” (LAHIRI, 2009, p, 200). Em suma, Rahul representa o imigrante marginalizado, incapaz de adequar-se ao meio cultural em que se insere, por um lado pela falta de coragem de assumir uma identidade assimilada, por outro, por não conseguir adequar-se ao modelo cultural familiar. Já no texto de Ganem, podemos observar uma personagem anônima que exemplifica o processo do hibridismo cultural. O que não deixa de ser irônico, tendo em vista que, em geral, personagens sem nome são caracterizados pela ausência de identidade ou por processos deslizantes no que diz respeito à formação identitária. No texto “A filha única do filho mais velho”, a autora narra um episódio de morte, marcado por uma sucessão de lembranças e um grande conflito psicológico, vivido pela protagonista. Após a morte do pai, a protagonista anônima se vê de volta ao passado e trava um confronto com sua cultura, o que, para Hall, seria impossível não acontecer numa identidade híbrida: “Esse resultado híbrido não pode mais ser facilmente desagregado em seus elementos ‘autênticos’ de origem.” (HALL 2011, p 31). E é assim que ela rememora a sua presença em um universo cultural que a desloca por ser mulher, por não poder dar continuidade ao clã, uma rejeição que fora suplantada pelo amor:

Com a morte do meu pai, com a morte do meu avô, ficamos sem o chão da intenção desapegada, sem a proteção das mãos do ancião que depositavam em mim o seu amor, pois mesmo sendo menina, mesmo não sendo o varão que todos esperavam, mesmo sem ser a continuação do clã, por ser mulher, a filha única do filho mais velho, havia em torno do meu estar no mundo uma promessa. (GANEM, 2010, p. 244)

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Se por um lado recebera o amor do pai e do avô, por outro enfrentara a rejeição do clã, que nela só via a absoluta incapacidade de continuidade. Relembra, em sua dor, os dias em que “os adultos estalavam o chicote de suas línguas ferinas no rosto um do outro”, mas também os momentos de confraternização em torno da mesa farta, crianças em torno, adultos felizes. No meio desse turbilhão, a personagem consegue perceber que fora obrigada a transitar entre duas culturas, a árabe e a brasileira, e que a sua identidade é fruto desse encontro intercultural. O conto, totalmente narrado em primeira pessoa, traz uma carga emocional quase tangível. A narrativa busca envolver o leitor na cultura árabe, fazer com que ele entenda a importância, para os árabes, de se ter um filho homem, parte dos rituais pelos quais eles têm que passar e a grande dificuldade que a personagem encontra em relação a sua cultura original, que, ainda assim, em nenhum momento renega. Muito pelo contrário, há em suas lembranças uma relação saudosa com a herança cultural, de respeito. A protagonista é um exemplo de identidade integrativa. Segundo Shirley Carreira, a identidade integrativa ocorre a partir do momento em que o imigrante “mantém os valores étnicos originais, e boas relações com o grupo majoritário” (CARREIRA, 2004, p 2). As reflexões suscitadas pela morte do pai fazem com que a protagonista consiga sedimentar a sua identidade híbrida ao ponto de dizer que “finalmente me livro das anomalias do meu espírito, comungo agora a integração das minhas partes, tal qual o universo se refaz a cada explosão.” (GANEM, 2010, p 251). Por fim, pode-se dizer que a morte do pai funciona como um rito de passagem, do qual nasce uma nova concepção identitária e, além disso, um novo ideal de família: [...] me aconcheguei no seio da minha família planetária e olhei a todos (...) cada um com a sua beleza, a sua delicadeza, a sua história de vida, os seus ancestrais de variadas raças, o que eles tinham dentro de si que seria a continuidade, e me senti desprendida, aliviada da carga excessiva, mais sutil, mais entregue, mais confiante. Me senti mesclada com algo em construção, certamente uma nova

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humanidade[...] (GANEM 2010, p 251-2). 3. Considerações finais Este trabalho procurou demonstrar que o hibridismo cultural, ou seja, aglutinação de duas culturas tem sido a forma mais frequente de aculturação e, por conseguinte, a mais constante nas representações de identidade do imigrante na literatura contemporânea, muito embora esta não se prive de representar, ainda que em menor escala, outras formas de interação, ou mesmo de ausência dela, no contexto das migrações. Buscou-se, ainda, refletir sobre a natureza dos espaços intersticiais onde as identidades híbridas se alocam no texto literário, dada a necessidade de historicizar e contextualizar a enunciação, isto é, no caso dos contos referenciados, o contexto da imigração. Por fim, mostrou-se que a tendência no mundo globalizado é a hibridez, a mesclagem de culturas que faz do homem contemporâneo um ser cosmopolita, cidadão do universo. A literatura, conforme demonstrado, é um espaço de inscrição e representação dessas identidades, na medida em que, ao difundir os elementos da herança cultural, transforma-se também em local de memória, isto é, no lugar onde essa memória é continuamente reconfigurada e transmitida.

Referências bibliográficas

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em: em

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Travessias: estudos de literatura e imigração

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OS AUTORES

SHIRLEY DE SOUZA GOMES CARREIRA Página | 96

Possui Graduação em Letras, Português- Inglês, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), mestrado em Interdisciplinar Lingüística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995), doutorado em Literatura Comparada (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000) e pós-doutorado em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ (2004-2005). É membro do Banco de Avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior/ BASis, INEP e do Banco de Consultores Ad Hoc da FUNADESP e da FAPERJ. Como ensaísta, tem trabalhos publicados em livros e periódicos do Brasil, México, Portugal, Estados Unidos e Inglaterra. Sua produção ensaística aborda os seguintes temas: pós-colonialismo, questões

de

identidade

e

de

gênero,

estudos

culturais,

diásporas,

multiculturalismo e a produção textual dos escritores migrantes. Sua pesquisa atual focaliza as relações entre Literatura e Memória Étnica. Exerceu a função de professor adjunto-doutor I na Universidade do Grande Rio por 12 anos, onde também foi Coordenadora do Curso de Letras, Coordenadora do Curso de Especialização em Língua Inglesa, Coordenadora Pedagógica do Núcleo Multidisciplinar de Educação a Distância e Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras e Ciências Humanas. É fundadora e faz parte do conselho editorial da Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades da UNIGRANRIO. Atua também como investigadora

convidada do Centro de

Estudos

Linguísticos, Comparados e Multimédia da Universidade Autónoma de Lisboa. Foi Coordenadora Institucional do Pibid UNIABEU e Coordenadora do Programa de Apoio à Pesquisa. Atualmente, é Pró-Reitora Acadêmica da UNIABEU, onde também exerce a função de editora-gerente dos periódicos UNIABEU, bem como de editora-chefe da Revista e-scrita, do curso de Letras, e da Revista UNIABEU. Publicações recentes: Memória e identidade: ensaio, Diásporas e deslocamentos: travessias críticas e Poéticas do contemporâneo.


Travessias: estudos de literatura e imigração

ANDRÉA SANTOS DA SILVA PESSANHA

Possui graduação em História (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal Fluminense (1993), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1997) e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (2006). Atualmente é professora da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia (FAETEC), bem como professora titular, coordenadora da área de Humanas e coordenadora de pesquisa do UNIIABEU - Centro Universitário. Nesta Instituição, foi coordenadora acadêmica do Curso de Licenciatura em História, coordenadora do subprojeto de História do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e gestora do Campus 1. Tem experiência na área de História e Educação, com ênfase em História do Brasil Império principalmente nos seguintes temas: André Rebouças, imprensa abolicionista, imprensa republicana, educação, questão racial, liberalismo e memória. É membro do grupo de pesquisa do CNPq Poéticas do Contemporâneo: Estudos de Sociedade, História e Literatura, atuando na linha de pesquisa Memória, Espaço e Mídia. É membro do grupo de pesquisa do CNPq Estudos Afrobrasileiros e Educação, atuando na linha de pesquisa Histórias e Culturas Negras, Movimentos Sociais Negros, Ações Afirmativas e Educação das Relações Étnicos-Raciais. É membro do Laboratório Identidade na Diferença - Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade financiado pela FAPERJ. É membro do Laboratório Travessias do Espaço, Tempo

e

da

Contemporânea

Memória: financiado

Representações pela

FAPERJ.

do

Imigrante

É

membro

na do

Literatura Laboratório

Multidisciplinar de Ensino, Extensão e Pesquisa em Educação Ambiental financiado pela FAPERJ.

CÉLIO SARAIVA

Possui licenciatura plena em Letras (língua portuguesa, língua inglesa e literaturas) pela UNIABEU, é professor de Produção Textual e Língua Portuguesa na ABEU COLÉGIOS, professor de Língua Inglesa na Achieve

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Travessias: estudos de literatura e imigração

Languages by Oxford University Press, atuou como monitor de ensino em Letramento do Colégio Estadual Prof. Ubiratan Reis Barbosa e como monitor de ensino de Língua Inglesa na UNIABEU. Desenvolve pesquisa nos seguintes temas: questões de identidade, pós-modernismo, fronteiras culturais, póscolonialismo, migração na obra de Jhumpa Lahiri. É membro de iniciação científica no LABMEMI (Laboratório de pesquisa em Memória e Identidade), financiado pela FAPERJ. Revisa e traduz textos para avaliações. Atuando principalmente nas seguintes áreas: letras, literatura, discurso, memória e identidade.

FÁBIO CUSTÓDIO

Graduando no curso de Letras, Português - Inglês, da UNIABEU. Atua como pesquisador voluntário na UNIABEU, onde desenvolve pesquisa sobre construção de identidades e memória étnica. Sua produção aborda os seguintes temas: migração e produção de escritores migrantes, identidade e gênero, e multiculturalismo, em literatura indiana de expressão em língua inglesa, nas obras de Jhumpa Lahiri, Salman Rushdie e Arundhati Roy.

ANNA CAROLINA MAIA DA SILVA TEIXEIRA

Graduada em Comunicação Social pela Universidade Estácio de Sá (2010). Cursa licenciatura em Letras (português/inglês) na UNIABEU. Foi bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ. Sua pesquisa aborda a literatura de migração em uma perspectiva comparada.

LUCIANO LAGE FEITOSA FILHO

Graduando em Português- Inglês pela UNIABEU. Sua pesquisa volta-se para a representação da migração na literatura em uma perspectiva comparada.

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Travessias: estudos de literatura e imigração

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E-book disponível para download gratuito em www.uniabeu.edu.br

ISBN 978-85-98716-11-4

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