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WL ADI MI RCERVEI RADEAL ENCAR ANAPAUL ACORREADESAL ES L EONAM BAESSODASI L VAL I ZI ERO [ ORGANI ZADORES]
JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
Wladimir Cerveira de Alencar Ana Paula Correa de Sales Leonam Baesso da Silva Liziero [organizadores]
UNIABEU
Associação Brasileira de Ensino Universitário Reitor Valdir Vilela Vice-Reitor Paulo Roberto de Menezes Chaves Pró-Reitora de Graduação, Pesquisa e Extensão Andréa Santos da Silva Pessanha Conselho Editorial Andréa Santos da Silva Pessanha Cátia Aparecida Vieira Barboza Diogo Cesar Nunes da Silva Mônica Macedo Bastos Ricardo Marciano dos Santos Shirley de Souza Gomes Carreira Wladimir Cerveira de Alencar Título original: Justiça, constituição e sociedade Origanizadores: Wladimir Cerveira de Alencar, Ana Paula Correa de Sales, Leonam Baesso da Silva Liziero 2016. UNIABEU Centro Universitário. Todos os direitos reservados© Capa, diagramação e editoração eletrônica: Diogo Cesar Nunes da Silva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) J96
Justiça, constituição e sociedade [livro eletrônico]. / organização Wladimir Cerveira de Alencar, Ana Paula Correa de Sales, Leonam Baesso da Silva Liziero. -- 1a ed. -- Belford Roxo : UNIABEU, 2016. 11515 Kb ; PDF Modo de acesso: World Wide Web Disponível em: www.uniabeu.edu.br
Bibliografia. ISBN: 978-85-98716-14-5
1. Ciência política. 2. Justiça. 3. Sociedade. 4. Direito. I. Título.
CDD 320 CDU 321:342
SUMÁRIO
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Apresentação
05 A desconstrução da normatividade democrática: constitucionalismo e democracia por vir Felipe Castelo Branco 22 O precedente na Suprema Corte norte-americana e no Supremo Tribunal Federal no Brasil Larissa Clare Pochmann da Silva Matheus Farinhas de Oliveira 42 O clamor por reconhecimento e a luta por sobrevivência das classes marginalizadas perante a repressão cotidiana do estado policial Renato Nunes Bittencourt 54 Aproximações teóricas sobre democracia ambiental: o desafio de construção de uma sociedade ecologicamente equilibrada Ana Paula Correa de Sales
75 A justiça pelo pacto em Hobbes: racionalismo, igualitarismo e liberdade mecanicista Leonam Baesso da Silva Liziero 88 O positivismo jurídico inclusivo como uma forma de reinterpretação do paradigma dominante Flávia Góes Costa Ribeiro Loiane Prado Verbicaro 106 A violência contra as mulheres como fenômeno social: o modelo brasileiro de proteção à dignidade da mulher em situação de risco Wladimir Cerveira de Alencar 132 Sobre os organizadores 133
Sobre os autores
APRESENTAÇÃO O intuito inicial para a realização desta obra coletiva foi de construir um panorama multidisciplinar a respeito de avaliação dos desafios presentes na ordem jurídica atual em relação a tópicos vinculados à Constituição e Democracia, na perspectiva brasileira. Consideramos que a democracia no Brasil é um trabalho ainda em construção, de modo que, todavia, não logramos consolidar um Estado plenamente democrático e amadurecido. A busca pela efetividade de garantias constitucionalmente asseguradas e das liberdades públicas individuais ainda demandará muitos trabalhos acadêmicos com este mesmo perfil, que perseguem debater através de olhares multidimensionais enfrentar nossos problemas reais em relação a justiça e democracia. Jacques Rancière chama a democracia de reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna. Tocqueville, por sua parte, entendia a democracia, em sua celebre obra, como sendo igualdade de condições (ainda que esta seja apenas uma abordagem “simplista” da tese do referido autor), como o fim das antigas sociedades divididas em ordens. Platão defendia que democracia se configurava como sendo o reino da lei abstrata. E Bobbio argumentava que o Estado liberal é o pressuposto histórico para o Estado democrático, de maneira que as regras democráticas em uma sociedade representam apenas o mínimo sem o qual não pode haver democracia, mas que, no entanto, não garantem por si só a existência da democracia, defendendo a evolução de um Estado democrático para uma sociedade democrática. Lograr estabelecer um conceito de democracia que esteja coadunado com o tempo presente não é tarefa das mais simples. De maneira geral, pode-se afirmar que a democracia enfrenta na atualidade novos desafios que demandam um pensamento complexo e profundo acerca de conceitos políticos tradicionais. Para Touraine, as formas antigas de pensar a democracia – especialmente os mecanismos tradicionais da representação política - e seus problemas e dilemas não são capazes de responder adequadamente aos anseios dos cidadãos. Deste modo, torna-se imprescindível atentar aos processos de legitimação social das práticas democráticas, colocando-as dentro de uma perspectiva de discussão acadêmica pública conscienciosa das condições e necessidades específicas de nosso país para que, assim, possamos almejar um regime de modelo democrático definitivo, harmônico e igualitário. Afinal de contas, é palpável a ideia de que ter uma democracia não é o mesmo governar democraticamente. Viver em um Estado democrático, enquanto sistema normativo de organização e legitimação do poder político, não significa necessariamente viver em uma sociedade democrática com todas as suas dinâmicas, interações e complexas políticas. Efetuar políticas democráticas, e evoluir para um patamar de sociedade plenamente democrática, está relacionado com quem tem a autoridade para decidir e como se decide, e também como concebemos e percebemos a intervenção política na vida social de seus cidadãos e instituições. Seja como for, não podemos analisar os problemas e desafios de uma sociedade que pretende alcançar grau de democracia considerável sem ter em conta as condições sociais, políticas e históricas desta sociedade. Este é o grande trunfo desta obra.
Os organizadores. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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A DESCONSTRUÇÃO DA NORMATIVIDADE DEMOCRÁTICA: CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA POR VIR
Felipe Castelo Branco 1. INTRODUÇÃO Em relação ao funcionamento democrático, o golpe desferido por Karl Marx contra a concepção liberal de uma democracia garantidora da base de diálogo neutra para a manutenção universal dos direitos dos cidadãos, representou talvez a primeira grande crise em relação à tradicional defesa da chamada democracia constitucional. Para Marx, a suposta defesa democrática dos “interesses do povo” jamais seria neutra ou desinteressada, mas guardaria sempre um vínculo incontornável com os interesses daquela classe que se apropria da máquina de Estado, afim de fazer a manutenção da reprodução social de seus próprios valores. Nesse sentido, os democratas seriam aqueles que, por se outorgarem o lugar de defensores do direito do povo, “não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos de diferentes classes” (MARX, 2011, p. 66). Bastaria, portanto, segundo esta visão democrata liberal, que os aparelhos de Estado garantissem a possibilidade de reconhecimento e de manifestação das diversas classes para que a democracia permanecesse preservada e o reconhecimento das reivindicações dos oprimidos fosse “levada em consideração”1. Evidentemente que ao realçar o caráter de luta e confronto de interesses entre a classe dos trabalhadores e a classe política defensora da democracia burguesa (isto é, ao evidenciar a luta de classes em curso), esta última imediatamente, na iminente ameaça a seu poder de classe representante do Estado, tomaria as reivindicações da classe trabalhadora como desordem ou abuso do “direito democrático de expressão ou manifestação”, conduzindo tais reivindicações em direção a uma ameaça à própria democracia:
[...] [o grupo dos democratas reivindica] instituições republicanas democráticas, não como meio de suprimir dois extremos [a discrepância entre o acúmulo de capital do capitalista e a penúria do trabalhador assalariado], mas como meio de atenuar a sua contradição e transformá-la em harmonia [...] Esse teor é o da modificação da sociedade pela via democrática, desde que seja uma modificação dentro dos limites da pequena-burguesia. Basta não cultivar a ideia estreita de que a pequena burguesia tenha pretendido, por princípio, impor um interesse egoísta de classe. A social-democracia acredita, antes, que as condições específicas da sua libertação constituem as condições gerais, as únicas nas quais a sociedade moderna pode ser salva e a luta de classes evitada (MARX, 2011, p. 63).
A democracia de Estado moderna, tomada dentro dos limites dos interesses de classe da própria pequena-burguesia, imporia à classe dos trabalhadores uma alternativa forçada: ou nos engajamos na transformação democrática da sociedade, e com isso ignoramos que os limites desta democracia são os próprios limites dos interesses da classe burguesa (e que, portanto, o pretenso universalismo democrático se configura como um contextualismo de classe); ou 1 Evidentemente, esta “consideração” seria feita pelos mesmos membros do Estado que nutrem interesses divergentes em relação à classe trabalhadora, sendo estes mesmos “reconhecedores” aqueles que operam, neste cenário, como os opressores dessas classes. Inevitável paradoxo da democracia burguesa.
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sublinhamos o caráter de luta de classes existente no interior do campo democrático e, com isso, somos lançados fora do jogo democrático, tomados como inimigos da democracia (porque inimigos dos interesses de classe burgueses). Seja como for, este “paradoxo frutífero” apontado por Marx no interior da experiência democrática nos força a reconhecer pelo menos dois pontos de fundamental importância: 1 – Não há manutenção neutra da democracia. Toda lei que visa garantir a manutenção democrática comporta, em si mesma, uma espécie de violência (de classe, no caso marxiano); 2 – Sendo a democracia moderna a expansão ou universalização dos interesses de classe burgueses, não temos, portanto, a experiência atualizada de uma democracia não burguesa, isto é, de uma democracia movida pelos interesses da parte oprimida da população. Seria, portanto, impossível haver o convívio entre a democracia e o alívio das opressões populares? Seria a constituição democrática oposta ao reconhecimento dos interesses dos grupos oprimidos? 2. PATRIOTISMO CONSTITUCIONAL Este é precisamente o ponto que será discutido contemporaneamente pelo filósofo Jürgen Habermas em seu texto Struggles for recognition in the democratic constitutional State (HABERMAS, 1994b), inicialmente publicado em uma coletânea de textos dirigida por Charles Taylor e Amy Gutmann a propósito da discussão sobre o “multiculturalismo” e mais tarde incluído em seu livro A inclusão do outro: estudos de teoria política (HABERMAS, 2002). Neste trabalho, Habermas leva mais longe as hipóteses já desenvolvidas em seu clássico Direito e democracia: entre facticidade e validade (HABERMAS, 1994a). Seu problema central gira em torno da questão da legitimidade na instauração da lei nos Estados democráticos. Sua teoria parte do fato de que uma ordem legal ou jurídica só poderia ter legitimidade em uma democracia na medida em que ela funciona como salvaguarda da autonomia individual de todos os cidadãos de maneira igualmente distribuída no interior do Estado. E os cidadãos, por sua vez, só seriam autônomos na medida em que possam se sentir participantes em relação às leis que lhe são endereçadas por este mesmo Estado, isto é, na medida em que eles próprios enxergam a si mesmos como autores participantes do processo legislativo (via processo democrático). Para que tal participação popular opere, é preciso que operem igualmente formas de comunicação que garantam a discussão das decisões políticas a partir de motivações racionais. Este vínculo entre o debate constitucional via comunicação e a normatividade que funciona no seio das democracias é o que sustenta o vínculo que Habermas reconhece como fundamental entre Estado constitucional e democracia. Não haveria, portanto, a possibilidade de sustentar uma democracia fora do constitucionalismo e, da mesma forma, todo constitucionalismo externo à autonomia democrática torna-se impraticável. Essa problemática da comunicação na obra habermasiana, no entanto, não é nova. Ela configura a base mesma de toda a sua teoria. Desde o início de sua obra filosófica, Habermas se ocupa em pensar em as condições de possibilidade e legitimação de uma ética baseada na normatividade da comunicação tal como ela é praticada ordinariamente, cotidianamente, e ,por vezes, mesmo de maneira irrefletida. Habermas herda de Kant a preocupação de uma autofundação ou legitimação da razão. O que interessa ao pensamento habermasiano é analisar como os JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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indivíduos (mas também os Estados nacionais e o direito constitucional e transnacional no interior das democracias liberais) superam as fraturas comunicacionais que eventualmente separam em oposições ou em polos distintos dois ou mais interlocutores. Ora, argumenta Habermas, se o consenso é possível mesmo em meio a uma disputa de visões de mundo, deve haver algo – e eis aqui sua hipótese fundamental – na própria estrutura da comunicação que possibilite a reunião ou reconciliação dos interessados que tomam parte na querela ou na disputa em questão. Para Habermas, fazer uso da normatividade, lançar mão do caráter estritamente normativo inerente a toda discussão bem-sucedida possibilitaria encontrar uma legitimação que ofertasse um caráter universal a toda ação sem necessidade de qualquer recurso a uma lei transcendental ou a qualquer norma externa ao próprio engajamento dos interlocutores no diálogo. A comunicação se torna o campo de combate próprio à Habermas. Ao reconstruir as condições de possibilidade de toda comunicação, Habermas defende uma legitimação pela relação de comunicação que garante a ela uma forma de universalidade pragmático-transcendental. Tal racionalidade seria praticada diariamente pelos interlocutores comuns: todos nós discutimos com intenção de alcançar um consenso. Essa universalidade pragmático-transcendental emanaria da própria prática comunicacional cotidiana do chamado “mundo da vida”. Deste modo, Habermas reconhece que, fundamentalmente, uma comunicação só acontece quando todos os interlocutores em jogo compreendem igualmente as razões que fundamentam e sustentam todos os enunciados. Se os interlocutores estão de acordo (1) com as pretensões de validade dos argumentos em questão e também (2) com as pretensões de verdade e (3) com a sinceridade do interlocutor, temos uma situação de comunicação bem-sucedida e um vínculo social é estabelecido. A produção de sentido numa situação de comunicação só é possível através deste vínculo comunicacional entre validade e significação (que supõe a verdade e a sinceridade dos enunciados). Quando uma situação de comunicação se interrompe, tal interrupção acontece precisamente porque se interrompe o vínculo entre validade e significação – vínculo esse que possibilitava a própria comunicação em si mesma. Ao interromper-se a comunicação, inicia-se em seguida a discussão. Ora, a discussão será precisamente o momento em que as razões que fundamentam os argumentos em jogo entre os interlocutores serão debatidos e repensados por todos. Assim, passa-se de uma situação de comunicação à uma ética da discussão, em que a racionalidade que permanecia implícita e velada na situação de comunicação bem-sucedida torna-se explícita e se mostra à luz do dia em seu caráter procedimental, evidenciando que as regras da comunicação são aquilo sobre o quê os interlocutores se apoiam na expectativa de busca do consenso e de resolução dos conflitos. Do ponto de vista de uma ética da comunicação, no sentido oferecido a esse termo por Jürgen Habermas, será exigência insuperável o paradigma comunicacional da simetria de perspectivas alcançada no consenso. O consenso habermasiano repousa sobre a hipótese da simetria de perspectivas produzida pela comunicação. Ora, esse transcendental alcançado pela comunicação, essa espécie de reconciliação que reúne as partes em litígio, ao mesmo tempo em que reivindica ser uma aposta não-metafísica, se afirma como a possibilidade de refundar a racionalidade na própria linguagem, garantindo, assim, a continuidade dos projetos de autonomia cosmopolitas (institucionais ou não) oriundos do pensamento das Luzes. Habermas JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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seria, portanto, aquele pensador capaz de revelar o verdadeiro projeto moderno nos dias atuais. Tal herança, só pôde ser reivindicada pela filosofia habermasiana quando foi possível demostrar a unidade e a reconciliação entre o pensamento das Luzes, as tradições analítica e humboldtiana e a historicidade de Hegel (via agir comunicativo). A partir do lugar reivindicado e ocupado pelo pensamento habermasiano, o filósofo oferece a si mesmo a tarefa de ser um vigilante zelador da democracia e da inclusão do outro no seio do projeto moderno democrático. Mas se a comunicação funciona como uma forma de participação popular na estrutura normativa constitucional2, por outro lado o processo democrático tem que ser ele próprio legalmente institucionalizado na medida em que a soberania popular requer direitos fundamentais, sem os quais nenhuma lei pode ser legitimada. Estas leis fundamentais são precisamente aquelas que garantem “o direito à igual liberdade individual de escolha e ação, que, por sua vez, pressupõem proteções individuais legais compreensivas” (HABERMAS, 1994b, p. 122). Portanto, a questão da liberdade democrática dos cidadãos e do reconhecimento de grupos culturais pelo Estado opera sempre dentro de uma arquitetônica própria ao Estado constitucional e de suas pressuposições legais. Os limites normativos do possível dentro do Estado democrático (seja em relação ao reconhecimento, seja em relação à liberdade) se inscrevem no interior de um campo sempre já pressuposto, ainda que as variações interpretativas da lei e as próprias variações de lei sejam possíveis e inclusive desejáveis entre gerações. Para Habermas, a constituição como projeto histórico funciona como uma espécie de herança que cada nova geração herda das gerações anteriores, dando continuidade ao trabalho de zelar por esta estrutura do “possível” no interior do Estado democrático. A herança constitucional oferece uma forma institucionalizada de lidar com problemas no interior do Estado. Assim, as discussões internas ao Estado são reguladas de modo procedimental, oferecendo uma mediação legal entre os interesses em jogo. Por outro lado, é preciso reconhecer que as leis já existentes são concebidas em um contexto local e temporalmente determinado. Sendo assim, elas devem ser reinterpretadas de novas maneiras e em novos contextos a cada novo choque de interesses, e a discussão sobre estas leituras e expansão do alcance dos direitos garantidos na constituição tem como mediação procedural a própria estrutura constitucional. Portanto, a herança destes limites constitucionais é incontestável ainda que a interpretação dessa herança seja negociável. Mas é sempre dentro destes limites constitucionais, observa Habermas, que somos capazes de lidar de modo estrutural com as lutas internas ao Estado democrático: Isso tem implicações para a forma como lidamos com o problema da garantia de direitos iguais e de igual reconhecimento para grupos que são culturalmente definidos, isto é, coletividades que são distinguidas de outras coletividades na base da tradição, formas de vida, origens étnicas e assim por diante – e nas quais os membros querem se distinguir de todas as outras coletividades na expectativa de manter e desenvolver sua identidade (HABERMAS, 1994b, p. 122).
Deste modo, a cultura política em um Estado democrático está permanentemente ancorada na interpretação e atualização (móvel) dos princípios constitucionais (imóveis) oriundos da história de cada Estado determinado. No interior destes limites imóveis que configuram os princípios constitucionais, os debates comunicacionais se dão em torno da melhor interpretação 2 Veremos adiante que esta participação herda a possibilidade de imprimir interpretações e atualizações pontuais à estrutura constitucional, mas é incapaz de modificar a estrutura ela própria.
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possível a ser adotada sobre os mesmos direitos e formas de reconhecimento de demandas. É esta a relação maleável com um princípio rígido que Habermas nomeia de patriotismo constitucional. Ora, a tarefa mesma deste patriotismo constitucional é a de inscrever e situar o sistema de leis baseado na constituição no interior do contexto histórico daquilo que Habermas nomeia de “comunidade legal”. Assim, a filosofia habermasiana acredita ter solucionado um problema teórico que havia perdurado por um longo tempo: em sociedades complexas, os membros do Estado não se mantém em um grupo ou unidade em função de consensos verdadeiramente substantivos alcançados sobre os valores adotados como norma estatal. Ao contrário, esta reunião ou unidade só é possível, precisamente, a partir de um consenso, não em relação a valores, mas em relação aos procedimentos sobre a legitimidade do exercício de poder e sobre a legitimidade da atuação da lei. Este sistema legal, portanto, também reflete formas específicas de vida e as discussões no interior do Estado se dão em torno de distintas concepções do que é o bem e o justo; é precisamente porque convivem divergentes concepções sobre o bem e o justo no interior de um mesmo corpo social, que se faz necessário uma discussão que decida sobre os melhores argumentos em favor de uma forma ética que a ser adotada pela comunidade legal: Nestas discussões, os participantes clarificam o modo como eles querem compreender a si mesmos como cidadãos de uma república específica, como habitantes de uma região específica, como herdeiros de uma cultura específica, quais tradições eles desejam perpetuar e quais eles querem descontinuar, como eles querem lidar com a história, uns com os outros, com a natureza e assim por diante. E, claro, a escolha de uma língua oficial ou a decisão sobre o currículo das escolas públicas afeta a autocompreensão ética da nação. Porque decisões ético-políticas são partes inevitáveis da política [...] (HABERMAS, 1994b, p. 125).
Essa discussão se dá, portanto, com base na argumentação em favor de compreensões éticas distintas (o que cada grupo acredita ser o bom e o justo). E será precisamente a constituição que garantirá o modelo procedimental e a arquitetura do possível a partir do qual a discussão terá lugar. O que une os interlocutores na discussão e o que possibilita, no horizonte, a expectativa de um consenso, será a aceitação, por parte de todos os participantes, da legitimidade da lei e, portanto, do exercício do poder. A reunião entre agir comunicativo e constitucionalismo se faz sentir imediatamente em Habermas (não sem problemas, conforme veremos). Os cidadãos participantes do Estado compartilham entre si – mesmo que discordem sobre todo o resto – da convicção no possível exercício livre da comunicação na esfera pública, na capacidade do Estado democrático em solucionar conflitos, e na base constitucional que fornece a possibilidade de questionar ou reconhecer a legitimidade do poder político. O que equivale a dizer que “o universalismo dos princípios legais é refletido em um consenso procedural, que deve ser adaptado no contexto de uma cultura política histórica específica através de um tipo de patriotismo constitucional” (HABERMAS, 1994b, p. 135). O objetivo da ordem legal seria, em última instância, garantir e salvaguardar a autonomia de todos os cidadãos em grau equivalente. Poderíamos resumir a proposta habermasiana, portanto, do seguinte modo: em primeiro lugar, a teoria do direito comporta a inclusão ad infinitum de novas concepções do bem e do justo (o que Habermas vai considerar como sendo a presença da ética no direito) na ordem legal já estabelecida. Esta novas concepções éticas discutem sobre aquilo que pode ser o justo JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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ou bom para a maioria; tal discussão é possibilitada por estruturas comunicacionais orientadas para o entendimento mútuo, salvaguardadas pelo próprio funcionamento democrático da esfera pública e pela ordem legal (constitucional) que garante seu bom funcionamento. Ao mesmo tempo, esta mesma ordem legal interdita que sejam privilegiadas algumas formas de vida em detrimento de outras. Por fim, Habermas afirma que a ação normativa desta esfera pública já é pressuposta e aceita pelos participantes do Estado na medida em que todos devem agir sempre no interior da pressuposição do background constitucional (e de sua aceitação) para que a reivindicação de direitos, reconhecimento e liberdades democráticas possa operar. Se compreendemos estes pontos fundamentais da teoria habermasiana, no entanto, somos forçados a levar mais longe, na companhia de Habermas, uma questão fundamental. Não haveria, poderíamos nos perguntar, algo de extremamente violento na concepção desta mesma aceitação pressuposta da instauração da lei fundamental? Dito de outro modo, uma vez que a liberdade democrática opera dentro dos limites da instauração da lei que funda o constitucionalismo, neste “grau zero” da lei e de toda a legalidade, não haveria uma espécie de violência originária da qual nenhuma democracia pôde escapar, que aprisiona os cidadãos em uma rede tentacular que automaticamente funda e limita aquilo que será reconhecível, pensável e ao mesmo tempo, inaugura o campo do que é democrático ou antidemocrático? Não é espantoso que o próprio Habermas reconheça este problema, na medida em que considera ao menos uma imagem fundamental que evidencia em si alguns dos problemas da aceitação pressuposta da normatividade constitucional como sendo extrínseca à própria problemática das democracias constitucionais. Em relação às decisões tomadas comunicativamente pelos membros do Estado de direito, Habermas afirma que “tanto empiricamente quanto normativamente tais decisões dependem da composição da cidadania do Estado-nação, algo que é contingente” (HABERMAS, 1994b, p. 126). Ora, mas o que forja então esta “composição da cidadania” da qual depende diretamente tudo aquilo que será decidido ou decisório em relação aos temas que dizem respeito ao Estado-nação? Como se delineiam estas características específicas da cidadania de um Estado com a qual a própria constituição dialogará, na medida em que ela igualmente depende da chamada “comunidade legal”? Dito de outro modo, qual o motor motivador desta composição da cidadania que funciona como o possibilitador da possibilidade, isto é, como base para a constituição que será por sua vez um operador democrático? A resposta de Habermas é clara e direta: “a composição social [social make up] da população do estado é o resultado de circunstâncias históricas extrínsecas ao sistema de direitos e dos princípios do estado constitucional” (HABERMAS, 1994b, p. 126; grifo meu). Tais circunstâncias históricas são consideradas, sob a pena de Habermas, como sendo deliberadamente alheias, longínquas, extrínsecas – pra usar os termos habermasianos – ao problema dos princípios constitucionais. O que significa dizer que o Estado constitucional é secundário em relação a estas “circunstâncias históricas” e não inclui, em sua problemática de origem, tais “circunstâncias”, na medida em que elas são extrínsecas a seus próprios princípios. Mas Habermas continua extraindo as consequências desta primeira afirmação sumária, alegando que a responsabilidade sobre estas “circunstâncias extrínsecas” ao Estado constitucional são amenizadas na medida em que “seus descendentes aceitaram implicitamente (e como cidadãos naturalizados, até explicitamente) JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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continuar e prosseguir o projeto constitucional preexistente” (HABERMAS, 1994b, p. 126). Se, por um lado, os “pais fundadores” da república, como alega Habermas, tiveram que lidar com esta problemática das “circunstâncias históricas” frontalmente; por outro lado, os cidadãos da república, na medida em que aceitam e pressupõem implicitamente as condições constitucionais do país, tem a tarefa apenas de atualizar o bem e a justiça, baseados nestes mesmos princípios, para o máximo de pessoas possível. Para estes últimos, o problema do caráter extrínseco destas “circunstâncias históricas” não se coloca mais. O mais assustador desta concepção é que o projeto habermasiano pressente, ao menos de maneira breve, o horror que seu pensamento pode provocar em minorias massacradas pela própria criação do Estado3 e imediatamente oferece ao leitor um aviso teórico: “minorias nacionais estão pelo menos intuitivamente avisadas disso, e isto é um motivo importante para pedir seu próprio estado, ou, como na malsucedida elaboração da constituição de Meech Lake4, pedir para ser reconhecido como uma ‘sociedade distinta’.” (HABERMAS, 1994b, pp. 126, 127). O caso exemplar que Habermas usa para ilustrar o “salto para fora” e mesmo toda forma de resistência ao caráter pressuposto das condições constitucionais de um Estado – o caso da constituição de Meech Lake –, é confessadamente um caso fracassado ou malsucedido, como se, apesar de permitido sonhar com o “reconhecimento como sociedade distinta”, tal sonho estivesse fadado ao insucesso no olhar deste autor. Seja como for, os colonialismos, massacres e silenciamentos de povos ou grupos, no momento da formação de um Estado na prática democrática, são considerados aqui como “circunstâncias históricas extrínsecas” à fundação constitucional de um Estado. Não deveria um Estado, apenas à guisa de exemplo, tomar parte em sua responsabilidade colonial ou em sua opressão de classe, por exemplo? Ou seria preciso admitir que, ainda hoje, uma democracia poderia e pode conviver “pacificamente” com a exploração colonial, com o etnocídio, ou com uma estrutura de opressão das liberdades? Parece que Habermas reconhece o paradoxo ao mesmo tempo em que rejeita pensar o caráter de violência e força [force] presente no momento de instauração e de aplicação [enforce] da lei. Sua posição diante da aporia é lançar a responsabilidade sobre esta violência exclusivamente ao momento originário da ação dos “pais fundadores” que permanece alheio ao Estado constitucional propriamente, afirmando, ao mesmo tempo, uma espécie de contratualismo contínuo contemporâneo, via uma aceitação implícita geral da ordem legal estatal, com limitada possibilidade de contestação explícita. Conforme vimos anteriormente, Habermas refunda a racionalidade sobre a estrutura procedural da comunicação e funda o caráter de igualdade e autonomia da democracia no 3 Penso especialmente naqueles grupos indígenas que habitavam os solos da américa e que não reconheciam e mesmo se opunham à forma de organização estatal. O Estado, na medida em que ele é sempre urbano (urbes) e que aniquila as formas de vida e de organização social não-urbanas e descentralizadas, seria capaz de “reconhecer” estes povos, ou dependeria de sua aniquilação para lhes ceder um campo geográfico de “conservação” (a exemplo de um “alto-Xingu”)? Sobre a “luta” dos povos ameríndios contra os modos de organização estatal e centralizadores ver: CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 4 A constituição de Meech Lake foi uma tentativa de acordo e de emenda constitucional iniciado no Canadá em 1987 onde a província do Québec, de origem francesa, reivindicava ao resto do país - majoritariamente de língua inglesa -, permanecer no interior do Canadá, mas sendo reconhecida como uma minoria cultural com um modelo legal próprio. O pacote de emendas constitucionais não foi aprovado por falta de apoio das outras províncias.
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reconhecimento coletivo da legitimidade da lei. Estes dois pontos são de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho. No primeiro ponto, Habermas tem que rejeitar toda a lida com a alteridade, com o problema do outro (neste caso, o outro cultural) que não esteja já pressuposta em uma forma procedural de reconhecimento no interior do Estado: A evidência esmagadora da fragmentação de sociedades multiculturais e a confusão Babilônica de línguas em uma sociedade global excessivamente complexa parece nos impelir para concepções holísticas da linguagem e concepções contextualistas das visões de mundo que nos fazem céticos em relação a reivindicações universalistas, sejam cognitivas ou normativas. O complexo e ainda incerto debate sobre a racionalidade também tem implicações, é claro, para os conceitos de bom e justo com os quais operamos quando examinamos as condições de uma “política de reconhecimento” (HABERMAS, 1994b, p. 121).
Será precisamente contra o que Habermas considera ser o “ceticismo” em relação à estas reivindicações universalistas, que sua teoria se insurgirá. Este inimigo, no entanto, tem nome. Através da citação de um comentário de Amy Gutmann (presente na introdução do livro onde se encontra seu artigo), Habermas cita, subscreve e oferece rosto a seu rival teórico-político. Seu nome: a desconstrução iniciada na filosofia por Jacques Derrida. Cito em seguida o próprio comentário de Amy Gutmann citado e subscrito por Habermas:
Embora desconstrucionistas não neguem a possibilidade de normas compartilhadas, eles veem as normas compartilhadas como máscaras para a vontade de poder político dos grupos dominantes e hegemônicos. Esse argumento reducionista sobre as normas intelectuais é frequentemente feita em nome de grupos que não são representados na universidade e desfavorecidos na sociedade, mas permanece sendo difícil ver como isso pode ajudar alguém. Por sua lógica interna, o desconstrucionismo não tem nada mais a dizer a respeito das normas intelectuais senão que elas são máscaras para a vontade de poder e portanto isso reflete também a vontade de poder dos desconstrucionistas [...] Desconstrucionistas não agem, como se eles acreditassem que normas comuns são impossíveis. Eles agem e frequentemente falam como se acreditassem que o currículo universitário devesse incluir trabalhos sobre e de grupos desfavorecidos. E algumas versões desta posição, como vimos, é defensável em bases universalistas [...] Qualquer um que duvide desta conclusão deve tentar demonstrar de forma não tautológica que os mais fortes argumentos a favor e contra a legalização do aborto, não os argumentos oferecidos por políticos, mas os mais cuidadosos e convincentes argumentos filosóficos, simplesmente refletem a vontade de poder, interesses de classe ou gênero de seus proponentes (GUTMANN in TAYLOR & GUTMANN, 1994, p. 18-19).
A desconstrução (ou os desconstrucionistas, como prefere chamar Gutmann), portanto, recairiam invariavelmente em uma contradição a respeito da possibilidade de se encontrar bases universalistas que possibilitem uma discussão neutra sobre as decisões ético-políticas – em torno do bom e do justo – a serem debatidas, argumentadas e decididas no seio do Estado democrático constitucional (considerando que este problema, para a teoria da desconstrução, se iniciaria na própria universidade). Ao politizar toda forma de argumentação e desconfiar da toda possibilidade de universalismo, a desconstrução manteria seus próprios argumentos incólumes e fora de alcance. O que significa que se toda argumentação reflete uma máscara para a “vontade de poder”, como batiza Gutmann, a própria argumentação da desconstrução deveria se configurar, ela também, como uma modalidade desta vontade de poder. E o que é pior, os argumentos “desconstrucionistas”, para que tenham validade, tem que repousar igualmente, e assim como qualquer outro argumento, em bases universalistas. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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3. DESCONSTRUÇÃO E A DEMOCRACIA POR VIR No entanto, uma análise mais responsável, mais detalhada e menos apressada, apontaria que, por mais estranho que possa parecer, o pensamento da desconstrução (na figura de Jacques Derrida) se ocupa em pensar, assim como o pensamento de Habermas, o próprio problema da legitimidade e da aplicabilidade da lei na fundação do direito constitucional e da possibilidade da democracia. O que equivale a dizer que o pensamento derridiano não está preocupado em negar os argumentos em discussão no interior da arquitetônica estrutural do constitucionalismo, mas seu alcance é maior na medida em que a desconstrução pensa a própria instauração e origem da justiça, pensando, portanto, os limites da arquitetônica constitucional e seu “fora”. Contudo, Derrida não se satisfará com um suposto caráter de pressuposição que os membros de um Estado devem ter em relação ao corpo constitucional, a fim de analisar apenas o aspecto procedimental e neutro deste pressuposto. Ao contrário, a legitimidade da lei não está jamais separada, aos olhos de Derrida, de uma dimensão de força. Explorando o vínculo de língua inglesa entre a força [force] de uma lei e a possibilidade de aplicar [to enforce] a lei, ele aponta que não há lei sem força, não há aplicabilidade de uma lei sem certa dimensão de força brutal ou sutil. No entanto, isso não significa que uma lei seja necessariamente percebida ou experienciada imediatamente como violenta ou violadora. Desta vez, na língua alemã, o vínculo entre esta violência da lei e sua legitimidade se evidencia mais claramente. A palavra alemã Gewalt pode ser facilmente traduzida por “violência”. Mas, ao mesmo tempo, a mesma palavra Gewalt tem o sentido na língua alemã de poder legítimo, autoridade ou força pública. Incluída em sua relação ao Estado, temos a palavra Staatgewalt que se traduz como poder estatal ou autoridade de Estado. E ainda Gesetzgebende Gewalt que é traduzido como poder legislativo. Assim, Derrida apresenta o vínculo irremediável entre certa dimensão de força, de violência e mesmo de violação e o campo das legislações e da ordem legal. Não se trata aqui de uma afirmação simplista e paranoica de uma ubiquidade da violência em todos os âmbitos dos aparelhos de Estado. Mas se trata, antes, de abrir a possibilidade da pergunta – evitada no texto habermasiano, é preciso lembrar – sobre “como distinguir entre a força de lei de um poder legítimo e a violência pretensamente originária que precisou instaurar essa autoridade, e que não podia ela mesma autorizar-se por nenhuma legitimidade anterior, de tal forma que ela não é, naquele momento inicial, nem legal nem ilegal, outros diriam apressadamente nem justa nem injusta?” (DERRIDA, 2010, p. 10). Difícil questão, na medida em que uma lei fundamental, no momento de sua instauração, não está acompanhada de um corpo de leis prévio que garanta imediatamente sua legitimidade. Este momento “originário”, instante primeiro em que uma lei se funda, é acompanhado de certa dose de absurdo, uma vez que ela mesma – a lei – autoriza e inaugura a possibilidade mesma da fundação da fronteira entre o legal e o ilegal, sem que ela própria esteja submetida aos efeitos da legalidade e da ilegalidade. Aqui, a exceção funda a regra. É possível perceber que Derrida busca aqui pensar exatamente aquilo que no texto de Habermas foi considerado como sendo o caráter “extrínseco” da lei. O interesse derridiano é o de pensar isso que permanece como uma espécie de ponto cego da teoria habermasiana e que o gesto do patriotismo constitucional, na medida em que é a reprodução de um gesto metafísico tradicional, exclui e mantém no campo do extrínseco, do impensado ou do impensável. Mas JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Derrida não está sozinho neste exercício de pensamento. Pensadores como Blaise Pascal e Michel de Montaigne já haviam igualmente se questionado sobre o vínculo necessário entre lei e força em seu caráter fundacional. Este último, seguindo uma leitura de caráter convencionalista, afirma que no fundamento das leis não estará na própria justiça, mas em uma ausência de fundamento: Ora, as leis se mantém em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não tem outro (MONTAIGNE apud DERRIDA, 2010, p. 21).
Haveria, portanto, para Montaigne, um caráter místico na origem da lei, que não pode pressupor um fundamento originário, uma sustentação em algo prévio ao gesto mesmo – gesto performativo por excelência – de sua própria fundação. Derrida aponta que este momento instituinte da lei implica uma violação que dá origem a uma força interpretadora ou um “apelo à crença”. Não se trata aqui de uma pressuposição ou de uma aceitação prévia da ordem legal que nos levaria a discutir questões éticas interpretando os padrões legais (Habermas); mas, ao contrário, esta instauração da lei marca um momento em que será preciso justificar a lei, essa violência performativa sem fundamento ou precedentes. Não há, portanto, “fora da lei” na origem da lei. Este momento de instauração não conta com nenhum sistema legal e nenhum discurso que o sustente de fora, abstratamente e de maneira neutra. Não há metalinguagem possível nem mesmo anterioridade do discurso em relação à inauguração da lei. Sua enunciação e inauguração se faz em ato: Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar. Nenhum discurso justificador pode, nem deve, assegurar o papel de metalinguagem com relação à performatividade da linguagem instituinte ou à sua interpretação dominante. O discurso encontra ali seu limite: nele mesmo, em seu próprio poder performativo. É o que proponho aqui chamar, deslocando um pouco e generalizando a estrutura, o místico (DERRIDA, 2010, pp. 24, 25).
Fundação sem fundamento, a operação inauguradora ou performativa da lei guarda um aspecto místico por ser um puro aparecer sem lastro ou sustentação prévia. Na origem da lei, no coração da legalidade, está inscrita a diferença que disjunta a lei e a legalidade. A lei inaugurada não conta, essencialmente, com um elemento justificador de sua violência de origem. Contudo, não se trata, com essa violência de origem, de afirmar que a lei poderia estar a serviço de um poder ou força – política, econômica, ideológica ou outra - submetendo-se a esta força e operando como seu instrumento. Trata-se, antes, de afirmar que tal força de lei, tal violência instauradora não é jamais extrínseca à lei, não funciona como uma força externa que viria se adequar à lei; mas, ao contrário, tal força ou violência faz parte de sua própria inauguração, do gesto performativo de sua instituição que é sempre “um momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, pois ele o rasga por uma decisão” (DERRIDA, 2010, p. 24). Esta força que se evidencia na aplicabilidade da lei [enforceability] e de sua autoridade é o que garante a própria legitimidade da lei. A lei não pode se apoiar senão nela mesma. A lei inaugural é essa espécie de violência sem fundamento, ainda que perfeitamente legítima. Portanto, a legitimidade da lei repousa sobre um caráter místico de sua própria autoridade: a lei é JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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efeito de sua própria autoridade, ao mesmo tempo em que a autoridade garante a possibilidade da lei. Essa força, essa violência, garante a aplicabilidade da lei, mas não garante sua justiça. Eis o paradoxo da inscrição da diferença na origem da lei: a lei visa a justiça, mas não é a justiça. A justiça não pode repousar sobre nenhuma predicação definitiva de caráter ontológico. O que quer dizer que se definimos a justiça a partir do verbo ser, encerramos a justiça dentro de limites do possível que reproduziriam uma violência radical tal qual a violência que está na origem da lei. Com esse gesto, perderíamos a justiça restando dentro do campo do cálculo jurídico. Toda lei tem forçosamente um caráter de textualidade, de construção. Assim como o próprio Habermas reconhece, a lei se funda em um espaço geográfico, moral e temporal que a leva a ser reinterpretada, relida, revista, modificada, questionada, abandonada, recomposta. A condição da lei é sempre uma violência que impele à interpretação e à resistência. Há necessariamente uma inscrição da lei que clama pela errância do sentido e por desconstruções da arquitetura jurídica do Estado. Por este motivo, Marx foi um dos principais pensadores que se debruçaram sobre esse caráter pontual e violento do aparato legal das democracias liberais. A justiça, contudo, se inscreve em outro campo. Ao contrário da lei, a justiça não é uma textualidade, mas é ela que abre toda textualidade, que opera como abertura de todos os possíveis, como aquilo que resiste aos limites da lei. A justiça, mesmo sem ser algo definível ontologicamente, habita o âmbito de uma experiência não dada, sempre inatual, ou, para dizer com Derrida, impossível (como oposta a todos os campos do cálculo do possível da lei). A justiça, portanto, não equivale à igualdade ou ausência de sofrimento, de determinadas opressões ou ao fim do não-reconhecimento de “minorias”, mas é aquilo que está para além de toda lei e de toda textualidade. O direito é calculável, textual e, portanto, desconstrutível. A justiça, a ânsia pela justiça, é indesconstrutível – e jamais está dada em definitivo. A lei está sempre em risco e exposta ao risco de ser a aplicação, por exemplo, de uma injustiça. A lei é um elemento de cálculo, um jogo textual de códigos, enquanto a justiça é incalculável na medida em que a presentificação do justo ou do injusto não é garantida por nenhuma regra e não é negociável em um texto de lei5. Os exemplos da lei como operador da injustiça são múltiplos:
É injusto julgar alguém que não compreende seus direitos nem a língua em que a lei está inscrita [o que não implica que estejamos falando necessariamente de um estrangeiro oriundo de fora das fronteiras do país – seja ele residente ou turista –, mas podemos incluir aí um estrangeiro à linguagem jurídica que, ao mesmo tempo, é capaz de falar a própria língua em que a lei está inscrita, sem compreender a letra da lei], ou o julgamento pronunciado, etc. Poderíamos multiplicar os exemplos dramáticos de situação de violência em que se julga num idioma que a pessoa ou a comunidade de pessoas supostamente passíveis de lei não compreendem, às vezes não muito bem, às vezes absolutamente nada [...] Essa violência supõe que o outro, a vítima da injustiça de língua, por assim dizer, aquela que todas as outras supõem, seja capaz de uma língua em geral, seja um homem enquanto falante no sentido que nós, os homens, damos a essa palavra de linguagem. Houve aliás um tempo, nem longínquo nem terminado, em que “nós os homens ‘queria dizer’ nós os europeus adultos machos brancos carnívoros e capazes de sacrifício” (DERRIDA, 2010, p. 33-34).
Da mesma forma como Derrida rejeita o formalismo que pensaria a justiça em termos de direito, este mesmo gesto “antiformalista” e que recusa toda ontologização, se dobra igualmente 5 O debate entre o justo e o injusto, Habermas lega ao âmbito dos valores éticos particulares.
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sobre a democracia. Neste ponto, a segunda questão que extraímos da crítica de Marx no início deste trabalho ganha nova leitura sob os olhos de Derrida. Se questionamos, com Marx, o fato de que nenhuma experiência democrática em ato comportou a contemplação total das demandas dos oprimidos, Derrida responderia muito diretamente que “ainda não existe democracia digna deste nome. A democracia ainda está por vir” (DERRIDA, 2010, p. 108). Não se trata, nesta afirmação, no entanto, da oferta de um “verdadeiro” projeto democrático por parte da desconstrução derridiana. Ao contrário, a hipótese mesma de uma “verdadeira” democracia ou de outras formas de ontologização da democracia se configuram precisamente como uma grande ameaça ao pensamento democrático. A democracia é uma espécie de herança obscura, não sabemos o que herdamos quando herdamos a democracia. Isso porque herdar a democracia não aponta para o passado, mas aponta para o futuro; para o que vem, para o por vir6. Somos “nós”, aqueles que reivindicam a herança da democracia, seu remetimento que nos foi enviado durante os séculos, que damos o sentido desse legado. Fazer justiça a esse legado equivale a reconhecer que esta herança permanece por vir. Que toda a história da democracia não basta, não é suficiente para determinar finalmente seu legado; que a democracia é uma abertura para aquilo que está por vir, que a democracia permanece sempre uma democracia por vir. Tal por vir, contudo, não fala de um futuro que se inscreve e é localizável na linhagem do tempo; mas, muito além disso, se refere ao campo do possível que aponta ao impossível. Derrida rejeita deliberadamente a compreensão da democracia como uma espécie de modelo de governo ou de poder que deve ser aplicado e alastrado a todos os povos, possibilitando a inclusão de todas as formas de alteridade em tal modelo determinado, político e ontológico. A democracia se apresenta como a única forma de poder que não nunca possuiu e não possuirá um modelo (nem mesmo o grego antigo). É fundamental lembrar que a fundação da democracia na Grécia antiga, à guisa de exemplo, conviveu perfeitamente com a escravidão, a exclusão das mulheres e com certa dose de xenofobia pautada na linhagem territorial – fundadora do Estado na antiguidade – que determinava quem eram os “verdadeiros” gregos com voz na assembleia. Evidentemente, essa configuração democrática soa a nossos ouvidos contemporâneos como sendo poderosamente antidemocrática. Mas não há apenas isso. Mesmo no contexto moderno das democracias europeias, o modelo democrático da cidadania – que relia o modelo grego com novos olhos – conviveu e convive igualmente com a escravidão, o colonialismo, o imperialismo, a exploração de classe e a exclusão (das mulheres, dos presos, sans papiers, etc.). Toda tentativa de apontar “o verdadeiro modelo democrático”, portanto, mantém uma conivência com essas e outras formas de violência com a qual as democracias conhecidas podem se coadunar. O tradicional gesto metafísico de oferecer um caráter ontológico ao seu objeto – neste caso, a democracia – possibilita a exclusão e a legitimação da violência política, fechando a indeterminação do conceito de democracia ao democracia ao outro, à alteridade. Na verdade, a democracia é a única forma de força7 política que comporta a diferença em relação a si mesma. A democracia 6 Para Derrida, não seria o constitucionalismo que as novas gerações herdam das anteriores e, por isso, se configuraria como uma constante demanda de reinterpretação (Habermas), mas a própria democracia se apresenta como essa pura herança sempre reivindicada, aberta. 7 É preciso lembra o caráter de força (kratos) que está na origem do termo democracia (que reúne demos, o povo, e kratos, força) que supõe a legitimidade de sua instauração a partir da pluralização da força.
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é uma espécie de modelo sem modelo; isto é, em nome da democracia reivindicamos que atitudes, políticas, leis, projetos constitucionais sejam democráticos. O que equivale a dizer que a democracia nunca é idêntica a si mesma, nunca está presente a si própria, nunca é “senhora de si”. Desde A república de Platão, o caráter não essencial da democracia já se fazia notar. Este texto platônico aponta que a democracia não está vinculada a uma forma de constituição precisa, na medida em que o indeterminado conceito de democracia pode conter em si todas as formas de regimes, de Estados e de possibilidades constitucionais. Ela seria, dirá Platão, como uma espécie de mercado ou bazar onde é possível encontrar todas as formas de regimes: democracias parlamentares, presidenciais, populares, democracias diretas ou indiretas, liberais, cristãs, socialdemocracias, democracias militares, autoritárias, etc. No entanto, reivindicamos a democracia a partir da democracia e no interior de governos democráticos ou não. A democracia, portanto, está infinitamente aberta para seu outro, para sua própria perfectibilidade, para a mudança. Por essa razão Derrida dirá que toda democracia será sempre uma democracia por vir, uma democracia que comporta em si mesma a diferença em relação a si. Todas as formas de regime político conhecidas, contudo, – oligarquias, monarquias, aristocracias, colonialismos, etc. – não são capazes, precisamente, de incluir em si mesmo aquilo que move a própria democracia, a saber: a aceitação de sua própria historicidade, mutabilidade e diferença. Isto é, de seu por vir. Sobre esta questão, Derrida é claro em sua leitura do laço entre democracia e Estado:
O conceito de democracia, o nome, são primeiramente de cultura grega, ninguém pode negálo; dizer isto não é fazer um geocentrismo, ou etnocentrismo, ele vem primeiro em cultura grega. Mas a cultura grega associou, desde o início, o conceito de democracia a conceitos dos quais, hoje, a democracia por vir tenta se libertar: o conceito de autóctone, isto é, de nascimento no solo, de pertencimento pelo nascimento, o conceito de território, o próprio conceito de Estado. Não tenho nada contra o Estado, não tenho nada contra a cidadania, mas ouso sonhar com uma democracia que não esteja simplesmente ligada ao Estado e à cidadania. E é nessa condição que se falará de uma democracia universal, uma democracia que é não somente cosmopolítica, mas universal. Certamente, o cosmopolitismo é uma noção muito respeitável, mas ele apela à noção de Estado e de política ligada à polis como Estadonação e territorialidade. Mais além dos cosmopolitismos, há uma democracia universal, que se conduz muito além da cidadania e do Estado-nação (DERRIDA apud CHÉRIF, 2013, p. 48-49).
É neste ponto que compreender o reenvio, o remetimento da democracia é fundamental. Herdamos este remetimento da história da democracia que somos forçados a repensar, a reinterpretar, a remeter novamente mais além, por vir. E, no entanto, no coração da democracia, tal como a interpretamos, há uma aporia, algo de caráter inapelavelmente indecidível. Ninguém negará que uma democracia deve zelar pela liberdade, pela manutenção da liberdade democrática, opondo-se, ao mesmo tempo, à tudo aquilo que seja capaz de ameaçar as liberdades no interior da força democrática. Em nome da garantia e do zelo pela ação livre, as democracias visam a manutenção da igualdade como forma de sustentação às liberdades. Ora, em nome da proteção da igualdade entre os membros de um regime democrático – ligada a sustentação da liberdade –, aceitamos a produção da igualdade segundo o número que legitima a liberdade segundo o mérito. A produção e promoção da igualdade segundo o número equivale a postular que cada pessoa é igual a um voto, e, assim, todos tem liberdade de decisão e igualdade de força na decisão (igualdade pelo voto). Contudo, a promoção da igualdade pelo número almeja atingir JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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a franca liberdade de escolha (de um representante político, por exemplo) segundo o mérito. Aquele que será eleito como representante, portará sobre si o mérito de ter sido objeto de uma escolha livre feita pela força ou pela vontade livre da maioria; este representante político será aquele que detém o mérito de ter sido o escolhido. Mas a lei do número tende a destruir a igualdade pelo mérito, na medida em que a eleição do escolhido pela maioria não corresponde fundamentalmente àquele que teria um “melhor preparo”: o mérito não se traduz no número. Pode-se, assim, eleger um representante apenas carismático, bom retórico ou mesmo de capacidades políticas inferiores ou insignificantes. A igualdade de número anula a liberdade de escolha do mérito. Mas há ainda mais, na medida em que a lei do número – que visa garantir a igualdade de força para zelar pela liberdade democrática – também é capaz de destruir a própria liberdade da qual ela deveria ser responsável por defender. Basta lembrar que grande parte – talvez a maior parte – dos regimes totalitários e autoritários do último século foram eleitos pela via democrática legítima, através do voto (do nazismo na Alemanha e do facismo na Itália, aos governos totalitários na américa latina, na África negra e recentemente no Egito, após uma revolta popular). O que quer dizer que a garantia da liberdade democrática através da igualdade de voto, a lei do número, pode aniquilar a si mesma elegendo um regime totalitário e antidemocrático legitimamente. Não se trata aqui de um acidente externo à democracia, mas de sua condição, de uma aporia interna à própria ideia de democracia, o que Derrida considera ser seu caráter autoimune. A autoimunidade corresponde a um retorno das defesas de um organismo contra si mesmo. Assim, o sistema de defesas de um corpo, que a princípio deveria zelar pela manutenção e integridade da vida daquele corpo, se torna, paradoxalmente, responsável por sua própria autodestruição, convertendo a defesa em ameaça. Todas as democracias conhecidas já carregam em si mesmas a possibilidade de sua autodestruição como sua própria condição, como uma doença, um câncer interno a si mesma. Tal é a autoimunidade democrática. A ideia do auto-imune em Derrida vai na direção oposta a visão do social como sendo um corpo autônomo, contra a ideia funcionalista das sociedades democráticas sendo uma espécie de organismo capaz de expelir e rejeitar tudo aquilo que ameaça sua unidade e integridade. A autoimunidade é a condição interna à própria democracia. É aquilo mesmo que possibilita o “democrático” e ao mesmo tempo é precisamente aquilo que ameaça toda a democracia. A aniquilação do democrático é condição interna à própria democracia. Deste modo, Derrida oferece um poderoso destaque à carnadura de força e mesmo de violência inerente ao kratos, à força, da democracia. Podemos tomar como exemplo de autoimunidade democrática o caso da Argélia durante a colonização francesa, no século XX. Em nome de um ideal democrático, a França impôs à Argélia uma língua (o francês) e um modelo de governo dito democrático. Após o período da guerra anticolonial pela independência argelina, os revolucionários decidiram interromper o processo eleitoral democrático comandado pelas forças francesas e pela elite local que permanecia a serviço do poder colonial, para evitar que, através de uma votação, a democracia fosse ferida pela reprodução do poder colonial. Deste modo, a força de independência argelina interrompeu um processo democrático em nome da democracia. Assim, os argelinos esperavam ser capazes JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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de garantir a possibilidade de derrubar democraticamente as forças políticas a serviço da colonização. Derrida apresenta a democracia como uma forma de remetimento [renvoi]. Esse caráter autoimune do democrático exige que a democracia seja a cada vez e sempre remetida alhures, mais além, protegida das ameaças domésticas à democracia. A ameaça autoimune à democracia faz da democracia um remetimento para além da ameaça ao democrático: seja para além das urnas, do espaço público, do processo eleitoral, ou mesmo para além do Estado e do território nacional. “[...] o inelutável remetimento pode significar simultaneamente ou a cada vez [tour à tour] remetimento do outro por exclusão e remetimento ao outro, por respeito pelo estrangeiro, ou pela alteridade do outro” (DERRIDA, 2003, p. 61). O democrático permanece insatisfeito com as condições dadas, com as condições do possível oferecidas por uma determinada democracia. Não se trata aqui de uma reinterpretação da herança democrática por novos atores políticos, como em Habermas, mas do reconhecimento de que falta ao conceito de democracia algo que seja seu “próprio”, que possa ser o “si mesmo” deste conceito. Deste modo, a democracia remete sempre ao outro de si mesma, ao por vir inatual de sua ausência de modelo. Neste jogo mesmo, de remetimento ao outro, é que surge a questão do outro e da alteridade. Ao se esgotar e de corromper autoimunitariamente, a democracia estabelece limites que silenciam e excluem o outro em sua alteridade. Contudo, no próprio jogo de remetimentos, em seu remetimento por vir, em sua diferença em relação a si mesma, a democracia se abre para a possibilidade do outro em sua alteridade mesma. A proposta de Habermas de compreender a democracia a partir do constitucionalismo e, portanto, de ontologizar a democracia em um vínculo com as instituições jurídicas, tornando o Estado o problema maior enfrentado por sua teoria. Derrida apontará que este modelo de pensamento, tipicamente metafísico, nega a abertura da própria democracia para sua diferença, para o outro. O que significa que o pensamento habermasiano permanece limitado a certa concepção de democracia que Derrida compreende como sendo europeia, institucional e metafísica. Habermas “aceita” reconhecer o outro apenas e sub condição de uma “integração assimiladora”, isto é, de absolver e domar o outro no interior de uma arquitetura previamente estabelecida de reconhecimento que, ao mesmo tempo, exclui a alteridade do outro no esforço de reduzi-lo ao mesmo. Ao se remeter ao outro, a democracia habermasiana aniquila sua alteridade forçando uma aceitação pressuposta de seus princípios e de uma arquitetura específica, do constitucional. Ora, o projeto político habermasiano, sua boa intenção aparente e seu perigo eminente, se funda na reivindicação de uma razão que haja de modo transparente e procedimental na reconciliação ou num suposto consenso sustentado pelo constitucionalismo nas democracias liberais européias. É assim que Derrida vai apontar que a rejeição do problema da diferença mascara um problema fundamental: um projeto político que desconsidere o lugar da alteridade deve nos manter vigilantes. Aqui, o modelo procedimental da lei constitucional se ancora no modelo que Habermas extrai da comunicação e da ética da discussão. Essa leitura, no entanto, sob a perspectiva de Derrida, mascara uma institucionalidade oriunda da Europa (ainda que não presente apenas na Europa), mas que deve nos manter atentos e vigilantes onde quer que se apresente. O pluralismo universalista de Habermas também deve ser submetido à crítica: JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Os projetos europeus os mais bem intencionados, aparentemente e expressamente pluralistas, democráticos e tolerantes, nessa bela competição para “conquistar os espíritos”, podem tentar impor a homogeneidade de um meio [medium], de normas de discussão, de modelos discursivos [...] Esses projetos se multiplicam hoje, e nós poderíamos nos alegrar com eles, desde que nossa atenção não adormeça; porque é preciso aprendermos a detectar as novas formas de tomada de poder cultural, para resistir a elas. Isso também pode parecer um novo espaço universitário e sobretudo um discurso filosófico. Sobre pretexto de defender a transparência (“transparência”, com o “consenso”, é uma das palavras de ordem do discurso “cultural” que eu evoquei a pouco), pela univocidade da discussão democrática, pela comunicação no espaço público, pelo “agir comunicativo”, um discurso como esse tende a impor um modelo de linguagem pretensamente favorável à essa comunicação. Pretendendo falar em nome da inteligibilidade, do bom senso, do senso comum ou da moral democrática, esse discurso tende, por esse mesmo motivo, a descreditar tudo o que complica esse modelo, tende a suspeitar ou a reprimir aquilo que dobra, sobredetermina ou mesmo questiona, na teoria ou na prática, essa ideia da linguagem. É com esta preocupação, entre outras, que seria preciso estudar certas normas retóricas que dominam a filosofia analítica ou o que se chama em Frankfurt de a “pragmática transcendental”. Esses modelos se confundem igualmente com poderes institucionais que não estão confinados apenas à Inglaterra e à Alemanha (DERRIDA, 1991, p. 54-56).
4. CONCLUSÃO O caráter de violência da inauguração da lei naturalmente é esquecido ou aparentemente se desvanece nas democracias já institucionais ou institucionalizadas. Contudo, Derrida nos lembra que, seja na presença direta da fundação da lei, ou na representação da lei a partir de sua aplicabilidade ligada aos códigos legais, o vínculo entre direito e violência permanece. O que significa que “em sua origem como em seu fim, em sua fundação como em sua conservação, o direito é inseparável da violência, imediata ou mediata, presente ou representada. Se isso exclui toda não-violência na eliminação dos conflitos, como poderíamos ser facilmente tentados a concluir? Absolutamente não” (DERRIDA, 2010, p. 112). Deste modo, o recurso à hipótese de um consenso atingido através da mediação procedimental da discussão por meio da lei constitucional parece ocultar uma estrutura de força ou violência que interdita compreender tanto a lei como arquitetônica neutra, quanto a discussão como consenso puramente pacífico. O “esquecimento” da violência originária fundacional da lei (e vimos que Habermas reconhece tal violência, mas a aborda de viés e jamais frontalmente) se produz e se sustenta no próprio movimento de substituição da presença imediata da violência identificável como tal, para a representação ou representatividade que corresponde à lei no contexto de legitimidade assegurada, de sua pura aplicabilidade. Passagem, portanto, da force para o ato de enforce da lei: “a perda de consciência não advém por acidente, nem a amnésia consecutiva. Ela é a própria passagem da presença à representação” (DERRIDA, 2010, p. 110). Derrida extrai um exemplo deste esquecimento da violência, desta passagem da inauguração à aplicabilidade da lei, do que o filósofo Walter Benjamin chamará de degenerescência institucional da violência nas democracias modernas:
Benjamin falava, anteriormente, de uma degenerescência (Entartung) da violência originária, por exemplo, a da violência policial na monarquia absoluta que se corrompe nas democracias modernas8 [...] O primeiro exemplo escolhido é o dos parlamentos de então. Se estes dão
8 Benjamin se refere ao fato de que a conservação do direito depende desta espécie de manutenção da violência originária da lei que é materializada na violência policial. Mas, em uma explicação bastante sumária, pode-se dizer que na monarquia absolutista a violência policial se justifica simplesmente por representar o poder e a violência do rei em direção a seus súditos. Ao passo que nas democracias modernas, a violência policial representaria a própria corrupção do princípio democrático na medida que ela seria a perpetuação da violência originária da lei fundamental à sua reprodução. O que significa dizer que, enquanto sabemos à quem a violência policial serve nos Estados monárquicos absolutistas, nos Estados democráticos essa violência não se explicita facilmente em termos da pergunta “a quem serve tal violência?”.
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um espetáculo deplorável, é porque essas instituições representativas esquecem a violência revolucionária da qual nasceram [...] Elas perderam o sentido da violência fundadora do direito, que está nelas representada. Os parlamentos vivem no esquecimento da violência da qual nasceram. Essa denegação amnésica não revela uma fraqueza psicológica; ela se inscreve no estatuto e na própria estrutura desses parlamentos. Desde então, em vez chegar a decisões comensuráveis ou proporcionais a essa violência do poder, e dignas dela, eles praticam a política hipócrita do compromisso. O conceito de compromisso, a denegação da violência aberta, o recurso à violência dissimulada, pertencem ao espírito da violência, à “mentalidade da violência” que impele aceitar o constrangimento do adversário, ao mesmo tempo para impedir o pior e dizendo, com o suspiro do parlamentar, que não é certamente o ideal e que, sem dúvida, teria sido melhor de outra maneira, mas que não se podia, justamente, fazer de outra maneira. O parlamentarismo está, portanto, na violência da autoridade e na renúncia ao ideal. Ele malogra na resolução dos conflitos políticos pela palavra, pela discussão, pela deliberação não-violenta, em suma, pela execução da democracia liberal (DERRIDA, 2010, p. 110-111).
O pensamento da violência, desta amnésia da violência legal, se coloca como tarefa filosófica. Não se trata, evidentemente, para Derrida, de uma apologia da violência. Mas, ao contrário, de pensar a violência em curso no constitucionalismo democrático a fim de pensar as exigências da justiça para além do direito formal e da democracia para além dos modelos metafísicos consensualistas. Deste modo, a democracia e a possibilidade da justiça se abrem para sua própria diferença à si e à possibilidade de sua perfectibilidade que não subscreve a violência de Estado inerente ao modelo constitucionalista tal como o praticado até os dias atuais. Nesse sentido, a democracia resiste à todo e qualquer paradigma, seja ele constitucional ou outro. “[...] não há paradigma absoluto, constitutivo ou constitucional, não há ideia absolutamente inteligível, não há eidos, nenhuma idea da democracia. Não há, tampouco, em última análise, ideal democrático” (DERRIDA, 2003, p. 62).
REFERÊNCIAS CHÉRIF, Moustapha. O Islã e o ocidente: encontro com Jacques Derrida. Belo Horizonte: UFMG, 2013. DERRIDA, Jacques. L’autre cap suivi de La démocratie ajournée. Paris: Minuit, 1991. ______. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Matins Fontes, 2010. ______. El monolingüismo del otro. Buenos Aires: Manatial, 2012a. ______. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: UFSC, 2012b. ______. Voyous : deux essais sur la raison. Paris: Galilée, 2003. DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De quoi demain... (dialogue). Paris: Flammarion, 2001. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994a. ______. Struggles for recognition in the democratic constitutional State. In: Multiculturalism: examining the politics of recognition. New Jersey: Princeton, 1994b. pp. 107-148. ______. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. TAYLOR, Charles; GUTMANN, Amy. Introduction. In: Multiculturalism: examining the politics of recognition. New Jersey: Pinceton University Press, 1994. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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O PRECEDENTE NA SUPREMA CORTE NORTE-AMERICANA E NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO BRASIL Larissa Clare Pochmann da Silva Matheus Farinhas de Oliveira 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho se propõe a realizar uma análise da teoria dos precedentes, a partir de duas experiências bastante particulares: a da Suprema Corte dos Estados Unidos e a do Supremo Tribunal Federal, através de um contraste de dois sistemas jurídicos distintos, com um marco teórico que leve em consideração a atual discussão da teoria dos precedentes norteamericana e uma teoria dos precedentes que tem sido debatida no Brasil. A escolha do presente objeto teve manifesta influência da discussão envolvendo o “novo” Código de Processo Civil, que na verdade traz algumas considerações pontuais sobre a teoria dos precedentes, de forma bastante peculiar. A abordagem aqui proposta será baseada na linha argumentativa a seguir: primeiramente, algumas considerações sobre o cenário de desenvolvimento da discussão sobre precedentes em ambos os sistemas. Em segundo lugar, será analisada a experiência norte-americana da Suprema Corte dentro de três critérios pré-definidos, quais sejam: a formação da relação entre o Direito Constitucional e os precedentes; a centralidade e o papel da teoria do precedente no desenvolvimento da jurisdição, bem como os personagens afetados pelo desenvolvimento jurisdicional da teoria dos precedentes, para, por fim, tratar do tema no Supremo Tribunal Federal. No que se refere à análise sobre o cenário de desenvolvimento da discussão sobre precedentes, trata-se de um recorte panorâmico dos principais acontecimentos que definiram e moldaram as presentes características da teoria dos precedentes. Não é, objeto do presente trabalho, portanto, a realização do desenvolvimento histórico da formação dos sistemas jurídicos e suas diversas clivagens. Parte-se de alguns cuidados teóricos em relação às diferenças e características de ambos os sistemas para o desenvolvimento do tema. Assim, evita-se, por exemplo, o tema ratio decidendi, tendo em vista ser mais utilizado por autores de influência inglesa. No constitucionalismo norteamericano, o termo holding é mais comum entre os constitucionalistas. Em virtude disso, será aqui utilizado com mais frequência. Além disso, o presente trabalho analisa apenas questões referentes à teoria dos precedentes, não adentrando em uma discussão mais profunda sobre as diversas teorias da argumentação. Embora sejam assuntos ligados, as teorias da argumentação são complexas e merecem espaço próprio para análise, o que fugiria do objeto aqui delimitado. O objetivo geral do trabalho é analisar as especificidades de cada experiência das cortes que debatem sobre temas constitucionais selecionadas, problematizando-as através das discussões teóricas existentes, bem como pelo contraste entre ambas. Os objetivos específicos são: analisar as principais características entre os dois sistemas jurídicos, para que seja possível compreender o contraste entre a atuação das cortes e das discussões envolvendo ambas as experiências de jurisdição constitucional; analisar a teoria dos precedentes JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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na experiência norte-americana, delimitando-a através da seleção da Suprema Corte; bem como analisar a experiência constitucional brasileira e a recente discussão sobre a implantação da teoria dos precedentes no sistema brasileiro, limitando-se ao âmbito do Supremo Tribunal Federal. O foco aqui adotado tem base na costumeira desconsideração do contraste como forma interessante de desenvolvimento das pesquisas brasileiras, que prescindem completamente as considerações de uma correta análise comparativa. Ademais, a presente pesquisa identificou um déficit muito grande na discussão sobre precedentes, que classicamente é estudado apenas pela aplicação das teorias alienígenas, sem considerar as peculiaridades da experiência e da organização institucional brasileira. Essas diferenças, longe de inviabilizarem uma comparação, acarretam uma análise mais rica em detalhes e possibilidades, demonstrando analiticamente novos caminhos a serem trilhados pelas pesquisas jurídicas e pelo Direito, principalmente através do contraste. Os argumentos levantados para sustentar a hipótese são de duas ordens, quais sejam: a) a aproximação entre sistemas não eliminou as diferenças entre ambas as experiências; b) embora a atuação de ambas as cortes que estão no ápice do sistema hierárquico entre os tribunais seja diferente, uma teoria da decisão consistente é fundamental para uma maior efetividade da jurisdição constitucional. No próximo ponto, começaremos a analisar o cenário atual entre os países vinculados aos dois sistemas jurídicos, quais sejam o civil law e o common law. A perspectiva aqui adotada pretende demonstrar que o processo de formação de ambos os sistemas se deu com características que são diferentes, não obstante o processo de aproximação a que estão submetidos. 2. O CENÁRIO DOS PAÍSES DE “CIVIL LAW” E “COMMON LAW” A referência ao respeito aos precedentes é associada ao desenvolvimento de duas tradições jurídicas distintas1, os sistemas de civil law e de common law, que se formaram em circunstâncias políticas e culturais distintas e que são compostos por institutos próprios em cada um dos dois sistemas2. Porém, os dois sistemas já tiveram diversas dicotomias que hoje parecem se reduzir3, em prol do ideal de respeitar a igualdade entre as partes e a previsibilidade das decisões judiciais4. O sistema de civil law tem como marco territorial a Europa Continental, a América Latina, 1 Tradição jurídica, na definição de Merryman e Pérez-Perdomo, “é, na verdade, um conjunto de atitudes historicamente condicionadas e profundamente enraizadas a respeito da natureza do direito e do seu papel na sociedade e na organização política” (MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. A tradição da civil law: uma introdução aos sistemas jurídicos da Europa e da América Latina. Tradução de Cássio Casagrande. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009, p. 23). Nessa perspectiva, haveria uma diversidade de sistemas jurídicos, oriundos do período histórico de construção e solidificação dos conceitos históricos de soberania e de nacionalismo, que poderiam, em virtude de alguma proximidade, serem agrupados em família. 2 MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de common law e de civil law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, n. 49, 2009, p. 11-12. 3 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 12. 4 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In: Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 20.
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a África, muitos países da Europa Central e da Ásia e até mesmo em algumas áreas de common law, como Louisiana e Quebec5; como marco temporal é associada6 à Roma, mais precisamente, ao Império Romano7 e seu marco teórico é o Corpus Iuris Civilis, elaborado quando o Imperador Bizantino Justiniano, em 533, determinou a queima do material jurídico até então produzido por jurisconsultos, como forma de ressuscitar a glória do direito romano através da elaboração da codificação do direito civil. O Corpus Iuris Civilis foi organizado em cinco capítulos: direito das pessoas, direito de família, sucessões, propriedade e obrigações; este último compreendia regras sobre negócios jurídicos e responsabilidade civil. A queda do império romano provocou um afastamento do sistema europeu do Corpus Iuris Civilis. Os germanos, ao conquistarem a Península Itálica, mesclaram seus próprios costumes às disposições do Corpus Iuris Civilis. Foi com a retomada do Mar Mediterrâneo pelos europeus que o interesse pelo direito romano foi readquirido, disseminando-se seu estudo por toda a Europa, especialmente nas universidades italianas. Outro ponto relevante para o sistema de civil law foi surgimento dos Estados-Nação, posteriormente seguido pelas Revoluções Americana e Francesa, representou a conjuntura histórica de desenvolvimento do civil law. O Estado centralizou a edição de legislações, com destaque para o Código Civil Alemão e para Código Civil Francês, enfatizando que uma das principais características do sistema de civil law seria a codificação, especialmente os Códigos de Direito Civil, que continham regras exaustivas sobre os direitos individuais e sua proteção, com ênfase nos direitos da personalidade, das obrigações, das coisas e sucessórias. A doutrina se manifestava em pareceres sobre o arcabouço jurídico existente e os legisladores possuíam extrema importância no sistema, pois eram responsáveis pela elaboração das leis8. A função dos juízes seria julgar os casos aplicando as leis e, nesse contexto, as decisões judiciais não eram reconhecidas como fontes do direito9. O sistema jurídico é baseado em uma Constituição escrita e em regras codificadas, sendo que apenas questões administrativas geralmente não são encontradas na forma de um código; somente o que está previsto na lei é considerado obrigatório para todos; a liberdade contratual 5 APPEL, James G; DEYLING, Robert P. A Primer on the Civil Law System. Published by Federal Judicial Center at the request of the International Judicial Relations Committee of the Judicial Conference of the United States, p. 1. Disponível em http://www.fjc.gov/public/pdf.nsf/lookup/CivilLaw.pdf/$file/CivilLaw.pdf. Acesso em 8 jan. 2015. 6 Não se desconhece a divergência se, temporalmente, o sistema de common law teria sua origem na República Romana (APPEL, James G; DEYLING, Robert P. Op. Cit., p. 3. Disponível em http://www.fjc.gov/public/pdf.nsf/lookup/ CivilLaw.pdf/$file/CivilLaw.pdf. Acesso em 8 jan. 2015) ou no Império Romano (MESSITTE, Judge Peter J. Common Law v. Civil Law Systems. Disponível em http://web.ntpu.edu.tw/~markliu/common_v_civil.pdf. Acesso em 8 jan. 2015). 7 MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. The Civil Law Tradition: an Introduction to the Legal Systems of Europe and Latin America. Third Edition. Stanford: SUP, 2007, p. 143. 8 Ibid., p. 59-60. 9 Baseado em uma leitura de Montesquieu, os argumentos sustentados são basicamente dois: a separação entre os três poderes e a previsão de um sistema de autocontenção desses poderes. A afirmação de Montesquieu de que o magistrado deveria ser a mera boca que pronuncia a lei, deve ser vista com cuidado. A interpretação de seu posicionamento deve ser situada em um momento histórico e social vivido na França em que havia intensa corrupção e falta de imparcialidade dos juízes, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 49. Além disso, atualmente existem inúmeras pesquisas que colocam em dúvida a forma clássica de separação de poderes. Para mais discussões sobre separação de poderes sob uma perspectiva moderna, ver ACKERMAN, Bruce. New Separation of Powers. Harvard Law Review. Harvard: Harvard Law School, vol. 133, 633, 2000, p. 633-729 e LEVINSON, Daryl; PILDES, Richard. Separation of Parties, Not Powers. Harvard Law Review. Harvard: Harvard Law School, Vol 119, 1, 2006, p. 2311-2386.
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não é tão ampla – a vontade livre de contratar entre as partes apenas é válida se não ferir as disposições legais10. Não se afirma, porém, que não exista o instituto dos precedentes. Tradicionalmente, contudo, são institutos bastante distintos, não vinculantes, servindo como soft law apenas para embasar julgamentos11. Já no cenário de common law prevalece o respeito e a aplicação do direito costumeiro, sem deixar de existir a concepção do direito escrito. As leis existiam e dividiam-se em dois grupos: lex scripta, também chamada de statute law, os atos editados pelo Parlamento, mas sem o caráter de compilação, e lex non scripta, os próprios costumes, gerais ou particulares, havendo maior relevância no segundo grupo12. No sistema do common law, o foco da preocupação são os casos decididos pelos tribunais, não uma compilação legal, foco de atenção dos países de civil law13. Os juízes recorriam às decisões anteriores, mas não havia uma vinculação para se afirmar a regra do stare decisis14. Eram apenas evidências de desenvolvimento do direito, com caráter meramente informativo, os resultados dos julgamentos transcritos em um registro (plea roll). A partir do final do século XVI, as próprias decisões proferidas com base nesse direito costumeiro passaram a ser consideradas direito, legitimando-se com base na repetição15. Desenvolveu-se, então, um processo de confiança nos precedentes. Foi, porém, a partir do século XVIII que o precedente começou, de fato, a se desenvolver, quando os julgamentos anteriores deixaram apenas de ilustrar as decisões baseadas nos costumes, para se tornarem o próprio cerne do debate. Os juízes passam a produzir decisões baseadas em fundamentos de replicação ad futuram16. Consoante o aumento dos casos e uma maior 10 Q.C., Willian Tetley. Mixed jurisdictions: common law vs. civil law (codified and uncodified). Revue de Droit Uniforme. Quebec: Unidroit, v. 3, 1999, p. 596. 11 FON, Vincy; PARISI, Francesco. Judicial Precedents in Civil Law System: a Dynamic Analysis. Forthcoming; George Mason Law & Economics Research Paper No. 04-15, p. 1. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers. cfm?abstract_id=534504. Acesso em 9 fev. 2014. 12 HALE, Matthew. The History of Common Law in England. London: Henry Butterworth Law-Bookseller, 1820, p. 1-2. 13 SCHAUER, Frederick. Thinking Like a Lawyer: a New Introduction to Legal Reasoning. Harvad: Harvard College of Law, 2009, p.104 14 Deve-se deixar bem claro que, conceitualmente, Common Law e stare decisis não são os mesmos institutos, embora tenham uma correlação muito grande. Stare decisis significa que os precedentes criados possuem efeito vinculante para as cortes hierarquicamente inferiores, salvo a existência de uma situação na qual o precedente deva ser afastado. O instituto do stare decisis se desenvolveu no interior do common law, mas independe dele para seu funcionamento. Cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente Judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.161. Ver também, MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 33-35. Contudo, para Gary Lawson a doutrina do precedente é tão profundamente enraizada no sistema jurídico que acaba não permitindo uma investigação rigorosa sobre a sua própria legitimidade. Não importa o quão convincente é determinada argumentação, existirá uma dificuldade para que os tribunais considerem a argumentação. Nesse caso, o sistema jurídico deveria, ao menos, ter “a decência” de reconhecer abertamente que escolheu a conveniência política (political expediency) sobre a constituição. LAWSON, Gary. The Constitutional Case against Precedent. Harvard Journal of Law and Public Policy. Harvard: Harvard Law School, volume 17, number 1, 1994, p.33. Em um trabalho recente, o autor considera possível a utilização de precedentes em casos constitucionais, desde que em circunstâncias limitadas, basicamente quando identifica se o precedente é a melhor evidência disponível da resposta certa. LAWSON, Gary. Mostly Unconstitutional: The Case Against Precedent Revisited. Ave Maria Law Review. Florida: Ave Maria Law School, ano 1, n. 4, 2007, p.1-22. Essa postura implica em fazer as perguntas corretas e as possibilidades de responder corretamente, gerando um outro problema. Seria possível falar em respostas certas e perguntas certas para temas em que não haja acordo? 15 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. Cit., p. 20-21. 16 Para que seja possível compreender a afirmação realizada é importante ter em mente que o precedente não é estratificado da parte da decisão que efetivamente consagra o resultado da lide (o que no Direito processual brasileiro chamamos de parte dispositiva), mas dos fundamentos discutidos pela corte.
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extensão das decisões, surgiu a necessidade de distinguir entre o que possui efeito vinculante ad futuram, o que é apenas uma observação periférica e o que não deveria ter efeito vinculante17. Já no século XIX, por influência de Bentham e de Austin, o precedente deixou de ser uma mera aplicação prática (persuasivo) e transformou-se em uma obediência pelos julgadores (vinculante), consagrando-se até o final do século como fonte do direito. Reconheceu-se, portanto, tanto a ideia de vinculação vertical18 como, principalmente, a dimensão horizontal do precedente. Cabe ao magistrado observar os precedentes, oriundos de órgãos ad quem e de seus próprios tribunais. A regra era, portanto, extraída do julgamento dos tribunais19, com a decisão judicial baseada no precedente20. Outra importante observação quanto à teoria dos precedentes é que sua utilização não se dá apenas por respeito ao passado como a priori seria possível supor. Neil Duxbury, na obra The Nature and Authority of Precedent, deixa claro que o respeito aos precedentes não é apenas uma atividade retrospectiva, mas também tem em perspectiva uma atuação futura, estabelecendo standards de conduta que serão considerados na estrutura performativa dos indivíduos21. É certo que, atualmente, muito se discute sobre as aproximações entre o sistema de common law e de civil law22, discussão marcada especialmente pela confiabilidade das decisões e da imprescindibilidade da segurança jurídica, anseio presente em ambos. O movimento de aproximação entre as duas famílias é latente e tende a aumentar, não havendo uma exata correspondência aos modelos ideais definidos doutrinariamente23. Dentro desta perspectiva, é possível perceber que em determinadas experiências, a interpenetração entre sistemas ocorre em um grau tão elevado que alguns autores falam em mixed legal systems, ou seja, sistemas legais mistos em que seria dificultoso determinar quais as características predominantes dos sistemas24. 17 Valer ressaltar que, embora a holding seja estratificada do caso concreto, isso não significa que esta estará necessariamente na fundamentação. A fundamentação é essencial para a holding, mas a holding não está contida apenas na fundamentação de um julgado. Nesse sentido ver, DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 91. 18 O precedente possui uma dimensão vertical, relacionada à necessidade dos tribunais a quo observarem os julgamentos dos tribunais ad quem, conhecida como stare decisis. SCHAUER, Frederick. Precedent. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1836384. Acesso em 9 jan. 2015. NOGUEIRA, Gustavo Santana. Stare decisis et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 19 LAMOND, Grant. Do Precedents create rule? Cambridge Journals Online. Cambridge: Cambridge University Press, vol. 1, issue 1, mar. 2005, p. 1-26. 20 SCHAUER, Frederick. Precedent. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/ papers.cfm ?abstra ct_id=1836384. Acesso em 9 jan. 2015. 21 DUXBURY, Neil. Op. Cit., p.4. 22 MARINONI, Op. Cit. e SCHAUER, Frederick. Why Precedent in Law (and Elsewhere) is Not Totally (and Even Substantially) About Analogy. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1007001. Acesso em 28 de outubro de 2012. 23 Alguns fatores contribuíram imensamente para essa aproximação, tais quais: institutos em que o civil law se inspirou, em sede de direito comparado, como por exemplo a influência do constitucionalismo norte-americano nos países de direito codificado (v.g. concepção da constituição e controle difuso de constitucionalidade), bem como a alteração estrutural do common law, que paulatinamente foi perdendo seu caráter rígido, formal e solene. Com o prestígio da lei e a adequação à complexidade do mundo moderno, houve uma reestruturação da dinâmica entre os precedentes e a lei. Um bom exemplo é a adoção, nos Estados Unidos da América, de uma Constituição escrita dotada de supremacia, norma no estilo romano. Nesse sentido ver MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 52. 24 Exemplo comumente levantado é do sistema legal de Québec, em que as matrizes do direito privado são derivadas tanto do civil law quanto do common law. Cf. Q.C., Willian Tetley. Mixed jurisdictions: common law vs. Civil law (codified and uncodified). Disponível em: http://www.unidroit.org/english/publications/review/articles/1999-3tetley1-e.pdf. Acesso em: 12 ago. 2015.
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Não obstante, tais considerações não servem para sustentar que toda a diferença entre os
sistemas processuais tenha desaparecido. Entretanto, definitivamente já não se pode considerar a distinção entre os sistemas de forma absoluta, parecendo ainda destinados a profundas modificações25. No próximo ponto de análise, será abordada a construção e aplicação dos precedentes na Suprema Corte norte-americana, destacando-se os casos que acabaram por se revelar precedentes emblemáticos (leading cases), bem como a existência ou não de algum critério previamente determinado nessa escolha. 3. A SUPREMA CORTE NORTE-AMERICANA E OS PRECEDENTES
A análise dos precedentes na Suprema Corte que aqui se propõe irá obedecer aos critérios
determinados para a comparação entre ambas as cortes no sistema constitucional, correspondendo à seguinte ordem de abordagem: a formação da relação entre o Direito Constitucional e os precedentes; a centralidade e o papel da teoria do precedente no desenvolvimento da jurisdição constitucional norte-americana; os autores vinculados aos precedentes; e, por fim, os efeitos sistêmicos decorrentes da investigação da teoria constitucional institucionalista e suas possível relação com a adoção de um sistema de precedentes. Embora a origem do common law se confunda com o Direito inglês, não se pode reduzi-lo a este26, sendo a experiência americana um caso peculiar. Embora tenha havido uma ruptura com os ingleses na independência americana27, o Direito americano seguiu, ao menos no início, o direito dos colonizadores28. Sem embargo, o Direito inglês não agradava aos colonos. Havia uma ideal de Estado-nação a ser seguido e este ideal visava uma rejeição aos caminhos seguidos pelos ingleses29. O pensamento republicano que se espraiava pelas colônias após a independência e a posterior definição da forma federalista de estado30 aumentou as diferenças entre os modelos, consubstanciando-se, em um direito muito menos formalista do que o seu predecessor31. 25 TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de Civil Law e de Common Law. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun., 2003, p. 152. 26 Existem outras experiências que comprovam a afirmação aqui sustentada. Uma experiência a se considerar seria o modelo escocês, no qual a teorização sobre o precedente é torrencialmente diferente do modelo inglês, tendo em vista não bastar um único julgado isolado para que haja força vinculante, mas uma série de julgados reiterados (similar ao que chamamos de jurisprudência). Outra experiência interessante é a do Canadá. A influência mista, tanto do common law como do civil law, atribuiu-lhe peculiaridades interessantes. Os dois sistemas interagem e exercem recíproca influência, havendo precedentes com eficácia persuasiva e outros com eficácia vinculante (os casos julgados pela Suprema Corte costumam ser precedentes com eficácia vinculante). Ver Q.C., Willian Tetley. Op. Cit. 27 Existiam dúvidas quanto ao sistema a ser adotado. Embora o civil law possuísse inúmeros adeptos, decidiu-se pela continuidade no sistema common law. Sem dúvida, alguns fatores contribuíram, como por exemplo: a língua inglesa; a colonização dos ingleses; o apoio de juristas renomados e, ainda, as escolas de direito que já marcavam presença desde a independência DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, 452-453. 28 Ainda na época da confederação entre as treze colônias, aplicavam-se os precedentes ingleses e suas leis, no que fosse compatível. Ver DAVID, René. Op. Cit., p. 449-450. 29 DAVID, René. Op. Cit., p. 452. 30 Para maiores considerações sobre a proposta daqueles que defendiam o federalismo, Ver HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os Artigos Federalistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 142 – 146. 31 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Op. Cit., p. 167.
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Diferentemente do modelo inglês de supremacia do Parlamento32, os norte-americanos basearam seu sistema constitucional na supremacia da Constituição. Essa é a maior diferença entre os sistemas americano e inglês, integrando a noção de rule of law do Direito norte-americano33. A criação e aplicação dos precedentes é o foco do sistema, e, em virtude disto, existem técnicas próprias e complexas para delimitar o que seria a holding e a obter dictum34. O estudo da formação dos precedentes na Suprema Corte Norte-Americana perpassa por uma análise do campo da teoria do direito, tendo em vista a necessária compreensão do procedimento dentro do sistema americano como um todo, bem como de importantes leading cases da Suprema Corte, que construíram a concepção de precedente hoje vigente. Uma teoria da decisão embasada nos precedentes é sempre realizada em relação ao caso concreto35. Seu desenvolvimento não foi fruto de teorizações abstratas ou idealistas36, mas da necessidade de tutelar as lides levadas ao conhecimento do Estado-juiz. Essa característica explica o baixo nível de abstração e a estruturação de um núcleo essencial, tornando o precedente adaptável, sem, contudo, perder sua essência37. Casos posteriores, além disso, podem influenciar na forma que um precedente é interpretado pela corte. A teoria dos precedentes38 faz parte da tradição39 jurídica americana, sendo parte da 32 Vale ressaltar que existem diferenças consideráveis entre o modelo inglês de supremacia do parlamento em
comparação ao modelo oriundo da experiência francesa. O primeiro, com traços definidos pela Revolução Gloriosa de 1688, não pretendia uma ruptura com o passado, mas a supremacia do parlamento significou uma contenção do arbítrio através da incorporação de preceitos ao antigo regime do common law. A segunda, pelos traços dados pela Revolução Francesa, pretendia uma ruptura com o passado, iniciando um novo paradigma político-jurídico em que houvesse uma supremacia na produção da lei, incorporando uma desconfiança muito grande dos magistrados que na França tinham sabida origem aristocrática. Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 48-50.
33 Considerando que esta é a maior diferença entre o sistema e não o fato de existir uma Constituição escrita, ver SCHWARTZ, Bernard. American Constitutional Law. The Cambridge Law Journal. Cambridge: Cambridge Law School, volume 14, November, 1956, p.7-26. 34 “Holding” são as regras a que o tribunal chegou como conclusão. Às vezes, o tribunal está criando uma regra nova, e às vezes está simplesmente ecoando uma expressão de uma regra encontrada em um caso anterior ou destilada a partir de múltiplos casos precedentes. obiter dictum – uma expressão latina que significa “algo dito de passagem”. É o que não se demonstra necessário para atingir, justificar ou explicar o resultado do caso. Também abreviada como dicta, são observações do tribunal sobre questões que não foram de fato colocadas pelo caso, ou conclusões sobre pontos que são desnecessários para o resultado efetivamente atingido pelo tribunal, ou explicações abrangentes acerca de toda uma área do direito, ou simplesmente adendos em larga medida irrelevantes. Às vezes, pode-se argumentar que a decisão do tribunal superior é simples dicta, e que não há nenhuma parte do holding que seja vinculante para os tribunais inferiores. (SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Uniformização Decisória em Demandas Coletivizáveis. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; MARINONI, Luiz Guilherme. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol.2. São Paulo: RT, 2014, p. 712). 35 Essa afirmação é a base da doutrina dos precedentes. As discussões no âmbito do common law costumam ter um inegável interesse prático e surgem da necessidade de resolução dos casos que chegam aos tribunais. Para maiores considerações sobre o tema, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 214 – 218 e MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 52. 36 Considera-se aqui como idealistas as construções abstratas e teóricas que costumam desconsiderar a realidade. Nesse sentido, utilizado a expressão idealistas de forma similar, ver SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p. 1-51. 37 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 217218. 38 A existência de uma teoria ou de uma doutrina dos precedentes não é pacífica. As críticas de Benthan e Austin à teoria geral dos precedentes são bem conhecidas e comumente citadas no debate. Para maiores discussões sobre o tema, ver DUXBURY, Neil. English Jurisprudence between Austin and Hart. University of Virginia Law School. Public Law and Legal Theory Working Paper Series, n.9, 2004. 39 Aqui, utiliza-se o termo tradição como a definida por António Manuel Hespanha, Cf. MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 34.
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compreensão do que efetivamente significa a lei40. Evita-se a denominada jurisdictional uncertainty, pelo possíveis problemas institucionais dela decorrentes41. Nos debates em torno da aplicação da norma constitucional no Direito norte-americano, faz-se, ainda, referência à concepção de eficiência econômica trazida por uma consistência da teoria dos precedentes42, associando a efetividade da prestação jurisdicional à confiança no Poder Judiciário. Além disso, a obediência à eficácia vinculante é inerente à teoria dos precedentes. Essa vinculação, no âmbito constitucional, pode ser analisada dentro de três parâmetros específicos. Pode-se analisar a teoria dos precedentes e seus efeitos vinculantes através: dos precedentes horizontalmente vinculantes, dos precedentes verticalmente vinculantes, bem como pelos efeitos sistêmicos decorrentes da adoção de um sistema dos precedentes43. A holding, estratificada de um ou vários casos44, formando a parte vinculante (binding) do precedente, possui um efeito pamprocessual, atingindo aos juízes em geral, que irão aplicar o precedente no futuro; e aos jurisdicionados, como standards de conduta a serem seguidos. Para definir o conteúdo de um precedente não é suficiente analisar seu resultado final, mas é imprescindível identificar a holding, estratificada de sua fundamentação45. Uma decisão na Suprema Corte dos Estados Unidos não é engessada pelo sistema da autocontenção. O tribunal pode, dessa forma, mudar suas decisões, tendo em vista na base das decisões está o precedente, dinâmico por essência. Pode, deste modo, transformar-se ao longo do tempo, expandindo-se ou contraindo-se consoante interpretações posteriores e colisões com outros precedentes46. A teoria dos precedentes atribui formas distintas de eficácia, quais sejam: a eficácia vinculante (binding), timamente relacionada ao stare decisis47, os chamados 40 MONAGHAN, Henry Paul. Stare Decisis and Constitutional Adjudication. Columbia Law Review. NY: Columbia Law School, vol88, 1988, p. 723-773. Para maiores discussões sobre a teoria declaratória e a teoria constitutiva – debate também existente no sistema brasileiro -, ver Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.24-33. 41 Para maiores considerações sobre a jurisprudência lotérica, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e súmula vinculante. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 169. 42 Para maiores considerações sobre uma análise econômica do direito e uma concepção de eficiência em relação ao Direito, ver POSNER, Richard. A economia da justiça, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 7-9. 43 Aqui, entende-se como efeitos sistêmicos aqueles relacionados à teoria institucionalista do Direito, principalmente a de Adrian Vermeule. O estudo da perspectiva institucional tem dois marcos bem definidos. Primero, realizando os delineamentos iniciais sobre o tema, pode-se citar o trabalho de Howard Gillman e Cornell Clayton, bem como o trabalho de Stephen Griffin. Cf. GILLMAN, Howard; CLAYTON, Cornell. The Supreme Court in American Politics: New Institutionalist Perspectives. Lawrence: Kansas University Press, 1999, p. 849-851 e GRIFFIN, Stephen. American Constitutionalism: From Theory to Politics. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999, p. 59-87. Outro marco institucionalista, este mais contemporâneo, é o clássico trabalho de Cass Sunstein e Adrian Vermeule. Ver: SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p. 1-55. 44 Vale dizer, o precedente não se confunde com um julgado ou com um case analisado pela corte. Cf. TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedentes Judicial – Autoridade e Aplicação na Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 6. 45 Este é um dos principais problemas relacionado ao nosso sistema. É insuficiente tentar aproximá-lo do conceito de parte dispositiva presente em uma sentença. MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 114-173. 46 SHAPIRO, David. The Role of Precedent in Constitutional Adjudication: An Introspection. Texas Law Review. Texas: Texas Law School, volume 86, Number 5, April 2008, p. 929-957. 47 Para Steven Calabresi existe uma divisão no Direito Constitucional entre originalistas e textualistas de um lado (Ex. Steven G. Calabresi, Randy Barnett, John Harrison, Gary Lawson, Justice Michael McConnell, Michael Stokes Paulsen, Saikrishna Prakash, e, às vezes, Akhil Amar) considerando que o texto constitucional, como foi originalmente entendido, seria o parâmetro para controle na maioria dos casos constitucionais; e, de outro lado, os seguidores dos precedentes da Suprema Corte (Ex. Charles Fried, Thomas Merrill, Ernie Young, e, de certa forma, Richard Fallon), que acreditam haver uma teoria bastante robusta do stare decisis na Constituição. Para o autor, os últimos estão errados, por três razões: a) não haveria nada no texto, história, ou significado original da Constituição que suportasse fortemente a teoria do stare decisis; b) a prática real da Suprema Corte é a de não seguir os precedentes, especialmente em casos importantes; e c) uma forte teoria do stare decisis é uma escolha política equivocada. Cf. CALABRESI, Steven G. Text Vs. Precedent in Constitutional Law. Harvard Journal of Law & Public Policy. Massachussets: Harvard Law School, vol. 31, 2008 p. 947-948. Para uma discussão sobre os méritos de uma visão forte de precedentes ou de uma visão fraca, ver capítulo 02 de GERHARDT, Michael J., The Power of Precedent. New York: Oxford University Press, 2008, p. 47-78.
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precedentes intermediários e os precedentes com eficácia meramente persuasiva48. Além disso, o precedente pode ser horizontalmente vinculante ou verticalmente vinculante. Denomina-se de eficácia horizontal a vinculação do tribunal aos seus próprios precedentes49. A presença do “autorrespeito” sempre esteve presente no common law, principalmente na experiência inglesa50. A discussão sobre a eficácia horizontal dos precedentes frequentou a corte quando esta decidiu sobre a revogação ou não do icônico caso Roe v. Wade51, apoiando-se na teoria dos precedentes para não se utilizar do overruling52. Em Planned Parenthood v. Casey53 a corte ficou dividida entre obedecer ao precedente anterior e considerar o aborto legal ou revisar seu precedente, declarando ter cometido um equívoco em Roe v. Wade. Alguns ponderavam que o efeito horizontal não era necessário para a Constituição54, outros defenderam exatamente o oposto55. O fato é que, embora a Suprema Corte tenha mantido o precedente, a teoria da eficácia horizontal, aparentemente irretocável, sofreu pesadas críticas. De outro ponto de vista, os precedentes podem ser verticalmente vinculantes e, portanto, vincular as cortes hierarquicamente inferiores. Vale dizer, a existência de um uma vinculação das cortes hierarquicamente inferiores não impede a evolução do Direito. Ao mesmo tempo em que a jurisdição constitucional norte-americana observa o princípio like cases should be treated alike56, também é inerente a esta que casos diferentes sejam tratados de forma diferenciada. Surge, nesse sentido, a técnica do distinguish que visa distinguir o precedente do caso concreto. O distinguish, diferente do overruling, pode ser realizado pela corte que produziu o precedente, bem como por aquela que está aplicando o precedente57. Caso a corte perceba que o precedente não se harmoniza com o caso concreto ou que o precedente teve sua holding delimitada de forma restritiva ou ampliativa, poderá aplicar a técnica do distinguish e afastálo58. Trata-se da introdução de uma nova regra legal que ratifica a existência do precedente, mas 48 Aqui, adota-se a classificação proposta por Patrícia Perrone, tendo em vista a confusão existente entre os autores do common law. Existem inúmeras outras classificações, mas a maior parte delas é confusa. Cf. MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 63. 49 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 119-120. 50 Há, contudo, uma diferença muito grande entre o autorespeito na experiência americana e o autorespeito na experiência inglesa. Esta última estava vinculada ao aotorrespeito absoluto, sendo absolutamente vedado qualquer tipo de overruling. Apenas em 1966 é que a House of Lords assumiu a possibilidade de realizar o overruling. Nesse sentido, ver DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 126-128. A experiência Americana já contava com essa possibilidade, Cf. GERHARDT, Michael J. Op. Cit., p. 19-20. 51 A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em 1973, decidiu que qualquer mulher, com base na décima quarta emenda, podia decidir sobre a continuidade ou não da gravidez. Disponível em: http://caselaw.findlaw.com/ us-supreme-court/410/113.html. Acesso em:10\07\2015. 52 KOMÁREK, Jan. Judicial Lawmaking and Precedent in Supreme Courts. LSE Legal Studies Working Paper. 2011, p. 9-10. 53 Planned Parenthood v. Casey , 505 US 833 (1992). 54 PAULSEN, Michael S. Abrogating Stare Decisis by Statute: May Congress Remove the Precedential Effect of Roe and Casey?. Yale Law Journal. New Haven: Yale Law School, vol. 109, n. 7, maio 2000, p. 1535-1602.. 55 FALLON, Richard H. Stare Decisis and the Constitution: An Essay on Constitutional Methodology. NYU Law Review. NY: NYU Law School, vol. 76, n. 570, 2001, p. 570-597. 56 Para uma discussão profunda sobre a atratividade deste princípio, considerado pelo autor sem força moral independente, e sua observância com base em: razões instrumentais e na observação de que diferenças de tratamento devem ser justificada, ver STRAUSS, David A., Must Like Cases Be Treated Alike? . University of Chicago, Public Law Research Paper No. 24, 2002, p. 2-30. 57 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 326-328. 58 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 326-328.
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adiciona uma dimensão material distinta59. É o mecanismo central para a evolução constitucional, o que torna possível a evolução do Direito em harmonia com a existência de precedentes vinculantes60. Nesse cenário, a técnica do distinguish aparecerá de duas formas distintas, quais sejam: o distinguish será usado para afastar o precedente, sendo aplicável outro precedente ou deflagrandose o chamado case of first impression; ou o distinguish acaba permitindo a mudança na holding, ou seja, ocorre a sua ampliação ou a sua restrição perante o caso em análise61. Essa característica dinâmica necessita de uma maior profundidade de análise. Seria tão simples revogar um precedente? Na verdade, o overruling e o distuinguish têm um custo pessoal para o justice, requerendo maior investigação dos fatos, justificação mais fundamentada, implicando em mais trabalho para escrever a fundamentação, trabalho extra para convencer juízes (quando se tratar de um órgão colegiado, uma maior exposição às críticas etc.)62 Contudo, juízes preocupados com a maximização da eficiência aplicariam as técnicas do distinguish e, através da nova discussão material gerada, trariam adequabilidade do Direito à sociedade63. Esse custo pessoal obviamente poderá ser maior ou menor, variando em seu grau de acordo com o precedente que se está deixando de aplicar (ou aplicando em parte), bem como depende das variáveis materiais e formais do caso64. Difere-se do distinguish o chamado inconsistent distinctions, no qual o precedente é aplicado mediante invocação dos fatos e argumentos que, contudo, não justificariam uma diferenciação65. Afasta-se o precedente, mas a distinção realizada é meramente fictícia66. A particularização excessiva pode ser considerada desarrazoada ou um equívoco e desqualifica a função de estabilidade presente nos precedentes. Contudo, também pode ter uma importante função no desenvolvimento do direito, possibilitando a percepção de novas diferenciações não aventadas quando criado o precedente originário. Essa busca pelo equilíbrio entre necessidade de evolução do sistema jurídico e segurança jurídica pode ser vista em outras técnicas utilizadas pela Suprema Corte em casos constitucionalmente relevantes. A sinalização (signaling) é utilizada quando a corte pretende 59 GENNAIOLI, Nicola; SHLEIFER, Andrei, The Evolution of Precedent. NBER Working Papers, National Bureau of Economic Research, Inc., 2005, p. 2-43. 60 Cf. STONE, Julius. Precedent and the Law: Dynamics of Common Law Growth. Sydney: Butterworths, 1985. 61 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 326334.0 62 “[…] we assume that changing precedent is personally costly to judges: it requires extra investigation of facts, extra writing, extra work of persuading colleagues when judges sit in panels, extra risk of being criticized, and so on”. Cf. GENNAIOLI, Nicola; SHLEIFER, Andrei. Op. Cit., p.4. Posner identifica a chamada “judicial preference for leisure” como fonte de estabilidade da lei, pois evitaria revisões inconsistentes e recorrentes do precedente. Nesse sentido, ver POSNER, Richard. The Economic Analysis of Law. 6. ed., Boston: Little Brown, 2003, p. 544. 63 Citando o desenvolvimento de Posner sobre maximização da eficiência dos juízes, ver GENNAIOLI, Nicola; SHLEIFER, Andrei. Op. Cit., p. 2. 64 Outra perspectiva bastante interessante é a teoria desenvolvida a partir do marco teórico realista, considerando que mudanças possibilitam aos juízes a ratificação de suas próprias preferências, alterando as preferências dos seus antecessores. Além disso, a mudança seria geralmente implementada por juízes mais extremistas, tendo em vista que suas visões comumente excederiam o custo pessoal para mudar a regra, o que traria a consequência supostamente negativa de que juízes mais equilibrados não alterassem o status quo. Cf. GENNAIOLI, Nicola; SHLEIFER, Ibid, p.2. 65 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p.206. 66 Essa atuação faz sentido na medida em que as cortes hierarquicamente inferiores não podem revogar (overruling) um precedente.
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modificar determinado precedente, entretanto, precisa preservar a confiança legítima dos jurisdicionados que seguiam o standard definido a anteriori. Muitas vezes, a solução encontrada é apenas sinalizar que o precedente estará superado em um próximo julgamento, trazendo uma modificação no agir de todos os atores da vida judicial, política e econômica, sem, contudo, deixar de aplica-lo ao caso em apreciação67. Em cortes constitucionais, a sinalização pode ser especialmente relevante, tendo em vista a natureza dos temas tratados e a possibilidade de que uma mudança repentina afete demasiadamente a confiabilidade na corte. A prerrogativa da corte de alterar seus próprios precedentes é inerente a um sistema que se queira adequado às complexidades sociais, e não seria diferente na experiência constitucional norte-americana. Em regra, ocorre o overruling quando: os precedentes não mais apresentam congruência social ou sistêmica; quando não obedecerem mais aos critérios de segurança jurídica; quando o overruling não violar a confiança nele depositada pelos jurisdicionados; bem como quando não for verificada a necessidade de superação do precedente pelo Poder Legislativo68. A técnica do overruling utilizada pela Suprema Corte não se confunde com o anticipatory overruling, quando as Cortes, em grau de recurso, afastam a aplicação de determinado precedente em que visualizam um provável overruling da corte que o produziu. Existem inúmeros debates sobre a possibilidade ou não do anticipatory overruling na teoria constitucional norteamericana69. De um lado, a possibilidade do anticipatory overruling poderia gerar um ganho de tempo, que pode ser importante em discussões constitucionais que lidam com efeitos sistêmicos, além de evitar a aplicação de um precedente que não possui mais “aplicabilidade”. Estariam sujeitos ao anticipatory overruling apenas os precedentes que estivessem desgastados, em que a Suprema Corte espera apenas um leading case para declarar o overruling do precedente. Em Republic Steel Corp v. Maddox, a Suprema Corte Americana declarou que estaria esperando um caso ideal para afirmar a superação do precedente. A Fifth Circuit, em consonância com o afirmado pela corte, utilizou-se do anticipatory overruling. O justice responsável pelo caso, declarou que a Suprema Corte, ao apreciar a revogação, levantou tão alto o martelo do overruling que a queda do precedente era tão certa quanto a mudança das estações70. Não se confunde com o overruling – muito menos com o prospective overruling71 - o que a teoria do precedente chama de overriding. No caso especialmente polemico da Suprema Corte Americana, conhecido como Brown v. Board of Education, reabriu-se a discussão do 67 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 335. 68 Essas hipóteses são apenas exemplificativas. No sentido do texto, ver MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 237, 239. 69 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 402-404. 70 A técnica não poderá ser usada quando a Suprema Corte sinalizar que irá revogar, mas não o faz, pois decidiu manter a decisão em virtude da proteção à confiança legítima do jurisdicionado. Pensar de forma diferente seria conferir à Corte de Apelação prerrogativa de usurpar a competência da Suprema Corte. Ver MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 402-413. 71 No caso Molitor v. Kaneland Community, a Corte de Illinois revogou precedente que previa imunidade municipal, responsabilizando o município pelos danos sofridos por Thomas Molitor em um acidente de ônibus escolar, determinando o prospective overruling, ou seja, determinou que a decisão não fosse ser utilizada para casos pretéritos, possuindo eficácia vinculante a partir daquele momento. Contudo, a posteriori, teve que admitir uma exceção e aplicar o precedente para outras crianças, incluindo outros três irmãos de Thomas que estavam no acidente, sob pena de tratar crianças envolvidas no mesmo acidente de forma diferenciada. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 422.
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caso Plessy v. Ferguson72. Brown, impugnando a segregação de escolas para brancos e negros, recebeu a resposta que seria o primeiro passo para o fim da segregação racial. Neste caso, decidiu-se que a mera separação em razão da raça gerava um sentimento de inferioridade, não sendo aplicável a teoria dos separados mas iguais em cases sobre educação73. Embora possa ser facilmente confundido com um overruling, na verdade ocorreu um overriding, uma vez que apenas foi considerada a superação da segregação em relação à educação, embora tenha sido o leading case para que se procedesse uma mudança geral na doutrina dos separados mas iguais74. Dentro das matérias constitucionais especialmente relevantes para a teoria dos precedentes, pode-se citar as discussões sobre a deferência ante ações do Poder Executivo ou das decisões do Poder Legislativo75; acerca das decisões dos tribunais posicionados acima na hierarquia judicial (precedentes com eficácia vertical); a propósito das decisões dos tribunais situados no mesmo nível que o tribunal na hierarquia judicial (precedentes com eficácia horizontal); bem como sobre as decisões dos tribunais ou atores legais dos sistemas jurídicos estrangeiros76. Além disso, a preocupação com a segurança jurídica, com a confiabilidade institucional, e com a necessária dinamicidade do sistema constitucional, desenvolveu na teoria alguns mecanismos que evitam instabilidade, tal qual a impossibilidade da Suprema Corte de considerar os fatos hipotéticos como holding. Assim, fatos hipotéticos são considerados mero dictum, pois do contrário haveria uma violação à separação de poderes. Permitir que magistrados possam realizar considerações em tese e que tais considerações tenham efeitos vinculantes, seria legislar para situações que não foram efetivamente trazidas ao Judiciário77. Por fim, devemos ressaltar os efeitos sistêmicos advindos da adoção de uma teoria dos precedentes78. A primeira questão negligenciada pelas teorias que não desenvolvem uma abordagem institucionalista, é a que envolve os efeitos sistêmicos das decisão, ou seja, 72 Um dos casos mais criticados da história da Suprema Corte Americana, no qual o Tribunal examinara uma lei do Estado da Luisiana, declarando constitucional que brancos e negros usassem acomodações separadas em trens, sob o parco fundamento de que a mera separação de lugares a serem ocupados não importaria em violação do direito à igualdade, não se insurgindo contra a denominada doutrina dos separados mas iguais (separate but equal doctrine). Vide decisão em: http://www.pbs.org/wnet/jimcrow/stories_events_plessy.html 73 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 245-246. 74 Idem. 75 O clássico Chevron U.S.A. Inc. v. Natural Res. Def. Council mostrou como o tema da deferência foi importante para a Suprema Corte. Ele fornece as bases para determinar a extensão da deferência do tribunal com as decisões legislativas ou com a decisão de uma agência. O caso se espraiou por todo o sistema judicial norte-americano e a discussão sobre “deferência” ocupou todo o país. Cf. Chevron U.S.A. Inc. v. Natural Res. Def. Council, 467 U.S. 837, 844 (1984). O caso é bastante emblemático na experiência norte-americana, especialmente no que se refere à teoria dos precedentes, tendo em vista que seus efeitos sistêmicos. Além disso, serve como epicentro das discussões sobre a correitude argumentativa ou não da teoria dos precedentes. 76 Citando essas discussões como emblemáticas dentro do contexto da teoria dos precedentes, ver LAWSON, Gary. Mostly Unconstitutional: The Case Against Precedent Revisited, 5 AVE MARIA L. REV., 2007, p. 2-22. 77 MELLO, Patrícia Perrone Campos Op. Cit., p. 125. 78 As considerações institucionalistas apontam para uma nova agenda de pesquisa envolvendo o Direito Constitucional, em que uma teoria constitucional de viés institucionalista, a partir do que se considera como virada institucional, altera o foco de análise do fenômeno constitucional, passando a analisar outros aspectos igualmente importantes para a decisão. Procuram, portanto, desenvolver respostas mais completas para o sistema constitucional, considerando os arranjos e os diálogos desenvolvidos pelas instituições que compõem a sociedade. Para maiores considerações sobre a virada institucional, ver SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, No. 28, 2002, p. 1-51.
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suas consequências para os atores públicos e privados79. Trata-se de uma abordagem não perfeccionista, levando-se em conta uma análise mais profunda sobre a decisão, considerando as informações que o juiz possui, as interações entre cortes (nacionais e internacionais), a capacidade institucional de atender às demandas sociais etc.80. Se a previsibilidade e a confiança nas instituições são pontos positivos de uma teoria do precedente no âmbito constitucional, os efeitos decorrentes da previsibilidade pela geração de standards de conduta para instituições públicas, privadas e para os jurisdicionados se espraia por todo o sistema constitucional81, gerando outros efeitos sistêmicos. 4. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS PRECEDENTES Aqui, será realizada uma análise da teoria dos precedentes no Supremo Tribunal Federal. O objetivo desse ponto é analisar se existem elementos que foram capazes de considerar alguns julgamentos como precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro, observando se haveria alguma consistência racional na construção daquelas decisões, bem como se estas poderiam ser chamadas de precedentes para os casos que lhe são apresentados. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, merecem destaque a Emenda Constitucional 45, de 2004, que alterou o art. 102, §2º da Constituição Federal e acrescentou o art. 103-A ao texto constitucional, criando a súmula vinculante82, que tem observância obrigatória perante os juízes, tribunais e a Administração Pública, sob pena de reclamação direta ao STF. Em relação ao primeiro dispositivo, previu-se o efeito vinculante nas hipóteses de decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade. Quanto ao segundo dispositivo, teve-se, a partir de então, a previsão de súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo previsibilidade e uniformidade aos julgamentos, com o reforço da ideia de observância obrigatória dos julgados fixados pelos tribunais superiores83, inicialmente existente apenas nos sistemas de common law e, em 2006, a 79 Idem. 80 Idem. 81 Para um embate sobre a teoria dos sistemas através do olhar da teoria institucionalista, adotando como marco teórico a teoria dos sistemas complexos, ver VERMEULE, Adrian. The System of the Constitution. New York, NY: Oxford University Press, 2011, p. 14-38. Em uma outra perspectiva do sistema constitucional, dialogando muito com a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, ver NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 34-52. 82 Em 1963 o Supremo Tribunal Federal editou suas primeiras súmulas persuasivas. Sem embargo, a novidade introduzida com o instituto da súmula vinculante foi sua observância obrigatória, desenho que começou a ser delineado com a criação das súmulas persuasivas. Ver TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedentes Judicial – Autoridade e Aplicação na Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 39. 83 Para uma discussão interessante sobre a diferença entre os precedentes de origem norte-americana e do modelo das súmulas, pode-se citar a crítica desenvolvida por Lênio Streck, defendendo que não apenas a súmula não traz a norma com ela, como ela passará a ser interpretada e dar origem a novas normas, pois o texto nada é sem o sentido. Ela passa a ser aplicada de forma automática, através de subsunção, afastando-se o Poder Judiciário da análise do caso concreto, porquanto já que se tem o “texto pronto”, dispensando a interpretação (o que é um equívoco) e poderia ser aplicado de forma automática. A súmula, portanto, foi criada para resolver todos os casos futuros, como “supernorma” que possa prever todas as hipóteses (o que não ocorre se levarmos em conta a complexidade do direito). Já o precedente seria dinâmico em sua essência e dependeria de um cotejo com o caso concreto, justificando-se a utilização de qualquer técnica que não aplique o precedente, bem como se aquele caso efetivamente se enquadra no precedente. STRECK, Lenio Luiz, ABBOUD, Georges. Que é isto - o precedente judicial e as súmulas vinculantes?. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Lei nº 11.418 acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil, que tratam da repercussão geral e do recurso extraordinário repetitivo, de forma que não chegassem inúmeros recursos versando sobre a mesma questão no Supremo Tribunal Federal84. Essas referências nitidamente mostravam a preocupação com a formação de um precedente no âmbito do Supremo Tribunal Federal e com uma solução uniforme a casos com questões comuns que ingressam na Corte. Tal preocupação é relevante diante do quantitativo de casos no Supremo Tribunal Federal. De acordo com dados oficiais divulgados no endereço eletrônico do Tribunal, houve um aumento grande e constante do número de casos apresentados ao longo de sua história. No período entre os anos de 1990 e 2000, houve um aumento de quatro por cento de novos casos a cada ano, o que permitiu, nesse intervalo, um aumento de 18.564 para 105.307 de casos registrados por ano. Note-se que o período coincide com a democratização e após a entrada em vigor da Constituição de 1988, destacando que os casos em primeira instância na década de 1990 chegaram ao Supremo Tribunal de cerca de dez anos
mais tarde. O aumento, ainda que em proporções muito menores, continuou nos anos seguintes até 2006, quando a Suprema Corte recebeu 127.535 casos. Começa a partir de 2007 e dura até 2011 uma diminuição gradual e relativamente substancial no número de casos registrados no Supremo Tribunal Federal, coincidindo com a entrada em vigor da exigência de repercussão geral e do procedimento de recurso repetitivo previsto nos artigos 543-A e B do Código. Em 2007, existiam 119.324; 100.781 em 2008, seguido de 84.369 em 2009; 71.670 em 2010; 64.018 autuados em 2011 e 72.072 processos autuados em 2013, sendo que apenas 38.109 e 44.170 foram distribuídos em 2011 e em 2013, respectivamente. O acervo do Supremo Tribunal Federal, em 31/12/2014 contava com 56.677 processos e, até 31/01/2015, já foram recebidos 3.693 processos. Analisando pesquisa recentemente divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça no que diz respeito às súmulas sem efeitos vinculantes do Supremo Tribunal Federal, prevaleceram a sua elaboração em matérias relacionadas ao Direito Constitucional, Direito Civil e Processual Civil. Por outro lado, quando da análise das súmulas vinculantes, a pesquisa verificou que, pri meiramente, a matéria mais discutida estava ligada às questões constitucionais, seguidas de questões tributárias e de direito administrativo85. No caso das primeiras, as matérias objeto das súmulas em sua grande maioria estavam firmadas no Plenário, o que demonstra, de certa forma, maturação das matérias que pretendiam ser pacificadas em súmulas pelo Pleno. Porém, uma parte pequena não está assentada no Plenário, mas sim nas turmas e, ainda, há pequeno número de questões que sequer estavam sedimentadas nas turmas, neste último caso referentes às súmulas mais antigas. Já em relação às súmulas vinculantes, estas estão vinculadas ao pressuposto constitucional 84 Leonardo Greco sustenta que no caso do Supremo entender pela inexistência de repercussão geral, o tribunal superior estará deixando de proteger a Constituição. Haveria, assim, um verdadeiro paradoxo no sistema jurídico. Um indivíduo poderia chegar até a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas estaria impedido de chegar ao Supremo. Nesse sentido ver GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 43. 85 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de Bustamante; TEIXEIRA, Alice Gontijo Santos Teixeira; MACIEL, Gláucio Ferreira et al. A força normativa do direito judicial: Uma análise da aplicação prática do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 38.
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e legal de “reiteradas decisões sobre casos análogos” para suas respectivas criações. Neste caso, das 15 súmulas vinculantes analisadas pela pesquisa86, três fundamentavam sua criação em três ou até mesmo em um julgado anterior, como é o caso, por exemplo, da súmula vinculante n. 28, que teve como fundamento apenas a Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 107487. Apesar de indicar a existência de súmulas vinculantes não fixadas pelo Plenário, em todas as súmulas analisadas se verificou que a matéria havia sido ventilada em julgados decididos por ambas as Turmas do tribunal. No caso dos recursos representativos da controvérsia, as decisões do Tribunal Superior em grande maioria não efetuam, no momento do sobrestamento ou suspensão, um juízo de adequação da holding ao caso concreto. Na justificação da decisão de sobrestamento ou suspensão do processo, não há, na maioria dos casos analisados, uma comparação analítica entre os argumentos e as questões de direito presentes nos casos88. Da análise dos julgamentos da Suprema Corte Brasileira, pode-se observar que os processos decisórios não são explícitos. Como destacam Rafael Iorio e Fernanda Duarte89: Na verdade, os casos que são citados como precedentes não são necessariamente similares, como também não é possível distinguir nos votos aquilo que seria, na linguagem processual, holding e obter dicta, diferentemente do que ocorre no modelo norte-americano de tradição da Common Law, onde a lógica do stare decisis está inserida em uma cultura jurídica do precedente com caráter estruturante.
Essa dificuldade de critérios claros e objetivos para a formação e a distinção dos precedentes na Suprema Corte brasileira poderá sofrer um impacto ainda maior a partir do novo Código de Processo Civil90. Ao contrário do cenário do common law, a valorização dos precedentes ocorre pela própria codificação, que tenta implementar a valorização dos julgamentos dos tribunais, sobretudo superiores. Como constou no relatório do Senador Vital do Rêgo, “o respeito aos precedentes jurisprudenciais é uma das marcas do futuro Código, o que reduzirá o grau de imprevisibilidade jurídica que impera sobre os atores da vida civil”91. Até a versão da Câmara dos Deputados, havia um capítulo próprio, no Projeto do Código de Processo Civil, dedicado aos precedentes judiciais, que compreendia os artigos 520 a 522 do projeto. Esse capítulo compreendia um comando genericamente dirigido aos tribunais no sentido de que devem uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente. Em que pese o capítulo ter sido suprimido na versão do texto-base aprovada do Senado, a ratio não se modificou. Nessa perspectiva, ocorre, no texto legal, o aprimoramento da disciplina 86 Refere-se às súmulas vinculantes 1, 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 19, 20, 21, 24, 26, 28, 29, 31 e 32. 87 Ibid., p. 40. 88 Ibid., p. 107. 89 IORIO FILHO, Rafael Mario; DUARTE, Fernanda. A Lógica Dos Precedentes Judiciais Das Súmulas Vinculantes Do Supremo Tribunal Federal. IX ENCONTRO ABCP. Brasília: 2014, p. 3-4. Disponível em http://www.encontroabcp2014. cienciapolitica.org.br/resources/anais/14/1403745601_ARQUIVO_A_logica_dos_precedentes_judiciais_das_ Sumulas_Vinculantes_do_Supremo_Tribunal_FederalVERSAOFINAL[1].pdf. Acesso em 20 jul. 2015. 90 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Precedente e IRDR: algumas considerações. In: DIDIER JR, Fredie; ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes. Salvador: Jus Podvm, 2015, p. 567-590. 91 O relatório do Senador Vital do Rêgo está disponível em http://www.senado.leg.br/atividade/materia/getPDF. asp?t=157517&tp=1. Acesso em 9 jan. 2015.
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dos recursos especial e extraordinário repetitivos, bem como a criação de um mecanismo de tratamento coletivo de demandas nos tribunais estaduais e federais – o “incidente de resolução de demandas repetitivas” –, que será tratado no próximo item, objetivando a celeridade e o respeito às teses jurídicas fixadas. O primeiro artigo da parte recursal, o art. 926 da novel legislação, indica que a jurisprudência dos tribunais deve se manter íntegra, coerente e estável, com a ideia de que os tribunais devem respeitar seus precedentes, dando-lhes publicidade. O artigo seguinte, 927, ao tratar dos precedentes de observância obrigatória aí inclui diversas questões decididas pelo Supremo Tribunal Federal, dispondo sobre: a) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; b) os enunciados de súmula vinculante; c) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; d) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. Ademais, o novo Código, em seu texto, em seus institutos, seja aperfeiçoados – como os recursos repetitivos – seja criados – como o incidente de resolução de demandas repetitivas -, traz a previsão expressa do distinguish do caso concreto em relação à tese jurídica fixada, bem
como da superação do precedente, o overruling, quando poderá ser fixado o efeito ex nunc, isto é, poderá ocorrer a modificação da tese para aplicação às demandas futuras, mas não as que já tiveram a tese jurídica inicialmente fixada. Nessa perspectiva, o novo Código busca atribuir ao precedente um caráter argumentativo e racional, que esteve ausente na maior parte das propostas anteriores de criação de mecanismos processuais de unificação do direito por parte da jurisprudência92. Além disso, pretende “regular os casos em que a eficácia vinculante não incide, de modo a permitir a correta distinção entre o caso que deu origem ao precedente vinculante e um caso concreto posterior que, por ser diferente daquele, não deva ser julgado da mesma maneira”93. Ocorre, porém, que não se espera que, a partir da nova previsão legislativa, o distinguish e a comparação de casos sejam feitos através de um mero carimbo, mas sim a partir de uma argumentação racional, antecedida de um contraditório pleno e, no caso de superação da tese firmada, a decisão deverá considerar os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia, e precedida de oportunidade de participação, inclusive com a possibilidade de realização audiências públicas, oferecendo-se, em uma via de mão dupla, para a sua superação, iguais instrumentos que propiciaram a sua formação, de maneira a realizar o contraditório como garantia de influência e a não surpresa94. 92 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de Bustamante; TEIXEIRA, Alice Gontijo Santos Teixeira; MACIEL, Gláucio Ferreira et al. Op. Cit., p. 137. 93 Relatório‑Geral Substitutivo, Deputado Paulo Teixeira apresentado à Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei n. 6.025, de 2005, ao Projeto de Lei 8.046, de 2010, ambos do Senado Federal, e outros, que tratam do “Código de Processo Civil” (Revogam a Lei 5.869, de 1973), p., p. 39. 94 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 118.
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5. CONCLUSÃO Apesar da aproximação entre as duas tradições jurídicas distintas – common law e civil law -, pode-se constatar que a formação e a aplicação do precedente nas Supremas Cortes norte-americana e brasileira ainda representam cenários distintos. Enquanto nos Estados Unidos se encontra uma teoria consolidada sobre os precedentes, no Brasil, percebe-se que, até o momento, os casos que são citados como precedentes não são necessariamente similares, como também não é possível distinguir a estrutura dos precedentes. Com o novo Código de Processo Civil, o precedente deve alcançar um caráter argumentativo e racional, que esteve ausente na maior parte das propostas anteriores de criação de mecanismos processuais de unificação do direito por parte da jurisprudência. A expectativa é a de que, essa cultura de precedentes implementada pela via legislativa seja permeada por uma argumentação racional no Poder Judiciário, antecedida de um contraditório pleno e, no caso de superação da tese firmada, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
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O CLAMOR POR RECONHECIMENTO E A LUTA POR SOBREVIVÊNCIA DAS CLASSES MARGINALIZADAS PERANTE A REPRESSÃO COTIDIANA DO ESTADO POLICIAL
Renato Nunes Bittencourt 1. INTRODUÇÃO Em nome da garantia da realização dos interesses empresariais em seus investimentos nos eventos espetaculares, cada vez mais as tecnologias da vigilância são aperfeiçoadas pelos poderes estabelecidos nos seus esforços pelo estabelecimento da assepsia social, consolidando assim o monitoramento das pessoas que habitam os espaços geográficos marginalizados socialmente e economicamente. Nessas condições, podemos considerar a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como novas configurações do Panóptico, tal como proposto por Jeremy Bentham em seus devaneios utópico-iluministas da incipiente modernidade e os subsequentes paradigmas modernos da sociedade disciplinar, atendendo assim aos projetos plutocráticos das grandes corporações capitalistas, que podem então realizar os seus empreendimentos ilícitos sem que corram os riscos de sofrer os ataques da dita violência marginal. Veremos no decorrer deste artigo alguns aspectos da degradação existencial promovida pelo sistema capitalista em vigor aos indivíduos habitantes das zonas geográficas desprovidas de autênticas políticas oficiais de emancipação social. Para tanto, fazemos uso das contribuições conceituais e analíticas de diversos autores da Filosofia, da Sociologia, da Geografia, da Economia e outros mais, promovendo assim um estudo multidisciplinar sobre a violência dos aparatos repressivos do Estado contra as classes economicamente desfavorecidas e de que maneira o espectro da exclusão social molda a sua subjetividade. 2. A VIOLÊNCIA CONTRA A POBREZA Os habitantes dos rincões topograficamente representados como os espaços sociais marginais brasileiros encontram-se despidos cada vez mais de toda dignidade humana, tal como se fossem animais ferozes que devem ser enjaulados perpetuamente, tendo-se em vista a manutenção da segurança pública, isto é, da preservação do conforto máximo dos cidadãosconsumidores. Não é a toa que as configurações espaciais de toda zona de exclusão social se representam visualmente como locais impróprios para circulação de todos os ditos “cidadãos de bem”, seleta casta social detentora dos meios de produção e plenamente capacidade a participar dos processos de consumo. Conforme destaca Löic Wacquant,
Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude de bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônicos continuará a buscar no “capitalismo de pilhagem” da rua (como diria Max Weber), os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano (WACQUANT, 2011, p.10).
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A estrutura da metrópole, como um grande sujeito heterogêneo, cada vez mais se revela como um laboratório precário em que a sociedade urbana vivencia os dramas e desafios da sua coesão interpessoal e experimenta as formas de superar as ameaças contra sua preservação: “A visão da cidade que perdeu seus corpos e clamores constitui um estereótipo da premonição do desastre” (JEUDY, 2005, p. 93). Os sonhos dos habitantes das comunidades periféricas pelo advento de um futuro melhor ficam embotados pelas ameaças de aniquilamento a cada instante pelas forças reativas que a espremem de todos os lados, tanto os criminosos como os policiais que moralmente não se encontram distintos daqueles. Toda estrutura social regida pelo processo de segregação das massas humanas economicamente desvalidas não hesita em manter essa população sob os riscos existenciais do medo perante a violência gratuita. Para Löic Wacquant, “Talvez o fato mais significativo na vida cotidiana do gueto atual, contudo, seja a extraordinária prevalência do perigo físico e o agudo senso de insegurança que dominam as ruas” (WACQUANT, 2005, p. 57). A condição da periferia não se configura apenas como um problema geográfico, urbanístico, mas talvez seja oriunda de uma perspectiva muito mais próxima de uma questão ontológica; cada cidade do mundo possui de maneira idiossincrática as suas zonas de exclusão, os seus espaços segregados, as suas áreas marginalizadas, em suma, as suas periferias, e, nessas circunstâncias, o que haveria de “comum” entre todas elas? Trata-se do local da alteridade (absolutamente inaceitável para os padrões normativos do imaginário social regulado pela ideologia capitalista do controle social), o “grande outro” do qual a sociedade asséptica adepta da benesse capitalista anseia manter a distância segura: “Os favelados sabem que são a “sujeira” ou a “praga” que seus governantes preferem que o mundo não veja” (DAVIS, 2011, p. 111). A periferia se torna simbolicamente um organismo monstruoso corrompido internamente pelo cancro da sujeira, do caos, da barbárie, o purgatório de todos os seres desprovidos não apenas da efetivação dos seus direitos civis, mas de sua própria humanidade. Tal como argumenta Löic Wacquant, Em vez de difundir-se por todas as áreas da classe trabalhadora, a marginalidade avançada tende a concentrar-se em territórios bem-identificados, bemdemarcados e cada vez mais isolados, vistos por pessoas de dentro e de fora como purgatórios sociais, infernos urbanos onde apenas o refugo da sociedade aceita habitar (WACQUANT, 2005, p. 172).
Os espaços segregados das grandes metrópoles nasceram do sectarismo social acoplado ao poder econômico capaz de desorganizar todas as aglomerações das massas, transferindoas para os confins da cidade, impedindo assim o acesso desse agregado humano aos recursos públicos supostamente disponíveis para todos os indivíduos; quanto mais distante do coração da cidade, mais fácil se torna a capacidade de alienar a massa humana das decisões políticas, em especial quando esse agregado humano não possui acesso pleno aos meios informativos que possibilitariam sua conexão imediata com as redes sociais e demais canais comunicacionais da Internet. Nessas condições, os clamores dos renegados sociais não chamam a atenção da bonomia social, exceto quando a miséria dos excluídos se torna fenômeno de consumo pelos meios de comunicação adeptos da linha sensacionalista ou passeatas se tornam apenas um evento social, um passeio turístico. Katia Canton argumenta que O que era antigo foi com frequência posto abaixo para dar lugar ao moderno,
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ao novo; desde então, crescem os desequilíbrios na distribuição de renda e de benefícios, aumenta a tensão social e abrem-se feridas violentas, resultantes da intolerância humana. E a metrópole, assim, vive em precário e pulsante equilíbrio (CANTON, 2011, p. 23).
Certamente, um dos sintomas mais vilipendiosos do moderno processo de constituição espacial da elite da sociedade industrial se constituiu através da progressiva gentrificação territorial, isto é, a expulsão dos moradores economicamente desfavorecidos das áreas de intervenção urbana regida pela anuência do Estado autoritário atrelado ao poder financeiro; esses espaços remodelados passam então a receber moradores mais abastados ou funções sociais mais sofisticadas do ponto de vista da sociedade de consumo, evidenciando assim o poder da especulação imobiliária na constituição da divisão territorial da estrutura da cidade. Para a efetivação desse dispositivo autoritário, o Estado policialesco, que atua em plena submissão dos interesses empresariais, se vale do monopólio legítimo da força como uma instância punidora da pobreza para expulsar desses espaços as populações desprotegidas legalmente, sejam os favelados, tribos indígenas, camponeses e toda a massa humana anônima que é constantemente espoliada pelos detentores dos meios de produção e suas extensões coercitivas: “É o caso de se perguntar: a forma extrema da gestão punitiva da miséria não consiste em suprimi-la pela eliminação física dos miseráveis?” (WACQUANT, 2008, p. 114). Grande parte das aglomerações das comunidades periféricas, favelas e guetos surgiram justamente da expulsão dos agrupamentos humanos de locais que, antes alheios aos interesses econômicos dos donos do poder, se tornam objetos de sua cobiça infame. Isso ocorre pelo fato de que
Os espaços que não são funcionais à nova lógica sistêmica não conseguem se inserir na economia mundial. Dentro das cidades, isso se expressa na dualização acelerada de suas configurações sociais, levando a uma verdadeira separação de seus processos urbanos (DUPAS, 1999, p. 47).
A “limpeza social” visa favorecer os negócios da indústria de turismo, tornando a estrutura da cidade plenamente asséptica para os visitantes que poderão assim consumir sem maiores preocupações com a iminência de sofrerem interferências inesperadas dos miseráveis nos seus momentos de fruição do lazer. Tanto pior, quando essas comunidades de pessoas imputadas como economicamente inviáveis recebem os aparatos disciplinares das UPPs, os empresários do mercado de consumo e de diversão se aproveitam dessa situação, reconfigurando os espaços societários desses locais, abrindo assim boates, restaurantes e outros negócios altamente lucrativos destinados ao usufruto das camadas economicamente favorecidas. O habitante da favela é vizinho da casa de entretenimento, mas sequer pode cogitar participar da festa, pois não é capaz de pagar para entrar nesse ambiente sofisticado. Eis assim uma nova forma de humilhação contra essa massa humana, uma genuína violência simbólica contra sua subjetividade, pouco escutada pela cômoda classe consumidora, que anseia apenas gozar os prazeres da vida. Tal como aponta incisivamente Slavoj Žižek, “O que se afirma cada vez mais como direito humano central na sociedade capitalista tardia é o direito a não ser assediado, que é direito a permanecer a uma distância segura dos outros” (ŽIŽEK, 2009, p. 44). Para que esta classe abastada possa realizar seus apetites hedonistas é imprescindível, em JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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contraparte, que os habitantes dos espaços segregados sejam privados de todos os seus direitos de consumo e, de preferência, que somente saiam de casa para irem ao trabalho. A grande satisfação do consumidor autocentrado é acreditar que somente ele é capaz de usufruir um dado produto, pouco se importando acerca da procedência duvidosa desse produto adquirido, certamente fabricado em condições humanas horríveis de exploração laboral, desgaste psicofísico e os mais diversos níveis de assédio. De acordo com Axel Honneth, Se a primeira forma de desrespeito está inscrita nas experiências de maus-tratos corporais que destroem a autoconfiança elementar de uma pessoa, temos de procurar a segunda forma naquelas experiências de rebaixamento que afetam seu auto-respeito moral: isso se refere aos modos de desrespeito pessoal, infligidos a um sujeito pelo fato de ele permanecer estruturalmente excluído da posse de determinados direitos no interior de uma sociedade (HONNETH, 2009, p. 216).
A sociedade excludente do regime capitalista não visa estabelecer a justiça social, mas sim efetivar meios práticos de se provocar cisões sociais que legitimem a aplicação da repressão oficial contra os desfavorecidos materialmente, bastando assim um pretexto escuso para tanto. Será que apenas nas favelas estão concentradas as atividades dos narcotraficantes? Por que os aparatos policiais não fazem incursões radicais nas zonas abastadas? O crime do pobre é ideologicamente diferente do crime do rico. Marilena Chauí disseca com precisão esse problema ao destacar que,
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade (CHAUÍ, 2007, p. 84).
A violência é a regra da condição periférica, pois os conceitos que regem as vidas das pessoas desprovidas da proteção do Estado se regulam pelo descaso de uma existência triste, na qual apenas a iminência da morte é certa para a massa humana habitante desses espaços segregados, e as ações arbitrárias dos aparatos policiais contra os indivíduos alienados dos seus direitos civis se configura como uma ameaça constante da qual poucos se interessam em transformar. Conforme aponta Walter Benjamin,
Os fins da violência policial seriam sempre idênticos aos do reino do Direito, ou pelo menos teriam relação com estes é inteiramente falsa. Pelo contrário, o “Direito” da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ela deseja alcançar a qualquer preço (BENJAMIN, 2011, p. 135).
O órgão público que mais deveria zelar pela paz social é aquele que, pelo contrário, mais favorece a perpetuação do mal-estar coletivo: a polícia, representante do infame aparelho repressivo do Estado (ALTHUSSER, 1985). Ao invés de promover a cidadania, o autoritarismo fascistóide das forças policiais triunfa sobre a ordem civil impondo dor e humilhação para todos JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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aqueles que estão desamparados politicamente perante a arbitrariedade do poder plutocrático. Nessas condições, a proposta parlamentar de se desmilitarizar as forças policiais talvez favoreça o desenvolvimento de uma nova relação corporativa entre Estado e sua população. Conforme argumenta Axel Honneth, Os maus-tratos físicos de um sujeito representam um todo de desrespeito que fere duradouramente a confiança, aprendida através do amor, na capacidade de coordenação autônoma do próprio corpo; daí a consequência ser talvez, com efeito, uma perda de confiança em si no mundo, que se estende até as camadas corporais do reconhecimento prático com outros sujeitos, emparelhados com uma espécie de vergonha social (HONNETH, 2009, p. 215).
A massa humana confinada em seu espaço de exclusão social, desprovida de sua cidadania, sequer pode lutar adequadamente por seus direitos políticos, tornando-se assim um mero dado estatístico para as estruturas repressivas da sociedade moderna e suas hierarquizações plutocráticas, estigmatizando-se no imaginário coletivo como a malta que está sempre pronta para perturbar a ordem estabelecida; dessa maneira, a ação policial se pauta especialmente pela truculência contra os pobres, punindo-os plenamente por suas carências materiais. Conforme aponta Löic Wacquant,
Essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional-multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição originada da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a “subversão interna” se disfarçada em repressão aos delinquentes (WACQUANT, 2011, p. 11).
Na sociedade de consumo, o pior crime que existe é o fato de ser pobre, pois assim o indivíduo não participa da dinâmica rotatória de aquisição e descarte de bens materiais; pelo contrário, aos olhos da elite afluente, essa massa humana desprovida de poder aquisitivo tornase a grande ameaça aos economicamente providos. Subordinada aos parâmetros normativos do mercado, a cidadania só é concedida e reconhecida por aqueles que se encontram inseridos nos conceitos de produção e de consumo. Passa, assim, a existir “uma sistemática força de atração entre pobreza extrema e riscos extremos” (BECK, 2010, p. 49). Além de lutar pela sobrevivência cotidiana submetendo-se ao regime alienante do trabalho subalterno, habitando em moradias precárias, desprovido de poder aquisitivo para consumir os bens materiais conforme suas necessidades orgânicas, o homem periférico situa-se no centro de duas forças conflitantes produtoras de violência, ódio, medo, insegurança: as associações criminosas e as forças policiais, ambas desumanizadoras das massas oprimidas das zonas periféricas: “Talvez o fato mais significativo na vida cotidiana do gueto atual, contudo, seja a extraordinária prevalência do perigo físico e o agudo senso de insegurança que dominam as ruas” (WACQUANT, 2005, p. 57). As elites econômicas fogem da insegurança urbana encastelando-se em condomínios de segurança máxima, passeiam em centros comerciais assépticos e encontram ao seu dispor todos os medicamentos necessários para o controle dos distúrbios psíquicos, invertendo assim a lógica prisional de confinamento das massas indesejáveis. Tanto no estabelecimento dos shoppings centers como na constituição geográfica dos condomínios ocorre a tendência de se subverter a JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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organização societária da esfera pública em prol da “idiotia”, isto é, a privatização da experiência de mundo em uma prática de vida centrada nos limites domiciliares ou dos espaços comerciais integrados e pretensamente autossuficientes. Conforme argumenta Marcelo Lopes de Souza,
Quem protagoniza a auto-segregação residencial, habitando em condomínios exclusivos e consumindo em shopping centers, pode pensar conseguir, por essa via, garantir a “sustentabilidade” de sua qualidade de vida em pelo menos até que, por exemplo, um seqüestro demonstre que a auto-segregação não garante total invulnerabilidade contra as manifestações do esgarçamento do tecido social na cidade real existente fora dos limites de condomínios e shopping centers (SOUZA, 2010, p. 265-266).
Um dos efeitos mais fortes dessa disposição consiste na incapacidade do usuário desses dispositivos da sociedade administrada se relacionar com a estrutura citadina em sua multiplicidade de signos, tornando-se antes um indivíduo encastelado em seu microcosmo, alheio assim aos clamores sociais de sua cidade. Michel Agier aponta que
Por toda a parte, o monopólio da “violência legítima” conduz à privatização em detrimento de seu controle público, pelo Estado. Em linha direta dessa securização privada do espaço urbano, a implementação de barreiras urbanas e o aparecimento de comunidades residenciais fechadas – gated communities ou “condomínios fechados” – tendem a multiplicar as divisões no seio da cidade ou a criar “cidades privadas” na periferia dos antigos centros. Uma atitude protecionista e profilática emana das classes superiores e médias como temor e rejeição das manifestações da diferença social (AGIER, 2011, p. 122).
No entanto, o homem periférico é obrigado a encarar corajosamente toda essa efervescência de horror e degradação social sem qualquer outro subterfúgio concreto que destrua violentamente as garras que o oprimem, desenvolvendo no máximo uma esquálida fé na intervenção divina por dias melhores no porvir. Para as massas humanas desprovidas de representação social, resta-lhes a indiferença urbana e, quando muito, fragmentos informativos nos aparatos comunicacionais. Lucio Kowarick comenta que A violência está fortemente presente no cotidiano de nossas cidades, não apenas a da polícia ou dos bandidos, mas também a dos salários, transportes e jornadas de trabalho, isso para não falar das situações de doenças, acidentes e desemprego ou nas formas espoliativas de moradia. E enquanto assim for, muitos permanecerão na condição de subcidadania. Sem direito à cidade (KOWARICK, 2000, p. 55).
Na vida periférica marginalizada a experiência religiosa se torna um lenitivo para as dores do mundo, um consolo metafísico que permite ao indivíduo suportar pacientemente os tormentos da existência miserável; entretanto, para quem compreende o mundo para além das expectações da fé, os signos religiosos se revelam falseadores, mecanismos de alienação existencial. Com efeito, a dimensão simbólica do sagrado foi excluída violentamente da experiência existencial do homem periférico, não obstante a proliferação de inúmeras seitas religiosas das mais diversas tendências teológicas nos bairros populares. Contudo, essa busca por “Deus” muitas vezes se delineia como uma fuga narcótica diante da realidade regida pela dor e pelo medo. Marx, em sua célebre colocação, destaca que A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o
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ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola (MARX, 2005, p. 146-147).
Na sociedade repressiva do capitalismo tirânico, mesmo a linguagem adquire um caráter normativo plenamente autoritário, estabelecendo-se simbolicamente as distinções sociais através do poder da palavra e dos atos de fala considerados linguisticamente aceitáveis pelo sistema gramatical estabelecido por uma elite letrada conservadora e formalista; esse preconceito em relação ao falar popular nada mais é do que o dispositivo coercitivo que visa negar a pluralidade discursiva dos vários grupos sociais que habitam a unidade da cidade, considerando-os “analfabetos”, “ignorantes”, “grosseiros” etc. Poucas vozes oriundas dos bairros periféricos conseguem ser ouvidas em uma realidade verticalizada nas suas relações de poder. O testemunho dessa miséria existencial, significa assim, a possibilidade de se explanar publicamente a aspereza de uma vida sem maiores perspectivas senão a sobrevivência, isto é, a manutenção sôfrega de uma vida menor, sem progresso. Conforme argumenta Beatriz Sarlo, A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração; a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou do seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a da sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (SARLO, 2007, p. 24-25).
A opressão dos aparatos repressivos do Estado estigmatiza essa massa humana como marginal, fora dos padrões estabelecidos pelo poder pecuniário da sociedade afluente. Na estrutura normativa da existência mercantilizada, não há espaço para “consumidores falhos, incompletos, imperfeitos” (BAUMAN, 2005, p.22). Na dinâmica societária do capitalismo tardio, o ato de consumo se torna passaporte para a cidadania e, tanto pior, se confunde com essa, gerando assim uma estratificação social regida pela crença no poder absoluto do dinheiro como garantidor dos direitos civis. Löic Wacquant, com muita pertinência, salienta que “existe o estigma de ser pobre no seio de uma sociedade rica, na qual a participação ativa na esfera do consumo tornou-se condição sine qua non da dignidade social – um passaporte para a cidadania, mesmo entre os despossuídos” (WACQUANT, 2005, p. 33). A vida periférica se segmenta na ambivalência entre a existência precária regida pelos signos da morte, da exclusão e da violência e a inexistência simbólica perante a consciência da opinião pública que apenas conhece essa massa social sob a perspectiva distorcida dos meios de comunicação, sensacionalistas e maniqueístas na configuração de sua agenda social. Nessas condições, a pobreza se associa aos signos da imoralidade. Conforme salienta Arjun Appadurai,
Vivemos agora num mundo articulado de modo diferente pelos Estados e pela Mídia, em diferentes contextos nacionais e regionais, em que o medo frequentemente parece ser a fonte e o fundamento para campanhas intensas de
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violência grupal, que vão de distúrbios civis até extensos pogroms (APPADURAI, 2009, p. 13).
Em uma realidade desprovida de transcendência e desassistida pela estrutura de bem-estar social do Estado (legiferante apenas para os segmentos sociais economicamente privilegiados), o que une de modo tênue os indivíduos é a solidariedade, granjeando assim a sobrevivência sofrida de um cotidiano fragilizado, inseguro. Segundo Luis Carlos Fridman, No mundo de todas as escolhas, o medo também faz muitos aferrarem-se ao sonho de uma comunidade ultraprotetora, cuja defesa tribal não raro descamba para a violência. Nessas condições, o comprometimento com causas comuns ou o engajamento solidário torna-se muito mais difícil (FRIDMAN, 2000, p. 76)
Por conseguinte, mesmo o ato de dormir se torna uma experiência de aflição, pois nunca se sabe o que virá; jamais se pode permanecer tranquilo por muito tempo, é preciso ficar atento sempre. Para Jessé Souza,
A violência é endêmica, cotidiana e aflora a superfície quase sempre de forma abrupta com consequências devastadoras para os envolvidos. A violência nua e crua não é portanto, o “outro” da vida comunitária, no sentido de ser a sua negação, mas é, ao contrário, de certa forma, o seu núcleo (SOUZA, 2006, p. 123).
O quinhão para pessoas alheadas do bem comum é a frágil esperança de melhorias em um futuro incerto, sem que haja da parte dessas pessoas a criação de um movimento de resistência contra a opressão diária; todos os projetos existenciais mais complexos se esvaem perante a insegurança da vida periférica. Muniz Sodré argumenta que
A violência terrorista do Estado tecnoburocrático – que converte a nação em álibi ou refém para a montagem de seu sistema de produção e segurança – induz à destrudo difusa das massas localizada em atitudes antissociais, focos de criminalidade ou explosões individuais de violência. Esta indução está implícita no descaso para com os investimentos em educação, saúde e geração de empregos (SODRÉ, 2006, p. 102).
O projeto moderno-racionalista de ampliação de beneficiamento social graças ao desenvolvimento tecnológico revelou-se falho em sua amplitude, favorecendo apenas os segmentos sociais providos economicamente, enquanto aos pobres destinou-se como paga toda violência oficial. Desse modo, os excluídos sociais tendem a permanecerem imersos nesse processo contínuo de marginalização existencial, como um infernal círculo vicioso. Para Jock Young,
A transição da modernidade à modernidade recente pode ser vista como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente. Isso é, de uma sociedade cuja tônica estava na assimilação e na incorporação para uma que separa e exclui (YOUNG, 2002, p 23).
Apesar da unidade política das cidades dos grandes urbanos, há nelas a divisão espiritual, configurando-as como uma “cidade partida”, na feliz expressão de Zuenir Ventura (1994). Não obstante a realização de eventos que aparentemente geram a comunhão social, em verdade permanece a sua cisão, pois os recursos que promovem supostamente a integração social são produzidos pelos detentores dos meios de produção, que estabelecem assim relações verticais JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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nos processos de circulação dos bens sociais, dos quais as massas urbanas não podem adquirir ou participar: Os Jogos Olímpicos ou a Copa do Mundo de Futebol não são planejados pelas corporações empresariais (leia-se COI ou FIFA) tendo em vista a presença das massas humanas mais humildes em seus espetáculos maravilhosos. Alba Zaluar aponta que Nada ordena claramente, na nossa sociedade, o contato entre os pobres e os ricos. Ao contrário, somos instados a conviver alegremente nos estádios de futebol, nos desfiles de escolas de samba e na nossa cozinha. Mas vivemos em mundos separados, cada vez mais longe um do outro (ZALUAR, 2000, p. 11).
O propalado estereótipo do povo brasileiro como “simpático”, “legal”, “cordial”, dentre outros adjetivos, falseiam ideologicamente nossas relações sociais, mascarando assim os conflitos internos na configuração da hierarquização do poder. Marilena Chauí apresenta uma indagação sobre a constituição de nossas relações sociais pautadas nas hierarquizações coercitivas entre os indivíduos segmentados por seus estratos econômicos:
O que é a sociedade brasileira enquanto sociedade autoritária? É uma sociedade que conhece a cidadania através de uma figura inédita: o senhor-cidadão, e que conserva a cidadania como privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhe retirada quando as dominantes assim o decidem (como durante as ditaduras). É uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades e estas, em relações de hierarquia, mando e obediência (situações que vão da família ao Estado, atravessa as instituições públicas e privadas, permeia a cultura e as relações interpessoais). (CHAUÍ, 1987, p. 53-54).
A violência é o signo principal da estruturação histórica brasileira, e escamoteá-la em nome da imagem celestial da nação e suas bobagens ideológicas é um recurso que somente favorece a passividade social, a manutenção do status quo, o conformismo, suprimindo toda possibilidade de reação orgânica da multidão contra os disparates perpetrados pelos destruidores da esfera pública, isto é, os poderes estabelecidos que legislam em prol das elites econômicas e que diariamente evidenciam publicamente que somente determinados segmentos sociais podem desenvolver um modo de viver mais autônomo e satisfatório para suas expectativas pessoais. Axel Honneth considera que
Nessas reações emocionais de vergonha, a experiência de desrespeito pode tornar-se o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento. Pois a tensão afetiva em que o sofrimento de humilhações força o indivíduo a entrar só pode ser dissolvida por ele na medida em que reencontra a possibilidade da ação ativa; mas que essa práxis reaberta seja capaz de assumir a forma de uma resistência política resulta das possibilidades do discernimento moral que de maneira inquebrantável estão embutidas naqueles sentimentos negativos, na qualidade de conteúdos cognitivos. Simplesmente porque os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente neutro às ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos, pela privação de direitos e pela degradação, os padrões normativos do reconhecimento recíproco tem uma certa possibilidade de realização no interior do rumo da vida social em geral. Pois toda reação emocional negativa que vai de par com a experiência de um desrespeito de pretensões de reconhecimento contém novamente em si a possibilidade de que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se torne o motivo da resistência política (HONNETH, 2009, p. 224).
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Para que ocorra transformação social radical, é imprescindível que o indivíduo adquira consciência plena da sua situação de dominação ideológica e física por parte dos grupos políticos hegemônicos, absolutamente alheios ao bem-estar humano dos excluídos socialmente. Aproveitemos o discurso de Mike Davis: “Toda manhã, a favela responde com atentados suicidas e explosões eloquentes. Embora o Império possa mobilizar tecnologias orwellianas de repressão, os seus fora-da-lei têm ao seu lado os deuses do caos” (DAVIS, 2011, p. 205). Por conseguinte, do trauma da violência, fator de sofrimento para incontáveis seres humanos dissociados da cidadania e elemento gerador da ruptura social no quadro da cidade, o testemunho literário dessa mazela maior é o processo doloroso, mas inevitável, para que essa outra realidade social, terrível, grotesca, incerta, possa aflorar no cerne da esfera pública edulcorada cotidianamente pelo afago extraordinário do sistema de entretenimento capitalista. Conforme destaca Marcelo Lopes de Souza,
Buscar um desenvolvimento urbano autêntico, que não se traduza como um “desenvolvimento capitalista” do espaço em detrimento de interesses sociais mais amplos ligados à justiça social, à proteção ambiental e outras metas, exige, consequentemente, que não se perca de vista uma preocupação com a eficácia tanto tática quanto estratégica em matéria de capacidade de proposição e ação, inclusive e sobretudo das organizações dos ativismos sociais. Em outras palavras, exige que não se perca de vista uma preocupação com o aumento da capacidade de planejamento e gestão, de elaboração de (contra)propostas e (contra)projetos, e isso a serviço de um combate à heteronomia instituída (SOUZA, 2008, p. 265).
O testemunho da vida periférica é instrumento de paulatina transformação social e também mecanismo psicológico de sublimação dos fantasmas nascidos da banalidade de uma vida sem valor para a elite social que prospera economicamente e politicamente justamente através da miséria e humilhação de seres humanos simbolicamente excluídos da própria condição humana: “Existe experiência quando a vítima se transforma em testemunho” (SARLO, 2007, p. 26). Narrar o horror social, portanto, é possibilidade corajosa de superá-lo e fazer do ato de discurso um gesto político que, energicamente, exige de cada leitor sua participação na luta contra a opressão perpetrada pelos setores hegemônicos da sociedade moderna. Conforme pontua Walter Benjamin,
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente em nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais [...]. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia seguro e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1994, p. 197198).
Analisar a vida humana regida pelos signos da exclusão social e alocada violentamente na circunscrição dos lugares periféricos, dos guetos, das favelas e de todas as demais categorias do grande outro da estrutura econômica do capitalismo tardio, significa a possibilidade de toda a esfera pública politicamente consciente ouvir o discurso das massas humanas marginalizadas e, a partir de então, se engajar ativamente na defesa da integração social autêntica, na qual o assistencialismo vazio é destruído e substituído por um projeto político de emancipação das massas. O fantasma indescritível da opressão humana em suas múltiplas segmentações sociais JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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deve se tornar objeto de discurso daquele que se constitui intelectualmente crítico da cultura, de modo a se denunciar para as subjetividades conscientes a transformação do ser humano em lixo social, capitaneando-se assim meios efetivos de se lutar contra essa barbárie aviltante. História de horror e de indignação, a narrativa periférica nos conclama a participamos da construção coletiva por um mundo mais humano, mais igual, mais belo, mais justo, menos cru. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência oficial do Estado contra as classes mais pobres continua a se efetivar descaradamente no cotidiano, não obstante a maior visibilidade que as tecnologias comunicacionais proporcionam na divulgação de informações para a esfera pública. Curiosamente, apesar de todo tipo de monitoramento tecnológico imposto pelo Estado aos seus “cidadãos-súditos” como forma de controlá-los para que não cometam ações desviantes, o oposto não ocorre adequadamente: quando as forças policiais praticam atos ilegais contra a população, oportunamente câmeras de segurança e outros instrumentos de monitoramento falham, de modo a embaralhar qualquer possibilidade de fiscalização legal aos atos arbitrários dessas forças policiais, que assim zombam de toda tentativa de efetivação da legalidade na esfera pública. Em um turbulento momento histórico em multidões tomam as ruas em sua luta por reconhecimento perante uma classe política que em sua grande maioria está interessada apenas em satisfazer seus objetivos privados em detrimentos da causa pública, ações escusas dos aparatos repressores do Estado somente ampliam a onda de indignação popular contra os representantes oficiais, tornando a cidade tal como um barril de pólvora a explodir em breve.
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APROXIMAÇÕES TEÓRICAS SOBRE DEMOCRACIA AMBIENTAL: O DESAFIO DE CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADA Ana Paula Correa De Sales
1. INTRODUÇÃO A questão ambiental, em termos atuais, faz parte de praticamente todas as agendas políticas, tanto em âmbito internacional como local. Entretanto, não foi sempre assim. A preocupação pela degradação do meio ambiente é uma pauta de discussão relativamente nova, foi apenas a partir da década de setenta que começaram a aparecer os primeiros documentos e manifestações públicas que pretendiam discutir os efeitos nocivos da exploração irracional e indiscriminada dos recursos naturais mundiais. Progressivamente a consciência ecológica e a preocupação acerca das consequências da poluição ambiental, extinção de espécies, esgotamento de reservas naturais e mesmo a mudança climática foi crescendo e tomando mais espaço dentro das discussões políticas e sociais. Tendo em vista a importância da questão meio-ambiental para a política de hoje, a intenção deste trabalho está em avaliar a democracia ecológica. Leonardo Boff (1996) define democracia ecológico-social como sendo uma nova forma de vivência democrática, tanto como valor universal, quanto como forma de organização da sociedade. Com o advento do modelo de democracia participativa, que garante a participação efetiva e direta dos membros da sociedade no processo de tomada de decisões, e considerando que existe um dever inerente a todos de cuidado com o meio ambiente, tanto em âmbito local como global, cada vez mais é preciso falar de democracia ecológica, como concretização da meta de desenvolvimento sustentável. Deste modo, sustenta-se neste artigo que a efetivação do direito humano ao meio ambiente adequado e o paradigma do desenvolvimento sustentável são possíveis de serem alcançados através das ferramentas disponibilizadas pelo modelo de democracia ecológica que nasce dentro do panorama das democracias participativas, modelos mais avançados de democracia, que se preocupam em disponibilizar aos diferentes atores sociais a oportunidade de intervir nas decisões importantes concernentes às questões ambientais. Propõe-se neste artigo que a democracia ecológica, garantidora da tutela ambiental e proteção do meio ambiente, se viabiliza e se torna real através da participação efetiva dos cidadãos no processo de tomada de decisões, fato que se torna possível naquelas democracias (participativas) que se adequaram de maneira a possuir canais de participação política que não estão unicamente vinculados aos clássicos instrumentos de atividade política, como o voto. O objetivo principal é comprovar como é possível lograr a meta de desenvolvimento sustentável e de concretização do direito humano ao meio ambiente adequado através de um modelo democrático participativo, que, sendo um desdobramento da fórmula representativa, JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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disponibiliza à sociedade e a seus integrantes a possibilidade de participação direta nos processos de tomada de decisões. Sendo assim, trata-se de comprovar que a chamada democracia ecológica representa o esforço de enquadramento das democracias atuais em uma atuação que esteja alinhada com a preocupação ambiental, interagindo, para alcançar este fim, não apenas as instâncias governamentais, mas também, e principalmente, os cidadãos comuns, as organizações sociais especializadas na matéria. No que concerne à metodologia adotada para esta investigação foi realizada uma pesquisa fundamentalmente bibliográfica e de pesquisa legislativa, buscando abordar os principais autores e correntes doutrinárias acerca do tema. 2. DEMOCRACIA AMBIENTAL OU DEMOCRATIZAÇÃO ECOLÓGICA A preocupação pelo equilíbrio do meio-ambiente passou a ocupar atualmente cada vez mais espaço na agenda política internacional e no âmbito interno dos Estados. Por outra parte, os cidadãos também são cada vez mais conscientes da importância dos efeitos danosos que a exploração irracional dos recursos naturais causa e ainda causará na vida e futuro do planeta. Mostra-se, assim, crucial a atuação através de movimentos sociais e também por meio das novas ferramentas da democracia participativa. Ainda que, deve-se destacar, alguns autores como Barcenas (2004) defendam que a crise ambiental está associada com a própria crise da democracia. Em seu entendimento, a crise ambiental alimenta a crise democrática, explicita a subjugação das instituições representativas frente às poderosas elites econômicas e põe em evidência os conflitos políticos cotidianos.1 A introdução da variável ambiental no debate político e a exigência de mecanismos democráticos para sua resolução esteve presente em diversos instrumentos internacionais. As mais historicamente relevantes são a Convenção de Aarhus (1998) e a Agenda 21 (1992). A Convenção de Aarhus reflete o compromisso internacional de mais de 30 países para garantir o direito à informação, a participação e o acesso aos tribunais em matéria de meio-ambiente. Este tratado, assinado em Aahus (Dinamarca) reflete, com suas limitações, o respeito aos direitos e liberdades democráticas e a defesa e respeito aos ecossistemas e de saúde pública.2 O fundamento deste tratado está plasmado no princípio 10 da Declaração do Rio de Janeiro que tinha como intuito ser um programa de ação para colocar freio na crise ambiental global. O legado da Eco 92 são as Agendas 21 locais que apesar de sua variedade e diferenças, podem ser consideradas como uma interessante experiência de participação democrática, integradora de assuntos sociais, econômicos e ambientais.3 De modo que se pode afirmar que a consciência dos limites e o fato de compartilhar um mesmo destino precário (consciência esta que cada vez mais faz parte da preocupação dos cidadãos e dos governos por todo o mundo), os comportamentos respeitosos em relação ao meio ambiente, a mobilização social para a solução de problemas específicos, também podem 1 BARCENAS, Iñaki. Democracia participativa + desarrollo sostenible = democracia ambiental. In Democracia ecológica. Formas y experiencias de participación en la crisis ambiental. Sevilla: UNILCO, 2004, p. 19. 2 Ibidem, p. 25. 3 Ibidem, p. 26.
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ser um alimento para a democracia. Assim, a questão ambiental torna-se um terreno de cultivo de valores e comportamentos favoráveis ao crescimento de uma cultura civil democrática.4 Esta nova cultura de sustentabilidade deve se caracterizar por uma base de um entendimento mínimo possível comum que seja capaz de convergir a participação política na direção da sustentabilidade ambiental e ainda deixar aberto o máximo espaço possível as diferenças entre as ideias e suas interações.5 Conforme explicita Gabaldón: “La democracia constituye el entorno que hace viable los cambios sin trauma, a través de una participación ciudadana bien informada, susceptible de influir sobre el sistema de toma de decisiones, para que se adopten aquellas que generan genuino bienestar colectivo”.6 Sobre o surgimento do termo democracia ecológica, Portilho explica que o termo surge:
A partir da composição dos movimentos ecológicos com outros movimentos sociais, a questão ambiental ultrapassa o preservacionismo e o conservacionismo, englobando aspectos da qualidade de vida. Ao se definir meio ambiente como bens da natureza não passíveis de apropriação privada e de cujo acesso ninguém pode ser excluído (ar, silêncio, água potável, alimento, espaço etc.), já que deles depende a vida das populações e dos diversos grupos sociais, estes bens passam a ser objeto de diferentes interesses e disputas, resultando em diferentes propostas de uso, muitas vezes conflitantes. Os movimentos pacifistas e anti-nucleares da década de 60 já ressaltavam que o acesso justo de todas as nações aos recursos naturais é uma condição indispensável para se atingir a paz permanente, fazendo surgir a noção de democracia ambiental.7
Baudrillard entende que o “direito ao meio ambiente”, prerrogativa inovadora nos direitos “conquistados”, assim como o direito à saúde, ao espaço, ao lazer etc. deve ser compreendido a partir do momento em que já não há mais saúde, espaço e lazer para todos. Sendo assim, podese dizer que surgem novos direitos sociais que, como “slogans”, servem como sinais distintivos e de privilégios de classe: “o direito ao ar puro significa a perda do ar puro, sua transformação em mercadoria e sua redistribuição de forma desigual”8. Ainda acerca do conceito de democracia ecológica, deve-se citar o entendimento de Boff a respeito da matéria. Para este autor, uma democracia ecológico-social é uma nova forma de vivência democrática, tanto como valor universal, quanto como forma de organização da sociedade. Pressupõe a superação do antropocentrismo, bastante arraigado na cultura ocidental, reforçado que foi pela interpretação hegemônica da tradição religiosa judaico-cristã. Pressupõe a superação da concepção dominante de ciência desenvolvida na Revolução Científica por Descartes, Galileu, Newton e Bacon, na qual saber é poder e poder é dominar, colocando todos os seres à disposição do uso humano.9 Neste sentido, pode-se destacar que:
A Democracia deve servir, antes de tudo, para que a Sociedade evolua, para que a diversidade de opções políticas e não políticas (culturais, relacionais, territoriais,
4 MANZINI, Ezio; BIGUES, Jordi. Ecología y democracia. De la injusticia ecológica a la democracia ambiental. Barcelona: Icaria Editorial, 2000, p. 23. 5 Ibidem, p. 41. 6 GABALDÓN, Arnoldo José. Desarrollo sustentable y democracia. Revista del CLAD Reforma y Democracia. No. 23. (Jun. 2002), p. 3. 7 PORTILHO, Fátima. Consumo “verde”, democracia ecológica e cidadania: possibilidades de diálogo? Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/Artigos/consumo.htm>. Acesso em: 12 jun 2015. 8 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Editora Elfos, 1995, p. 57. 9 PORTILHO, Fátima. Consumo “verde”, democracia ecológica e cidadania: possibilidades de diálogo? Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/Artigos/consumo.htm>. Acesso em: 12 jun 2015.
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sindicais, étnicas, de idade etc) possam se movimentar o mais livremente possível, enriquecendo a complexidade da comunidade. Como na própria natureza, a biodiversidade, neste caso social, deve ser estimulada, de modo a acolher todo tipo de iniciativas e assim, com as que se considerem mais válidas, fazer o conjunto avançar. Isto implica diversos mecanismos e instrumentos de validação, adaptados às peculiaridades de cada iniciativa, segundo o âmbito e o momento determinado. Os movimentos livres de iniciativas culturais e sociais definem melhor uma Democracia que quer avançar, sem o jogo moderno das falsas maiorias que tendem a bloquear iniciativas discrepantes.10
Segundo entende Boff a democracia ecológico-social aceita em seu seio, como cidadãos, não apenas os seres humanos, mas todos os seres vivos: “Todos os seres são também cidadãos, sujeitos de direitos, de serem respeitados como outros em sua alteridade, em sua existência, em sua vida, em sua comunhão conosco e com o nosso destino e em seu futuro, que pode até independer de nós”11. Paulo Cruz, por sua parte, define Democracia Ecológica como sendo o direito a entender, a participar, a poder apresentar reclamações e a serem atendidos todos os que participam do debate ambiental: a população, os grupos comunitários, os defensores do meio ambiente, os empresários, os trabalhadores e empregados, os governos e os representantes eleitos e todos os representantes de segmentos sociais.12 Com um entendimento semelhante, Manzini e Bigues estabelecem que o termo democracia ambiental é o direito a saber, a participar, a poder apresentar reclamações e a ser atendido. O termo define o princípio de direitos para todos aqueles que participam no debate ambiental: a população, os grupos comunitários, os defensores do meio ambiente, os empresários, trabalhadores e empregados, os governos, as administrações e os representantes eleitos, os centros universitários, os profissionais de saúde, educação etc.13 Para Portilho a reflexão ecológica tem ajudado a entender que o ser humano é parte da natureza e da biosfera, ressaltando valores como a alteridade, a reciprocidade e a complementaridade. Deste modo, através da alteridade, é possível reconhecer o outro com um valor em si mesmo e que, se existe, deve continuar a existir, reforçando a responsabilidade ética do ser humano perante os outros homens e as outras espécies. Através da reciprocidade e complementaridade, fica claro que o equilíbrio ecológico pressupõe que os seres são recíprocos e se complementam, pois nada nem ninguém se basta a si mesmo.14 A democracia ecológica, portanto, relaciona a injustiça social com uma espécie de “injustiça ecológica”, pois o ser humano mais agredido é o pobre; seu acesso aos bens naturais indispensáveis à vida, vem sendo distorcido pelas relações não democráticas de distribuição, 10 CRUZ, Paulo Márcio. Repensar a democracia. Revista Jurídica - CCJ/FURB, v. 13, nº 25, p. 03 - 22, jan./jul. 2009, p. 19. 11 BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização e espiritualidade. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 90. 12 CRUZ, Paulo Márcio. Repensar a democracia. Revista Jurídica - CCJ/FURB, v. 13, nº 25, p. 03 - 22, jan./jul. 2009, p. 13. 13 MANZINI, Ezio; BIGUES, Jordi. Ecología y democracia. De la injusticia ecológica a la democracia ambiental. Barcelona: Icaria Editorial, 2000, p. 77. 14 PORTILHO, Fátima. Consumo “verde”, democracia ecológica e cidadania: possibilidades de diálogo? Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/Artigos/consumo.htm>. Acesso em: 12 jun 2015.
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controle e gestão destes bens15:
Mas a busca de uma democracia ecológica pressupõe, antes de tudo, a recuperação do cidadão, entendido aqui como aquele que tem consciência de pertencer à coletividade e de possuir identidade (individual e coletiva) e direitos civis, políticos e sociais. Pressupõe a busca por um modelo cívico autônomo, não subordinado ao modelo econômico, partindo do cidadão para a economia e não o contrário.16
Considerando o exposto, pode-se afirmar que a nova cultura da sustentabilidade deve caracterizar-se, assim como a Democracia, por uma base de entendimento comum que represente o mínimo indispensável para fazer convergir o interesse político e social na direção da sustentabilidade ambiental, e deixar em aberto o máximo de espaço possível às diferenças entre as idéias e suas interações.17 De modo que a Democracia tem o papel de inter-relacionar interesse público e social a sustentabilidade ambiental, de tal maneira que diversas hipóteses de sociedade sustentável possam conviver dialeticamente. A solução, para alcancar este patamar, está em conceder e favorecer à Democracia um poder de aceleração, o maior possível, pondo-a em tensão, nas formas que lhe são fisiológicas, ou seja, favorecendo o crescimento de uma nova cultura e de uma nova sensibilidade social, de novos juízos de valores, de novas competências difusas.18 Além disso, Cruz destaca ainda a importância do reconhecimento do meio ambiente adequado como um direito humano, fato que considera imprescindível para a sustentação de um formato democrático ecologicamente concreto:
Sem o reconhecimento de que os direitos fundamentais devem incluir o meio ambiente, que este deve ser saudável e não pode ser destruído sem castigo, o chamamento à população para que coopere com a sustentabilidade ambiental não deixa de ser uma mostra de cinismo. Desarmados, os cidadãos comuns não dispõem dos mecanismos básicos para defender o meio ambiente. Um emaranhado de normas não permite que o bosque veja a árvore. A ausência de um ambiente democrático para a resolução de conflitos afasta a Democracia Ambiental, que seria, por sua vez, uma proposta regeneradora da confiança da população nos poderes públicos.19
Conforme ressalta Cruz é de fundamental importância entender que diante do aumento vertiginoso da complexidade do mundo atual, é preciso considerar a necessidade de um aumento da pluralidade dos processos de associação e representação democráticas por outras formas de associação e por outras formas de participação além dos partidos políticos e do voto. De maneira que os referendos, as consultas populares, as assembléias de políticas públicas, as conferências de consenso, as mesas de diálogo e controvérsia, a gestão municipal participativa, isto é, todas estas são formas de participação que podem ser criadas em complementação criativa, em uma relação virtuosa com o modelo democrático representativo.20 15 Ibidem. 16 Ibidem. 17 CRUZ, Paulo Márcio. Repensar a democracia. Revista Jurídica - CCJ/FURB, v. 13, nº 25, p. 03 - 22, jan./jul. 2009, p. 14. 18 Ibidem.
19 Ibidem.
20 Ibidem, p. 18.
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A participação dos cidadãos, não apenas na expressão de movimentos sociais, mas também e principalmente através da interação direta com as instâncias de governo, utilizando-se das ferramentas disponibilizadas pelo modelo democrático são de fundamental relevância para o avanço da luta pelo meio ambiente adequado como um direito humano de terceira geração, direito coletivo e requer uma atuação pró-presente e pró-futuro, em um caráter de solidariedade com as gerações futuras. 3. DESAFIOS PARA A DEMOCRACIA EM RELAÇÃO AOS PROBLEMAS MEIO-AMBIENTAIS Lafferty e Meadowcroft21 consideram que existem seis desafios principais para a democracia no que concerne aos problemas ambientais. Os eixos principais de atuação para o modelo democrático nesta seara estão relacionados, assim com: - a proteção meio-ambiental e limites econômicos; - lidar com os limites e restrições econômicas nas regiões mais pobres do planeta; - globalização e o domínio dos valores econômicos; - preservação da natureza e imposições meio-ambientais; - ambiguidade (e em certa medida incerteza) científica e as “certezas” de seus custos financeiros; - jurisdição política e responsabilidade das políticas ambientais. A proteção meio-ambiental e os limites econômicos talvez possam ser considerados como uma das principais barreiras para uma adequada perspectiva de efetiva proteção ambiental e desenvolvimento sustentável. Dentro do contexto brasileiro as batalhas políticas (e mesmo jurídicas) que foram travadas durante o debate e votação do novo Código de Proteção Florestal e a demora em sua implementação é um grande exemplo disto. Conjugar governabilidade e possibilidade real de implementação de políticas ambientais que não encontrem muita resistência pelos atores sociais é um problema central da discussão ambiental hoje. O desafio de compaginar os limites econômicos (dos custos e também da restrição do ganho com a exploração do meio ambiente) e a proteção ambiental. De um lado, se têm ambientalistas, e por outro, representantes do agro-negócio e pecuária que representam um papel definitivo e crucial no PIB do Brasil e na geração de riquezas para a nação. No que tange ao segundo desafio, isto é, o problema de lidar com os limites e restrições econômicas nas regiões mais pobres do planeta, os referidos autores argumentam que:
The second challenge on our list is closely related to the first. The power nations and the many poorer islands within the rich nations are locations where economic desperation clearly drives the imposition of environmental damage. Where hunger resides there can only rarely be consideration of the longer-term future. In such settings the norm is too frequently slash-and-burn agriculture, the hunting and fishing of species to extinction, inadequate pollution abatement, whole log exports, erosion and the rampant poaching of endangered species. Poverty clearly promotes such practices, but so too the demands of international indebtedness and international trade, inadequate and/or inappropriate transfers of technology, overpopulation and the penchant of rich nations to consume the resources and outputs of the poor.22
Saíz, por sua vez, coloca a problemática das democracias consideradas ecológicas dentro da seguinte perspectiva: 21 LAFFERTY, William M.; MEADOWCROFT, James. Democracy and the Environment: Problems and prospects. Great Britain: Edward Elgar Publishing Limited, 1996, p. 20. 22 Ibidem, p. 22.
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El problema fundamental que hace que el vínculo entre democracia y ecologismo sea contingente radica en dos cuestiones: en primer lugar, la tensión que surge de sostener un concepto de democracia en función de una serie de valores que caracterizan a la naturaleza que no son siempre compatibles; y, en segundo lugar, si la política verde enfatiza los resultados sobre los procedimientos acorde con los valores que caracterizan a la naturaleza, su defensa de la democracia resulta «débil» en el ámbito de los principios a pesar de su apuesta por formas de democracia participativa o radical. No obstante, la teoría política verde reciente desmiente esta segunda aserción en la medida en que se están produciendo intentos de fundamentación de un concepto de democracia «verde» en los que hay una discusión seria que no sólo afecta a su relación con los principios de la democracia liberal, sino también a la problemática de los derechos de protección del medio ambiente y a la noción de ciudadanía.23
Para Barcenas24, a democratização ecológica é um processo longo e complexo, existindo diversas incertezas que fazem parte da bagagem do ecologismo social. Neste sentido, um dos desafios diz respeito ao reconhecimento da dívida ecológica que os países do chamado Primeiro Mundo têm em relação aos habitantes empobrecidos dos países que subsidiaram o progresso e desenvolvimentos nos primeiros. Outra necessidade em relação às democracias ecológicas está relacionada com o pensamento e ação local e global com ênfase em um critério de eco-justiça25. Isto significa transformar as dinâmicas NIMBY (not in my backyard – não em meu quintal) que afloram nas sociedades de risco atual, em conflitos tipo NOPE (not in planet Earth – não no planeta Terra). De maneira que se possa considerar que reivindicar o direito a uma vida saudável ou é uma escolha universal ou é um engano, não sendo possível o sacrifício de uns em benefício de certos cidadãos melhor situados geográfica ou socialmente.26 Além disso, o binômio economia e ecologia podem e devem se reencontrar, e serem repensadas dentro de uma lógica de se cuidar do planeta. A democratização ecológica, assim, supõe um radical questionamento de nosso sistema econômico, que deve ser politicamente ecológico. Se a democracia é a resposta à falibilidade humana, e a sustentabilidade é o caminho para retornar da crise ambiental, conjugando oportunamente a ideia de desenvolvimento sustentável e as ferramentas disponibilizadas pela democracia participativa.27 Conforme destaca o referido autor: “Por ello, la democracia ambiental aspira ser algo más que una nueva adjetivación estética y un nuevo término políticamente correcto para 23 SAÍZ, Ángel Valencia. Democracia, ciudadanía y ecologismo político. Disponível em: <http://dialnet.unirioja. es/servlet/articulo?codigo=27518&orden=0&info=link>. Acesso em. 23 jul. 2015.
24 BARCENAS, Iñaki. Democracia participativa + desarrollo sostenible = democracia ambiental. In Democracia ecológica. Formas y experiencias de participación en la crisis ambiental. Sevilla: UNILCO, 2004, p. 40.
25 O conceito de justiça ambiental para Manzini e Bigues está relacionado com o fato de que a distribuição e o acesso aos recursos, sua depreciação, a localização das atividades contaminantes em bairros e zonas mais pobres que dão lugar à exigência de uma justiça ecológica. Nos Estados Unidos este conceito inclui o racismo ambiental. Atividades rechaçadas em outros lugares são localizadas em bairros onde vivem negros, pobres ou comunidades indígenas. MANZINI, Ezio; BIGUES, Jordi. Ecología y democracia. De la injusticia ecológica a la democracia ambiental. Barcelona: Icaria Editorial, 2000, p. 23. 26 BARCENAS, Iñaki. Democracia participativa + desarrollo sostenible = democracia ambiental. In Democracia ecológica. Formas y experiencias de participación en la crisis ambiental. Sevilla: UNILCO, 2004, p. 40. 27 Ibidem.
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diletantes. La democratización ecológica quiere ser una propuesta política que refuerza dos ideas básicas para un nuevo orden social”.28 Ainda sobre os problemas inerentes a chamada democracia verde, Saíz destaca também que:
Los dos problemas del concepto de ciudadanía dentro de los Estados democráticoliberales en relación con la ecología son dos: a) una subrepresentación de los ciudadanos en temas ecológicos debido, por una parte, a que el concepto de representación de carácter territorial que define nuestras comunidades políticas no incentiva la preocupación por los temas medioambientales, y, por otra, porque este concepto de representación política perjudica los intereses de quienes no son ciudadanos. El argumento es que los que no puedan participar con su derecho al voto sí puedan hacerlo sobre las deliberaciones y decisiones políticas de carácter medioambiental debido a que es una problemática que afecta a todos, ciudadanos o no —creación, pues, de una «nueva circunscripción medioambiental»—. Y b) Los intereses ecológicos de la ciudadanía no están debidamente representados por que los protección ambiental, en el fondo, depende de la persuasión política que puedan ejercer los partidos políticos en pos de la búsqueda de votos en la competición partidista. La causa fundamental de estos problemas es que la trascendencia de los problemas ecológicos debido a la globalización y la toma de decisiones políticas exigen un cambio fundamental en nuestros conceptos de representación y participación políticas, anclados todavía en criterios de territorialidad circunscritos al viejo concepto de Estado-nación. . Las preguntas que pueden formularse son las siguientes: ¿Cómo incorporar a los seres humanos con «intereses vitales» en decisiones que van más allá de los límites del EstadoNacional? ¿Quién puede participar y cómo deben estar organizadas las estructuras políticas para facilitar esta participación? Lo que hoy resulta claro es que nuestros conceptos de participación y representación políticas resultan obsoletos en relación con la ecología y con los problemas medioambientales actuales.
29
Sendo assim, o problema para a construção de uma “teoria de democracia verde” é que a teoria democrática não pode prescindir nem de uma definição territorial do Estado e nem do Estado-Nação como pontos de referência. Entretanto, o processo de tomada de decisões políticas deve estar acompanhado de um reconhecimento público de que os efeitos da atividade humana sobre o meio ambiente vão além da distância e do tempo. Isto implica que o processo de tomada de decisões dependa de cidadãos mais ativos e de um Estado melhor organizado para a participação democrática. De modo que a relação entre democracia e meio ambiente passa pela chamada “dupla democratização”, isto é, uma revitalização da sociedade civil conectada com a reestruturação do Estado.30 Além disso, aponta que o problema também afeta ao processo de tomada de decisões em matéria ecológica ou meio-ambiental - ecologically informed decisión making -, por este motivo, muitos teóricos políticos verdes têm defendido um modelo de democracia deliberativa, propondo certas reformas institucionais que vão desde que os Estados separadamente, e de forma adicional, considerem os temas ecológicos através de plebiscitos que ajudem a estabelecer as posições sobre o tema, passando por uma tomada de decisões baseada em plebiscitos ou referendos ou, finalmente, em sua forma mais radical, basear o processo de tomada de decisões 28 bidem, p. 41. 29 SAÍZ, Ángel Valencia. Democracia, ciudadanía y ecologismo político. Disponível em: <http://dialnet.unirioja. es/servlet/articulo?codigo=27518&orden=0&info=link>. Acesso em. 12 jun. 2012. 30 Ibidem.
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em um democracia direta com uma composição flexível ou mesmo dinâmica do eleitorado, dependendo do problema que se submeta ao respaldo da cidadania.31 A outra ideia subjacente a todas estas propostas, segundo Saíz, é estender o direito ao voto a todos os residentes afetados, devido ao potencial ecológico da decisão política a se tomar. No fundo, se trata de propor medidas de participação política que se encaminhem em direção ao denominado “distrito eleitoral meio-ambiental” - «environmental constituency» que inclua a todos os indivíduos que têm um interesse vital nos resultados. Deve-se destacar, entretanto, que todas essas ideias têm algo em comum, se tratam de sistemas de reforma institucional das democracias que não garantem resultados ecológicos sustentáveis, desde o ponto de vista político. Saíz acredita que os requerimentos de informação, os problemas dos meios de comunicação e as distorções dos grupos de interesses, assim como o papel dos partidos políticos, junto com a problemática das organizações internacionais, podem complicar e tornar inviáveis estas propostas. O fato é que, para resolver estas questões, é necessário conceber a cidadania mais desde uma perspectiva baseada na responsabilidade moral e na esfera pública, que em uma definição formal-legal do Estado, entre outras coisas, posto que quando se trata de problemas ambientais deve-se considerá-lo, tanto em relação às outras espécies como em relação às gerações futuras.32 A inserção da participação popular no processo de tomada de decisões dentro do marco da democracia ecológica implica também na preocupação de que está participação seja consciente. O conhecimento dos impactos de projetos ambientais, que frequentemente vinculam questões técnicas complexas que não são de fácil compreensão para o público leigo, corresponde a elemento mais para reflexão de moldes de democratização ecológica adequados a realidade, e com real factibilidade de sua implementação. Ademais, é preciso considerar que a dimensão ambiental acarreta problemas aos conceitos de democracia, participação, representação e cidadania que transcende à necessidade de reforma institucional do Estado e depende mais da magnitude dos fins do ecologismo político. Assim, Saíz adverte que: Lo que quiero decir es que el impacto del desarrollo industrial de los sesenta, unido a las catástrofes ecológicas como la de Chernobyl suscita una reflexión previa y consensuada sobre una serie de principios que deberían servir de orientación en este tipo de decisiones políticas. Se tratan de principios como que la diversidad biológica debe ser preservada, por razones económicas y éticas, que aparecen, por ejemplo, el Informe Brundtland de 1987 o en la Agenda 21. Este tipo de principios necesitan una noción de ciudadanía que respete a las generaciones futuras y a otras especies e implica un papel importante del Estado como garante de los derechos medioambientales. El slogan de los verdes, «actúa localmente, piensa globalmente», muestra que intentan construir una visión del concepto de ciudadanía como resultado del compromiso y de la práctica políticas de los individuos sobre la base de la lealtad ecológica y no de la lealtad nacional. En este contexto, la creación de «ciudadanos ecológicos» depende del ímpetu del cambio social causado por el deterioro del medio ambiente, así como de la cultura de solidaridad medioambiental que vienen unidas a diversas formas de asociación — como es el caso del movimiento verde —. En este sentido, desde la década de los sesenta los nuevos movimientos sociales, y los movimientos ecologistas
31 Ibidem. 32 Ibidem.
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en particular, han tratado simultáneamente de revitalizar la esfera pública y democratizar, tanto el Estado como la esfera económica, haciendo más claras las demandas emancipatorias referentes al medio ambiente, el género, etc.33
Em muitas de nossas sociedades pós-industriais o movimento ecológico transformou a esfera pública permitindo aos cidadãos propor ao Estado demandas ético-ecológicas que são vistas cada vez mais como uma extensão dos direitos civis e sociais. Desta forma, a agenda política se ampliou com a inclusão dos temas ecológicos nos partidos políticos tradicionais, ou através da criação e ação política dos novos partidos verdes. Sua crítica da colonização, da exploração e da destruição da natureza supõe um reconhecimento da importância do mundo biológico no cálculo da tomada de decisões políticas e econômicas.34 O trabalho dos “cidadãos ecológicos” está centrado, tanto na transformação do Estado como na transformação da sociedade civil. O ecologismo político tenta redefinir, tanto na “comunidade relevante” como os “atores sociais relevantes”, dentro de uma real participação e representação democráticas sobre os assuntos que envolvem a questão ambiental.35 Considerando o exposto, pode-se dizer que é inequívoca a importância da inclusão da pauta verde na agenda política dos Estados. Entretanto, para que aja o reconhecimento de sua relevância é preciso reconhecer o direito ao meio ambiente adequado e saudável como parte do rol dos direitos fundamentais da humanidade. Por este motivo, se considera oportuno dedicar algumas linhas para explicar as bases de fundamentação e os principais instrumentos de positivação do direito humano ao meio ambiente adequado. 4. DIREITO HUMANO AO MEIO AMBIENTE ADEQUADO A consciência ambiental, entendida como preocupação pelo meio ambiente no qual os seres humanos se desenvolvem, fez sua aparência quando na prática aparecem os primeiros impactos negativos sobre o meio ambiente natural causados pela atividade industrial exacerbada e descontrolada. Longe de ser uma moda ideológica passageira e deixando de lado posicionamentos extremos sem conteúdo com vistas a paralização do processo tecnológico, entendida como principal alternativa para deter a deterioramento meio ambiental, a preocupação por este tema logo passou de importante foco de discussão pública a uma relevante questão política e econômica36. Anderson ao tratar da questão explica que há uma grande aproximação do tema relativo ao meio ambiente com os preceitos dos direitos humanos como argumentação conjunta: There is an increasing tendency for environmentalists and human rights activists to work together toward common goals. At the international level, there is a natural affinity between organizations such as Greenpeace and Amnesty International, since both aim to reduce the reserved domain of domestic jurisdiction protected under Article 2 (7) of the United Nations Charter. Similarly, at the domestic level, both groups aim to restrain the exercise of unaccountable power by governments and private actors, and despite their dependence upon local movements and
33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 Ibidem. 36 JORDÁ CAPITÁN, Eva. El derecho a un Medio Ambiente Adecuado. Navarra: Editorial Aranzadi, 2001, p. 25.
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issues, both groups are nevertheless international in scope and ambition.37
O principal debate entre aqueles que defendem a existência do direito humano ao meio ambiente adequado se concentra na questão se seu caráter é substancial ou de mero procedimento. Para aqueles que defendem esta última característica, a quase impossibilidade de definir em cada caso e em geral, o que é meio ambiente adequado exige que nos conformemos, muitas vezes, que seja reconhecido aos cidadãos apenas os direitos de informação, participação e tutela administrativa e judicial do meio ambiente. De acordo com Loperena Rota, as regras da lógica jurídica não são respeitadas negando a substancialidade de um direito e propondo a sua tutela legal.38 Segundo entende o referido autor sempre há atrás de um sistema de tutela, por mais leve que seja, para um direito substantivo reconhecido, por mais imprecisos que sejam os seus termos. De modo que dentro de uma perspectiva teórica, cabe reconhecer um direito e não dispor de um sistema adequado para a sua proteção. Mas nunca o inverso. A ambiguidade ou falta de certeza sobre o que seria um meio ambiente adequado é resolvida ao fazer referência aos parâmetros biosféricos determinados pela ciência no plano global, ou pela medicina no caso particular. Os níveis de certeza em ambos os casos são suficientemente precisos para descartar as críticas à falta de segurança deste conceito.39 Por outra parte, de acordo com Jordá Capitán um dos inconvenientes ao reconhecimento ao direito de desfrutar de um ambiente adequado como um direito subjetivo é constituído precisamente pelo destino a ser concedido a uma eventual indenização decorrente da condenação advinda do caso ambiental. Neste sentido, deve ser apreciada a existência real de danos, dessa forma, a reparação em espécie cobra aqui sua virtualidade em atenção ao interesse que este bem satisfaz, devendose dirigir em direção a restauração do elemento afetado (purificação de águas ou de solos contaminados) de modo que voltem a ser aptos a satisfazer novamente interesse de seus usuários; e se isso não for possível, a eventual condenação deveria ter como objetivo restabelecer o equilíbrio afetado mediante a busca da concessão de uma vida de satisfação alternativa.40 Diversos foram os instrumentos internacionais de proteção ao meio ambiente nas últimas quatro décadas. No contexto internacional, o reconhecimento do direito ao meio ambiente adequado ocorreu no ano de 1972, ano em que se celebrou em Estocolmo a primeira Conferência Internacional sobre meio ambiente, o resultado desta Conferência é refletido em um documento conhecido como a Declaração de Estocolmo, formada por um preâmbulo e 26 princípios, onde foram estabelecidas as bases e critérios internacionalmente comuns para a melhora e proteção do meio ambiente.41 Outro documento importante foi a Carta Mundial da Natureza proclamada pela Assembléia Geral da ONU no ano de 1982. Em 1992, realizou-se no Rio de Janeiro a Conferência 37 ANDERSON, Alison. Media, cultura, and the environment. London: UCL Press, 1997, p. 2-3. 38 LOPERENA ROTA, Demetrio. Los principios del Derecho Ambiental. Madrid: Editorial Civitas, 1998, p. 46. 39 Ibidem. 40 JORDÁ CAPITÁN, Eva. El derecho a un Medio Ambiente Adecuado. Navarra: Editorial Aranzadi, 2001, p. 27. 41 FRANCO DEL POZO, Mercedes. El derecho humano a un medio ambiente adecuado. Bilbao: Universidad de Deusto, 2000, p. 34.
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da Terra ou a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Cabe também destacar, dentre outros, a realização em Viena da Conferência Mundial dos Direitos Humanos em 1993. Como resultado desta Conferência, a Declaração e Programa de Ação de Viena, ainda que não tenha explicitamente assegurado a existência de um direito humano ao meio ambiente, em seu parágrafo 11 vincula o direito fundamental ao desenvolvimento com o meio ambiente, e paralelamente também reconheceu que determinadas descargas de substâncias ilícitas podem atentar contra os direitos à vida e a saúde42. Em se tratando dos últimos quinze anos, pode-se destacar como os principais eventos sobre o meio ambiente: o Fórum das Nações Unidas sobre florestas, realizado em Nova Iorque, de 13 a 24 Fevereiro ano 2006; a declaração do Ano Internacional dos Desertos e Desertificação, 2006, na Resolução 58/211; a Década Internacional para a Ação: “Água, fonte de vida” a partir de 2005 a 2015, resoluções 58/237 e 59/228. Em todos estes encontros há a intenção de reduzir e prevenir a). poluição causada pelos resíduos e produtos químicos, ou pelo ruído, para preservar o espaço e recursos naturais. E mais recentemente a histórica Cúpula das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável ocorrida em agosto de 2015 e que definiu as metas da chamada Agenda 2030 que propõe 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). No que diz respeito à evolução dos preceitos de proteção ambiental no âmbito interno dos Estados, pode-se dizer que o direito interno protegeu, através da lei constitucional, o direito humano de viver em um meio ambiente saudável. Entretanto, o Direito Ambiental é uma disciplina relativamente recente cujo ensino deve ser matéria obrigatória em todas as faculdades de direito para permitir a propagação e difusão dos seus princípios para evoluir com as gerações futuras de juristas. A proteção ambiental contribuiu para a proteção do direito humano ao meio ambiente adequado, de maneira que é necessário não apenas seu reconhecimento a nível constitucional e na legislação ordinária, fundamental também será garantir de maneira eficaz e precisa, os instrumentos para que seus titulares possam fazer valer esses direitos. Pois a solução para o problema da degradação do meio ambiente e o direito de viver em um meio ambiente saudável não pode ser resolvida somente com Declarações e leis internas, e através das gerações futuras, todos os cidadãos têm o dever de participar: o Estado e a sociedade civil para evitar a destruição dos nossos recursos naturais.43 Exemplo de reconhecimento formal do direito ao meio ambiente adequado é o caso da Constituição Federal brasileira de 1988, na qual vários artigos fazem referência ao direito para o meio ambiente adequado. O artigo 225 proclama que o meio ambiente como um direito pertencente às gerações presentes e futuras. E ainda, deve-se ressaltar que foi estabelecida a avaliação do impacto ambiental com caráter obrigatório com o fim de proteger e tutelar este direito fundamental. Ainda que existem diversos países cujas Constituições não realizaram o reconhecimento formal do direito ao meio ambiente adequado, é necessário destacar, entretanto, que existem muitos Estados que, de uma forma ou de outra, reconhecem o mencinado direito como um 42 Ibidem, p. 38. 43 Ibidem, p. 169.
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direito fundamental, ainda que este reconhecimento algumas vezes advenha de sua conexão com outros direitos já positivados. Conforme destaca Costa acerca do tema: O ápice desse processo consiste na garantia constitucional de que um meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito e dever de todos. A Constituição relaciona-o com o direito à vida na medida em que o redimensiona para uma vida com qualidade em um ambiente sadio. Por ser um direito difuso e de caráter transindividual, exige particularmente a participação concreta do Estado e da sociedade, pressupondo uma consciência ecológica geral dos membros da coletividade.44
Em outras palavras, ainda que não assegurem explicitamente e diretamente o direito ao meio ambiente adequado, o fazem através da proteção do meio ambiente atrelado ao direito à saúde, por exemplo, em uma projeção de extensão da proteção de um direito de primeira ou segunda geração. 5. O PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA ECOLÓGICA Saíz ao tratar da relação entre democracia e ecologia afirma que uma das características fundamentais tanto da teoria política verde como do ecologismo político, expressado tanto como movimento social ou como partido político, é que seu conceito de natureza determina um modelo de sociedade (sustentável) e um modelo de democracia (democracia participativa) específicos que estão estreitamente relacionados. 45 De modo que entende que a teoria política ecologista mais recente parece ir unida ao conceito de democracia participativa e de sociedade sustentável. O texto constitucional brasileiro consagrou o princípio da soberania popular e do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, inciso I e parágrafo único), e a partir deste a democracia participativa. Na opinião de Machado46 é garantido o exercício do princípio democrático da participação, o qual, por sua vez, tem origem nos movimentos reivindicatórios da sociedade civil e, como tal, é essencialmente democrático. Ele concretiza-se através do direito à informação e do direito à participação. A participação cidadã, dentro do marco da democracia participativa, e segundo prevista na Constituição Federal brasileira, no que concerne ao meio ambiente se configura dentro da parceria formada entre Estado e particulares (indivíduo e coletividade), prevista no caput do art. 225 do texto constitucional, no tocante à preservação do meio ambiente e em outros dispositivos, na normatização de matérias diversas. Para Canotilho, o exercício da participação popular nas decisões estatais está estreitamente relacionado com a democracia, sendo uma vertente desta. Neste sentido opina que: Em primeiro lugar, o princípio democrático acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática - órgãos representativos, eleições periódicas, pluralismo
44 COSTA, Melina de Oliveira Gonçalves Fernández. A Ação Popular Como Instrumento de Defesa do Meio Ambiente e Exercício da Cidadania Ambiental. Disponível em: <http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/ direitopublico/article/viewFile/523/541>. Acesso em: 29 ago. 2015. 45 SAÍZ, Ángel Valencia. Democracia, ciudadanía y ecologismo político. Disponível em: <http://dialnet.unirioja. es/servlet/articulo?codigo=27518&orden=0&info=link>. Acesso em. 15 jul. 2015. 46 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 8.
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partidário, separação de poderes. Em segundo lugar, o princípio democrático implica democracia participativa, isto é, estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos.47
No que diz respeito à legislação brasileira especializada e a norma constitucional acerca dos direitos inerentes ao meio ambiente, Machado explica que estes instrumentos preveem vários momentos para a ocorrência da participação popular, dentre os quais: na tomada de decisões administrativas ambientais, em ocasiões em que estas não dependem unicamente do Estado, e sim de conselhos compostos pela sociedade civil e de organizações não governamen tais, com direito a voto; nos recursos e nos julgamentos administrativos, através dos quais a sociedade pleiteia junto ao Estado a correção dos seus atos irregulares; a possibilidade de rea lização de referendo de iniciativa popular em nível local, com o fim de levar os poderes locais a instaurar um debate democrático sobre as opções de ordenamento do meio ambiente de um município.48 Lazzaretti e Oliveira ao tratar deste tema mencionam ainda, acerca da importância da participação cidadã nas políticas envolvendo questões de meio ambiente, um instrumento internacional de fundamental importância, a Agenda 21, que em sua Seção III, intitulada “Fortalecimento do Papel dos Grandes Grupos Sociais”, refere-se especificamente à importância da participação decisiva de todos os grupos sociais na implementação eficaz de seus objetivos, das políticas.49 Considerando o exposto, pode-se dizer que resta claro que o princípio democrático da participação encontra ampla aplicabilidade no domínio do Direito Ambiental, e que o sistema jurídico brasileiro contém determinações expressas no sentido de viabilizar a aplicabilidade deste princípio no contexto das políticas ambientais. Sobre este assunto, em relação à definição de políticas públicas voltadas para a preservação do meio ambiente, é de grande importância a participação popular por ocasião da definição de estratégias para combater a degradação do meio ambiente. Ressalte-se que tal participação é relevante, mormente, sobre dois aspectos: i) tanto será mais eficaz a política pública de preservação ambiental que conte com a participação popular, proporcionando o envolvimento de toda a população atingida/interessada, de forma a instála a aderir ao ideal comum de preservação ambiental, e assim contar com sua colaboração e participação direta na implementação da política pública em tela; ii) como também terá maior eficiência a estratégia de preservação do meio ambiente que considere as demandas apresentadas pela população, vez que, na condição de principal interessada e de sujeito diretamente atingido pela degradação do ambiente em que vive, a população certamente se constitui em personagem 47 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2010, p. 282. 48 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 612. 49 LAZZARETTI, Natasha Valente; OLIVEIRA, Karla Auricelia Fernandes de. O princípio democrático da participação como instrumento assecuratório do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/simposiointernacionaldedireito/article/view/1620>. Acesso em: 23 set. 2015.
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de fundamental importância para a correta detecção dos problemas de natureza ambiental.50 Maimon51 ressalta a importância da participação popular na tomada de decisão nas estratégias de políticas governamentais sobre meio ambiente, por ser a melhor maneira de aferir variáveis importantes, como a quantidade de degradação ambiental que cada tipo de sociedade suporta:
[...] a preferência social pelo meio ambiente demarca o nível de poluição socialmente aceitável, isto é, quanto de incômodo a sociedade está disposta a suportar e, sobretudo, qual a contrapartida de recursos que está disposta a abrir mão para melhorar seu meio ambiente. Essa preferência é diferente entre regiões e classes sociais, depende das crenças, ideologias, culturas e dos conflitos de interesses dos envolvidos, tais como, o setor público, o setor privado, a sociedade civil e militar e as organizações não governamentais.52
De acordo com o que defendem Lazzaretti e Oliveira a participação popular pode influenciar a tomada de decisões concernentes a políticas públicas ambientais porque somente esta pode demonstrar ao represen tante governamental o que a população entende por degradação ambiental. Posto que, uma vez que este conceito é relativo e varia em função de diversos elementos, somente a aproximação popular poderá esclarecer ao Poder Público quais os pontos sensíveis no tocante às questões ambientais, de acordo com sua vivência e seus valores.53 Ademais, entendem também que somente com a utilização e fortalecimento dos ins trumentos de participação popular, dentre os quais se pode destacar, a título de exemplo, as audiências públicas, conselhos deliberativos com representação popular e orçamento participa tivo, é que as políticas públicas poderão ser corretamente orientadas, tendo em vista o fato de que a população, inegavelmente, é parte legítima para apontar os problemas ambientais, sobre os quais influencia e é diretamente influenciada.54 Sobre o tema, opinam ainda que:
O sistema jurídico brasileiro apresenta muitos avanços no tocante à regulamentação da questão ambiental, gozando inclusive de salvaguarda constitucional e de status de direito fundamental. Também a legislação infraconstitucional apresenta satisfatórios mecanismos regulatórios da utilização dos recursos naturais. Existem, também, princípios assecuratórios da participação popular na tomada de decisões, além de instrumentos diversos que viabilizam a influência da população sobre tal tema. Contudo, o planejamento das políticas públicas para a mitigação de impactos ambientais e tomada de medidas preventivas contra a degradação do meio ambiente demanda o real e efetivo envolvimento da população, através dos instrumentos de participação popular existentes no Direito Ambiental brasileiro, para que se possa planejar políticas realmente eficazes e capazes de cumprir sua finalidade precípua, qual seja, a proteção do meio ambiente para usufruto comum e a garantia da disponibilidade dos recursos naturais para as futuras gerações, atendendo assim ao mandamus constitucional, que determina ser de todos o dever de promover a proteção ora mencionada.55
50 Ibidem. 51 MAIMON, Dalia. Passaporte verde: gerência ambiental e competitividade. Rio de janeiro: Campus, 2003, p. 15. 52 Ibidem. 53 LAZZARETTI, Natasha Valente; OLIVEIRA, Karla Auricelia Fernandes de. O princípio democrático da participação como instrumento assecuratório do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/simposiointernacionaldedireito/article/view/1620>. Acesso em: 23 set. 2015. 54 Ibidem. 55 Ibidem.
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5. A PARTICIPAÇÃO POPULAR NAS POLÍTICAS AMBIENTAIS NO BRASIL Pode-se dizer que existem três mecanismos de participação direta da população da proteção da qualidade ambiental, reconhecidos pelo Direito brasileiro. O primeiro que se pode destacar diz respeito a participação nos processos de criação do Direito Ambiental, com a iniciativa popular nos procedimentos legislativos, a realização de referendos sobre leis e a atuação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados dotados de poderes normativos.56 Os cidadãos podem atuar ainda diretamente na defesa do meio ambiente participando na formulação e na execução de políticas ambientais, por intermédio da atuação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados responsáveis pela formulação de diretrizes e pelo acompanhamento da execução de políticas públicas; por ocasião da discussão de estudos de impacto ambiental em audiências públicas e nas hipóteses de realização de plebiscitos.57 O terceiro mecanismo de participação popular direta na proteção do meio ambiente é por intermédio do Poder Judiciário, com a utilização de instrumentos processuais que permitem a obtenção da prestação jurisdicional na área ambiental (dentre eles está a ação civil pública ambiental da Lei 7.347/85). Ainda dentro do tema da participação popular direta na defesa do meio ambiente, importa destacar os seus dois pressupostos fundamentais: a informação e a educação. Em termos gerais, pode-se dizer que o ordenamento constitucional brasileiro estabeleceu como mecanismos capazes de assegurar a defesa judicial do meio ambiente, as seguintes ações judiciais: a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo; a ação civil pública; a ação popular constitucional; o mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção, além das ações de procedimento comum e das medidas ou ações cautelares respectivas. Neste sentido, é importante destacar que a particularidade da ação popular reside justamente no seu caráter democrático, já que a sua legitimidade ativa é conferida a qualquer cidadão.58 Conforme destaca Oliveira59, a Lei 6.938/81, da Política Nacional do Meio Ambiente, desde a sua promulgação, no artigo 2°, inciso X já tratava do princípio da participação, quando afirmou que, através da educação ambiental, em todos os seus níveis, levaria efetivamente o cidadão a participar das decisões que envolvem o meio ambiente. Deve-se destacar ainda a Lei 7347/85, da Ação Civil Pública, em seu artigo 5° e seus incisos que conferiu o poder de propor ação civil pública contra danos praticados contra o meio ambiente e que incluiu entre os legitimados as entendidas associativas que esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil e que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 56 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios fundamentais do direito ambiental. Revista de Direito Ambiental nº 02, abril-junho/1996, p. 50. 57 Ibidem. 58 COSTA, Melina de Oliveira Gonçalves Fernández. A Ação Popular Como Instrumento de Defesa do Meio Ambiente e Exercício da Cidadania Ambiental. Disponível em: <http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/ direitopublico/article/viewFile/523/541>. Acesso em: 29 jun. 2012. 59 OLIVEIRA, Luciana Machado. O princípio da participação ambiental no processo de transposição do rio São Francisco. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura&artigo_id=9161>. Acesso em: 01 jul. 2015.
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Para os recursos hídricos, a Lei 9.433/97, da Política Nacional de Recursos Hídricos, enfatizou o princípio da participação popular, ao ofertar assento aos usuários e às organizações civis no Conselho Nacional de Recursos Hídricos (art. 34, incisos III e IV) e nos comitês de bacias hidrográficas (art. 39, incisos IV e V), bem como várias outras legislações brasileiras. Uma ferramenta fundamental, talvez a mais importante e que possibilita a participação direta dos cidadãos, a audiência pública é uma das formas de efetivação da participação e de controle popular da Administração Pública no Estado Democrático de Direito. É a forma de se obter publicidade e participação popular, diretamente ou através de entidades representativas, no processo de tomada de decisão.60 Oliveira defende que a audiência pública é um instrumento que leva a uma decisão política ou legal com legitimidade e transparência. Cuida-se de uma instância no processo de tomada da decisão administrativa ou legislativa, através da qual a autoridade competente abre espaço, conforme determina a lei, para que todas as pessoas que possam sofrer os reflexos dessa decisão tenham a oportunidade de se manifestarem, exporem as suas opiniões e aflições, antes da conclusão do processo. Soares, por sua vez, opina que é através da audiência pública que o órgão responsável pela decisão tem acesso, simultaneamente e em igualdade de condições, às mais variadas opiniões sobre a matéria, em contato direto com os interessados. Ressalte-se que as opiniões expressas não vinculam a decisão, sendo a audiência pública meramente de caráter consultivo, podendo o órgão responsável acatá-las ou não.61 Ainda acerca da importância da audiência pública, Milaré defende que existem três tipos de mecanismos de controle feitos pelo Estado e pela sociedade, que são: o comunitário, exercido pelo público, através das audiências públicas ou de manifestações, denúncias e outros meios; o administrativo, exercido pelo órgão ambiental licenciador, determinando diretrizes e caminhos a serem percorridos pelo empreendimento; o judicial, que é o julgamento, pelo Poder Judiciário, das ações de proteção do meio ambiente, ação civil pública ou ação popular.62 A Resolução Conama n° 01/1986, em seu artigo 11, §2 °, determina a realização de audiência pública para informação sobre o projeto e seus impactos ambientais e discussão do RIMA (relatório de impacto ambiental), sempre que julgar necessária, pelo órgão estadual competente, IBAMA, ou pelo município, que determine a execução do estudo de impacto ambiental e a apresentação do RIMA, contemplando prazo para recebimento de comentários a serem feitos por órgãos públicos e demais interessados.63 A audiência pública é reafirmada na Resolução Conama 237/1997, em seu artigo 10, V, a qual diz que o procedimento de licenciamento ambiental obedecerá à etapa de audiência pública, quando couber, de acordo com a regulamentação pertinente.64 60 Ibidem. 61 SOARES, Evanna. A audiência pública no processo administrativo. Jus Navigandi, Teresina, v. 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3145>. Acesso em: 05 jul. 2015. 62 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência e glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 346. 63 OLIVEIRA, Luciana Machado. O princípio da participação ambiental no processo de transposição do rio São Francisco. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura&artigo_id=9161>. Acesso em: 01 jul. 2015. 64 Ibidem.
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A realização de audiência pública para análise do RIMA e também do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) já estava normatizada na Constituição Federal de 1988, no artigo 225, §1°, IV, assim como também a publicidade dos empreendimentos com significativo impacto ambiental, a fim de que a população participe do licenciamento e os órgãos ambientais informem à população sobre o procedimento.65 Caracteriza-se uma troca: a administração pública informa, o cidadão se sente informado, participa do debate, critica, sugere e efetiva, em última instância, o Estado Democrático, e o modelo de democracia ecológica. 6. CONCLUSÃO A exploração irracional dos recursos naturais do planeta levou a humanidade a trilhar os caminhos que levaram até a crise ambiental que se vive atualmente. Desde a ascensão da Revolução Industrial, progressivamente o homem foi se tornando cada vez mais atrelado à necessidade de usar, até o esgotamento, as reservas naturais em nome da construção da sociedade do futuro, em direção ao progresso. Este fato se mostra inequívoco quando se percebe, por exemplo, que as sociedades com os maiores índices de devastação ambiental são justamente aquelas que são mais desenvolvidas, posto que para alcançar este progresso foi preciso sacrificar parte de seu meio natural. A poluição emitida hoje, a extinção de espécies naturais e recursos orgânicos provocam consequências não apenas para a população local, mas se trata de um tipo de dano coletivo, que não está restrito apenas ao momento atual, se projetando também para as gerações futuras. A projeção dos danos causados pela humanidade para o futuro dos ecossistemas naturais, se mantido o mesmo ritmo de exploração desmesurada que a humanidade leva até o momento, não aponta para um panorama favorável. Sendo assim, faz-se imperativo buscar soluções que passam por uma nova lógica de desenvolvimento, por uma nova cultura de consumo e que tenham a pretensão de fundar um modelo de sociedade que esteja ecologicamente equilibrada, que conjugue de maneira harmônica tanto o desenvolvimento que é necessário para as sociedades, e da mesma maneira o respeito ao meio ambiente e também respeito ao tempo adequado de recuperação das espécies naturais. Deve-se, assim, priorizar atualmente o modelo de desenvolvimento sustentável, ou seja, de um modelo de dinâmica de crescimento governamental que esteja coadunado tanto com as expectativas de sustentabilidade meio-ambiental das sociedades, quanto seja capaz de dar conta das necessidades econômicas, financeiras e estruturais asseguradoras de um nível de vida adequado (e no mesmo patamar das grandes potências mundiais) para os seus cidadãos, e que deve ser incluída na pauta de governo e, da mesma maneira, na atitude e cultura dos indivíduos, através da participação efetiva dos membros da sociedade no processo de tomada de decisões. Isto se deve ao inequívoco fato que a conservação do meio ambiente não é apenas responsabilidade dos governos e de seus integrantes, mas de toda a sociedade, de todos os seus cidadãos, desde uma escala local, de preservação de seus entornos, até chegar a uma perspectiva mundial, global. Esta responsabilidade compartilhada por todos os membros da 65 Ibidem.
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sociedade se deve ao fato de que os efeitos da utilização não sustentável do meio ambiente causam efeitos generalizados, que não se restringem apenas a uma determinada área geográfica, cujas consequências não comprometem somente o tempo presente, também podendo se projetar para o futuro. Sendo assim, se destaca, neste contexto, a importância das ferramentas de participação cidadã. É através da participação efetiva dos cidadãos nos processos de tomada de decisão é que se pode chegar ao panorama de democracia ecológica. Pode-se conceituar a democracia ecológica como sendo aquele modelo democrático que está alinhado com a agenda ambiental, e que a partir da participação de seus membros, disponibiliza instrumentos individuais e coletivos de inclusão da questão ambiental em sua política de atuação. A democracia ecológica, por sua vez, só é possível de ser realizada se a sociedade em questão se enquadra dentro de uma fórmula democrática participativa. A democracia participativa representa a evolução do modelo representativo, que já não se mostra mais suficiente para dar conta dos anseios dos cidadãos, e que não encontram na mera representação política, viabilizada através do voto, sua principal e quase única fonte de expressão, a via adequada para a real concretização do Estado Democrático de Direito. Este modelo democrático possibilita a dinâmica de troca de opiniões entre Estado e indivíduos, a influência direta dos cidadãos na tomada de decisões políticas, e a possibilidade de verdadeiramente atuar, sem intermediadores, no jogo democrático. No contexto brasileiro, a democracia representativa se destaca principalmente através de ferramentas como a audiência pública, o referendo, a iniciativa popular, o plebiscito, o orçamento participativo, dentre outros. Em se tratando da questão ambiental, o maior destaque pode ser dado às audiências públicas, tendo em vista que nelas a população é chamada para dar sua opinião sobre o projeto que será desenvolvido. Especialistas no assunto, cientistas, associações de moradores, população local (aquela que diretamente irá suportar o impacto ambiental) podem dar seus pontos de vista acerca do tema, propondo alternativas, modificações que possam ser necessárias, ou mesmo simplesmente dando sugestões úteis para o projeto. A intervenção de movimentos sociais com bandeiras verdes, associações especializadas na luta pela preservação e reivindicações de grupos locais são muito importantes no debate acerca do desenvolvimento sustentável, entretanto, a participação e envolvimento dos cidadãos comuns representa um avanço ainda maior, posto que revela elevação no índice de cultura verde, de consciência ambiental e de preocupação com a preservação das reservas naturais do planeta. Neste sentido, percebe-se que há de maneira inequívoca uma relação direta estabelecida entre democracia e sustentabilidade e preservação do meio ambiente, sendo ainda possível sustentar que quanto mais desenvolvida esteja a democracia em determinado país, com mais mecanismos de participação cidadã, mais perto estará esta sociedade do patamar satisfatório de sustentabilidade.
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REFERÊNCIAS
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A JUSTIÇA PELO PACTO EM HOBBES: RACIONALISMO, IGUALITARISMO E LIBERDADE MECANICISTA Leonam Baesso da Silva Liziero
1. INTRODUÇÃO Hobbes é o primeiro dos grandes contratualista e sua teoria representa um novo paradigma na compreensão do fenômeno político e normativo. Suas obras, especial o apogeu de seu pensamento contido em Leviatã (1651), exportam da mecânica a forma de se pensar o direito e a política; o Estado é uma máquina construída pelos homens, é uma criação racional que não encontra correspondência na natureza. Muito se discute sobre se os hipotéticos homens que vivem na condição de guerra perpétua do estado de natureza agem racionalmente ou são meros irracionais agentes da cizânia em eternas ameaça e destruição recíprocas. Ou ainda, especula-se sobre o caráter maléfico do homem neste estrado, o que ainda mais contrasta com suas possíveis ações orientadas pela razão. Se o homem age pelas suas emoções e seus desejos, como o comportamento de conflito pode ser racional? De imediato pode-se dizer que sim, o homem hobbesiano é racional e pela razão o homem chega ao pacto e destrói a natureza. Neste trabalho serão discutidas algumas questões cruciais para a compreensão do pensamento hobbesiano. Analisar-se-á inicialmente a abstrata figura do homem e as bases fundamentais do estado de natureza: o individualismo e o igualitarismo. Em um segundo momento, o tema em pauta é a concepção de direito natural, que ganha um novo sentido na filosofia hobbesiana. Posteriormente, a ideia de lei natural e sua relação necessária com o racionalismo do homem hobbesiano. Por fim, de maneira a se completar a proposta deste trabalho, a racionalidade é descrita no âmbito da justiça pelo pacto de submissão. 2. ANTROPOLOGIA POLÍTICA DE HOBBES: INDIVIDUALISMO E IGUALITARISMO O pessimismo antropológico presente na teoria do direito e da política de Thomas Hobbes é causa para a justificação do Estado, o artificial Leviatã que emerge de um oceano de trevas do estado de natureza e o aniquila. É muito comum, em uma leitura menos pretenciosa do autor, concluir que os homens no estado de natureza hobbesiano não são racionais, comportandose tais quais animais furiosos em uma guerra constante de todos contra todos. Todavia, o que será demonstrado aqui são algumas considerações que procuram deixar claro que o homem hobbesiano é racional anterior ao Estado e que sua racionalidade não vem de um lampejo para acabar com a situação belicosa. É importante considerar que Hobbes em suas obras, sendo O Leviatã – originalmente publicada em 1651 – a de maior destaque, provoca uma ruptura com o método de compreensão da política, do direito e consequentemente do Estado. O paradigma de um Estado enquanto produto racional inaugurado por Hobbes contraria a formação espontânea do fenômeno político, JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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consagrada de forma mais icônica por Aristóteles. O hipotético caminho pensado por Hobbes é sintetizável em três estágios: (i) o estado de natureza, que considera o que o homem é sem o fenômeno político, ou seja, com o comportamento direcionado conforme determina sua natureza; (ii) o pacto de submissão, celebrado por cada qual com cada qual, cedendo todos os seus direitos naturais a uma pessoa criada em um momento posterior; (iii) o Estado civil, produto do pacto, que detém o poder soberano, institui a política e o direito, em um patamar superior a todos os homens, sendo portanto a única instância a dizer o certo e o errado, aniquilando o estado de natureza. Sobre a proposta de Hobbes, explica Gianluigi Palombella (2005, p.11): “a sociedade organizada segue-se a uma solução de continuidade em relação à natureza, segue-se a um artificio que os homens produzem ao introduzirem, mediante o ‘contrato’, uma censura que deixa para trás o status naturae.” Também observam Châtelet, Duhamel e Pisier-Kouchner (1985, p.51) que “nada no estado de natureza prepara o estado de sociedade: esse, que não é instituição divina ou de inscrição natural, tem de ser produto de um artifício”. O que será aqui debatido é o que leva os homens a saírem do primeiro estágio para o segundo, como eles podem ser motivados a serem signatários do pacto de submissão. Quando Hobbes, na intenção de compreender o Estado, vai ao ser humano estudá-lo, não pode tê-lo por um ser já inserido no comportamento habitual nas instituições políticas, sejam elas fortes ou instáveis. Para se pensar o politico, necessita-se entender o que é o homem sem o Estado. Hobbes imagina os seres humanos sem a presença do Estado, antes da ideia de ente político ser criado. Colocar o homem no hipotético estado de natureza é retirar a capa do Estado civil e deixá-lo desnudado em sua própria natureza. Inicialmente, o homem é entendido por Hobbes (1983, p.9), de forma isolada, como uma “representação ou aparência de alguma qualidade, ou outro acidente de um corpo exterior a nós, o que comumente se chama por objeto”, perceptível a cada um por meio das sensações. A sensação, o assunto do primeiro capítulo de O Leviatã, é uma ilusão resultante da percepção do movimento dos objetos – neste caso, tudo aquilo que é exterior aos órgãos dos sentidos. O poder de perceber e conhecer o mundo são naturais a todos os homens sem distinção, independentemente de um poder comum que os una, como o Estado. O que seria dos homens sem o Estado? A resposta da teoria hobbesiana é imediata: seres iguais e por isso são tendentes ao conflito. A natureza fez os homens tão iguais que nenhum deles poder exigir um benefício que outro também não possa. Somente levado pela sua força física ou astúcia, de certa forma os homens naturalmente são iguais. Por isso, Hobbes (1983, p.74) entende que “desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins”. Todos os homens são igualmente capazes de sentirem desejo por algo e todos tem as mesmas condições naturais de alcançar o que querem, seja pela força, seja pela sabedoria. Se dois homens, iguais em possibilidades, querem algo, haverá inevitável conflito. Continuar o raciocínio Hobbes (1983, p. 74): “Se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro”. Todas as pessoas naturalmente JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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têm a igual pretensão a tudo e como não há tudo para todos ao mesmo tempo, o conflito é inevitável. Desta forma, os homens tendem a querer cada vez mais poder e não se contentam nunca com o poder moderado. (HOBBES, 1983, p. 60) Nesse sentido, “the combination of equality and relative scarcity of goods generates a permanent state of reciprocal lack of trust, which induces all to prepare for war, and to make war if necessary, rather than to seek peace.” (BOBBIO, 1993, p. 39). O desejo por cada vez mais almejar e ter sucesso nas demandas na vida que buscam, é o que Hobbes (1983, p.39) denominará por felicidade; a prosperidade constante. Perpetuamente em suas vidas os homens direcionam suas ações para satisfazerem suas inclinações levadas pelos desejos e pelas sensações. Explica Goyard-Fabre (1999, p.84) que “o individualismo e o igualitarismo, vigas mestras do sistema antropológico-político de Hobbes, culminam na dialética das paixões e da razão”. Apesar de aparentemente contraditórias, razão e os impulsos naturais formam os uma relação conflituosa na qual o homem pode ser orientar da melhor forma possível para atingir seus objetivos. O homem hobbesiano entra em conflito com o próximo levado pelo seu ato de impelir, mas sempre guiado racionalmente. Os homens naturalmente não confiam em si, por isso a melhor forma de ser privado de sua própria vida e liberdade é antecipar o conflito. Há uma desconfiança recíproca entre todos: temendo serem atacados, os homens atacam primeiro para sua preservação e para conseguir o que almejam. Conforme leciona Bobbio (1999, p.35), “o estado de natureza constitui um estado de anarquia permanente, no qual todo homem luta contra os outros, no qual – segundo a fórmula hobbesiana – existe um ‘bellum omnium contra omnes”. Sem um poder que os mantenha unidos, o homem não tem o menor prazer em estar um na companhia dos outros (Hobbes, 1983, p. 75). Portanto, por sua natureza, os homens têm três causas principais de conflito: (i) a competição, motivada pelo lucro que os podem tirar atacando alguém; (ii) a desconfiança, com a intenção de se defender; (iii) a glória, cuja finalidade é a reputação. Neste sentido, “a competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro” (HOBBES, 1983, p. 60) A ausência de um poder comum leva inevitavelmente a uma condição permanente de guerra de todos contra todos. Não é mera batalha, um conflito realizado em um ato, mas sim uma verdadeira guerra, uma situação de tensão constante e permanente enquanto durar o ânimo hostil. Uma vez que todos são inimigos de todos, cada um pode somente se defender conforma suas próprias forças. Nessa situação, não há espaço para nada que os homens possam construir em conjunto; todas as instituições políticas e as sociedades não existem. Somente o “um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”. (HOBBES, 1983, p. 76). O homem naturalmente é guiado por seus desejos, suas paixões, que não podem ser considerados bons ou ruins por não existir um poder superior que estabeleça um critério. Da mesma forma, não há injustiça cometida pelos homens neste estado de natureza, uma vez que “as noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde á lei não há injustiça” (HOBBES, 1983, p. 77). A justiça não é JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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uma característica natural do ser humano, é uma qualidade inerente aos homens apenas em sociedade, mas não isolados. Sobre este aspecto, explica Renato Janine Ribeiro (2006, p.20): “Hobbes está ciente da dimensão chocante dessa tese radicalmente antiaristotélica. Estamos acostumados a acreditar em nossa natureza sociável. É justamente por termos esta ilusão, aliás, que nos tornamos incapazes de gerar um mínimo de sociedade”. Apesar de serem guiados por um desejo que leva a conflitos e provoca o constante estado de guerra, os homens naturalmente tendem a procurar a paz e fugir da morte, já que a morte representaria a perda da liberdade. Leciona sobre este aspecto Macfarlane (1970, p.21), que “embora Hobbes afirme que todos os homens desejam a paz, ele insiste em que a condição natural do homem não leva a sua realização, porque os apetites individuais e as diferenças de opinião geram concepções diversas do bem e do mal”. De acordo com Costas Douzinas (2009, p.88). “Hobbes transforma a cosmologia em uma antropologia e transfere o modo hierárquico do universo para os desejos humanos. Morte, a negação da natureza, é o mais natural de todos os fatos”. Ao mesmo tempo em que age para destruir ao próximo e satisfazer seus desejos, a razão determina um comportamento que possibilite em um momento posterior a realização de um acordo, o que Hobbes (1983, p. 77) chama de leis de natureza. Para se compreender o que é essa racionalidade do homem hobbesiano antes mesmo da instituição do Estado, que os motiva a fazer o pacto de submissão, é necessário verificar o sentido de dois distintos conceitos em sua teoria: o direito natural e a lei natural. 3. DIREITO NATURAL COMO LIBERDADE MECANICISTA Direito natural e liberdade são construções tradicionalmente metafisicas que encontram um novo paradigma na obra de Hobbes. Contrapondo-se às inúmeras concepções de direito natural da filosofia politica antiga e medieval, Hobbes pensa um caráter mecanicista para a caracterização do direito. O direito natural não tem origem senão nas possiblidades físicas do próprio homem. O autor pensa em uma matriz proveniente das ciências naturais para a elaboração de uma compreensão efetivamente epistemológica dos direitos, ao harmonizar o sensualismo – já que entende que o conhecimento humano deriva dos sentidos – com o racionalismo, já que a experiência não é capaz sozinha de fornecer verdades conclusivas (BERNHARDT, 1981, p. 121) Vejam-se de forma analítica estes dois conceitos correlacionados desenvolvidos por Hobbes (1983, p.78): “O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida”. Nesta primeira parte do conceito, Hobbes certamente estabelece um vínculo de origem entre o homem e o direito subjetivo. O direito não é dado ou revelado por uma instância transcendente, mas está em cada homem devido à sua condição físico-biológica de pertencer à espécie humana. Este direito é nada menos que a liberdade que cada um tem para se preservar e se manter vivo. Hobbes continua em sua definição: “e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim”. É da natureza do homem ser livre para perseguir seus objetivos e se proteger, usando para tal finalidade sua razão. Na sua significação precisa de direito natural, o autor atribui um elemento racional que orienta cada um dos homens a utilizar JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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sua liberdade da melhor forma possível para atingir seus objetivos. Essa é a mesma ideia desenvolvida anteriormente em Do Cidadão: “pela palavra direito, nada mais se significa do que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas faculdades naturais em conformidade com a razão reta.” (HOBBES, 2002, p. 31) No Capítulo XIV de Leviatã, onde explana sobre o que entende ser o direito de natureza, disserta sobre a ideia de liberdade: “a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem” (HOBBES, 1983, p.78). Percebe-se a exportação da ciência mecanicista para um conceito tradicionalmente até então metafísico que é a liberdade. Sobre a visão metafísica de Hobbes, explica Julian Marias (2004, p.273): “A metafísica de Hobbes é naturalista. Busca a explicação causal, mas elimina as causas finais e quer explicar os fenômenos de modo mecânico, por meio de movimentos [...] Em todo o acontecer domina um determinismo natural”. A liberdade hobbesiana é puramente física, limitando-se aos movimentos possíveis dos corpos. Os obstáculos físicos são as restrições à liberdade. Ser livre no estado de natureza é fazer tudo aquilo que quiser conforme suas próprias escolhas que podem ser orientadas racionalmente. Comenta sobre tal aspecto Philip Petit: (2008, p. 143): “Hobbes gave a speculative account of how the mind that beasts and humans share is constituted out of matter, distinguishing between its cognitive and motive abilities. Its activity involves nothing more than the internal motions of matter.” A naturalidade da metafísica, ou então, a redução da metafísica à física, é debatida de forma bem evidente nos últimos capítulos de Leviatã. Nesta parte, Hobbes realiza uma voraz crítica à metafísica oriunda da tradição aristotélica e da escolástica, considerando que forçadamente acaba recaindo em uma sobrenatural. Conforme escreve o autor sobre a negação da distinção entre essência e substância:
O mundo (não quero dizer apenas a terra, que denomina aqueles que a amam homens mundanos, mas também o universo, isto é, toda a massa de todas as coisas que são) é corpóreo, isto é, corpo, e tem as dimensões de grandeza, a saber, comprimento, largura e profundidade; também qualquer parte do corpo é igualmente corpo e tem as mesmas dimensões e, consequentemente qualquer parte do universo é corpo e aquilo que não é corpo, não é parte do universo. E porque o universo é tudo, aquilo que não é parte dele, não é nada, e consequentemente está em nenhures. (HOBBES, 1983, p. 388).
Sobre esta crítica aos fundamentos do direito político em Aristóteles, disserta Goyard-Fabre (1999, p. 82): “Hobbes é profundamente antiaristotélico e, de maneira mais radical, antigrego: a imagem da bela ‘totalidade’, valorizada pelo antigo pensamento helênico, está a léguas de distância de sua própria visão de sociedade”. A ideia de totalidade de um corpo para Hobbes é mera soma de mesmas individualidades, não comportando mais a separação entre essência e existência. A liberdade, como possibilidade de ação humana derivada da vontade, somente pode ser compreendida como movimento. O homem natural hobbesiano é livre porque se movimenta constantemente e é capaz de superar obstáculos físicos. Neste sentido, “cientificismo pretendido pela teoria hobbesiana abre à evidência um registro novo para a filosofia do direito político. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Nesse registro escrevem-se, com uma nitidez incisiva, no passo geométrico do mecanicismo, os paradigmas da modernidade jurídica e política”. (GOYARD-FABRE, 1999, p.31) Ainda é possível interpretar a liberdade do homem no estado de natureza como uma não-liberdade contida por um determinismo por causa da redução naturalista de sua metafísica. Defende este entendimento Julian Marías (2004, p. 273): “Hobbes supõe que os processos psíquicos e mentais têm um fundamento corporal e material; para ele, a alma não pode ser imaterial. Por isso Hobbes é materialista e nega que a vontade natural seja livre”. Percebe-se claramente a inovação ao explicar o direito natural como uma possibilidade física possível do homem em saciar seus desejos. O direito natural não é concedido, mas nasce com homem porque é inerente à sua natureza. Todos os homens são iguais em direitos porque todos os homens são iguais em sua condição de individuo racional, tendo diferenças meramente nas potencialidades que cada qual tem para exercer sua liberdade, características tais como astúcia ou força. 4. LEIS NATURAIS E RACIONALISMO O homem hobbesiano é racional no estado de natureza e outro conceito, complementar ao de direito natural, demonstra a presença de decisões racionais no belicoso homem que vive em guerra de todos contra todos: o conceito de lei natural. Hobbes não utiliza o direito como sinônimo da lei. Em questões semânticas, a lei e o direito são utilizados em sua filosofia com significações específicas, diversos do que era utilizado anteriormente. O vocábulo direito na expressão direito natural não significa o mesmo que o direito enquanto faculdade de agir dentro de um Estado civil, amparado em uma norma jurídica. No estado de natureza, como se já verificou, o direito é a liberdade de cada homem fazer o que quiser para preservar sua vida e satisfazer seus desejos. Uma lei natural por sua vez é significa uma limitação à liberdade ao mesmo tempo em que também é uma orientadora de suas ações possíveis. Vejam-se os conceitos de lei natural ou lei de natureza que Hobbes especula em suas obras: Em Do Cidadão, define uma lei natural como “o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das partes de nosso corpo” (HOBBES, 2002, p.38). Em Leviatã é explicado seu significado como “um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem de fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir para melhor para preservá-la” (HOBBES, 1983, p.78). Observa-se um sentido limitador da ideia da lei: a razão limita a ação humana tendente a prejudica-lo, ou seja, a atentar contra sua própria preservação. As leis naturais sempre levará o homem à sua preservação. Todo homem, assim como é possuidor do direito natural, também o é das leis naturais, uma vez que todo homem é dotado de razão. A razão, conforme entende Hobbes (1983, p. 27), é o “cálculo (isto é, adição e subtração) das consequências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos. Digo marcar quando calculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos para outros JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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homens”. A razão é dependente da linguagem necessita dela para o conhecimento dos resultados das ações. Os homens nascem racionais não porque a razão é inerente a eles, mas sim porque tem a expectativa de adquirir a razão conforme conseguem fazer o uso da linguagem. Neste sentido, “o uso e a finalidade da razão não é descobrir a soma, e a verdade de uma ou várias consequências, afastadas das primeiras definições, e das estabelecidas significações de nomes, mas começar por estas e seguir de uma consequência para outra” (HOBBES, 1983, p. 28). Portanto, a razão é a conexão, a operação lógica pelos juízos possíveis da formação linguística. Por ser um conceito correlato, para os efeitos de se compreender melhor a ideia de lei natural na especulação hobbesiana, faz-se necessário saber que o autor compreende por linguagem: “nomes ou apelações e em suas conexões, pelas quais os homens registram seus pensamentos, os recordam depois de passaram, e também os usam entre si para a utilidade e conversas recíprocas” (HOBBES, 1983, p. 20). Razão e linguagem são concepções essenciais para a compreensão do sentido de lei natural na obra de Hobbes e são vinculados no desenvolvimento de sua antropologia para posteriormente explicar os racionais motivos que levam os homens a abrir mão de sua liberdade e entrega-la a uma pessoa moral, criação também essencialmente racional. De acordo com Chevallier (1989, p. 70), “a natureza não colocou no homem o instinto de sociabilidade; o homem só busca companheiros por interesse, por necessidade; a sociedade política é fruto artificial de um voluntário, de um cálculo interesseiro”. No entendimento sobre lei natural, Hobbes elabora alguns pontos importantes que são determinantes para sua teoria jurídica e política, que merecem ser mais bem expostos. Pormenorize-se: i) A razão estabelece as leis naturais. O homem só conhece conhecer o que é uma lei natural por ser capaz de estabelecer raciocínios. ii) O homem não nasce racional, porque formação da razão é dependente da linguagem, que somente o homem adquire com alguma experiência. Todavia, a razão não é derivada da experiência em si, mas somente da linguagem, que consiste na passagem de um discurso mental para um discurso verbal, formado por uma sucessão de palavras em certa ordem. iii) No estado de natureza, a lei natural é a utilização da razão no intuito de preservar a vida e sua integridade física. Racionalmente, nenhum movimento terá o propósito de ferir o próprio homem. Se a razão é cálculo, não meramente matemático, mas também uma operação lógica, então as ações são calculadas graças às possiblidades linguistas de cada um. Todos os homens são igualmente dotados de lei natural, mas não igualmente dotados de uma razão plena; por isso a forma como medem as consequências de suas ações são diferentes, resultando em um possível sucesso ou insucesso em preservar sua vida e seu corpo. Nesse aspecto, pode-se reafirmar que o racionalismo é uma das bases fundamentais da antropologia hobbesiana. O entendimento sobre os motivos que levam à emergência do Estado civil prescinde do conhecimento sobre os motivos dos homens. Hobbes identifica a existência de algumas leis naturais que direcionam as ações humanas no sentido de autopreservação, sendo que as duas primeiras são mais gerais e essenciais, das quais é possível inferir as outras. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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O preceito geral racional determina que “todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra” (HOBBES, 1983, p. 78). A primeira das leis naturais é procurar a paz e segui-la; e caso não seja possível, o homem utiliza de sua liberdade (ou de seu direito natural) para se manter vivo e intacto. Todavia, dessa passagem é possível perceber que o exercício da liberdade ainda sim é restrito racionalmente. A liberdade de fazer o que quiser para obter vantagens é plena e irrestrita, desde que seja direcionada a agir de maneira que contrarie a primeira lei natural. Assim, o homem deve sempre perseguir a paz, mas como não pode alcançar porque está ainda em um estado de guerra, deve usar de sua liberdade para continuar vivendo. Hobbes teoriza os homens vivendo atrás da paz no estado de natureza sem poderem alcançala. O homem neste estado de natureza vive em uma perpetuidade de insegurança, pois a paz, única situação que pode salvá-lo, está distante e por mais que os homens sejam racionalmente inclinados a persegui-la, não podem ter sucesso por também serem dotados de liberdade e precisarem estar em constante vigilância em relação ao próximo. Por isso, não há interação com outra pessoa a não ser para atacá-la, seja por qualquer uma daquelas principais causas de conflito: competição, insegurança ou glória. A busca pela paz no estado de natureza é um trabalho de Sísifo. Segundo o mito grego, Sísifo, considerado um dos maiores ofensores à ordem estabelecida pelos deuses, foi condenado após a morte a empurrar uma grande pedra rumo ao cume de uma montanha no Tártaro. Sempre que estava quase chegando ao topo, uma força irresistível levava a pedra de volta à base da montanha, levando Sísifo a ter que recomeçar o trabalho, que duraria a eternidade: para sempre teria que repetir o movimento de empurrar a pedra montanha acima para nunca chegar a seu objetivo. A primeira lei natural faz deriva a segunda: renunciar ao direito natural na medida em que é necessário para se conservar, contanto que todos os outros também o façam, “contentandose, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo” (HOBBES, 1983, p. 79). Esta segunda lei da natureza estabelece que os homens devam se privar da amplitude de sua liberdade para alcançar a paz. Os direitos então devem abandonados por renúncia, quando são perdidos simplesmente, ou por transferência, implicando em benefício de alguém que os recebam. A transferência mútua de direitos é o que Hobbes denomina por contrato, ressaltando que nem todos os direitos podem ser transferíveis, como a própria vida e a proteção do próprio corpo. Caso isso ocorresse, o objeto e o propósito do contrato estariam perdidos. Portanto, qualquer transferência de direitos para buscar a paz e se auto-conservar que implique na perda da finalidade para a qual a cessão se destina, é inútil e, portanto, contraria as leis da natureza. Desta forma, os homens não seriam racionais se cedessem sua liberdade para contrariar a primeira das leis naturais. A partir dessas duas principais leis da natureza se estabelecem as premissas para o pacto de submissão que destruirá o estado de natureza e construirá o Estado civil, diluídas em outras dezessete leis naturais, descritas no Capítulo XV de Leviatã. A ideia que Hobbes desenvolve sobre o contrato é um ponto fundamental em sua teoria: este ato obrigacional será o caminho pelo qual a razão dos homens trabalhará para substituir a natureza pela artificialidade, como JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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única forma eficaz de efetivar a primeira lei racional. Sobre o pacto de submissão, leciona Jellinek (1997, p. 122): “Mediante este contrato el status naturalis se convierte em status civilis, y este contrato fundamental es la vez social y de sujeción, apariecendo, em vez del individuo sin lazo alguno, la persona civilis, el Estado”. Explica também Chevallier (1989, p. 70) sobre o pacto: “a transferência a um terceiro, por contrato firmado ‘entre um e outro’, do direito natural que cada um possui sobre todas as coisas, eis o artificio que constituirá os homens naturais na sociedade política”. A construção racional do Estado se justifica por uma escolha racional feita por uma questão essencial: se não é da natureza do homem se associar, ele deve se associar porque isso a ele trará alguma vantagem maior que suas perdas. O homem precisa viver em paz, mas somente com a transferência de direitos ele poderá efetivar essa realização. Nota-se: a realização do pacto hobbesiano não é uma decisão altruísta; é sim para propósitos egoístas, já que o individualismo busca propósitos de benefício próprio, ainda que haja um sacrifício do direito natural. Em uma perspectiva de balanço de valores, a liberdade de fazer o que quiser e possuir tudo que as possibilidades permitirem é menos importante que o risco iminente e perderem a vida e consequentemente a própria liberdade. 5. O PODER CIVIL E A JUSTIÇA PELA OBEDIÊNCIA DO PACTO. O grande motivo que leva os homens a entrarem em um pacto para renunciar à liberdade é a procura pela paz e a segurança de seu próprio corpo, como determina a primeira lei da natureza. Todavia, como o homem hobbesiano é demasiadamente individualista, há uma relação paradoxal entre esta lei e seu direito natural, do qual decorre a segunda lei, que é a disposição de renunciar à liberdade para garantir a segurança na medida em que todos os homens fizerem o mesmo. Muito além de mera concordância, o pacto inaugura uma verdadeira unidade de todos os homens em uma só pessoa: o Estado (Civitas). Em Do Cidadão, no Capítulo V, Hobbes (2002, p.97) o define como: “uma pessoa cuja vontade, pelo pacto de muitos homens, há de ser recebida como sendo a vontade de todos eles; de modo que ela possa utilizar todo o poder e as faculdades de cada pessoa particular, para a preservação da paz e a defesa comum”. O conceito é melhor desenvolvido em Leviatã no Capítulo VII (que inaugura a parte da obra destinada ao Estado): “uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e defesa comum” (HOBBES, 1983, p. 106). O resultado do pacto é a instituição do Estado, uma pessoa moral, puramente artificial que recebe a liberdade cedida pelos homens. A transferência da liberdade cria a sociedade e o Estado e destrói o estado de natureza. A política, criação racional, reconstrói o ambiente de interação dos homens, o modificando drasticamente, uma vez que já não se trata mais de um estado de anomia e liberdade locomotora possível e irrestrita. Algo é importante se questionar na leitura de Hobbes: como garantir que os homens cumpram o pacto a que se submetem se não tiram dele nenhum benefício? Por que o homem teria a intenção de transferir sua liberdade para um ente que ainda não foi criado e que não teria obrigações em relação a ele? JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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O homem renuncia à sua natureza para salvar sua vida, constantemente ameaçada pelos outros, tal como os outros reciprocamente teriam suas vidas ameaçadas. Ao pensar sobre motivações para homem cumprir os pactos após a instituição do poder civil, Hobbes disserta sobre a terceira lei natural: os homens devem obedecer pactos. Decorrente da lei anterior, há um sentido de obrigatoriedade naquilo que os homens pactuam, devendo, portanto, sempre ter a intenção de cumprir o que prometem. Essa lei natural também é essencial para o término do estado de guerra. Desta terceira lei é inferido o conceito de justiça no pensamento hobbesiano: “consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los” (HOBBES, 1983, p. 87). Verifica-se a essencialidade de uma instância superior – portanto um desnivelamento àquela situação de igualdade que gerava o conflito no estado de natureza – para que a característica da obrigatoriedade nas condutas exista. Há uma linearidade nestas três primeiras leis. A justiça, no sentido hobbesiano como cumprimento de pactos, “é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza” (HOBBES, 1983, p. 88). Esta terceira lei da natureza é vinculada diretamente às duas anteriores: os homens devem cumprir seus pactos (terceira lei) porque devem renunciar aos seus direitos (segunda lei) para poder alcançar a paz e se conservar vivo (primeira lei). A justiça é um aspecto interessante nesta teoria: ao contrário de seus antecessores, Hobbes vincula a origem da justiça ao pacto que inaugura o Estado. No estado de natureza não há justiça ou injustiça, uma vez que inexiste um poder superior que estabeleça um critério de certo ou errado. A artificialidade do ente político gera a noção de justiça que norteará as ações humanas. A justiça depende de um poder coercitivo que garanta o cumprimento do pacto. Sem este poder civil, os homens não teriam benefício algum cumprindo o pacto que apenas lhes oferece desvantagem e não seria racional cumprir o pacto. Este é um questionamento à racionalidade do homem hobbesiano. É racional que os homens renunciem a liberdade e transfiram a um poder superior. Porém, o cumprimento do pacto é racional, uma vez que os motivos não seriam os mesmos? Verificar a justiça como lei racional do homem hobbesiano pode ser compreendida levando-se em consideração alguns elementos de teoria dos jogos, especialmente um deles, que é claramente associado ao pensamento de Hobbes: o dilema do prisioneiro. De acordo com Álvaro de Vita (2007, p.120), a segunda e a terceira lei natural do homem hobbesiano apresentam dois problemas de motivação: a lógica do contrato, em que os indivíduos interessados em benefícios próprios precisam alcançar um ponto comum, em renunciar à sua liberdade; o outro é a lógica do cumprimento deste contrato, uma vez que se questiona se é racional que os homens se comportem conforme os termos pactuados, já que poderia se beneficiar da mesma forma se não cumprisse. Em todo caso, como seria possível afirmar que os homens cumprem racionalmente o pacto? Esta é uma interpelação levantada pelos tolos, personagens que dialogam com Hobbes no Capítulo XV de Leviatã. O pacto de submissão remete diretamente a um conhecido problema da Teoria dos Jogos: JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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o Dilema do Prisioneiro, conhecido pela formulação de Albert William Tucker. Este jogo, que não resulta em uma soma zero, demonstra o comportamento de um jogador com a finalidade maximizar suas vantagens, ainda que isso traga prejuízo ao outro jogador. O pacto e a consequente criação artificial do Estado é a resolução deste problema. A motivação para o cumprimento do que foi estabelecido no pacto é o medo da coerção, uso da força pelo Estado para se fazer valer as leis emitidas pela vontade do soberano, fundamentadas no próprio pacto. Os homens desta forma não cumpririam o pacto se não fosse o caráter coercitivo das leis do Leviatã. Por isso, a teoria hobbesiana apresenta traços iniciais do positivismo jurídico, que identifica do direito em função da coerção. Somente é jurídico o que for resultado de vontade do Soberano, não havendo manifestação alguma de juridicidade nas relações sociais que contrarie as normas estatais. Esta é a vinculação da ideia de justiça que Hobbes desenvolve em relação ao direito. Se nas teorias jusnaturalistas anteriores – como a de Thomas de Aquino ou Grotius –, o direito produzido pelo ente político dependia do direito natural para ser validado como justo ou injusto. Da mesma forma, em teorias contratualistas posteriores, o direito natural serve como critério para se aferir a legitimidade ou não da ordem normativa positiva. Apesar de Hobbes fundamentar a legitimidade do Estado em direitos naturais, o significado do termo tem um sentido bem diferente usado normalmente no jusnaturalismo, não fazendo referência a uma ordem jurídica à parte da positiva – até mesmo porque no estado de natureza hobbesiano inexiste ordem – e sim a uma condição inerente ao ser humano. Hobbes inverte de certa forma esta perspectiva do jusnaturalismo. Não considera a questão da validade dependente da justiça, ou seja, é válido porque é justo. Todavia ele não separa a ideia de validade da de valor, como os juspositivistas do Século XX. Hobbes atrela a condição de justiça à validade da norma emitida pela vontade do soberano. Balizar o justo e injusto depende do comportamento acordo com a lei do Estado. Por isso, “constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto.” (HOBBES, 1983, p. 107). Somente pode cometer injustiça quem se comporta de modo a possibilitar uma punição dada pelo Estado. Verifica-se que Hobbes busca resolver o problema comportamental da terceira lei natural com a sanção. Os homens são motivados a cumprir o pacto, logo não cometerem injustiça, por medo da punição. Haverá menos ganho comportando-se conforme a lei do Estado do que não se comportando, daí a imprescindibilidade da coerção para o sustentáculo do Leviatã. Sem coerção, sem direito do Estado, sem ordem, sem paz. Hobbes escreve sobre as leis civis no Capítulo XXVI de Leviatã. Após esclarecer que a lei civil é uma ordem diferente de um conselho. E, além disso, não é qualquer ordem, pois é dada a alguém que previamente já tem a obrigação de obedecer. Hobbes (1983, p.161), define que “a lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não é contrário à regra”. Este conceito se coaduna com o sentido dado à legislação como fonte primária do direito, conforme a primazia da lei necessária para a formação e consolidação do Estado moderno. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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O Estado, resultado do pacto, é o único legítimo criador do direito e aplicador da força. Hobbes nega a submissão a qualquer outra ordem que não seja a estatal, “pois só o Estado prescreve e ordena a observância daquelas regras a que chamamos de leis, portanto o Estado é o único legislador” (HOBBES, 1983, p. 161). O monopólio da produção do direito e consequente imputação de sanções constitui o caráter coercitivo do direito do Estado, manifestação formal do comando do soberano para os súditos. Hobbes, ao pensar a sanção como motivação negativa para o cumprimento do pacto, reduz a questão da justiça às leis civis. Estas leis são a formalização das leis naturais e são diretamente vinculadas a ela; a lei do Leviatã é a manifestação das leis racionais, pois tem como objetivo maior a busca da paz que somente a instituição do Estado, livre de obrigações para com os súditos, pode proporcionar. O Estado civil impede o comportamento humano conforme sua natureza destrutiva e reconstrói seu mundo de forma aos seus movimentos serem devidamente limitados pela lei, o único caminho possível para a paz e para evitar a autodestruição. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O pacto de submissão livra o homem hobbesiano de seu trabalho de Sísífo. O Estado civil, ao contrário do estado de natureza, possibilita a paz pela coerção. A vida humana sem o Estado civil é vazia de significado porque é não existem propósitos possíveis no objetivo das pessoas. É possível inferir que sem a civilidade dada pelo Estado, o homem é apenas um animal racional, vivendo infeliz e inseguro. Por ser racional, o homem pode escolher entre sua destruição pela liberdade irrestrita, ou pela conservação de sua natureza, sacrificando o estado conforme a natureza. O Estado civil é a reconstrução racional de um estar no mundo do homem, na qual seu comportamento é condicionado à transgressão ou não de leis dadas pela vontade do Soberano, ser artificial resultado do pacto de submissão. De maneira indireta, as leis são racionais não pelo seu conteúdo – qualquer um que o Leviatã determinar – mas sim pela sua origem. O Estado é legitimado pela pressuposição do pacto de submissão, que os homens são levados a celebrar conforme a segunda lei natural, motivados pela primeira. Da teoria hobbesiana destaca-se três contribuições importantes para o desenvolvimento do pensamento juspositivista nos Séculos XIX e XX: (i) a necessidade da sanção para o direito, uma vez que é a coerção presente nas normas do Estado que motiva o cumprimento do pacto pelos súditos, mais precisamente, é o que os leva a obedecer as leis; (ii) a desvinculação entre valor e validade. As normas do Estado são válidas e legítimas por serem produto da vontade do soberano, não por terem determinado conteúdo. Desta forma, independentemente do que o soberano legisle, a norma será válida e gerará o dever de obediência; (iii) a expressão da vontade soberana, sob a forma das leis, é a fonte primária do direito. É identificado como direito tudo aquilo que o Estado produz ou que em seu silêncio permita surgir na sociedade – como o costume. Observe-se que o que Hobbes propõe está no sentido de uma teoria da obediência também. Ele justifica o dever de obediência não somente por uma diretriz normativa, mas também em razão da ideia de justiça contida na terceira lei natural, a obrigatoriedade de cumprir o pacto. Hobbes faz uma inversão que o jusnaturalismo em geral reza: é justo porque é legal. A ação justa é a ação que não viola a lei do soberano. A injustiça é a violação da lei, que é por sua JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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vez o descumprimento do pacto. A gênese do juspositivismo em sua obra é ideológica: não é apenas uma obrigação jurídica, mas também uma obrigação moral. Por fim, percebe-se o caráter racional na antropologia hobbesiana. Ainda que se comportem como bestas irracionais no estado de natureza, a natureza também proporciona ao homem a racionalidade e é graças a esta característica que por meio do pacto conseguem aniquilar a situação de guerra perpétua e reconstruir sob a autoridade de um terceiro, que determinará todos os critérios sobre o direito e sobre justiça.
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O POSITIVISMO JURÍDICO INCLUSIVO COMO UMA FORMA DE REINTERPRETAÇÃO DO PARADIGMA DOMINANTE
Flávia Góes Costa Ribeiro Loiane Prado Verbicaro
1. INTRODUÇÃO Com a crise da modernidade, consolidou-se a ideia de decadência do positivismo jurídico, emblematicamente relacionada à derrocada dos regimes totalitários do pós-guerra que, distanciando-se das ideias de fetiche da lei e do formalismo acrítico que serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados, ao permitirem o exercício do poder político e militar, bem como a segregação da comunidade judaica (leis raciais) à luz da legalidade vigente, ensejaram a necessidade de repensar e de redirecionar o papel do direito e da moralidade no interior dos regimes políticos contemporâneos. Como consequência desse realinhamento, consolidou-se um novo constitucionalismo democrático e a ideia de valorização dos direitos humanos, conforme expresso na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, como limites ético-valorativos de atuação do Estado. Ante tal realidade, vivenciou-se a entronização de valores morais irrenunciáveis nas constituições das principais democracias ocidentais, o que permitiu a incorporação de princípios de justiça relativos à liberdade, igualdade, solidariedade, dignidade humana, que formam a raiz dos direitos humanos. E em razão da realidade antitética, pelo menos a priori, entre o paradigma jurídico positivista e sua realidade neutral e meramente descritiva vis-à-vis a irrenunciabilidade dos direitos humanos e sua fundamentação moral-valorativa incorporada pelo constitucionalismo democrático contemporâneo, o positivismo jurídico, acusado de autodestruir-se, viu-se ante a necessidade de realizar ajustes teóricos que afetaram, em alguma medida, a sua postura de neutralidade e isolamento às dimensões da vida moral, culminando em correntes reformuladas, que intentam (re) afirmar a tese da separabilidade entre direito e moral1 sob novos argumentos, seja afirmando a conexão não necessária, seja defendendo a impossibilidade conceitual da relação entre direito e moral a partir de argumentos mais sofisticados. Há certas correntes do positivismo, no entanto, que sustentam a ideia de que a teoria contemporânea partiu de uma falsa crença de que os ataques das teorias rivais ao positivismo jurídico, notadamente ataques de teorias normativas que apontaram o excessivo formalismo e limitação da teoria positivista para enfrentar os desafios advindos com os regimes políticos autoritários do século XX e com a crescente complexificação das sociedades modernas, apresentaram argumentos decisivos e inquestionáveis acerca da insuficiência do modelo 1 A tese da separação conceitual entre direito e moral (direito como abordagem avalorativa) é reforçada pela tese positivista das fontes sociais do direito, segundo a qual o direito é um produto humano, convencional, cuja identificação depende exclusivamente de fatos sociais, sem que seja necessário recorrer a valorações ou argumentos morais. Trata-se de uma definição neutral do direito, o que o compatibiliza com a neutralidade dos Estados Liberais de Direito.
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positivista, especialmente nos atuais regimes políticos norteados por direitos fundamentais, pela presença de um constitucionalismo democrático que ensejou a forte presença dos tribunais Constitucionais na garantia de valores morais e princípios de justiça. Trata-se da teoria dominante no Brasil e nos países continentais: a ideia de que o positivismo fora suplantado por teorias normativas e/ou interpretativas do direito. Segundo essas correntes defensoras do positivismo, referido ataque estigmatizou a teoria positivista, reduzindo-a a um modelo pérfido e perfunctório, ao partir do equivocado pressuposto de que a descrição realizada pelas teorias rivais era correta e definitiva. Para essa versão, o positivismo jurídico continua apresentando-se como teoria plausível e viável, capaz de explicar adequadamente o direito, seja partindo da ideia de que as críticas das teorias rivais partiram de incompreensões da teoria positivista e, nesse sentido, o aparente ataque não realizou nenhuma crítica real e efetiva ao positivismo, seja considerando a recuperação e/ou atualização do modelo positivista para adequar-se e responder à tentativa de ataque desconstrutivista. Trata-se do modelo hegemônico no mundo anglo-saxão, dominado pela filosofia analítica. Uma das versões renovadas refere-se ao positivismo jurídico inclusivo ou positivismo moderado (soft positivism), corrente representada por Herbert Hart, Jules Coleman, Matthew Kramer, K. Himma e Wilfrid Waluchow, que defendem a tese de que, a despeito de não existir uma conexão conceitual e necessária entre direito e moral, critérios morais podem fazer parte do direito e tal ideia não ameaça a tese positivista da separabilidade, bem como não se coaduna com qualquer versão apresentada pelas teorias jusnaturalistas ou mesmo com a teoria interpretativista de Ronald Dworkin, muito embora se reconheça que há elementos da descrição dworkiniana de sua teoria normativa que são compatíveis com esta versão inclusivista do positivismo jurídico. De acordo com essa versão renovada do positivismo, a moral política, é dizer, “la moral que se utiliza para evaluar, justificar y criticar a las instituiciones sociales y sus actividades y productos” intervém na determinação do sentido dos textos constitucionais que reconhecem direitos e liberdades na determinação do impacto das diversas disposições desses mesmos textos sobre a validade das normas. A moral política se vê, pois, incluída “dentro de los fundamentos posibles para establecer la existencia y el contenido de las leyes positivas válidas, es decir, de las leyes sancionadas o creadas por seres humanos por medio de legislaturas, tribunales o la práctica consuetudinaria”. (WALUCHOW, 2007, p. 17). Referida conexão, no entanto, pode produzir-se ou não e mesmo que não se produza, não deixará de ser um autêntico sistema jurídico, ainda que profundamente injusto. O positivismo jurídico inclusivo propõe-se, na verdade, a construir uma alternativa intermediária entre a ciência pura do direito e sua descrição moralmente neutral que reflete a isenção a toda influência valorativa da ética, da política, da teoria social, tal como concebida por Hans Kelsen e as concepções dworkinianas que apregoam o valor intrinsecamente moral da prática jurídica. E é sobre ele que o trabalho propõe-se a analisar. 2. AS REFORMULAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍDICO A doutrina positivista do Direito foi - e continua sendo - veementemente alvo de severas críticas por parte de seus opositores. Diante disso, o Positivismo, atualmente, tem passado por JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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mudanças - através do Positivismo Jurídico Inclusivo -, no intuito de se adequar ao desenvolvimento do Direito e da própria sociedade. Contudo, mais do que isso, tal Escola não pretende abrir mão do status que detém: de ser a doutrina hegemônica, a qual se tornou o paradigma dominante. Neste passo, cabe lembrar que o debate entre Hart e Dworkin enriqueceu os discursos jurídico-filosóficos dentro do Direito, ocasionando, por conseguinte, diversas teorias pós hartianas, a exemplo do Positivismo Jurídico Inclusivo. Porém, antes de se abordar especificamente as reformulações por quais passara o Positivismo, atenta-se à divisão trinária que se encontra hoje na seara da Filosofia do Direito no que tange aos tipos de Positivismo. São eles: Positivismo Jurídico Exclusivo, Positivismo Jurídico Inclusivo e Positivismo Jurídico Normativo. O ponto em comum entre as três vertentes é o fato do Direito constituir-se em uma criação humana e a não obrigatoriedade de conexão entre Direito e moral. Sendo assim, para o Positivismo Exclusivo - aquele encontrado nas obras de Raz, Marmor, Dickson e Shapiro -, há uma negação completa da tese da incorporação da moral ao fenômeno jurídico, isto é, a ciência jurídica prescinde de critérios morais, os quais seriam incompatíveis com o próprio conceito de Direito. Assim, “direito justo” seria quase um paradoxo, visto que seu traço fundamental não estaria - e nem poderia estar - relacionado a algum elemento axiológico. Segundo Dimoulis (2006, p. 135), essa corrente revela que a moral, em nenhuma hipótese, poderia ser utilizada como critério de identificação do Direito Positivo, seja da constatação de sua validade, seja da realização de sua interpretação. A este respeito, o próprio Raz (1979, p. 37-52) aduz que, até quando a norma refere-se expressamente a um conteúdo substancial, isso não transforma a natureza da moral, ou seja, a moral nunca poderá ser jurídica, uma vez que o único elemento juridicamente fundamental é a norma criada e posta de forma legítima, independentemente de conteúdos e intenções do legislador. Ora, encontra-se, aqui, como dito, uma versão rigorosa da tese da separação entre Direito o moral. Ademais, Marmor (2002, p. 104) revela que o tipo de Positivismo Exclusivo que tem em mente seria aquele que defende, basicamente, que a validade da norma esgota-se nas fontes convencionais da lei, em outras palavras: “[...] all law is source based, and anything which is not source based is not law.”. Por isso, a crítica deste autor dirigida à versão Inclusiva do Positivismo reflete-se no fato de que esta variante renovada acredita que há um “intervalo” (gap) entre regras e sua aplicação, sendo que este hiato pode ser conectado (bridged) mediante critérios morais e políticos. Afinal, para o autor, a falha desta vertente está, justamente, no fato de que não há nenhum “buraco” entre as regras e suas respectivas aplicações e, portanto, não haveria necessidade de se recorrer a premissas valorativas (MARMOR, 2002, p. 112). Entretanto, de fato, afirmar que a moral nunca interfere conceitualmente no sentido do Direito é algo juridicamente impossível, senão quando socialmente impossível. Esse sentido do Positivismo Jurídico torna a conciliação entre a doutrina positivista e o Constitucionalismo Democrático quase intolerável, visto que os obstáculos postos para tanto são praticamente intransponíveis e impermeáveis. Por isso, o presente trabalho não abraça essa versão da Escola positivista. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Por outro lado, o Positivismo Inclusivo – encabeçado por Lyons, Coleman, Waluchow, Himma e Kramer –, acaba por aceitar e, por conseguinte, não negar a tese da incorporação, de modo que os sistemas jurídicos podem, sim, aderir a orientações morais como critérios de validade jurídica das normas. Neste sentido, Dimoulis (2006, p. 137) afirma que há possibilidades de determinados sistemas jurídicos considerarem a moral como forma de determinação da validade jurídica das normas, porém, nem sempre, os valores morais são decisivos no momento de definir e aplicar o Direito. Os ensinamentos de Himma (2002, p. 136-137) permitem concluir que a tese da incorporação da moral ao Direito bifurca-se em dois componentes, os quais ele denomina de the sufficiency component e the necessity component. O primeiro deles revela que os sistemas legais cumprem a condição suficiente quando a norma, para ser legalmente válida, reproduz conteúdos morais - caminho escolhido pelos positivistas inclusivos. Já o segundo componente aduz que, nos sistemas jurídicos, há uma condição necessária para que uma norma seja considerada legalmente válida, e esta condição determina que se leve em consideração conteúdos morais, ou seja, não basta que a validade de uma norma legal esteja em uma relação lógica e apropriada para com as outras normas do sistema – modelo defendido pelos adeptos do Neoconstitucionalismo. No mesmo sentido, Coleman (2003, p. 67) revela haver “critérios de juridicidade de cunho moral” imbricados nos sistemas jurídicos – moral criteria of legality. Além disso, o mesmo autor ainda assim se pronuncia: “O caráter jurídico de normas pode depender algumas vezes de seus méritos substanciais e não somente de sua origem ou fonte social.” (COLEMAN, 2001, p. 100). Cabe ressaltar, nesse ínterim, as lições de Hart (2012, p. 250) acerca da sua tese das regras secundárias de reconhecimento. Tal tese leva em consideração que essas regras podem incluir critérios substanciais como requisitos de validade das normas, ou seja, a moral pode tornar-se relevante no sistema jurídico e isso se dá quando a regra de reconhecimento inclui valores morais. Desse modo, a vertente que interessa ao presente trabalho é, justamente, a do Positivismo Jurídico Inclusivo, o qual, diferentemente do Positivismo Exclusivo, revela que os conceitos do direito normativo podem estar em função de determinações e considerações morais, acabando por trazer a possibilidade das normas jurídicas estarem atreladas a um conteúdo moral mínimo. Assim, poder-se-ia dizer que a legalidade estaria condicionada a uma carga de conteúdo moral, isto é, algumas vezes, a validade das regras estaria em uma relação de dependência para com méritos substantivos, relativizando a teoria do pedigree das leis. Já o Positivismo Normativo visa estabelecer o Direito como ele deve ser e não como ele é - e, neste aspecto, diverge das duas vertentes citadas acima, as quais analisam o fenômeno jurídico de forma inversa. Sendo assim, buscando garantir a liberdade e a Democracia, essa versão doutrinária defende normas que sejam objetivamente interpretáveis e aplicáveis, bem como detenham caráter público, direto e claro, tendo como adeptos MacCormick, Campbell, Waldron, Schauer. Diante do exposto, após algumas criteriosas censuras e acusações serem dirigidas ao Positivismo Jurídico, chega-se ao momento de o mesmo exercer seu direito ao contraditório. Com efeito, chega-se, portanto, aos pontos nevrálgicos da problemática. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Passando, neste momento, propriamente, às reformulações do Positivismo, nota-se que a versão moderada (inclusiva) consegue responder às críticas dos seus opositores, ainda que tais críticas sejam baseadas na “falácia do espantalho”, visto dirigirem-se suas críticas à caricatura das ideias do adversário, ao invés do verdadeiro conteúdo de seus posicionamentos. A primeira crítica à Escola positivista refere-se acerca da relação entre Direito e moral. Como dito alhures, há uma acusação cabal de que tal doutrina prima pela neutralidade axiológica e meramente descritiva do Direito. Logo, Finnis (2002, p. 15) assim pronuncia-se: “If you want to be ‘positivist’, ‘rigorously descriptive’ about law as a kind of social fact, you had better be positivist, rigorously descriptive, about morality, too.”. Ora, tal argumento não é válido, pois esse não é o sentido do Positivismo Inclusivo. Muito pelo contrário. Esta vertente acaba por aceitar a incorporação de preceitos morais validamente reconhecidos pelo Direito. Nas lições de Bermejo (2006, p. 105), o Positivismo Inclusivo tem como objeto de referência uma “estrategia de conciliación entre la regla de reconocimiento y moralidad, entre positivismo y moralidad.”. Quando os juízes resolvem determinados casos que lhes são postos à pacificação social, consoante alguns padrões morais, acabam por incorporar ditos conceitos de moralidade na composição do próprio Direito juridicamente válido. Nesta senda, Dimoulis e Lunardi (2008, p. 190) ensinam que o Positivismo Jurídico não nega a conexão do binômio criação-aplicação entre Direito e a influência dos valores, já que somente pergunta qual a autoridade competente a decidir em cada caso concreto e quais seriam os limites de seu poder. Nota-se, com isso, que a aplicação do silogismo lógico formal só pode ser entendida caso houvesse nítida fundamentação de uma moral mínima aplicada pelo magistrado segundo uma norma legal. A moral, portanto, passa a ser um critério que identifica o Direito, surpreendentemente, o Direito Positivo, ainda que Inclusivo. Assim, Dimoulis (2006, p. 140-141) salienta que o Positivismo Jurídico Inclusivo não se limita a elaborar uma teoria que apenas descreva de que modo a moral pode influenciar no Direito, pois, mais do que isso, acaba-se tentando “salvar” a abordagem positivista do atual descrédito que lhe fora conferido, uma vez que há uma estratégia de concessões ao discurso jusmoralista. No mesmo sentido, Waluchow (2007, p. 17), um dos representantes mais notórios dessa versão renovada do Positivismo, aduz que a moral política vê-se, pois, incluída “dentro de los fundamentos posibles para estabelecer la existencia y el contenido de las leyes positivas válidas, es decir, de las leyes sancionadas o creadas por seres humanos por medio de legislaturas, tribunales o la práctica consuetudinaria.”. Ainda assim, há quem defenda que essas “concessões ao discurso jusmoralista” acabam fazendo com que o Positivismo adentre em uma contradição com sua própria doutrina. Dworkin (2014, p. 157) critica esse tipo de Positivismo – soft convencionalism, como o chama –, revelando que ele estaria mascarado, pois, na verdade, é uma atenuação da sua doutrina da integridade, considerando-o como uma “versão subdesenvolvida” de tal teoria, pois, o “verdadeiro Positivismo Jurídico” seria tão somente o Exclusivo. Logo, aduz que o Positivismo Inclusivo torna-se uma doutrina, na verdade, antipositivista, uma vez que derruba as teses centrais do Direito Positivo. Por isso, Dworkin denominou tal argumento de “argumento do colapso”. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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As críticas do teórico Pós-Positivista, segundo Macedo Júnior (2014, p. 166), atacavam justamente os alicerces da doutrina positivista de tal forma que a tarefa de se autodefinir “positivista” tornava-se difícil ou, até mesmo, quase impossível. Porém, o estudioso americano é rebatido por outros que defendem o Positivismo Jurídico Inclusivo como a noção mais adequada de uma doutrina positivista, pois é a corrente que abarca as características essenciais dos ordenamentos jurídicos das Democracias constitucionais contemporâneas. Ora, não seria o Positivismo Jurídico que colapsa em um antipositivismo, mas sim, a versão do “direito como integridade” de Dworkin que acaba por tornar-se, ela mesma, um tipo de Positivismo Jurídico (MORESO, 2002, p. 93). Cabe frisar, aqui, que Waluchow rebate quatro argumentos de Dworkin contra a tese inclusiva do Direito Positivo, quais sejam, argumento da validade, do pedigree, da função e da discricionariedade. Quanto ao primeiro argumento – validade – Waluchow (2007, p. 185) afirma que não há razões para que se possa supor que determinada lei válida não possa conter uma dimensão de peso, ou seja, não há motivos para se pensar que princípios que contenham peso não possam também satisfazer aos testes de validade encontrados nas regras de reconhecimento. O segundo argumento diz respeito ao pedigree normativo. Waluchow (2007, p. 190-192) revela que os ataques do doutrinador Pós-Positivista somente podem ser dirigidos ao Positivismo Jurídico Exclusivo, visto que o Inclusivo está comprometido com testes de conteúdo e não somente com testes de fontes validadas juridicamente, caindo por terra, portanto, a afirmação de que o Positivismo somente preocupa-se com os testes de pedigree. Não obstante, cabe ressaltar que Shapiro (2007, p. 20-22) - adepto do Positivismo Exclusivo - considera que os juízes, em certas ocasiões, estão obrigados legalmente em aplicar princípios que carecem de qualquer pedigree institucional, sem que isso impugne a própria Tese de Pedigree. Logo, diante de certas situações, quando as regras de pedigree esgotam-se, os juízes ficam submetidos a uma obrigação legal que importa em analisar princípios morais, a fim de resolverem determinado caso que têm em mãos. Já o argumento da função diz respeito à excessiva crítica que Dworkin faz ao clamor, pelos positivistas, da necessidade por certeza e segurança dentro de um sistema jurídiconormativo. Contudo, novamente, o autor deixa claro que a afirmação não merece prosperar, devido ao fato de muitos positivistas – como Hart – reconhecerem termos passíveis de flexão e, consequentemente, dotados de uma textura aberta. Ora, a noção de que uma norma advinda de um teste de pedigree apresenta grau de certeza maior do que as decorrentes de testes de conteúdo não se faz presente na doutrina do Positivismo Inclusivo, pois, a mesma reconhece que as normas obtidas através do critério das fontes podem trazer antinomias a um sistema jurídico e, por outro lado, é capaz de reconhecer que as normas identificadas por critérios de conteúdo podem acabar apresentando alto grau de concordância em determinada sociedade. (WALUCHOW, 2007, p. 198-205). Deste modo, deve-se ter em mente que nem sempre a validade da norma dependerá, necessariamente, de critérios morais. Diante disso, o Positivismo Inclusivo, com cautela e razão, não admite graus morais indeterminados e instáveis que possam advir de uma regra de reconhecimento. O último argumento é o da discricionariedade. Waluchow (2007, p. 207-208) afirma que JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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o fato de se recorrer a argumentos morais mediante a discricionariedade judicial não invalida o Positivismo Jurídico, justamente pelo fato de ser aceita em várias correntes da mesma doutrina. Ademais, nem todo problema moral pede a resolução através da discricionariedade e, assim, não teria cabimento a afirmação dos adversários do Positivismo Jurídico Inclusivo que, segundo a qual, esta versão renovada do Direito Positivo seria incompatível com a discricionariedade. O fato das propostas de um Positivismo renovado englobar um engajamento moral, valorativo e crítico, não significa a destruição da cognição segura e certa da descrição do fenômeno jurídico. Isto impele dizer que a previsibilidade do Direito, ainda que relativa devido à inserção de critérios morais, ainda pode ser obtida mediante referência aos fatos sociais concretos, validamente reconhecidos pelo legislador. Logo, os ordenamentos jurídicos que convencionam que o Direito não está imbricadamente ligado à moral não podem ser tidos como injustos ou não válidos, pois apenas não há uma relação necessária entre tais institutos, mas há tão somente uma relação contingente, a qual esta última é defendida pelos adeptos do Positivismo Inclusivo. É importante atentar para o fato de que a tese positivista renovada não impõe neutralidade axiológica e descritiva às normas jurídicas e, consequentemente, esta crítica não tem fundamento quando associada ao Positivismo Inclusivo. Importa trazer à presente abordagem, a afirmação cabal de Gardner (2001, p. 222-223), na qual, para ele, a “tese da conexão não necessária” entre Direito e moral é o principal - e o favorito - mito sobre o Positivismo Jurídico. Aparentemente, tal tese aduz que os positivistas acreditam que não há uma conexão necessária entre tais institutos. Contudo, o autor salienta que tal tese é absurda e nenhum jusfilósofo digno de nota jamais a endossou da forma como referida. A segunda crítica está relacionada à primeira e tange à inserção dos princípios como normativos. Mais uma vez, a crítica não merece prosperar, pois a versão positivista moderada não nega a existência de princípios morais adequados e vinculantes, quando assim convenciona determinado ordenamento jurídico. Neste interregno, importa trazer à baila o entendimento de Etcheverry (2006, p. 140), que, segundo o qual, a virtude do Positivismo Inclusivo reside na permissão de reconhecer o papel que considerações morais exercem na determinação do Direito e, ao admiti-las, não rechaça que o fenômeno jurídico e os critérios que o definem ainda devam possuir uma conexão institucional apropriada. Os teóricos inclusivistas, como Waluchow (2007, p. 31-35), sustentam que uma teoria jurídica não pode ser um ensaio moralmente neutro da descrição do fato jurídico, isto é, a moral também pode ser útil para justificar proposições descritivo-explicativas. Essa moral, baseada em princípios, acaba por formar juízos jurídicos importantes que influenciam na aplicação do Direito e, com efeito, acabam por ter uma conotação normativa. A este respeito, Lyons (1977, p. 426) sustenta que o Positivismo não exclui os princípios morais como padrões jurídicos, devido ao fato desta Escola não negar ou rechaçar os testes de conteúdo. Diante disso, conclui que os positivistas somente afirmam que não é necessário que as regras satisfaçam modelos morais particulares e, com isso, o fato de que essa relação não ocorra necessariamente em virtude de um conteúdo moral, não significa que não possa ocorrer. No mesmo sentido, Dimoulis e Lunardi (2008, p. 186) afirmam que “[...] podemos JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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afirmar que, até prova em contrário, não há juspositivistas assumindo uma postura que ignore ou menospreze os princípios jurídicos positivados.”. Até mesmo Raz (1984, p. 75), adepto do Positivismo Jurídico Exclusivo, assim se pronuncia através de uma crítica endereçada a Dworkin: “A maior preocupação do Professor Dworkin consiste em afirmar que há princípios legalmente vinculantes. Mas nunca ninguém negou isso, e seguramente não o fizeram os positivistas.”. Ainda assim, nesta senda, Macedo Júnior (2014, p. 169) ensina que os positivistas inclusivos acabaram por aceitar os princípios morais como determinantes para o desempenho de um papel relevante na teoria jurídica, bem como acabaram por reconhecer que tais princípios são jurídicos. Relevantes são as lições de Himma (2002, p. 140), o qual esposa que negar a tese da incorporação da moral ao Direito não faz com que os positivistas exclusivistas neguem o óbvio: os sistemas legais, geralmente, incluem, como critério de validade, considerações morais. A terceira censura às bases do paradigma dominante diz respeito ao fato deste negar a aplicabilidade imediata e direta dos direitos e garantias fundamentais. De fato, essa dimensão irradiante das normas constitucionais contribui para a aproximação de valores emancipatórios contidos nas Constituições contemporâneas. Todavia, a constitucionalização do Direito, louvada pelos neoconstitucionalistas, pode não se tornar legítima sob teses extremadas que acabam por macular a liberdade do legislador em detrimento da Democracia. Defender um Constitucionalismo sem precedentes é incorrer em um curto-circuito jurídico, o qual transforma o legislador em mero executor dos preceitos impostos pelo constituinte, negando, consequentemente, a autonomia política do povo em fazer suas próprias escolhas (SARMENTO, 2011, p. 109). Além disso, os neoconstitucionalistas afirmam que os direitos e garantias fundamentais podem - e em algumas situações devem - limitar interesses majoritários, principalmente quando analisados sob um enfoque cultural. Porém, diferentemente do Direito Natural, o Positivo não se baseia em fatores e valores universalmente válidos, pelo contrário, sua essência é justamente ser mutável e contingente, de modo que acaba por positivar valores e instituições sociais de cada realidade concreta. Logo, torna-se insubsistente a afirmação de que o Direito Positivo não protegeria de forma plena e eficaz o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, sob a ótica inclusiva, não há negação das dimensões justas, equânimes e morais que circundam tal diretriz normativa, bem como não se faz adequada uma relativização desarrazoada da soberania. Ora, os sistemas jurídicos que protegem a dignidade da pessoa humana a reconhecem como princípio moralmente adequado e vinculante, basilar de toda a estrutura jurídico-normativa, sem que isso os torne sistemas antipositivistas. Desta maneira, a crítica de que o Positivismo Jurídico é uma doutrina construída somente sob o “império da lei”, novamente, não ganha fundamento, visto que, como explicado acima, a variante inclusiva acaba por reconhecer que critérios morais podem validar o Direito, principalmente quando reconhecidas pelas próprias normas do sistema. Desta monta, o “Fetichismo Legal” acaba por ser relativizado. Ensina Alday (2008, p. 375) que a incorporação da moral ao Direito pelos adeptos do Positivismo Inclusivo é uma JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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realidade evidente, atualmente, em muitos ordenamentos jurídicos, nos quais são abundantes as referências a valores e princípios morais. O autor continua o pensamento, revelando que, caso assim não fosse, negar que a moral possa ser uma fonte do Direito seria negar a realidade, tendo como consequência uma teoria falsa do Direito, visto que careceria de uma descrição adequada dos fatos sociais. Na mesma linha de raciocínio, são as doutrinas de Dimoulis e Lunardi (2008, p. 195), para os quais, não há como se explicar a difusa impressão de hostilidade do Positivismo Jurídico perante os princípios, senão que essa impressão decorre de um outro – igualmente difundido – equívoco. Este raciocínio precipitado deve-se ao fato de que muitos críticos acreditam que o Positivismo entende a aplicação do Direito como procedimento mecânico ou automático, de modo que caberia ao julgador aplicar de maneira “exata” as previsões legislativas. Logo, para estes autores, não há como considerar que os adeptos positivistas sejam “adversários dos princípios”. Ademais, há a crítica ao método hermético e fechado adotado pelo Positivismo, acusado de se impor como modelo preciso e completo. Ora, muitos positivistas inclusivos - como Hart acreditam que o Direito Positivo não é completo, precisando de técnicas jurídicas para preencher esses espaços. Sendo assim, nota-se que os principais expoentes do Positivismo Jurídico não estão no modelo dedutivo de interpretação normativa, mas sim, no modelo discricionário, ou seja, reconhecem em maior ou menor medida, o poder discricionário dos juízes. Neste diapasão, preleciona Gardner (2001, p. 210) que o Positivismo Jurídico não é uma teoria completa da natureza do Direito, mas se revela em uma doutrina sobre a validade do fenômeno jurídico, a qual é compatível com um extenso número de outras teses sobre a natureza do Direito, incluindo-se a tese de que todo o Direito válido está, por natureza, sujeito a objetivos morais especiais e imperativos próprios. Diante disso, sejam situações de lacunas, de discricionariedade ou de textura aberta das normas, o Direito Positivo Inclusivo as reconhece, de modo que se acaba deixando de lado o narcisismo calcado na tautologia e solipsismo próprios do Positivismo Jurídico Exclusivo. Logo, tal crítica não ganha força quando imputa à Escola positivista moderada. Por fim, a última censura às concepções positivistas está ligada à crítica supracitada, referente ao problema da discricionariedade judicial. Os defensores neoconstitucionais, baseados na teoria dos princípios, acreditam que não se poderiam compreender os pressupostos positivistas de aplicação subsuntiva da norma aos easy cases e a discricionariedade aos hard cases, sob pena de afronta à Democracia. Contudo, essa “outorga” de um poder criativo do Direito a juízes, sem um parâmetro mínimo, a qual poderia ocasionar um reflexo distorcido do conceito aberto de justiça, não é abraçada por doutrinadores positivistas, como Kelsen e Hart. A este respeito, Kelsen (2000, p. 394) enxerga que em todas as situações o juiz vale-se de sua discricionariedade, sendo que essa atividade judicial acaba por ser uma continuação do processo de criação jurídica. Porém, a mesma sempre é limitada pela “moldura legal” imposta pelo próprio ordenamento e, por isso, o jurista não precisaria ater-se a fatores estranhos e externos ao Direito, o que acaba por conferir à ciência jurídica um status normativo. Portanto, pode-se afirmar que a validade de uma decisão judicial assenta-se no fato JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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de ter sido proferida por quem detinha competência segundo uma norma posta e inserida no ordenamento jurídico, resguardando a certeza e segurança do Direito - aspectos extremamente caros ao Positivismo Jurídico. De outro lado, Hart (2012, p. 166) considera que o Direito é lacunoso e apresenta hard cases e, por conseguinte, para o autor, há discricionariedade quando o juiz depara-se diante de lacunas ou casos difíceis, situações que as normas postas não apontam nenhuma solução ao caso concreto. Sendo assim, o juiz criaria o Direito, porém restrito a determinado caso concreto - é o que Hart denomina de “poder intersticial”. Além disso, Hart (2012, p. 176) aduz à chamada “zona de penumbra”, a qual também é alcançada pela inevitável existência de um poder discricionário por parte do julgador, tendo em vista a existência do que ele denomina de “textura aberta do direito”. Sendo assim, a confusão entre interpretação e inovação, entre aplicação e produção, entre legislação e jurisdição, entre significado da lei e vontade judicial e entre normas e princípios não pode ser imputada a positivistas como Kelsen e Hart, visto que os mesmos rechaçam severamente a arriscada sucumbência do juiz a decisionismos sem parâmetros legais. Neste sentido, salientam Duarte e Pozzolo (2006, p. 47) que a tese central do Positivismo Inclusivo revela que, no momento de aplicação da norma, os juízes acabam por buscar determinados padrões morais na resolução dos casos jurisdicionais suscitados, de modo que terminam por incorporar ditos conteúdos de moralidade na composição do Direito juridicamente válido, sem que com isso sejam utilizados necessariamente critérios extrajurídicos. Com efeito, as normas aplicadas, geralmente, acabam sendo convertidas pela regra de reconhecimento, levando-se em consideração a sua fonte, bem como seu conteúdo, seu valor moral. No intuito de não deixar dúvidas, são as lições de Dimoulis e Lunardi (2008, p. 190): “Assim sendo, o positivismo jurídico relaciona a aplicação dos princípios a uma reflexão sobre o (limite do) poder discricionário de quem os concretiza, podendo escolher entre as possíveis alternativas de interpretação aquela que considerar melhor.”. Ora, nota-se que muitas das críticas imputadas ao paradigma positivista dominante sujeitam-se ao modelo de Direito Positivo Exclusivo e não à reformulada doutrina inclusiva do Positivismo Jurídico. Por esse fator, afirmou-se que muitos adversários dessa Escola acabam por incorrer na straw man fallacy, visto dirigirem suas críticas à caricatura das ideias do adversário, ao invés do verdadeiro conteúdo de seus posicionamentos. Pode-se dizer que essa doutrina inclusiva funciona como um ponto de equilíbrio e, até mesmo, um contato entre as doutrinas puras do Direito Positivo e as teorias principiológicas póspositivistas. Moreso (2002, p. 93) considera que a noção de Positivismo Jurídico mais adequada aos ordenamentos jurídicos das Democracias constitucionais contemporâneas é a Inclusiva, pois consegue conviver com as características do Neoconstitucionalismo. Esse tipo de Direito Positivo, funcionando como uma intermediação, possibilita a conciliação entre Direito e moral e, por conseguinte, a convergência entre o paradigma positivista dominante e o Constitucionalismo Democrático, pois os princípios morais são validados pelas regras de reconhecimento do sistema jurídico, as quais elevam tais princípios a um status jurídico. Diante disso, a própria ideia da tese da separação entre Direito e moral não é abalada, visto que JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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essa relação não é necessária, podendo ocorrer, de fato, uma eventual conexão entre esses dois conceitos, pois a aplicação do Direito pelo magistrado é contingente e não necessária. A este respeito, em que pese ser filiado à versão Exclusiva, Shapiro (2007, p. 23) afirma que, segundo o Positivismo Inclusivo, a tese da separação não exclui testes que incorporam a moral como critério de validade, concluindo que: “It states simply that tests of legality need not be moralized, not that they could not.”. Ora, no momento no qual se afirma que uma regra de reconhecimento socialmente aceita e praticada - portanto, conforme a tese positivista das fontes sociais do Direito - pode incorporar padrões morais como critérios de validade jurídica, sem que isso seja um fato necessário, mas mera circunstância - de acordo com a tese da relação contingente entre Direito e moral -, abre-se caminho para a defesa de um Positivismo consentâneo e contemporâneo com o Neoconstitucionalismo. 3. DIREITO E MORAL: UMA RELAÇÃO CONTINGENTE Como se aferiu no tópico anterior, a principal distinção entre neoconstitucionalistas e positivistas inclusivos está no fato do tipo de relação entre Direito e moral adotada. Para aqueles há uma relação necessária, enquanto para estes há uma relação contingente. Parece que o grande impasse está na questão se a moral determina o Direito como critério de identificação ou justificação. Os neoconstitucionalistas acreditam que a moralidade é um fator crucial para a identificação do fenômeno jurídico, se não menos quando da sua justificação, ou seja, defendem que a moral tanto identifica quanto qualifica (justifica) o Direito. Por outro viés, os defensores do Positivismo moderado, a exemplo de Hart, salientam que os argumentos jurídicos não são justificados pela moral, porém, aceitam-na como vetor de identificação do Direito - e, mesmo neste último sentido, a identificação não é necessária, senão contingente. Ressalta-se, todavia, como exposto alhures, que o Positivismo Jurídico não se presume completamente alheio aos critérios morais. Ora, até mesmo a doutrina de Rossi (2011, p. 85), a qual acredita na superação do Positivismo pelo Neoconstitucionalismo, revela que: “Todos os grandes expoentes do positivismo jurídico jamais negaram a existência de relações, e, muitas vezes, até mesmo a coincidência entre normas morais e normas jurídicas.”. Neste momento, é lícito passar às implicações da relação contingente entre Direito e moral. Como já explanado, essa postura é adotada pelos estudiosos inclusivistas, de tal forma que se pode considerar que essa doutrina analisa o Direito de um ponto de vista interno e compreensivo, assumindo a possibilidade - não a necessidade - de se relacionar com a moral. Nas palavras de Pozzolo (2001, p. 141), a moral contingente encontra lugar entre as fontes do Direito nas teses sustentadas pelo Positivismo Inclusivo, principalmente aquele de Waluchow, visto que este defende - diferenciando-se de Raz - que a moral é capaz de determinar a existência, o conteúdo e o sentido das normas jurídicas válidas. Neste diapasão, o próprio Waluchow (2007, p. 127) assim revela: “Una consecuencia del positivismo incluyente es que las consideraciones morales pueden ser relevantes para la identificación de la existencia y contenido del derecho sólo si el sistema jurídico mismo ha reconocido de algún modo que cumplen ese rol.”. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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O autor ainda salienta que o Positivismo Jurídico Inclusivo é uma versão conceitualmente possível do Positivismo lato sensu, visto que o fato de incorporar mandamentos morais em nada desprestigia, desqualifica ou destrói teses positivistas. (WALUCHOW, 2007, p. 182). Nota-se, então, que os neoconstitucionalistas buscam uma vinculação necessária entre o fenômeno jurídico e a moral, na medida em que é inviável qualquer mandamento jurídico carente de um grau mínimo de moralidade. Os princípios fortaleceriam esse elo - bond -, uma vez que são tidos como integradores e não subsidiários dentro de um sistema jurídico. O juiz, então, ao decidir, não deve fundamentar-se, pura e simplesmente, no Direito posto pelo Estado, mas, acima de tudo, deve buscar referências morais, sob um ponto de vista justificável, no afã de se alcançar uma “pretensão de correção moral”, necessariamente vinculada à decisão judicial. Logo, para Alexy (2004, p. 29), o conceito de Direito vai - e deve ir - muito além da mera estrutura jurídico-normativa, de forma que englobe o próprio sistema social, baseado no que ele chama de “expectativas normativas de comportamento”. Assim, as normas jurídicas ou os sistemas jurídicos que não levem em consideração premissas morais mínimas, acabam por perder seu caráter jurídico. No entanto, os defensores da teoria inclusiva consideram que um ponto de intersecção entre Direito e moral é suficiente para que se configure essa conexão e, por isso, é contingencial. Não se nega, repisa-se, a natureza e o caráter determinante dos princípios para a construção de uma moralidade social ou política, devido ao fato dessa moralidade ser a existência e o conteúdo das leis. Consoante Alday (2004, p. 76): “Adota-se, assim, uma teoria da validade do direito que incorpora elementos materiais.”. Vislumbra-se, nesta toada, que a tese inclusivista apregoa que os imperativos morais são cruciais na identificação da validade das normas que compõem determinado ordenamento jurídico, mister quando se trata de sua interpretação (DIMOULIS, 2006, p. 139). Neste sentido, citam-se: Waluchow (2007, p. 81), o qual revela que a semelhança entre Direito e moral deve ser acolhida “com prazer” e bem vista pelos teóricos positivistas; Kramer (2003, p. 196), para o qual a não adoção dessa semelhança seria incorrer em uma “tolice” jurídica; Hart (2012, p. 200), segundo o qual o Direito “acompanha as crenças sociais” e; Coleman (1984, p. 31), o qual afirma que, diante de uma constatação empírica, não se pode conceber que Direito é determinada coisa enquanto a moral revela-se outra. Pelo exposto, depreende-se que o Positivismo Inclusivo renova os postulados do Positivismo lato sensu, aceitando a inconteste normatividade de princípios jurídicos dotados de mandamentos morais e presentes na prática constitucional dos Estados Democráticos contemporâneos. Não se pode negar que o mesmo vem cumprindo a contento essa tarefa de aproximação entre Direito e moral, aproximação esta que prega uma conexão contingente entre tais institutos jurídicos. 4. A REFORMULAÇÃO – E NÃO A SUPERAÇÃO DEFINITIVA – DA PERSPECTIVA POSITIVISTA DE SE CONCEBER, COMPREENDER E APLICAR O DIREITO Apesar da crença generalizada de que o Positivismo Jurídico está em crise e que a sua superação é inevitável, um olhar mais profundo faz com que tal pensamento seja rechaçado, visto que houve a renovação dessa doutrina, a qual passou a aceitar que os valores morais, de certa forma e em certa medida, influenciam o Direito e o modo de aplicação do mesmo pelo JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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juiz. Isso quer dizer, na verdade, que, o que há, hoje, é o ressurgimento e a reestruturação de um modelo teórico que já era - e continua a ser - dominante. Nesse ínterim, essa variante refinada tem reconhecido a valorização da Constituição, principalmente no que atine a seus aspectos materiais e substanciais. Outrossim, caminha-se à aceitação de valores morais no interior da ordem jurídica e, repisa-se, sem que isso faça com que a própria doutrina do Positivismo Jurídico seja autodestruída ou autonegada. Já foi demonstrado que, após intensas críticas e constantes censuras dirigidas aos teóricos positivistas, a doutrina tivera que se reformular, passando a reconhecer que, atualmente, é inconcebível que a aplicação da norma deixe de levar em consideração valores principiológicos morais, devido ao fato da Constituição ser um instrumento normativo. Ora, o Positivismo Jurídico Inclusivo não pretende justificar as práticas jurídicas de imposição coercitiva com base em seus resultados, pelo contrário, busca descrever a forma, a estrutura e o conteúdo comum dos sistemas jurídicos, a fim de melhor vislumbrar a regulação social, a qual se relaciona com a moral (WALUCHOW, 2007, p. 19-20). A aceitação pelo paradigma positivista dominante, ainda que Inclusivo, de uma moral reconhecida pelo ordenamento jurídico, faz com que os ideais de justiça, equidade e moralidade não sejam renegados a segundo plano. A norma posta pelo Estado obedece aos critérios de legitimidade e validade formal, porém, essas mesmas regras acabam por reconhecer e aceitar princípios como jurídicos e, portanto, atendem às exigências do Constitucionalismo Democrático na defesa e salvaguarda dos direitos fundamentais, bem como na supremacia da Carta Maior como documento jurídico, tanto processual quanto material. Sendo assim, a aplicação do Direito pelo juiz leva em consideração essa moralidade, mas sempre dentro dos limites do ordenamento, pois a segurança e certeza jurídicas também são valores a serem respeitados e alcançados em uma sociedade democrática. Isso significa dizer que, embora se permita – e admita-se – uma discricionariedade do magistrado e a consequente relativização da norma posta pelo Estado-legislador quando haja necessidade de uma interpretação valorativa, o Judiciário deve respeitar os limites legais e substanciais que o próprio sistema jurídico lhe impõe. Tem-se, portanto, a ligação entre reconhecimento jurídico da norma com a moralidade, da legalidade com a valoração e da autoridade com a justiça constitucional. Com a reformulação do Direito Positivo pela sua variante Inclusiva, a convergência entre o paradigma dominante positivista e o Constitucionalismo Democrático torna-se possível, demonstrando que Direito e moral não se constituem, necessariamente, em institutos jurídicos antinômicos e sem implicações mútuas, visto que há uma conjugação entre valores procedimentais e substantivos. Em uma primeira vista de análise, seria possível tecer a afirmação de que os muitos avanços da doutrina positivista, especialmente por meio do chamado Positivismo Jurídico Inclusivo, teriam aperfeiçoado-se tanto que, esse desenvolvimento, acabaria por abrir mão dos seus próprios postulados identificadores, principalmente, no que tange à compreensão da relação entre o Direito e a moral. Entretanto, Sgarbi (2008, p. 53-54) revela que não há oposição e muito menos contradição entre a inclusão contingente de referências de validade moral com o Positivismo, visto que as incluir importa em reconhecer um padrão avaliativo do que se produz JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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juridicamente. Ademais, nada disso é surpreendente quando se assente que a presença de tais referências está longe de ser ruim ao Direito Positivo. Todavia, diante de uma observação mais atenta, apurada e crítica, o que ocorre, na realidade, é que tais avanços do Positivismo Jurídico conseguem promover uma harmonização para com a nova realidade do Estado Constitucional e Democrático de Direito, sistemas os quais acabam convergindo potencialmente. A este respeito, Dimoulis e Lunardi (2008, p. 195) salientam que o fato do ordenamento jurídico valer-se de normas principiológicas não contraria ensinamentos do Positivismo Jurídico, muito menos causa alguma indigestão aos seus doutrinadores. Tal conclusão decorre de um intenso estudo das obras dos adeptos desta Escola. É necessário entender que para definir ou conceituar “Direito”, nos dias atuais, é preciso levar em consideração que o mesmo deve estar conceitualmente ligado à realização de determinados valores morais - afastando-se qualquer antítese, anacoluto ou oximoro -, bem como deve estar atento ao cumprimento de determinadas finalidades, as quais ultrapassam o vetor da segurança jurídica, sem, no entanto, desconhecê-lo. Como se observa, o próprio Waluchow (2007, p. 22) aduz que se deve permitir que as pautas de moralidade e racionalidade funcionem como relativamente determinantes ao significado das leis válidas. Nesta mesma senda, os dizeres de Soper (1983, p. 19) acabam por revelar que, se o cerne do Positivismo afirma que não é necessário que o Direito reproduza certas demandas da moral, ainda assim os padrões morais podem ser relevantes para as decisões jurídicas de forma contingente conforme o que determinam as regras sociais. O Direito, por conseguinte, deve cumprir uma função emancipatória e assim o faz quando se depara com uma realidade social complexa - da qual ele surge e para a qual ele retorna -, comprometendo-se em melhorá-la através de institutos jurídicos aperfeiçoados. Isto é almejado pelo Positivismo Jurídico Inclusivo. Sendo assim, não há mais que se falar que o Positivismo Jurídico - pelo menos em sua versão Inclusiva - mantém uma hermenêutica insuficiente e, principalmente, negativa. Desta forma, pode-se constatar que, nas últimas décadas, a própria teoria do Direito de caráter positivista desenvolveu-se a ponto de relativizar a defesa do rigor normativo meramente formal, de modo que passou a reconhecer o Direito como um complexo sistema de regras não destituído de possibilidades de contato para com a moral. Portanto, tais mudanças percebidas, atualmente, apontam não para uma superação da ótica positivista de se compreender e conceituar o Direito, mas sim, frisa-se, para um aprimoramento do paradigma positivista dominante. Neste sentido, Eustáquio (2007, p. 9) pronuncia-se que a (suposta) crise do Positivismo acabou estabelecendo profundas transformações sistêmicas, porém, em nenhum momento isso denotou sua desnaturação ou enfraquecimento, demonstrando-se muito mais a adaptação a uma nova maneira de legislar, visto que o Positivismo, na era contemporânea, distanciouse do caráter totalitário da lei e, por conseguinte, vinculou-se a sua natureza direcionadora, adentrando-se em um novo limiar, este chamado de “recodificação”. Deste modo, aduz-se aos ensinamentos de Sanchís (1999. p. 94), para o qual, a partir do momento que se resolvem conflitos jurídicos, acaba-se por oferecer respostas morais, as quais JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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estão em perfeita lógica com o raciocínio jurídico, no qual há a conjugação de argumentos advindos do Direito estrito plasmados nos argumentos derivados da Filosofia da justiça. Portanto, há motivos cabais para que se considere o Positivismo Jurídico Inclusivo como viável e em pleno compasso com o Neoconstitucionalismo. Segundo Dimoulis (2006, p. 273): “O positivismo jurídico não impede a avaliação moral, nem a crítica política ao direito [...]”. Ao contrário do que se pode pensar, intenta observar que não se está diante de um momento de rompimento estrutural, mas de profundas mudanças na maneira de se conceituar e se compreender o próprio Direito Positivo. De fato, as velhas estruturas rígidas do Positivismo Jurídico já se constatam ultrapassadas e, por isso, foi necessário repensá-lo, moldá-lo. O Positivismo Jurídico Inclusivo já surgiu, precisando sair de seu estado de latência, a fim de ser acolhido, mediante melhor compreensão por parte de todos aqueles responsáveis, de certa forma e em determinada medida, pela construção do Direito. Neste sentido, Dimoulis: Não é aconselhável demonizar o positivismo com acusações fantasiosas, contrapondo às realidades do mundo jurídico o quadro idílico de um direito justo e moralmente adequado, ou afirmando que o positivismo é uma teoria ultrapassada no momento em que se constata mundialmente sua vitalidade teórica. (DIMOULIS, 2006, p. 273).
5. CONCLUSÕES As constantes e profundas transformações ocorridas na sociedade exigem do fenômeno jurídico um olhar mais cuidadoso para com os anseios e necessidades humanas. O Direito, assim, deve debruçar-se em renovações que acompanhem o ritmo acelerado de uma sociedade caracterizada pela complexidade, multiplicidade e mutabilidade. Entretanto, há um estigma jurídico, principalmente encabeçado pelos teóricos neoconstitucionais, que aponta o Positivismo como sendo uma doutrina que reduz o Direito à força, como teoria que a legitima e como corrente que se mantém distante de valores como justiça, equidade e moralidade. Desta monta, muitas críticas foram dirigidas ao Positivismo Jurídico por parte dos adeptos do Neoconstitucionalismo, no afã de demonstrar as fraquezas daquela teoria e, acima de tudo, revelar a necessária - e imediata - substituição - e superação - de uma antiga visão jurídica da sociedade, visto que o “novo” fazia-se presente. Todavia, em que pese muitos argumentos do Neoconstitucionalismo serem, de fato, contundentes, a maioria deles incorre na chamada straw man fallacy, visto dirigirem oposições e críticas à caricatura da teoria positivista e não, necessariamente, aos reais conteúdos adotados pelos seus defensores. Todavia, nota-se que, assim como a sociedade evolui, as doutrinas também o fazem. E isso não foi diferente com o Positivismo Jurídico. Nesta esteira, essa versão refinada conseguiu impugnar, especificamente, cada censura oposta à Escola Positivista pelos teóricos neoconstitucionalistas. Diante disso, vislumbra-se que o processo de constitucionalização amolda-se ao Positivismo Jurídico moderado, estruturando uma nova perspectiva que impende a necessidade de não se abandonar ou deixar para trás a mentalidade do Positivismo Jurídico. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Repisa-se que se busca defender o não abandono do Positivismo Jurídico, mas ao menos, soltar-se das velhas estruturas e algemas rígidas que muito estruturaram a mentalidade dessa Escola de pensamento, sendo a chave, justamente, o Positivismo Inclusivo. Por isso, destaca-se que a proposta do presente trabalho consistiu em demonstrar que o Positivismo Jurídico acaba sendo uma doutrina má compreendida, pois a identificação de tal Escola como sendo uma vertente legalista e conservadora não merece prosperar, visto que muitos positivistas - se não a maioria - não acreditam em primado de completude do sistema jurídico, decisão mecânica e subsuntiva, neutralidade avalorativa, em perfeição normativa, em segurança jurídica absoluta e em separação entre Direito e moral. Neste interregno, a abordagem propôs desmistificar o Positivismo Jurídico, demonstrando que há possibilidade – através da versão positivo-inclusivista –, sim, de conciliá-lo com o Constitucionalismo Democrático, porquanto já demonstrado que Direito e moral são institutos não antinômicos. Ademais, não se trata de uma tentativa de “salvar” o Positivismo Jurídico, visto que a crise é meramente hipotética, quando da constatação de uma reformulação da Escola, a qual veio tirar a si mesmo do “descrédito” que tanto lhe era imputado. Portanto, a variante Inclusiva não é uma espécie doutrinária que tem como função ser um aparelho respiratório que dá sobrevida a seu gênero teórico, mas visa dirimir os argumentos de defasagem jurídico-social que o Positivismo supostamente incorre. Ora, o fato de uma doutrina adotar parâmetros - que antes não adotava - não tem o condão de atribuir-lhe características que vão de encontro com os seus próprios postulados. Precisa ser extinta a noção de que nenhum positivista defende valores e princípios, pois, é trivial que qualquer sistema jurídico necessita, minimamente, incorporar ao Direito normas que desempenham importantes papéis na própria aplicação do fenômeno jurídico, sem que isso possa suscitar o abandono parcial e silencioso ou total e escancarado dos adeptos de algum tipo de Positivismo. Desta forma, no presente momento da Teoria do Direito, faz-se mister adotar uma postura doutrinária corajosa - afastando qualquer tabuísmo de se autodenominar “positivista” - e reconhecer que o Positivismo Jurídico não se encontra em descompasso e muito menos desalinhado ou desajustado para com a nova realidade social, visto que sua vertente Inclusiva consegue conciliar o sistema normativo de regras com a carga valorativa e aberta dos princípios, bem como torna possível a conciliação entre Direito e moral, mesmo que em caráter contingencial. Com efeito, é notório que não há mais espaços para que se conceba o Direito como uma ciência sem uma finalidade intrinsecamente construtiva. Isto não seria possível e muito menos desejável. Deste modo, o Positivismo Jurídico refinado não pretende desvincular a compreensão teleológica do Direito, mas garantir graus mínimos de justiça que, em certos momentos, podem ir além do ideal de segurança jurídica, sem, contudo, negá-lo ou rechaçá-lo. Desta maneira, ao contrário da crença na superação do paradigma positivista dominante por significativa parcela doutrinária neoconstitucional, impele atentar que não se está diante de um momento de rompimento estrutural, senão de marcantes mudanças na maneira de se conceituar e se compreender o próprio Direito, mister o Positivo. Afinal, o avanço e o aperfeiçoamento devidos acabaram por demarcar um refinamento teórico e não o seu esgotamento e ultrapassagem. JUSTIÇA, CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
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Destarte, o Positivismo Jurídico está longe de atingir seu prazo de validade, pois, após as devidas reformulações, opera em direção aos anseios e necessidades sociais. Diante disso, o Direito acaba por cumprir sua função emancipatória e assim o faz quando se preocupa - e compromete-se - em melhorar a realidade social, principalmente através de institutos jurídicos que ele próprio aperfeiçoou. Afinal, o Direito deixa de ser Direito quando perde o propósito que o legitima e, por isso, não se trata de mudar as lentes de outrora, mas tão somente ajustar o foco dessa mesma lente à realidade social e concreta atualmente vivenciada.
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A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES COMO FENÔMENO SOCIAL: O MODELO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA MULHER EM SITUAÇÃO DE RISCO
Wladimir Cerveira De Alencar
1. INTRODUÇÃO Em termos atuais, pode-se dizer que a violência contra a mulher se configura como sendo um dos problemas mais importantes na pauta dos direitos humanos em todo o mundo. O feminícidio em grande escala ocorrido em todos os países e o drama de milhões de mulheres que vivem a violência diária em suas vidas, de maneira silenciosa e quase invisível frente à sociedade, representa um desafio não apenas para a democracia, afinal todos somos (ou deveríamos ser considerados) iguais, mas também, e principalmente, para a agenda de efetivação dos direitos humanos deste coletivo. Não se pode falar em cidadania plena para mulheres se em suas vidas privadas ainda vivam dentro de um panorama de submissão, humilhação e sofrimento diário, de modo que tratar a questão de maneira inadequada põe em cheque a própria democracia, tendo em vista que não existe verdadeiro Estado Democrático de Direito quando uma parcela tão importante da população vive sob o jugo de violência, sem que esta situação mereça a devida atenção e as providências necessárias para a sua extinção. 2. SOBRE O CONCEITO DE VIOLÊNCIA E SUA PERSPECTIVA SOCIAL Sobre o conceito de violência, Ferreira Osterne1 afirma que o termo é compreendido como o uso da força física, psicológica ou moral para obrigar outra pessoa a fazer alguma coisa contra a sua vontade. Pode ser também entendida como forma de maltratar, causar constrangimento, tolher a liberdade, impedir a manifestação da vontade, ameaçar ou ir às vias de fato mediante atos de espancamento ou mesmo provocadores de morte, podendo assumir a forma de coação, da imposição de domínio ou da violação de direitos essenciais. Comenta que: “em seu sentido mais amplo, a violência pode ser compreendida como fenômeno que perpassa todo o ordenamento social, tanto no âmbito das relações pessoais como das ligações institucionais”2. Desta forma, seu emprego na dinâmica social poderá receber diversos adjetivos, segundo os agentes que as praticam, com a condição dos sujeitos que são vítimas, de acordo com o território onde se instala, e com a forma como se manifesta. Podendo ser: violência institucional, estatal, social, política, econômica, cultural, policial, étnico-racial, de gênero, familiar, escolar, urbana, rural, doméstica, física, sexual, moral, psicológica e diversas outras usadas nas produções 1 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 26. 2 Ibidem.
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históricas, sociológicas, antropológicas e psicanalítica sobre o tema. Entretanto, aparte da diversidade de sua nomenclatura, a primeira ideia que se tem da violência está quase sempre relacionada a uma dimensão destrutiva, vinculando-se ao imaginário o constrangimento físico ou moral, a força e a coação.3 Desde modo entende a referida autora que a violência física é sempre uma possibilidade relacionada com as formas de dominação que apresentam diversos níveis de legitimação e, mesmo em sociedades vistas como homogêneas serão encontrados comportamentos, respostas e atitudes desacordados dos padrões dominantes, uma vez associados a diversificados tipos de conflitos individuais e sociais. É comum encontrar em toda sociedade um potencial de desacordo. No ideário individualista, entretanto, é possível verificar características particulares. Defende Osterne que historicamente, hierarquia e individualismo se associam em sociedades específicas, de modo mais ou menos contraditório, em razão de contextos e domínios particulares.4 No Brasil, é vivida uma tensão permanente entre valores hierarquizantes e individualistas, associada a uma excessiva ambiguidade relativa a atuação do Estado. Gilberto Velho5, mesmo reconhecendo que a desigualdade social é uma das variáveis fundamentais para se compreender a crescente violência da sociedade brasileira admite que outras variáveis a acompanham. É o caso, por exemplo, do esvaziamento de conteúdos culturais, especialmente os éticos, no sistema de relações sociais. Assim, a pobreza sozinha não explica a perda de referenciais éticos sustentadores das interações de grupos e indivíduos. Aponta ainda que a modernização, o crescimento das grandes cidades, atingiu frontalmente este sistema de valores e relações sociais. Ademais, relaciona à expansão da economia de mercado, das migrações, da industrialização, da introdução de novas tecnologias e do florescimento de uma cultura de massas como acontecimentos importantes para o impulso dessas transformações, ganhando destaque as ideologias individualistas, que foi diversificando o campo das possibilidades socioculturais e, de alguma maneira, aumentaram as escolhas de estilos de vida.6 No Brasil, essas mudanças produziram fortes determinações sobre o universo de valores e as expectativas de reciprocidade, tornando-se a violência física característica cotidiana, não apenas entre as classes, pois assumiu feição dramática e assustadora no interior das camadas populares. A ausência de um sistema de reciprocidade e a quebra de valores comuns se expressaram em situações de desigualdades associada e produtora, em última instância, da violência.7 3. A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E SUA CONSTRUÇÃO SOCIAL Desde os tempos mais remotos, vivendo sob o manto da passividade e da subalternidade, e domínio masculino, a mulher tem sido dominada pela sociedade machista, segundo a qual o poder de gênero é imposto. Mantendo-se, deste modo, as mulheres em uma situação de 3 Ibidem. 4 Ibidem, p. 31. 5 VELHO, Gilberto. Violência, reciprocidade e desigualdade. In Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, p. 23. 6 Ibidem. 7 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 32.
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submissão e de inferioridade, assexuadas e resignando-se aos limites da casa e ou da igreja.8 Ao longo do tempo, a mulher foi estereotipada como vassala, destituída de qualquer poder na vida pública, sendo preparadas desde o seu nascimento para o casamento e a maternidade, tolerando, muitas vezes, as agressões e a infidelidade de seus parceiros e a violência familiar. Ferreira Osterne9 também endossa essa ideia, destaca que em sentido amplo e genérico, pode-se dizer que o fenômeno da violência acompanha o homem e a mulher desde os primórdios da História, encontrando-se no interior da própria tessitura da humanidade. Acerca do estudo da violência contra as mulheres e os primórdios de sua exploração pelas ciências humanas, Heidensohn10 explicita que: Our understanding of other features of the gender ratio has not, in any case remained static. The subject of victimization, and the contributions of feminists amongst others, to its ‘discovery’ are covered elsewhere in this volume. It is important to note how the focus on the ‘private’ harms perpetrated within the home in domestic violence, physical, and sexual abuse of children alters the gender ratio adversely for men, since they are largely, though not exclusively the offenders in such crimes. While measures of incidence are shadowy, victim survey do suggest that there are low reporting rates for such offences and yet a high rate of distress […]. Serious sexual crimes such as rape also have low reporting rates because of women’s fear of shame and of police and court procedures […]. Some attempts have been made to redress the gender ‘imbalance’ in such private and personal crimes. Dobash and Dobash review family violence research in United States which seeks to show that there is an equivalence in violence between spouses with husbands more likely to be victims than wives. The Dobashes also review what they call ‘violence-against-women research’ and conclude that empirical studies conclusively support an asymmetric view which further imbalances the gender ratio.11
Maria Ángeles Barrère12, por sua vez, explicita que a violência contra as mulheres, designada como violência sexista, violência machista, ou violência patriarcal é uma expressão que designa um conceito político, ou, dito de outra forma, um conceito feito por políticos pela luta desempenhada pelo movimento feminista. Com o qual se quer afirmar que as mulheres são na sociedade objeto de uma violência específica, com um significado específico, e esse significado outorga um marco interpretativo (policy frame) concreto que, até não muito tempo atrás, era designado pacificamente pelo termo patriarcado. Dobash e Dobash13, por outra parte, explicam que existem quatro fatores principais que provocam a violência contra a mulher: The four main source of conflict leading to violent attacks are men’s possessiveness and jealousy, men’s expectations concerning women’s domestic work, men’s
8 BARROSO DE CARVALHO, George Kenneth; ANDRADE NETO, Olívio Botelho de. Lei Maria da Penha: a teoria e a realidade em uma das primeiras leis de gênero no Brasil. In A Lei Maria da Penha. Aplicação e eficácia no combate à violência de gênero. São Paulo: Editora UFAC, 2008, p. 69. 9 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 56. 10 HEIDENSOHN, Frances. Gender and crime. In MAGUIRE, Mike; MORGAN Rod; REINER, Robert (Eds.). The Oxford handbook of criminology. Oxford: Clarendon Press, 1997, p. 768. 11 Ibidem. 12 BARRÈRE, Mª Ángeles. Género, discriminación y violência contra las mujeres. In LAURENZO, Patricia (Coord.) Género, violencia y derecho. Valencia: Editora Tirant lo Blanc, 2008, p. 28. 13 DOBASH, R. Emerson; DOBASH, Russel. Violence against women. In O’TOOLE, Laura L. Gender Violence. Interdisciplinary Perspectives. New York: New York University Press, 1997, p. 268.
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sense of the right to punish “their” women for perceived wrongdoing, and the importance to men to maintaining or exercising their position of authority. For many women, a sense of shame and responsibility, along with fear of reprisals, keeps them silent, sometimes for years.14
Conforme explicita Barbara Musumeci15 há mais de uma maneira de analisar a violência concretizada no âmbito doméstico como fenômeno social e a sua definição. Essa disputa no plano teórico se dá basicamente em duas frentes: a perspectiva feminista, que busca definir o problema como “violência contra a mulher”, causada pelo desejo masculino de exercer poder e controle sobre as mulheres e, a perspectiva que abrange o conjunto de ações violentas, ocorridas no mundo privado, sobre o nome de “violência doméstica” ou “violência familiar”, entretanto, ressalta a autora que esses paradigmas se confundem e se articulam na realidade prática, podendo ser considerados termos intercambiáveis. 4. A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E O MODELO FEMINISTA Osterne declara que existe confusão quando se trata de discernir sobre os tipos de violência. Muitas vezes se utiliza a categoria violência contra as mulheres como sinônimo de violência de gênero, assim como se confunde violência doméstica com violência intra-familiar.16 Para Saffioti17, violência de gênero é, sem dúvidas, a categoria mais geral, entretanto, reconhece a instalação de certo mal-estar quando se pensa este conceito como aquele que absorve os demais, estes apresentados como resguardando tão somente nuances distintas e não características específicas. Segundo o entendimento da referida especialista brasileira, ainda que relações violentas entre dois homens ou entre duas mulheres possam, perfeitamente, figurar sob a rubrica de violência de gênero, normalmente, gênero está relacionado às relações homem-mulher. Deste modo, fica claro que a ideia de que a violência de gênero poderá ser perpetrada por um homem contra outro, por uma mulher contra outra e também por uma mulher contra um homem, o vetor mais corriqueiro e amplamente difundido no contexto de violência de gênero aponta no sentido de violência exercida pelo homem contra a mulher.18 Não obstante a opinião defendida pelos especialistas do Brasil acerca do uso do termo violência de gênero para caracterizar a violência também praticada de uma mulher em relação ao homem, o entendimento que se sustenta neste trabalho é da utilização desta nomenclatura para abarcar somente a violência praticada pelo homem contra a mulher fundamentada nas raízes da cultura machista. Apesar da defesa de nomenclatura específica pelas feministas, Musumeci comenta também que o termo “violência doméstica” não chega a ser um tabu entre as feministas, e da 14 Ibidem. 15 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 121. 16 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 59. 17 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004, p. 69. 18 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 60.
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mesma forma, os vários pressupostos do modelo feminista são adotados pelos proponentes do paradigma da violência doméstica. Assim, os profissionais que trabalham com grupos de homens violentos endossam a teoria feminista de que o homem violento quer exercer controle e poder, mesmo quando se dedicam a encontrar uma explicação ou uma causa remota para estas atitudes masculinas e apostam na recuperação dos maridos agressivos, contrariando o ceticismo feminista. Por outra parte, os pesquisados simpatizantes do paradigma da violência familiar admitem que a violência contra as mulheres é mais intensa e danosa do que aquela que atinge homens, alguns se dizem inclusive partidários do feminismo, por apontarem normas culturais que legitimam a violência de gênero e a desigualdade econômica, entre homens e mulheres, como um fator responsável pela violência contra as mulheres.19 Entretanto, deve-se destacar que tampouco todos os estudos feministas se baseiam estritamente pelo modelo do “poder e controle”, existe parcela significativa destes autores se inclinam para as explicações de cunho psicológico e reconhece a legitimidade dos dados produzidos por pesquisadores identificados com a perspectiva da violência doméstica. Sendo assim, pode-se dizer que as feministas podem admitir e reconhecer, também, a importância de outras formas de abuso perpetradas na família, como o abuso contra crianças e contra idosos, ainda que tendam a ver essas outras formas como consequência da violência contra as esposas.20 Relutam, no entanto, em equiparar os diferentes abusos e, especialmente, em considerar sob a expressão “violência doméstica”, as agressões realizadas por esposas, companheiras e namoradas contra cônjuges ou parceiros masculinos e, inclusive, daqueles do mesmo sexo. Segundo destaca Soares Musumeci21 um outro ponto onde estas duas posições (a teoria feminista e da violência doméstica) se entrelaçam diz respeito aos programas de mediação de conflitos. As defensoras da vitimização feminina se opõem à mediação de conflitos em caso de violência doméstica, sua oposição está baseada na crença que mantêm que a mulher vítima de abuso está inteiramente submetida ao poder do agressor, recusam-se a conceber a violência contra a mulher como se tratasse de um conflito como qualquer outro, e por conseguinte, mediável. Desta maneira, acreditam que se trata de uma violência de gênero que deve ser punida exemplarmente, com a prisão do agressor, para que reste inequívoco que qualquer ato de violência contra a mulher são atos criminosos. Por outro lado, os defensores da mediação de conflitos não refutam a tese de que a violência contra a mulher deve ser criminalizada, concordando da mesma maneira com as teses do poder e controle, incluem a temática feminista nos treinamentos de mediadores e ressaltam o risco de se negligenciar os casos de violência doméstica quando se trata de mediar conflitos conjugais. Entretanto, defendem que não mediam a violência doméstica em si mesma, mas fazem a mediação de casos que envolvem violência doméstica, desta forma, propõem-se um quadro mais complexo no qual cabe formas diferenciadas de “violências conjugais”, ao invés do modelo feminista tradicional, arraigado na dicotomia envolvendo vítimas radicais e agressores absolutos.22 19 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 121. 20 Ibidem, p. 122. 21 Ibidem. 22 Ibidem, p. 123.
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Além disso, outro aspecto no qual se dividem as duas teorias diz respeito ao fato de que no modelo feminista está identificado um princípio fundamental, isto é, a violência está resumida, fundamentalmente, à questão do gênero. Por outro lado, o modelo de violência doméstica é muito mais fragmentado, e talvez por este motivo pode ser considerado mais flexível, e menos comprometido com princípios ideológicos.23 Pode-se dizer que no modelo feminista, a violência contra a mulher é, necessariamente, uma violência dirigida contra o gênero, ou seja, uma violência masculina que se exerce contra as mulheres pela necessidade dos homens de controlá-las e de exercer sobre elas seu poder. Desta maneira, é um padrão de comportamento aprendido, e de muitas maneiras, endossado pela sociedade, não se configurando como patologia individual, mas sim como forma de licença social. As mulheres seriam vulneráveis aos abusos masculinos, em função da própria estrutura (patriarcal) do casamento e da atribuição de papéis de gênero, que facilitam a dependência das esposas em relação aos maridos, agravada pela falta de qualificação profissional e de creches disponíveis.24 É necessário destacar, entretanto, que no modelo feminista, as manifestações da violência feminina vão ser entendidas como gestos de autodefesa, como respostas emocionais a vitimizações atuais ou passadas, ou, simplesmente como acontecimentos isolados que, por serem minoritários, não abalariam o modelo. Conforme assevera Musumeci: “Poder e controle são, portanto, as peças-chave do paradigma feminista. Violência doméstica, para as feministas, é um eufemismo politicamente incorreto porque desvia a atenção do problema central que é a violência de gênero [...]”.25 Barrère26 ressalta que para o feminismo é importante o reconhecimento da violência contra as mulheres como (forma de) discriminação, e que apesar das muitas dificuldades, considera a autora que esta introdução adquiriu nuances revolucionários na medida em que, através da mesma, as instâncias jurídicas-políticas tem que admitir que existe um fenômeno de violência que não se pode vilipendiar apelando a um conceito de igualdade referido ao mero exercício de direitos individuais ou apelando a um conceito de discriminação baseado na ruptura da lógica comparativa (como mera ruptura individualista da igualdade de tratamento). O conceito de discriminação entra, deste modo, no esquema interpretativo do patriarcado no qual a violência contra as mulheres resultaria na expressão mais evidente de umas relações estruturais de poder que não são afrontáveis com os únicos esquemas dos direitos fundamentais individuais. Ademais, no modelo feminista, toda mulher é vítima potencial da violência masculina, sendo o único fator comum entre as mulheres agredidas o fato de serem mulheres. Desta maneira, a literatura especializada no tema sustenta que a violência atravessa as classes sociais, os grupos étnicos e as tradições religiosas. Embora muitas pesquisas indiquem que existe maior preponderância da violência doméstica entre operários e famílias de baixa renda, entende-se que as famílias mais abastadas se encontram sub-representadas nestes dados, tanto em pesquisas 23 Ibidem, p. 124. 24 Ibidem, p. 126. 25 Ibidem. 26 BARRÈRE, Mª Ángeles. Género, discriminación y violência contra las mujeres. In LAURENZO, Patricia (Coord.) Género, violencia y derecho. Valencia: Editora Tirant lo Blanc, 2008, p. 34.
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acadêmicas quanto em estatísticas policiais.27 Os motivos pelos quais as famílias economicamente mais favorecidas parecem estar sub-representadas nos dados de violência doméstica podem ser vários: os mais ricos dispõem de alternativas variadas e não utilizam com a mesma frequência os serviços públicos disponíveis, e também as “minorias” estão sobre-representadas nas estatísticas da polícia em função da própria prática policial. Além disso, as mulheres de classes média e alta não querem, muitas das vezes, tornar público o seu problema particular, temendo o constrangimento social e os riscos que a publicidade traria para as carreiras de seus maridos, ademais de acreditarem que a respeitabilidade dos parceiros na comunidade implicará o descrédito de suas denúncias.28 Desta forma, conclui-se que, pela perspectiva feminista, se a mulher é uma vítima potencial, sem características previamente determinadas, os traços encontrados nas vítimas foram ensinados/aprendidos na própria relação violenta. Ao contrário dos homens agressores que trazem na bagagem condições, tanto genéricas quanto específicas, em termos culturais e psicológicos, as mulheres vítimas de violência apenas carregam consigo sua condição feminina.29 É justamente neste ponto que reside a crítica formulada por Musumeci à perspectiva do modelo feminista sobre as mulheres, defende que: A mulher, segundo este modelo, é apenas uma mulher. Não possui qualquer outra característica além de sua própria vitimização. Mulher e vítima são, como vimos, muitas vezes, sinônimos. Ela não tem identidade, não tem história e parece impermeável às próprias conquistas do movimento feminista. Sua patologia, a síndrome do estresse pós-traumático (SEPT), é puramente reativa. Sua violência também é reativa, assim como é completa sua submissão ao poder e ao controle do agressor. Não existem mulheres boas, más, agressivas, perversas, fortes, fracas, dóceis, manipuladoras ou generosas. Todas elas se condensam, basicamente, em uma só figura feminina: a mulher sem qualidades, aprisionada na armadilha da vitimização.30
Sendo assim, acredita a autora que o modelo feminista opera com uma noção extremamente rígida e substancializada das relações de gênero, o que parece contradizer o próprio feminismo. As diferenças de gênero são cristalizadas, definidas e unívocas, assim com a subjetividade masculina e feminina. A imagem da violência descontextualizada e universalizada, percebida apenas através de um modelo polarizado das relações de gênero, implicaria não somente na eliminação das diferenças intra e interculturais e das características pessoais das partes envolvidas, ademais, anula também as trajetórias das partes e da própria relação. Desta maneira, os significados da violência são deslocados para um único eixo externo, que seria a dominação masculina, e perdem as conexões com a história comum.31 Barbara Musumeci32 destaca também que os agressores, em casos de violência contra a mulher, tampouco pertencem a um grupo específico da população em geral. Assim como as vítimas, podem ter qualquer idade ou escolaridade, podendo pertencer a qualquer classe 27 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 128. 28 Ibidem. 29 Ibidem, p. 129. 30 Ibidem, p. 176. 31 Ibidem, p. 177. 32 Ibidem, p. 152.
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social ou etnia. Estudos realizados demonstram que frequentemente se tratam de indivíduos que foram vítimas e/ou testemunha de violência doméstica quando crianças, em um número significativo dos casos, faz uso abusivo de álcool ou drogas, o que não significa que essas substâncias causem a violência, como sugerem os estudos, apresentam dupla personalidade, oscilando entre a crueldade e a doçura. São comumente ciumentos e possessivos doentios, possuem baixa autoestima e são inseguros, estão apegados a visões estereotipadas sobre papéis de gênero e vivem ansiosamente a necessidade de demonstrar sua própria masculinidade e frequentemente prometem melhorar no futuro. Entretanto, não obstante o acima exposto deve-se destacar que o modelo feminista defende que qualquer homem, em qualquer contexto pode ser agressor, e busca distanciar-se de uma personificação patológica ou psiquiátrica de um perfil específico de agressor, vinculando mais a prática da violência com condicionantes de caráter cultural e como resultado dos processos de socialização. Dobash ao destacar o papel desempenhado pelas reivindicações feministas na luta pelos direitos das mulheres afirma que:
The battered-women`s movement has negotiated for social change within the wider context of the existing economy, political and social position of women in society, and the established philosophies, priorities and practices of existing institutions and agencies of the state. Notions about the nature of the problem, the most effective strategies and solutions, and who or what is in need of change vary and are themselves the subject of debate. The nature of social change, the dynamics of a social movement and the ideas and practices of feminism are all at work as the process of change stops and starts, moves forward and backward, and occasionally takes a step sideways.33
5. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O MODELO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência doméstica, em termos gerais, pode ser entendida como aquela que ocorre dentro de casa, no espaço dos domicílios, nas relações entre as pessoas da mesma família, nos contatos cotidianos entre pais, mães e filhos. Saffioti34 argumenta que a violência de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino. Fundamentando sua argumentação em dados empíricos, afirma que a violência doméstica acontece numa relação afetiva, cuja ruptura, na maioria das vezes, exige a intervenção externa. Até que isso ocorra, desenvolve-se, assim, uma trajetória oscilante, entre saídas e retornos à relação conflitante. Mesmo quando permanecem nessa relação por décadas, as mulheres reagem à violência usando estratégias variadas. Sendo assim, para a referida autora sua característica mais relevante é sua rotinização. E considera que por levarem uma vida mais reclusa, as mulheres estão infinitamente mais expostas à violência doméstica. Considera que se trata de uma violência que, via de regra, conta com a complacência da sociedade. Trata-se de um poder exercido entre homens e mulheres ou sobre os filhos, entre jovens e pessoas idosas, entre membros que mantém vínculos familiares, sendo os agressores 33 DOBASH, R. Emerson; DOBASH, Russel. Violence against women. In O’TOOLE, Laura L. Gender Violence. Interdisciplinary Perspectives. New York: New York University Press, 1997, p. 275. 34 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004, p. 116.
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encontrados entre qualquer uma das pessoas da convivência doméstica, pais, filhos, padrasto ou madrasta, mulher, marido, avó, avô, tios, etc. No entanto, para outros autores, como Guerra35, está relacionada com violência estrutural, mas tem outras determinações, trata-se de uma violência interpessoal que tem na família seu lugar privilegiado, não se restringindo ao gênero, não obstante se dirija predominantemente à mulher e às crianças.36 A perspectiva do modelo teórico de violência doméstica, por sua vez, está baseada na ideia de conflito e descreve a violência contra a mulher como um aspecto mais de um padrão mais geral de violência familiar, enquanto que no modelo feminista a define como apenas uma dentre as várias formas de controle que os homens exercem sobre suas parceiras. Sendo assim, é na própria família que se encontra o eixo que dá sentido a esta perspectiva, ainda que alguns de seus defensores reconheçam o “sexismo” imperante na sociedade, esta característica é vista como um dos fatores, entre outros tantos, que contribuem para a violência dentro do âmbito familiar e não o elemento determinante, como supõe o discurso feminista.37 Tal qual no modelo feminista, a violência para este modelo também é vista como um fenômeno que atravessa classes sociais, ainda que considere que os estratos mais pobres sejam mais vulneráveis do que os que estão em melhores condições. Como os atos violentos não se explicam, segundo esta tese, exclusivamente pelas relações de gênero, outras variáveis como status socioeconômico, aceitação da violência e o próprio estresse, por exemplo, são igualmente consideradas.38 Segundo explica Musumeci o modelo de violência doméstica não é propriamente um modelo estruturado, de um sistema explicativo, trata-se mais bem de um paradigma de violência doméstica que abrange um vasto conjunto de ideias e posições que não reconhecem o recorte de gênero como única explicação plausível, e baseia-se, ao contrário, em análises multifatoriais. Para esta teoria, todos os membros da família podem ser vítimas de violência, defendem a ideia de que a violência doméstica se origina nas normas sociais mais amplas, que reforçam a violência na estrutura da família contemporânea.39 Para alguns teóricos deste modelo, a violência intrafamiliar endêmica é o resultado da combinação de diferentes fatores, tais como: o estresse a que estão submetidas às famílias, no atual contexto econômico e social, contexto que fulmina com a privacidade familiar, dificultando o controle e o escrutínio das famílias; a própria estrutura da vida em família, tempo de convivência, múltiplas atividades, comportamentos e decisões dos outros membros, diferenças de sexo e idade, atribuição e assunção de papéis, privacidade e isolamento, pertencimento involuntário, intimidade, dentre outros; empréstimo dos padrões sociais que, geralmente, corroboram atos 35 GUERRA, V. N. de A. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. São Paulo: Editora Cortez, 1998, p. 31. 36 Saffioti fala ainda de violência familiar que seria aquela que envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, tomando por base a consanguinidade, a afinidade e que ocorre, mais corriqueiramente, no interior do domicílio mesmo que, também, fora dele. Osterne, por sua vez, trata ainda de violência intrafamiliar, isto é, aquela que ocorre no âmbito familiar, mas que, entretanto, extrapola os limites do domicílio, como resultado de relações violentas entre membros da própria família. Cita como exemplo deste tipo de violência o caso de um avô ou avó, tio ou tia, que não habite o domicílio de seus parentes, mas que comete violência em nome dos laços familiares. 37 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 155. 38 Ibidem. 39 Ibidem, p. 156.
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violentos como instrumento de composição dos conflitos e; a socialização da criança, segundo o padrão amplamente aceito de punição pela força física, desta maneira, a violência seria gerada pela própria família e transmitida de geração em geração.40 A referida autora comenta que parece ser que a perspectiva feminista e a perspectiva da violência doméstica são inconciliáveis, já que a disputa sobre quem é a vítima ou quem é violento se centrou em torno do recorte de gênero. Neste sentido, o modelo feminista recusa a hipótese da mulher violenta e o modelo da violência doméstica não reconhece a mulher como única vítima do complexo familiar.41 Sobre o tema opina a referida autora que: Minha percepção é que ambas as abordagens estão corretas, já que tanto uma quanto outra consistem em descrições plausíveis da experiência de homens e mulheres envolvidos. O fato de que existam milhares violentas, casais mutuamente agressivos homens vitimados pela brutalidade feminina não conduz, ou não deveria conduzir, de forma alguma, à demolição do modelo feminista. Não deveria anular a imagem de uma violência de gênero, aprendida e endossada socialmente; a imagem da mulher prisioneira do ciclo de violência, submetida cronicamente ao abuso físico e psicológico do parceiro; da mulher ameaçada, dependente, isolada, indefesa, coagida e aterrorizada. [...] Suas experiências são reais, percebidas dessa forma e significativas, mesmo que haja outras formas de violência intrafamiliar, convivendo com a violência de gênero.42
Não obstante, a mencionada autora acredita que é possível conjugar ambos modelos (a teoria feminista e o modelo teórico da violência doméstica), reconhecendo tanto os limites como as virtudes descritivas, a plausibilidade e a capacidade de gerar discursos consistentes e eficazes, produzindo novas dinâmicas interpretativas, que impulsionariam o debate e mobilizariam ações específicas, alterando percepções e redefinindo comportamentos, introduzindo novas soluções e problemas e a necessidade de um reflexão contínua. Sugere utilizar a expressão “violências domésticas”, para dar lugar às especificidades de cada perspectiva e incorporar a dominação de gênero, os conflitos gerados e reproduzidos na estrutura familiar, as patologias individuais e os padrões sociais que estimulam a violência.43 Por outra parte, Musumeci também aporta críticas à visão do modelo de violência doméstica na medida em que acredita que este modelo, especialmente em suas versões mais radicais, tende a reduzir a violência contra a mulher a um caso, entre outros, de um conjunto de conflitos familiares, deixando, com isso, de reconhecer a especificidade da violência de gênero. Desconsidera, ademais, o fato de que a violência pode ser diferente, para homens e mulheres, ainda que a quantidade das agressões possa ser equivalente.44 Não apenas em razão das diferenças físicas ou disparidades econômicas, não somente pela possibilidade de as mulheres estarem se defendendo de abusos físicos e psicológicos, mas porque essas experiências são vividas e interpretadas, por cada um, através de perspectivas distintas, de referenciais diversos, que derivam, em grande parte, de uma linguagem hierarquizante de gênero ou mesmo de uma subjetividade indissociável da posição de gênero. 40 Ibidem, p. 159. 41 Ibidem, p. 170. 42 Ibidem, p. 171. 43 Ibidem, p. 172. 44 Ibidem, p. 178.
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Assim, tendo em vista o exposto até o momento, pode-se dizer que o fenômeno da violência de gênero não pode desconsiderar a complexidade, ampliando-se a noção para fundir neste fenômeno todos os elementos possíveis, sem perder de vista a indivisibilidade, a interdependência, inter-relação e complementariedade dos diversos fatores de interferência, pois a complexidade é a “união entre a unidade e a multiplicidade”, conforme elucida Morin.45 Não obstante, cabe aqui registrar também que inegável perceber as aproximações que frequentemente ocorrem entre as expressões de violência de gênero e violência doméstica, quando, por exemplo, o agressor da mulher, também é o agressor dos filhos, dentro do âmbito do lar. A razão para a execução daquele ato violento pode ser única e comum a ambas: patologia psiquiatria de psicopatia do agente, por exemplo, ou ainda a cultura violenta do agressor (que durante seu processo de socialização e educação aprende que a violência é uma via legítima para alcançar alguns fins – não esquecendo que a cultura da violência é uma marca significativamente presente na sociedade brasileira). Mas ainda neste último caso é difícil desassociar esta prática com certa cultura de machismo e submissão da mulher, posto que é possível perceber a ligação entre o tratamento da mulher pelo companheiro com a sua mentalidade de reconhecimento de uma postura socialmente aceitável, ele homem pode praticar certas condutas, por ser homem, e a mulher está proibida de realizá-las (ou obrigada a aceitar a conduta do homem pelo simples fato de ser mulher). Daí a importância da utilização da nomenclatura violência de gênero, tendo em vista que ela coloca em evidência a existência desta cultura de reconhecimento de legitimação social de parâmetros distintos de condutas pelos diferentes sexos. Não deixa esquecer que o sentimento de machismo é real e está presente na sociedade em escala muito maior do que normalmente estamos dispostos a reconhecer. 6. O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL Ferreira Osterne46 argumenta que a sociedade brasileira é complexa, heterogênea e diferenciada, desta maneira, sustenta que a neste contexto a violência se mostra como produto de uma situação em que a cidadania não logrou impor-se como valor. E neste sentido, conforme anuncia Velho47, neste país as mudanças embutidas na globalização rebatem fortemente no universo de valores e, particularmente, nas expectativas de reciprocidade da população. No contexto desta lógica, a incapacidade do Poder Público de responder às questões sociais, em parte, agravada pela conivência policial com a criminalidade e a ausência de um sistema, minimamente eficaz, de reciprocidade acentua a desigualdade social produtora da violência. Sobre o tema, opina Osterne que:
Assim, quebra de valores, ausência de esquemas de reciprocidade, difusão de princípios individualistas, sentimento generalizado de injustiça, ineficácia do Poder Judiciário, falta de efetivas políticas sociais, enfim, ausência de cidadania, é o quadro brasileiro atual, situado no interior do projeto neoliberal, que evidencia o fenômeno da violência em suas formas diferenciadas de manifestação. A violência de gênero é uma delas.48
45 MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Editora Cortez, 2005, p. 38-39. 46 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 58. 47 VELHO, Gilberto. Violência, reciprocidade e desigualdade. In Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, p. 20. 48 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 58.
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A violência contra a mulher e seu alarde social, no Brasil, seguiram trajetórias diferentes das reivindicações realizadas sobre o mesmo tema em países desenvolvidos. No caso brasileiro a questão se tornou um assunto político e foi visto como um problema social no início dos anos 8049. Desta maneira, pode-se dizer que a repercussão na imprensa do assassinato de mulheres de famílias de classe média por seus parceiros foi o que deflagrou a inauguração deste tema na agenda pública. Em países desenvolvidos, como França e Estados Unidos, por outro lado, o tema vem à tona através das vivências diárias de mulheres e das denúncias do controle masculino sobre seus corpos, enquanto que no Brasil se deu por meio da visibilidade de alguns casos emblemáticos de expressão de poder dos homens sobre a vida das mulheres, sendo que foi a opinião pública a exercer o sucintamento da sensibilização das massas em geral sobre o problema.50 Neste ponto, percebe-se similitude em relação ao panorama da Espanha, onde também foi através da exposição pública de um caso extremo de violência de gênero, caso particular de Ana Orente, que trouxe o tema para a discussão coletiva. Aparecida Fonseca Moraes e Bila Sorj comentam que a consequência direta deste fato foi que: [...] a delimitação da percepção da violência conjugal na sua expressão mais extremada e limiar, o que favoreceu uma visão do agressor como desviante, doente, perverso, passional, etc. Assim, a violência conjugal não foi entendida como um comportamento inscrito dentro do campo de possibilidades de relações desiguais de gênero, mas como um evento excepcional da relação entre homem e mulher. O entendimento de que a violência conjugal é um fato excepcional nas relações familiares está subjacente a todas as iniciativas institucionais de combate à violência no país.51
Nancy Fraser aponta para a construção da igualdade através das políticas feministas é necessário para a promoção da justiça de gênero, que apenas é possível através da mudança na hierarquia de status na qual estão colocados homens e mulheres. Isto significa considerar, previamente, que os modelos de status são perpetrados através das instituições que regulam a interação social de acordo com as normas e valores que impedem a paridade, isto é, o reconhecimento da posição das mulheres como parceiras plenas na interação social. Desta maneira, a difusão de um determinado conceito de reconhecimento poderia terminar fortalecendo, pela via da institucionalização de valores, traços associados com o masculino e arraigados na própria cultura patriarcal. No âmbito brasileiro, três contextos implicados na produção de políticas públicas de combate à violência de gênero são considerados, conforme destacam Moraes e Gomes52: as 49 Em termos atuais, segundo levantamento feito pelo DIEESE, no Brasil, no ano de 2010, e de acordo com as denúncias realizadas no chamado CENTRAL DE ATENDIMENTO À MULHER (LIGUE 180 – serviço oferecido pela Secretária de Políticas para as Mulheres com o objetivo de receber denúncias ou relatos de violência , reclamações sobre serviços da rede e orientar as mulheres sobre seus direitos e a legislação vigente), os tipos de delitos relatados contra as mulheres são os seguintes: violência física: 58,8%; violência psicológica: 25,3%; violência moral: 11,6%; violência sexual: 2,1%; violência patrimonial: 1,7%; cárcere privado: 0,4%; tráfico de mulheres: 0,1%. Fonte: DIEESE. Anuário das mulheres brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011, p. 281. 50 MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (Org.). Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 87. 51 Ibidem, p. 3. 52 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 75.
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expectativas e valores do feminismo, bem como as suas possíveis influências na produção dos estudos sobre gênero e violência no Brasil; a regulação e judicialização de questões da intimidade das famílias e das relações de afeto; as trajetórias das políticas de combate à violência conjugal no Brasil, tendo como principal expressão as DEAMs, instrumento que procura integrar uma ação multisetorial de combate à violência. No que diz respeito às políticas públicas implementadas no Brasil no combate à violência contra a mulher, a criação das delegacias especializadas de atendimento à mulher configura-se como sendo uma das principais e mais emblemáticas neste sentido. Nascida da reivindicação feminina, representou um marco significativo da vitória do pleito social de proteção ao gênero. 7. POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA: AS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO À MULHER (DEAMs) Cabe ainda destacar, dentro da perspectiva geral de proteção dos direitos das mulheres no Brasil, as delegacias especializadas de atendimento à mulher (DEAMs), como importante instrumento de combate à violência machista. Aparecida Fonseca Moraes e Bila Sorj53 sustentam que as delegacias especializadas de atendimento à mulher são consideradas a mais importante inovação institucional brasileira na área de violência, com importante repercussão em outros países da América Latina, especialmente por ter introduzido o mundo da lei, da justiça e da impessoalidade no âmbito privado, no reino da intimidade conjugal, pois acreditam que constituem a principal política pública de combate e prevenção à violência contra a mulher no Brasil, especialmente no que diz respeito a violência conjugal. Sua função legal é detectar transgressões à lei, averiguar a sua procedência e criminalizar a violência doméstica. Ao tratar do surgimento destas delegacias especializadas, as referidas autoras apontam que no final da década de 70, o movimento de mulheres começou a denunciar a absolvição, pelos tribunais do júri, dos autores de homicídios de mulheres sob a alegação de legítima defesa da honra. No início dos anos 80, surgiram grupos feministas em todo Brasil, denominados SOS-Mulher, que prestavam atendimento jurídico, social e psicológico de mulheres vítimas de violência. Com a pressão exercida por este grupo que politizaram o tema, logrou-se que, em São Paulo, o Conselho Estadual da Condição Feminina criado no governo Franco Montoro em 1983 priorizasse a atuação nesta seara. Assim, a primeira delegacia deste tipo surgiu em 1985 na cidade de São Paulo e, atualmente, existem mais de 415 delegacias no país. Entretanto, é importante destacar que atingem somente 10% das cidades brasileiras, sendo que São Paulo abriga cerca de 1/3 delas, e que quase metade delas estão localizadas na Região Sudeste do país.54 Barbara Musumeci Soares55 esclarece que as DEAMs tinham como objetivo original oferecer às mulheres vítimas de violência o tratamento digno e respeitoso que elas raramente recebiam nas delegacias distritais, onde o atendimento oferecido pelos policiais, se assemelhava, com freqüência, aos próprios atos que haviam motivado a queixa. Nas DEAMs, as mulheres poderiam 53 MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (Org.). Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 4. 54 Ibidem. 55 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 49.
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encontrar não apenas um tratamento melhor, mas também um tratamento especializado, por parte de uma instituição que reconheceria como crime as ações violentas que as teriam vitimado. Deste modo, esperava-se que com a criação das DEAMs contribuísse para ampliar e reequilibrar a distribuição de justiça. Além disso, deve-se destacar que ademais da diferença de coberturas, expressiva é a particularidade de funcionamento das delegacias em alguns estados. Carla de Castro Gomes e Moraes explicitam que no Rio de Janeiro, por exemplo, são mulheres (delegadas) que comandam as DEAMs, mas ao contrário do que ocorre em outros locais, os homens também integram o quadro de investigadores. Em São Paulo, o Decreto 40.693/199656 ampliou a área de atuação destas incluindo delitos contra crianças e adolescentes.57 Não obstante a criação das delegacias especializadas representar uma grande conquista do movimento de proteção aos direitos das mulheres, na prática o padrão de comportamento das mulheres que denunciam parece seguir, na maioria das vezes, um mesmo paradigma, conforme esclarecem Moraes e Sorj:
As pesquisas revelaram que o uso das DEAMs pelas mulheres parece seguir uma lógica diversa da lógica da instituição policial e da inspiração do movimento feminista, uma vez que a mais freqüente motivação das mulheres em procurar as delegacias especializadas consiste em usar o poder policial para renegocias o pacto conjugal e não para criminalizar o parceiro. Se em outros contextos de tradição liberal a polícia é, via de regra, uma instituição legalmente acionada todas as vezes que estão em jogo os direitos à segurança, à privacidade e à vida, no Brasil a polícia é procurada, predominantemente, como forma extraoficial de arbitragem com vistas à renegociação dos pactos domésticos. As policiais, em geral mulheres, passam a intervir nos conflitos trazidos à delegacia, convocando as partes para um encontro no qual buscam mediar os interesses em choque. Essa intervenção, apurada em 93% das delegacias do país (Machado, op. cit.), muitas vezes parece obter certo impacto na resolução das desavenças conjugais. Além da função mediadora, a polícia é acionada para uma intervenção punitiva extrajurídica. Quando os acusados comparecem para depor são repreendidos, recebem uma “bronca” ou “conselho” de uma policial para conter a violência conjugal. Nesse caso, o poder policial funciona como coação ao agressor, caso ele persista na sua conduta violenta. Trata-se, portanto, de um jogo onde as vítimas procuram tirar algum proveito do efeito de autoridade da polícia sobre o marido agressor.58
Parece ser que as delegacias especializadas de atendimento à mulher padecem dos mesmos problemas que o aparato judiciário espanhol experimenta ao tratar de casos envolvendo violências de gênero, conforme será melhor desenvolvido no próximo capítulo, a problemática da desistência da vítima em levar adiante a denúncia, ou mesmo a intenção intrínseca ao realizar tal ato, não com o intuito de perseguir a penalização formal-criminal do agressor, mas sim apenas inserir o aparato estatal nas discussões domésticas, com vistas a exercer pressão “oficiosa” para que o agressor mude de atitude, e deixe de praticar atos violentos. 56 É possível perceber aqui a inegável inclinação que a política pública que deu ensejo à criação e aperfeiçoamento das delegacias de mulheres deu em direção a uma associação do fenômeno para a violência doméstica genérica, e não exclusivamente de gênero, mesclando o atendimento para mulheres também a crianças e adolescentes (apesar de haver no Brasil delegacias especializadas na proteção de crianças e adolescentes). 57 MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (Org.). Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 87. 58 Ibidem, p. 14-15.
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Desta forma, pode-se concluir que ainda que seja imprescindível e fundamental que o Estado detenha de mecanismos legais de coibição da violência contra a mulher, através de ferramentas criminais, administrativas e sociais de punição ao agressor, deve-se ter em mente que a solução penal, em muitos casos resulta não ser aquela ansiada pela vítima. Assim, mostrase de crucial importância também o desenvolvimento de técnicas de composição não-penal dos conflitos domésticos, com o apoio de equipes qualificadas de suporte psicossocial para intermediar e encontrar soluções que sejam globalmente benéficas as partes e ponha fim ao problema. Se a questão da violência contra a mulher está marcada por uma herança cultural e educacional de preconceitos contra a mulher e visão estereotipada dos gêneros, a mera punibilidade criminal dos seus agentes não trará a solução definitiva para a questão, sendo necessário instrumentalizar uma mudança de paradigma social, onde atos de violência contra a mulher não seja mais socialmente e moralmente toleráveis ou aceitáveis. Desta forma, o desafio é trazer a mudança partindo dos próprios atores sociais, e não apenas impondo-lhes a modificação de mentalidade através da letra fria da lei, mas por meio de políticas públicas e estratégias educativas que visem estabelecer uma alteração profunda da visão social deste fenômeno. Sobre o tema, afirmam Moraes e Sorj: “Aqui, tudo indica que a vítima, em geral das classes populares, não está interessada em ingressar no mundo da lei, universal e impessoal. Ela se apropria do aparato policial de uma maneira peculiar para a mediação do conflito privado, o que não se enquadra na função primária da polícia penal que é de verificar e apurar o crime.”59 Elaine Reis Brandão ao realizar uma investigação dentro dos atendimentos de uma DEAM localizada no Rio de Janeiro concluiu que quando as mulheres se referem aos conflitos conjugais, o termo violência é pouco citado e que as vítimas muitas vezes não compartilham a concepção da violência como algo que fira a integridade física e moral individual, mas que utilizam a estrutura disponibilizada pelas DEAMs como “recurso simbólico” o que é coerente com o ideário que compartilham e com as condições sociais em que vivem. Neste sentido, a pesquisadora acredita que a polícia seria acionada como recurso de autoproteção e repreensão do parceiro, porém, a negociação se faz efetivamente entre vítima e acusado, no âmbito privado, mediante a influência indireta da DEAM60. Segundo apontam as referidas autoras, com a sua evolução, o movimento feminista no Brasil inaugurou uma nova percepção de que a violência conjugal deveria ser considerada como crime e o agressor penalizado, para tanto, lutou pela implantação de delegacias especializadas no atendimento das mulheres na expectativa de que o tema da violência conjugal pudesse ser tratado no âmbito criminal. Uma vez implantadas as DEAMs, a experiência das usuárias mostrou que as mulheres utilizavam as delegacias muito mais como espaço de mediação de conflitos e de restabelecimento da relação conjugal e familiar, com o objetivo de torná-las isentas da violência. Em outras palavras, o seu objetivo não era penalizar o agressor, mas recuperá-lo, mediante 59 Ibidem, p. 15. 60 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 80.
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ameaça ou aconselhamento de uma autoridade policial.61 Para Barbara Musumeci esse foi o ponto que trouxe mais frustração na criação das DEAMs, considerando os resultados obtidos. Um número muito reduzido de atendimentos se converte, de fato, em processos encaminhados à justiça. Neste sentido, defende a referida autora que:
Em outras palavras, as DEAMs cumpriam, simultamente e de maneira informal (e precária, é claro), certas funções assumidas pela polícia, pela justiça e pela sociedade civil norte-americana no combate à violência doméstica: promoviam a mediação de conflitos, realizavam sessões de arbitragem, emitiam uma espécie de medida restritiva, advertindo os acusados, ameaçando-os de detenção em caso de novas agressões e distribuíram a clientela, segundo suas necessidades, pela rede de serviços sociais disponíveis.62
Este fato coloca em evidência a necessidade de desenvolvimento e solidificação de cultura cidadã acerca das relações entre homens e mulheres. Através da educação fundada em direitos humanos e na propagação de consciência solidária em relação aos gêneros, e não de subordinação ou superioridade. Sobre este assunto, opina Carla de Castro Gomes que no Brasil, atualmente, tem chamado atenção à ênfase em um atendimento às mulheres vítimas que pelas suas características abrangentes foi denominado multissetorial ou intersetorial. Esta trajetória obteve relevância institucional com a criação das DEAMs, mas em termos atuais, as expectativas se voltam principalmente para a cooperação entre estas e as organizações de apoio e assistência social, envolvendo instituições diversas.63 Neste sentido, entendem ainda as referidas autoras que se é verdade que as mulheres fazem este tipo de uso da instituição policial, os Juizados Especiais Criminais vão de encontro às expectativas das vítimas, expectativas essas que, por sua vez, se opõem às percepções das feministas sobre a maneira pela qual a violência contras as mulheres deveria ser tratada pelo Estado.64 Desta maneira, sustentam que: Obviamente, a violência conjugal ingressou no mundo da lei, porém, a sua institucionalização adquiriu conteúdos locais onde a família e a conjugabilidade constituem valores importantes nas identidades de gênero. A dificuldade de imposição de normas jurídicas universais na resolução de conflitos, as quais se fundam numa sociabilidade individualista, igualitária e universalizante, coloca sérios desafios à expansão da agenda feminista no contexto local e indica a complexidade da recepção do ideário e das instituições inspiradas no feminismo no Brasil.65
Neste sentido, Musumeci66 destaca de maneira muito coerente que de uma forma ou de outra, apesar de todas as suas deficiências, a atuação do DEAMs foi capaz de absorver e oferecer 61 MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (Org.). Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 16. 62 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 54-55. 63 MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (Org.). Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 87. 64 Ibidem. 65 Ibidem, p. 17. 66 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 58.
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respostas a um problema até então sem nome, sem existência, sem visibilidade. As múltiplas tensões, violentas ou não, vivenciadas no cotidiano da vida privada, encontraram nas DEAMs um escoadouro natural. No contexto da violência contra a mulher, abriram-se as portas para que emergisse um fenômeno mais amplo e igualmente generalizado. Antes mesmo que sociólogos, políticos e agentes sociais trouxessem à tona uma nova problemática e produzisse um novo recorte da violência, aportando a especificidade da violência familiar, ou o potencial de violência representado pelos conflitos domésticos, compreendendo-se o termo doméstico no seu sentido mais amplo, as DEAMs na prática diária, deram vazão a esse conjunto de conflitos, que cotidianamente, se transformaram em queixas nos balcões de atendimento. Um conjunto fático que sugere um panorama muito mais abrangente do que o modelo da mulher vitimada imaginado pelo projeto feminista.67 De forma concisa Musumeci demonstra os principais resultados positivos auferidos com a criação dos DEAMs: Outra parte, como vimos, consiste em conflitos de natureza variada, que escapam ao quadro tradicional de violência contra a mulher ou não fazem sentido no mundo jurídico formal (não por lapso deste, mas pela natureza própria das contendas). Não estão contemplados pelas leis universalizantes e não se enquadram no universo impessoal dos processos, recursos e veredictos. Casos em que as queixantes não se apresentam como vítimas e sequer cogitam da solução penal. Esperam, ao contrário, algum tipo de intervenção pragmática, que resulte no rompimento do ciclo de agressões recíprocas e permanentes, no ressarcimento de bens materiais danificados ou na resolução de disputas tópicas. E, ao que parece, as DEAMs souberam entender esse apelo. Informalmente, tornaram-se “delegacias de família” ou “delegacias comunitárias”, superando, por pressão da demanda, as expectativas e os limites do projeto que lhes deu origem.68
Francisco Pereira Costa69 afirma que no arcabouço jurídico brasileiro detentor de regras que impôs a legitimidade do modelo patriarcal, de cunho sócio familiar e político, vigorou neste país desde o período colonial, recebendo um regramento de controle ao longo do processo de formação da sociedade brasileira. Assim, as leis criadas serviam para legitimar a opressão do homem contra a mulher, e é em função da destruição deste paradigma anacrônico que o Brasil vem realizando mudanças legais que protegem as mulheres, especialmente, as vítimas das diversas formas de violência de gênero. 8. A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL E OS CONFLITOS DE SUA INSTITUCIONALIZAÇÃO Santos Terra explicitou que em função de um modelo discriminatório e violador dos direitos humanos de gênero, persiste ainda no Brasil e no mundo inteiro, no âmbito das relações conjugais, a violência contra a mulher, a despeito do progresso por ela alcançados no decorrer do processo histórico. Direitos e salários iguais do ponto de vista formal e sentimento 67 Ibidem. 68 Ibidem: p. 59-60. 69 COSTA, Francisco Pereira. A Lei Maria da Penha. Aplicação e eficácia no combate à violência de gênero. São Paulo: Editora UFAC, 2008, p. 12.
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de independência não eliminaram as pressões culturais consolidadas na sociedade que reforça mecanismos de opressão, legitimando a prática de atos agressivos como intrínsecos ao homem, caracterizando nítida relação de poder e gênero.70 Moraes e Gomes71 destacam que o feminismo logrou fazer com que a violência contra as mulheres passasse a ser reconhecida como uma forma de violação dos direitos humanos, tornando o fortalecimento dos sistemas de justiça criminal em defesa destas um requisito para os governos nacionais que aderiram a tal agenda de direitos. Essas mudanças aumentaram a circulação de valores do universo feminista, mas esta muitas vezes termina por confrontar expectativas bastante diferenciadas na vida concreta dos indivíduos, especialmente das mulheres. Assim, apesar das grandes conquistas e oportunidades alcançadas pelo feminismo em sua perspectiva globalizada, novos problemas e desafios também surgiram a partir daí. Uma das principais expoentes da pesquisa dedicada a gênero e conceito de patriarcado no ambiente acadêmico brasileiro, Heleith Saffioti, descreve que este termo apresenta a violência de gênero como parte da organização social, uma vez que na família é forte a ideia de que a mulher se constitui como propriedade do homem e que por isso não é vista como agredida ou abusada de fato pelo seu marido. E aqui haveria sempre um horizonte de constrangimento econômico, além do cultural e social, pois o patriarcado também é visto como um sistema de exploração que se soma a uma dominação modelada pela ideologia machista. Quando se trata da questão da institucionalização do reconhecimento da violência contra as mulheres no Brasil, e a criação de mecanismos para sua coibição, deve-se necessariamente abordar um embate importante que foi travado entre feministas e operadores do direito nesta área. Romeiro72 explicita que a questão da violência conjugal assumiu um significado distintos para feministas e operadores jurídicos, na medida em que há havia consenso sobre a natureza desta violência nem sobre a melhor maneira de enfrentá-la. Por um lado, feministas opinavam que se deveria respeitar os direitos humanos das mulheres através da criação de uma lei específica para esses casos, os operadores jurídicos, por sua vez, argumentavam que não era necessário uma lei e defendiam a manutenção desses casos na esfera de atuação dos Juizados Especiais Criminais (JECRIMs) considerando como uma forma legítima de exercício da democracia e dos direitos humanos das mulheres, pois além do JECRIM facilitar o acesso da população à Justiça, viabilizariam um tratamento igualitário entre homens e mulheres. Desta maneira, salienta a autora, feministas e operadores jurídicos acabaram utilizando o mesmo discurso, fundamentado as noções de igualdade, democracia, direito das mulheres, como base para suas reivindicações e argumentações. A criação de uma lei específica de proteção e de mecanismos próprios para processamento de casos de violência contra o coletivo feminino configurou-se como sendo uma das principais 70 SANTOS TERRA, Fernando Henrique; SOUSA LEITE, Manoela; MORAES ARAÚJO, Zhalla. Relações de gênero e violência no âmbito da sociedade patriarcal. In A Lei Maria da Penha. Aplicação e eficácia no combate à violência de gênero. São Paulo: Editora UFAC, 2008, p. 43. 71 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 78. 72 ROMEIRO, Julieta. A lei Maria da Penha e os desafios da institucionalização da “violência conjugal” no Brasil. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 49.
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encruzilhadas argumentativa de embate destes dois atores sociais. Assim, pode-se dizer que para as feministas era de fundamental relevância criar no Brasil mecanismos punitivos eficazes para os casos de violência contra a mulher, sob o argumento de que os JECRIMs não davam conta da complexidade deste tipo de violência e as penas e medidas alternativas não possuíam um caráter punitivo devidamente persuasivo, uma vez que poderiam ser convertidas em multas. É importante destacar que apesar de não estar prevista explicitamente esta possibilidade em sua lei de criação, na prática era uma medida recorrente no âmbito dos JECRIMs.73 O fundamento apresentado pelos operadores do Direito está baseado na ideia de que a concepção dos Juizados Especiais Criminais está centrada na importância da despenalização e da aplicação de penas alternativas na consolidação de uma justiça moderna e voltada para os direitos humanos, o que terminou por acirrar ainda mais a polêmica entre estes e as feministas no que diz respeito ao que pode ser considerado como a forma adequada de lidar com a violência conjugal. Se por uma parte as feministas sempre lutaram pela criminalização e punição legal da violência conjugal e pela criação de mecanismos jurídicos e policiais específicos para o tratamento dessa forma de violência, os JECRIMs abarca como uma de suas concepções teóricas fundamentais a despenalização e a descriminalização como soluções mais eficazes para a resolução dos conflitos interpessoais, posto que as partes teriam oportunidades iguais na audiência de conciliação e que a conciliação visaria atender às reivindicações de ambas as partes envolvidas no conflito.74 Entretanto, deve-se destacar que não obstante a importância da possibilidade de composição em determinados conflitos, diversos estudos realizados evidenciaram que as práticas operadas nas salas de audiência dos JECRIMS na verdade não resolviam o problema da violência, mas ao contrário, acabavam por banalizá-la com o pagamento de multas (imposição de doação de cestas básicas) e aplicação de penas alternativas ineficazes, conforme criticavam a corrente feminista. Além disso, os debates também giravam em torno do despreparo dos conciliadores para lidarem com questões de gênero, a visão tradicional da Justiça sobre a função social da família e a estipulação de simples multa no combate à violência.75 Romeiro76 destaca ainda que foi a partir da experiência, mal sucedida do ponto de vista feminista, dos Juizados Especiais Criminais para a resolução dos conflitos de caráter conjugal, que organizações não-governamentais, amparadas nas convenções internacionais sobre os direitos humanos das mulheres dos quais o Brasil era signatário, começaram a se mobilizar para criar um mecanismo judicial alternativo aos JECRIMs, capaz de compreender a violência contra a mulher, mais especificamente a violência conjugal, como um tipo de violência dotado de características específicas. O reconhecimento da necessidade de proteção específica às mulheres frente a atos de violência pode ser considerado como uma das conquistas mais importantes e fundamentais do movimento feminista. Na medida em que o Estado passa a reconhecer, através de um instrumento legal concebido com a finalidade especial e exclusiva de combater a violência contra o coletivo feminino, que existe uma violência que é dirigida às mulheres por sua própria condição de mulher. 73 ROMEIRO, Julieta. A lei Maria da Penha e os desafios da institucionalização da “violência conjugal” no Brasil. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 50. 74 Ibidem, p. 53. 75 Ibidem, p. 54. 76 Ibidem, p. 62.
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Isto se destaca principalmente a partir do advento da Lei 11.340/2006 de proteção contra a violência contra a mulher, mais conhecida como Lei Maria da Penha. 9. A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E A ASCENSÃO DA ATUAÇÃO PÚBLICA NAS RELAÇÕES PRIVADAS Está claro que no âmbito das relações conjugais, onde na maioria das vezes, as agressões contra as mulheres ocorrem, também está presente uma espécie de “violência simbólica”77, utilizando-se do termo apresentado por Bourdieu, que termina por ultrapassar os limites do físico e que se desenvolve via sistemas de representação que operam diferenças nas relações entre os sexos. Além disso, as dinâmicas da violência conjugal reforçam um padrão de conflito interpessoal.78 María Luisa Femenías79 aponta que exemplos de violência simbólica são as transcrições a linguagem legal dos relatos das mulheres vítimas de violência física, onde na maioria dos casos se “perdem dados” ou se “distorcem descrições”. Os usos da linguagem cotidiana e técnica, que ignoram as mulheres como sujeitos narrativos, carecem das formas apropriadas para recolher, transcrever ou representar suas descrições. Assim, de forma geral apenas se tem em conta os modos masculinos, em termos de modos normativos, de reconhecimento, de entender a sexualidade, de exercer a ofensa sexual, de reconhecer graus de brutalidade, etc. As formas da linguagem tornam invisíveis um conjunto de dados que passam despercebidos, ainda as transcrições melhor intencionadas, para a referida autora, não são isentas. Pode-se dizer que o tratamento de conflitos interpessoais nas instituições públicas modernas vinculou questões privadas e da dimensão da intimidade, considera-se como 77 Esta dimensão simbólica é tratada por Bourdieu em suas reflexões sobre a dominação conjugal: “A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto”. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 47. O autor adverte ainda acerca dos possíveis mal entendidos sobre a noção de violência simbólica, em outras palavras, a respeito das interpretações simplificadas que o termo simbólico supõem, por estar a violência simbólica minimizando o papel da violência física, fazendo esquecer que existem mulheres espancadas, violentadas, exploradas, ou mesmo a própria tentativa de minimização da culpa dos homens por esta forma de violência. Posiciona-se de maneira a defender que o simbólico não deve ser compreendido com o oposto de real, de efetivo, tampouco, que violência simbólica é uma violência meramente espiritual e sem efeitos reais. Bourdieu entende que a violência simbólica é aquela que extorque, gerando umas formas de submissão que nem sequer se percebe como tal, e que se apóia nas crenças totalmente arraigadas. Pode-se dizer que uma das formas da violência simbólica é a submissão feminina a dominação masculina, da qual pode-se perceber, sem importar em contradição, que é ao mesmo tempo espontânea e produto de uma extorsão. Como consequência, a violência simbólica isola, segrega, reclui, gera marginalidade, divide, condena, elabora cadeias causais e até mesmo aniquila ou extermina, se não direta, ao menos indiretamente, justifica ou legitima argumentativamente outras formas de violência, incluindo a física. Todo sistema de dominação, e o patriarcado não é uma exceção, inclui violência simbólica desconfirmando, desqualificando, negando, tornando invisível, fragmentando ou utilizando arbitrariamente o poder sobre os demais. (FEMENÍAS, María Luisa, 2008, p. 64). 78 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 82. 79 FEMENÍAS, María Luisa. Violencia de sexo-género: el espesor de la trama. In LAURENZO, Patricia (Coord.) Género, violencia y derecho. Valencia: Editora Tirant lo Blanc, 2008, p. 67.
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judicialização o aspecto que manifesta uma forma de regulação, pelas instituições, de tipos de agressividade e de conflitos nas relações familiares e pessoais, sendo, em última instância, a introdução do universo impessoal do Direito no mundo pessoal e privado. E no âmbito do universo da violência contra a mulher, a judicialização é apresentada por Rifiotis80, como sendo o conjunto de práticas e valores, pressupostos em instituições como a DEAM, e que consiste fundamentalmente em interpretar a violência conjugal a partir de uma leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade “vítima-agressor” ou na figura jurídica do réu. Moraes e Gomes81 ao realizar um estudo nas Delegacias de Atendimento Especializado de Rio de Janeiro e analisar as opiniões e discursos dos atores sociais que interagem neste espaço, afirmam que a família onde se desenrola a violência conjugal é classificada pelos profissionais de ambas as delegacias como desestruturada e imagens muito diversas e estereotipadas são utilizadas para definir essa representação, onde a primeira delas a de que, no interior dessas famílias, a manifestação de alguma violência seria um evento sempre provável. Ao analisar as posições dos agentes policiais que atuam nas DEAMs analisadas concluem que embora alguns policiais tivessem admitido que a violência conjugal e doméstica pode se manifestar em qualquer classe social, esta é recorrentemente justificada pelas condições de pobreza. O que significa atribuir às classes mais baixas o espaço por excelência das relações familiares violentas. Segundo o entendimento destes agentes, nos estratos médios e altos, a violência conjugal seria um evento isolado e pouco conhecido uma vez que, em grande parte, não chegaria sequer a ser publicizada. A família desestruturada e violenta, assim como a mulher permanentemente agredida, dificilmente seriam encontradas entre as classes economicamente favorecidas, reforçando uma visão estigmatizante da pobreza.82 Desta maneira, nessas delegacias era comum definirem as mulheres envolvidas na violência conjugal como pessoas que se tornam vítimas da violência porque não possuem recursos econômicos ou acesso a benefícios sociais ou educacionais. Ademais, comparadas com os homens, as mulheres ocupariam lugar central na discussão sobre o comportamento dos atores envolvidos na violência conjugal. 83 Explicitam as referidas autoras que: O conflito e a situação de agressão e violência foram descritos como eventos que incluem muitas interações e não se encerrariam na conduta exclusiva do perpetrador. Ao contrário, muitos dos seus desfechos seriam de alguma forma (pré) definidos pelos comportamentos provocativos das próprias mulheres que estariam no centro da produção dos conflitos que levaria à eclosão da violência. Tal argumento era por vezes enfatizado através da imagem da mulher irritante, referindo-se àquelas que “reclamam o tempo inteiro de tudo”, “falam muito”, “não fazem a comida”, “deixam as crianças largadas” etc. Mas, além de provocativas, as mulheres podiam ser vistas como “passivas”, como aquelas que aceitam essas situações. Nos dois casos, elas são representadas como cúmplices. Aceitariam as violências quando, a despeito da agressão, escolhem permanecer casadas com
80 RIFIOTIS, Theophilos. As delegacias especiais de proteção à mulher no Brasil e a judicialização dos conflitos conjugais. In: Anuário 2003. Direito e globalização. Rio de Janeiro: Lúmen Júris/UNESCO, MOST, 2003, p. 381. 81 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 98. 82 Ibidem, p. 99. 83 Ibidem.
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eles. Frases como “só fazem com a gente o que a gente permite” e “ninguém pode impedir o homem de bater, mas a mulher pode evitar apanhar”, ditas na DEAM, também ilustram como podem ser atribuídas responsabilidades às mulheres que vivem em contextos de violência. Ou seja, nas rotinas das delegacias, a construção social da mulher como vítima é, no mínimo, repleta de tensões.84
Sobre a questão destaca Osterne85 que se considera que o fenômeno da violência de gênero é transversal à sociedade, desconhece fronteiras de classe social e de raça/etnia, ocorre no mundo inteiro e atinge mulheres em todas as idades, graus de instrução, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. Acrescenta ainda que as camadas consideradas sub-privilegiadas, além de existirem em maior quantidade e não disporem de recursos econômicos e políticos para ocultar a violência doméstica, ficam bem mais representadas nos dados da violência denunciada. No entanto, alerta para o fato de que pensar que são os pobres ou os alcoolizados que cometem violência contra a mulher é relativamente falso, o fenômeno da violência contra a mulher no âmbito doméstico pode acontecer, portanto, com qualquer mulher, em qualquer categoria de casal e em qualquer classe social.86 É importante destacar que, dentro da perspectiva destes policiais das DEAMs analisadas, conforme destacam Moraes e Gomes, há uma visão multifacetada da condição de vítima, mas essas faces múltiplas são percebidas através de lentes que não selecionam apenas o relato do fato em si mesmo, mas também a própria maneira como as vítimas se conduzem, ou parecem se conduzir, em relação aos papéis de gênero desempenhados na família e nas relações conjugais.87 Sendo assim, pode-se dizer que a construção da violência contra a mulher dentro da esfera familiar como um crime é permeada por situações e formas de interação que terminam por manter valores fortemente associados à antiga e tradicional concepção de que, na divisão dos papéis a serem desempenhados pelos gêneros, cabe eminentemente à mulher se posicionar de forma favorável a condutas apaziguadoras no cotidiano do lar e no interior das dinâmicas familiares.88 Para Francisco Pereira Costa89, o discurso de haver a fêmea insultado o macho, leia-se, a iniciativa da provocação tenha sido originada de atos por elas praticados, leva ao entendimento e perpetua o deslocamento social dos papéis entre o homem e a mulher na sociedade patriarcal e machista, que atribui à mulher o lugar privado, o lugar das relações de afetividade, do sexo e cuidado das crianças, e por outro lado, ao homem o papel social, político e público, o lugar de outras relações de poder, onde se efetiva o domínio das conquistas do homem na sociedade. Desta maneira, não se questiona as relações privadas dos homens, aquelas havidas fora 84 Ibidem, p. 100. 85 OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. Fortaleza: Editora UECE, 2008, p. 66. 86 Ibidem. 87 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 99. 88 Ibidem. 89 COSTA, Francisco Pereira. A Lei Maria da Penha. Aplicação e eficácia no combate à violência de gênero. São Paulo: Editora UFAC, 2008, p. 19.
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do casamento, considerando que elas são segmentos do lugar das relações do poder público, sendo assim justificáveis. Ao contrário da mulher, a opção por relações deste tipo é romper com o lugar da privacidade, é expor ao público a intimidade do casal, é romper com o lugar que lhe é reservado historicamente, configurando-se uma ameaça à “honra” do marido. Portanto, a violência se justifica por ser a mulher uma propriedade, uma posse do marido ou ex-marido, do companheiro ou ex-companheiro, do namorado ou ex-namorado, também do controle através da norma, através do Direito. Formando-se, assim, um discurso para legitimar a violência contra a mulher.90 Tendo em vista o processo de crescente judicialização das relações privadas, especialmente dentro do âmbito dos conflitos intrafamiliares, conforme já explicitado anteriormente, podese dizer que a violência contra as mulheres nestas relações e que acontece dentro da esfera doméstica, tanto entrou definitivamente para a esfera pública, quanto se transformou em um fenômeno imerso em uma complexa teia de significados que confrontam culturas e práticas políticas diferenciadas.91 Além disso, é importante destacar que não obstante a evolução em matéria de reconhecimento institucional da violência dirigida em face da mulher, criminalizando estas condutas no Estado brasileiro, e que se logrou transferir o que antes nascia e morria dentro do âmbito privado e do silêncio dos lares, para uma dimensão onde o poder público pode intervir e agir para sua coibição. Entretanto, ainda há alguns desafios de cunho cultural e social que se mostram como empecilhos para a total efetividade destas iniciativas governamentais multisetoriais. Moraes e Gomes apontam que os vínculos amorosos entre vítima e agressor é o principal obstáculo a impedir que a mulher prossiga com a queixa de violência conjugal. Apesar disso, destacam também que ainda que este fator tenha elevada importância, ele não explica a razão pela qual, mesmo quando ocorre a ruptura do relacionamento afetivo após a formalização da denúncia de violência, as vítimas sigam manifestando sua recusa à prisão do perpetrador. Apontam como motivação que gera este panorama o interesse expressado pelas vítimas em manter a defesa da coesão familiar, especialmente quando existirem filhos resultantes da relação.92 Desta forma, após analisar o padrão de comportamentos apresentados pelas vítimas que prestavam denúncia nas DEAMs do estado do Rio de Janeiro, chegam à conclusão de que:
A principal justificativa para publicizar os conflitos e/ou violência na polícia mencionava a preocupação com o modelo de família que estaria sendo disseminado, reforçando entre os filhos e a reprodução do modelo de homem agressor e de mulher submissa. Mas também aquelas que se separaram, ou que anunciaram a ruptura do vínculo conjugal como um desdobramento que se seguiria ao registro do caso na delegacia, rejeitaram a possibilidade do “ex” ser preso. A ideia de “recuperar” o agressor acionando o recurso policial tem como objetivo, para a mulher, de romper com a situação violenta que a atinge, mas também é uma iniciativa para pacificar o circuito de relacionamento familiar no qual estavam incluídos os filhos ou mesmo outros parentes. [...] Muitas mulheres, mesmo quando se separam do parceiro agressor, ainda imputam às suas ações uma enorme responsabilidade com o bem-estar da família, mantendo-se no tradicional lugar do feminino. Pela lógica da
90 Ibidem. 91 MORAES, Aparecida Fonseca; GOMES, Carla de Castro. O caleidoscópio da violência conjugal: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 98. 92 Ibidem, p. 101.
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distribuição dos papéis tradicionais de gênero que orienta as ações de muitas mulheres, a publicização dos conflitos e violências conjugais requer o esforço de conjugar outros mecanismos (re) integradoras da ordem familiar. Suas condutas e motivações, porem, não reduzem a problemática à simples equação de que as mulheres se sentem responsáveis pela manutenção e reprodução da família. Tampouco significam que as suas expectativas vão de encontro àquelas apresentadas pelos policiais. Demonstram, antes de tudo, como as mulheres experimentam uma articulação particular entre a noção de um direito individual (posto na recusa de se submeter a uma ordem de conjugalidade violenta) e a preocupação com a família (posta no notável investimento para produzir a solidariedade familiar). Ao decidirem publicizar os conflitos e/ou acontecimentos violentos, as mulheres conjugam projetos individuais com preocupações referidas à ordem familiar.93
O que as autoras defendem é a ideia de que as mulheres, quando envolvidas em situação de violência doméstica, tendem a priorizar o resguardo da estrutura familiar, solidarizando com a ordem dentro do âmbito doméstico, colocando a cima da garantia de seus direitos individuais e a defesa de sua própria dignidade, o interesse dos filhos e demais integrantes da dinâmica familiar, em um esforço contínuo de tornar aquele fato violento o menos público e notório possível, com o fim de preservar a paz familiar, ainda que isso represente a impunidade de seu agressor. O que representa nada mais do que uma consolidada e arraigada tradição existente no Brasil desde seus primórdios de que a paz familiar sempre depende da mulher, onde a supremacia da estrutura familiar ordenada impõe, muitas vezes, o sacrifício dos direitos individuais das mulheres. Sobre este tema sustenta Lia Zanotta Machado que: Os valores de longa duração da defesa do bem jurídico da harmonia familiar e da privacidade do âmbito doméstico estão presentes em toda a história do arcabouço jurídico ibero-americano e são guiados pelos princípios das moralidades e costumes tradicionais de um “modelo de virtude” exigido das mulheres. Estes valores incorrem em graves discriminações de gênero e violações dos direitos humanos das mulheres.94
Barbara Musumeci Soares95 ao analisar dados sobre a prática de atos violentos entre homens e mulheres, comenta que o que se percebe é que tanto as mulheres quanto os homens, em proporções e intensidades desiguais, sofrem e praticam violência conjugal. Sendo assim, defende a idéia de que estamos diante de um problema mais complexo do que o conceito “violência contra a mulher” nos leva a supor. Para ela, ainda que esses padrões de comportamentos se conectam a dois grandes tipos ideais de violência, os quais, por definição, raramente se encontram na sua forma pura, nas situações concretas: de um lado os conflitos que tendem a ser bilaterais e menos severos e, do outro, a dominação violenta, que tende a ser mais grave e unilateral.96 93 Ibidem: p. 102. 94 MACHADO, Lia Zanotta. Onde não há igualdade. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 167. 95 SOARES, Barbara Musumeci. Violência entre parceiros íntimos e criminalização da vida privada: onde nos leva esse caminho? In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 155. 96 Está claro que tanto mulher quanto homem podem sofrer com atos de violência, entretanto, deve-se dizer que no que diz respeito à violência doméstica, a mulher padece, de maneira inequívoca, em muito maior escala que o homem. Segundo pesquisa oficial feita pelo DIEESE (fonte: IBGE), em relação aos atos de violência física sofridos por homens e mulheres no Brasil no ano de 2009, mostra que estes atos violentos foram praticados por cônjuges ou excônjuges em uma proporção de 25,9% dos casos (em se tratando de mulheres vítimas) contra 2% (em se tratando de homens vítimas). E se a agressão é perpetrada por parente a proporção é de 11,3% (mulheres vítimas) e 5,6% (homens vítimas). Fonte: DIEESE. Anuário das mulheres brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011, p. 280.
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Por outra parte, Zanotta Machado97 acredita que in abstrato, qualquer indivíduo pode praticar ou ser submetido a distintas formas de agressão, as construções sociais das violências se fazem segundo construções sociais de identificações de gênero. E tal formulação socioantropológica é a que baseia a formulação e defesa da novidade da Lei Maria da Penha de violência contra as mulheres. Entretanto, comenta que possivelmente tal denominação “violência contra as mulheres” não teria se inscrito como presença quer na sensibilidade social, legal, jurídica ou propriamente socioantropológica. Não obstante, pode-se dizer que Musumeci busca compreender que a despeito dos contextos culturais que lhe dão sentido, a violência é primeiramente aprendida e reproduzida no seio da família, isto quer dizer que, a caça aos culpados e a ênfase na denúncia e na punição individual são estratégias que acabam se distanciando das origens do problema e se tornando prisioneiras da própria lógica da violência98. Comenta que: As medidas empregadas para contê-la produzem impactos não negligenciáveis sobre o conjunto da família – independentemente do fato de o casal permanecer junto ou de vir a separar-se. É fundamental, portanto, nos interrogarmos sobre o significado do fato de grande parte das vítimas de violência manifestar explicitamente o desejo de que seus companheiros não venham a ser encarcerados e sobre a forma como essa demanda está sendo escutada e considerada por profissionais, gestores e ativistas.99
10. CONCLUSÃO Considerando o exposto, pode-se afirmar que é possível perceber a tendência, tanto da literatura sociológica, quanto da jurídica, brasileira em mesclar os fundamentos existentes entre o fenômeno da violência de gênero e da violência doméstica. No entanto, é importante dizer que se deve entender a violência de gênero como sendo aquela perpetrada apenas pelo homem contra a mulher por sua condição de desigualdade material e subordinação, gerada a partir de uma cultura social baseada no machismo de raízes patriarcais, ocorrida tanto dentro do âmbito do lar quanto fora dele. A violência doméstica, por sua vez, deve ser entendida como aquele ato violento praticado dentro do âmbito do lar e da família, que pode ser exercida pelo homem em relação aos filhos, da mulher em relação ao homem, e ainda envolver demais figuras familiares, como o idoso, por exemplo. A diferenciação proposta é relevante na medida em que evidencia o problema fundamental da desigualdade experimentada pela mulher na sociedade atual. A ausência de condições culturais, sociais e econômicas para o exercício pleno das liberdades e direitos humanos das mulheres no mesmo patamar que o homem gera o desequilíbrio desencadeador da violência contra a mulher como fenômeno concreto, e que merece tratamento diferenciado pelos especialistas da matéria e também por parte do Poder Público e pela própria sociedade em geral. 97 MACHADO, Lia Zanotta. Onde não há igualdade. In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 160. 98 SOARES, Barbara Musumeci. Violência entre parceiros íntimos e criminalização da vida privada: onde nos leva esse caminho? In Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007, p. 155. 99 Ibidem.
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SOBRE OS ORGANIZADORES
Wladimir Cerveira de Alencar Cientista político e social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Direito e Sociologia pela Universidad de Salamanca. Pesquisador associado da Universidade Portucalense (Portugal) e membro do CEMUSA (Centro de Estudios de la Mujer) da Universidad de Salamanca. Professor da graduação e pós-graduação do Centro Universitário Uniabeu e da Universidade Cândido Mendes.
Ana Paula Correa de Sales Doutora em Direito, professora substituta de Direito Internacional Público na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professora de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes e Estácio de Sá. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Jurídico Portucalense – Universidade Portucalense (Portugal).
Leonam Baesso da Silva Liziero Doutorando e Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Advogado.
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SOBRE OS AUTORES
Felipe Castelo Branco Professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de teoria psicanalítica da Universidade Veiga de Alemeida (UVA). Doutor em Psicanálise pela UERJ e doutorando em Filosofia pela PUC-Rio. Membro do Corpo Freudiano, seção Rio de Janeiro. Larissa Clare Pochmann da Silva Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Universidade Candido Mendes (UCAM), e Professora Adjunta da Unifeso. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Advogada. Matheus Farinhas de Oliveira Mestrando em Direito Constitucional do Programa de Pós-Graduação em Direito – Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do LEICLA. Bolsista Pesquisador da CAPES. Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Renato Nunes Bittencourt Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor Adjunto da FACC-UFRJ. Ana Paula Correa de Sales Doutora em Direito, professora substituta de Direito Internacional Público na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professora de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes e Estácio de Sá. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Jurídico Portucalense – Universidade Portucalense (Portugal). Leonam Baesso da Silva Liziero Doutorando e Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Advogado. Flávia Góes Costa Ribeiro Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Membro do Grupo de Pesquisa “Acesso à Justiça e Democracia”, vinculado ao Diretório CAPES/CNPq. Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Loiane Prado Verbicaro Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de Salamanca. Mestre em Direitos Fundamentais e Relações Sociais pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará. Coordenadora Adjunta e Professora do Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Wladimir Cerveira de Alencar Cientista político e social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Direito e Sociologia pela Universidad de Salamanca. Pesquisador associado da Universidade Portucalense (Portugal) e membro do CEMUSA (Centro de Estudios de la Mujer) da Universidad de Salamanca. Professor da graduação e pós-graduação do Centro Universitário Uniabeu e da Universidade Cândido Mendes.
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