NOVA CULTURA #10

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ESPECIAL

Revista de Cultura e Teoria Politica

100 anos da obra de V. I. Lenin

O Imperialismo

Fase Superior do Capitalismo volume 1


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SUMÁRIO EDITORIAL O Centenário de “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo” e seu significado para compreensão das leis do sistema capitalista em sua etapa monopolista página 03 “A atualidade das teorias de Lenin sobre o imperialismo” página 10 “A Petrobras e o Imperialismo” página 42 “De Lenin a Nkrumah: Imperialismo, colonialismo e neocolonialismo” página 58 “Sobre o amálgama entre nacionalismo e internacionalismo como caminho para o anti-imperialismo através do pensamento juche” página 82

NOVA CULTURA - FEVEREIRO/2017 Revista teórica eletrônica, uma publicação da União Reconstrução Comunista (URC). Colaboradores: Ícaro Leal Alves, Alexandre Rosendo, Lucas Medina, Gabriel Duccini, Diego Grossi, Igor Gonçalves Diaz, Guilherme Nogueira, Rodrigo Ortega, Gabriel Martinez

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[...] Onde está a base econômica deste fenómeno histórico universal? Encontra-se precisamente no parasitismo e na decomposição do capitalismo, inerentes à sua fase histórica superior, quer dizer, ao Imperialismo. Como demonstramos neste livrinho, o capitalismo deu agora uma situação privilegiada a um punhado (menos da décima parte da população da Terra, ou, calculando de um modo muito “generoso” e muito acima, menos de um quinto) de países particularmente ricos e poderosos que, com o simples “corte de cupons”, saqueiam todo o mundo. A exportação de capitais dá rendimentos de oito a dez mil milhões de francos por ano, de acordo com os preços de antes da guerra e segundo as estatísticas burguesas de então. Naturalmente, agora são muito maiores. É evidente que tão gigantesco superlucro (visto ser obtido para além do lucro que os capitalistas extraem aos operários do seu “próprio” país) permite subornar os dirigentes operários e a camada superior da aristocracia operária. Os capitalistas dos países “avançados”, subornam-nos efetivamente, e fazem-no de mil e uma maneiras, directas e indirectas, abertas e ocultas. Essa camada de operários aburguesados ou de «aristocracia operária», inteiramente pequenos burgueses pelo seu género de vida, pelos seus vencimentos e por toda a sua concepção do mundo, constitui o principal apoio da II Internacional e, hoje em dia, o principal apoio social (não militar) da burguesia. Porque são verdadeiros agentes da burguesia no seio do movimento operário, lugar-tenentes operários da classe dos capitalistas (labor lieutenants of the capitalist class), verdadeiros veículos do reformismo e do chauvinismo. Na guerra civil entre o proletariado e a burguesia colocam-se inevitavelmente, em número considerável, ao lado da burguesia, ao lado dos “versalheses” contra os “communards”. Sem ter compreendido as raízes económicas desse fenómeno, sem ter conseguido ver a sua importância política e social, é impossível dar o menor passo para o cumprimento das tarefas práticas do movimento comunista e da revolução social que se avizinha. O imperialismo é a véspera da revolução social do proletariado. Isto foi confirmado à escala mundial desde 1917. LENIN 6 de julho de 1920


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No início de 2017, completou-se o aniversário centenário da publicação da obra de importância sem precedentes “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, escrita na primavera de 1916 pelo fundador da III Internacional Comunista, líder histórico da classe operária e dos povos oprimidos do mundo, Vladimir Ilitch Lênin. Do início de 2017 para cá, desde o lançamento deste trabalho significativo que educou dezenas de gerações de combatentes da Revolução em todo o mundo – da Califórnia a Xangai, de Niterói a Dien Bien Phu, de Petrogrado a Jakarta, de Bucareste a Luanda –, testemunhou-se um sem número de acontecimentos de enorme relevo, entre crises, revoltas, revoluções, instabilidades políticas, epidemias de fome e doenças, lutas de libertação nacional, ascensão de governos socialistas ou democrático-populares e lutas memoráveis contra tentativas de revisão dos princípios do Marxismo. Acontecimentos estes que, por sua vez, temperaram a classe operária e os povos do mundo no calor da luta de classes, na luta anti-imperialista, na luta antifeudal, na luta antifascista, na luta contra o capitalismo, demonstrando a cada nova luta, a cada nova crise, a completa exatidão da ciência do Marxismo e, particularmente, a infalibilidade de todas as teorias desenvolvidas pelo grande Lênin no trabalho ao qual nos referimos. Lênin escreveu O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo quando se encontrava exilado em Zurique, na Suíça, escapando à perseguição burguesa que sofrera na Rússia pela reacionária dinastia do Czar Nicolau II. Embora O Imperialismo figure entre as mais importantes obras de toda a história de luta da humanidade trabalhadora, é impressionante notar que a mesma foi escrita num contexto em que Lênin carecia de materiais estatísticos em mãos para fundamentar ainda mais as constatações feitas no livro, dependendo em grande medida de conhecimentos obtidos em estudos prévios. Antes de iniciar o trabalho, Lênin consultou exaustivamente economistas de grande importância da época, como John Atkin Hobson e Rudolf Hilfferding. Pior ainda, O Imperialismo teve de ser escrito – como o próprio autor coloca no primeiro prefácio do livro – sob a bota da censura do czarismo, o que fez com que Lênin tivesse de se limitar a dissertar sobre a essência econômica do imperialismo, sem entrar de forma suficientemente profunda em aspectos políticos do sistema imperialista, aspectos estes que, para os comunistas e revolucionários, são os que mais interessam para o prosseguimento e avanço da luta popular. Aproveitando-se de seu grande talento como conhecedor profundo das mais diferentes escolas da Economia Política, e particularmente da Economia Política de Marx e Engels, de cujo estudo se ocupava desde fins do século XIX[1], Lênin fez um balanço do desenvolvimento do capitalismo nos principais países capitalistas do mundo desde o lançamento de O Capital, de Marx (isto é, desde as décadas de 50 e 60 do século XIX), e emprestou de Hobson e outros economistas o termo “imperialismo” para caracterizar a etapa pela qual o capitalismo atravessa desde o início do século XX. Lênin identifica em O Imperialismo os principais traços particulares que se manifestam nesta etapa do desenvolvimento capitalista a nível mundial[2] e, a partir de tais observações, formula em outros trabalhos seus consistentes programas políticos para a organi[1] Muito embora, ao nosso ver, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo seja a principal e mais importante obra escrita por Lênin durante seus vários anos de luta revolucionária, está longe de ser o único trabalho de Lênin que estuda e ilustra as leis gerais do desenvolvimento do capitalismo. Durante as décadas de 80 e 90 do século XIX, Lênin escreveu trabalhos econômicos de enorme importância, motivados pela necessidade de construção de um consistente programa político Marxista para assentar as bases programáticas para a fundação de um partido operário combativo na Rússia. Lutando contra as concepções pequeno-burguesas dos populistas (narodniks) russos – que eram, por sua vez, adversários do Marxismo que consideravam o aparecimento e desenvolvimento da classe operária como uma “chaga histórica” –, Lênin escreveu obras dedicadas a desenvolver as teorias Marxistas sobre o desenvolvimento do capitalismo e em polemizar com a Economia Política pequeno-burguesa, como O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia – Formação do Mercado Interno para a Grande Indústria (1899) e Sobre o Problema dos Mercados (1896). Já no século XX, em 1915, Lênin também escreveu o importante documento Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América – Novos dados sobre as leis do desenvolvimento do capitalismo na agricultura. [2] Os principais traços do imperialismo enumerados por Lênin são os seguintes: 1) O capitalismo monopolista substitui o capitalismo da livre concorrência, de forma que os monopólios se tornam dominantes em toda a produção social. As formas de organização industrial-financeiras que decorrem do capitalismo monopolista, isto é, os cartéis e os trustes, convertem-se nas bases fundamentais de toda a vida econômica; 2) Na etapa imperialista, o capital bancário se une ao capital industrial, levando à formação da oligarquia financeira. Isto é, com o elevado grau de desenvolvimento do capitalismo, torna-se cada vez mais importante o papel dos bancos, de maneira que os bancos, ao invés de cumprirem o modesto papel de intermediários de pagamentos, servindo aos capitalistas industriais, passam ao contrário a colocar todo o conjunto da classe capitalista sob sua dominação através dos mais variados métodos. Sob o imperialismo, ao invés de os bancos lucrarem apenas através do fornecimento de empréstimos, estes passam a aplicar seus capitais acumulados também na indústria e na agricultura. A união do capital bancário com o capital industrial se manifesta tanto no aumento da participação dos bancos na produção industrial e agrícola capitalistas, como no aumento da necessidade de os capitalistas aplicarem seus enormes capitais ociosos nos bancos; 3) A exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, passa a assumir o papel fundamental na economia capitalista sob a etapa imperialista. Nos países imperialistas, numa etapa determinada do desenvolvimento capitalista, acumulou-se uma quantidade expressiva de excedentes de capitais, que não encontravam alocação lucrativa em qualquer ramo da economia doméstica destes países. Assim, tais capitais excedentes passaram a render fabulosos lucros exportando-os para o exterior, particularmente para os países atrasados, em forma de construção de empresas industriais ou agrícolas nos solos destes países, da compra a preços aviltados de empresas ou terras, através da concessão de empréstimos, dentre outras formas; 4) Na época do imperialismo, intensifica-se, ao mesmo tempo, a luta e a pugna entre os diferentes monopólios capitalistas não apenas pela venda de mercadorias (como ocorria na concorrência entre as diversas empresas capitalistas do período do capitalismo concorrencial), mas principalmente pela ocupação colonial de territórios visando a monopolização de fontes de matérias-primas, mão-de-obra barata e em busca do controle monopolista do investimento de capitais.

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zação e luta da classe operária e das massas trabalhadoras. Polemizando com os oportunistas de direita, que negavam a possibilidade de triunfo num país capitalista atrasado como a Rússia, Lênin formulou que – antes mesmo de escrever O Imperialismo, mas desde já defendendo as posições que viria a formular mais tarde neste trabalho –, na época do imperialismo, a revolução poderia vir a triunfar não nos países capitalistas mais desenvolvidos, que contivessem as forças produtivas mais desenvolvidas e o maior contingente numérico do proletariado, mas nos países que Lênin caracterizava como o elo fraco do sistema imperialista, que congregassem dentro de si as principais contradições do imperialismo, e que contivessem já, ao menos, um grau médio de desenvolvimento capitalista. A Rússia era precisamente o elo fraco do imperialismo, que congregava em seu imenso território não apenas as contradições típicas do moderno imperialismo, como a contradição entre a burguesia e o proletariado, entre o imperialismo russo e as nações indígenas oprimidas, mas também contradições típicas dos períodos medievais, como entre camponeses pobres e senhores de terras. Também, neste país, desde fins do século XIX se desenvolvia a grande indústria capitalista, trazendo consigo simultaneamente o aumento da combatividade de sua classe operária[3]. A crise econômica sem precedentes que se abateu sobre o país como manifestação escancarada das contradições do imperialismo durante a Primeira Guerra Mundial, somada às formas altamente organizadas de luta da classe operária russa, dirigida pelo grande Partido Bolchevique, o Partido de Lênin, foram fundamentais para a vitória das massas trabalhadoras na Revolução de Outubro de 1917, que inaugurou para os povos do mundo uma nova era de lutas de libertação. Lênin também formulou em outro trabalho seu, feito também em meio à primeira grande guerra imperialista mundial – Sobre a Palavra de Ordem nos Estados Unidos da Europa, de 1915 –, a tese segundo a qual, também na época do imperialismo, é completamente possível e necessária a vitória do socialismo num só país ou apenas num punhado de países por separado. Onde quer que a classe operária fosse vitoriosa na luta para derrubar sua própria burguesia, poderia e deveria desenvolver o socialismo em meio ao cerco de países capitalistas, por suas próprias forças, enquanto os países restantes permaneceriam “burgueses ou pré-burgueses”. Tal ensinamento foi essencial para a vitória da Revolução na Rússia e para o progresso na construção do socialismo. Lênin, ao estudar problemas econômicos ligados à entrada do capitalismo em sua etapa imperialista, constatou também corretamente que o imperialismo é a antecâmara da revolução socialista, da derrocada final deste capitalismo moribundo e parasitário, e a entrada da humanidade na era do comunismo, na era da nova sociedade sem exploradores nem explorados. A primeira grande guerra imperialista mundial, de fato, ao mesmo tempo em que escancarou a podridão e o parasitismo desta etapa do capitalismo, também preparou terreno para o surgimento do primeiro Estado de ditadura do proletariado do mundo, a Rússia soviética, inaugurando o processo de crise geral do sistema capitalista[4]. A Segunda Guerra Mundial, também uma grande guerra entre as potências imperialistas – com a particularidade de haver sido também uma guerra de agressão orientada contra a União Soviética –, marcou, por sua vez, a saída do sistema capitalista mundial de não apenas um único país, como acontecera com a Rússia em 1917, mas pela saída de um terço da população mundial do sistema capitalista. Após a segunda grande guerra imperialista e nos anos imediatos que se seguiram após seu fim, dezenas de países coloniais e dependentes do Leste Europeu e da Ásia[5] realizaram suas respectivas revoluções populares, iniciaram suas reformas democráticas internas para superar o atraso econômico herdado após anos de opressão imperialista, e seguiram no caminho do socialismo. Os próximos anos seriam também marcados pela intensificação das lutas de libertação nacio[3] A obra História do Partido Comunista (bolchevique) da União Soviética enfatiza que, apesar do enorme atraso econômico que se batia sobre a Rússia nas vésperas da Revolução de Fevereiro de 1917, já nos anos 1910 a Rússia havia atingido um nível médio de desenvolvimento do capitalismo. Ainda que de fato pesasse sobre a Rússia uma enorme defasagem industrial em comparação com países avançados como a França, Estados Unidos ou Alemanha, a indústria russa possuía como particularidade a enorme concentração de seu contingente da classe operária. No ano de 1908, quase 40% dos operários russos estavam empregados em grandes empresas (isto é, que empregavam mais de 100 operários), ao passo que nos Estados Unidos, na mesma época – não obstante o grau de desenvolvimento do capitalismo muito maior neste país que na Rússia –, o nível de concentração do proletariado em grandes empresas atingia apenas 32%. [4] Compreende-se o termo “crise geral do sistema capitalista” como uma crise que se manifesta não mais apenas como uma das várias crises cíclicas e correntes do sistema capitalista, mas como uma crise que testemunha a preparação do terreno para o fim do capitalismo, para sua superação pela revolução proletária e o começo da construção do comunismo. A saída da Rússia do sistema capitalista marcou o início da primeira crise geral do sistema capitalista, ao passo que o fim da Segunda Guerra Mundial, que marcou a formação do sistema socialista mundial, marcou o início da segunda grande crise geral do sistema capitalista. [5] Onze países passaram a integrar o campo internacional do socialismo após a vitória dos povos do mundo na Segunda Guerra Mundial: Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Albânia, Iugoslávia, leste da Alemanha, Tchecoslováquia, China, norte da Coreia e Vietnã.


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nalistas e anti-imperialistas nos países da África, do Oriente Médio, da América Latina e do Sul e Sudeste Asiáticos, com a entrada no ano de 1961 de um país latino-americano no sistema socialista mundial, pela primeira vez na história.[6] Há mais um sem número de acontecimentos políticos fundamentais durante os séculos XX e XXI que confirmam a completa exatidão e vigência das teorias de Lênin sobre o imperialismo. Toda a trajetória pela qual passou a humanidade cem anos após ser escrito O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, confirma para os comunistas, revolucionários e democratas em geral, não apenas a necessidade urgente de se estudar e desenvolver ainda mais os princípios das teorias de Lênin sobre o imperialismo, como de absorvermos todos os ensinamentos de tais teorias visando a reorganização do movimento comunista e anti-imperialista no Brasil e no mundo. Devemos comemorar o centenário desta obra de importância sem precedentes para a humanidade desenvolvendo defesas ainda mais contundentes dos princípios leninistas contra todos os seus adversários – os reacionários, revisionistas, reformistas, neoliberais e demais lacaios do imperialismo –, e acelerando as preparações para o avançar da Revolução proletária no Brasil e no mundo. Ataques dos reacionários, oportunistas e revisionistas contra O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo Muito embora os fatos confirmem radicalmente todas as previsões feitas por Lênin não apenas em O Imperialismo como em todas suas obras relacionadas ao estudo do imperialismo, as teorias de Lênin seguem sendo ainda constantemente deturpadas pelos revisionistas e oportunistas, isto quando não são, em muitos casos, negadas abertamente. Desde fins da década de 1980, marcada pelo recrudescimento da contrarrevolução nos países do outrora Bloco socialista e também da ofensiva do imperialismo contra os povos, ideólogos do imperialismo passaram a declarar o capitalismo como a etapa última e mais perfeita do desenvolvimento da humanidade, como o “Fim da História”, e atacaram a obra de Lênin como velharias que não mais teriam atualidade diante de um mundo dito “globalizado”, de “fronteiras integradas”, marcado pela “Era da Informação” e assim por diante. Os think-tank da reação passaram a ditar a política econômica neoliberal sobre os países do Terceiro Mundo, embelezando a dominação imperialista e taxando quaisquer formas de nacionalismo – por mais moderados que fossem – e políticas de independência e autodeterminação nacionais como devaneios, diante da “competitividade dos mercados”. A partir do início da década de 1970, até mesmo economistas do alto escalão do Banco Mundial se esforçaram para sustentar a tese absurda da existência de uma “Nova Divisão Internacional do Trabalho” no mundo, onde os países imperialistas tenderiam crescentemente a transferir suas plantas industriais para os países coloniais e semicoloniais, industrializando-os, fazendo declinar crescentemente na economia mundial as trocas desiguais ao estilo colonial, onde os países subdesenvolvidos tendem a exportar produtos primários (isto é, matérias-primas, recursos naturais e a produção agrícola) e os países desenvolvidos a exportar produtos manufaturados, industrializados, tornando assim supostamente obsoletas as teorias Leninistas segundo as quais o imperialismo tenderia exatamente a entravar o desenvolvimento do capitalismo nos países coloniais e dependentes e relegar a estes o mero papel de apêndices agrários dos países capitalistas desenvolvidos. Estas mentiras propagadas pelo imperialismo encontraram ressonância mesmo entre outrora ditos “socialistas” e até mesmo “comunistas”, que até então se colocavam como árduos defensores dos princípios do Leninismo. Os absurdos proferidos pelos reacionários, oportunistas e revisionistas, como sempre, não tardaram em se mostrar como verdadeiras mentiras. No lugar de um “mundo sem fronteiras”, “integrado”, testemunhou-se nos anos de 1982 e 1998 o início de crises econômicas mundiais que levaram ao aumento desmedido da pilhagem sobre os povos do Terceiro Mundo. Os países da Ásia, África e América Latina, já pobres, empobreceram-se ainda mais, e todo alarde sobre o “mundo globalizado” foi desnudado nada mais como a globalização da opressão imperialista, da escravidão assalariada e da fome sobre a imensa maior parte da humanidade trabalhadora. Chegamos ao século XXI, pois, com o seguinte quadro: de acordo com dados [6] Referimo-nos a Cuba.

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bastante conservadores, o mundo possui atualmente cerca de 1 bilhão de pessoas desnutridas, ou 14,2% da humanidade desnutrida; 2,7 bilhões de pessoas, ou mais de um terço da população mundial, vive com menos de dois dólares por dia; 40% da população mundial não possui acesso a uma latrina sequer; a cada três segundos, uma pessoa morre de fome – na sua maioria, crianças com menos de cinco anos[7];estima-se que, caso a situação da fome e da miséria no mundo continue de forma calamitosa como está, 70 milhões de crianças morrerão de desnutrição até 2030[8]; os países imperialistas, os mais desenvolvidos do mundo, controlam 99% das patentes ligadas ao desenvolvimento industrial e tecnológico, das quais as grandes empresas transnacionais controlam 90% destas, demonstrando que o direito fundamental de bilhões de seres humanos ao desenvolvimento econômico e ao progresso social é usurpado pelas necessidades do lucro de um punhado de gigantescas empresas transnacionais; mais de 2/3 do comércio exterior mundial é realizado apenas entre os países capitalistas desenvolvidos, com o Terceiro Mundo, embora possuindo mais de 80% da população mundial, respondendo por apenas 1/3 do comércio exterior mundial; 85% das exportações mundiais de capitais se destinam apenas aos países capitalistas desenvolvidos.[9] Nos períodos antigos, medievais, é de grande conhecimento dos historiadores e demais estudiosos a existência de crises de fome, epidemias, “pestes negras” etc. que martirizavam povos inteiros em diversos continentes. Porém, é razoável e completamente compreensível que a fome, epidemias e doenças fossem um problema enorme para a humanidade num contexto em que se predominava uma ignorância completa acerca de temas como higiene e saúde públicas, onde a medicina havia se desenvolvido apenas de forma medíocre, bem como numa situação onde a produção industrial e agrícola se realizava a um nível técnico tão miserável e atrasado que tornava impossível produzir em tal medida que fosse possível a satisfação plena das necessidades dos povos como um todo. O que não é razoável, contudo, é termos testemunhado um mundo que nos últimos 300 anos progrediu em termos de desenvolvimento tecnológico mais rapidamente que em milhões de anos de sua existência, sendo capaz atualmente de produzir numa capacidade tal para alimentar e dar vida digna para seus 7 bilhões de habitantes, tendo feitos avanços consideráveis na medicina, na indústria farmacêutica, na produtividade do trabalho como um todo, e ainda assim, mesmo com todos os avanços, milhões de pessoas ainda sigam morrendo de fome e doenças facilmente curáveis todos os anos, como se fossem moscas. É de igual desgosto constatar uma situação em que, apesar de adentrarmos a tão alardeada “Era da Informação e da Tecnologia”, da robótica e da cibernética automatizando processos industriais e de administração inteiros, a imensa maioria dos países do mundo, onde vive a imensa maioria da humanidade, siga ainda sem a menor capacidade sequer de produzir por suas próprias forças até mesmo os bens de consumo mais básicos, exigidos pelas mais elementares necessidades humanas – para não falar na produção da tecnologia de ponta, tão indispensável ao desenvolvimento nos tempos atuais –, e tenham o destino de suas populações, bilhões de seres humanos, atrelado às flutuações do mercado internacional, este por sua vez determinado pela bel vontade de meia dúzia de mega-especuladores multibilionários. Não é de hoje, contudo, que os oportunistas e revisionistas buscam deturpar e desacreditar, aberta ou veladamente, a teoria leninista do imperialismo. O outrora grande marxista Karl Kautsky, que às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial debandou para o campo do oportunismo e da conciliação com o inimigo, atacou Lênin e as teorias leninistas sobre o imperialismo, buscando adaptar a interpretação do imperialismo aos interesses da burguesia e esvaziando o necessário conteúdo político de compreensão do imperialismo enquanto etapa superior do capitalismo, dando a entender que o imperialismo seria especificamente uma mera política agressora dos Estados imperialistas, desligando o caráter agressor das potências imperialistas das características inerentes ao sistema capitalista. Como consequência prática desta linha política oportunista de Kautsky, se dissolveu a II Internacional enquanto instrumento do proletariado combativo. Por outro lado, às vésperas do fim da Segunda Guerra Mundial, Earl [7] Dados disponibilizados pela ONU – Organização das Nações Unidas. [8] Estimativas feitas pela Unicef. [9] Dados disponíveis em A Bolsa ou a Vida – A dívida externa contra os povos do Terceiro Mundo, de Eric Toussaint.


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Browder, outro notório revisionista e renegado do movimento comunista internacional, então secretário-geral do Communist Party USA (Partido Comunista dos EUA), buscou desacreditar também as teorias leninistas sobre o imperialismo apontando falsamente que o imperialismo norte-americano seria um “imperialismo de novo tipo” e não agressor, que os imperialistas norte-americanos estariam dispostos a marchar lado a lado com o socialismo em nome da paz e do progresso mundial, razão pela qual, segundo este falso entendimento, os comunistas deveriam se opor a qualquer confronto com as forças do imperialismo e apaziguar a luta de classes. O desdobramento prático desta linha política igualmente oportunista foi a dissolução do Partido Comunista dos EUA pela camarilha de Browder. Na França, o ataque às teorias de Lênin sobre o imperialismo por parte da direção revisionista do antigo Partido Comunista Francês, durante a década de 1950, não tiveram outra consequência que não o apoio aberto deste mesmo à guerra colonial empreendida pelo imperialismo francês contra a Argélia, com os parlamentares do partido revisionista aprovando de forma descarada medidas para darem mais poderes ao governo francês em sua guerra de agressão. É de se observar, assim, que o ataque aberto ou velado (por meio da deturpação) à teoria leninista do imperialismo não tem outra consequência senão a capitulação, degeneração política e passagem para o lado do inimigo. Nos dias de hoje, partidos de países estrangeiros como o Partido Comunista da Grécia (KKE) também difundem por meio de seus veículos de informação confusões acerca da teoria do imperialismo de Lênin, atacando-a por um viés oportunista de esquerda. Para desacreditá-la como um todo, o KKE tende a questionar um aspecto central da concepção leninista do imperialismo, que é a política colonial e de opressão da imensa maioria da humanidade, que habita os países coloniais e semicoloniais, por um punhado de países imperialistas. Outros partidos próximos ao KKE também vêm espalhando confusões sobre este tema.[10] O significado político de se celebrar o centenário de O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo Encontramo-nos, atualmente, no décimo volume da Revista Nova Cultura, sendo este o primeiro volume de nossa Revista a ser publicado de forma impressa. A União Reconstrução Comunista busca, com a presente publicação especial, dar sua contribuição na celebração do aniversário centenário desta transcendental obra e demarcar suas posições no seio do movimento popular brasileiro e mundial acerca de como compreender a essência política e econômica do imperialismo, bem como apoiarmo-nos nesta compreensão para levar a cabo a tarefa mais urgente do movimento popular brasileiro, que não é senão a reorganização do partido de vanguarda da classe operária, o Partido Comunista, e a conclusão da Revolução democrático-nacional, que possui como núcleo básico a aliança operário-camponesa dirigida pela classe operária. Esta edição especial da Revista Nova Cultura, que será publicada em dois volumes dado o vasto conteúdo do tema, é fruto do esforço coletivo dos militantes da União Reconstrução Comunista. Chamamos todos os leitores da Revista Nova Cultura e do site NOVACULTURA.info, bem como os amigos e simpatizantes de nossa organização para propagandear e difundir as ideias aqui expressas em seus respectivos locais de trabalho e estudo, entre as associações de bairros e moradores, nas associações de cultura, em todos os locais onde estejam as grandes massas trabalhadoras de operários e camponeses. Viva ao aniversário centenário de O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo! Reforcemos ainda mais nossos esforços por reconstruir o Partido Comunista do Brasil e causar golpes contundentes ao imperialismo, algoz do povo brasileiro e dos povos do mundo!

UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA [10] Desenvolvemos a crítica às posições do KKE e a sua teoria da “pirâmide imperialita” na edição #5 da Revista Novacultura.

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“A atualidade das teorias de Lenin sobre o imperialismo�

das teorias de o imperialismo por Alexandre Rosendo

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Há pouco mais de cem anos, o modo de produção capitalista ingressou numa etapa de seu desenvolvimento que Lênin chamaria de imperialismo. Embora este termo “imperialismo” seja em geral atribuído a Lênin após a consagração de sua principal obra, O Imperialismo Fase Superior do Capitalismo, não foi Lênin o primeiro a utilizá-lo para compreender as transformações pelas quais passou a economia capitalista mundial no transcurso do século XIX para o século XX e que seguem persistindo. Até mesmo inúmeros economistas burgueses ou pequeno-burgueses já o haviam utilizado para a compreensão de determinados fenômenos. Todavia, seria Lênin quem daria uma profunda e harmônica fundamentação científica ao termo. Segundo Lênin, há os seguintes traços fundamentais que distinguem a época imperialista do capitalismo em comparação com o velho capitalismo[1]: 1) o capitalismo monopolista substitui o capitalismo da livre concorrência, de forma que os monopólios se tornam dominantes em toda a produção social, em detrimentos das pequenas e médias empresas capitalistas. As formas de organização industrial-financeiras que decorrem do capitalismo monopolista, isto é, os cartéis e os trustes, convertem-se nas bases fundamentais de toda a vida econômica. O monopolismo, por sua vez, acelera e escancara o parasitismo e a decomposição do sistema capitalista; 2) sob a etapa imperialista do capitalismo, o capital bancário se une ao capital industrial, levando à formação do capital financeiro e da oligarquia financeira. Os bancos acabam por assumir um novo papel que, em lugar de modestos intermediários de pagamentos e fornecedores de empréstimos, que servem aos capitalistas industriais, acabam ao contrário por submeter toda a classe capitalista a seu domínio e dependência. O capital financeiro passa a cumprir um papel importantíssimo nas condições monopolistas do capitalismo; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, passa a assumir o papel fundamental na economia capitalista sob a etapa imperialista. Nos países imperialistas, numa etapa determinada do desenvolvimento capitalista, acumulou-se uma quantidade expressiva de excedentes de capitais, que não encontravam alocação lucrativa em qualquer ramo da economia doméstica destes países. Assim, tais capitais excedentes passaram a render fabulosos lucros exportando-os para o exterior, particularmente para os países atrasados, em forma de construção de empresas industriais ou agrícolas nos solos destes países, da compra a preços aviltados de empresas ou terras, através da concessão de empréstimos, dentre outras; 4) na época do imperialismo, intensifica-se, ao mesmo tempo, a luta e a pugna entre os diferentes monopólios capitalistas – unidos a seus governos burgueses – não apenas pela venda de mercadorias (como ocorria na concorrência entre as diversas empresas capitalistas do período do capitalismo concorrencial), mas principalmente pela ocupação colonial de territórios visando a monopolização de fontes de matérias-primas, mão-de-obra barata e busca do controle monopolista do investimento de capitais em países coloniais e semicoloniais. As disputas entre os capitalistas se aguça ainda mais na etapa do imperialismo. A vigência de tais características econômicas levam a desdobramentos e conclusões de caráter político que, por sua vez, possuem características realmente revolucionárias. Podemos enumerar, aqui, as principais conclusões políticas que Lênin tira a partir do estudo do imperialismo: 1) o imperialismo é a antecâmara da revolução socialista. O imperialismo prepara as bases materiais para a substituição do velho regime capitalista pelo socialismo, deixando para trás a velha Era das revoluções burguesas e inaugurando a Era das revoluções proletárias; 2) na etapa imperialista do capitalismo, torna-se antiquada a ideia segundo a qual o socialismo viria a triunfar primeiramente nos países capitalistas onde estivessem mais desenvolvidas as forças produtivas. Segundo Lênin, o imperialismo torna possível que as revoluções proletárias venham a triunfar não onde esteja mais amadurecida a produção capitalista, mas nos países que constituem o “elo fraco da cadeia imperialista mundial”, isto é, que congreguem internamente as principais contradições do sistema imperialista-capitalista, e possuam ao menos um grau médio de desenvolvimento capitalista. Além disso, ainda segundo Lênin, seria possível o triunfo da revolução proletária num ou poucos países capitalistas ou pré-capitalistas isoladamente, que poderiam construir o socialismo em meio a um cerco de países capitalistas ou pré-capitalistas. [1] Compreendemos por “velho capitalismo” o capitalismo em sua etapa de livre concorrência. Aqui, a principal característica do capitalismo é ainda a dispersão da produção industrial em pequenas e médias empresas.


“A atualidade das teorias de Lenin sobre o imperialismo”

Esta teoria inovadora, cuja justeza foi confirmada pela Revolução Russa em 1917, permitiria aos comunistas identificar o deslocamento do centro de gravidade da revolução proletária dos países capitalistas da Europa (assim como os Estados Unidos) para as colônias e semicolônias localizadas na Ásia, África e América Latina, bem como para os países dependentes do Leste Europeu. A vitória da União Soviética e dos povos do mundo contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, com a subsequente formação de um bloco mundial de países socialistas e democrático-populares na Ásia e no Leste Europeu, confirmaram novamente a veracidade de tal compreensão; 3) a era das revoluções proletárias coexiste com a era das guerras imperialistas, que assumem as formas de guerras de rapina coloniais pela anexação e ocupação de países, para convertê-los em colônias ou semicolônias, ou de guerras inter-imperialistas. Segundo Lênin, as guerras imperialistas impõem para os Partidos Comunistas e as massas trabalhadoras a tarefa histórica e a possibilidade de converter a guerra imperialista em guerra civil revolucionária. Tal compreensão se comprovou na Rússia e em países coloniais e semicoloniais como China, Coreia, Vietnã e muitos outros. Em nosso entendimento, a questão fundamental a ser compreendida e estudada acerca deste tema é a seguinte: qual a atualidade da teoria leninista do imperialismo? Seria ela plenamente atual, ou teria se tornado obsoleta diante de todo desenvolvimento histórico ocorrido nos últimos cem anos? Ou seria atual, porém apenas parcialmente? Considerando ainda a posteriori, quais conclusões políticas tiramos a partir do estudo da atualidade das teorias de Lênin sobre o imperialismo? Se foi verdade que Lênin tirou conclusões políticas importantíssimas a partir de seus estudos, que conclusões tiraremos de nossa parte para o prosseguimento da luta revolucionária em nosso país? Mesmo entre as organizações, grupos ou movimentos que se reivindicam socialistas ou comunistas, não há ainda um consenso de resposta para tais perguntas. A despeito da inexistência deste consenso, a resposta para tais perguntas é de enorme importância prática para o avanço do movimento comunista e para o trabalho desenvolvido pelas forças revolucionárias em nosso país pela reconstrução do Partido Comunista do Brasil. Portanto, diante de tal importância, é nosso dever enquanto comunistas possuirmos uma posição correta em torno da questão. Certamente, para a fundamentação de um ponto de vista correto, será necessário entrarmos em polêmicas com grupos e organizações não apenas de nosso país como do estrangeiro. Há um sem número de confusões e de concepções oportunistas em torno do problema do imperialismo que precisam ser devidamente desmascaradas e esclarecidas em seu caráter. Pode-se considerar, assim que a busca de respostas para as indagações feitas – realmente instigantes – não é feita com fins pedantes ou acadêmicos. Ao contrário, possui um enorme sentido prático e militante. A busca de tais respostas por parte da União Reconstrução Comunista será de grande serviço não apenas aos comunistas e revolucionários, como principalmente a todo o povo brasileiro, no fundamental às grandes massas trabalhadoras de operários e camponeses. O capitalismo monopolista O capitalismo, quando apareceu na humanidade a partir do século XV, primeiramente em alguns países europeus, através da construção das primeiras manufaturas, apresentava-se em forma de pequenas e médias empresas capitalistas, com a produção industrial encontrando-se dispersa entre estas empresas. Com o decorrer do desenvolvimento do capitalismo, na anarquia da concorrência um grande número de empresas se arruinou e um pequeno número de empresas passou a despontar no processo da concorrência mercantil capitalista. Este processo de livre concorrência entre as empresas testemunhou seu ápice entre os anos 1860 e 1870, a partir de quando se inicia a formação das primeiras grandes empresas capitalistas. Desde o momento em que se formam as imensas empresas capitalistas, estas passam a apresentar um comportamento bastante diferente daquele que apresentavam as empresas capitalistas na época da livre concorrência. Sob a livre concorrência, cada capitalista isolado procura arruinar os capitalistas restantes a partir dos investimentos no progresso técnico em sua própria empresa, procurando produzir quantidades crescentes de mercadorias. Porém, o

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aumento desmesurado na produção de mercadorias sob tais condições faz despencar as taxas de lucros do capitalista, extraindo-se cada vez menos lucros por unidade de mercadoria produzida. Diante também de uma forma de produção concorrencial anárquica, não se sabe se o progresso técnico em sua empresa individual não poderá ser por ora desbancado por outra empresa ainda mais competitiva, que o fará por sua vez se arruinar e abrir falência. Na época do capitalismo monopolista, quando a produção social passa a se concentrar cada vez mais num número extremamente reduzido de empresas, acaba não sendo interessante para estes grandes capitalistas concorrerem entre si, sob o risco de testemunharem a falência e, também, de verem seus lucros reduzidos. “Se não pode vencê-los, junte-se a eles”, já dizia um conhecido provérbio norte-americano. Então, ao invés de concorrerem entre si, estes grandes capitalistas se organizam agora no sentido de impedir o desenvolvimento da livre concorrência e em garantir o monopólio de suas respectivas empresas sobre diferentes ramos da produção, ou sobre ramos iguais. A concentração da produção se converte em monopólio. Aparecem, então, os cartéis, a principal forma de organização das empresas capitalistas na etapa monopolista do desenvolvimento do capitalismo, no sentido de manterem seus altos lucros. As empresas capitalistas que se organizam nos cartéis dividem entre si determinadas fatias de mercado – isto é, determinadas parcelas do mercado doméstico ou mundial em que cada empresa organizada explorará, sozinha –, estabelecem determinados limites acerca da quantidade de mercadorias que poderão ser produzidas, fixando assim os preços das mercadorias que computam nestes os elevados lucros monopolistas, e fazendo todo tipo de artimanhas para manter seus lucros elevados. Denomina-se preço de monopólio (ou preço monopolista) o preço de determinada mercadoria em que está embutido não apenas o investimento feito pela empresa capitalista em meios de produção e mão de obra para produzi-la, mas também a elevada mais-valia extraída pela empresa capitalista em virtude da exploração de determinada fatia do mercado consumidor sob condições monopolistas – quer dizer, sem a presença da concorrência de outras empresas. A este elevado lucro obtido devido à exploração dos mercados de forma monopolista, denominamos lucro monopolista. Vê-se aqui outra das características marcantes do capitalismo monopolista, que o distingue do capitalismo concorrencial: ao contrário do período concorrencial do capitalismo, onde os capitalistas só conseguiam manter o superlucro durante um limite de tempo extremamente reduzido, os capitalistas monopolistas, ao impedirem a livre concorrência, conseguem garantir o superlucro durante um longo período de tempo, e o conseguem através da venda de suas mercadorias por preços extremamente caros, pilhando os consumidores finais – que são, fundamentalmente, as massas trabalhadoras – e causando aumentos substanciais no custo de vida para a classe operária e os trabalhadores. Nos países do Terceiro Mundo, da Ásia, África, América Latina[2], por exemplo, por conta do atraso econômico predominante e de as burguesias dos países destes continentes não se encontrarem sob nenhuma forma em condições de produzir num nível tal como os monopolistas dos países capitalistas desenvolvidos, estes conseguem vender suas mercadorias a preços muitas vezes três ou quatro vezes superiores aos que conseguem vender em seus mercados domésticos, fazendo com que determinados bens de consumo que, nestes países capitalistas desenvolvidos, se configuram como bens de consumo de massas, sejam nos países semicoloniais bens de consumo de luxo, acessíveis tão somente a uma parcela extremamente reduzida da população, como os consumidores da burguesia e dos setores mais abastados das camadas médias. Nos países do Terceiro Mundo, por exemplo, os grandes monopólios conseguem vender a caríssimos preços de monopólio não apenas aquelas mercadorias que estão dentro do padrão geral de consumo nos países capitalistas desenvolvidos, como também aquelas mercadorias ruins, obsoletas, que são em geral rejeitadas pelos consumidores dos países capitalistas desenvolvidos, mas que nos países atrasados não apenas conseguem ser vendidas, como também o são por preços muito maiores do que o seriam nos países de origem das empresas que as produzem. [2] Utilizaremos aqui, ao longo do artigo, os termos “países do Terceiro Mundo”, “países atrasados” ou “países periféricos” como equivalentes a “países coloniais” ou “países semicoloniais”.


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Uma das outras particularidades que engendram as condições monopolistas do capitalismo, em comparação com o capitalismo concorrencial, é a tendência que este possui de estancar o progresso técnico. Enquanto que, sob o capitalismo concorrencial, os enormes investimentos no progresso técnico são uma questão crucial que determina a prosperidade ou falência de cada empresa capitalista, as novas condições monopolistas, sob as quais operam os grandes capitalistas – onde estes conseguem alçar lucros extremamente elevados fazendo proporcionalmente menores investimentos em meios de produção e força de trabalho –, passam a manifestar um caráter particularmente parasitário desta etapa do capitalismo: partes crescentes da mais-valia extraída da exploração da classe operária pelos grandes monopólios capitalistas – que, a partir da entrada do mundo no período do capitalismo monopolista, exploram operários do mundo inteiro, e não apenas de seu próprio país – passa a ser orientada não para o reinvestimento na produção para dar prosseguimento à reprodução ampliada capitalista e produzir mais e melhor, ampliando o progresso técnico, mas para o consumo pessoal parasitário, de luxo. Diferentemente do período concorrencial do capitalismo, onde a imensa maior parte mais-valia extraída da exploração dos trabalhadores era reinvestida pelos capitalistas na reprodução ampliada, agora, sob o monopolismo, ela é em grande parte orientada não para produzir mais mercadorias e progresso técnico, mas para produzir milionários, bilionários, multibilionários capitalistas que dispõem de verdadeiras fortunas, superior em muitas vezes à produção de países inteiros. Compreendemos, assim, que a parcela da mais-valia no preço da mercadoria produzida sob condições do capitalismo monopolista se mantém, via de regra, alta. As elevadas massas de mais-valia que extraem as empresas capitalistas monopolizadas passam a ser consumidas grandemente de forma improdutiva (no consumo de luxo dos capitalistas). Estas passam, também, a ser orientadas para o investimento em outros campos. O capitalismo monopolista cria condições reais para o investimento de parcelas da mais-valia em fins políticos, como, por exemplo, em instituições de caridade, filantropia, em “organizações não-governamentais” supostamente voltadas para o combate à pobreza, tudo isto com o fim de embelezar, diante da opinião pública, o caráter horrendo e monstruoso de monopólios capitalistas, responsáveis por empobrecer, massacrar e subjugar povos inteiros através dos mais variados métodos, atribuindo a estes saqueadores o rótulo de “empresas com responsabilidade social”, dentre outras sandices. É também notório, por parte dos monopólios capitalistas, o emprego de fundos seus – isto é, da mais-valia extraída – no financiamento de “revoluções coloridas”, de processos políticos orientados contra governos, políticos ou regimes que não se curvem diante de seus interesses, método este que foi largamente empregado em países como Venezuela, Brasil, Ucrânia, Romênia, Polônia, Paraguai, China, e muitos outros em períodos recentes. Durante o século XX, grandes empresas monopolistas foram as principais responsáveis por financiar a indústria de propaganda anticomunista contra a União Soviética e outros países socialistas. Contraditoriamente, ainda que as empresas capitalistas monopolistas – pelos motivos descritos – manifestem grande desinteresse no emprego do progresso técnico, é exatamente a etapa monopolista do capitalismo que cria a possibilidade de que estas mesmas grandes empresas capitalistas empreguem largas parcelas da mais-valia no desenvolvimento da ciência e tecnologia, grandes laboratórios, pesquisas e inovações tecnológicas. O investimento por parte dos monopólios em inovações técnicas permite a estes açambarcar contingentes inteiros de mão de obra qualificada, tirando dos cientistas, engenheiros, geólogos, etc., toda a autonomia que estes possuíam no período concorrencial do capitalismo, ou mesmo nos períodos pré-capitalistas, para decidirem por si mesmos sobre os caminhos que tomariam suas invenções, o que iriam inventar e qual papel estas viriam a cumprir. Sob o monopolismo, porém, estes intelectuais são reduzidos ao mero papel de assalariados dos carteis, não tendo quaisquer possibilidades de decidirem sobre quais rumos seus estudos tomarão. Ainda que o investimento dos monopólios em ciência e tecnologia resulte em formidáveis progressos, acaba por existir um abismo imenso entre a descoberta de inovações técnicas e sua devida aplicação na produção social. Os monopólios se esforçam ao máximo por esconder inovações tecnológicas, criar segredos industriais e atrasar o uso destes. E, ainda quando chega o momento em que os monopólios permitem o emprego de inovações

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técnicas, colocam todas estas sob a proteção de patentes, decidindo arbitrariamente sobre quais empresas ou países poderão utilizar estas inovações técnicas, quais não poderão sob hipótese alguma, e se colocando no direito de cobrar tributos – os chamados royalties – extremamente caros pelo uso destas inovações patenteadas. A produção de inovações técnicas patenteadas, sob o capitalismo monopolista, não possui outro fim que não o aumento dos lucros dos monopólios, agindo portanto não em benefício das massas trabalhadoras, mas dos capitalistas. O capitalismo em sua etapa monopolista, assim, ao mesmo tempo em que manifesta as forças produtivas capitalistas em seu grau mais elevado de desenvolvimento, escancara também o caráter putrefato, parasitário e regressivo deste. Sob o capitalismo monopolista, intensificam-se as crises econômicas inerentes a este sistema e passam-se a gerar as condições objetivas para o triunfo da revolução proletária e a consequente construção da nova sociedade socialista. Em tempos mais recentes do desenvolvimento do capitalismo a nível mundial, as teorias formuladas por Lênin acerca da concentração da produção e do monopólio mostram-se ainda mais atuais. No primeiro capítulo de seu livro O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, chamado A Concentração da Produção e os Monopólios, Lênin dá alguns dados referentes à concentração da produção no início do século XX, nos principais países capitalistas do mundo, demonstrando sobre como a concentração da produção manifesta tendência para algumas poucas empresas repartirem o mercado entre si. Na Alemanha, país capitalista com o mais elevado desenvolvimento industrial da época, se acentuava níveis elevadíssimos de concentração da produção em algumas poucas empresas: no ano de 1907, apenas 30.588 das empresas capitalistas alemãs, entre 3,2 milhões de empresas eram grandes empresas, isto é, empregavam mais de 50 operários. Porém, neste número reduzidíssimo de grandes empresas, estavam empregados 37% de todos os operários alemães, consumia-se 75% de toda a potência de cavalos-vapor, e 77,2% de toda a energia elétrica do país. Nos Estados Unidos, em 1904, menos de 1% das empresas capitalistas norte-americanas, quer dizer, 1.900 empresas num total de 216 mil empresas, empregavam 25,6% do operariado norte-americano e respondiam por 38% da produção industrial. Outro censo exposto por Lênin mostraria que, nos Estados Unidos, cinco anos depois, o nível de concentração da produção aumentaria ainda mais, com pouco mais de 3 mil empresas capitalistas entre 268 mil existentes, empregando mais de 30% dos operários norte-americanos e respondendo por 43,8% da produção industrial, isto é, quase metade. Quase cem anos depois, buscando dados referentes à concentração da produção sob o capitalismo, chegamos a um nível de concentração da produção que provavelmente nem Lênin ou outros grandes revolucionários teriam sequer chegado a imaginar. Quadro da concentração da produção a nível mundial nos anos 80 e 90 [3]

[3] Disponível na página 64 da 1ª edição do livro A Bolsa ou a Vida, de Eric Toussaint, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo.


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Cem anos atrás, o capitalismo monopolista havia manifestado um grau de concentração da produção onde, nos mais desenvolvidos países capitalistas, algumas milhares de empresas concentravam parte expressiva da produção industrial. Deparamo-nos, hoje, com um quadro onde a nível mundial um punhado de imensos conglomerados que se contam nos dedos controlam praticamente tudo. O Marxismo-Leninismo, alardeado pelos inimigos do socialismo como “ultrapassado”, parece se mostrar mais atual que nunca. Lênin é bastante enfático ao se referir, em seu O Imperialismo, à divisão do mundo que as grandes potências imperialistas e seus monopólios capitalistas promovem entre si. Com o imperialismo, o mundo passa a se contrapor entre um punhado de nações “civilizadas” riquíssimas, e o mundo inteiro submetido aos ditames destas. Quase cem anos após teorizar sobre isto, os principais países imperialistas do mundo desenvolveram ainda mais neste decorrer conglomerados onipotentes e onipresentes a ponto de, sozinhos, serem mais ricos que países inteiros. Os países da Ásia, África e América Latina, que muito embora concentrem mais de 80% da população mundial, são mais pobres que um punhado de transnacionais que possuem matrizes nos Estados Unidos, Japão e em países da Europa Ocidental. Vejamos o quadro a seguir, que compara o volume de negócios dos principais conglomerados capitalistas do mundo com o PIB de vários, inclusive alguns grandes países com centenas de milhões ou até mesmo bilhões de pessoas, em números referentes ao ano de 1998. Volume de negócios das maiores transnacionais capitalistas do mundo em comparação com o PIB de determinados países do mundo, em bilhões de dólares, e população em milhões (1998)[4]

[4] Disponível na página 56 da 1ª edição do livro A Bolsa ou a Vida, de Eric Toussaint, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo.

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Estudando esta tabela de dados e interpretando-na, chegamos a algumas conclusões deploráveis mas que também, infelizmente, confirmam este ponto das teorias de Lênin sobre o imperialismo acerca da concentração da produção e do domínio de um punhado de monopólios capitalistas que são tudo, e que reduzem países inteiros a praticamente nada, aprofundando a desigualdade de desenvolvimento existente no mundo capitalista. Impressionantemente, de acordo com estes dados que datam do ano de 1998, as sete maiores transnacionais capitalistas do mundo – General Motors, Daimler Chrysler, Ford, Wal Mart, Mitsui, Mitsubishi, Itochu Corporation – possuíam um volume de negócios equivalente a 965,3 bilhões de dólares, superior ao PIB da... China. Esta que, em 1998, possuía uma imensa população de 1,2 bilhão de pessoas, a maior do mundo e que permanece como tal, e um PIB de 959 bilhões de dólares. Não obstante o imenso desenvolvimento econômico que a China tenha tido desde a vitória completa da Revolução em 1949 e particularmente desde o início do programa de “Reforma e Abertura” em 1978, sua produção interna permanecia, ainda, inferior a estas sete megacorporações. A semi-continental Índia, um dos grandes berços da civilização humana, que em 1998 já atingia uma população de aproximadamente 1 bilhão de pessoas, é reduzida ao nível de ter seu PIB de 430 bilhões de dólares superado pelo volume de negócios de somente três empresas, General Motors, Daimler Chrysler e Ford, que neste mesmo ano já atingia a cifra de 460 bilhões de dólares! Nosso país também não está fora desta deplorável tabela da desigualdade, como um dos países reduzidos a nada diante do poderio das onipotentes transnacionais capitalistas. Somando-se o volume de negócios das seis maiores transnacionais capitalistas do mundo, citadas na tabela, General Motors, Daimler Chrysler, Ford, Wal Mart, Mitsui e Mitsubishi, chega-se à soma de 848,5 bilhões de dólares, que supera em quase 100 bilhões de dólares o PIB do Brasil de 778,2 bilhões de dólares, em valores da época. Em outros países ainda mais fracos pertencentes ao conjunto das colônias e semicolônias, salta aos olhos o abismo existente. O volume de negócios de uma única empresa, General Motors, supera em quase dez vezes o PIB do pobre Equador, com seus doze milhões de habitantes. A Nigéria, com seus centenas de milhões de habitantes, tem seu PIB superado em quase quatro vezes pelo volume de negócios da empresa General Motors. Cabe destacar que, no transcurso de 1998 até o presente ano de 2017, a eclosão de novas crises econômicas e guerras imperialistas fez com que muitas das megacorporações capitalistas citadas na tabela se fortalecessem mais, passassem por processos de fundação ou aumentassem seu já imenso capital através da aquisição de outras empresas monopolistas de países enfraquecidos. A concorrência sob as condições do capitalismo monopolista e as concepções errôneas de Kautsky sobre o “ultra-imperialismo” Às vésperas e durante a Primeira Guerra Mundial imperialista, o teórico oportunista Karl Kautsky – que anos antes houvera cumprido um importantíssimo papel na difusão do Marxismo em diversos países europeus e na tradução de obras de Marx e Engels para outros idiomas, mas que a partir da década de 1910 se degenerou num oportunista de direita apoiando o slogan de “defesa da pátria” levado a cabo pelas potências imperialistas em guerra na Europa –, junto a outros teóricos pequeno-burgueses, manifestou alardes contra as concepções de Lênin sobre o imperialismo, julgando-as dogmáticas e que não seriam mais aplicáveis às novas condições da economia capitalista engendradas pelo monopolismo. Kautsky foi o autor da teoria conhecida como “ultra-imperialismo”. Segundo esta teoria, as novas condições de concentração da produção que estimula os capitalistas não a competirem entre si, mas a chegarem a acordos de divisão dos mercados, estabelecerem cotas de produção e fixarem os preços das mercadorias em níveis elevados – que nada mais é que o monopólio –, faria com que a economia capitalista pudesse ser enfim planificada e racionalizada, que o caráter anárquico da produção pertenceria a tempos pretéritos do capitalismo e que as guerras imperialistas entre as diferentes potências teria chegado ao fim, dado que o mundo e seus mercados já haviam sido definitivamente divididos entre as diferentes


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potências e seus monopólios, não havendo razão então para as potências imperialistas guerrearem entre si para disputar em “território alheio”. Em O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Lênin polemiza e atesta um golpe definitivo contra as concepções oportunistas do kautskismo, demonstrando de forma irrefutável que, muito longe de “racionalizar” a produção, o imperialismo, ao contrário, acentua o parasitismo e a decomposição do capitalismo, e que a concorrência, longe de deixar de existir sob o imperialismo, ganha características ainda mais agressivas e intensas, passando a se manifestar não apenas pela disputa por venda de mercadorias, como também, cada vez mais, pela guerra e a rapina pela redivisão de um mundo já dividido entre as diferentes potências. É de se constatar que os capitalistas, ainda que sob as condições de monopólio, jamais se satisfazem ao controlar fatias limitadas do mercado doméstico ou mundial, por maiores que estas sejam. Cada capitalista, considerado individualmente, busca o impossível – controlar, sozinho, todo o mercado, que é a razão pela qual as guerras não cessam e se intensificam sob o imperialismo. A base para isto está nas características inerentes ao capitalismo, como a propriedade privada sobre os meios de produção, a mais-valia e a concorrência. É certo, porém, que as formas como se desenvolvem a concorrência entre os diferentes capitalistas mudam substancialmente na etapa imperialista do capitalismo. Como se desenvolve, pois, a concorrência sob as condições do capitalismo monopolista? Um determinado grupo de capitalistas, para monopolizar um determinado ramo da produção (ou mesmo diferentes ramos), forma antes de tudo um cartel. Não sendo mais favorável estas empresas capitalistas concorram entre si, ao estilo da livre concorrência, elas repartem fatias de mercado que explorarão sozinhas, sem a presença de outros concorrentes. Porém, a divisão destas fatias de mercado entre as empresas que participam do cartel nunca é feita de forma homogênea. Algumas empresas cartelizadas sempre acabam galgando fatias de mercado mais extensas que outras que também participam do cartel, acabando por alçarem, portanto, maiores lucros que as empresas que possuem menores fatias de mercado. Cada empresa capitalista isolada aspira controlar maiores fatias de mercado e, se possível, todo o mercado. Assim, é rampante, sob o capitalismo monopolista, a concorrência entre empresas monopolistas cartelizadas pelo controle de maiores fatias de mercado. A concorrência entre as empresas cartelizadas por maiores fatias de mercado pode se manifestar, também, de outras maneiras. No seio de grandes empresas capitalistas que, por exemplo, operam sob forma de empresas de capital aberto, as sociedades anônimas, há a concorrência entre os capitalistas acionistas no seio da empresa pelo controle do lote de ações, isto é, pela quantidade de ações que dá a estes capitalistas a possibilidade de assumirem cargos de direção na sociedade por ações, de terem direito a votos em assembleias e de efetivamente decidirem sobre os rumos da mesma. A concorrência entre os capitalistas monopolistas por maiores fatias de mercado possui como desdobramento, também, a disputa pelo monopólio colonial de países do Terceiro Mundo. Aqui, os mais diferentes cartéis buscam garantir para si a exclusividade nos investimentos de capital e na conquista de fontes de matérias-primas e produtos agrícolas deste ou daquele país. Nos países coloniais e semicoloniais, por regra, os capitais são escassos (portanto, a possibilidade de encontrar concorrentes internos para a produção dos monopólios é remota), os preços das terras são baratos e a força de trabalho também barata. Assim, a possibilidade de se conseguirem elevados lucros monopolistas através de investimentos muito pequenos é extremamente alta. À medida em que começam a brotar a cada dia novas pequenas e médias empresas capitalistas, prejudicando a possibilidade das grandes empresas capitalistas de manterem as condições monopolistas, mais se aguçam a necessidade de estas buscarem nos países do Terceiro Mundo novas fontes de matérias-primas, para que possam efetivamente controlá-las e negar seu fornecimento a empresas não-monopolistas. A concorrência entre os capitalistas monopolistas pelo controle dos países coloniais e semicoloniais se manifesta como uma das mais encarniçadas formas de disputa entre os monopólios pela manutenção de lucros monopolistas. Nestas disputas, deflagram-se inumeráveis guerras que martirizam milhões de pessoas, crises

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econômicas se intensificam, aumenta o flagelo do desemprego e as chagas das militarização. Se sob o capitalismo concorrencial bastava a introdução de um ou outro maquinário moderno para a ruína do concorrente, sob o capitalismo imperialista a destruição do concorrente que agora assume a face de um monopolista poderosíssimo, onipotente e onipresente, só se pode dar à base das guerras e da militarização extrema. Fica claro portanto que a concorrência segue existindo sob o capitalismo monopolista, ainda que sob novas condições. Métodos empregados pelos capitalistas monopolistas para a manutenção das condições de monopólio Em seus estudos sobre a questão, Lênin já constatava corretamente que muito embora sob o imperialismo os monopólios assumam posições dominantes sobre toda a produção social capitalista, o monopolismo “não pode reconstruir o capitalismo de cima para baixo”. Isto é, não pode suprimir arbitrariamente a anarquia na produção, as crises, a concorrência, etc. Mesmo na época dos monopólios, segue existindo até mesmo nos países onde a produção capitalista se encontra mais desenvolvida, um grande número de pequenas e médias empresas industriais, que seguem competindo entre si ao estilo da livre concorrência, porém já não da forma pura como se fazia no período onde não havia monopólios. Lênin já declarava também em sua principal obra sobre o imperialismo que “os monopólios não encerram completamente a livre concorrência, antes coexistem com essa e acima dela”, quer dizer, ainda que no período do imperialismo a tendência manifestada seja a de monopólio de algumas poucas imensas empresas capitalistas, isso não significa que não possam haver empresas capitalistas não-monopolistas que não possam prejudicar a situação de monopólio destas grandes empresas capitalistas dominantes, nem que as empresas que já monopolizam um determinado setor da produção não possam ser derrubadas por outras empresas capitalistas. Por esta razão, os monopolistas utilizam com avidez uma série de métodos – constantemente aperfeiçoados – para a manutenção das condições de monopólio contra “invasões” de ditos outsiders: - Subornos: Entre as formas de “investimentos políticos” da mais-valia alçada pelos capitalistas monopolistas (como falamos no tópico anterior), está a criação dos mais variados tipos de “fundos de suborno”, orientados a subornar altos funcionários do Estado burguês, nos mais diversos países, no sentido de estes se utilizarem de seus cargos públicos ou das posições que possuam no sentido de se colocar as finanças e os negócios do Estado burguês em ressonância com os interesses dos grandes monopólios capitalistas. Estes costumam subornar políticos com milhões ou mesmo de dezenas de milhões de dólares para que, por exemplo, deem exclusividade às empresas monopolizadas nas encomendas feitas pelo Estado, para que se reduzam impostos ou tributos cobrados nos ramos monopolizados da economia, para que o Estado faça empréstimos preferencial ou exclusivamente de bancos que são membros dos cartéis, etc. Nos países semicoloniais e coloniais, os métodos de suborno são utilizados de forma generalizada pelos grandes monopólios internacionais para dominar os povos dessas nações oprimidas. Subornam políticos e altos funcionários para que estes facilitem a entrega de recursos naturais para a exploração de monopólios capitalistas dos países imperialistas, para que aprovem medidas que atentem contra o desenvolvimento da indústria nacional, que facilite a compra de terras por empresas capitalistas monopolistas, para a assinatura de tratados comerciais desiguais, e assim por diante. - Dumping e formação de “fundos de combate”: Um dos métodos de luta já utilizados pelos monopólios contra os “outsiders” desde o início da entrada do capitalismo em sua etapa imperialista – com sua eficiência já comprovada –, e que segue sendo utilizado com uma frequência impressionante em nossos dias, é o dumping. Os capitalistas monopolistas se utilizam deste método não apenas nos mercados de seus países de origem, como também no mercado mundial. Não raramente, semelhante método é responsável por destruir a quase totalidade da indústria de diferentes países. O dumping consiste na venda de mercadorias – por parte dos


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capitalistas monopolistas – por preços que se situam abaixo do custo de produção médio em relação às condições de produção médias existentes, por um período mais ou menos longo de tempo. Com tal método, termina-se por arruinar os capitalistas não-monopolistas, conquistando o mercado consumidor através de preços extremamente baixos. Retomado o controle do mercado pelos capitalistas monopolistas, os preços voltam à exponencial ascensão, que aparece como regra num mercado monopolizado por poucas grandes empresas que o dividem entre si. Todavia, é normal que os monopólios amarguem frequentes prejuízos – não obstante possuírem, por via de regra, o domínio sobre um nível tecnológico que seus concorrentes não possuem – pela venda de suas mercadorias por preços abaixo do custo de produção médio de outros mercados. Por conta disso, é frequente que os monopólios utilizem partes da mais-valia alçada sob condições monopolistas – ou como também ocorre, que aumentem os preços de suas mercadorias – para a formação de “fundos de combate”, destinados a cobrir os prejuízos decorrentes de períodos mais ou menos longos de vendas de mercadorias a preços muito baixos. A formação dos “fundos de combate” está quase sempre ligada não à concorrência que enfrentam hoje os monopólios capitalistas, mas a possíveis concorrentes que possam aparecer no futuro e prejudicar a manutenção de lucros de monopólio. - Controle de patentes e privação do domínio tecnológico: Falamos anteriormente sobre como o controle de patentes pelos grandes capitalistas serve ao monopolismo. Ao patentearem alguma inovação tecnológica produzida em grandes laboratórios e centros de pesquisas seus, estes grandes capitalistas obtêm o “direito de propriedade intelectual” sobre a inovação tecnológica, na qual apenas os monopolistas possuem o direito sobre a produção e comercialização da tecnologia, bem como de decidir quem poderá produzir ou comercializar (mediante o pagamento de royalties aos monopolistas donos da patente), e quem não poderá produzir ou comercializar a tecnologia monopolizada pela patente. Monopolizando as inovações tecnológicas, os monopólios logram em impedir de forma eficiente o aparecimento de possíveis novos concorrentes nos ramos que dominam, bem como em utilizar ainda mais eficientemente o método do dumping (dado que possuem acesso a uma tecnologia mais avançada e, portanto, capacidade de produzir mercadorias mais baratas). A importância deste método de manutenção do monopolismo pode-se fazer notar nos investimentos de bilhões e bilhões de dólares não apenas na descoberta e desenvolvimento de inovações tecnológicas, como também na compra de patentes já existentes, por parte dos grandes monopólios. O controle de patentes possui uma relevância particular na manutenção do atraso econômico dos países do Terceiro Mundo e é uma das armas mais utilizada para manter a dominação imperialista sobre estes. Monopolizando as inovações tecnológicas, as grandes corporações capitalistas negam aos países semicoloniais o direito de produzi-las, e nas poucas vezes que o permitem (por regra, somente permitem tal produção em países semicoloniais que possuam uma grande relevância do ponto de vista do mercado consumidor, em geral em países com imensas populações de centenas de milhões ou mesmo bilhões de habitantes, tais como a Índia, Brasil, México, Indonésia e outros, ou em países semicoloniais politicamente alinhados aos governos de seus respectivos países), somente o fazem através da cobrança de caríssimos royalties, que acabam por sua vez por ter um grande peso no desequilíbrio da economia destes países. Neste decurso, a desigualdade de desenvolvimento existente no mundo capitalista se intensifica ainda mais, não apenas pela desigualdade no decorrer do desenvolvimento entre os diferentes países capitalistas, como principalmente pela acentuação do enorme abismo existente entre estes e os países do Terceiro Mundo. - Privação da venda de matérias-primas e meios de transporte: A entrada do capitalismo em sua etapa imperialista manifesta um intenso vigor na disputa entre os monopólios dos diferentes países imperialistas pelo controle das fontes de matérias-primas não apenas de seus respectivos países, como também de todo o mundo. Esta disputa se dá não apenas por haverem se exaurido as fontes de matérias-primas dos diferentes países capitalistas, mas principalmente pela necessidade que os capitalistas monopolistas possuem de monopolizar todas as fontes de

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matérias-primas do mundo para que possam negar seu fornecimento a empresas concorrentes não-monopolistas, bem como para descobrir através de pesquisas possíveis novas matérias-primas que possam ser utilizadas na indústria. É frequente também que os capitalistas monopolistas se interessem não apenas pelas fontes de matérias-primas já existentes, como também pelo controle de extensões de terras em que, ainda que aparentemente virgens, possam ser descobertas fontes desconhecidas de matérias-primas. Nos dias de hoje, por exemplo, tem sido frequentemente utilizada pelos imperialistas norte-americanos a tática de recorrer a países semicoloniais que se encontrem bastante endividados para, em troca de perdoar parte da dívida externa destes países, estes países se comprometam com a “preservação de florestas tropicais” e, simultaneamente, realizem intercâmbios com ONGs estrangeiras que, sob o manto de defesa do meio-ambiente, estas levem a cabo pesquisas e incursões para explorar e pilhar a biodiversidade de tais países para a fabricação de novíssimas matérias-primas ou mesmo remédios nos laboratórios dos capitalistas monopolistas estrangeiros. A privação de meios de transporte aparece, nos dias de hoje, não apenas como uma importante forma da manutenção do monopolismo como também para a perseguição de fins políticos obscuros dos capitalistas monopolistas. É absolutamente monopolizado o ramo de navios de carga, de maneira que os capitalistas monopolistas, donos dos navios, cobram fretes extremamente elevados pelo transporte de mercadorias – principalmente de países do Terceiro Mundo, geralmente extremamente dependentes de exportações para o equilíbrio de suas economias. Os obscuros fins políticos alcançados pelos monopólios através da monopolização dos navios de carga se dão, por exemplo, através da garantia da efetividade de sanções ou bloqueios econômicos contra países que não se curvam diante dos ditames do imperialismo e que perseguem sua independência política e econômica: negando-se a seguir determinado alinhamento com esta ou aquela potência imperialista, vários países frequentemente se veem impossibilitados de realizar suas exportações, pois os capitalistas monopolistas do ramo de navios de carga lhes negam transporte. - Privação do crédito: As condições monopolistas sobre uma economia capitalista, como sabemos, não se dão apenas sobre a indústria, agricultura ou comércio, mas também sobre a esfera bancária. Tal como acontece na indústria, também na esfera bancária ou pequenos e médios bancos dão lugar aos monopólios bancários. Por trás de todo cartel de poderosas empresas capitalistas monopolistas, está também um estruturado monopólio bancário encarregado de nunca deixar faltar capitais aos membros deste mesmo cartel. Tendo em vista a manutenção das condições monopolistas, estes grandes bancos que monopolizam as finanças negam créditos ou empréstimos a capitalistas industriais em condições de competir com as empresas monopolistas, ou que se neguem a investir nos ramos determinados pelos bancos, etc. A privação do crédito é frequentemente usada pelos países imperialistas para entravar o progresso da industrialização nos países do Terceiro Mundo. Frequentemente, negam a estes países créditos para a construção de indústrias, mais ainda quando se tratam de ramos da indústria pesada, como a de construção de máquinas ou siderurgia. Por via de regra, fornecem créditos apenas para o desenvolvimento de indústrias ligadas à exportação de matérias-primas, como a mineração ou a agroindústria, ou de ramos que sejam extremamente dependentes de importações para a viabilização da produção. Capital financeiro e oligarquia financeira Lênin constata que toda a compreensão sobre as condições monopolistas do capitalismo, bem como acerca dos métodos utilizados para a manutenção do monopolismo, seriam completamente limitadas e insuficientes sem compreendermos o novo papel que cumprem os bancos sob o capitalismo em sua fase imperialista. Há que se compreender melhor este aspecto do imperialismo para se tirar conclusões corretas para o avanço da luta política da classe operária. O banco aparece inicialmente nada mais que como uma empresa capitalista que reúne em seu caixa todo o capital ocioso e demais ingressos da sociedade, pagando aos que depositam em seu caixa uma determinada quantia em porcentagem sobre o montante depositado,


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e administrando e distribuindo este montante depositado em forma de determinados serviços, como empréstimos, descontos de cheque, descontos de letra de câmbio, etc., recebendo por tais serviços um determinado montante em juros. O lucro dos bancos se forma, assim, na diferença entre os juros que recebem na prestação de seus serviços (empréstimos, descontos de cheque, descontos de letras de câmbio e outros) e o percentual que pagam a seus depositantes. Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, aumenta de forma considerável os capitais ociosos dos capitalistas, que precisam depositá-los nos bancos como forma de não deixá-los parados – isto é, sem produzir mais-valia –, e os ingressos de salários da população operária, que igualmente precisa depositá-los nos bancos. A livre concorrência que se dá entre os capitalistas industriais se manifesta, também, entre os bancos. O capital ocioso da sociedade e os ingressos da população operária se encontram, nas etapas iniciais de desenvolvimento do capitalismo, dispersos em pequenos e médios bancos. Estes se arruínam de forma crescente e passam a ser substituídos pelos grandes bancos, que passam a concentrar e administrar a parte majoritária dos capitais da sociedade. Lênin, no capítulo Os Bancos e o seu novo Papel de seu O Imperialismo, dá os seguintes dados acerca da concentração bancária no país capitalista mais desenvolvido do mundo de então. Na Alemanha, no decurso de 1907-1908, 79,5% de todo o capital administrado pelos bancos estava concentrado em bancos com capital superior ao de 10 milhões de marcos. No biênio 1912-1913, esta porcentagem já atingia 85% de todo o capital depositado nos bancos. Tal como a concentração da produção manifesta uma tendência ao monopólio, a concentração bancária também, a um determinado nível de desenvolvimento, leva ao monopólio na esfera bancária. Com efeito, o capitalismo monopolista acaba engendrando uma situação onde é impossível viabilizar a produção capitalista sem se recorrer a empréstimos dos grandes bancos. A este respeito, Lênin cita uma indagação de Rudolf Hilferding, economista pequeno-burguês que estudou o fenômeno do imperialismo: “Uma parte cada vez maior do capital industrial [...] não pertence aos industriais que o utilizam. Podem dispor do capital unicamente por intermédio do banco, que representa, para eles, os proprietários desse capital.” Ao mesmo tempo, a concentração de todo o capital-dinheiro da sociedade num número cada vez menor de bancos reduz as possibilidades diferentes de se buscar empréstimos em bancos diferentes. Dado que agora a produção capitalista só é viabilizada mediante a concessão de empréstimos, os grandes bancos podem agora submeter os capitalistas industriais, negar-lhes créditos, condicionar os empréstimos para que invistam apenas em setores que sejam convenientes para os grandes monopólios, etc. A partir desta dependência crescente de todos os capitalistas em relação aos bancos, aparecem os primeiros germes do capital financeiro. “Se o banco desconta as letras de um empresário, abre-lhe conta corrente, etc., essas operações, consideradas isoladamente, não diminuem em nada a independência do referido empresário, e o banco não passa de um modesto intermediário. Mas se essas operações se tornam cada vez mais frequentes e mais firmes, se o banco “reúne” nas suas mãos capitais imensos, se as contas correntes de uma empresa permitem ao banco - e é assim que acontece - conhecer, de modo cada vez mais pormenorizado e completo, a situação econômica do seu cliente, o resultado é uma dependência cada vez mais completa do capitalista industrial em relação ao banco.” Até então, os bancos obtêm seus lucros puramente através de operações bancárias – descontos de cheques e letras de câmbio, empréstimos, etc. Ao acumularem uma quantidade imensa de capitais ao ponto de precisarem deixar de alçar lucros através de operações puramente bancárias e investirem parte de seus lucros na produção industrial e agrícola, tornando-se também capitalistas industriais, os bancos emergem definitivamente como monopolistas onipotentes. Assim, a partir da união entre o capital bancário e o capital industrial, se origina o capital financeiro. A existência do capital financeiro não se manifesta apenas no movimento através do qual os banqueiros se tornam capitalistas industriais, mas também através de relações nas quais se verificam linhas muito tênues entre os grandes oligarcas das finanças e a grande indústria. A “união pessoal” entre a indústria e a oligarquia financeira se manifesta, por exemplo, através da nomeação cada vez maior de banqueiros para cargos de direção das sociedades anônimas que

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dirigem empreendimentos industriais, na participação cada vez maior dos bancos no controle de ações de empresas de capital aberto, dentre outras maneiras. Exportação de capitais e formação do sistema colonial do imperialismo Lênin constata corretamente que, à época do capitalismo de livre concorrência, é dominante no modo de produção capitalista a exportação de mercadorias. Sob o imperialismo, contudo, a exportação de capitais é predominante sobre a exportação de mercadorias. Eis mais um importante traço da época imperialista do capitalismo. Os economistas burgueses que estudavam as transformações radicais operadas no capitalismo do transcurso do século XIX para o século XX constataram que, nos principais países capitalistas do mundo, apareceu um considerável “excedente de capital”, isto é, excedente em relação ao capital já aplicado na produção industrial e agrícola, que não encontrava nenhuma alocação lucrativa no mercado doméstico de tais países e permanecia ocioso. As crises econômicas e o desemprego comprimiam o poder aquisitivo das massas dos países capitalistas, tornando estes mercados não mais tão atrativos para o investimento nos mesmos por parte dos capitalistas monopolistas domésticos. Diante deste excedente de capital que se formou nos países capitalistas, uma certa corrente política do socialismo – os reformistas – defendia que os excedentes alcançados fossem utilizados em programas relacionados à melhoria das condições de vida das massas. Lênin, referindo-se a esta ideia equivocada dos reformistas, dizia: “Naturalmente, se o capitalismo tivesse podido desenvolver a agricultura, que hoje em dia se encontra em toda a parte enormemente atrasada em relação à indústria; se tivesse podido elevar o nível de vida das massas da população, a qual continua a arrastar, apesar do vertiginoso progresso da técnica, uma vida de subalimentação e de miséria, não haveria motivo para falar de um excedente de capital. Este “argumento” é constantemente avançado pelos críticos pequeno-burgueses do capitalismo. Mas então o capitalismo deixaria de ser capitalismo, pois o desenvolvimento desigual e a subalimentação das massas são as condições e as premissas básicas, inevitáveis, deste modo de produção. Enquanto o capitalismo for capitalismo, o excedente de capital não é consagrado à elevação do nível de vida das massas do país, pois significaria a diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao aumento desses lucros através da exportação de capitais para o estrangeiro, para os países atrasados. Nestes países atrasados o lucro é em geral elevado, pois os capitais são escassos, o preço da terra e os salários relativamente baixos, e as matérias-primas baratas.” Numa situação onde os mercados internos dos países capitalistas se encontram tomados pelo desemprego e pelo baixo poder de consumo das massas, os investimentos de capitais são alocados pelos capitalistas monopolistas no exterior, onde podem ser gerados lucros mais elevados, em detrimento da exportação de mercadorias. Como resultado da predominância da exportação de capitais sobre a exportação de mercadorias, no ano de 1929 os ingressos provenientes dos investimentos de capitais no exterior eram, na Inglaterra, sete vezes maiores que os ingressos provenientes da exportação de mercadorias. Nos Estados Unidos, no mesmo ano, os ingressos do comércio exterior eram superados em cinco vezes pelas exportações de capitais.[5] As exportações de capitais pelos países capitalistas podem se dar de diferentes formas, ainda que independentemente de suas formas sempre estejam ligadas às necessidades dos grandes capitalistas monopolistas de alçar lucros de monopólio. A primeira forma como aparece a exportação de capital é como um investimento direto neste ou naquele país, para a construção de empresas industriais ou agrícolas, para a construção de ferrovias, portos, etc. Tais investimentos por via de regra se dão subordinados às necessidades que têm os imperialistas de converterem os países atrasados em colônias ou semicolônias suas, ou por conta da existência de um poderoso mercado consumidor de luxo, capaz de consumir caríssimas mercadorias a preços extremamente elevados. A segunda forma possível de exportação de capital é através da compra de terras ou empresas industriais ou agrícolas a preços aviltados em países estrangeiros. Em períodos de [5] Disponível no livro Manual de Economia Política, publicado pela Editora Vitória.


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guerras entre países imperialistas, por exemplo, é comum a exigência pelos países vencedores que os países vencidos vendam suas principais empresas industriais e territórios a preços extremamente baixos como indenização de guerra. Esta forma de exportação de capital, através da compra de empresas ou de terras, pode aparecer desta maneira. Nos países semicoloniais, onde as empresas industriais capitalistas se encontram sob um nível técnico muito inferior, é comum que ao se arruinarem diante da concorrência dos grandes monopólios, aquelas sejam vendidas a preços aviltados, por regra ao capital estrangeiro oriundo de países imperialistas. A terceira forma possível de exportação de capitais é através da concessão de empréstimos a outros países. Com o grau consideravelmente elevado de concentração do capital financeiro em um número extremamente reduzido de países capitalistas altamente desenvolvidos, estudamos como, através da privação de crédito e da concessão de empréstimos privilegiados (geralmente feitos a baixas taxas de juros, com prazos de pagamentos prolongados), o capital financeiro cumpre um papel importante na manutenção das condições monopolistas do capitalismo. Assim sendo, a ação do capital financeiro como exportador de capitais em forma de empréstimos é um meio usual na subjugação de outros países pelas potências imperialistas. Foi usual, ao longo do século XX, em países como a China, Turquia, a antiga Pérsia e vários outros, a concessão de empréstimos a taxas de juros leoninas, onde tais países acabaram sem a possibilidade de pagar e tiveram de ceder, em troca, terras e territórios, empresas, fontes de matérias-primas, portos, etc. como forma de pagamento, o que acabava consequentemente por empobrecer tais países e forçando-os novamente a ter de recorrer a empréstimos, enveredando sempre em novos ciclos de endividamento e empobrecimento. Sob o imperialismo, por regra, o empréstimo é sempre fornecido aos países empobrecidos mediante determinadas condições. Em geral, os grandes bancos exigem que os países que tomam o empréstimo gastem determinada parcela deste na compra de mercadorias ou serviços fornecidos por capitalistas monopolistas do país que concede o empréstimo, a preços superfaturados. Os empréstimos, atualmente, podem ser fornecidos não apenas por governos de países capitalistas imperialistas ou por bancos transnacionais, mas também por instituições financeiras, tais como o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras. Em tais casos, exige-se que o país que faz requerimento pelo empréstimo somente o receba, por exemplo, através da derrubada de tarifas alfandegárias para a entrada de produtos importados, de cortes no orçamento do Estado, da liberação da entrada de capitais especulativos, da privatização de empresas estatais, etc. Podemos observar através do estudo da estrutura da exportação dos capitais que a tendência que manifesta o capitalismo em sua etapa imperialista de a exportação de capitais predominar sobre a exportação de mercadorias se liga de uma forma intrínseca à questão da política colonial do imperialismo. Lênin já destacava de forma evidente que a política colonial existia até mesmo sob sociedades anteriores ao capitalismo: “A política colonial e o imperialismo existiam já antes da fase mais recente do capitalismo e até antes do capitalismo. Roma, baseada na escravatura, manteve uma política colonial e exerceu o imperialismo. Mas as considerações “gerais” sobre o imperialismo, que esquecem ou relegam para segundo, plano as diferenças radicais entre as formações econômico-sociais, degeneram inevitavelmente em trivialidades ocas ou em jactâncias, tais como a de comparar “a grande Roma com a Grã-Bretanha”. Mesmo a política colonial capitalista das fases anteriores do capitalismo é essencialmente diferente da política colonial do capital financeiro.” A teoria leninista sobre o imperialismo estabelece, assim, que a política colonial na época imperialista do capitalismo é essencial a política colonial do capital financeiro. Configura-se como um instrumento central para a manutenção do capitalismo monopolista. As razões pelas quais os países capitalistas – quando ingressam na etapa imperialista – buscam conquistar colônias podem ser encontradas nas próprias raízes do capitalismo monopolista: 1) monopolizar fontes de matérias-primas e produtos agrícolas, para obtê-las aos preços mais baixos, e para ter a possibilidade de negá-las a possíveis concorrentes; 2) monopolizar a exportação de capitais para o país colonizado, como forma de manter lucros de monopólio altíssimos devido à inexistência ou à fraqueza da burguesia local, ou de ter de dividir o mercado do

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país colonizado com outros capitalistas monopolistas; 3) monopolizar o mercado interno do país colonizado, como forma de garantir a venda de todo tipo de mercadorias, incluindo as mercadorias ruins, a preços de monopólio; 4) garantir o amplo acesso à mão-de-obra barata de operários assalariados e camponeses; 5) manter o país colonizado como esfera de influência militar e política para a manutenção das condições para levar a cabo eventuais guerras de agressão. Assim, a formação do sistema colonial do imperialismo consiste na divisão do mundo entre um punhado de riquíssimos países capitalistas e a vasta maioria de países do mundo dominados pelo imperialismo, submetidos e dependentes a este. Estas formas de dependência e submissão ao imperialismo podem se dar de duas formas diferentes. Chamamos colônia àquele país que se encontra sobre a intervenção direta de uma potência imperialista, mantendo-se por completo sob controle desta, perdendo assim toda e qualquer independência política. O governo do país colonial se faz sob ordem direta de burocratas oriundos da potência imperialista que domina este mesmo país. Chamamos semicolônia àquele país que, embora possua uma independência política formal – com governo, bandeira, hino, fronteiras etc. próprios, uma burocracia local própria –, se encontra na realidade preso a uma ou várias potências imperialistas por vários laços de dependência comercial, financeira e política. Ao longo dos séculos XIX e XX, diversos países politicamente independentes de todos os cantos do mundo caíram nas garras da opressão semicolonial. Países como China, Turquia, a antiga Pérsia, Egito (de antiga colônia do imperialismo britânico, no ano de 1922 a Grã-Bretanha concede ao Egito sua independência formal, sem contudo deixar de oprimi-lo ferrenhamente através de formas semicoloniais), Coreia (esta que, posteriormente, regrediu de semicolônia para a situação de colônia do imperialismo japonês) foram vítimas de todo tipo de assédios e agressões por parte das potências imperialistas, tornando-se na prática semicolônias. China e Coreia, contudo, libertaram-se das amarras da dominação imperialistas e enveredaram pelo caminho do socialismo. Sobre a Turquia, Egito, e outros países que emergiram a partir do desmembramento da Pérsia, o fardo da opressão semicolonial pesa fortemente até os dias de hoje, e vem se intensificando a partir da década de 1990 com o advento do neoliberalismo. Lênin chama também atenção para o fato de que as relações de dependência entre os diversos países e Estados, entre os Estados grandes e pequenos, foi sempre corrente no mundo, mas que na época do imperialismo estas se tornam parte de um “sistema geral [...] no conjunto de relações que regem a “partilha do mundo”, passam a ser elos da cadeia de operações do capital financeiro mundial.” Sendo assim, é vigente no capitalismo imperialista não apenas a dependência de tipo colonial ou semicolonial que os países capitalistas estabelecem com o conjunto do Terceiro Mundo, mas também as relações de dependência existentes entre os próprios Estados imperialistas. É citado em O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, como exemplo deste tipo de dependência, a relação entre Portugal e Grã-Bretanha: “O exemplo de Portugal mostra-nos uma forma um pouco diferente de dependência financeira e diplomática, ainda que conservando a independência política. Portugal é um Estado independente, soberano, mas na realidade há mais de duzentos anos, desde a Guerra da Sucessão de Espanha (1701-1714), que está sob o protetorado da Inglaterra. A Inglaterra defendeu-o, e defendeu as possessões coloniais portuguesas, para reforçar as suas próprias posições na luta contra os seus adversários: a Espanha e a França. A Inglaterra obteve em troca vantagens comerciais, melhores condições para a exportação de mercadorias e, sobretudo, para a exportação de capitais para Portugal e suas colônias, pôde utilizar os portos e as ilhas de Portugal, os seus cabos telegráficos, etc.” Como reflexo da anarquia na produção capitalista intensificada ao extremo pelo imperialismo, é usual que todos os diferentes países imperialistas busquem ao máximo enfraquecerem uns aos outros, com o intuito de cada país imperialista individualmente melhor sua posição na disputa interimperialista pela conquista de mercados e colônias. Após a Guerra Hispano-Americana de 1898, por exemplo, a Espanha se viu consideravelmente enfraquecida na corrida pela conquista de colônias e semicolônias, após perder a guerra para os Estados Unidos. Os imperialistas espanhóis se viram obrigados a vender para os imperialistas norte-


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-americanos uma colônia sua, as Filipinas, por apenas 20 milhões de dólares, que após realizarem sua intervenção direta contra o país rapidamente o anexaram como colônia. Na sequência, os imperialistas norte-americanos arrebataram da Espanha, também, Cuba, Porto Rico e a ilha de Guam. A perda de suas colônias foi um fator fundamental no atraso que durante muitas décadas enfrentou a Espanha em seu processo de desenvolvimento capitalista. Durante a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, estas duas potências que emergiam rapidamente como países imperialistas se digladiaram pela tentativa de conquistar a Coreia como colônia. A guerra terminou com uma humilhante derrota sobre a Rússia, para quem nada mais sobrou que prejuízos de guerra bilionários e a perda de uma parte de seu território, a ilha Sacalina, que foi anexada pelo Japão. Posteriormente, em 1910, o Japão anexou a Coreia como colônia sua. Tipos semelhantes de relação de dependência se viram entre a França e a Alemanha, entre os Estados Unidos e o Japão, entre os Estados Unidos e as potências imperialistas da Europa Ocidental, etc. Ainda que tais relações se mostrem vivas e atuais, não é impossível que as contradições existentes entre as potências imperialistas não possam dar lugar a pugnas ou a uma unidade mais ou menos prolongada por conta de alguma mudança na correlação de forças a nível internacional, ou por objetivos políticos, por exemplo. Nas relações de dependência engendradas pelo imperialismo, todavia, assume centralidade a dependência de tipo colonial e semicolonial. A partir de meados do século XX, com a vitória dos povos do mundo sobre o nazi-fascismo durante a Segunda Guerra Mundial e a formação subsequente de um bloco internacional de países socialistas, a luta de libertação nacional dos povos dos países coloniais e semicoloniais da Ásia, África e América Latina avançou com grande vigor. Ingressou numa profunda crise o sistema colonial do imperialismo e, durante as décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970, surgiram no Terceiro Mundo dezenas de novos Estados independentes, aos quais foi imposta a difícil tarefa de seguirem pelo caminho do desenvolvimento econômico progressista, democrático, nacional e independente, superando as feridas profundas do colonialismo e do atraso econômico, social e cultural. Nem por isso, contudo, deixaram os imperialistas de oprimir os povos dos países que se tornaram Estados independentes a partir desta época. Nos grandes movimentos de libertação nacional surgidos entre estes povos das então colônias, os imperialistas sempre buscaram manobra-los e utilizá-los ao seu favor, em geral cooptando e manipulando lideranças pouco consequentes do movimento nacional-libertador, fazendo pequenas concessões que não saiam dos limites da dominação colonial e etc. Paralelamente a isto, os imperialistas fazem uso constantes de tentativas de estabelecer governos fantoches nestes Estados independentes, com o intuito de manter sobre eles a dominação colonial. Utilizam-se também de todo tipo de maquinações políticas e militares contra estes países, ameaçando o boicote comercial, sanções econômicas, militares, etc. àqueles países que optem pelo desenvolvimento independente. Como reflexo do afã dos imperialistas em manterem a colonização dos países da Ásia, África e América Latina, a partir da metade do século XX e ao longo do início do século XXI o mundo capitalista testemunhou terríveis comoções sociais. Em 1964, no Brasil, setores fascistas da burocracia militar reacionária e politicamente alinhada ao imperialismo norte-americano conduziu um golpe de Estado contra o governo democrático de João Goulart, que decretara leis relacionadas à limitação das remessas de lucros para o exterior por parte de corporações imperialistas estrangeiras, com fins de impulsionar a industrialização interna, e o decreto de reforma agrária que desapropriava as fazendas latifundiárias improdutivas localizadas às beiras das rodovias. Como resultado, estabeleceu durante 21 anos, um regime fascista pró-imperialista responsável por ceifar a vida e derramar o sangue de dezenas de milhares de operários, camponeses, estudantes, indígenas, intelectuais, jornalistas, etc. Na Indonésia, país do Sudeste Asiático libertado da tirania do imperialismo holandês a partir de meados da década de 1940, membros da burocracia militar politicamente alinhada ao imperialismo norte-americano em conjunto com hordas e grupos paramilitares fascistas efetuaram no ano de 1965 um golpe de Estado contra o presidente Sukarno, que levava a cabo neste país importantes reformas democráticas. A partir do Golpe de Estado, instaurou-se um governo

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fantoche fascista encabeçado pelo sanguinário “general” Suharto. Durante toda a década de 1960, instaurou-se uma era de Terror branco contrarrevolucionário contra todo o povo indonésio, contra os comunistas, as forças democráticas e patrióticas. O terror contrarrevolucionário, aqui, teve um corte abertamente racista, dirigindo-se também contra pessoas de etnia chinesa. O governo fantoche e terrorista de Suharto, em conjunto com grupos paramilitares e bandos fascistas – o principal destes consagrado como a “Juventude Pancasila” – promoviam em bairros pobres das grandes cidades, bem como nas aldeias das zonas rurais, massacres, extermínios, estupros e torturas em massa de forma indiscriminada contra homens, mulheres, crianças e idosos. O golpe de Estado patrocinado pelos imperialistas norte-americanos na Indonésia resultou num dos maiores genocídios de toda a história da humanidade, com mais de 2 milhões de pessoas tendo suas vidas ceifadas em campanhas de extermínio do Estado reacionário indonésio e da Juventude Pancasila, junto a outras dezenas de milhões perseguidos e/ou presos. No Chile, um Golpe de Estado levado a cabo no ano de 1973 pelo “general” Augusto Pinochet, submisso ao imperialismo norte-americano, derrubou o governo democrático de Salvador Allende que levava a cabo transformações democráticas e nacionalistas através da nacionalização das minas de cobre, que se encontravam em mãos quase que inteiramente de companhias norte-americanas. Neste país, também se estabeleceu anos de ditadura fascista dos grandes capitalistas e latifundiários, contra a maioria do povo. Nas Filipinas, em 1972, o então presidente fantoche Ferdinand Marcos levou a cabo um processo de Golpe de Estado mediante a declaração da “Lei Marcial” que baniu organizações democráticas, sindicatos e partidos políticos com o intuito de perpetuar a dominação colonial do imperialismo norte-americano sobre o país, agora sob a forma de dominação imperialista semicolonial. Sob o governo de Ferdinand Marcos, grandes latifundiários e corporações agrícolas norte-americanas receberam carta branca para grilar terras nas zonas rurais das Filipinas, massacrando camponeses e povos indígenas locais. Neste país, o Golpe de Estado esteve diretamente relacionado às fracassadas tentativas do imperialismo norte-americanos de impedir o avanço vertiginoso da Guerra Popular de libertação levada a cabo pelo Partido Comunista das Filipinas, particularmente no campo, por meio do Novo Exército Popular. No decurso do século XX, golpes de Estado pró-imperialistas semelhantes eclodiram em países como Argentina, Paraguai, Venezuela, Guatemala, Coreia do sul e vários outros. Neste século presente, golpes de Estado pró-imperialistas foram também levados a cabo em diversos países como Honduras, Paraguai, Brasil, Ucrânia, Egito, etc. Atualmente, o imperialismo norte-americano leva a cabo métodos indiretos de sabotagem contra o governo democrático de Nicolas Maduro, na Venezuela, com o intuito de desestabilizar o país e lá levar a cabo um novo golpe de Estado. Por entre guerras de agressão e métodos indiretos de dominação, como golpes de Estado, desestabilização e sabotagem, o imperialismo dá sobrevida, como um morto-vivo, ao horrendo e moribundo sistema colonial, que mantém sob o atraso, fome e miséria as grandes massas de bilhões de seres humanos que habitam os países da Ásia, África e América Latina. Ao longo dos últimos anos, diversos setores oportunistas do movimento comunista internacional e mesmo personalidades democráticas e progressistas passaram a defender a tese da inexistência de um sistema colonial do imperialismo. Focando-se na inegável importância que teve o processo de descolonização em vários países da Ásia e da África, vários oportunistas passavam a afirmar que as categorias formuladas por Lênin em torno do colonialismo ou do semicolonialismo não mais teriam validade diante de um mundo marcado pela formação de Estados independentes até mesmo entre os países atrasados. Como se pode observar, porém, o sistema colonial do imperialismo invariavelmente se manteve, ainda que a forma de opressão semicolonial tenha se generalizado entre a maioria dos países do mundo, em detrimento da opressão colonial. Não é nunca demais lembrarmos neste sentido a indagação de Lênin de que “a subordinação mais lucrativa e “cômoda” para o capital financeiro é uma subordinação tal que traz consigo a perda da independência política dos países e dos povos submetidos”, pois é justamente sob a forma colonial que o país imperialista consegue de fato o monopólio e o domínio absoluto sobre o país dominado. Encaixam-se nesta razão as guerras imperialistas feitas pelos


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países imperialistas não apenas para pilharem os povos dos países semicoloniais como, também, para desmembrar e desmontar seus respectivos Estados nacionais, instaurando em tais países uma situação política de anarquia, tal que estes estejam mais vulneráveis a uma forma de dominação semicolonial que se aproxime de forma demasiada do velho colonialismo. Devemos passar então ao exame mais detalhado da dominação imperialista sobre os países do Terceiro Mundo, principalmente do ponto de vista econômico, e estudar também as transformações que tal dominação gera sobre as economias internas de tais países. A dominação imperialista sobre o Terceiro Mundo Já concluímos a partir de nossos estudos que a conquista de colônias e semicolônias é um ponto nevrálgico para a manutenção do capitalismo monopolista, dos lucros de monopólios das grandes corporações imperialistas. Neste sentido, há cinco razões básicas que determinam a avidez deste por submeter centenas de países de forma colonial e semicolonial: 1) monopolizar fontes de matérias-primas e produtos agrícolas, para obtê-las aos preços mais baixos, e para ter a possibilidade de negá-las a possíveis concorrentes; 2) monopolizar a exportação de capitais para o país colonizado, como forma de manter lucros de monopólio altíssimos devido à inexistência ou à fraqueza da burguesia local, ou de ter de dividir o mercado do país colonizado com outros capitalistas monopolistas; 3) monopolizar o mercado interno do país colonizado, como forma de garantir a venda de todo tipo de mercadorias, incluindo as mercadorias ruins, a preços de monopólio; 4) garantir o amplo acesso à mão-de-obra barata de operários assalariados e camponeses; 5) manter o país colonizado como esfera de influência militar e política para a manutenção das condições para levar a cabo eventuais guerras de agressão. Há de se descrever este processo, todavia, com mais detalhes. Na busca por monopolizar fontes de matérias-primas e produtos agrícolas, é evidente que a dominação imperialista sobre os países coloniais e semicoloniais se apoia principalmente sobre a propriedade latifundiária da terra, dado que é das entranhas da terra que brotam os principais produtos que buscam os imperialistas na dominação de tipo colonial e semicolonial. É usual que os imperialistas estabeleçam sobre estes países dominados o sistema de plantations, isto é, grandes extensões de lavouras baseadas na monocultura dedicada quase que inteiramente à exportação. Estabelecendo no país dominado extensas plantations de exportação e colocando as reservas de minérios, petróleo e outros recursos naturais também para a exportação, os imperialistas alcançam dois fins: 1) arrebatam matérias-primas e produtos agrícolas a preços extremamente baixos; 2) a exportação de matérias-primas e produtos agrícolas geram nos países semicoloniais determinada receita que pode ser utilizada na compra de produtos manufaturados a preços exorbitantes, produzidos por empresas de países imperialistas. As razões pelas quais as matérias-primas e produtos agrícolas podem ser arrebatadas a preços baixos pelos capitalistas monopolistas se encontram, em primeiro lugar, na própria natureza desigual de desenvolvimento da economia capitalista. Com o desenvolvimento do capitalismo, se estabelece entre o campo e a cidade um elo, uma ligação por meio do comércio, através da qual o campo fornece às cidades alimentos para o consumo da população e matérias-primas para a indústria. A cidade, por sua vez, fornece ao campo produtos manufaturados industrializados, assim como meios de produção necessário para viabilizar e otimizar a produção agrícola, como herbicidas, fertilizantes, tratores, colheitadeiras, sementes melhoradas, etc. Todavia, esta ligação por meio do comércio através da qual o campo fornece à cidade matérias-primas e produtos agrícolas e, com as receitas geradas por tais vendas, consome produtos manufaturados e meios de produção, não se dá de uma forma harmônica, mas profundamente desigual. Primeiramente, com a expansão da industrialização e o aumento da produtividade na indústria, os custos de produção para a produção das mercadorias tende a se reduzir, e é possível produzir um número maior ou igual de mercadorias manufaturadas utilizando quantidades cada vez mais reduzidas de matérias-primas. Por isso, a demanda dos capitalistas industriais por matérias-primas também se reduz, o que faz com que os preços das mesmas tendam a cair. Além disso, o aumento do desemprego e da carestia de vida nas grandes cidades industriais faz

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diminuir a demanda até mesmo por produtos tão básicos como os alimentos, o que faz com que os preços destes também se reduzam. O campo, desta maneira, é constrangido a vender seus produtos por preços cada vez menores, embora a demanda da população do campo por produtos manufaturados não se reduza no mesmo nível. Desenvolve-se a situação lamentável na qual o campo deve produzir quantidades exponencialmente maiores de matérias-primas e produtos agrícolas para consumir o mesmo volume de produtos manufaturados que consumia antes. Como resultado disto, um volume imenso de mais-valia e investimentos produtivos, que poderiam ser utilizados na melhoria das condições da agricultura, são transferidos “de graça” para os grandes centros urbanos como forma de compensar as quedas dos produtos vendidos pelo campo. A relação entre cidade e campo no seio de uma economia capitalista se repete de forma análoga na relação existente entre países imperialistas e países semicoloniais no universo do comércio mundial. Os primeiros cumprem a função de “cidade”, de países industrializados. Os segundos cumprem a função de “campo” mundial, de países agrários. Assim sendo, por conta desta natureza, é evidente que as matérias-primas e produtos agrícolas exportados por países semicoloniais manifestem tendência de decair de preço no comércio internacional, razão pela qual precisem sempre exportar quantidade cada vez maiores destes produtos para o exterior para auferirem a mesmíssima receita. A quantidade enorme de mais-valia e sobretrabalho produzida pelos operários e camponeses das semicolônias, que poderia ser utilizada não apenas na melhoria de suas agriculturas como também na industrialização e desenvolvimento nacionais, é drenada assim de forma crescente para o exterior. Os países semicoloniais, assim, se empobrecem e se atrasam cada vez mais em seu desenvolvimento econômico em relação aos países imperialistas. Fator que também contribui para a queda dos preços dos produtos exportados pelos países semicoloniais é o monopólio de algumas grandes corporações transnacionais sobre a comercialização da produção agrícola e das matérias-primas, como pudemos observar no tópico O capitalismo monopolista. Os produtores agrícolas e exportadores de recursos naturais, que em geral se encontram dispersos, possuem poucas alternativas para recorrer ao precisarem vender a sua produção. Com uma oferta de tais produtos relativamente grande diante de poucas empresas que compram esta produção, os preços manifestam assim também tendência à queda. Podemos observar no quadro abaixo o comportamento dos preços dos principais produtos exportados pelos países do Terceiro Mundo no decurso de 1980-2000. Preços das matérias-primas e produtos agrícolas no mercado internacional no período 1980-2000, a preços constantes de 1990($)[6]

[6] Disponível na página 81 da 1ª edição do livro A Bolsa ou a Vida, de Eric Toussaint, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo.


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A queda dramática dos preços de produtos que possuem um peso fundamental nas pautas de exportação dos países semicoloniais foi um fator fundamental do empobrecimento dos mesmos no decurso de 1980-2000. Chamamos de degradação dos termos de troca ao processo no qual, no comércio exterior, os preços dos produtos exportados por um país caem em relação aos produtos exportados por outro país, o que diminui a capacidade de importação do primeiro com uma receita gerada pela exportação de um volume equivalente de mercadorias. É vigente assim, num comércio internacional plenamente controlado por um punhado de corporações imperialistas, a degradação dos termos de troca em detrimento dos países do Terceiro Mundo. Os países da África Subsaariana são um exemplo passível de ser utilizado para demonstrar o empobrecimento dos países semicoloniais por meio do mecanismo de diminuir os preços das matérias-primas e produtos agrícolas.

Termos de troca e volumes de exportação da África Subsaariana[7]

Nesta tabela, utilizamos o padrão de unidade 100, nos anos 1980-1981, para termos uma ideia do comportamento do volume de exportações e dos termos de troca dos países da África subsaariana em comparação com os anos subsequentes. Em 1980-1981, os termos de troca das exportações dos países da África subsaariana estavam em 100, enquanto os volumes das exportações também se encontravam em 100, ou seja, 100 unidades de mercadorias exportadas por estes países eram suficientes para adquirir 100 unidades de mercadorias importadas. No decorrer de 1996-1997, porém, a queda vertiginosa dos preços dos produtos agrícolas e matérias-primas levou ao fardo de que ainda que as exportações tivessem aumentado comparativamente de 100 para 125, estas 125 unidades de mercadorias exportadas eram suficientes para adquirir apenas 64,5 unidades de mercadorias importadas! Consequência deste fardo lamentável não pode ser senão a descapitalização destes países, o empobrecimento e a miséria. No decurso de 2014-2015, o Brasil semicolonial também amargurou uma terrível crise econômica, bem como aumentos consideráveis da miséria do desemprego, devido em grande parte à queda dos preços de seus principais produtos de exportação. Em 2014, a economia brasileira estagnou num crescimento de 0%. No decurso de 2015-2016, uma pesada recessão derrubou mais de 7% do PIB do país, e as principais instituições financeiras do mundo não descartam a possibilidade de prosseguimento da recessão no ano de 2017. Com efeito, também neste ano, os preços dos principais produtos de exportação do país não chegaram sequer perto de níveis de anos atrás.

Comportamento dos preços dos principais produtos de exportação do Brasil no decurso de maio de 2014 - maio de 2015[8]

A situação de queda dos preços dos principais produtos exportados pelo Brasil, principalmente produtos agrícolas e matérias-primas, possui uma consequência explosiva para um país como o nosso, tão dependente da importação de produtos básicos para o consumo popular, tais como derivados de petróleo como gasolina e diesel, química fina para a fabricação de remédios, [7] Disponível na página 262 da 1ª edição do livro A Bolsa ou a Vida, de Eric Toussaint, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. [8] Disponível no link: http://www.horadopovo.com.br/2015/06Jun/3351-05-06-2015/P2/pag2d.htm

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trigo e vários outros, sem mencionarmos também as necessidades de consumo produtivo como aço, máquinas, insumos agrícolas como fertilizantes ou herbicidas, e componentes de produtos industriais. A degradação dos termos de troca em detrimento do Brasil se fez ver de forma clara no comportamento da exportação da soja: de 2014 para 2015, a cotação da soja no mercado internacional caiu em 23,9%. Apesar de no mesmo decurso as exportações do grão terem aumentado num volume expressivo de 23% em maio de 2015, totalizando uma exportação de 9,3 milhões de toneladas apenas no mês de maio, as receitas caíram em 6,5% em comparação com o mesmo mês de 2014, devido justamente à queda no preço internacional da soja. A degradação dos termos de troca revela o caráter extremamente desigual do comércio internacional realizado sob o comando do imperialismo: com a queda dos preços das matérias-primas e produtos agrícolas, os países industrializados ganham e se beneficiam através do atraso e da pilhagem dos países agrários, semicoloniais. Com a queda nos preços internacionais dos produtos agrícolas e matérias-primas e a consequente queda igualmente nas receitas geradas pela exportação destes produtos nos países semicoloniais, diminuindo a capacidade dos mesmos de importar produtos manufaturados acabados, poder-se-ia imaginar que isto seria também insatisfatório para as grandes empresas transnacionais imperialistas, dado que estas também perderiam, vendendo menos mercadorias a preços de monopólio. Todavia, com os desequilíbrios econômicos manifestados nos países semicoloniais, os países imperialistas não apenas não perdem com os mesmos, como inclusive reforçam sua dominação através de tais desequilíbrios. As quedas que testemunham os produtos tradicionais de exportação das semicolônias acabam resultando em déficits nos balanços de pagamentos destes países, isto é, os países semicoloniais acabam por pagar para outros países – de preferência, países imperialistas – um montante superior em relação àquele que recebem em forma de pagamento de outros países. Suponhamos, por exemplo, que um país recebeu um montante de 10 bilhões de dólares de pagamentos de outros países, em pagamentos pelos produtos de exportação, em serviços prestados no exterior, pelas remessas enviadas por habitantes seus em outros países, etc., porém pagou a outros países um montante de 15 bilhões de dólares, em pagamentos pelas importações, pagamentos de direito de propriedade intelectual, entre outros serviços. Neste caso, este país possui um déficit no balanço de pagamentos 5 bilhões de dólares, o qual ele deverá cobrir em reservas de divisas em dólar ou em outras moedas estrangeiras, caso tenha, ou tomando empréstimos. É em tal desequilíbrio que passa a cumprir um importante papel o capital financeiro, em forma de empréstimos, como maneira de dominar, submeter e pilhar os países semicoloniais. Para cobrir os déficits nas balanças de pagamentos dos países semicoloniais, os grandes monopólios bancários ou instituições financeiras do imperialismo fornecem a estes empréstimos a taxas de juros elevadas, de maneira a conseguirem tirar o máximo proveito da situação de atraso e miséria destes países. As condições estabelecidas para o fornecimento de empréstimos sempre são feitas de maneira a fazer com que, no país que toma o empréstimo, jamais se reúnam as condições para que estes empréstimos possam ser efetivamente pagos, alongando e alongando os prazos de pagamentos, quase sempre vencidos, para que os juros sigam se acumulando e o país devedor se ligue ao país credor por uma relação de dependência análoga à quase-servidão. De acordo com relatório apresentados pelo Banco Mundial, no ano de 1970, cerca de 55% dos empréstimos adquiridos foram utilizados para pagar juros e amortizações de empréstimos já contraídos. Na década de 1980, tal situação viria a se agravar de forma dramática, com mais de 70% dos novos empréstimos contraídos sendo utilizados pagar outros juros e amortizações de outros empréstimos, e menos de 30% utilizados para a importação de mercadorias e serviços.[9] A opressão que sofrem os países semicoloniais dos países imperialistas em formas constrangedoras de agiotagem aberta se assemelha ao cachorro correndo atrás do próprio rabo: endivida-se para se endividar mais, mais e mais. Assim sendo, o montante majoritário da mais-valia produzida pelo operariado das semicolônias, assim como o trabalho excedente dos camponeses, é gasto improdutivamente, indo parar nas instituições financeiras dos países imperialistas e no bolso dos [9] Dados disponíveis no capítulo “Aspectos financeiros da crise” do livro A Formação do Terceiro Mundo, do autor Ladislau Dowbor.


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banqueiros como forma de pagamentos de juros e amortizações das dívidas contraídas. Nos métodos de endividamento dos países do Terceiro Mundo, cumpre papel fundamental o aprofundamento das diferenças entre as taxas de juros praticadas nos países imperialistas e aquelas praticadas em países semicoloniais. Durante as décadas de 1980 e 1990, o endividamento dos países semicoloniais galopava em altíssima velocidade. Apesar disto, estes ainda seguiam realizando novos empréstimos para cobrir déficits, para pagar juros de dívidas antigas, etc. Por conta deste imenso endividamento, os grandes círculos financeiros dos países imperialistas passaram a conceder empréstimos às semicolônias sob a condição de pagamento de “prêmios de risco”. Isto é, os países semicoloniais teriam de pagar mais, com taxas de juros mais altas, e num prazo de tempo menor como forma de recompensar o “risco” que teriam os círculos agiotas imperialistas de não serem recompensados. Como efeito disso, já em 1980 as diferenças entre as taxas de juros praticadas nos países imperialistas e nos países semicoloniais haviam atingido um abismo enorme. Enquanto nos primeiros a taxa de juros praticada era de 4%, os países semicoloniais suportavam uma taxa de juros real extorsiva de 17%.[10] Esta elevada taxa de juros se reflete negativamente sobre os países semicoloniais não apenas ao terem de pagar montantes elevadíssimos para tomarem empréstimos, como também ao desestimular os capitalistas destes países a investirem seus capitais na produção. Como não raramente nestes países a taxa de juros se encontra mais elevada que a taxa média de lucro, os capitalistas não se arriscam a tomar empréstimos, pois vencidos os prazos dos empréstimos, os lucros dos capitalistas não serão capazes de remunerar os juros e as amortizações. Desta maneira, muitos capitalistas dos países semicoloniais preferem, por exemplo, utilizar seus capitais para comprar títulos da dívida pública – remunerada a uma taxa de juros extremamente alta – ao invés de investir na produção capitalista propriamente dita. Nos países imperialistas, que praticam taxas de juros baixas e inferiores à taxa média de lucro, o desenvolvimento capitalista é capaz de avançar com pujança incomparavelmente maior (sem considerar, também, outros fatores relevantes na manutenção dessa desigualdade, já citados por nós ao longo do artigo) que nos países semicoloniais, onde as altas taxas de juros se apresentam como um dos fatores importantes no atraso do desenvolvimento. Sublinhando a busca pelo controle da mão de obra barata dos operários e camponeses como forma constitutiva da opressão colonial, Lênin menciona em seu O Imperialismo as penosas condições de existência dos operários de origem migrante nos países capitalistas da Europa Ocidental, que recebiam salários muitos inferiores aos dos operários locais, ainda que realizassem os mesmos trabalhos ou mesmo trabalhos mais pesados. Quase cem anos após constatar este fato, observamos que a partir do ano de 2015 se começou a anunciar na imprensa mundial, aos quatro cantos do mundo, o estouro da dita “crise dos refugiados”, onde centenas de milhares ou mesmo milhões de operários e camponeses pauperizados, vindos de países e regiões destruídas por anos de agressões imperialistas (particularmente do Oriente Médio), passaram a imigrar massivamente para os Estados Unidos e os países capitalistas da Europa Ocidental, num movimento migratório que mais lembra uma verdadeira diáspora moderna. Neste caso, a busca pelo controle da mão de obra barata se encontra diretamente relacionado às guerras imperialistas. Todavia, principalmente em tempos atuais, é usual que os imperialistas busquem o controle não apenas sobre a mão de obra barata, como também sobre a dita mão de obra qualificada. Nos países semicoloniais, com a crescente destruição das indústrias nacionais – principalmente aquelas ligadas à produção de tecnologia de ponta –, que são os grandes empregadores da mão de obra de engenheiros, técnicos, pesquisadores, cientistas, etc., muitos destes operários altamente qualificados acabam se encontrando sem oportunidades de trabalho em seus países de origem e acabam tomando rumo para os países imperialistas, onde estão localizados os grandes laboratórios, os centros de pesquisa e de excelência, etc. A “fuga de cérebros” é um fenômeno dramático mas que, infelizmente, faz parte da dura realidade dos países semicoloniais. Na formação deste pessoal técnico altamente qualificado, os governos dos países semicoloniais gastam grandes montantes, direcionados a universidades, institutos, à formação [10] Disponível no relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 1992, no link: http://hdr.undp.org/sites/default/files/ hdr_1992_es_completo_nostats.pdf

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específica, etc. Com a ida destes técnicos para os países imperialistas, estes montantes enormes investidos se mostram, na prática, como parcelas ainda maiores da mais-valia transferida das semicolônias para o centro imperialista. No Brasil, cerca de 8,3% de seus cientistas estão atualmente desenvolvendo pesquisas no exterior.[11] No Sudão, o fenômeno da fuga de cérebros atinge enormes proporções. Somente no ano de 1987, 17% de seus médicos e dentistas, 20% de seus professores universitários, 30% de seus engenheiros e 45% de seus matemáticos tomaram caminho rumo aos países capitalistas.[12] O controle das cadeias produtivas industriais existentes nos países semicoloniais pelos imperialistas se manifesta também como uma das principais formas de pilhagem dos primeiros. Muito embora os imperialistas busquem através de várias maneiras emperrar o progresso da industrialização nos países semicoloniais, retraindo seu desenvolvimento, interessa aos imperialistas também uma forma limitada e deformada de desenvolvimento capitalista em que a acumulação de capital se encontre sob o controle de grandes transnacionais capitalistas estrangeiras, e que de preferência dê como retorno fabulosos lucros monopolistas através de pífios investimentos de capital. Forma dominante de “industrialização” que o imperialismo impõe sobre os países semicoloniais é a da construção de maquiladoras, isto é, empresas industriais que se limitam tão somente a montar componentes importados em manufaturas acabadas, re-exportando-as ou vendendo-as no mercado interno do país semicolonial. Os elevados lucros monopolistas alçados pelos imperialistas por meio das maquiladoras, todavia, se dedicam muito pouco ao reinvestimento do mesmo com os fins de se expandir a produção interna. Ao alçarem lucros de monopólio, os imperialistas os remetem para seus países de origem, mantendo os investimentos nos países semicoloniais em níveis medíocres, praticamente estagnados. Na América Latina, o México foi o país semicolonial que mais profundamente entregou seu território e sua economia ao bel prazer para a instalação de empresas maquiladoras mantidas pelo imperialismo norte-americano. Ingressando a partir do ano de 1994 no acordo NAFTA (North American Free Trade Agreement, ou Tratado de Livre Comércio Norte-Americano), um tratado de “livre comércio” mútuo entre Estados Unidos, Canadá e México, este último teve seu mercado interno arrebentado por importações predatórias vindas dos Estados Unidos e pela entrada de inumeráveis indústrias maquiladoras. A ida destas indústrias para o México foi apresentada pelos lacaios e apologistas do imperialismo norte-americano como um “importante meio de geração de empregos”, e o NAFTA – um tratado desigual de humilhação e submissão nacional do México – como “forma de atrair investimentos”. A teimosa realidade bastou para desmascarar as mentiras do imperialismo: no decurso dos anos 1998-2000, o México recebeu 36 bilhões de dólares em investimentos de capitais de países estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos, parte considerável dos quais foram investidos na construção de maquiladoras. Todavia, no mesmo período, as empresas estrangeiras remeteram para o exterior – predominantemente para os Estados Unidos – 48 bilhões de dólares em lucros e juros. Se fossem computados em tais valores os montantes imensos gastos na importação de componentes, a cifra seria ainda maior. Simplificando: entraram 36 bilhões, saíram 48 bilhões.[13] O imperialismo norte-americano retirou do México o enorme montante de 12 bilhões de dólares. A pretensa “industrialização” de que falam os imperialistas revela-se como uma “industrialização” que, na prática, impede a industrialização, impede a acumulação interna de capitais e a expansão das forças produtivas. A dominação imperialista, assim, acaba por relegar aos países semicoloniais a mera condição de apêndices agrários, fornecedores de matérias-primas e produtos agrícolas aos países desenvolvidos. As transformações que opera o imperialismo na situação interna dos países coloniais e semicoloniais “Onde quer que o imperialismo necessite de apoio social nas colônias, ele se alia primeiramente com a camada dominante da estrutura social retrógrada – como os senhores feudais [11] Disponível no link: https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/08/28/fuga-de-bons-cerebros-brasileiros-para-o-exterior-tende-a-aumentar.htm [12] Disponível no relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 1992, no link: http://hdr.undp.org/sites/default/files/ hdr_1992_es_completo_nostats.pdf [13] Disponível na página 90 da 3ª edição do livro “Para entender e combater a Alca”, publicado pela editora Anita Garibaldi.


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e a burguesia comercial – contra a maioria do povo. Em todos os locais, o imperialismo procura preservar e perpetuar todas as formas pré-capitalistas de exploração (especialmente no campo), onde servem de base para a existência dos aliados reacionários. O aumento da fome e das epidemias, particularmente entre o campesinato pauperizado; a expropriação em massa das terras da população nativa, as condições desumanas de trabalho (nas plantações e nas minas dos capitalistas, e assim por diante), são muitas vezes ainda piores do que a escravidão aberta – tudo isso mostra o efeito devastador entre a população colonial e frequentemente leva à ruína de nacionalidades inteiras. A “missão civilizadora” dos Estados imperialistas nas colônias é, na realidade, a de um carrasco.”[14] Em O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Lênin dedica poucas linhas ao estudo das consequências que possui a dominação imperialista sobre a situação interna dos países coloniais e semicoloniais. Ele o faria, contudo, em diversos outros trabalhos seus. As Teses sobre o movimento revolucionário nos países coloniais e semicoloniais, deliberadas pelo VI Congresso da Internacional Comunista realizado no ano de 1928, baseou-se inteiramente nas teses sobre a questão colonial enviadas por Lênin ao II Congresso da Internacional Comunista realizado em 1920. Os delegados do VI Congresso da Internacional Comunista constatavam que “desde a época do II Congresso, a importância das colônias e das semicolônias, como fatores da crise do sistema imperialista mundial, se tornou muito maior.” As teses do VI Congresso da Internacional Comunista constituem um importante ponto de partida para o estudo das consequências internas da dominação imperialista sobre as colônias e semicolônias. A dominação imperialista sobre uma colônia ou semicolônia põe em movimento todas as classes e grupos sociais destes respectivos países, levando-os todos a tomarem um posicionamento objetivo em relação à tirania imperialista. Dado que os imperialistas, ao colonizarem um país ou transformarem um país formalmente independente numa semicolônia, buscam principalmente o açambarcamento de matérias-primas e produtos agrícolas, a classe latifundiária passa a constituir parte da atrasada estrutura social com a qual o imperialismo se alia. Aliando-se à classe latifundiária, o imperialismo obtém controle sobre os produtos agrícolas e demais matérias-primas, cujas vendas massivas geram para os latifundiários imensos lucros. Ainda que o imperialismo, ao se aliar à classe latifundiária, possa se utilizar do trabalho assalariado na agricultura, este se apoia principalmente sobre as formas pré-capitalistas de exploração, tais como o feudalismo, o semifeudalismo, a pequena economia camponesa e toda classe de trabalhos coercitivos ou semi-coercitivos. Contraditoriamente, o imperialismo, ao mesmo tempo que se apoia sobre as relações de produção pré-capitalistas, estimula no campo a penetração da monetarização e da produção rural orientada para o mercado, dado que somente através das condições em que a produção agropecuária apareça como mercadoria é que os imperialistas podem saqueá-las. Ao impor sua tirania colonial sobre a Índia, o imperialismo britânico se apoiou e estabeleceu o sistema dos zamindares, os grandes senhores de terras que exploravam os camponeses através da cobrança de arrendamentos, parte dos quais estes latifundiários vendiam aos colonialistas ingleses. Foi através da massiva grilagem de terras que o imperialismo britânico promoveu nas regiões rurais da Índia que os zamindares receberam suas imensas extensões de terras para explorar de forma impiedosa os camponeses através de métodos feudais. Para manter sua tirania colonial sobre o povo indiano, os colonialistas ingleses tiveram de se apoiar sob o feudalismo não apenas sob termos econômicos, mas também políticos. A Inglaterra deu sobrevida e apoio à manutenção do arcaico sistema de sociedade de estamentos, as castas. Após a pretensa descolonização da Índia em meados da década de 1940, até os dias de hoje a grande maioria dos camponeses indianos permanecem na condição de sem-terras, empobrecidos e obrigados a arrendar as terras dos latifundiários. Até os dias de hoje, são bastante difundidas na Índia as formas mais atrasadas de escravidão. É bastante corrente nas regiões rurais indianas, situações nas quais, diante de uma seca ou algum desastre natural, o camponês perca a colheita e precise, por exemplo, pagar herbicidas, sementes e outros insumos que adquiriu para viabilizar a safra. Então, o camponês recorre ao agiota, de quem toma um empréstimo a [14] Citação retirada do documento Teses sobre o movimento revolucionário nos países coloniais e semicoloniais da III Internacional.

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taxas de juros extremamente altas para pagar os meios de produção que comprou. As taxas de juros extremamente altas tornam impossível que o camponês pague a dívida que acumulou com o agiota, o que leva este a tomar um ou alguns membros da família como escravos, como forma de pagamento das dívidas. No Nepal, Butão, Bangladesh, Sri Lanka e outros países do sul da Ásia, formas semelhantes de exploração feudal e escravista são generalizadas. No Brasil, são bastante difundidas nas fazendas de gado as formas de trabalho coercitivas ou semi-coercitivas para a limpeza de pastos, atividade conhecida como roço de juquira. É comum que os camponeses sejam aliciados para estas formas coercitivas e semi-coercitivas de trabalho por meio de falsas promessas e que, no decurso do transporte para as fazendas, acabem se endividando com os latifundiários, acumulando dívidas e terminando impossibilitados de deixarem as fazendas. Formas semelhantes de trabalho coercitivo também estão difundidas nas lavouras da soja, no processo de limpeza do solo e de desmatamento de florestas nativas para dar lugar a lavouras. Nas lavouras brasileiras de cana de açúcar, os latifundiários canavieiros utilizam largamente das formas mais atrasadas de trabalho assalariado, como o pagamento por peça, remunerando os assalariados agrícolas em toneladas de cana cortada. Usualmente, os latifundiários deixam as canas de açúcar cortadas nos campos durante muitos dias, ao longo dos quais a cana de açúcar vai perdendo peso, tornando assim mais baixa a remuneração do assalariado agrícola. Na região sul do Brasil, as grandes transnacionais imperialistas que controlam e comercializam a produção de tabaco se apoiam largamente no feudalismo. Entre os camponeses que plantam fumo, a grande maioria não possui terra, razão pela qual se submetem ao arrendamento das terras dos grandes proprietários, pagando em geral metade da colheita do fumo no arrendamento. As grandes empresas capitalistas de tabaco exploram os camponeses do sul do Brasil também através de outras modalidades pré-capitalistas. Quando um camponês possui a intenção de comprar uma gleba de terra numa região dominada pela transnacional, é usual que ele assine com a empresa um contrato através do qual ele adquire a terra da empresa sob a condição de nela plantar nela apenas fumo, e pagando as prestações da terra em parcelas da colheita ao fim de cada safra. Em diversos países da América Central, principalmente na Guatemala, grandes monopólios capitalistas do imperialismo norte-americano que atuavam no setor da agricultura, produção e comercialização de produtos agrícolas, grilaram imensas extensões de terras para o plantio de banana e outros produtos da fruticultura para a exportação, utilizando-se para isso do apoio que lhes concediam os latifundiários locais. Nas terras de onde foram expulsos, os camponeses agora trabalhavam sob formas de trabalho coercitivas, recebendo salários de fome e só podendo gastá-los nos barracões mantidos pelos patrões ligados às empresas norte-americanas exportadoras de bananas e demais frutas. Na Colômbia, também, formas semelhantes de exploração pré-capitalista eram utilizados pelos latifundiários e imperialistas. Nas Filipinas, onde a produção de fruticulturas para a exportação se encontra largamente difundida, seguem persistindo estas mesmas formas coercitivas e semi-coercitivas de trabalho, assim como as formas feudais de exploração por meio do arrendamento. Enquanto os latifundiários aderem praticamente em bloco à dominação imperialista, as burguesias dos países coloniais e semicoloniais não adotam uma atitude homogênea para com o imperialismo estrangeiro. Um determinado setor da burguesia do país dominado, a burguesia nacional, diante dos golpes que lhe impõe o capital monopolista estrangeiro, pode vir a se opor ao imperialismo, ainda que apenas com o fim de arrancar deste determinadas concessões que lhe permitam melhor desenvolver a produção capitalista. Sob determinadas conjunturas bastante limitadas, é comum que os imperialistas estrangeiros deem determinadas concessões à burguesia nacional como forma de atraí-la para o lado da contrarrevolução contra a classe operária e o campesinato. Pode-se observar, a partir daqui, o caráter dual da burguesia nacional num país colonial ou semicolonial. Ao mesmo tempo em que a burguesia nacional se opõe à dominação do imperialismo estrangeiro pelo fato de este entravar o desenvolvimento do capitalismo, também se opõe à classe operária e ao campesinato, dado que sua razão de existência,


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enquanto burguesia, está na exploração da classe operária. É comum que a burguesia nacional sempre manobre as lutas da classe operária e dos camponeses contra o imperialismo e as sobrevivências pré-capitalistas por um caminho que não saia dos limites do capitalismo, que não se oponha aos imperialistas e latifundiários de forma demasiadamente radical, sob o receio de que uma revolução contra o imperialismo e o feudalismo possa se converter numa revolução dirigida também contra o próprio capitalismo. Desde que não seja manobrada e cooptada politicamente pelas maquinações do imperialismo, a burguesia nacional pode vir a cumprir um papel positivo na luta das massas trabalhadoras das colônias e das semicolônias contra o imperialismo. De modo geral, devido à opressão imperialista, na maioria dos países semicoloniais a burguesia nacional é formada por pequenos e médios empresários industriais. Somente em alguns poucos países semicoloniais, tais como Índia, Brasil, México, Indonésia, Argentina e outros, figuram também entre a burguesia nacional alguns estratos de capitalistas monopolistas. Nestes casos, a força destes capitalistas monopolistas das semicolônias que formam parte da burguesia nacional constituem uma ameaça real à capacidade de manutenção dos lucros monopolistas das corporações imperialistas, razão pela qual estas sempre busquem entravar a atividade industrial destes capitalistas monopolistas nacionais, embora em determinados contextos também possam fazer acordos com estes para a divisão do mercado interno. Parte da burguesia do país semicolonial que, em detrimento da burguesia nacional, se relaciona promiscuamente com o imperialismo estrangeiro, é a burguesia compradora, formada em geral pelos grandes comerciantes intermediários das relações de importação e exportação, intermediários das concessões de empréstimos e investimentos de capital das corporações imperialistas, agiotas, etc. A burguesia compradora é a grande burguesia do país colonial ou semicolonial, seu setor dominante e que está umbilicalmente ligado ao imperialismo. Nos países semicoloniais, é tremendamente comum que os maiores latifundiários sejam também grandes burgueses compradores. Os camponeses constituem nos países semicoloniais uma massa realmente expressiva numericamente. Na maioria dos países semicoloniais, até hoje os camponeses constituem a maioria da população trabalhadora, e mesmo em países semicoloniais onde os camponeses não mais são a maioria da população, constituem ainda uma parcela expressiva da mesma. Com a dominação imperialista, os camponeses padecem sob terrível fome e miséria. As grilagens de terras feitas contra a população camponesa, o aproveitamento dos desastres naturais com objetos políticos e econômicos escusos por parte de latifundiários, etc., fazem com que os camponeses sejam uma força extremamente decidida na luta contra o imperialismo estrangeiro. Do ponto de vista da propriedade da terra, os camponeses dos países semicoloniais se dividem em camponeses proprietários (que são donos das terras que trabalham), camponeses semi-proprietários (isto é, camponeses que são donos de parcelas limitadas de terras insuficientes para manterem seu sustento, sendo obrigados por isso a arrendar parcelas restantes de terras para que possam garantir suas condições de existência) e camponeses não-proprietários (que são, em geral, arrendatários das terras que cultivam, ou posseiros, comodatários, meeiros, etc.). Em praticamente todos os países semicoloniais, os camponeses não-proprietários e semi-proprietários são a maioria dos camponeses. Os camponeses proprietários, ainda que sejam donos das terras que cultivem, são também duramente explorados, seja pelos agiotas, que lhes fornecem empréstimos a taxas de juros extremamente elevadas, seja pelos comerciantes atravessadores, que lhes pagam nos períodos de safra preços extremamente baixos pela produção. Do ponto de vista diferenciação, os camponeses dos países semicoloniais dividem-se em três estratos, os camponeses ricos (isto é, camponeses que, ainda que trabalhem nas lavouras com suas famílias, empregam também um número relativamente grande de assalariados ou arrendatários), camponeses médios (isto é, que conseguem manter suas condições de existência exclusivamente do trabalho da terra, sem contratar assalariados ou arrendatários, ou só o fazendo de forma limitada, e sem que precisem vender sua força de trabalho) e camponeses pobres (o estrato inferior dos camponeses, os mais pauperizados, que possuindo ou arrendando pedaços pouco produtivos e extremamente diminutos de terras, precisam de alguma vender

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sua força de trabalho, proletarizando-se, para manter suas condições de existência). Os camponeses, não obstante a decisão que possuem na luta contra o imperialismo, são incapazes como pequeno produtores de assimilarem as leis que regem o desenvolvimento social e de dirigirem a luta revolucionária por um caminho correto. Para levarem a cabo a luta contra os latifundiários, as sobrevivências pré-capitalistas e os imperialistas de forma consequente e até o fim, os camponeses devem necessariamente se submeter à direção política da classe operária. A moderna classe operária das semicolônias é o mais combativo destacamento na luta contra o imperialismo, constituindo a força dirigente da revolução. É formada pelos operários das fábricas, meios de transporte, minas, plantações, etc. Nas semicolônias, a grande maioria da classe operária possui sua origem no campesinato pauperizado e empobrecido que migra do campo para as grandes cidades em busca de trabalho. Devido à opressão do imperialismo, é comum que a grande massa da classe operária dos países semicoloniais possua ainda uma ligação forte com o campesinato, ou que aufira grande parte de seus ingressos através de outras formas de trabalho não-assalariadas, tais como o “comércio informal”, a manutenção de um pequeno negócio, trabalhos ocasionais em lixões, etc. O desemprego massivo que assola a existência dos países da Ásia, África e América Latina torna a vida dos operários das semicolônias extremamente penosa, sendo obrigados em muitos casos a migrarem para os países imperialistas em busca de trabalho, onde por sua vez são vítimas de todo tipo de racismo e chauvinismo, e se empreguem por via de regra nos trabalhos pior remunerados. Por sua vez, as transformações que opera o imperialismo nas semicolônias, através da grilagem massiva de terras, decompondo a economia natural e expulsando os camponeses das terras, sem contudo gerarem proporcionalmente o desenvolvimento capitalista capaz de absorver pela grande indústria estes camponeses pauperizados, gera nas cidades e no campo uma massa imensa de miseráveis desempregados que, todavia, não chegam se proletarizar plenamente. A situação geral das semicolônias, de rampante atraso econômico, sobrevivências generalizadas do feudalismo e demais modalidades de exploração pré-capitalistas, industrialização bastante limitada, deformada, assim como de dependência externa, determinam que a revolução nestes países seja de caráter nacional-democrático, anti-imperialista e agrário anti-feudal. A classe operária constitui, do começo ao fim, a força dirigente da revolução democrática, assentando as bases necessárias para a constituição da aliança operário-camponesa, mobilizando principalmente os camponeses pobres para a realização das tarefas agrárias da revolução, assim como outros estratos democráticos e populares como a pequena burguesia e a burguesia nacional. A direção da classe operária sobre a revolução democrática é capaz de garantir que essa não se limite ao escopo das tarefas democráticas como a liquidação da propriedade latifundiária da terra ou o fim da dominação imperialista, mas que marche de forma ininterrupta para a revolução socialista, visando a construção da nova sociedade socialista e comunista. Os diferentes aspectos que demonstram o parasitismo e a decomposição do capitalismo em sua etapa imperialista O termo “parasitismo” utilizado por Lênin não é diferente da acepção que este, em geral, possui no senso comum: “parasitismo” se refere à ação de um organismo que se gruda ao corpo humano como um sanguessuga, somente retirando e pilhando para se manter, sem nada por em contrapartida. Pode-se compreender o capitalista parasitário então, como aquele que suga o suor e o sangue da classe operária e dos povos do mundo sem nada retornar em contrapartida, ou retornando em contrapartida um montante pequeno diante dos recursos sugados. Os capitalistas, todavia, ao menos durante os períodos iniciais de seu desenvolvimento e surgimento, não se manifestam como uma classe social parasitária. Expliquemos, pois: o capital, ao aparecer nas mãos do capitalista inicialmente como uma determinada quantidade de dinheiro, deve ser investido na produção de mercadorias (industrial ou agrícola), que por conseguinte, ao se concluir sua produção e realizá-las (isto é, vendê-las) no mercado, tal dinheiro voltará para as mãos do capitalista acrescido de uma quantidade de dinheiro excedente, a mais-valia. A esmagadora maioria da mais-valia recebida pelo capitalista, porém, não poderá


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ser gasta em seu consumo pessoal, pois assim o fazendo o capital que este utilizará para voltar a investir na produção permanecerá igual àquele investido na produção anterior, fazendo com que o mesmo se atrase em relação a outros capitalistas e se arruíne. Desta maneira, não gastando a mais-valia de forma improdutiva em consumo pessoal, o capitalista, ao contrário, agrega esta mais-valia ao novo capital que utilizará para investir na produção, tornando este um capital maior que o anterior, que este utilizará para comprar mais meios de produção e contratar mais operários assalariados. A esta acumulação da mais-valia com o fim de se reinvestir na produção para produzir quantidades maiores de mercadorias, contratando mais operários assalariados e comprando mais meios de produção, chamamos acumulação de capital. A esta nova produção de mercadorias por parte do capitalista, feita em escala maior que anterior, chamamos de reprodução ampliada capitalista. Observamos, pois, que muito embora os capitalistas extraiam a mais-valia através da exploração impiedosa dos operários assalariados, eles não podem se limitar a simplesmente gastar esta mais-valia em seu consumo pessoal, devem produzir mais, contratar mais, levando assim ao desenvolvimento maior e posterior das forças produtivas da sociedade. Em seus períodos iniciais de desenvolvimento, então, o capitalismo não manifesta ainda suas facetas parasitárias. Estudando as diferenças existentes entre a época concorrencial e a época monopolista do capitalismo, chegamos a uma importante conclusão que nos permite identificar os desdobramentos e os significados do parasitismo sob o capitalismo. A necessidade que possuem os capitalistas do período concorrencial de serem austeros no uso da mais-valia em seu consumo pessoal e de dedicá-la em sua esmagadora maior parte à acumulação de capital é condicionada pela dispersão da produção industrial entre muitos capitalistas, de estes concorrerem entre si e buscarem aumentar freneticamente a produção e a produtividade de suas empresas, modernizando-as tecnicamente, para produzirem mercadorias mais baratas, se apoderarem do mercado e arruinarem os concorrentes. Na época dos monopólios, porém, quando a produção e o mercado se encontram controladas por algumas imensas empresas capitalistas que dividem o mercado entre si, a mais-valia se mantém em níveis extremamente elevados devido à inexistência da livre concorrência nestes ramos monopolizados, ainda que os investimentos de capitais sejam pouco expressivos em comparação com a elevada mais-valia alçada. Desta maneira, torna-se desnecessário para o capitalista limitar seu consumo pessoal para que possa investir na produção. A partir daqui, montantes imensos da mais-valia extraída pelos capitalistas são gastas improdutivamente no consumo pessoal dos mesmos, na especulação financeira, no consumo de luxo, etc. O caráter parasitário assumido pelo capitalismo monopolista manifestou seu pico em tempos recentes. Conforme fora divulgado amplamente pela imprensa, chegou-se a um nível de esbanjamento tal que hoje, no ano de 2017, os oito maiores bilionários do mundo possuem, juntos, mais dinheiro que mais de metade do planeta, 3,6 bilhões de pessoas![15] Semelhante nível de esbanjamento e concentração de toda a riqueza do mundo num grupo seleto de bilionários capazes de se contar nos dedos jamais chegara sequer perto de existir em toda a história mundial, fazendo parecer algo pequeno o poder que os mais notórios senhores feudais, faraós e senhores de guerras que apareceram na história da humanidade já possuíram. Aspecto fundamental e atual do parasitismo do capitalismo imperialista é, também, o enorme peso que possuem hoje os monopólios da indústria bélica (a “indústria da guerra”) nas economias dos principais países imperialistas. Particularmente após a Segunda Guerra Mundial, esta forma de parasitismo passou a se manifestar de forma gritante no principal país imperialista do mundo, os Estados Unidos. Torna-se cada vez maior o número de crises capitalistas que estouram em grande medida pelas reduções de mercado para a indústria bélica, demandando sempre para esta a eclosão de novas guerras e conflitos militaristas para a recuperação de crises capitalistas. No ano de 1949, por exemplo, eclodiu nos Estados Unidos uma crise econômica de grandes proporções. Os grandes capitalistas monopolistas, particularmente da indústria bélica, passaram a demandar então a continuação de novas guerras para se recompensar os mercados perdidos após o fim da Segunda Guerra Mundial. A Guerra da Coréia, [15] Disponível no link: http://www.cartacapital.com.br/economia/oito-homens-tem-a-mesma-riqueza-que-os-3-6-bilhoes-mais-pobres-do-mundo

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iniciada no ano de 1950, e que deixou como saldo o genocídio de 3 milhões de coreanos pelo exército imperialista norte-americano e seus exércitos fantoches, foi fundamental para a recuperação econômica dos monopólios dos Estados Unidos. A partir do início do século XXI, testemunhou-se por parte do imperialismo norte-americano uma nova escalada militarista, que levou no ano de 2001 à agressão e à rapina imperialista contra o Afeganistão. No ano de 2003, uma nova guerra imperialista de agressão foi levada a cabo pelos Estados Unidos e seus outros aliados imperialistas, desta vez contra o Iraque. No ano de 2008, o volume gasto pelo governo dos Estados Unidos para manter a guerra imperialista contra o Iraque já chegava a cerca de 1 trilhão de dólares, parte majoritária da qual foi parar no bolso destes grandes monopólios militaristas, ainda que custassem muito caro à classe operária e ao povo dos Estados Unidos, levando ao aumento de todo tipo de impostos diretos e indiretos sobre os contribuintes, à intensificação da miséria e da carestia de vida, com o intuito de gerar superlucros aos capitalistas monopolistas. Foram constantes também, ao longo da década de 2000, provocações militaristas por parte do imperialismo norte-americano para desenvolver uma guerra de agressão contra a Venezuela, apoiando-se principalmente na Colômbia, país vassalo do imperialismo norte-americano. Não apenas na década de 2000 como também nos anos 2010, o imperialismo norte-americano não poupou esforços para tentar iniciar uma guerra imperialista de agressão contra a República Popular Democrática da Coréia, um país socialista, utilizando como peões a república fantoche da Coreia do sul e o Japão. Em 2011, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), organização de caráter militarista dos principais países imperialistas no mundo assim como de países subordinados seus e politicamente alinhados, iniciou uma guerra de agressão para a destruição e rapina completa da Líbia, dissolvendo arbitrariamente seu governo e levando a cabo massacres genocidas contra a população local. Também a partir de 2011, na Síria, os monopólios belicistas norte-americanos e de outros países passaram alçar grandes lucros monopolistas no fornecimento de armamento pesado e apoio logístico a grupos mercenários (vindos em geral de países como Qatar, Arábia Saudita e outros) para promover uma guerra de agressão contra o povo sírio e a derrocada do governo de Bashar Al-Assad, prevendo uma posterior guerra de agressão direta contra o país. A partir de 2015, os imperialistas norte-americanos passaram a promover também uma guerra de agressão contra o Iêmen, contando para isto com o apoio da submissa monarquia petro-feudal da Arábia Saudita (a quem fornecia todo tipo de armamentos e logística militar), que invadiu o país e neste promoveu massacres e crises humanitárias de proporções imensas (por conta da guerra de agressão provocada pelos Estados Unidos e a Arábia Saudita, se estima nos dias de hoje ao menos metade das crianças iemenitas estejam desnutridas). Atualmente, são visíveis os planos agressores do imperialismo norte-americano para provocar desestabilizações e novas guerras de agressão na América Latina, com a instalação recente de ao menos três bases militares suas em território da Argentina, na fronteira com o Brasil. Como resultado destes movimentos políticos de agressão, os gastos militares dos Estados Unidos somam atualmente o imenso montante de mais de 850 bilhões de dólares anuais, com este único país concentrando nos dias de hoje metade dos gastos militares mundiais. As bases materiais do parasitismo capitalista provocam também mudanças na superestrutura política e ideológica burguesa. A antiga ética protestante do capitalismo, por exemplo, dominante no período concorrencial do mesmo, que advogava moralmente uma vida austera, simples, e dedicada à produção e ao aumento da riqueza, dá lugar à ética do “consumismo” entre os capitalistas, do esbanjamento e dos gastos improdutivos excessivos, como resultado desta mudança resultante na base material do capitalismo a partir de sua entrada na etapa imperialista.

Viva aos povos em luta contra a tirania do imperialismo norte-americano!


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“A Petrobras e o Imperialismo”

A PETROBRAS E O IMPERIALISMO por Guilherme Nogueira

Dentre as muitas lutas que perpassaram nossa história em busca da afirmação da soberania, independência e de melhores condições de vida para nosso povo, poucas guardam tanta riqueza em ensinamentos e inspiram tamanhos sentimentos patrióticos como a da defesa intransigente de nossas reservas de petróleo. A unidade de diversos setores da sociedade brasileira em torno desta pauta, daqueles verdadeiramente interessados no desenvolvimento autônomo e na prosperidade de nosso país, atravessa as gerações e assume diferentes formas com o passar dos anos. Desde a luta pela criação do monopólio estatal, nas décadas de 30 e 40, passando pela luta de manutenção deste monopólio contra as investidas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso, até o nosso momento atual, em que somos impelidos a enfrentar novos ataques, principalmente após a descoberta dos campos do pré-sal. Desde já, é importante frisar que a luta em defesa da soberania sobre nossos recursos naturais, sobretudo o petróleo, sempre foi, e ainda é, uma luta da nação contra agressores estrangeiros e seus cúmplices ‘’nacionais’’. Isto significa que esta é uma luta do conjunto das classes sociais interessadas no desenvolvimento das potencialidades do Brasil - incluindo aqui os camponeses, profissionais liberais, pequena e média burguesia e, evidentemente, o proletariado - contra o imperialismo e seus agentes aliados. Portanto, estudar a questão do petróleo no Brasil é estudar a dominação imperialista sobre nosso país. Não queremos dizer com isto que esta questão abarca a totalidade dos problemas engendrados pelo controle monopolista sobre nossa economia, com todos os seus desdobramentos políticos, sociais, culturais etc. Mas afirmamos que a questão do petróleo é absolutamente exemplar para ilustrar como se dá este domínio, qual a sua extensão, profundidade, quais seus artifícios, bem como suas diversas consequências para nosso povo. Neste ano comemorativo, onde celebramos o centenário da revolução de Outubro e da publicação oficial do clássico de Lênin que homenageamos nesta edição especial, acreditamos que o estudo aprofundado desta questão não só reafirma a validade das formulações do dirigente bolchevique sobre o imperialismo, como também trás novas e valiosas informações para sua aplicação em nosso momento histórico, contribuindo, ainda que modestamente, para o enriquecimento deste inestimável tesouro da humanidade.

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1 - DA DESCOBERTA DO PETRÓLEO AO MONOPÓLIO ESTATAL: PETROBRAS, HISTÓRIA DE VITÓRIAS 1.1 Os antecedentes históricos Fontes que relatam sobre indícios da existência de petróleo no Brasil remontam ao século XIX, desde os tempos do império. Como este recurso é formado pela decomposição de material orgânico soterrados em grandes profundidades, durante milhões de anos, territórios de formações geológicas antigas, como é o caso do Brasil, naturalmente levantam suspeitas de possuírem reservas. Ainda em 1864 fora assinada pelo império a primeira concessão que se referia abertamente à exploração em busca de petróleo no Brasil, onde era então a província da Bahia, para o cientista britânico Thomas Denny Sargent. Poucos anos mais tarde, em 1869, outra concessão fora assinada, dada ao também britânico Edward Pellew Wilson, notório burguês que se estabelecera no Brasil. Ambos os projetos, apesar dos indícios documentados, foram encerrados após o fracasso em encontrar o petróleo propriamente dito. Porém, através da pesquisa do renomado jornalista Pery Cotta[1], sabe-se que desde os meados do século XIX até o final do império, em 1889, ao menos 150 cientistas estrangeiros, entre geólogos e paleontólogos, entraram em terras brasileiras para pesquisar a existência deste recurso em nosso país. A maioria dos resultados produzidos foram levados ao exterior e ignorados ou ocultados dos cientistas e autoridades do Estado brasileiro. No período posterior, conhecido como República Velha, continuaram as investigações, ainda que esparsas, em busca de petróleo. Nos primeiros anos do século XX eram ainda praticamente inexistentes as iniciativas brasileiras neste sentido, com possíveis descobertas sendo deixadas a sorte de especialistas estrangeiros. Os interesses econômicos e políticos destes países começavam a ser percebidos e despertar a resistência de alguns setores sociais em nosso país. Quando em 1909 o geólogo norte americano Israel Charles White publicou um estudo descartando a possibilidade de encontrar petróleo no Brasil, o cientista brasileiro Eusébio Paulo de Oliveira, futuro diretor do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, contesta suas conclusões em texto que pode ser encontrado nos anais da escola de Minas de Ouro Preto. À despeito de muitos especialistas estrangeiros afirmarem a inexistência do recurso em nossas terras, diversos monopólios imperialistas continuaram investindo na empreitada. Em 1926 a própria Standard Oil Company[2] - gigante monopólio petrolífero norte americano, criada pelo notório John D. Rockfeller - investira na busca por petróleo na Amazônia através de três companhias das quais dispunha o controle, sendo elas: The Amazon Corporation, American Brazil Exploration e Canadian Amazon Company Limited. Estas concessões foram anuladas com a subida ao poder de Getúlio Vargas. Neste período os investimentos estrangeiros coexistiram com as iniciativas nacionais, inclusive por parte do Estado, na busca de petróleo. Foram muitas tentativas, concentradas principalmente no eixo sul-sudeste, em coordenação com as tímidas tentativas de industrialização do país. Em 1919 foi criada pelo Serviço Geológico a Comissão Eusébio de Oliveira, que concentrou os esforços pela busca do recurso nos dez anos seguintes. Os resultados, aos poucos, foram se acumulando. Em 1921 no município de São Pedro (SP), fora registrada a primeira incidência de gás natural no país. No ano de 1927, o Estado de São Paulo contratara outro especialista norte americano, Chester Washburne, para dar seu parecer sobre o assunto. Após concluir a existência de petróleo no Estado, o cientista passa a defender sua exploração pela iniciativa privada, sobretudo estrangeira, tendo em vista a suposta incapacidade do governo brasileiro em realizá-la. Após as pesquisas de Washburne - que durante muitos anos só tiveram publicação em inglês - outra subsidiária da Standard Oil, a Companhia Geral Pan-Brasileira, passa a adquirir largas extensões de terras nas regiões de São Paulo indicadas pelo estudo. Alguns passam a especular que estas aquisições não são feitas para que se efetue a exploração, mas sim para impedi-la de ser realizada. No contexto da era Vargas, começa a surgir um acalorado debate na sociedade brasileira sobre a existência ou não de petróleo em nossas terras, assim como da interferência estran[1] COTTA, Pery - O Petróleo é Nosso? (1973) [2] A Standard Oil Company é a precursora da atual Exxon Mobil Corporation, atualmente uma das maiores petrolíferas privadas do mundo.


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geira neste assunto. O escritor Monteiro Lobato é uma das figuras públicas que entra neste debate e se empenha na busca pelo recurso no Brasil. O literato passa então a criticar o Serviço Geológico do Brasil e sua aparente falta de vontade política nas perfurações que efetuava pelo país. Chega a ridicularizar a negligência de algumas perfurações do órgão estatal, superficiais demais para encontrar petróleo, as quais chama de ‘’buracos de tatu’’. Lobato sistematiza sua polêmica com o governo Vargas e sua suposta ‘’má vontade’’ (na verdade o autor atenta para a negligência do Estado por conta da sua subordinação à interesses estrangeiros, como os da Standard Oil) para encontrar petróleo em seu livro ‘’O Escândalo do Petróleo’’, de 1936. Finalmente, o primeiro poço de onde jorrou petróleo de terras brasileiras foi perfurado no subúrbio de Salvador, em um bairro ironicamente chamado Lobato. Os indícios da existência do recurso neste bairro remontam ao ano de 1930, quando o engenheiro agrônomo Manoel Inácio de Basto foi investigar os relatos dos trabalhadores da região, que estariam usando um líquido preto como combustível de suas lamparinas. Desde 1932 o engenheiro enviava laudos e relatórios ao governo Vargas, afirmando ter encontrado indícios da existência de petróleo em seus estudos. Apenas após muita pressão de diversos setores da sociedade, o governo passou a dar atenção para o assunto. Em 1938 começaram os trabalhos na região e no dia 21 de Janeiro do ano seguinte, estava operando nosso primeiro poço. 1.2 A Campanha ‘’O Petróleo é Nosso!” No contexto da confirmação de jazidas em território nacional, o debate público se deslocou para a questão de como deveria ser feita a exploração deste valioso recurso. O país então se dividiu. De um lado estavam aqueles que defendiam a abertura deste mercado para o capital privado, incluso o estrangeiro. E do outro, aqueles que defendiam a constituição de um monopólio estatal, devido a imensa importância estratégica que o petróleo possui para qualquer nação, sobretudo para aquelas que ainda possuem a imperiosa tarefa de terminar sua industrialização e garantir sua segurança energética. Nas páginas da história, este segundo grupo ficou conhecido como o dos nacionalistas, uma geração de verdadeiros patriotas que lutaram pela construção de um país mais próspero e soberano para seus cidadãos. Os do primeiro, por outro lado, ficarão para sempre lembrados como entreguistas, conforme foram batizados já nesta época. Em 1941, novamente a Standard Oil dava sinais de sua sede pelo petróleo brasileiro, agora com a existência devidamente confirmada aos olhos de todos. O monopólio apresenta proposta para aquisição dos direitos de exploração do recurso, que fora rechaçada pelo então presidente da Conselho Nacional do Petróleo (CNP)[3], General Horta Barbosa. Novamente segundo informações trazidas por Pery Cotta, a companhia americana passa então a criar toda uma série de entraves para aquisição dos equipamentos necessários às perfurações de exploração na Bahia. O monopólio estava decidido a inviabilizar esta produção por qualquer outro que não fosse a própria Standard Oil. Com a queda de Vargas em 1945 e a ascensão de Gaspar Dutra, a situação se altera em favor dos monopólios norte americanos. Com a constituição de 46 abrindo um precedente para a exploração pelo capital estrangeiro do ramo minerador, Dutra apresenta um projeto de lei para alterar os marcos regulatórios da exploração petrolífera de acordo com a nova constituição. O projeto foi chamado de ‘’Estatuto do Petróleo’’ e afirmava a incapacidade da estatização do ramo no país, devido a suposta falta de verba pública e de pessoal técnico especializado. Defendia, como alternativa, a abertura para parcerias com o capital privado, não importando se era brasileiro ou estrangeiro. O ‘’Estatuto do Petróleo’’ acalora a discussão pelo país e se espalha até os meios militares. No Clube Militar acontece um grande embate entre as posições entreguistas, representadas pelo General Juarez Távora, e os nacionalistas, encabeçados pelo General Horta Barbosa. Em 1948 da resistência ao estatuto, que estava em tramitação no congresso, nasce a campanha que entrou para a história com o nome de ‘’O Petróleo é nosso!”, que reunia trabalhadores, militares, [3] O Conselho Nacional do Petróleo havia sido criado por Vargas em 1938, no intuito de regular a disputas econômico-ideológicas que se travavam em torno do petróleo.

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estudantes e amplos setores nacionalistas e progressistas da sociedade brasileira na defesa deste inestimável recurso. Deste movimento destacaram-se lideranças progressistas, sobretudo entre os militares, como o próprio Horta Barbosa, além do General José Pessoa e o General Felicíssimo Cardoso. Este último receberia a alcunha de ‘’General do Petróleo’’ ao organizar o semanário ‘’Emancipação’’, publicação de grande valor para a posterior criação da Petrobras. O movimento, após consolidado, se voltou para a figura de Getúlio Vargas, que retornava ao cenário político, desta vez alinhado com forças progressistas e de esquerda. Neste contexto, Vargas prometera em discurso proferido na Bahia por ocasião de sua campanha eleitoral em 1950, a criação de um monopólio estatal para o setor petrolífero no Brasil. A campanha para sempre figurará na história brasileira como um dos mais amplos, coesos e bem sucedidos movimentos políticos que nosso país já viu. Conquistou a simpatia de diversas classes sociais, com destaque aos estudantes universitários, que desempenharam papel de destaque. Fora o assédio despudorado de um dos maiores conglomerados empresariais do mundo, um gigantesco e aberrante monopólio como a Standard Oil, que despertara a consciência nacionalista dos elementos mais progressistas da sociedade brasileira, para que organizassem este grande movimento de massas que bravamente defendera os interesses de nosso país. O proletariado, não tendo neste momento um Partido Comunista maduro, consequente e forte o bastante para encabeçar esta luta, ficou a reboque de elementos da pequena e média burguesia, ainda que tenha desempenhado papel considerável em muitas batalhas - e mesmo decisivo em batalhas posteriores, como veremos adiante. É importante destacar também que Octávio Brandão, importante dirigente e um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil-PCB-SBI (Seção Brasileira da Internacional), em 1922, foi um dos pioneiros na defesa da existência de petróleo em solo brasileiro, quando, já em 1917, ao estudar a questão, defendia indícios da existência de petróleo em 14 territórios de Alagoas. Em sua obra, Canais e Lagoas, onde Octavio Brandão defende a existência de petróleo no Brasil, também defende a exploração de nossas riquezas naturais pelo povo brasileiro, em contraposição à dependência do Imperialismo britânico, chamado de “sanguessugas insaciáveis” por Octávio Brandão. O Partido Comunista do Brasil-PCB, no pós-guerra tomou ativo papel na campanha do Petróleo é Nosso. No final dos anos 40, o periódico do Partido, Tribuna Popular - Unidade - Democracia - Progresso lançou a matéria “Manobras Imperialistas contra o Petróleo Brasileiro”, onde denunciaram o “conluio de brasileiros na montagem da Companhia de Gás Esso, com privilégios descabidos”(PENNA, Lincoln, p.84, 2005). Mesmo com o Partido posto na ilegalidade em 1947, continuava a denunciar as tentativas de rapina do petróleo brasileiro. Em texto publicado na Revista Problemas de Fevereiro de 1948, se escreve: “Os comunistas — e com eles todos os patriotas — entendem que a exploração do nosso petróleo é uma imposição do nosso progresso e da defesa nacional. Por isso mesmo, nosso petróleo deve ser explorado por brasileiros e, em primeiro lugar, pelo Estado. Trata-se duma riqueza cuja exploração — da extração ao comércio do produto industrializado — exige uma verdadeira organização monopolista. E como a experiência vem confirmando aqui e em todo o mundo a elasticidade do “espírito patriótico” do capital privado, e muito especialmente dos trustes sem pátria, cabe ao Estado assegurar, a bem da segurança nacional, o monopólio de um produto tão relevante. Esta, a tese verdadeiramente patriótica, compreensível para todos os brasileiros: é a tese da segurança do território nacional, primeira condição para nossa contribuição à segurança dos povos das Américas e da paz mundial. Em lugar disso, que nos oferecem? Atente-se bem na monstruosidade anti-nacional que se nos propõe. Já não se trata apenas da transferência a um outro Estado, mesmo sendo nosso “aliado”, do domínio sobre o petróleo de nossas terras — o que já seria uma traição sem nome. Trata-se de entregar nosso petróleo ao controle de um truste. — a “Standard Oil” — já condenada em seu país de origem por atentados aos interesses nacionais — sob a forma de 1.460 sabotagens às leis dos Estados Unidos.” Astrojildo Pereira, em 1948, em artigo intitulado “Processo, Petróleo e o resto”, conclui que a cassação do Partido e dos mandatos dos comunistas, possuía como objetivo a proliferação dos interesses dos trustes petrolíferos no Brasil. Dentro do Partido, de imediato, ocorria uma luta interna entre duas posições sobre a questão do petróleo: uma que defendia a exploração de petróleo por parte de “capitalistas nacionais” e os que defendiam o princípio do mono-


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pólio estatal. Em Janeiro de 1948, a posição de defesa do monopólio estatal é assumida como posição oficial do Partido. Prestes comenta sobre a posição anterior: “Há quem nos acuse de, na época da Constituinte, não ter colocado em discussão a questão do monopólio estatal do petróleo. É verdade, naquela época ainda não se falava de monopólio, e também, nossas dificuldades eram tão grandes que eu propus o seguinte: que se podiam fazer contratos para exploração do petróleo, mas regidos por uma emenda semelhante à da Constituição do México, que frisava que nenhum capital imperialista investido no País poderia apelar para o poder da nação de origem, contra os interesses nacionais.” Com a posição firmada em torno da defesa do monopólio Estatal os comunistas também alcançaram posições de destaque na campanha dos nacionalistas em defesa do nosso petróleo, como ganhando posições de destaque no interior do Centro de Defesa do Petróleo e o direcionando para maior radicalidade. Nesse processo, mesmo um antigo defensor do regime de partilha, como o General Juarez Távora tendeu a defender a posição do monopólio estatal, além de outros setores energéticos. O desfecho desta luta se deu de forma definitiva em 03 de outubro de 1953, com a aprovação da lei nº 2004, que instituiu o monopólio estatal do petróleo e a criação Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), assinada por Getúlio Vargas. Até hoje, este é um marco de uma das maiores vitórias que o povo brasileiro impôs ao imperialismo. 1.3 O pré-sal e a Petrobras hoje Nos primeiros anos de sua criação, a Petrobras amargou sucessivos insucessos em experiências exploratórias pelo país. Imediatamente os ideólogos do entreguismo saíram para afirmar a incompetência da estatal. Porém a companhia insiste e, aos poucos, vai acumulando êxitos. Em 1963 a Petrobras faz jorrar petróleo do Campo de Carmópolis, em Sergipe, conseguindo pela primeira vez resultados positivos fora da Bahia. Ainda nos anos 60, a empresa registra resultados positivos na exploração marítima, na bacia continental - faixa próxima ao continente e com águas pouco profundas, de até 200 m - e a aquisição de sua primeira plataforma. Na mesma década também entrou no ramo de refino, com a construção da Refinaria Duque de Caxias (Reduc), no Rio de Janeiro. E no setor petroquímico, com a criação da subsidiária Petroquisa. O Cenpes (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento) foi criado em 1968, para ser o setor de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia da estatal. Imediatamente se destaca e consolida-se como o maior centro de pesquisa aplicada da América Latina, rendendo vários prêmios e reconhecimentos internacionais com o passar dos anos. Até os dias de hoje desempenha papel fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, sendo o maior registrador de patentes em território nacional. Com o tempo, a Petrobras foi se consolidando como a nossa mais importante empresa nacional. Sua condição vantajosa de monopólio estatal diante de imensas reservas, diversidade de recursos - naturais e humanos, bem como posição privilegiada diante de um mercado consumidor pujante como o brasileiro, alçou-a até a posição de uma das mais importantes companhias integradas de energia do mundo. Mesmo no único ponto da cadeia produtiva onde ela não dispôs desde sempre do monopólio assegurado, que é a de venda de derivados no varejo (gasolina, diesel, etanol, etc.), sua condição privilegiada e consequente capacidade de planejamento colocou-a na liderança nacional, através BR Distribuidora. Hoje, esta subsidiária dispõem de 7931 postos espalhados por todo o país, vendendo por ano R$ 100 bilhões em combustíveis e com controle assegurado de 40% do mercado. Segundo a tese de doutorado do economista Marcelo Sartorio Loural, a Petrobras foi responsável por R$ 90 bilhões em investimentos produtivos[4] no Brasil em 2013. Isto equivale ao dobro do que foi investido pela Vale e outras 72 empresas somadas - que investiram, respectivamente, R$ 25 e 20 bilhões no mesmo ano. Estima-se que isto represente 10% de todo o investimento produtivo realizado neste ano. O economista também atenta ao fato da Petrobras dinamizar uma série de outras industrias no país, como a naval e de maquinaria pesada. Em 2006, a empresa anuncia a maior descoberta petrolífera de sua história: a existência de petróleo na camada pré-sal da costa brasileira. Foram muitos os especialistas que afirmaram que se tratava da maior descoberta do ramo nas últimas décadas. E definitivamente a maior do [4] Entende-se por investimento produtivo todo aquele que gera uma estrutura produtiva perene e um incremento na capacidade produtiva.

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século XXI até este momento. São reservas confirmadas de ao menos 100 bilhões de barris. Segundo o Instituto Nacional de Óleo e Gás da UERJ, existem 90% de chances de haverem 170 bilhões de barris e 10% de chance das reservas serem da ordem dos 300 bilhões de barris! São números que imediatamente colocam o Brasil como dono de uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Supondo que a modesta e muito provável prospecção dos 170 bilhões de barris seja confirmada, estaríamos atrás apenas da Venezuela e Arábia Saudita. Caso os números atinjam os 300 bilhões, menos prováveis, mas não impossíveis, as reservas brasileiras imediatamente se tornam as maiores que existem no planeta. O óleo da camada pré-sal é leve, de excelente qualidade e com alta cotação no mercado internacional. Se seguirmos trabalhando com os números de 170 bilhões de barris, podemos calcular muito modestamente o valor destas reservas em 30 trilhões de reais![5] Desde esta descoberta, o mercado financeiro voltou inteiramente seus olhos para o Brasil e a Petrobras. A empresa foi considerada em 2010 a segunda maior da América Latina em valor de mercado. Seus lucros, sempre ascendentes, foram para a casa dos US$ 20 bilhões ao ano; seu fluxo de caixa ultrapassa os US$ 300 bilhões e a sua produtividade não para de aumentar. Entre 1997 e 2007, a empresa valorizou 1200%. As descobertas do pré-sal, somadas à condição privilegiada da Petrobras, sobretudo com o novo marco regulatório que instituía o regime de partilha para estes campos, explicavam tamanho êxtase no mercado financeiro. A valorização especulativa, entretanto, se voltaria contra a própria empresa nos anos seguintes, devido a sucessivas desvalorizações relativas à má publicidade e outros problemas gerados pela operação Lava Jato. Isto apesar de seu patrimônio, lucratividade e fluxo de caixa terem se mantido no mesmo nível e a produtividade ter continuado aumentando substancialmente. O valor de mercado, que havia atingido os R$ 380 bilhões em 2010, caíra para US$ 128 bilhões em 2014, continuando em queda no ano seguinte, conseguindo alguma recuperação apenas durante o final de 2016. Vale ressaltar, neste momento, outros fatos importantes que pesam nesta discussão sobre o pré-sal. Primeiramente, este é um termo que nomeia a camada geológica que se encontra a baixo do nível do sal marítimo, em regiões ultra profundas que vão de 6 a 8 mil metros de profundidade em relação ao nível do mar. São camadas de difícil acesso e que, por este motivo, não haviam gerado resultados quanto a existência de recursos naturais. Portanto, a primeira confirmação de petróleo nestas profundidades foi realizada pela Petrobras, revolucionando a indústria do petróleo para sempre. Não só a confirmação, mas também a primeira experiência bem sucedida de extração de óleo destas profundidades foi realizada pela estatal em 2008. Em concordância com a tradição histórica, não foram poucas as vozes de ‘’especialistas’’ estrangeiros, sobretudo europeus e norte americanos, que afirmavam a inviabilidade da exploração do pré-sal brasileiro e a incapacidade da Petrobras em realizar esta empreitada. Uma vez mais, a nossa estatal calou os oposicionistas e carniceiros, atingindo resultados incontestáveis. Em meados de 2016, alcançou a notável marca de 1 milhão de barris produzidos por dia só nas áreas do pré-sal, o que representa quase metade de toda nossa produção nacional. Também no que se refere aos custos de extração, os resultados são dignos de nota. Graças ao acúmulo de conhecimento e a excelência técnica em águas ultra profundas, a Petrobras produz o barril do pré-sal a um custo de US$ 7 dólares, contra uma média de US$ 15 praticado por seus concorrentes diretos. Estes dados não só confirmam o fato de que o Brasil está sentado em cima de uma das maiores riquezas do mundo, como também de que nossa estatal é a única capaz de explorar este recurso com excelência tecnológica. Excelência conquistada através de anos de pioneirismo, assumindo riscos e desafios que foram superados pelo esforço de sua massa trabalhadora - que deveria receber todos os reconhecimentos possíveis por parte da sociedade brasileira. Testemunha em favor disto o fato de que a Petrobras recebeu em 2015, pela terceira vez, o reconhecido prêmio OTC Distinguished Achievement Award For Companies, Organizations and Institutions, uma espécie de ‘’oscar’’ das companhias de petróleo. O prêmio foi dado em razão de suas tecnologias desenvolvidas para águas ultra profundas. Esta que é, não por acaso, a única área onde o Brasil possui inconteste liderança tecnológica mundial. [5] Calculamos com a cotação do barril de petróleo brent hoje (09/01/2017), que está em US$ 56,00 e a cotação do dólar, que está em R$ 3,20.


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2 - A PETROBRAS ENTRE A CRUZ E A ESPADA: ROTEIRO DO DESMONTE DE UMA ESTATAL 2.1 O início de novos ataques à Petrobras Como já foi demonstrado ao longo deste resgate histórico feito sobre a Petrobras, sempre houveram interesses de grandes monopólios estrangeiros rondando nossas riquezas petrolíferas e ansiando tomar o lugar privilegiado diante destes recursos ocupado pela nossa estatal. É ilusão pensar que o imperialismo descansa e crer que mesmo por um segundo, deixou de espreitar nossas riquezas, esperando por uma nova oportunidade para fazer o seu saque. As primeiras reações mais contundentes que foram organizadas contra nossa estatal se deram nos anos 90, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência do Brasil. Este assecla da ideologia neoliberal, cão de guarda fiel dos interesses mais escusos do capital estrangeiro em nosso país, tomou atitudes pela ‘’desregulação’’ dos mercados e abriu as portas para a entrada violenta dos capitais monopolistas. Estes capitais precisavam encontrar fontes de valorização, que foram prontamente oferecidas pelas conhecidas privatizações. A Petrobras foi diretamente afetada por estas políticas quando FHC sancionou a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, que encerrava seu monopólio de mais de 40 anos. A partir disto foi criado a Agência Nacional do Petróleo (ANP), responsável pela fiscalização e regulação do setor, agora aberto para a iniciativa privada - incluso estrangeira. No mesmo período, também impulsionado pelas políticas de FHC, a Petrobras passa por um processo velado de privatização, através da ‘’abertura de capital’’. A empresa passa a emitir papéis nas bolsas de valores (na bovespa e em bolsas norte americanas) em grande quantidade, inclusive títulos com direitos a voto no conselho administrativo. Era o começo do fatiamento da estatal para a iniciativa privada. Estes ataques foram coroados pela tentativa, também impulsionada por FHC e apoiada por Pedro Parente, atual presidente da companhia e parte do conselho administrativo na época, de modificar o nome da empresa para ‘’Petrobrax’’, com a justificativa de que a terminação ‘’brax’’ é de mais fácil pronuncia no inglês. Era a declaração aberta de que pretendiam colocar a empresa à disposição dos monopólios imperialistas, sobretudo norte americanos. A privatização completa da companhia só foi impedida por um vigoroso e heróico movimento grevista que unificou a categoria petroleira que, imbuída de poderoso sentimento nacional, impôs uma das maiores derrotas ao entreguismo desavergonhado de FHC. Os trabalhadores finalmente tomavam a dianteira na defesa dos recursos estratégicos do país. Vale a pena ressal-

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tar que, apesar de haverem barrado o avanço da privatização, as perdas dos anos 90 não foram completamente revertidas. Mesmo que a união federal seja a acionista majoritária da Petrobras, esta ainda está em boa parte nas mãos do capital privado, seja ‘’nacional’’ ou estrangeiro. Vejamos a disposição acionária da Petrobras: 46% sob controle do Estado brasileiro (maior acionista); 36% sob controle do capital internacional (Bank of New York, Citibank, Credit Suisse, HSBC, Santander, BNP, GAP, L.P. Morgan, Blackrock) e os outros 18% nas mãos do capital privado nacional[6]. Os fundos de investimentos como a Blackrock e L.P. Morgan, são também acionistas dos grandes monopólios do petróleo, como Chevron, Exxon Mobil e Shell. Como já ressaltado muitas vezes neste texto, monopólios que nunca deixaram de salivar diante das reservas brasileiras. Outro dado tão interessante quanto trágico é que a Petrobras enviou para o estrangeiro, na forma de lucro para acionistas preferenciais, mais de US$ 41 bilhões de dólares entre 2004 e 2013. Os mesmos acionistas que hoje, após os desdobramentos da Lava Jato, se esforçaram para colocar a empresa no banco dos réus em tribunais norte americanos. Uma flagrante perda de soberania desta que é uma empresa estatal, logo um instrumento e parte do próprio Estado brasileiro. 2.2 A mudança do marco regulatório e a entrega do pré-sal Com a ascensão do governo Lula e a descoberta de petróleo na camada pré-sal, mudanças importantes ocorreram na regulação da atividade petrolífera em relação ao período de FHC. Se os petistas não mexeram uma palha para acabar com o vergonhoso modelo de concessão à iniciativa privada, já garantida para os poços existentes, ao menos criaram um novo marco regulatório para a exploração específica do pré-sal. O novo marco foi instituído pela lei 12.351/10, que estabelecia o regime de partilha para a exploração do pré-sal. Se este é um projeto que por si só já possui inúmeros problemas, tendo sido criticado por entidades sindicais e por nós da União Reconstrução Comunista em texto publicado pelo Movimento Bandeira Vermelha[7], ao menos garante que a Petrobras deve ser proprietária de um mínimo de 30% de todos os campos, além de operadora única de todos eles. Ou seja, neste marco existe uma garantia institucional, amparada em lei de que a Petrobras teria participação garantida e controlaria todo o processo de extração - controlando como, quando e quanto de óleo seria produzido - nestes poços. Estas mínimas garantias foram atacadas por um projeto de autoria do notório entreguista José Serra, então ocupando o cargo de Senador Federal. A PLS 131, aprovada e sancionada nos últimos meses de 2016 pelo governo de Michel Temer, garante o fim do regime de partilha e ‘’desobriga’’ a Petrobras de ser sócia e operadora única dos poços do pré-sal. É sempre válido lembrar que em 2011 José Serra figurou em documentos vazados pelo wikileaks, que demonstravam que o então Senador teria prometido para Patrícia Pradal, diretora de Desenvolvimento de Negócios e Relações com Governos do monopólio norte americano Chevron, a mudança no modelo de partilha e o retorno às concessões. O tucano cumprira sua promessa. Segundo a argumentação do projeto de Serra, a Petrobras estaria passando por dificuldades financeiras e não teria mais condições de arcar com os investimentos que seriam demandados, caso tivesse que operar os poços e ser sócia obrigatória de ao menos 30% de todos eles. Bobagem descabida, como já amplamente demonstrado pela Associação de Engenheiros da Petrobras (AEPET)[8]. Além do endividamento da empresa ser em grande medida fruto de manobras[9], é absurdo falar dos investimentos no pré-sal como um ‘’fardo’’, uma vez que o retorno financeiro futuro é absolutamente garantido. Se a Petrobras está endividada, boa parte desta dívida provém justamente de empréstimos adquiridos para a descoberta e viabilização da exploração do pré-sal. Foi a estatal que assumiu a aposta de procurar e viabilizar a exploração deste petróleo em camadas ultra profundas, empreendimento tão pioneiro quanto arriscado. Vale lembrar que a área onde fora feita esta descoberta estava originalmente concedida para mapeamento pela anglo-holandesa Shell, [6] Dados referentes ao ano de 2014, retirados de estudo de Nazareno Godeiro, coordenador do Instituto Latino Americano de Estudos Socioeconômicos (ILASE). Vale ressaltar que estes números, por se referirem a ações compradas e vendidas em bolsas de valores, podem apresentar variações. [7] Ver o texto ‘’Leilão de Libra e a submissão ao capital estrangeiro’’, publicado outubro de 2013. Encontrado em: http://movimentobandeiravermelha. blogspot.com.br/2013/10/leilao-de-libra-e-submissao-ao-capital-estrangeiro.html [8] Ver o texto ‘’Aepet desmonta argumento entreguista sobre pré-sal’’. Encontrado em: http://www.aepet.org.br/noticias/pagina/13876/AEPET-desmonta-argumento-entreguista-sobre-pr-sal [9] Boa parte do crescimento do endividamento da Petrobras se deu por conta da desvalorização do real frente ao dólar, consquencia direta da política econômica do governo. Além disso, a companhia subsidiou o preço da gasolina para o público durante anos, medida de responsabilidade também do governo federal, sobretudo para contenção da inflação. É injusto que a própria Petrobras arque sozinha com todo o ônus destas políticas.


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que declarou o território seco de petróleo. É, portanto, insensatez ou falta de caráter exigir que a Petrobras abra mão dos frutos de seus investimentos agora que eles estão maduros e gerando riquezas para a empresa e o país. O pré-sal, afinal de contas, é um lastro de R$ 30 trilhões. Isto torna a dívida da Petrobras - da ordem dos US$ 130 bilhões, uma verdadeira merreca. Na prática, o projeto de Serra abre a perspectiva de que a totalidade das reservas do pré-sal sejam exploradas pelo capital privado. Como não existe companhia petrolífera privada no Brasil que seja capaz de assumir tamanho empreendimento, isto não significa outra coisa além da entrega de nossos recursos energéticos mais estratégicos para a exploração dos monopólios imperialistas. Para demonstrar que não exageramos quando dizemos ‘’entrega’’, analisemos os antecedentes: na venda recente e já concretizada de um campo para a iniciativa privada, o Campo de Carcará, uma das jóias do pré-sal, houve flagrante prejuízo ao interesse nacional. O negócio foi fechado com o monopólio norueguês Statoil por míseros US$ 2,5 bilhões. Em qualquer cálculo conservador, estima-se neste campo existam reservas que valem ao menos US$ 10 bilhões. Em qualquer lugar do mundo, isto não é uma venda, mas um presente. Para 2017 estão agendados novos leilões para licitar outras áreas do pré-sal. Se na época dos leilões de libra os prejuízos aos interesses nacionais já foram grandes; na conjuntura atual, de abertura e submissão completa ao imperialismo, o saque será completo. Isto se os petroleiros, demais trabalhadores e outros setores da sociedade não conduzirem uma luta tenaz contra este verdadeiro crime de lesa-pátria. 2.3 Os Planos de desinvestimentos e a destruição da Petrobras ‘’por dentro’’ Se a abdicação do pré-sal é parte fundamental da estratégia cínica de destruição da Petrobras, esta só se completa com os dois Planos de Negócios e Gestão (PNG) elaborados a partir da deflagração da operação Lava Jato. Sendo o primeiro deles realizados por Aldemir Bendine, indicado por Dilma Roussef para a presidência da companhia em 2015, e o segundo por Pedro Parente, indicado por Michel Temer em 2016. O objetivo destes planos é, anunciadamente, a geração de caixa imediato para redução do endividamento da empresa, bem como a distribuição de dividendos para seus acionistas. Para tanto recorrem aos cortes, desinvestimentos e privatizações. Na teoria, o PNG elaborado a partir da presidência de Pedro Parente substitui o de Bendine. Os dois se diferem pelo período planejado e pelos valores da ‘’desalavancagem’’ que é proposta. Enquanto o segundo elaborou um plano de contingenciamento e alienações (privatizações) no valor de US$ 98,4 bilhões para o período de 2015/2019, o primeiro o fez no valor de US$ 74,1 bilhões para o período de 2017/2021. Entretanto a essência continua sendo a mesma. Ambos se tratam, na prática, de projetos dissimulados de um desmonte premeditado do sistema Petrobras. Vale ressaltar o papel igualmente nocivo desempenhado pelas políticas do PT e do PMDB em relação à estatal. Sobretudo, chama a atenção o valor proposto pelo presidente indicado por Dilma - 25% superior ao que foi propostos por Pedro Parente. A diferença é que Parente parece se esforçar para acelerar este processo, concentrando os cortes logo nos dois primeiros anos, ao contrário de Bendine. Em suma, a direção de ambos os governos fizeram a opção política de sacrificar a Petrobras diante de dificuldades econômicas para apaziguar a ira de elites financeiras. No PNG divulgado por Aldemir Bendine dizia: ‘’(o plano) têm como objetivos fundamentais a desalavancagem da companhia e a geração de valor para os acionistas (...)’’. Do ponto de vista legal, esta declaração pode mesmo ser interpretada como inconstitucional. Como é de conhecimento geral, a Petrobras é uma empresa estatal. Apesar de haver participação do capital privado em sua composição, ela é uma empresa de economia mista, uma Sociedade Anônima e portanto está submetida à legislação federal enquanto tal. De acordo com a Constituição de 1988, toda empresa estatal deve se submeter às regras gerais da Administração pública (artigo 37 da Constituição). Estas devem existir enquanto extensões e instrumentos do Estado, como executoras de suas políticas econômicas. Segundo os artigos 237 e 238 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404, de 17 de Dezembro de 1976) estas empresas devem servir aos interesses públicos acima dos privados. Logo, as declarações de Bendine atentam contra a própria legalidade burguesa, que se revela muito aquém da capacidade de cumprir plenamente suas próprias disposições[10]. [10] Para maiores informações sobre os descumprimentos legais no atual PNG e a incapacidade do Estado burguês, consultar texto ‘’A Importância Do Controle Estatal Sobre o Petróleo no Brasil’’, do livre-docente em direito econômico pela USP, Doutor Gilberto Bercovici.

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Nas ‘’vendas de ativos’’ - que no caso da estatal, reforcemos, devem sempre ser tratadas como privatizações - já estão confirmadas a entrega das seguintes subsidiárias: Gaspetro e Transportadora Associada de Gás S.A., além da busca por ‘’parceiros’’ para negociarem a BR Distribuidora e as participações na Braskem. Convém analisarmos um pouco mais de perto o papel destas empresas para a companhia e para o povo brasileiro, bem como as condições em que estão sendo realizadas suas vendas. 2.3.1 - Gaspetro Empresa responsável pela gestão em sociedades que atuam na importação, exportação, armazenamento, distribuição e comercialização de gás natural no Brasil, a Gaspetro foi fundada em 1998, com a responsabilidade de gerir todo este complexo. Possui controle majoritário de 19 empresas do ramo e dispõem de redes de gasodutos, centrais de armazenamento, terminais de re-gaseificação, etc. O teor e a abrangência de seus negócios imediatamente a colocam como uma das subsidiárias mais estratégicas do sistema Petrobras. Válido lembrar que, assim como o petróleo, o gás natural é fonte de conflitos, inclusive armados, por todo o planeta. Vide a guerra civil em curso na Síria.[11] Nada disso impediu que Bendine organizasse a venda de 49% da Gaspetro por míseros R$ 1,9 bilhão. Apesar de estar de acordo com a precificação no mercado - que não deixou de ser feita por um banco - este valor está absolutamente aquém de fazer jus à importância estratégica que esta empresa possui para o abastecimento e a segurança energética do país. Além do mais, é valor irrisório frente ao endividamento total da Petrobras, que seria a justificativa oficial da venda, cabendo nos perguntar se este é um caminho minimamente razoável para a resolução do problema. O escândalo se completa quando vemos que a empresa foi vendida para o grupo empresarial japonês Mitsui, que já possuía participação em 8 das 19 subsidiárias da Gaspetro. Com esta mudança na disposição acionária, boa parte destas empresas deixam de ser públicas, passando a ser majoritariamente controladas pelo monopólio nipônico. Este monopólio, então, passa a deter boa parte do ramo no Brasil. Além do mais, a Mitsui foi citada em delações da operação Lava Jato como responsável pelo pagamento de propina para o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Os diretores do monopólio negaram o fato e as investigações não foram adiante, como aparentemente manda o protocolo nesta operação quando o assunto são empresas estrangeiras. Trataremos disto mais adiante. 2.3.2 Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG S.A.) A TAG S.A. é outra vítima do fatiamento do sistema Petrobras para ser ofertada ao capital estrangeiro. Antes uma das subsidiárias da Gaspetro, foi desmembrada e está sendo vendida para o fundo de investimentos canadense Brookfield. A empresa controla uma malha de gasodutos de 6,4 mil km de extensão, nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste do país. Novamente segundo informações trazidas pela Aepet, sobretudo a malha do sudeste continua extremamente rentável, sendo uma das maiores geradoras de caixa para a companhia nos últimos anos. Por estes dutos da malha sudeste escoarão todo o gás produzido pelo pré-sal, seja aquele para consumo interno ou para a exportação. Isto significa que este é um empreendimento sem riscos e com perspectivas de incremento substancial nas suas operações nos próximos anos. A TAG S.A. está sendo vendida por R$ 17 bilhões, sob a justificativa, sobretudo, de seu alto endividamento. Porém não existem garantias de que a Brookfield assumirá as dívidas da empresa, que não serão quitadas com o valor que está sendo pago pela sua ‘’alienação’’. Além do mais, a Petrobras ficará refém dos canadenses, pois terá de pagar-lhes pelo transporte do gás do pré-sal. [11] Jornalistas e analistas políticos destacam que uma das principais causas do conflito na Síria, com todas as intervenções praticadas pelo imperialismo, se encontra em disputas por rotas de gasodutos, onde os Estados Unidos e a União Européia buscam favorecer seus aliados do golfo (Arábia Saudita, Catar, Kuwait) em detrimento dos países “não-alinhados”, como o Irã e a própria Síria. Em suma, trata-se de enterrar o projeto do gasduto “Irã-Iraque-Síria”, que levaria gás natural até a Europa, para promover outros, como o “Nabucco” ou o gasoduto “Qatar-Síria-Turquia”, ambos mais vantajosos ao imperialismo norte americano. Para mais informações, consultar série de textos “Balé da Energia”, de Pepe Escobar. Encontrado em: http://redecastorphoto.blogspot.com.br/search/label/Nabucco?updated-max=2014-12-05T02:55:00-02:00&max-results=20&start=2&by-date=false


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2.3.3 Braskem Sendo uma parceria entre a Petrobras e a Odebrecht, a Braskem é a maior empresa petroquímica da América Latina e a maior produtora de biopolímeros do mundo. A empresa é dona dos três maiores pólos petroquímicos do Brasil; é grande transformadora de nafta e produz benzeno, etano, propeno, butadieno e correntes aromáticas. A participação da Petrobras, com 36,1% do total da empresa e 47% das ações com direito a voto, espera levantar US$ 2,5 bilhões, o que configuraria, caso efetuada, uma das maiores operações de venda de ativos da história da Petrobras, junto da venda do campo de Carcará. Segundo declarações recentes de Parente, este negócio não foi concretizado devido à resistências por parte dos acionistas da Petrobras. Isto quer dizer que mesmo estes senhores que, conforme nos contam seus históricos, nunca estiveram minimamente interessados na prosperidade da companhia e menos ainda em que esta cumpra sua função pública; que se preocupam única e exclusivamente com a rentabilidade de suas ações, estão abismados e temerários diante desta injustificável entrega. 2.3.4 BR Distribuidora Ainda que esteja temporariamente interrompida por ordem da justiça, a venda desta subsidiária de distribuição e comercialização de derivados, denuncia a audácia dos planos de destruição da companhia. A BR Distribuidora é a ‘’cara’’ da Petrobras para o país. É através de seus serviços que a maioria dos brasileiros usufrui diariamente dos benefícios da existência de um monopólio estatal. Os dados que explicitam seu alcance e importância já foram trazidos neste texto. A venda da BR Distribuidora nos remete, em sua falta de sentimento nacional e entreguismo desavergonhado, à antiga tentativa de alterar o nome da Petrobras para Petrobrax. É sinal de que pretendem esquartejar, para entregar em bandeja de prata aos imperialistas, tudo aquilo que remete à esta estatal e que um dia despertou orgulho em nosso povo. Não um orgulho vazio baseado nas idealizações burguesas. Mas um baseado no árduo trabalho e na construção coletiva de um patrimônio de milhões de brasileiros. 2.3.5 O que mais? Somam-se a todos estes ataques, dissimulados nas manchetes da grande mídia como ‘’venda de ativos’’, ‘’alienações’’, ‘’desinvestimentos’’ etc., as declarações de Pedro Parente em relação ao abandono completo do ramo de biocombustíveis, incluindo nisto o programa do etanol. A Petrobras controla hoje ao menos três empresas do ramo, sendo elas a Guarani, Nova Fronteira e Bambuí. Juntas operam 9 usinas com capacidade combinada de produção de 1,5 bilhão de litros de etanol por ano. Todo este complexo deverá ser vendido até 2021. Também a área de fertilizantes, uma das que mais agrega valor, considerada um dos filé mignon da cadeia produtiva do petróleo, será completamente abandonada até o fim deste PNG. O destino das três fábricas de fertilizantes da Petrobras - Fafen (BA), Fafen (SE) e Fafen (PR) - é incerto, bem como o de seus milhares de trabalhadores. Outro absurdo é o abandono dos projetos que existiam para a área de refino. Apesar das refinarias já existentes não terem entrado nos ‘’desinvestimentos’’, os planos de Bendine, assumidos por Parente, envolvem o encerramento dos projetos de construção das refinarias Premium I e Premium II, assim como a ampliação na refinaria Abreu e Lima (Rnest). Todos estes cortes se justificam por uma suposta ‘’focalização’’ em operações em que a Petrobras seria mais ‘’especializada’’. Para evitar que a companhia se desloque para ‘’muito longe’’ de seu ‘’escopo’’, que seriam as áreas de extração e produção de óleo cru. É praticamente consenso hoje que toda companhia de petróleo deve, necessariamente, se transformar em um sistema integrado, que trabalha do poço ao posto, se deseja sobreviver. É o que se passa nas maiores petrolíferas privadas do mundo e foi este o projeto da Petrobras na última década. Como os preços do petróleo estão sujeitos a enormes flutuações, como ficou claro com as quedas bruscas nos preços do barril nos últimos anos, é necessário que a companhia equilibre suas contas através de outras operações. Durante 2015 e 2016, as áreas mais rentáveis para a Petrobras foram o armazenamento e distribuição, ao invés da exploração, que vivia momentos delicados devido aos baixo preços.

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Portanto as declarações de Parente são absurdas e estão distantes da realidade concreta do ramo hoje. Elas se explicam não de um ponto de vista da lógica do bem-estar da companhia e dos interesses nacionais que ela deveria atender; mas pela lógica do mercado financeiro e do grande capital internacional. Em suma, está de acordo com os interesses do imperialismo, que além de ocupar o vácuo deixado pela Petrobras em todos estes setores, se beneficiará da posição que assumiremos após esta verdadeira liquidação de ativos: a de exportadores de óleo cru e importadores de derivados mais caros. É digno de nota o cinismo da estratégia de desmonte da Petrobras: ao mesmo tempo em que afirma seus planos de focalizar esforços na extração e produção - com 80% de todos os investimentos dos próximos anos dedicados para esta área, em detrimento de todas as outras também entrega, por preço de banana, as áreas de extração mais estratégicas e rentáveis que possuímos, a saber, os poços do pré-sal. Um plano dissimulado, cínico e perverso de destruição de uma estatal.

3 - A INDÚSTRIA NACIONAL A DERIVA: CONSEQUENCIAS DA LAVA JATO E DO ATAQUE À PETROBRAS 3.1 O conteúdo local A operação Lava Jato e os ataques contra a Petrobras que ela deu condições possuem uma outra faceta, não menos nociva aos trabalhadores brasileiros. Trata-se da revisão das políticas de conteúdo local praticadas pela estatal desde a estipulação do novo marco regulador em 2010. Desde a criação da Petrobras em 1953, a empresa se alinhou às políticas governamentais, ainda que extremamente tímidas e absolutamente insuficientes de incentivo à indústria nacional. Fez isto direcionando, sempre que possível, suas encomendas aos fornecedores locais. Esta política, entretanto, não criou uma industria para-petrolífera[12] capaz de competir com os monopólios estabelecidos no setor, como não pode deixar de ser em um país de capitalismo burocrático, onde o desenvolvimento autônomo da grande indústria está obstruída pela força do latifúndio e o nascimento de uma burguesia associada ao imperialismo, que muito comumente se agarra ao Estado para viver parasitariamente de verbas públicas. Isto abriu precedentes para o avanço do discurso neoliberal a partir da década de 90, que impôs a quase completa destruição das políticas de conteúdo local, jogando a indústria para-petrolífera em situação de ainda maior ostracismo, até o ponto [12] Se refere às indústrias de apoio à indústria petrolífera, tal como a de produção de navios, plataformas e outros equipamentos necessários para a extração e produção de petróleo e gás.


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de sua quase completa extinção. Este cenário começou a se modificar com a descoberta do pré-sal e a retomada das políticas de conteúdo local a partir do novo marco regulador. A importância dada ao fortalecimento dos fornecedores locais se inseria no projeto elaborado para o pré-sal, como parte de uma tentativa dos governos petistas de alçar o Brasil até a posição de ‘’big player’’ no cenário econômico e político mundial.Evidentemente que a ‘’experiência’’, sem mexer um milímetro na estrutura burguesa-latifundiária do Estado brasileiro, terminou em retumbante fracasso com custos altíssimos aos trabalhadores do nosso país. Mesmo assim, houveram ganhos pontuais. A política praticada a partir dos governos petistas estabelece um percentual mínimo a ser cumprido pelas empresas ganhadoras dos consórcios do pré-sal. Desta forma, mesmo as empresas privadas que participam do regime de partilha devem direcionar uma parte de seus investimentos na contratação de fornecedores nacionais. A Petrobras, além de buscar praticar valores de conteúdo local maiores do que o mínimo estipulado, adquire uma série de insumos necessários no Brasil, ainda que por um preço acima daquele praticado no mercado. Tal mudança resultou, entre outras coisas, no renascimento da indústria naval em nosso país. Segundo dados do Sinaval (Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore)[13] esta indústria empregava em torno de 1900 pessoas no ano de 2000, passando a empregar 82.400 no final de 2014. Neste mesmo período, valorizou em uma média de 7,6% ao ano e concentra R$ 25 bilhões em investimentos públicos alocados. Porém, o que levou mais de uma década para ser retomado, está sendo rapidamente destruído. Em dois anos, dos mais de 82 mil postos, restam apenas 49 mil[14]. Os motivos deste declínio são múltiplos, mas todos se relacionam com a Lava Jato. Seja porque a operação colocou uma série de empresas nacionais na inidoneidade, impedindo-as de contratar com o governo, paralisando obras e impedindo novas encomendas; seja porque ela de diversas formas pressiona a própria Petrobras a assumir políticas que a fazem abandonar projetos e reduzir drasticamente sua capacidade de investimento. Retomemos os números expostos pelo economista Marcelo Sartorio Loural, que evidenciam a Petrobras como maior responsável pelos investimentos produtivos no país. O autor trabalha com o valor de R$ 90 bilhões referentes ao ano de 2013, mas diversas fontes falam em uma média de R$ 100 bilhões investidos ao ano. Boa parte destes valores vai para fornecedores locais, responsáveis por dinamizar uma série de cadeias produtivas em nosso país. Desde a fabricação de maquinaria pesada, embarcações de todos os tipos, escavadeiras, helicópteros, peças para reposição e tantas outras. Com a perda da capacidade de investimento da estatal e o abandono da política de conteúdo local, segundo conclusões de Loural, todo o quadro de investimentos no Brasil será puxado para baixo, em praticamente todos os setores. Apesar disto, Michel Temer e Pedro Parente fazem declarações em ataque à estas políticas. Reproduzido pelo jornal O Globo, Parente diz que o conteúdo nacional é ‘’ruim para o Brasil’’. Michel Temer já inicia trabalhos para revisão da política que incluí o fim dos percentuais mínimos e o perdão das multas, acumuladas no valor de R$ 570 milhões, pelas empresas vencedoras dos leilões. Para que os leitores tenham uma visão mais clara, ressaltamos que o percentual exigido na maioria dos contratos era por volta de 10%. Quer dizer, apenas um décimo do valor das encomendas deveria provir de fontes nacionais. E mesmo este percentual fora desrespeitado pelos vencedores dos últimos leilões, como a anglo-holandesa Shell. Os maiores monopólios do ramo do petróleo tendem a preferir adquirir equipamentos e insumos em seus países de origem. Não só por estes países deterem maior domínio tecnológico e poderem atuar com maior competitividade, o que é um fato, presumível da própria condição destas nações enquanto imperialistas. Mas também porque estas empresas exercem monopólios nestes ramos, cujos negócios são muitas vezes mais rentáveis do que a própria atividade petrolífera. Desta forma, os diversos golpes efetuados a partir da Lava Jato, contra a Petrobras e o Estado brasileiro, são também golpes desferidos contra a indústria nacional. Isto em sentido amplo. [13] O Sinaval é o sindicato que representa os estaleiros de todas as regiões do país. Se trata de um sindicato patronal, que representa os interesses dos donos dos estaleiros. Apesar disto, é inegável o papel anti-imperialista desempenhado por esta instituição em denunciar os efeito nocivos das políticas entreguistas e ultra-liberais praticadas a partir da deflagração da Lava Jato, tanto pelo governo Dilma quanto de Temer, e suas consequencias para os trabalhadores e para a totalidade da nação brasileira. [14] Dados também do Sinaval, referentes aos últimos meses de 2016.

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3.2 O caso Sete Brasil e Odebrecht Se setores médios da burguesia brasileira, sobretudo donos de estaleiros e outras fábricas que produzem insumos ligados ao pré-sal, estão sendo liquidados pelas novas investidas do imperialismo, parte da grande burguesia também foi punida. A Sete Brasil é uma empresa nacional criada em 2010 com capital público, fundos de previdência e bancos privados (Santander, Bradesco e o BTG Pactual). Foi elaborada para ser especialista em portfólios de investimentos no setor de exploração offshore, no esteio das descobertas de petróleo em camadas ultra profundas. A empresa seria responsável por alocar recursos em estaleiros nacionais para a construção de navios-sonda e outras instalações necessárias para a exploração do recurso. Atualmente, conta com a maior encomenda do mundo neste ramo, de 28 sondas, todas para serem fretadas pela Petrobras. Realizada esta encomenda, com acúmulo de tecnologia e capacitação humana, a empresa estaria pronta para se lançar no mercado internacional, podendo facilmente atender às demandas de regiões produtoras com características semelhantes às brasileiras, como na costa norte do continente africano. De acordo com a própria operação Lava Jato, segundo informações da delação premiada de Pedro Barusco, a Sete Brasil constituiria um cartel de estaleiros e empreiteiras, apoiadas por alguns bancos, dispostos a dividir todo o mercado doméstico de produção de embarcações de apoio para exploração offshore. Em seguida, estaria apta à disputar mercados pelo globo. Ainda segundo esta delação, este cartel teria se formado com o objetivo de contornar um outro, já consolidado em todo o mundo. Uma rápida pesquisa revela que pouquíssimas empresas operam neste ramo e monopolizam todo o mercado, sendo elas: Schlumberger (EUA); Halliburton (EUA); Baker Hughes (EUA); Fluor (EUA); Saipem (Itália); Transocean (Suíça); Maersk (Dinamarca) e SBM (Holanda). Eis o cartel citado por Barusco. Ao que parece a tentativa de criar um cartel concorrente com capitais fundamentalmente brasileiros, foi insulto grande demais para os monopólios americanos e europeus tolerarem. Provando mais uma vez que o imperialismo é um sistema de dominação composto por um pequeno punhado de países que não cede espaço à ascensão de novos membros em seu seleto ‘’clube’’. Ou seja, não há a possibilidade de um país subjugado, dependente ou semicolonial, se tornar um império. Não existe solução para as semicolonias dentro dos marcos do capitalismo. É a lição que os atuais acontecimentos no Brasil nos ensinam. Neste ponto vale comentar, a título de especulação, que a força tarefa da operação Lava Jato, bem como o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, parecem ser os representantes mais ‘’diretos’’ do imperialismo em nosso país[15]. É através da atuação destes elementos, com a retaguarda da grande mídia, que os monopólios imperialistas estão conseguindo alcançar seus objetivos no Brasil. Seja sabotando eventuais novos competidores; criando um ambiente favorável para a abertura do pré-sal; destruindo industrias nacionais ou pressionando e enfraquecendo o próprio Estado brasileiro. Em todos estes casos, os monopólios saem ganhando: garantindo seus mercados; conseguindo contratos lucrativos com o espaço deixado pela desolação da indústria nacional ou extorquindo o Estado para que este crie melhores condições de hiper-exploração da força de trabalho em nosso país (flexibilização de leis trabalhistas, leis de teto de gastos, reforma da previdência, etc.). O próprio Michel Temer e sua camarilha, ao que parece, são colocados contra a parede por esta operação e setores do judiciário. Por mais que o imperialismo possua seus aliados ‘’prediletos’’ na política nacional, como o PSDB e o próprio Temer, na medida em que o golpe promovido por este último for incapaz de levar a cabo o programa desejado, poderá contar com a Lava Jato como seu último recurso. Operação político-judicial com poder suficiente para influenciar os rumos de toda a sociedade brasileira e, em última instância, até mesmo derrubar presidentes. Ainda especulando, os indícios parecem mostrar que estes ataques do imperialismo não se restringem aos trabalhadores urbanos e rurais, aos pequenos comerciantes e proprietários. Ainda que estes arquem com a maior parte dos custos através do desemprego, congelamentos salariais, cortes de benefícios e direitos trabalhistas, previdenciários, etc. Nem mesmo se [15] Para maiores informações, consultar fatos e dados levantados por Luis Nassif no portal GGN, como em: http://jornalggn.com.br/noticia/lava-jato-tudo-comecou-em-junho-de-2013 E mais especificamente sobre Sérgio Moro, consultar fatos bibliográficos levantados por Moniz Bandeira em: https://luizmuller.com/2016/12/04/moniz-bandeira-moro-e-janot-atuam-com-os-estados-unidos-contra-o-brasil/


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contentou em atingir a média burguesia, se estendendo até os mais altos setores da grande burguesia brasileira. Se esta burguesia é submissa e associada ao imperialismo, e abundam as provas que confirmam que ela o é de fato, isto não impediu que alguns de seus representantes estabelecessem contradições pontuais com alguns monopólios estrangeiros. No caso da Odebrecht, esta passou a disputar licitações públicas na África, América Latina e Central, que ameaçavam a proeminência das empreiteiras norte americanas. Além de conseguir obras no próprio coração do império, como a reforma do porto de Miami e do aeroporto de Fort Lauderdale. Estes fatos, somados à outras obras da empreiteira - como a construção do porto de Mariel em Cuba; do projeto chinês de um canal na Nicarágua que competirá com o panamenho e o projeto de construção de um submarino nuclear junto da Marinha brasileira - podem justificar o fenômeno do mega empresário Marcelo Odebrecht ter ido parar na cadeia na operação Lava Jato. O caráter subordinado desta burguesia se evidencia com o vergonhoso acordo de leniência assinado pela Odebrecht e Braskem com o departamento de justiça norte americano, no valor de R$ 6,9 bilhões. O maior da história em investigações por corrupção. Além disto, aceitou se submeter a 10 anos de fiscalização internacional (americana). São muitas as empresas americanas, japonesas e européias que foram citadas em delações premiadas da Lava Jato. São elas: Mitsui (Japão); Saipem (Itália); Keppel (Singapura); Technip (França); Skansa (Suécia); Maersk (Dinamarca); Glencore (Inglaterra); Astraoil (Bélgica); Trafigura (Holanda); SBM (Holanda); Ocean Rig (Chipre) e muitas outras. Até o presente momento, de todas estas empresas, apenas a Skansa teve alguma condenação e a Keppel segue sendo investigada. Todas as outras não só estão livres da mira ‘’implacável’’ da operação como também não tiveram nenhum tipo de punição, nenhum impedimento legal por parte do poder judiciário. CONCLUSÕES E AS TAREFAS COLOCADAS AOS COMUNISTAS Os fatos estudados até agora nos reafirmam a validade geral da teoria do imperialismo desenvolvida pelo camarada Lênin, na medida em que: a) vemos que os monopólios preservam seu papel predominante; b) o capital industrial e bancário fundem-se e confundem-se através dos fundos de investimentos, que configura uma oligarquia financeira; c) estes monopólios, antes de buscarem com suas intervenções garantir a exportação daquilo que produzem, disputam por zonas de influência financeira onde possam ‘’investir’’, quer dizer, onde possam alocar seus capitais em busca de valorização; d) os monopólios se associam criando cartéis internacionais que procedem a divisão dos mercados por todo o globo; e) o imperialismo, para consolidar e conservar suas zonas de influência, engendra conflitos militares, políticos e sociais de toda ordem pelo mundo. Reconhecer a importância desta teoria é, por conseguinte, fundamental para que os comunistas tracem uma linha de ação justa diante dos fatos recentes em nosso país. A luta em defesa da Petrobras é uma luta essencialmente nacional. De defesa dos interesses da nação contra o imperialismo e um punhado de traidores da pátria. É uma tarefa democrática que deve ser encabeçada pela classe mais consequente de nossa sociedade, o proletariado, e sua ideologia de vanguarda, o marxismo-leninismo. O Presidente Mao Tsé-tung nos diz que a contradição entre as nações subjugadas e o imperialismo se resolve pelo método da guerra revolucionária nacional[16]. São os comunistas quem devem dirigir a ‘’guerra’’ em defesa de nosso petróleo contra os imperialistas. Nós como marxistas-leninistas devemos travar este combate em todos os lugares e de todas as formas cabíveis no momento. Devemos fazer as análises mais contundentes, profundas e completas possíveis, bem como lançar uma linha política correta, que mobilize as massas em torno desta luta e que ajude-as a avançar em sua consciência de classe e na reconstrução de seu Partido Comunista. Devemos trabalhar diariamente por este objetivo. Na linha de frente de todos os protestos de rua; nos processos de agitação e propaganda; nas ocupações urbanas e rurais; nas mídias alternativas; nos sindicatos e demais organizações de massas. Sempre defendendo a perspectiva do marxismo-leninismo para melhor servir ao povo. Hoje, há poucos serviços maiores a serem prestados do que a construção de uma luta radical em defesa de nossos recursos naturais mais preciosos. Esta é uma tarefa urgente que nos está colocada. [16] Mao Tsé-tung, Sobre a Contradição (1937).

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por Gabrie

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Entre as contribuições de Lenin à teoria marxista, e na sistematização do Marxismo-Leninismo enquanto marxismo da época do Imperialismo e das revoluções proletárias, se encontra a defesa dos direitos dos povos à sua autodeterminação. Durante o combate ao Social-Imperialismo da II Internacional chauvinista, se deu ao Marxismo um novo olhar para os povos coloniais, reconhecendo que a luta revolucionária do proletariado dos países imperialistas não poderia ser bem sucedida sem o apoio deste ao movimento revolucionário e nacional dos povos coloniais, na sua luta contra a dominação estrangeira e imperialista. Nesse sentido que podemos apreender historicamente o papel de importantes revolucionários africanos, e do movimento pan-africanista como um todo, e em particular, dos dirigentes revolucionários do continente africano que empreenderam a tarefa de teorizar sobre a aplicação do socialismo científico à suas próprias peculiaridades nacionais e em sua justa luta contra o Imperialismo e pelo socialismo. É nesse sentido que reivindicamos a figura de Kwame Nkrumah e a sua importância na luta dos povos africanos em geral, e de Gana em particular. Abordaremos aqui os desenvolvimentos e a importância de Nkrumah no que tange a conceitualização da dominação imperialista no continente africano, bem como as tarefas necessárias para a emancipação dos povos de África, partindo da teoria leninista do Imperialismo. É de fundamental importância para o movimento comunista e para os progressistas e revolucionários, a tarefa de desmistificar a errônea e chauvinista ideia de que as contradições entre nações oprimidas e opressoras foi superada, e não é possível mais falar em Imperialismo, colonialismo, e consequentemente, da luta dos povos por dignidade e soberania nacionais e independência, contra a dominação imperialista que engendra o subdesenvolvimento e impede os povos de encontrarem seus caminhos de maneira independente. A luta dos povos do Terceiro Mundo contra o saque e a pilhagem neocolonial, após o emergir da ordem mundial unipolar observada após a contrarrevolução que dissolveu a URSS e as Democracias Populares na Europa Oriental, após anos sendo corroídas pelo revisionismo à frente delas, em frente às forças que representam os interesses da submissão nacional e dos Estados Imperialistas, vem se agudizando cada vez mais. Nos últimos anos, a questão nacional, a contradição entre nações opressoras e nações oprimidas, entre as forças que defendem a vassalagem dos Estados e dos povos em prol de um punhado de grandes monopólios, e os povos do Terceiro Mundo que lutam por soberania e autodeterminação se acirram, diferente da posição geral sobre a luta contra a espoliação imperialista e em defesa dos interesses nacionais ser algo de ordem “antiquado” e ultrapassado. Consideramos importante e fundamental compreender os desdobramentos da opressão nacional imperialista sofrida pelo continente africano, bem como a reivindicação da história de importantes revoluções e lutas travadas em seu solo levadas a cabo por inúmeros dirigentes de grande porte tendo em vista a própria situação nacional no Brasil, da necessidade de todos os progressistas e lutadores populares brasileiros compreenderem a condição do Brasil de país periférico, subdesenvolvido e oprimido pelas grandes potências, e cujas tarefas de superação de tal condição não diferirem, em conteúdo, das mesmas tarefas dos povos do continente africano, e demais povos do Terceiro Mundo, ainda que cada processo possua suas particularidades e diferenças profundas entre si, tornando necessário que cada povo decida pelo seu próprio caminho revolucionário em suas ambições por libertação nacional. De tal forma, também defendemos a emissão de verdadeira solidariedade e amizade internacionalista para com os povos africanos, o que demanda que conheçamos sua história e sua situação atual, e suas aspirações. Em um período de expansão militar do Ocidente no continente africano por meio da AFRICOM e do parasitismo financeiro, de boicote levado a cabo pelos países ocidentais contra as nações africanas que se engajam em uma luta de libertação nacional até os dias de hoje (tal como o Zimbábue), e de uma renomada ofensiva dos Imperialistas e neocolonialistas, em processos agressivos e intervencionistas, tais como ocorreu recentemente na Costa do Marfim e na Líbia, visando a recolonização do continente, tal compreensão é essencial para tomar uma postura ativa e internacionalista em defesa da libertação do continente africano do jugo do Imperialismo, em defesa de suas aspirações nacionais e continentais e contra a ingerência em seus assuntos internos. Se trata portanto de questionar também os diletantismos pequeno-burgueses e o catedrismo, em prol da confiança na luta dos povos em


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seguirem seus próprios caminhos na derrubada das classes dominantes nativas ligadas ao Imperialismo. Em um artigo escrito em Abril de 1993 na Imprensa imperialista dos Estados Unidos (NY Times), se coloca no título “O Colonialismo está de volta, e voltou tarde”[1], e se escreve sobre alguns povos não serem capazes ainda de possuírem autodeterminação, e se defende a “missão civilizatória” dos países imperialistas. É contra isso, em defesa dos interesses dos povos coloniais, que nos insurgimos. Retomaremos agora algumas teses fundamentais da tradição da qual o movimento comunista se origina, do legado deixado pela Revolução Socialista de Outubro em torno da apreensão da questão nacional e colonial. 1. O Movimento Comunista Internacional, a libertação dos Povos colonizados e a África a) O Imperialismo Como colocamos anteriormente, um dos méritos históricos de Lenin e do legado da Revolução de Outubro passa pela compreensão da passagem do capitalismo livre-concorrencial para a sua etapa superior, do Imperialismo, e a defesa dos interesses dos povos coloniais em sua luta por autodeterminação e seu reconhecimento destas lutas como parte da revolução proletária mundial. Lenin, ao estudar e desenvolver o Marxismo, observou que a política imperialista não era uma escolha política por parte das grandes potências capitalistas, mas sim uma etapa superior atingida pelos países onde o capitalismo mais estava desenvolvido, cuja essência econômica é o monopolismo. Para tal tarefa, estudou tanto autores liberais, burgueses, como autores marxistas, que se debruçaram sobre o tema. A passagem do capitalismo livre concorrencial para o monopolismo se dá sob alguns aspectos principais: a formação de associações monopolistas, tais como cartéis e trustes, o surgimento do capital financeiro a partir da fusão do capital bancário com o capital industrial e consequentemente o surgimento de uma oligarquia financeira, a importância da exportação de capitais excedendo a importância da exportação do excedente das mercadorias a fim de atingir superlucros, a partilha econômica do mundo pelos grandes cartéis e a partilha territorial, representada pela política colonial, na busca de zonas de influência para a exportação de seus capitais.[2] O Imperialismo, também assume caráter de capitalismo moribundo, em decomposição, isto é, as suas características permitem afirmar que as próprias condições estabelecidas pelo surgimento do capitalismo monopolista também criam as condições para a transição ao socialismo. A contradição fundamental do capitalismo, entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação se acirra, onde a produção é cada vez mais socializada, desta vez a nível mundial e a apropriação é privada por um número cada vez menor, desta vez, de uma oligarquia financeira. No contexto em que Lenin escreve a sua obra máxima sobre o tema do Imperialismo, tal tema era debatido constantemente entre os marxistas da época. Inclusive, Lenin o escreve polemizando com a teoria de Kautsky sobre o “ultra-imperialismo”. No emergir da Guerra Imperialista em 1914, Lenin combate aqueles que seriam os “representantes da aristocracia operária e da pequena burguesia”, que ou defendiam a entrada de seus países na guerra, ou tomavam uma posição centrista com relação à guerra e qual posição o movimento operário deveria tomar. Para Lenin, ambas as posições representavam o social-chauvinismo ou o social-imperialismo, que seriam os socialistas em palavras mas chauvinistas e imperialistas nos fatos.[3] Entre tais posições, também haviam aqueles que diziam a palavra de ordem de autodeterminação dos povos era uma palavra de ordem pequeno-burguesa e nada interessava ao proletariado. Outra posição considerada social-chauvinista era a de que o fato das burguesias dos países desenvolvidos estarem expandindo seus tentáculos e rompendo, portanto, com os limites fronteiriços de seus Estados Nacionais, estaria dando fim à divisões de ordem nacionais, e defender a palavra de ordem da autodeterminação dos povos seria “girar a roda da história para trás”. Lenin combate tal posição afirmando que, ao contrário, o fato da burguesia expandir os [1] http://www.nytimes.com/1993/05/09/magazine/l-colonialism-s-back-312993.html [2] LENIN, V.I.,O Imperialismo, fase superior do capitalismo, São Paulo: Ed. Expressão Popular, p.165 [3] LENIN, Vladimir. O Socialismo e a Guerra. In V.I.LENINE Obras Escolhidas em seis tomos, vol. 2: –Moscou-Lisboa: Editora Avante, pp. 236

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limites fronteiriços de seus Estados na verdade é uma consequência de sua transformação em classe caduca e reacionária, e que esta suposta superação dos Estados Nacionais implica na subjugação e opressão nacional imperialista contra outros povos, que devem defender seu direito à autodeterminação. De modo consequente, Lenin também postula as diferenças entre o “nacionalismo do opressor”, que é o sentimento nacional instigado pelas grandes potências imperialistas na subjugação de outras nações, e o “nacionalismo dos povos oprimidos”, que possui um caráter progressista por se dirigir diretamente contra o Imperialismo. Lenin não apenas defendeu a libertação imediata e sem compensações das colônias, mas também que o proletariado dos países imperialistas não pode ser vitorioso sem o apoio ao movimento revolucionário nacional e democrático dos povos das colônias e semicolônias em suas lutas de libertação nacional: a posição dos social-chauvinistas estaria comprometendo a própria revolução socialista no interior de seus países. Lenin já defendia tal posição em 1903, tendo o POSDR quando fundado, se convertido no primeiro partido marxista a incluir em seu programa o direito dos povos à autodeterminação. Após a revolução de Outubro, em 1917, Lenin redata o Decreto da Paz onde reafirma a defesa do direito à autodeterminação. Com a criação da URSS, se reconheceu a independência dos antigos países dominados pelo czarismo, firmando acordos de amizade e cooperação, e estimulando as culturas nacionais de cada povo. b) O Movimento Comunista Internacional e a África No I Congresso da Internacional Comunista (Comintern), seu Manifesto cita nomeadamente a África: “Escravos coloniais da África e Ásia: a hora da ditadura do proletariado na Europa soará para vocês como a hora de sua libertação”. Em 1920, no II Congresso, Lenin elabora grande parte das Teses para a Questão Nacional e Colonial, onde reafirma as posições de denúncia do papel da II Internacional e a concepção de mundo que negava a questão colonial e nacional: “O mundo só existia para eles dentro dos limites da Europa. Ela [a II Internacional] não viu a necessidade de ligar-se ao movimento revolucionário dos outros continentes. Em lugar de prestar ajuda material e moral ao movimento revolucionário das colónias, os membros da Segunda Internacional tornaram-se eles próprios imperialistas”[4], e se enxerga também os povos coloniais não como dependentes da luta operária na Europa, mas como sujeitos ativos em suas lutas por libertação: “Existem nos países oprimidos dois movimentos que, a cada dia, se separam mais: o primeiro é o movimento burguês democrático nacionalista que tem um programa de independência política e de ordem burguesa; o outro é o dos camponeses e trabalhadores ignorantes e pobres por sua emancipação de toda espécie de exploração. O primeiro tenta dirigir o segundo e, numa certa medida, é frequentemente bem-sucedido. Mas a Internacional Comunista e os partidos aderentes devem combater esta tendência e procurar desenvolver os sentimentos de classe independente nas massas operárias das colônias. Uma das maiores tarefas para este fim é a formação de partidos comunistas que organizem os trabalhadores e os camponeses e os conduzam à revolução e ao estabelecimento da República soviética”.[5]

No IV Congresso do Comintern, se elaboram as “Teses sobre a Questão Negra”, que defende a preparação para uma Conferência Mundial de Negros e Negras, em Moscou: A questão negra tornou-se uma questão vital da revolução mundial. A Terceira Internacional, que reconheceu as importantes contribuições que podem ser dadas à revolução proletária pelas populações asiáticas dos países semi-capitalistas, encara a cooperação dos nossos camaradas negros oprimidos como essencial para a revolução proletária que destruirá o poder capitalista. É por isso que o 4º Congresso declara que todos os comunistas devem especialmente aplicar à questão negra as ‘teses sobre a questão colonial’. 6. a) O 4º Congresso reconhece a necessidade de apoiar qualquer forma de movimento negro que vise minar e enfraquecer o capitalismo ou o imperialismo, ou de barrar a sua penetração; b) A Internacional Comunista lutará por assegurar aos negros a igualdade de raça, a igualdade política e social.”[6] [4] II Congresso da Internacional Comunista, Teses Suplementares sobre a questão nacional e colonial, in:https://www.marxists.org/history/international/comintern/2nd-congress/ch04.htm [5] Disponível em:https://www.marxists.org/history/international/comintern/2nd-congress/ch04.htm#v1-p115 [6] Disponível em:https://www.marxists.org/history/international/comintern/4th-congress/blacks.htm


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Nas deliberações anteriores ao VI Congresso da Internacional Comunista, em 1928, Bukharin, em que pese o papel contrarrevolucionário que assumiu nos anos posteriores, defendendo a unidade entre brancos e negros, também acrescentou que “de maneira geral a Internacional Comunista deve dizer alto e claro que na luta entre negros e brancos, ela está do lado dos negros”. Neste congresso, se desenvolve sobre a necessidade de se dar atenção especial à questão racial, e que uma das tarefas dos comunistas deve ser o combate aos preconceitos raciais existentes entre os operários brancos: “Em ligação com a questão colonial, o sexto congresso pede que os partidos comunistas dediquem uma atenção particular à questão dos negros. A situação dos negros varia nos diferentes países, e por isso requer uma análise concreta para cada caso. Os territórios nos quais as massas negras podem ser encontradas dividem-se nos seguintes grupos:(1) os EUA e alguns países da América do Sul, onde as massas negras são uma minoria relativamente à população branca;(2) a União da África do Sul, na qual os negros estão em maioria relativamente aos colonialistas brancos;(3) os estados negros que são atualmente colônias ou semi-colônias do imperialismo (Libéria, Haiti, Santo Domingo) e a África Central que está dividida em colônias e em territórios pertencentes a várias potências imperialistas (Grã-Bretanha, França. Portugal, etc.). As tarefas dos partidos comunistas têm de ser definidas de acordo com as situações concretas... Na União da África do Sul, as massas negras - que constituem a maioria da população e cuja terra foi expropriada pelos colonialistas brancos e pelo estado – são privadas de direitos políticos e de liberdade de movimentos e são expostas às piores formas de opressão racial e de classe, para além de sofrerem também na pele os métodos capitalistas e pré-capitalistas de exploração e de opressão. O partido comunista – que já colecionou alguns sucessos entre o proletariado negro – tem o dever de continuar uma luta incansável pela igualdade de direitos para os negros, pela abolição dos regulamentos e das leis dirigidas contra os negros e pela confiscação das propriedades dos latifundiários. Ao conquistar trabalhadores negros para as suas fileiras, ao organizá-los em sindicatos, ao lutar pela sua admissão nos sindicatos dos trabalhadores brancos, o partido comunista é obrigado a lutar por todos os meios contra o preconceito racial entre os operários brancos e a erradicar esse tipo de preconceitos das suas próprias fileiras. O partido deve defender consistentemente e vigorosamente a palavra de ordem da criação de uma República Nativa independente que garanta os direitos da minoria branca e deve converter esta luta em ação…”[7] Conforme a Internacional Comunista ia se desenvolvendo e se transformando no ponto de apoio da revolução mundial, ia dando suporte e estabelecendo relações com as organizações nacionalistas africanas e defendendo a atuação dos comunistas do continente nas lutas anticoloniais em seus países. Uma das primeiras tarefas que o Comintern designou foi que o Partido Comunista da França criasse um “Conselho Comunista Colonial” para que os comunistas franceses dessem apoio geral à independência das colônias francesas, estudassem a situação das colônias e encorajassem atividades anticoloniais ali. Em 1926, foi criada, pelo Partido Comunista da Alemanha, a Liga contra Opressão Colonial (LACO), que logo de imediato (em 1927) organizou em Bruxelas a Conferência Anticolonial Mundial, que foi um importante ponto de apoio para a organização dos comunistas tanto na Ásia como na África, além de também ter permitido à IC a partir dali ter iniciado contato com uma gama de organizações nacionalistas e independistas do continente africano. Nessa conferência, compareceram mais de 200 delegados, entre eles o senegalês Lamine Senghor, membro do Comitê de Defesa da Raça Negra, J.T. Gumede e James La Guma, ambos do Congresso Nacional Africano (Gumede era seu presidente) e Isaac Wallace-Johnson, líder do sindicato dos ferroviários de Serra Leoa. Após a Conferência, a LACO se transforma em Liga contra o Imperialismo e pela independência das Colônias (LAI). No Comintern se cria o Burô Internacional dos Operários Negros que chama por uma Conferência dos Trabalhadores Negros, realizada em Hamburgo em 1930. Inúmeros nacionalistas e independentistas do continente africano comparecem à Conferência, alguns inclusive assumindo importante papel nos anos posteriores, tal como Jomo Kenyatta, que viria a ser presidente do Quênia. Na Conferência, se decidiu transformar o Burô Internacional dos Operários Negros no Comitê Sindical Internacional dos Operários Negros, que além de organizar os trabalhadores negros de todo o mundo, com ênfase na África e no Caribe, também lançava a mensal [7] Teses sobre o movimento revolucionário nos países coloniais e semicoloniais da III Internacional (Comintern).

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Revista Internacional dos Operários Negros. Nessa conferência, se dá às massas africanas uma gama de ligações entre distintas organizações de vários países que exigiam o programa comum do fim da dominação estrangeira em seus territórios. Além disso, se por quase 10 anos, o único Partido Comunista atuando em território africano era o Partido Comunista da África do Sul, depois dessa Conferência, se organizam, ainda que não partidos, células comunistas em Madagascar, Quênia, Nigéria, Serra Leoa, Senegal, etc. E.F. Small, que também foi delegado das Conferências chamadas pela Internacional Comunista, organizou a primeira greve geral da história da Gâmbia. Mesmo as organizações nacionalistas que não falavam em Marxismo, possuíam muitas ligações com o Comintern e com as células comunistas organizadas em seus territórios, tal como se viu nas revoltas armadas fracassadas no Camarões e no Congo (1931 e 1929, respectivamente), e na ligação da “Liga dos Pobres” (Basutolândia) com o Partido Comunista da África do Sul. A necessidade de ligação dos comunistas com as organizações nacionalistas, além de desenvolvida nas Conferências e Encontros da I.C., também foi balizada no documento sobre as teses sobre a questão colonial e nacional, como quando citam o caso das colônias francesas: “Nas colônias Francesas do Norte de África, os comunistas devem trabalhar em todas as organizações de massas existentes para conquistar os elementos genuinamente revolucionários de forma consistente e clara, formando assim um bloco militante constituído por operários e por camponeses. No que respeita à organização “Etoile Nord Africaine”, os comunistas devem assegurar o seu desenvolvimento. Já se sabe que ela não será nunca um partido, mas sim um bloco composto por diferentes organizações revolucionárias às quais os sindicatos dos operários e dos trabalhadores rurais estão coletivamente afiliados; a liderança deve ser garantida pelo proletariado revolucionário, e para isto é necessário desenvolver o movimento sindical enquanto canal de ligação essencial que permite a influência comunista sobre as massas. A nossa tarefa é a de estabelecer a cooperação entre as seções revolucionárias do proletariado branco e a classe operária nativa…” No que tange o primeiro Partido Comunista organizado no continente africano, o PC. da África do Sul, a Internacional Comunista, ainda que reconhecesse os esforços do Partido entre as massas negras originárias, como quando observa que em 1928 entre os 1700 membros, 1600 eram negros nativos, criticou alguns desvios do Partido que subestimavam a atuação nas massas originárias: “d)A África do Sul é um país negro, a maioria da sua população é negra tal como a maioria dos trabalhadores e camponeses. A maior parte da população Sul-Africana é constituída pelo campesinato negro, cujas terras foram expropriadas pela minoria branca. Sete oitavos da terra é propriedade dos brancos. Por isso é que a questão nacional na África do Sul, que se baseia na questão agrária, está na base da revolução na África do Sul. O campesinato negro é a força básica da revolução em aliança com e sob a liderança da classe trabalhadora. e) A África do Sul é dominada politicamente pela classe exploradora branca. Apesar do conflito de interesses entre a burguesia Holandesa e os imperialistas Ingleses, a característica básica da situação política na África do Sul é o desenvolvimento da frente unida entre a burguesia Holandesa e os imperialistas Ingleses contra a população nativa. Nenhum partido político na África do Sul, com exceção do Partido Comunista, defende medidas de benefício real para a população nativa oprimida, os partidos políticos dominantes nunca vão além de frases vazias e sem sentido. O Partido Comunista da África do Sul é o único partido dos trabalhadores nativos e brancos que luta pela abolição total da exploração racial e nacional, é o único que pode dirigir o movimento revolucionário das massas negras para a sua libertação. Consequentemente, se o Partido Comunista entender corretamente as suas tarefas políticas, ele deve tornar-se o líder do movimento agrário nacional revolucionário das massas indígenas. Infelizmente, o Partido Comunista da África do Sul não dá provas de conhecimento suficiente da importância revolucionária dos movimentos de massa dos trabalhadores e dos camponeses nativos. O Partido Comunista da África do Sul realiza uma luta correta para a unidade dos trabalhadores nativos e brancos no movimento sindical. Mas, ao mesmo tempo, o Partido Comunista da África do Sul opôs-se obstinadamente à palavra de ordem correta proposta pelo Comintern – que exige a formação de uma República Sul-Africana independente e nativa como etapa de transição para uma República de operário e de camponeses na qual existam direitos


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iguais para todos raças.Esta oposição mostra uma falta de compreensão do Partido na África do Sul em relação às lutas revolucionárias das massas indígenas, o que explica, em parte, o crescimento ainda insuficiente da influência política do nosso partido sobre as massas negras, apesar das condições extremamente favoráveis. A África do Sul é um domínio Britânico de tipo colonial. O país foi tomado pela violência por exploradores estrangeiros, a terra foi expropriada aos nativos, que sofreram uma política de extermínio nos primeiros estágios de colonização, bem como condições de semi-escravidão estabelecidas para a esmagadora maioria das massas indígenas. É necessário informar as massas nativas que, em face da discriminação política e econômica contra os nativos e da opressão cruel dos brancos, a palavra de ordem do Comintern em defesa de uma república nativa significa a devolução da terra aos sem-terra e à população pobre. Esta palavra de ordem não significa ignorar ou esquecer os elementos não-exploradores da população branca. Pelo contrário, a palavra de ordem apela aos direitos plenos e iguais para todas as raças. As massas trabalhadoras brancas devem perceber que na África do Sul constituem minorias nacionais, e é sua tarefa a de apoiar e lutar em conjunto com as massas indígenas contra a burguesia branca e os imperialistas Britânicos. O argumento contra a palavra de ordem em defesa de uma república nativa de que ele não protege os brancos não é nada mais do que uma cobertura para a falta de vontade em aceitar o princípio correto de que a África do Sul pertence à população nativa. Nestas condições, é a tarefa do Partido Comunista a de influenciar os movimentos nacionais entre os nativos a fim de transformar esses movimentos agrários nacionais em movimentos revolucionários contra a burguesia branca e os imperialistas Britânicos. A falha em cumprir esta tarefa significa a separação do Partido Comunista da África do Sul da população nativa. O Partido Comunista não pode limitar-se ao slogan geral de “Não existem brancos nem negros”. O Partido Comunista deve entender a importância revolucionária das questões nacionais e agrárias. Apenas uma correta compreensão da importância da questão nacional na África do Sul tornará o Partido Comunista capaz de combater eficazmente os esforços da burguesia para dividir os trabalhadores brancos e negros, por incentivar o chauvinismo racial e transformar o movimento nacionalista embrionário numa luta revolucionária contra a burguesia branca e os imperialistas estrangeiros. Na sua propaganda entre as massas indígenas, o Partido Comunista da África do Sul deve enfatizar as diferenças de classe entre os capitalistas e os trabalhadores brancos, porque estes últimos também são explorados pela burguesia como escravos assalariados, embora mais bem pagos em comparação com os nativos. O Partido Comunista deve continuar a lutar pela unidade entre trabalhadores negros e brancos e não limitar-se apenas à defesa da “cooperação” entre os negros e os brancos em geral. O Partido Comunista deve fornecer um correto conteúdo de classe à ideia de cooperação entre os negros e os brancos. Ele deve explicar às massas nativas que os trabalhadores negros e brancos não são apenas aliados, mas que são também os líderes da luta revolucionária das massas indígenas contra a burguesia branca e o imperialismo Britânico.”[8] A palavra de ordem de “República Nativa” e a priorização do trabalho entre as massas originárias encontrou resistência por parte de certos militantes do Partido, que foi fundado majoritariamente pelos mineradores brancos da África do Sul. Entre uma das críticas, estava a que eles consideravam tal palavra de ordem como “garveysmo”, em referência a Marcus Garvey. Após a crítica realizada, o Partido, junto com o Comintern, passa a defender a “africanização do Partido”, que da mesma forma que o Partido deveria se orientar a trabalhar com as massas originárias, a liderança do Partido, bem como seus membros, também deveriam acompanhar tal processo. Em uma carta defendendo tal posição, o dirigente do Partido, Moses M. Kotane, comenta: “Minha primeira sugestão é que o Partido se torne mais africanizado ou afrikanizado, que o PCAS deve prestar atenção especial à África do Sul, estudar as condições neste país e concretizar as demandas das massas trabalhadoras com informações à primeira mão, que devemos falar a língua das massas nativas e devemos conhecer as suas demandas. Que enquanto não se deve perder sua fidelidade internacional, o Partido deve ser Bolchevizado, se tornar sul africano não [8] Dispoinível em: https://www.marxists.org/history/international/comintern/sections/sacp/1928/comintern.htm

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apenas teoricamente, mas concretamente, deve ser um Partido que trabalhe nos interesses e para o povo trabalhador da África do Sul e não um Partido de um grupo de europeus que estão apenas interessados nos assuntos europeus.Saudações revolucionárias” Como vimos, posteriormente à morte de Lenin, tal legado foi preservado e continuado pela direção de Stalin. Ademais, entre 1925 e 1938, foram chamadas pessoas de todo o continente africano para a Universidade Comunista dos Operários do Leste (KUTV) para cursos educativos que normalmente duravam 14 meses, além de outros cursos das universidades soviéticas. Entre estes, o já citado Jomo Kenyatta estudava economia em Moscou. Foi fundado também um Instituto de Estudos Africanos. Hakim Adi, autor do livro “Pan-Africanismo e Comunismo” se refere a uma “abordagem pan-africanista” feita pela Internacional em suas relações com África e a diáspora africana. Paul Robeson, ator e cantor hollywoodiano negro, que além de ser ativo defensor dos direitos dos negros na luta contra o apartheid nos Estados Unidos, também militava ativamente em defesa da independência das colônias africanas, também comenta sobre o apoio soviético à descolonização: “Sim, toda a África lembra que foi Litvinov quem ficou sozinho ao lado de Haile Selassie em Geneva, quando os filhos de Mussolini voaram com as benções do Papa para jogar bombas em mulheres e crianças da Etiópia. A África se lembra que foi a União Soviética que lutou contra a tentativa de Smuts de anexar o Sudoeste africano às reservas de escravos da União da África do Sul. A África sabe que foi a União Soviética que exigiu em São Francisco, que a Carta das Nações Unidas incluísse uma garantia de autogoverno para os povos dos territórios ditos “protetorados”. E não é a luta da União Soviética hoje que evita que as colônias italianas sejam bases de escravos e bases militares para a Inglaterra e para os Estados Unidos?”[9] c) Papel histórico do Movimento Comunista e a justeza do Marxismo-Leninismo Como colocamos, em Lenin, na passagem do capitalismo livre-concorrencial para o Imperialismo, este se constituiu então em uma economia mundial onde cada formação social é condicionada pelo desenvolvimento desigual engendrado pelo Imperialismo, e nesta economia mundial, se combinam, sob as mais variadas maneiras, diversas economias domésticas que são parte de uma única totalidade, que é a cadeia imperialista. Estamos tratando então de um sistema imperialista mundial, cuja essência, para Lenin, é a “contradição entre nações opressoras e oprimidas”[10], e onde a contradição capital-trabalho se manifesta conjuntamente às contradições entre nação e Imperialismo e às tarefas para a libertação nacional dos povos oprimidos. Tal processo é importante ser destacado aqui pois denota um dos méritos históricos do movimento comunista internacional e a necessidade do Marxismo-Leninismo em esclarecer a etapa histórica do capitalismo da qual estamos situados. Evidenciar tal fato não implica colocar que Marx e Engels estão superados históricamente, mas pelo contrário, pois é a partir do método deixado por ambos que podemos delinear tal processo corretamente e compreender as transformações no modo de produção capitalista. Além disso, Marx indica o início do processo do monopolismo quando discute a dinâmica da reprodução ampliada na acumulação de capital, bem como trata da questão colonial. Engels também trata da questão colonial em seus últimos anos de vida, inclusive criticando o apoio de certas camadas do proletariado inglês ao colonialismo. Além disso, ambos defenderam a luta nacional na Irlanda contra o domínio britânico, e a luta nacional polonesa. Já podemos nos guiar em torno da luta contra o chauvinismo a partir da concepção materialista da história em Marx e a sua concepção universalizante de homem que estava na contramão das teorias racistas e eugenistas de sua época: “Um negro é um negro. Só em determinadas relações é que se torna escravo”. No entanto, em Marx e Engels tal questão ainda não havia sido sistematizada, e tampouco poderiam: Lenin afirma categoricamente que Marx e Engels não viveram o suficiente para demonstrar o surgimento do Imperialismo enquanto etapa superior do capitalismo. A transformação das condições objetivas que se encontram o modo de produção capitalista demanda a transformação das condições subjetivas, e por isto o Marxismo-Leninismo é o marxismo de nossa época, da era do Imperialismo e das revoluções proletárias, e com a transformação do [9] Dispoinível em:https://www.novacultura.info/single-post/2017/01/05/O-Povo-Negro-e-a-Uni%C3%A3o-Sovi%C3%A9tica [10] (...)”Por isso um ponto central no programa da social-democracia deve ser precisamente a divisão das nações em opressoras e oprimidas, que constitui a essência do imperialismo e que é mentirosamente eludida pelos sociais-chauvinistas e por Kautsky.”; disponível em: https://www.marxists.


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capitalismo em capitalismo-imperialista, e os aportes de Lenin à época, as nações oprimidas se convertem em sujeitos políticos, os quais sem estes, a própria vitória da revolução proletária-socialista nos países imperialistas é prejudicada, se tornando, então, parte constituinte e fundamental da revolução proletária mundial.

2. A Dominação Estrangeira e o Imperialismo na África

a) Precentes históricos Algo importante que devemos ter em vista sobre o continente africano antes de prosseguirmos para os desdobramentos da dominação imperialista, é que nos precedentes de tal dominação, na avaliação das sociedades ali existentes se encontrava uma gama de formações sociais muito distintas entre si, que iam do nomadismo ao comunalismo, do feudalismo à algumas formas intermediárias e transitórias com coexistência de elementos feudais de elementos comunitários e em algumas regiões, algo semelhante ao que Marx chamou de “modo de produção asiático”, com as suas particularidades específicas(Walter Rodney comenta sobre alguns autores que defendem a possibilidade de um “modo de produção africano”). A ocupação de territórios africanos pelos europeus e a dominação estrangeira começou já no século XV. É importante afirmarmos aqui que ainda antes do colonialismo “formal”, era possível falar em intervenção estrangeira no continente a partir do tráfico de escravos: o comércio de escravos nos séculos anteriores à dominação colonialista alterou virtualmente as relações sociais no continente. O papel das forças endógenas do continente no comércio, foi estimulado pelas forças externas: a priori, a obtenção de escravos em solo africano se dava por guerras de pilhagem, banditismo e sequestro aberto (RODNEY: 1975, p.134), isso se dando em conjunto às atuações de chefes africanos que trocavam seus prisioneiros de guerra. A atividade econômica no continente foi muito afetada pelo surgimento do comércio de escravos com a Europa, não apenas pela perda de um contingente importante da massa laboral, oriunda dos milhões das suas populações nativas que eram arrastadas para os navios negreiros, mas também afetou as atividades domésticas, como é o caso de que em alguns casos, o comércio de escravos destruiu as atividades de mineração do ouro na Costa do Ouro (Atual Gana), dado que as populações nativas não mais se viam obrigadas a realizar suas principais atividades anteriores(principalmente agrícolas) já que a atividade mais lucrativa se tornava o comércio de escravos com os europeus, alterando suas atividades para atividades principalmente guerreiras. Outros casos do tipo eram conhecidos tais como os de populações que alteravam as suas produções alimentícias no campo para alimentar os navios negreiros.[11] Em outra evidenciação deste fato, o historiador Robert Slenes, ao constatar a existência métodos de construção nômades entre os Nsundi (do antigo Reino do Kongo), observa que o impacto do comércio de escravos sobre a África Central forçou parte relevante da população africana a viver em “acampamentos de guerreiros” (quilombos), abandonando o nomadismo.[12] Entre os anos de 1884 e 1885, ocorre a Conferência de Berlim, em Bruxelas. Nesta, com 14 países europeus, mais Rússia e EUA, sem nenhum representante do continente africano, eles realizaram aquilo que se convencionou a chamar “partilha da África”, isto é, a dominação dos povos livres do continente africano pela ocupação de forças estrangeiras em seus territórios. Antes da Conferência, os territórios ocupados eram de maneira geral, em grande parte territórios costeiros. Após a Conferência, a França dominaria a Tunísia, Argélia, Marrocos, parte do Saara, Senegal, Guiné, Costa do Marfim, Daomé (Benin), Gabão, Mali, Congo, Níger, Chade, Madagáscar e Dijbuti; o Imperialismo britânico dominaria o Egito, a Gâmbia, Serra Leoa, Gana, Nigéria, o Zimbábue, Quênia, Somália, Maurício, Uganda, Zanzibar (Tanzânia), Nassalândia (Malaw), União Sul-Africana, incluindo a antiga Colônia do Cabo e as ex –repúblicas Bôeres de Natal, Orange e Transvaal, África do Sul, a atual Botswana, Basutolândia (atual Lesoto) e Suazilândia; a Alemanha dominaria o Togo, Camarões, Tanganica, Ruanda, Burunti e a Namíbia; e a Itália a Eritréia, a Somália e o litoral líbio. Portugal e Espanha manteriam suas antigas colônias. [11] RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África: –Lisboa: Editora Seara Nova, [12] SLENES, Robert. W. Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p. 180-182.

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Alguns dos povos oprimidos pelo colonialismo já estavam com seus territórios ocupados antes de 1880, como é o caso de Argélia, Tunísia e o Marrocos, que viraram colônias francesas, e o Egito e o Sudão, colônias britânicas. O processo na Tunísia e no Egito seguiram o “roteiro” de “comprar” as classes dirigentes nativas. No caso da Tunísia, os italianos, ingleses e franceses se ofereceram a ajudar o país a se libertar do domínio do Império Otomano, e deram grandes quantias de dinheiro para aliviar a dependência do país para com a Turquia. Consequentemente, uma camada considerável dos gastos do país serviam para o pagamento dos títulos dos juros da dívida externa do país. Em um clima de revoltas populares contra os beits oriundo dos pesados impostos sobre os camponeses, os franceses invadiram militarmente a Tunísia e reprimiram uma rebelião e transformaram o país em um “protetorado” francês. No Egito, o processo se deu de maneira semelhante. Durante o processo de rivalidade inter-imperialista entre a França e a Inglaterra a fins de decidir quem removeria a soberania do povo egípcio, ocorreu o levante nacionalista da Revolta de Urabi, liderada pelo nacionalista egípcio Ahmed ‘Urabi, que entravava os interesses de ambas as potências. Em 1882 as tropas invasoras do Imperialismo britânico bombardeiam Alexandria e forçam os revoltosos a se renderem. Urabi se exilou no Sri Lanka, e a Inglaterra foi bem sucedida na colonização do Egito. Cabe mencionar o caso etíope aqui também. Em 1896, as tropas do Império etíope, com um contingente de cerca de cem mil soldados etíopes expulsaram as tropas italianas alienígenas. A Etiópia só viria a ser ocupada por tropas estrangeiras em 1936 até 1941, pelo fascismo italiano, o qual seria expulso também, pelas forças lideradas por Haile Selassie, processo do qual os comunistas também tiveram atuação importante. Em 1900 os únicos países do continente que não estavam sob domínio dos europeus eram a Etiópia, Marrocos que em 1911 viria a ser ocupado pela França, a Líbia, que em 1912 fora colonizada pela Itália, após guerra com o Império Otomano, e a Libéria, país projetado para abrigar escravos libertos dos Estados Unidos.[13] b) Massacres coloniais e embrião do movimento anticolonial Na história da expansão colonialista na África, os europeus colecionaram um sem número de massacres, e inclusive processos genocidários contra as populações nativas do continente, a fim de consolidar seu domínio. Entre estes podemos citar alguns mais emblemáticos: ● Congo - A “administração” do Congo belga era conhecida por ser um “modelo de administração colonial”, “colônia-modelo”, entre os imperialistas e colonialistas europeus. Na prática isso implica no fato das autoridades coloniais realizarem os mais diversos crimes, barbarismos e ações de banditismos contra a população originária. Uma de suas autoridades mais conhecidas, Charles Lemaire, diretor do distrito de Equateurville a partir de 1890, inaugurou diversos métodos brutais dos quais autoridades coloniais de outros países também reproduziriam: “Aqueles que não se mostrarem seus amigos terão a guerra. Para alimentar meus homens, as aldeias a montante virão mercadear na estação (...) assim como as aldeias a jusante (...). As aldeias fornecerão viveres aos brancos(...). Cada aldeia fornecerá gratuitamente por sua vez um garrafão de vinho branco.” Ao encontrar resistência por parte dos povos originários do país, explicita seus métodos sem nenhum escrúpulo: “Recusam-se a me vender a mínima coisa e eu já não disponho de viveres para alimentar meus homens. Assim, ameacei os indígenas de que, se eles continuarem a recusar os tecidos e as pérolas que eu lhes apresento, as armas é que falarão. Eu miro um grupo de negros e abato um homem a 300 metros. Todos desaparecem. Nós controlamos cinco pesqueiras e ali encontramos quatro galinhas, um pouco de mandioca e algumas bananas.”[14] No processo de extração da borracha, as relações de produção que foram submetidos os nativos variavam da corvéia ao trabalho forçado, do pagamento de impostos à entrega de produtos, e etc. O trabalho forçado foi legalizado em 1892. Kabenguele Munanga também afirma como o processo da sistematização do racismo colonial no Congo também se deu de maneira inclusive mais discriminatória do que nas colônias inglesas: “O ensino dispensado aos congoleses exclui sistematicamente a formação de elite. A pirâmide escolar compreendia um ensino primário largamente difundido (talvez o mais extenso de toda [13] MAGDOFF, Harry, Imperialismo: Da era colonial ao presente. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1979. p. 50 [14] M’BOKOLO, Elikia, África Central: O tempo dos massacres. In O Livro Negro do Colonialismo, org. Marc Ferro - Rio de Janeiro,: Editora Ediouro, 2004. pp. 503.


Figuras do Movimento Operário

a África), coroado por um ensino secundário muito reduzido e orientado para o exercício de uma profissão. O ensino universitário era inexistente, pois construir universidades é dar direitos políticos aos negros, na cabeça pensante do político colonial belga, seria favorecer a formação de descontentes e agitadores. [...] qualquer viagem interna no país fora da cidade ou aldeia de origem só podia ser feita com autorização dos serviços de imigração locais, viagens exteriores às colônias eram impensáveis”[15] ● Quênia - Após a Revolta dos Mau Mau, os ingleses usaram dos métodos mais brutais para reprimir a nação Kikuyu(o maior grupo étnico do país). Milhares de homens foram enviados a campos de concentração, e milhares de mulheres, crianças e idosos enviadas à prisão em “aldeias” fortificadas, montadas pelos britânicos, cercadas por trincheiras cravadas s arame farpado, onde ocorria tortura, fome e trabalho escravo forçado. Os britânicos chegaram a prender quase toda a população Kikuyu, que à época era de 1,5 milhões. Durante a revolta, os Mau Mau executaram pouco mais de 1000 colaboradores nativos, e 32 colonos ingleses, ao passo que o número de revoltosos assassinados varia entre 10.000 e 20.000[16] ● Namíbia - O famigerado genocídio dos hererós e namaquas ocorreu após os povos hererós atacarem uma fazenda de colonos alemães e executado ao todo 123 colonos alemães. As ordens dadas no ocorrido era de separar os alemães dos não alemães, poupando estes últimos. Anterior ao levante, Samuel Maharero disse em carta para um líder de outro grupo étnico : “As nossas fracas nações pela África devem se levantar contra os alemães e não deixá-los nos eliminar para que apenas eles vivam em nossa terra”. Com a chegada do General Lothar von Trotha, líder das autoridades militares coloniais, ao território do Sudoeste da África, ele foi contra a posição das autoridades coloniais de perdoarem os hererós que não tomaram parte da rebelião alegando que “Não se pode levar a cabo uma guerra humana com forças que não são humanas” e que a sua intenção era “destruir as tribos revoltosas com mar de sangue e dinheiro”. As tropas coloniais cercaram os campos de pasto de gado dos hererós, fazendo com que o único lugar do qual eles poderiam fugir seria para o deserto. Rapidamente, executaram 5000 pessoas e feriram gravemente 20.000. Confiscaram as águas dos sobreviventes fazendo com que eles tivessem que fugir para o deserto, e envenenaram a água que poderia ser encontrada no deserto. Os colonialistas alemães foram bem sucedidos em destruir 80% da população hereró na Namíbia, e 50% da população namaquas. Os sobreviventes foram subjugados ao trabalho forçado e campos de concentração, e as mulheres forçadas a concubinas(estupradas) dos alemães. Na prática os alemães destruíram as tribos e os modos de vida de toda a população hereró.[17] Evidentemente este processo não poderia se dar de maneira pacífica, de maneira que para levar a cabo plenamente seu projeto de colonização do continente, os imperialistas tiveram de enfrentar duras resistências por parte das massas nativas, algumas destas da qual citamos aqui. Para citar outros processos de levantes e rebeliões, podemos citar a Revolta de Abushiri, levada a cabo em Zanzibar, logo após a partilha da África; a Rebelião Maji-Maji na Tanzânia, quando os povos nativos se recusaram a plantar algodão para os alemães e passaram a atacar os colonos. O saldo da rebelião foi de 250 mil mortos por parte dos rebeldes; na África do Sul a Guerra Anglo-Zulu, anterior à Conferência de Berlim. Em um dado momento, o povo zulu chegou a ser vitorioso na batalha de Isandhlwana, mas foi derrotado na Batalha de Ulundi. Tais protestos espontâneos, junto de muitos outros que ocorriam em todo o continente, eram apenas o embrião do vigoroso movimento anticolonial que tomaria forma no século XX.

3. Dominação imperialista, Neocolonialismo e o papel de Kwame Nkrumah

a) O papel de Nkrumah Em seguida à liquidação do nazi-fascismo, e com o enfraquecimento em alguma medida das potências imperialistas europeias e do militarismo japonês, a luta dos povos oprimidos saltou para uma nova etapa. O velho colonialismo sofreu um baque imenso, a sua maior derrota, e a luta dos povos da Ásia, África e América Latina fez surgir novos Estados-Nacionais e saltar para outra [15] (MUNANGA, Kabenguele - Conferência Nacional de Política Externa, 2008 [16] Disponível em: http://kersplebedeb.com/posts/kenya-and-the-crimes-of-colonialism/ [17] Disponível em: https://combatgenocide.org/?page_id=153

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etapa nas lutas de libertação nacional. Tal processo acompanha o emergir dos Estados Unidos como principal potência imperialista de primeira ordem no mundo[18]. O movimento anticolonial no século XX gerou inúmeros aprendizados para os marxista-leninistas, tanto nos lugares onde tal luta foi dirigida pelos comunistas como onde não foi. A solidariedade entre os povos e a necessária unidade entre eles foi posta à prova, e alguns processos merecem destaque, tais como a Conferência de Bandung, a Conferência dos Estados independentes Africanos, a Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina(OSPAAL), com Ben Barka e Fidel Castro à frente, entre outras formas de se gerar a devida unidade entre os povos do Terceiro Mundo. Para a África, o pós-II Guerra começa turbulento, como no caso da independência do Congo. Patrice Lumumba, principal dirigente da luta por independência do povo congolês, é assassinado na região “independente” de Katanga, pelas forças pro-Imperialistas, principalmente norte-americano, que participaram diretamente do golpe e do assassinato. Pierre Mulele, marxista-leninista congolense que foi Ministro da Saúde no governo de Lumumba, embarca para a China Popular junto com outros companheiros, a fim de receber treinamento militar e desencadear a luta armada no Congo baseada na mobilização das massas operárias e camponesas. Em 1968, Mulele é torturado, desmembrado e executado publicamente pelo governo reacionário de Mobutu Sese Seko. Consideramos aqui que ignorar o aprendizado que podemos ter com as lutas anticoloniais do século XX bem como as tentativas por parte dos Marxista-Leninistas que participaram ativamente destas lutas, mesmo dirigindo-nas, e tentaram teorizar sobre a situação específica que viviam, também se trata de um desvio chauvinista. É fundamental para os comunistas no século XXI apreender e sistematizar o papel dos revolucionários que teorizaram sobre a situação no solo africano e tomaram um papel de destaque em suas lutas de libertação nacional: Amilcar Cabral, Thomas Sankara, Samora Machel, Pierre Mulele, Agostinho Neto, e aqui daremos particular importância à Kwame Nkrumah e seu papel na defesa da unidade africana e os passos do continente na superação da condição neocolonial. Conforme as velhas formas de colonialismo, o colonialismo formal, vai desaparecendo, aparecem as novas formas de colonialismo, de maneira que consigam levar a cabo a dominação do capital financeiro sobre o globo, garantir os superlucros dos grandes monopólios e assegurar suas zonas de influência, tal como Mao Tsé-tung resume: “Uma importante característica de tal neocolonialismo é que os imperialistas foram forçados a mudar sua velha forma de domínio colonial direto em algumas áreas e a adotar uma nova forma de domínio colonial e exploração confiando nos agentes que selecionaram e treinaram. Os imperialistas, com EUA à frente, escravizam ou controlam os países coloniais e países que já declararam sua independência organizando blocos militares, estabelecendo bases militares, ‘federações’ ou ‘comunidades’ e fomentando regimes fantoches. Por meio de ‘ajuda’ econômica ou outras formas, eles retém estes países como mercados para seus produtos, fontes de matérias primas e zonas de influências para a exportação de seus capitais, pilhagem de riquezas e sugar o sangue dos povos destes países(...)”.[19] O papel de Kwame Nkrumah ao se debruçar sobre essa nova forma de colonialismo, e seus impactos sobre o continente africano é especialmente importante, particularmente em sua obra “Neocolonialismo, último estágio do Imperialismo”, mas também em outros textos, como “Luta de Classes em África” e em sua própria vida política ativa. Começaremos dando um panorama histórico sobre o papel de Nkrumah e a luta em Gana e a defesa da unidade do povo africano. Nkrumah, no discurso que proclama a independência de Gana em 1957, afirma sua declaração histórica de que “A África deve se unir”, e que a própria libertação africana é sem sentido se não estiver ligada à libertação de todo o continente africano. A sua posição sobre “unidade africana” é bem clara em um discurso em Addis Ababa no Encontro de 32 Chefes de Estado e Governo Africanos, onde ele defende a integração política do continente, a fim de levar a cabo plenamente as aspirações de seus povos e não serem vítimas do neocolonialismo: “As massas populares da África estão clamando por unidade. Os povos africanos chamam pela derrubadas dos limites que os fragmentam. Eles exigem um fim às disputas [18] Desenvolvemos brevemente sobre o processo do emergir dos Estados Unidos como principal potência imperialista de primeira ordem na sétima edição da revista, em um trecho do texto sobre a caracterização da Rússia de Putin: https://issuu.com/uniaoreconstrucaocomunista/docs/revista7 [19] TSÉ-TUNG, Mao. Apologistas do Neocolonialismo, in A Carta Chinesa, pp.204


“De Lenin a Nkrumah: Imperialismo, colonialismo e neocolonialismo”

fronteiriças entre Estados africanos irmãos - disputas que surgem das barreiras artificiais criadas pelo colonialismo. Foi o propósito do colonialismo que nos dividiu. Foi o propósito do colonialismo que nos deixou com nosso irredentismo de fronteira, que rejeitou a nossa fusão étnica e cultural. O nosso povo chama por unidade para que ele não possa perder seu patrimônio a perpétuo serviço do neocolonialismo. Em sua fervente luta por unidade, eles compreendem que apenas a sua realização dará pleno significado à sua liberdade e à nossa independência africana. É esta determinação popular que deve nos mover para uma União de Estados Africanos Independentes. Se não agirmos brevemente, nosso bem-estar, e nossa própria existência enquanto Estados Livres correm perigo.(...) Os africanos se uniram em nossas resoluções para permanecer aqui até que concordemos sobre os princípios básicos de um novo acordo de unidade entre nós mesmos que garanta para nós e para o nosso futuro uma nova disposição em torno de um governo continental. Se formos bem sucedidos em estabelecer novos princípios como a base de uma nova carta pelo estabelecimento de uma unidade continental da África e pela criação de progresso político e social para nosso povo, então, a meu ver, esta conferência deveria marcar o fim de vários blocos regionais e grupos. Mas se falharmos e deixar esta grande e histórica oportunidade passar, então iremos abrindo caminho à maiores discórdias e divisões entre nós, das quais o povo de África jamais nos perdoará. E as forças e movimentos populares e progressistas dentro da África irão nos condenar.”

Tal processo não se deu da forma que Nkrumah defendia, da defesa de uma África unida e socialista, e em 1963 se funda a Organização de Unidade Africana. Na sua carta, a OUA se expressa assim, defendendo a cooperação entre seus Estados-membros: “1. A Organização deve ter os seguintes propósitos: (a) Promover a unidade e solidariedade dos Estados Africanos; (b) Coordenar e intensificar a sua cooperação e esforços em conseguir uma vida melhor para os povos de África; (c) Defender as suas soberanias, a sua integridade territorial e a sua independência; (d) Erradicar todas as formas de colonialismo da África; (e) Promover a cooperação internacional, tendo devidamente em conta a Carta das Nações Unidas ea Declaração Universal dos Direitos do Homem.”[20] Ainda que em última análise a criação da OUA e sua carta expressem as contradições com o Imperialismo e o colonialismo, nesse processo, a OUA se tornou, tal como defende o marxista-leninista belga Ludo Martens, o pan-africanismo da pequena-burguesia, que defendiam, inclusive, cooperar com os antigos Estados colonialistas. Martens havia realçado: “No próximo século XXI, o único pan-africanismo revolucionário é o pan-africanismo do proletariado africano, como Elenga M’Buyinga já havia remarcado em 1975”[21]. Elenga M’Buyinga, que em 1975 escreve um livro sobre a degeneração da OUA, comenta: “O Contexto neocolonial da OUA fará da criação desta Frente Única Revolucionária uma questão vital para todos os patriotas que lutam contra as ditaduras neocoloniais na África. Após 15 anos de ‘construção do socialismo’ na África, o balanço é triste: patriotas africanos e as massas de África como um todo não tem outra senão se guinar à criação de uma União de Repúblicas Socialistas da África como sua única esperança”. A OUA chegou até mesmo a, segundo Martens, assumir um papel na oposição ao plano de Che Guevara no Congo, que era de se unir com a guerrilha de Mulele em Kwilu. Nesse sentido, é importante apontarmos aqui, que Nkrumah ainda que defendesse o socialismo científico, em seus primeiros anos de vida política, até o Golpe de Estado em 1966, ainda aderia a uma visão eclética desse socialismo. Tanto Walter Rodney como Ludo Martens, em seu discurso no 7º Congresso Pan-africano, realizado em Kampala, Uganda, convergem nesse ponto. Walter Rodney, em seu discurso “Marxismo e Libertação Africana” comenta: “Em alguma medida, Nkrumah seguiu isso[a posição de diferenciar pan-africanismo do socialismo científico]; e ainda que ele se chamasse de Marxista, ele sempre era cuidadoso para qualificar isto dizendo que ele também era protestante(...). Nkrumah passou alguns anos durante os anos 50, e até ele ser derrubado, procurando por uma ideologia. Ele começou com essa mistura de Marxismo e Protestantismo, falava de pan-africanismo; migrou para o consciencismo e depois para o Nkrumahismo, e havia de tudo menos um entendimento rigoroso do socialismo. Vimos [20] Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/africa/OAU_Charter_1993.html [21] http://www.fafich.ufmg.br/luarnaut/Martens-Panafricanismo%20y%20marxismo%20leninismo.pdf

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em Gana que Nkrumah recusava firmemente em aceitar que haviam classes, que haviam contradições de classe em Gana, que estas contradições de classe eram fundamentais”. Por anos Nkrumah prosseguiu com esta mistura de filosofia que pegava algumas premissas socialistas mas ele se recusava a buscar sua conclusão lógica - que ou você tem um sistema capitalista baseado na propriedade privada dos meios de produção e na alienação do produto do trabalho do produtor, ou tem um sistema alternativo que fosse completamente diferente e que não tem como misturar estes dois ou criar algo novo e viável. Uma prova significante desta posição foi quando o próprio Nkrumah foi derrubado! Após ele ser derrubado, ele morou em Conakry na Guiné e antes de morrer, ele escreveu um pequeno texto, Luta de Classes em África, que é historicamente importante porque o próprio Nkrumah ali admite na prática as consequências enganosas de uma ideologia que abraçou uma causa africana, mas que sentia, por motivos que ele não entendia, uma necessidade histórica de se separar do socialismo científico. (...) Porque Nkrumah negava a existência de classes em Gana até que a pequena burguesia enquanto classe o derrubou. E depois, em Guiné ele disse que foi um erro terrível. Sim, há classes na África. Sim, a pequena burguesia é uma classe com interesses fundamentalmente opostos aos dos operários e camponeses na África. Sim, os interesses de classe da pequena-burguesia são os mesmos ou ao menos ligados aos interesses de classe do capital monopolista internacional; e portanto temos na África uma luta de classes dentro do continente africano e uma luta contra o Imperialismo(...). É um documento histórico importante. É o mais próximo que Nkrumah chega de uma autocrítica. É o registro de um genuíno nacionalista (...)”[22] Tal é a posição que Walter Rodney exprime. Para Ludo Martens, no discurso acima mencionado, as posições de Nkrumah até o golpe de Estado que o remove do poder em Gana, em 1966, são as posições de um pan-africanista pequeno-burguês que posteriormente passa para as posições do pan-africanismo proletário. Nkrumah fez o balanço de sua derrota e afirma textualmente que a “luta de classes está no centro do problema”, e que “o socialismo só será realizado através da luta de classes. Em África, o inimigo interno, que é a burguesia reacionária, deve ser desmascarado: trata-se de uma classe de exploradores, de parasitas e de colaboradores de imperialistas e neocolonialistas, dos quais depende a manutenção das suas posições privilegiadas. A burguesia africana é essencial à continuidade da dominação e da exploração imperialista e neocolonialista. Perante a necessidade da sua eliminação, um partido revolucionário socialista de vanguarda organizará e enquadrará a solidariedade operária-camponesa. Graças à derrota da burguesia indígena, do imperialismo, do neocolonialismo e dos inimigos exteriores da revolução africana, as aspirações do povo africano serão realizadas”.[23] Além disso, para ele, o “Proletariado, sob a direção de um partido de vanguarda guiado pelos princípios únicos do socialismo científico, derrubará a sociedade de classes”. Martens também afirma que Nkrumah se apoia na experiência da guerra revolucionária de massas de Pierre Mulele ao falar que “O Partido não chegará a seus fins sem utilizar todas as formas de luta política, incluindo a luta armada. Se a luta armada deve ser usada de maneira eficaz, ela deve ser centralizada”. Em seu discurso, de 1967 sobre “O socialismo africano revisitado”, Nkrumah também critica as posições em torno de um “socialismo africano”, e coloca que o caminho é justamente a devida aplicação do socialismo científico no continente africano, tendo em vista as suas particularidades históricas. Nkrumah, em “Caminho Revolucionário”, registro dos dois últimos anos de sua vida, expressa o seu pensamento mais maduro: “Os temas centrais que devem percorrer o livro devem ser: A) O marxismo como princípio chave da Revolução Africana; B) A revolução socialista só pode triunfar quando operários e camponeses estiverem mobilizados sob a liderança de um Partido Marxista; C) Para desenvolver um movimento revolucionário, se deve combinar várias formas de luta- política e econômica, legal e ilegal, violenta e não violenta” O Centro de Estudos Consciencistas, que estuda a obra de Nkrumah, afirma que existe uma divisão na África entre aqueles que reivindicam o legado de Nkrumah. Que, em essência, essa divisão se dá entre aqueles que defendem o socialismo científico e os constitucionalistas burgueses, que defenderiam o neocolonialismo. Segundo eles, o próprio Partido da Convenção do Povo, partido de Nkrumah, desde a sua morte se orientou para o constitucionalismo burguês como [22] Disponível em: https://www.marxists.org/subject/africa/rodney-walter/works/marxismandafrica.htm [23] NKRUMAH, Kwame. Luta de Classes em África


“De Lenin a Nkrumah: Imperialismo, colonialismo e neocolonialismo”

tendência dominante. Por conta desta distorção de seu legado se torna ainda mais imperiosa a tarefa dos comunistas de se debruçarem e reivindicarem a sua figura, e defender seu legado como um autêntico revolucionário que, mesmo com seus erros em um dado momento, lutou para corrigí-los e teorizar a aplicação do socialismo científico para a realidade concreta do continente africano. b) O Neocolonialismo Outra questão chave da qual Nkrumah se debruça e devemos nos ater é sobre a penetração imperialista no continente africano, tanto nos Estados independentes semicoloniais como em suas colônias formais. Para tal, Nkrumah escreveu “Neocolonialismo, último estágio do Imperialismo”. Nkrumah observa que o Imperialismo, e principalmente os Estados Unidos, estavam mudando suas táticas conforme as lutas por independência iam sendo vitoriosas. Assim Nkrumah afirma que “ nos territórios neocolonialistas, uma vez que a antiga potência colonial teoricamente cedeu o controle político, se as condições sociais provocadas pelo neocolonialista causarem uma revolta, o governo neocolonialista local pode ser sacrificado e outro, igualmente subserviente, posto em seu lugar“. Nkrumah afirma dois instrumentos novos da ONU que exercem seu papel na política imperialista: o Banco Mundial e o FMI: “Outra armadilha neocolonialista na frente econômica veio a ser conhecida como ‘ajuda multilateral’, através de organizações internacionais: O FMI, o Banco Mundial, a Corporação Internacional da Finança e a Associação Internacional de Desenvolvimento são exemplos, todos eles, significativamente tendo o capital norte-americano como seu maior financiador Esses órgãos tem o hábito de forçar os candidatos a empréstimo a se submeterem a várias condições ofensivas, como o fornecimento de informações sobre suas economias, submeter sua orientação e planos a exame pelo Banco Mundial e aceitar a supervisão do uso dado aos empréstimos. E quanto ao desenvolvimento alegado, entre 1960 e meados de 1963, a Associação Internacional de Desenvolvimento prometeu um total de 800 milhões de dólares a candidatos, dos quais apenas 70 milhões chegaram realmente a ser recebidos”. É sintomático também os dados sobre essa “ajuda”, que Nkrumah expõe em seguida, segundo dados do The Times de 1965. Segundo os dados fornecidos, os dados em ajuda fornecida chegaram a 600 milhões de libras. Oriente Médio recebeu cerca de 40% do total, Ásia 36%, África, 22% e a América Latina o restante. Sobre o processo de “dumping” por parte do Imperialismo, Nkrumah se debruça descrevendo como os grandes monopólios controlam os preços das mercadorias reduzindo seus preços e extraíram cerca de 41 bilhões de dólares em lucros de 1951 a 1961.. E enquanto 30. Milhões de dólares em capital era exportado à 56 países subdesenvolvidos entre 1956 e 1962, os lucros extraídos da soma dos países devedores chegava a mais de 15 milhões. Nas demonstrações da expansão imperialista sobre a África, ele vai citando os exemplos em todos os países onde as empresas monopolistas se instalam e atingem superlucros. Também é importante sua análise sobre o crescimento de 679 milhões do investimento direto dos Estados Unidos na África entre 1945 e 1958. Ao mesmo tempo, a África teve prejuízo de 555 milhões de dólares. E segundo os dados das empresas, o lucro líquido bruto é de quase 1 milhão e meio, o que faz Nkrumah concluir que os lucros obtidos na África são de quase 100%. Sobre os crescentes investimentos de capital na África, Nkrumah afirma, que “estende-se a partir das fusões monopolistas do capital financeiro norte-americano e europeu, particularmente dos que estão combinados no âmbito do Mercado Comum Europeu, onde os consórcios financeiros foram organizados como os meios mais eficientes de tirar lucros da batalha de competição que cresce em espiral dentro dessa chamada organização unificadora. O objetivo primordial é monopolizar as fontes de matérias-primas da África e não, como se assegura, auxiliar as nações africanas a desenvolverem suas economias, pois o material é retirado de um modo geral em seu estado bruto ou sob a forma de concentrados, para favorecer a capacidade produtiva das nações imperialistas e ser devolvido às nações de origem sob a forma de equipamento pesado para a indústria extrativa e da infra-estrutura para carrear do país os recursos”. Nkrumah nota quatro principais métodos de exploração neocolonial. As corporações multinacionais que supervisam um aspecto da exploração e uma forma de “comércio invisível” performado por elas para manter a garantia dos superlucros, a “ajuda” fornecida aos países africanos, a sua dívida, e a balcanização. Além disso, Nkrumah também observa a religião, particularmente o evangelismo, do qual ele nota ter havido uma enorme enchente de seitas religiosas em segui-

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da da independência, principalmente seitas norte-americanas, e cita as Testemunhas de Jeová como exemplo. E para Nkrumah, o Imperialismo opera também infiltrando agentes no movimento operário dos países imperialistas, tais como a AFL-CIO, o Labor Party na Inglaterra, etc. O tema da balcanização é importante aqui, e para Nkrumah é o mecanismo mais eficaz em garantir a dominação sobre os países africanos. Para Nkrumah, a imposição da Federalização por parte dos países imperialistas aos países africanos recém-independentes faz parte de uma tentativa de fragmentar o povo africano. Observando esse processo, ele menciona o caso nigeriano, cuja constituição pós-Independência “dividia o país em quatro regiões frouxamente ligadas em bases federativas, mas com suficientes poderes reservados às regiões para poderem arruinar qualquer planejamento econômico”. Também foi o caso de tal imposição à constituição do Quênia, e tentaram impor tal federalização para Gana e Guiné que resistiram à pressão dos Imperialistas. Posteriormente, na Nigéria, como outra forma de balcanização do país, ocorreram tentativas de secessão por parte do Biafra. Amilcar Cabral comenta tal processo: “A Nigéria hoje está despedaçada por causa do trabalho de sabotagem dos imperialistas, por causa da ambição de indivíduos formados na Europa que querem à viva força ser Presidentes da República e que procuram dividir o povo nigeriano, inventando histórias de Biafra e outras que tais(...) Os imperialistas sabem que há muito petróleo na Nigéria e resolveram criar a desgraça na Nigéria — a guerra que se chama do ‘Biafra’... O problema do Biafra é um problema falso. A nossa posição nesta matéria é muito clara: respeitamos as decisões da Primeira Conferência dos Chefes de Estado de África, isto é a carta da OUA. A Carta foi estabelecida e toda a gente adotou o princípio de que se deviam respeitar as fronteiras e a unidade dos Estados Africanos. A Nigéria é um Estado, com fronteiras bem definidas. Consideramos que não há conflitos que não possam ser resolvidos no quadro da unidade nigeriana. Seria servir o imperialismo começar a dividir ainda aos bocados esta África já tão dividida. 0 povo Ibo, como todos os outros povos, como todos os grupos étnicos de África, tem direito a uma vida em segurança, mas esta segurança não exige necessariamente o parcelamento e a secessão da Nigéria. Somos abertamente pela unidade da Nigéria e que todas as etnias na Nigéria possam viver em paz e em segurança. Acreditamos firmemente que isto é possível, se não houver potências estranhas à África a meterem-se na questão nigeriana e a apoiar uma guerra fratricida” Esse processo de “balcanização” foi uma das principais armas que os imperialistas usaram para inflar divisões artificiais nos povos africanos, principalmente após as guerras de independência. Há também o caso de “Cabinda” em Angola, Katanga no Congo, e recentemente, do Sudão do Sul. d) Amilcar Cabral e a teoria do “Suicídio de Classe” Outro importante dirigente revolucionário marxista-leninista que deu importantes contribuições para as lutas do povo africano, e relacionou a questão da luta pela independência com o socialismo, e com a luta contra o neocolonialismo após a conquista das independências formais. Para Amilcar Cabral, “o caso neocolonial (em que as classes trabalhadoras e os seus aliados se batem simultaneamente contra a burguesia imperialista e a classe dirigente nativa) não é resolvido através de uma solução nacionalista, exige a destruição da estrutura capitalista implantada pelo imperialismo no solo nacional e postula, justamente, uma solução socialista”. E, sobre qual classe deveria ser o sujeito da revolução de libertação nacional, afirma: “a classe trabalhadora composta dos operários da cidade e dos proletários agrícolas, todos explorados pela dominação indireta do Imperialismo, constitui a verdadeira vanguarda popular da luta de libertação nacional”. Desenvolvendo sobre a sociedade de classes em Guiné-Bissau, Amilcar formula o princípio do “suicídio de classe”. Dada a escassa classe operária existente, e também ao fato de o domínio português não ter assentado as bases para uma burguesia autóctone em Guiné-Bissau e Cabo Verde, a pequena burguesia deveria desempenhar um papel fundamental na luta por independência. Inclusive, para Amilcar Cabral, esta era uma das fraquezas de sua luta de libertação nacional. Ainda assim, a pequena-burguesia ficaria dividida entre aqueles setores desta classe que assumem seu papel revolucionário, e aqueles que preferem se alinhar ao colonialismo. As próprias condições objetivas de Guiné Bissau também exigem que a pequena burguesia ali adquira uma maior consciência revolucionária. No entanto, dada as limitações objetivas da pequena-


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-burguesia, de não estar ligada à produção, de no caso de Guiné Bissau, ser necessariamente uma classe ligada ao setor dos serviços, ela deve então assumir dois tipos de caminhos diferentes na conquista do poder: um é assumir sua posição de aburguesamento, e se transformar em uma burguesia intermediária da dominação imperialista, o que para Cabral é “a situação neocolonial”, e “trair os objetivos da libertação nacional”. O outro caminho, para não trair tais objetivos, é o do “suicídio de classe”, onde ela reforça a sua consciência revolucionária, identificar-se às classes trabalhadoras e deixar estas assumirem o papel dirigente do processo revolucionário, no curso de seu desenvolvimento. Para Cabral,“esta alternativa — trair a revolução ou suicidar-se como classe — constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional”. 4. Ofensiva Imperialista na África contemporânea a) Tentativas de recolonização Desde a hegemonia unipolar dos EUA enquanto potência Imperialista, sobretudo após a queda da URSS e com a ofensiva neoliberal nos anos 90, as grandes potências imperialistas, com EUA à frente, vem manifestando a tendência de recolonização do terceiro mundo. Avançam contra os povos em guerras de pilhagem e saque neocolonial para assegurar recursos naturais, mão de obra barata e zonas de influência para a exportação de seus capitais. Um aspecto importante desse processo de recolonização sobre a África, principalmente expansão militar, é o AFRICOM. O AFRICOM é o Comando dos Estados Unidos para a África. Foi criado pelo George W. Bush em 2007, para proteger os interesses estratégicos dos Estados Unidos no continente africano, e desde então a sua manutenção é financiada com milhões de dólares pelo orçamento norte-americano, ano a ano. Em 2010, a Casa Branca solicitou 275 milhões de dólares para financiar as operações da AFRICOM. As principais formas de atuação da AFRICOM quando surgiu foram de entregar armas a partir da Ucrânia para a Guiné Equatorial, Chade, Etiópia e ao governo de transição na Somália, o que indica o uso do poder militar a fim de manter a sua influência em seus respectivos governos[24]. Em Dezembro de 2012, Obama enviou 3500 Forças Especiais e especialistas militares para 35 Estados africanos como parte de operações contra-terroristas, e a partir do AFRICOM foram instaladas estações de drones e operações conjuntas na Somália, Egito, Sudão do Sul, Uganda, República Democrática do Congo, Seicheles, Gana, etc. É interessante os comentários tecidos pelo intelectual Moniz Bandeira alguns dos interesses que permeiam a AFRICOM: “O AFRICOM não possuía nenhum batalhão dos Marine Corps em suas bases desde que fora criado pelo presidente George W. Bush, em 2007. Suas atividades eram realizadas pelos private military contractors (PMCs), i.e., pelos mercenários da DynCorp International e outras, que propiciavam apoio logístico e o treinamento militar para as forças armadas africanas, a um custo de US$ 100 milhões, dentro do programa African Contingency Operations Training and Assistance. A DynCorp obtivera contrato de US$ 20 milhões para sozinha dar suporte em operações e manutenção dos quartéis Edward B. Kessely Barracks e Camp Ware, na Libéria. Outras companhias, inclusive a PAE Government Services (subsidiária da Lockheed Martin) e a Protection Strategies Inc., receberam contratos – cada uma – no valor de US$ 375 milhões e a KBR Inc., antiga subsidiária da Halliburton, foi contratada para dar apoio a três bases militares em Djibuti, Quênia e Etiópia usadas pela U.S. Combined Joint Task Force-Horn of Africa. A Northrop Grumman, por sua vez, foi contemplada com US$ 75 milhões para treinar 40.000 peacekeepers africanos ao longo de cinco ano, e a MPRI (Military Professional Resources Inc.), divisão da L-3 Communications, o Departamento de Estado contratou para treinar militares no Benin, na Etiópia, em Gana, no Quênia, no Mali, no Malawi, na Nigéria, em Ruanda, no Senegal, bem como para prover assistência às forças armadas da África do Sul.”[25] No final de 2016, em Novembro, a AFRICOM elaborou um “plano de cinco anos” de intervenções no continente africano[26]. Tais prioridades estabelecidas por este plano foram: 1Neutralizar o grupo terrorista Al-Shabab, na Somália e transferir a responsabilidade de o com[24] http://www.papelesdesociedad.info/IMG/pdf/africom.pdf [25] Luiz Alberto MONIZ BANDEIRA, “A SEGUNDA GUERRA FRIA – GEOPOLÍTICA E DIMENSÃO ESTRATÉGICA DOS ESTADOS UNIDOS – Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio”, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2013. pg. 315 [26] https://www.defense.gov/News/Article/Article/639919/africom-campaign-plan-targets-terror-groups

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bater para a Amisom(Missão da União Africana), cujas tropas são treinadas pelos EUA e majoritariamente de governos próximos aos Estados Unidos, tais como Uganda, Etiópia e Quênia; 2- Conter a instabilidade na Líbia; 3- Combate ao Boko Haram; 4- Reforçar combate à pirataria na África Central; 5- Reforçar a “assistência” aos parceiros africanos em casos de catástrofes. É evidente que tais processos se resumem a ampliar o escopo de atuação militar do complexo industrial-militar norte-americano. Os interesses do AFRICOM e de sua expansão não são escondidos nem pelas classes dirigentes do Imperialismo norte-americano, como podemos ver que na Conferência do AFRICOM em 2008, o vice-almirante Moeller, chefe da AFRICOM, designado pelo próprio Bush, afirmou que os “Um dos princípios que guiam a AFRICOM é a proteção do livre fluxo dos recursos naturais da África para o mercado global”. Continuando, ele citou especificamente a “interrupção nos campos de petróleo”, “terrorismo”, e a “crescente influência da China como um grande desafio aos interesses dos Estados Unidos na África”.[27] Além disso, existe o caso notável da militarização do Djibouti por parte do Imperialismo. Em 2013, foi instalada no Djibouti, a “Força combinada de intervenção do Chifre de África” (CJTF-HOA), uma das principais bases de suporte ao AFRICOM. O Djibouti é uma dos países mais estratégicos do continente para os interesses do Imperialismo, pois se situa entre a Somália, Etiópia e a Eritreia e está apenas 19 quilômetros do Mar Vermelho, vizinhando com a Península Arábica e o Iêmen. O país também é lugar da maior base militar dos Estados Unidos na África, o Camp Lemonnier, com mais de 4000 soldados, e que recentemente se renovou a sua permanência no país por mais dez anos. Além de um aeroporto militar usado por países como EUA, França e Japão, uma base naval francesa, em seu território sedia o maior contigente militar francês sediado de fora da França, com 1700 soldados, “Forças Francesas Estacionadas no Haiti”, que é originário de um acordo com o país logo após a sua independência, em 1977. Segundo relatório do próprio Departamento do Estado dos Estados Unidos, em Agosto de 2013: “O Djibouti está situado num ponto estratégico do Chifre de África e é um parceiro chave dos EUA para a segurança, estabilidade regional e esforços humanitários no grande Chifre. O Governo de Djibuti tem apoiado os interesses dos EUA e adota uma posição proativa contra o terrorismo. O Djibouti alberga uma presença militar estadunidense em Camp Lemonnier, uma antiga base da Legião Estrangeira francesa na capital. O Djibouti permitiu também que os militares dos EUA, bem como outros militares presentes em Djibouti, tenham acesso às suas instalações portuárias e ao aeroporto.”. As operações da CIA em continente africano também aumentaram: “A CIA coordena um programa de contra-terrorismo para os agentes de inteligência da Somália e operativos com o objetivo de construir uma força de ataque interna capaz de realizar operações de combate dirigidas contra membros de Al Shabab, um grupo militante islâmico com laços estreitos com a Al Qaeda. Como parte da expansão de seu programa contra-terrorismo na Somália, a CIA também usa uma prisão secreta enterrada no porão dos quartéis da Agência de Segurança Nacional da Somália...Alguns dos prisioneiros foram arrebatados das ruas do Quênia e transportados de avião para Mogadíscio.”[28] Entre as expansões imperialistas mais notáveis também segue a criminosa agressão à Líbia, com no mínimo 30.000 mortos após a invasão da OTAN à Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia, cujo chefe de Estado, assassinado e estuprado, era presidente da União Africana. Após a agressão ao povo líbio, hoje o país vive um estado de completa desordem. Os rebeldes, anteriormente financiados pelas grandes potências, após serem bem sucedidos enquanto soldados informais da OTAN, hoje estão matando uns aos outros, chegando a, em 2012, ter gerado 147 pessoas e ferido 395, em uma disputa tribal no Sudeste do país[29]. Os antigos rebeldes também chegaram a metralhar o escritório de administração do Primeiro-Ministro, alegando que não estavam sendo pagos pelos seus serviços[30], após uma interrupção nos pagamentos pelos serviços prestados, que chegavam a 1,4 bilhões de dólares[31]. O novo governo [27] https://libyadiary.wordpress.com/2011/11/18/africom-an-imperialist-tool-for-re-colonizing-africa/ [28] http://www.mintpressnews.com/obamas-legacy-in-africa-terrorism-civil-war-military-expansion/224155/ [29] https://www.theguardian.com/world/2012/mar/31/libya-tribal-clashes-sabha-deaths [30] http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-17995427 [31] http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/africaandindianocean/libya/8492745/Libyan-rebels-to-receive-1.8-billion-trust-fund.html


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em 2012 passou uma lei que criminaliza qualquer crítica à “revolução” de 2011, e menções positivas a Kadhafi[32], e uma lei que torna imune os rebeldes de serem processados por seus crimes de guerra, afirmando que eram “atos em defesa da da revolução”[33]. Crimes de guerra como os estupros contra as mulheres líbias, a limpeza étnica na cidade de Tawergha que se transformou em uma cidade-fantasma, as perseguições aos líbios negros pela brigada de Misrata, e todos demais massacres levados a cabo pelos rebeldes não poderão ser julgados. Uma das mais brutais expedições imperialistas dos últimos anos, a invasão da OTAN à Líbia Verde também foi uma ofensiva recolonizadora sobre a África de maneira geral, cujos objetivos, entre outros, também estava a expansão da AFRICOM sobre o continente, da qual Kadhafi se opunha. É sintomático ver que logo após a derrubada de Kadhafi, o General Ham, da AFRICOM, afirmou que “estavam procurando por formas que poderiam ser úteis, e que o novo governo deveria achar um jeito de formar um exército”. Não obstante isso, no mesmo mês que Kadhafi foi assassinado, em Outubro de 2011, os Estados Unidos anunciou enviar tropas especiais norte-americanas para quatro países africanos: Uganda, República da África Central, Sudão do Sul e República Democrática do Congo. Além disso, a tendência geral nos últimos anos, desde 2011, é de que a União Africana, da qual Kadhafi era presidente quando vivo, se integre ao AFRICOM, com propostas de cooperação e colaboração. Jean Ping, antigo Presidente da Comissão da União Africana até 2012, em reunião com o Comandante do AFRICOM, General William Ward, criticou Kadhafi por sua postura de impedir o avanço do AFRICOM na Mauritânia, e foi criado pela AFRICOM, um Sistema de Informação de Comando, Controle e Comunicação, alegando que facilitaria a comunicação da União Africana nas Operações de Paz.[34] Esta posição de integrar a UA com o AFRICOM, sob a tutela dos Estados Unidos, é fundamentalmente distinta da posição de Kadhafi quando este estava entre as lideranças da UA. Kadhafi defendia a criação de um “Banco de Desenvolvimento da União Africana”, com investimento inicial de 30 bilhões por parte do governo líbio, e ao todo os investimentos líbios na África chegavam a 150 bilhões, sendo um dos grandes obstáculos à expansão do AFRICOM. Assumir isso também implica fazer a crítica às próprias limitações de Kadhafi, com suas posições conciliadoras e capitulacionistas por muito tempo de sua vida. A partir de 2003, Kadhafi aceita a retórica da “guerra ao terror” e se desarma renunciando às armas nucleares, reabre a embaixada estadunidense em seu país e abre as portas do país às petrolíferas estrangeiras. Financiou as eleições de Sarkozy com 50 milhões de euros, e foi traído pelo próprio, sendo a França o primeiro país a atacar a Líbia pelo ar. A aproximação do governo líbio do Imperialismo, e as privatizações levadas a cabo nos anos 90 pelo programa econômico dirigido pelo economista estadunidense, Michael Porter, contratado pelo próprio Kadhafi, isolaram o governo das massas e criaram as condições para os Imperialistas aproveitarem este descontentamento e levarem a cabo suas medidas murdochianas contra o povo líbio e reverter as conquistas democráticas do antigo governo, que ainda exprimia contradições com o Imperialismo mesmo com suas limitações. Ainda assim, Kadhafi resistiu até o fim de sua vida com armas em punho ao lado das massas em Sirte, até seu brutal assassinato pelos rebeldes mercenários. b) Desenvolvimento desigual e produção pré-capitalista Dentro de algumas posições gerais, mesmo de figuras que combatem a espoliação neocolonial no continente africano, que defendem a sua independência face às intervenções imperialistas, existem certas confusões acerca dos desdobramentos da opressão nacional imperialista sobre o continente. Entre tais confusões, existem aquelas que confundem o fato da espoliação imperialista e a inserção do continente na divisão internacional do trabalho (que é o sistema imperialista mundial), ou seja em alguma medida inserida no “capitalismo global”, as sociedades africanas, internamente, necessariamente já operariam, em todos seus aspectos, dentro das leis de desenvolvimento capitalista. Tal perspectiva leva em conta, em grande medida, uma superestimação do papel, não apenas sobre o continente africano, da circulação de mercadorias e subestima a análise das relações de produção e os desdobramentos da dominação imperialista [32] http://www.hrw.org/news/2012/05/05/libya-revoke-draconian-new-law [33] http://www.libyanjustice.org/news/news/post/23-lfjl-strongly-condemns-new-laws-breaching-human-rights-and-undermining-the-rule-of-law [34] Disponível em: The African Union; Addressing the challenges of peace, security, and governanc

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nas formações sociais e na articulação dos modos de produção dos países oprimidos. Na verdade, nós devemos assumir que a manutenção de relações de produção pré-capitalistas, e a coexistência destas com relações de produção capitalistas, são fundamentais para a dominação imperialista sobre os povos, pois estas permitem aos grandes monopólios imperialistas e à grande burguesia nativa lacaia do Imperialismo, retrair a economia dos povos coloniais e semicoloniais, e oferecendo oportunidades de retorno alto para estes monopólios, dada à baixa taxa de composição orgânica do capital e a utilização de relações sociais que se baseiam na coerção extra-econômica da força de trabalho, além de tornar possível a baixa industrialização dos países subdesenvolvidos o relegando às condições de países agro-exportadores, que importam produtos manufaturados e industrializados.[35] No caso do continente africano em particular, evidentemente tendo em vista cada caso particular de cada país, é interessante observarmos o papel do capital comercial, que maximizando o fluxo das transações, destruiu as estruturas sociais existentes antes da colonização, o que criou condições hostis ao aparecimento de uma industrialização nativa, o que fez com que no momento que os países desenvolvidos chegam à etapa imperialista, este próprio capital comercial anterior busca manter as formações sociais pré-capitalistas maximizando a produção de mercadorias para as metrópoles e mantendo as condições para comércio lucrativo para a metrópole.[36] Recentemente em artigo publicado na Monthly Review sobre a África subsaariana, se escreve: “Os países africanos de dita ‘renda média’ são o Senegal, Zimbábue, Suazilândia, Costa do Marfim, a República do Congo, Camarões, Botswana, Gabão e a África do Sul. Ainda assim, com a exceção da África do Sul e seus vizinhos próximos, e a exceção parcial da Costa do Marfim, a maior parte dos cidadãos destes países geralmente não estão melhores do que seus vizinhos aparentemente mais pobres: a maior parte dos países de renda média são exportadores de minerais, e sua renda per capita aparecem impulsionados pelo valor do petróleo e outros minérios que as grandes corporações transnacionais extraem e exportam deles. Na maior parte da África, mesmo em países com grandes exportações de minérios, a vida econômica ainda em grande parte gira em torno de um ciclo agrícola que permanece agudamente dependente de condições climáticas inconstantes. O crescente aumento da população significa uma força de trabalho sem terra constantemente se expandindo, parcialmente trabalhando por salários de subsistência nas terras de outras pessoas, parcialmente desempregados ou em subempregos nas cidades, algumas vezes migrando para países vizinhos (como da Burkina Faso para a Costa do Marfim), vivendo de rendas marginais e com escassos serviços do Estado, mesmo educação e saúde. Esta situação aparenta pronta para persistir, ou piorar; após um momento de otimismo no meio dos anos 90, ninguém agora espera ver o 5% de crescimento do PIB por ano que é acordado ser necessário para qualquer redução significante da pobreza (dado o crescimento da população média no subcontinente ser de 2,7% ao ano)”[37] Seguindo, o texto continua: “Um perfil econômico desenhado desta perspectiva prestaria escassa atenção para países ou Estados, exceto no que tange a segurança física de investimentos fixos e a avaliabilidade de comunicações e facilidades de transporte. Ao invés disso, iria destacar um grupo de grandes corporações transnacionais, principalmente empresas mineradoras e um padrão de depósitos minerais, codificados de acordo com seu tamanho e valor estimado e os custos de explorá-los(que os avanços técnicos estão constantemente reduzindo) - e algumas poucas ações africanas que valem a pena investir. Este mapa também iria incluir várias oportunidades agrícolas, como as fazendas produtoras de chá, café, cacau, algodão, açúcar e afins; algumas manufaturas de baixa tecnologia para mercados locais, como cerveja e bebidas leves, plástico e cimento; e uma quantidade bem limitada de manufaturas para exportação (por ex., de têxteis) por subsidiárias de empresas estrangeiras, principalmente sob a convenção de Lom que deu aos países africanos acesso especial aos mercados europeus. (...) E em nenhuma versão deste mapa, mas existe na realidade, está as oportunidades de negócios ilegais, do roubo de diamantes ao comércio de armas e tráfico de drogas, que a corrupção e o colapso da autori[35] LEYS, Colins. Underdevelopment and Dependency: Critical notes [36] LEYS, Colins. Underdevelopment and Dependency: Critical notes [37] http://monthlyreview.org/1999/07/01/sub-saharan-africa-in-global-capitalism/


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dade do Estado de maneira crescente criam condições. Em suma, um perfil de um capitalismo ‘neo-imperialista, cruel’, explorando o povo e os recursos, mas frequentemente não precisando - e normalmente incapaz de construir - as amplas estruturas políticas, sociais e econômicas necessárias para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e sustentadas por acumulação de capital de base ampla. Em outro trabalho sobre as relações de produção no continente, “o mais surpreendente do estudo do trabalho no final do século XIX é que mesmo em regiões de grande nível de comércio como o norte da Nigéria, era a longevidade e adaptabilidade das ditas relações de produção pré-capitalistas’. E mesmo na Mauritânia, Angola, Mali, ‘formas tradicionais de recrutamento pessoal continuavam a dominar mesmo onde existiam salários ou algo comparável a isso.”. Na verdade, a expansão das relações capitalistas não cumpriam a função da reprodução ampliada do capital mas sim de se articular com os sistemas de produção existentes. Mesmo na região mais industrializada do país, a África do Sul, se nota esse processo: “No Sul da África, o excedente da indústria foi desviado através de salários, pagamentos de incentivos e impostos para reproduzir e, por vezes, para aumentar os chamados setores “tradicionais”. O clientelismo permaneceu crítico ao moldar a composição demográfica e geográfica da força de trabalho, assim como resquícios de estruturas de autoridade influenciavam como a força de trabalho operava. Ambas permaneciam centrais para o recrutamento de trabalho nas minas apesar da estrutura paralela das relações capitalistas de produção, e o valor gerado na esfera capitalista continuou a ser apropriado e redistribuído através de relações de acumulação não-capitalistas (...) No Sul da África(assim como em outros lugares no continente) as esferas ‘capitalista’ e ‘pré-capitalista’ não coexistiam meramente; havia um processo de articulação entre elas ocorrendo que permanece hoje” De maneira geral, a consequência das posições que tendem a superestimar as relações de produção capitalistas e o nível do desenvolvimento capitalista no continente africano é a da proletarização do continente. Também é interessante pensarmos o porque a ofensiva raivosa dos imperialistas hoje no continente ter se dado justamente contra um país que levou a cabo uma reforma agrária burguesa, de distribuição das terras aos camponeses, pobres e médios, que é o caso do Zimbábue do Presidente Robert Mugabe, com o Programa de Reforma Agrária Acelerada (FTLRP)[38], se a expansão das multinacionais no continente teria gerado um processo de “proletarização” e desenvolvimento capitalista. Também podemos citar o caso da Etiópia, que não faz parte da OMC, um dos instrumentos da dominação imperialista, e a sua produção industrial ter crescido cerca de 15% ao ano nos últimos cinco anos. A nós, falta o estudo necessário sobre a economia na Etiópia após a queda do socialismo no país, e no século XXI, mas é notável a tentativa do país de desenvolver sua economia nacional, ainda que devamos ter em vista as limitações disso dada a impossibilidade de um desenvolvimento autônomo na época do Imperialismo. O que se encontra aí na verdade é o fato que os países imperialistas para levar a cabo a sua dominação devem entravar o desenvolvimento das forças produtivas dos países dominados, e nesse processo, necessitam manter todas as formas pré-capitalistas de produção lado a lado de relações de produção capitalistas, assalariadas. Não se trata de compreender o caráter da revolução nos países do continente africano como uma revolução burguesa clássica, cuja tarefa é o mero desenvolvimento do capitalismo. Na verdade esse processo enfatiza a necessidade do socialismo, e o coloca na ordem do dia à medida em que a burguesia nacional dos países dependentes não é capaz de levar a cabo as tarefas de libertação nacional. De tal maneira, conseguimos compreender os desdobramentos da dominação imperialista sobre o continente e em que medida podemos entender o que se trata seu subdesenvolvimento, e qual a etapa da luta de classes se situam os povos de África, e assim assimilar quais são as tarefas para concretizar suas aspirações, e combater o Imperialismo. Assim também podemos assimilar certos ensinamentos das revoluções anticoloniais no continente africano, e quais os sujeitos históricos que são capazes de levar até o fim as tarefas de libertação nacional. [38] Sobre o Zimbábue: https://www.novacultura.info/single-post/2016/12/05/A-Nova-Democracia-e-o-ZANU-PF-O-Caminho-Revolucion%C3%A1rio-de-Zimb%C3%A1bue

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5. Conclusão O processo de expansão imperialista ao continente africano, a espoliação de seus povos e a opressão nacional e o racismo colonial por estes sofridos e levados a cabo pela dominação global do capital financeiro exige uma atenção especial por parte do movimento comunista,de maneira que consiga emitir a solidariedade plena para o povo do continente africano, a fim de que consigam atingir suas aspirações por independência, emancipação e autodeterminação, combatendo, de maneira independente, qualquer interferência em seus assuntos internos, o racismo colonial e em defesa da unidade de seu povo. Neste momento atual de tentativas de recolonização e expansão militar do Imperialismo norte-americano, de boicote ao Zimbábue do Presidente Robert Mugabe, do avanço das forças pro-imperialistas na Costa do Marfim e a ocupação criminosa na Líbia, tal tarefa demanda ainda maior necessidade. Também devemos assimilar as contribuições dos grandes dirigentes revolucionários africanos, tais como Pierre Mulele, Samora Machel, Agostinho Neto, Kwame Nkrumah, Sekou Toure, Amilcar Cabral, Kwame Nkrumah, entre tantos, que lutaram não apenas pela emancipação do jugo do colonialismo e do Imperialismo, no combate à exploração de um povo por outro povo, como também de toda e qualquer exploração no mundo, e para tal tarefa, teorizaram a aplicação da teoria viva do socialismo científico nas realidades e aspirações do continente africano. Estudar os desenvolvimentos da opressão imperialista contra os povos do continente africano também demonstra a justeza e a atualidade da teoria leninista do Imperialismo, e consequentemente do Marxismo-Leninismo, e como as tarefas para a libertação nacional possuem ligação com a construção do socialismo, e só são concretizadas efetivamente ao passar para a etapa do socialismo. Combatendo e suprimindo a dominação imperialista e o racismo colonial, e as classes dominantes nativas ligadas ao Imperialismo e ao parasitismo financeiro, os povos do continente africano podem se desenvolver de maneira plena e independente.


Figuras do Movimento Operรกrio

Conheรงa o que jรก foi publicado: www.novacultura.info/selo

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“(...) nacionalismo e internacionalismo como caminho para o anti-imperialismo atravĂŠs do pensamento jucheâ€?

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Sobre o amálgama entre nacionalismo e internacionalismo como caminho para o anti-imperialismo através do pensamento juche por Diego Grossi

Introdução A Coreia socialista, localizada ao norte do paralelo 38 que corta a península coreana, é uma das experiências comunistas mais singulares dentre as revoluções inseridas na era de libertação global iniciada com a Revolução Russa (1917), já que, ao contrário de países como Albânia, China, Cuba, Vietnã e outros, advoga levar a frente a construção do socialismo sob fundamentos teóricos para além do marxismo, o pensamento juche, formulado por Kim Il Sung e desenvolvido por Kim Jong Il. Um dos elementos que recorrentemente costuma ser alvo de confusões e estranhamentos por parte dos marxistas e da esquerda em geral perante o juche é a centralidade que a questão nacional ocupa nesse corpus teórico norte-coreano. Não raro, questiona-se como um povo pode exercer o princípio socialista de internacionalismo proletário se, ao mesmo tempo, manifesta alguma forma de ideologia nacionalista. Confusão esta que, aliás, baseada em uma falsa contradição (a premissa de que internacionalismo e patriotismo seriam inerentemente antagônicos), frequentemente aparece em debates sobre as demais revoluções socialistas. Assim sendo, é pertinente mobilizar o caso norte-coreano, em que as polêmicas em torno da questão nacional são mais cintilantes, como mecanismo para se discutir e esclarecer a relação de simbiose entre o exercício consequente da solidariedade internacional e, sincronicamente, a defesa da pátria como manifestação do direito dos povos à autodeterminação – principalmente na luta contra o imperialismo. É esse o objetivo do artigo. Todavia, não é possível compreender o papel da questão nacional na obra teórica e prática de Kim Il Sung e seus descendentes sem que se leve em consideração a milenar história coreana, na qual as lutas em prol da sua independência foram uma necessidade constante, não só diante de grandes potências inimigas como também, já tratando do momento pós-revolução, de países marxistas aliados. Aspecto que sugere hipotética explicação para a adoção de um discurso em que se afirma o juche como transcendência do marxismo-leninismo – ponto controverso que foge do escopo do presente trabalho, que se limitará a apontar a linha de continuidade e a plena convergência entre as posições de Lenin e da Internacional Comunista (ou III Internacional) e o pensamento juche no que se refere à questão nacional, ao internacionalismo proletário e ao direito dos povos à autodeterminação. Dessa forma, o artigo está dividido em quatro partes. Na primeira discorre sobre a evolução e as dubiedades em Engels e Marx quanto à questão da autodeterminação dos povos até o seu enraizamento com o leninismo. Segue, aí, uma breve explanação sobre a história coreana até o surgimento do juche (apontando suas principais características); com a terceira parte citando o papel e a importância do anti-imperialismo em Kim Il Sung e Kim Jong Il. Já na quarta e última seção demonstra-se o internacionalismo contido no pensamento juche.


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1. Anti-imperialismo e questão nacional e colonial nos clássicos do marxismo-leninismo Com Lenin a autodeterminação dos povos será erigida a princípio da luta revolucionária dentro da tradição socialista. Da parte de Engels e Marx há um longo caminho, transitado por frequentes dubiedades, até a afirmação de que “um povo que oprime o outro não pode ser livre” (ENGELS, 1874) - que expressa as melhores heranças legadas pelos fundadores do socialismo científico ao revolucionário russo. Para além da trivial constatação de que Engels e Marx não viveram para observar a entrada do capitalismo na sua fase imperialista e, portanto, não se depararam com a inerente relação entre a questão da autodeterminação dos povos como caminho para se enfrentar o capitalismo pela via do combate ao imperialismo; vale registrar, brevemente, o processo de superação de um certo pragmatismo do desenvolvimento das forças produtivas no pensamento destes autores - que se assemelhava, aliás, à ideologia cara à Europa da época sobre a “exportação da civilização e do progresso” - para se deixar registrado o grau de retrocesso que é, em pleno século XXI, a rejeição à questão nacional. Se no ano da sua morte, em 1895, a posição de Friedrich Engels era a do entrelaçamento entre a emancipação dos povos oprimidos com a alforria da classe trabalhadora, “o húngaro não será livre, nem o polonês, nem o italiano enquanto os trabalhadores permanecerem escravos” (ENGELS, 2012, p. 48), tal postura não foi uma constante nem neste autor e nem em seu parceiro, Karl Marx. A bandeira de que “um povo que oprime outro não pode ser livre” se manifestou na Primeira Internacional nos episódios de defesa da emancipação dos povos da Irlanda e da Polônia diante da Inglaterra e da Rússia, mas em outros casos a opressão de um povo tido como “não civilizado” acabou sendo justificada em nome da “civilização”. Uma certa visão pragmática-teleológica parece prevalecer nessas avaliações em específico, pois o suposto impulso dado ao desenvolvimento das forças produtivas nas regiões ocupadas as aproximaria mais, segundo os revolucionários alemães, do socialismo do que as antigas relações pré-capitalistas. Marx viu a dominação britânica nas Índias como, entre outros aspectos, uma revolução naquele país (LOSURDO, 2006, p. 21). Nas palavras do eminente comunista: O período burguês da história tem por missão criar a base material do mundo novo; de uma parte, a intercomunicação universal fundada na dependência mútua da humanidade e os meios dessa intercomunicação; de outra parte, o desenvolvimento das forças produtivas da produção material a partir da dominação científica dos elementos. A indústria e o comércio burgueses criam estas condições materiais de um mundo novo (MARX, 1853b). Certamente, o fundador do socialismo científico não era um entusiasta e muito menos um apologeta do colonialismo. Marx não se mantinha indiferente ao caráter burguês da expansão colonial e ao sofrimento imposto por esta aos povos nativos. Para o alemão, nas colônias “a hipocrisia profunda e a barbárie inerente à civilização burguesa se difunde sem véus” (MARX, 1853b). Todavia, isso seria secundário. “A questão é: pode a humanidade cumprir o seu destino sem uma revolução fundamental no estágio social da Ásia? Se não, quaisquer que possam ter sido os crimes da Inglaterra, ela foi o instrumento inconsciente da história ao provocar essa revolução”, independente de “qualquer que seja o azedume que o espetáculo do desmoronamento de um mundo antigo possa trazer aos nossos sentimentos pessoais” (MARX, 1853a). Poderia ser o caso da China, onde: podemos alegrar-nos com o fato de que o império mais antigo e sólido do mundo tenha sido arrastado em oito anos pelos fardos de algodão dos burgueses da Inglaterra até a iminência de uma convulsão social, pois quando os reacionários europeus [...] chegarem enfim junto à Muralha da China [...] quem sabe se não lerão ali: República Chinesa Liberdade, Igualdade e Fraternidade (MARX, 1850). Anos antes, Engels já havia feito considerações análogas quanto à invasão da Califórnia pelos Estados Unidos. Para o então industrial graças à “valentia dos voluntários americanos” a “esplêndida Califórnia foi arrebatada dos indolentes mexicanos, que não sabiam o que fazer dela”. Os “enérgicos ianques” impulsionaram, assim, “o comércio mundial” e a “civilização” - situação semelhante ao das “naçõezinhas” eslavas, “que nunca tiveram história” e que só poderiam alcançar a “civilização” graças a um “jugo estrangeiro” (ENGELS, 1849; LOSURDO, 2006, p. 21). Nesses casos, a moral poderia até ser ferida, mas, para Engels, o peso e o preço

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histórico pareciam baixos: A “independência” de alguns californianos e texanos espanhóis pode até ser “justiçada”, assim como outros princípios morais podem ser aqui e ali feridos; mas o que é que isso interessa diante desses fatos históricos globais? (ENGELS, 1849) Pouco mais de três décadas depois o tom de lamentação para com a indiferença dos operários ingleses perante o colonialismo britânico e a confiança no poder dos povos oprimidos denotam evolução. Friedrich Engels compartilhará em privado com Kautsky seus sentimentos e avaliações: pergunta-me o que é que os operários ingleses pensam da política colonial? [...] os operários comem alegremente o seu bocado do monopólio do mercado mundial e do monopólio colonial da Inglaterra. Segundo o meu parecer, as colônias propriamente ditas — isto é, os países ocupados por população europeia, Canadá, Cabo, Austrália — tornar-se-ão todas autônomas; em contrapartida, os países simplesmente dominados, habitados por nativos — Índia, Argélia, possessões holandesas, portuguesas e espanholas —, terão de ser provisoriamente tomados a cargo pelo proletariado e conduzidos tão rapidamente quanto possível à autonomia. Como este processo se desenvolverá é difícil de dizer; a Índia talvez faça [uma] revolução, mesmo muito verossimilmente, e, como o proletariado a libertar-se não pode conduzir nenhuma guerra colonial, terá de se deixar isso acontecer [...]. O mesmo podia desenrolar-se também ainda noutro sítio, por exemplo, na Argélia e no Egito, e para nós seria seguramente o melhor (ENGELS, 1882). Na mesma correspondência o revolucionário alemão despoja-se também de qualquer utopia exagerada para com a célebre proclamação de que “os proletários não têm pátria” e conjectura sobre a possibilidade de haver manifestações chauvinistas por parte dos trabalhadores de um país desenvolvido para com os povos oprimidos mesmo após a revolução – o que seria condenável, ainda que diante de supostas boas intenções de se “exportar” a revolução, já que “o proletariado vitorioso não pode impor a nenhum povo estrangeiro uma felicidade de qualquer espécie, sem minar com isso a sua própria vitória” (1882). Uma década antes esse espírito já dava alguns sinais nos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional), que aludiam à igualdade de todos os seres humanos, independente de “cor, crença ou nacionalidade”. E, por essas veredas, Vladimir Lenin, despido das dubiedades de seus mestres supracitados, conduzirá a Revolução Russa de 1917 e a Internacional Comunista (III Internacional), cujas teses sobre a questão colonial do VI Congresso, publicadas poucos anos após a morte de Lenin, fazia notar que: O proletariado da URSS e o movimento operário nos países capitalistas liderado pela Internacional Comunista estão a apoiar cada vez mais ativamente a luta de libertação de todos os povos coloniais e dependentes; eles são o único baluarte seguro dos povos coloniais na sua luta pela libertação do jugo imperialista.[...] há uma possibilidade objetiva de um caminho não-capitalista de desenvolvimento das colônias atrasadas – e essa possibilidade traduz-se na transformação da revolução democrático-burguesa na revolução proletária e socialista (COMINTERN, 1928). Tal percepção era declaradamente baseada nas teses sobre a questão nacional e colonial concebidas por Lenin para o II Congresso da III Internacional. A luta anti-imperialista e pela autodeterminação dos povos se torna princípio estratégico para o líder revolucionário russo, para além de possíveis fatores de ordem ética, graças à compreensão de que no imperialismo estaria a manifestação última e, ao mesmo tempo, mais bárbara e clara do capitalismo – situação que se tornara chocante com o caos chauvinista visto na época da I Guerra Mundial, cuja torrente arrastou até mesmo os partidos da II Internacional. São dessa época as obras seminais do anti-imperialismo leninista/leniniano, como “Sobre o direito das nações à autodeterminação”, de 1914, e “Imperialismo, etapa superior do capitalismo”, de 1916. Assim, a partir da Revolução Russa e da Internacional Comunista, o marxismo-leninismo cimentará uma era global de emancipação dos povos como jamais vista. Ho Chi Minh, um dos grandes ícones dessa era, responsável por liderar o povo vietnamita na vitória contra três das maiores potências imperialistas da história (Japão, França e EUA), prestava de tal forma tributos a Lenin que permite certificar os acertos do leninismo ao correlacionar o exercício do internacionalismo proletário à questão nacional (HO, 1960): Um camarada me deu para ler a “Tese sobre as questões nacionais e coloniais” de Lenin [...]. Que emoção, entusiasmo, esclarecimento e confiança essa obra provocou em mim! Eu me regozijava em lágrimas. Embora estivesse sentado sozinho em meu quarto, eu gritei fortemente, como se me dirigisse


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a grandes multidões: “Caros mártires compatriotas! É disso que precisamos, este é o caminho para nossa libertação”! A partir dali, tive plena confiança em Lenin e na Terceira Internacional. 2. O pensamento juche e a revolução coreana Análogas às letras de Ho Chi Minh eram as palavras de outro símbolo do mesmo processo de revoluções anticoloniais impulsionadas pela Revolução de Outubro, Kim Il Sung, então com 14 anos de idade e já assumindo posições de destaque na resistência antijaponesa enquanto fundador da União para Derrotar o Imperialismo (UDI): Devemos seguir o caminho marxista, que leva à libertação das massas operárias oprimidas do jugo da tirania imperialista japonesa e as provem com a genuína liberdade e felicidade. O marxismo é a teoria mais progressista, revolucionária e científica da história. Sua verdade e seu poder foram provados claramente através da Revolução Socialista de Outubro na Rússia [...] (KIM I., 1926). Anos depois, entretanto, já com Kim Jong Il, parece que o marxismo já não dava mais conta de apontar o horizonte para a libertação nacional, pois: não possui explicações corretas sobre o nacionalismo. Prestou a atenção primordial ao fortalecimento da unidade e solidariedade da classe trabalhadora mundial; questão que se apresentou naquele tempo como um problema essencial [...], mas não se interessou como era devido pelo problema da nação (KIM J., 2002b). Logo, algo, com cerne na questão nacional, ocorrido entre um e outro momento, fez com que os próprios agentes históricos da Revolução Coreana se relacionassem de forma distinta com o marxismo-leninismo. Nesse sentido, vale registrar a importância do tema da independência nacional ao longo da milenar história da Coreia para, aí, inserir os dilemas do período socialista em uma linha temporal mais longa e complexa. O povo coreano começou há se formar há cerca de cinco mil anos às margens dos rios Yalu e Daetong, mas foi apenas no século VII que os diversos reinos da península foram unificados. No século X, após um período de decadência, a dinastia Koryo recentraliza a península e dá início a algo mais próximo de uma “nação coreana” com o reino Koryo. Contudo, a Coreia nasce encrustada em meio a quatro grandes potências (China, Japão, Mongólia e Rússia), o que a torna alvo fácil de constantes investidas estrangeiras, como a invasão mongol ocorrida entre os séculos XIII e XIV e a “adesão” ao Estado chinês no papel de reino tributário. Todavia, a principal ameaça virá com o Japão, que, entre outras invasões ao longo dos anos, no final do século XIX e início do XX ocupa a Coreia e a faz colônia, tomando cerca de 200.000 mulheres coreanas como escravas sexuais. Diversas revoltas eclodem no país, contando, inclusive, com a participação ativa dos pais de Kim Jong Il, Kim Hyong Jik (pai) e Kang Pan Sok (mãe). As guerrilhas antijaponesas se proliferam por toda a península e junto das tropas aliadas terminam por vencer os invasores em 1945. O que, porém, foi insuficiente para garantir a paz e a libertação da Coreia, pois desde a II Guerra Mundial o país se encontrava dividido a partir do paralelo 38, com tropas soviéticas ao norte e estadunidenses ao sul. Mesmo com o fim do conflito e a ulterior retirada das tropas soviéticas, o Sul continuou ocupado pelo imperialismo estadunidense e ambas as áreas ficaram sob influências geopolíticas distintas, terminando por originar, em 1948, dois países: a República da Coreia, ao sul; e a República Popular Democrática da Coreia (RPDC), ao norte. Enquanto na segunda os órgãos de poder popular surgidos na guerra revolucionária antijaponesa alçaram-se ao status de Estado e ficaram sob a hegemonia dos comunistas liderados por Kim Il Sung (que prosseguiu a luta dos seus pais contra o imperialismo japonês), na primeira os mesmos foram esmagados e eclipsados em prol de um governo aliado dos Estados Unidos e chefiado por Syngman Rhee (que passara quatro décadas, mais da metade da sua vida, vivendo nos EUA). Dessa forma, a instabilidade gerou vários conflitos que culminaram com a Guerra da Coreia (1950-1953), em que os EUA, sob a bandeira da ONU, tomaram parte ativa contra a RPDC e, mesmo após serem derrotados pelos coreanos no Norte com o auxílio da China, conseguiram manter dividida aquela nação – situação que permanece até o presente. Outrossim, além desses mil anos de ameaças, cercos e invasões (inclusa a ainda vigente invasão estadunidense em metade da nação), os coreanos tiveram alguns problemas com os próprios aliados no que se refere à manutenção plena da sua soberania. A presença de tropas soviéticas e chinesas em território coreano nos momentos cruciais, assim como a constante troca política entre os revolucionários desses três países, ajuda a compreender o grau de pene-

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tração de potências estrangeiras comunistas na construção do socialismo na Coreia. O próprio Kim Il Sung chegou a ser, na época da resistência ao imperialismo nipônico, membro do Partido Comunista da China e capitão do Exército Vermelho soviético, por exemplo. Em alguns momentos posteriores as contendas ganharam contornos mais drásticos, como em 1956, quando duas alas, uma pró-URSS e outra pró-China, formavam correntes de oposição a Kim Il Sung dentro do Partido do Trabalho da Coreia (PTC) e terminaram expurgadas do partido (com membros tendo de partir até mesmo para o exílio nestes outros países), mesmo após a interferência da diplomacia chinesa e soviética. Nos escritos de Kim Il Sung sobressaem várias críticas ao “servilismo” diante das grandes potências, mesmo que amigas - o que poderia ocorrer tanto no campo político prático quanto no teórico, através da reprodução dogmática do pensamento e das experiências estrangeiras (KIM I., 1978, p. 6). Pak Yong Bin, responsável por defender que a Coreia acompanhasse a URSS kruschevista na distensão com os EUA, chega a ser duramente criticado, já que tal postura negligenciaria o histórico de agressões da nação imperialista contra o povo da Coreia e, também, a permanência da ocupação destes no sul da península. É nesse quadro de uma constante e profunda necessidade de garantia de sua soberania perante grandes potências mais poderosas, inimigas e aliadas, que precisa ser observada a gênese do pensamento juche. É ao longo da luta por essa soberania e com armas em punho que Kim Il Sung, na resistência antinipônica, vai formar gradualmente as bases dessa ideologia (KIM J., 2002c, p. 3). Em uma das obras seminais do pensamento jucheano, “Sobre a eliminação do dogmatismo, do formalismo e o estabelecimento do juche no trabalho ideológico” (1955), Kim Il Sung utiliza justificativas explicitamente marxistas para defender o que entendia ser o juche naquele momento: a subordinação de todos os fatores aos interesses da nação coreana - o que iria desde a imperatividade de se estudar as características nativas (História, Geografia, costumes locais, etc.) até a necessidade de se adaptar o marxismo às condições específicas da revolução coreana. Ser dogmático e copiar esquemas exteriores seria uma postura que contrariaria a própria essência antidogmática e científica do marxismo (KIM I., 1955). Dessa forma, o juche se ergue sobre um princípio primordial: garantir a soberania coreana. Todo o seu corpus aparecerá como justificativa ou consequência desse paradigma (KIM I., 1978), desenvolvendo-o ao ponto de chegar aos anos 1980 não mais como uma aplicação do marxismo, mas como sua superação, “uma original filosofia revolucionária” (KIM J., 2002a, pp. 4-5). Ou seja, com o juche o pensamento político e filosófico norte-coreano acaba por buscar, também, a soberania e a autossuficiência teórica. De forma sintética, pode-se identificar a partir das obras de Kim Il Sung e Kim Jong Il dez aspectos componentes do juche amadurecido: a) autossuficiência: princípio fundamental dessa corrente de pensamento, sustentando que cada povo deve ser capaz de levar adiante sua revolução de forma independente e com suas próprias forças (tanto no campo militar e político quanto no econômico); b) nacionalismo anti-imperialista: a defesa da autodeterminação dos povos; c) ultra-antropocentrismo: um dos principais pontos de supostas divergências com o marxismo, pregando a supremacia da ação humana e rejeitando, grosseiramente falando de nossa parte, os limites impostos pelas forças produtivas como entraves; d) modernização acelerada: progresso econômico, social e cultural como horizonte; e) valorização da ciência: centralidade da ciência e da tecnologia no desenvolvimento das forças produtivas e no projeto modernizante; f) tradicionalismo seletivo: incorporação das tradições progressistas de um povo ao seu projeto socialista, enquanto rejeita aquelas tidas como reacionárias ou atrasadas; g) linha de massas: constante apelo para a mobilização, organização e participação popular em todos os aspectos do processo revolucionário; h) culto às lideranças: emulação cotidiana da nação em torno das lideranças vistas como em simbiose e enquanto encarnação da própria nação; i) política songun: aporte de Kim Jong Il desenvolvido após a queda da URSS e, perante o acirramento do cerco imperialista, pregando a centralidade das forças armadas e dos assuntos militares na construção do socialismo; j) inserção, ainda que conflituosa, na tradição revolucionária da Internacional Comunista.


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3. Kim Il Sung, Kim Jong Il e Kim Jong Un em defesa da Coreia e contra o imperialismo A busca por autossuficiência e autonomia, princípio basilar do juche, estava, então, em relação direta com a luta anti-imperialista. Para Kim Jong Il teria sido essa a grande contribuição de seu pai para a teoria comunista: Pela primeira vez na história o grande camarada Kim Il Sung apresentou uma explicação correta para o nacionalismo na prática revolucionária para forjar o destino do país; e solucionou brilhantemente o problema das relações entre ele e o comunismo, entre o nacionalista e o comunista. Destacou que para ser um comunista deve ser primeiro um verdadeiro nacionalista. No início, com a determinação de consagrar a sua vida para o país e para a nação, empreendeu o caminho da revolução, concebeu a imortal ideia juche, formulando, com base nisso, a concepção original da nação e esclareceu cientificamente a essência e a natureza progressista do nacionalismo (KIM J., 2002b). Os aportes de Kim Il Sung para o socialismo e a luta anti-imperialista se deram, contudo, na própria práxis revolucionária. Diante da ocupação nipônica vários movimentos de resistência, mais ou menos organizados, eclodem na península coreana. O Partido Comunista da Coreia teve vida efêmera, de 1925 até 1928. Nesse meio tempo, em 1926, nasce a União para Derrotar o Imperialismo (UDI) de Kim Il Sung, que participa ativamente da guerra de guerrilhas contra a ocupação japonesa, chegando na década de 1930 com Kim sendo considerado um dos principais líderes da luta armada coreana (VISENTINI; PEREIRA; MELCHIONNA, 2015, p. 177). Em 1945, no final da II Guerra Mundial, os socialistas ligados a esse líder revolucionário refundaram um partido comunista que, após incorporações de outros agrupamentos, daria origem ao Partido do Trabalho da Coreia - entidade que até os dias de hoje dirige a RPDC. No ano seguinte Kim Il Sung foi eleito dirigente máximo na parte norte da península. Com o controle da região, os socialistas então podem fazer a revolução avançar: realizam a reforma agrária, nacionalizam as grandes indústrias, criam uma nova legislação trabalhista e promulgam a igualdade entre homens e mulheres. Porém, a permanência das forças ligadas ao imperialismo estadunidense na parte sul da península se mostrava um empecilho concreto à total libertação da pátria. Em 1948 a situação se agrava, já que, por conta de uma decisão unilateral das dirigentes da parte sul, é proclamada a independência dessa região e, portanto, a fundação de um novo país em separado do Norte, que, por sua vez, considerando tal ato uma manobra ilegal e divisionista vinda dos EUA, proclama-se enquanto República Popular Democrática da Coreia. As várias querelas entre ambos os países culminam em 1950, com a guerra aberta e declarada. Após dois meses o Norte já havia conquistado Seul, fazendo avistar o fim da guerra no horizonte próximo. Situação modificada com a invasão dos EUA em suposto apoio ao Sul, compensada, do lado socialista, com o posterior apoio da China ao Norte. O equilíbrio de forças no campo militar acaba, então, prevalecendo, levando a assinatura de um armistício em 1953. Pela primeira vez na história o imperialismo estadunidense saía derrotado de uma guerra. Todavia, o preço do conflito para os coreanos foi enorme: quatro milhões de mortos (no total dentre as partes envolvidas). Muitas dessas pessoas foram vítimas de armas como napalm e fósforo, utilizadas sem escrúpulos pelos Estados Unidos, que, inclusive, chegou próximo de repetir os crimes de guerra de Hiroshima e Nagasaki: já se sabe que Harry Truman, então presidente dos EUA, chegou a assinar uma autorização para o uso de bombas atômicas no conflito – o que, felizmente, não foi prosseguido (VISENTINI; PEREIRA; MELCHIONNA, 2015, p. 81). Com a invasão estadunidense e o posterior cerco (ainda em curso), a soberania coreana passa a ser cotidianamente aviltada. Apesar do armistício (grosso modo uma “paz temporária”) ter sido assinado em 1953, até hoje não há um acordo de paz definitivo. Oficialmente ainda há uma situação de guerra latente. Os EUA mantém seu apoio e intervenção no Sul - o que inclui, inclusive, bombas atômicas apontadas para o Norte. Tendo isso em vista e baseando-se nos fundamentos do pensamento juche, especialmente em um novo aporte fornecido por Kim Jong Il, a política songun (KIM, J., 2003), com sua noção de que os assuntos militares devem estar em primeiro plano na nação (elaborada após a queda da URSS em 1991 por conta do acirramento do cerco imperialista e, consequentemente, o aumento das chances de uma guerra), na década de 2000 os norte-co-

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reanos romperam com o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), declarando terem um programa nuclear secreto. A partir de 2006 obtiveram sucesso em testes com bombas atômicas e, dez anos depois, em 2016, graças ao desenvolvimento da bomba de hidrogênio, a arma mais poderosa conhecida pela humanidade até então, o potencial nuclear bélico coreano pode aumentar em até 50 vezes. É importante ressaltar, porém, o caráter defensivo dessa postura, pois a atual política nuclear vigente no mundo (em torno do TNP de 1970) dá o direito a cinco potências (EUA, China, Rússia, França e Inglaterra) de possuir a bomba nuclear e a proíbe aos demais povos. No caso norte-coreano tal situação é ainda mais grave, já que duas destas cinco potências fazem fronteira com seu território e uma terceira, os EUA, são uma ameaça real por portarem bombas de hidrogênio e estarem em estado de guerra (ainda que suspenso) para com a Coreia do Norte. Da parte deste país entende-se que o desenvolvimento das armas nucleares não é uma ameaça à paz mundial, mas garantia desta. A única coisa que poderia impedir uma potência de promover guerras e, em casos extremos, usar a bomba nuclear é uma força contrabalanceando seu poderio. Foi isso que foi visto na Guerra Fria, por exemplo. As palavras de Stálin proferidas quando do desenvolvimento da arma nuclear soviética ilustra a situação: Eles gostariam que os EUA fossem os monopolistas da fabricação da bomba atômica para que tivessem a ilimitada possibilidade de amedrontar e fazer chantagem nas suas relações com os outros países. Mas, em que se baseiam e com que direito pensam assim? Os interesses da manutenção da paz exigem, por acaso, semelhante monopólio? Não! Será mais certo dizer que acontece precisamente o contrário. Que os interesses da manutenção da paz exigem antes de mais nada a liquidação de semelhantes monopólios e, depois, a proibição incondicional da arma atômica. Penso que os partidários da bomba atômica só aceitarão a proibição da arma atômica se virem que já não são mais os monopolistas de tal arma (1951). Dessa forma, o juche não só nasce (por Kim Il Sung) sintonizando dialeticamente a defesa da nação coreana com o combate ao imperialismo, como se desenvolve (com a política songun de Kim Jong Il) e continua vigente até hoje (se expressando na perpetuação do programa nuclear com Kim Jong Un) tendo em conta tais fatores. Porém, a pretensão dos pensadores jucheanos vai além da defesa exclusiva da nação coreana: entendem esse direito como inerente a todos os povos. 4. O direito dos povos à autodeterminação como princípio dialético de defesa da pátria e da solidariedade internacional No início dos anos 1980, Kim Jong Il ao falar das diferenças entre o marxismo e o juche - para ele “uma original filosofia revolucionária” - apresenta Kim Il Sung como um herdeiro de Marx, Engels e Lenin, que teria, no entanto, transcendido seus antecessores e formulado um corpo teórico novo justamente pela capacidade de adequar o socialismo científico a uma situação global diferenciada, marcada pela exacerbação dos atritos entre as grandes potências imperialistas e os povos oprimidos (KIM J., 2002a, pp. 4-5). Portanto, o juche corresponderia a uma nova etapa de desenvolvimento do socialismo científico, centrado na questão da autossuficiência e da soberania nacional com pretensões à universalidade; válido para todas as nações. Segundo Kim Jong Il, a soberania só poderia ser verdadeira diante de três fatores: a) independência na política (inclusive diante dos aliados); b) autossuficiência na economia; e c) capacidade de autodefesa (2002c, p. 32). Dessa forma, entendia-se que cada povo deveria ser capaz de conduzir sua revolução de acordo com as suas peculiaridades e sem depender dos demais (2002a, p. 6). Aplicando estes princípios nacionalistas na Coreia do Norte, Kim Il Sung censura figuras como Pak Chang Ok, que negligenciariam as tradições culturais coreanas (KIM I., 1955). Todavia, o patriotismo presente no juche só comportaria, ao mesmo tempo, a capacidade de autoafirmação da soberania coreana, a universalização dos direitos dos povos à autodeterminação e o combate ao imperialismo, por ser um nacionalismo de natureza distinta daquele nacionalismo chauvinista típico. Para Kim Jong Il haveria dois tipos de nacionalismo: a) o nacionalismo burguês, que se expressaria em termos de um ufanismo egoísta perante o mundo, ou, pior, através de ideologias que pregassem a superioridade de um povo para com os outros; b) o “verdadeiro nacionalismo”, caracterizado pelo amor à pátria e a garantia da defesa dos seus


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interesses, buscando relacionar-se com o mundo entendendo que os demais povos também teriam este direito e, portanto, deveria haver tratos mútuos sempre em condição de igualdade e busca fraterna pelos interesses comuns: Deve-se distinguir o verdadeiro nacionalismo, que exige amar a nação e defender seus interesses, do nacionalismo burguês que defende os interesses da burguesia. Nas relações com outros países e nações, este se manifesta como egoísmo nacional ou exclusivismo ou como chauvinismo de grande potência. É um ideário de índole reacionária que semeia o antagonismo e a discórdia entre os países e impede o desenvolvimento das relações amistosas entre os povos da Terra (KIM J., 2002b). Sobre uma aparente contradição entre a explícita defesa de um nacionalismo sob a bandeira do comunismo e seu princípio enquanto uma ideologia fundamentada no internacionalismo proletário, o revolucionário norte-coreano negará qualquer antagonismo, sustentando, de maneira oposta, que o internacionalismo só poderia ser consequente e verdadeiro se tratasse a questão nacional como regra, já que seria justamente o reconhecimento da autodeterminação dos povos que permitiria com que todas as nações se relacionassem de igual para igual sem a existência de políticas opressivas de uma para com outras, assim como tornaria paradigma o exercício da solidariedade e o apoio aos povos que tivessem sua soberania atacada: O comunismo não é uma doutrina que defende unicamente os interesses da classe operária. Defende, também, os interesses da nação. É uma ideia autêntica que ama a esta [,,,]. O nacionalismo não está em contradição com o internacionalismo. Internacionalismo é ajudar, apoiar e solidarizar-se com todos países e nações. Dado que existem fronteiras entre os países e diferenças de nacionalidades, e o processo revolucionário e construtivo se efetua pela unidade da nação, o internacionalismo representa as relações entre os países, as nações, e possui como premissa o nacionalismo. A verdade é que um internacionalismo separado da nação e divorciado do nacionalismo não significa nada (KIM J., 2002b). Kim Il Sung, o pai do pensamento juche, também defendia de forma enfática em seus escritos e discursos a solidariedade internacionalista e o direito à autodeterminação de todos os povos. Por diversas vezes os norte-coreanos se manifestaram e agiram concretamente em prol da autodeterminação de outras nações oprimidas pelo imperialismo. Em um comentário geral sobre a situação global dos países do Terceiro Mundo, Kim aponta o papel da Coreia socialista para com os demais na luta contra o imperialismo: Os povos dos países recém emergentes e de todos os povos oprimidos devem lutar ainda mais resolutamente para limpar todos os continentes do colonialismo, do neocolonialismo e de todas as outras formas de dominação, de maneira absoluta e para sempre. Apenas quando Ásia, África e América Latina forem libertas do colonialismo e de todas as outras formas de dominação, a libertação das nações estará completa e finalizada. O Governo da RPDC e o povo coreano fazem que um aspecto importante da sua política externa seja lutar contra imperialismo e a dominação de forma unificada para com os povos dos países socialistas, não-alinhados, em desenvolvimento e todos os outros países recém emergentes do mundo (KIM I., 1978, pp. 34-35). Portanto, nota-se uma total continuidade entre a perspectiva internacionalista contida no nacionalismo dos norte-coreanos e a concepção marxista-leninista do direito dos povos à autodeterminação, ainda que, para os primeiros, o ressaltar da nacionalidade seja um elemento peculiar ao juche. De qualquer forma, além deste fator enquanto constante desde Lenin até Kim Jong Il, outra característica que se observa no nacionalismo popular defendido por Kim Il Sung/ Kim Jong Il e o marxismo-leninismo quanto à questão nacional é a rejeição da sacralidade de qualquer fator nacional como em si mesmo inestimável. Apesar da defesa de valores e tradições nacionais, estas estariam sendo avaliadas, julgadas e peneiradas sob paradigmas teóricos pretensamente universais; afastando-se, portanto, de qualquer proximidade para com alguma espécie de relativismo multicultural ou nacionalismo conservador. As tradições nacionais deveriam ser conhecidas e valorizadas de forma seletiva, aproveitando os elementos progressistas e renunciando às heranças que representassem um obstáculo à revolução e ao comunismo (KIM J., 2002a, pp. 34-35). Perspectivas ideológicas que fossem consideradas reacionárias ou burguesas seriam recusadas. Kim Jong Il inclui nesse rol de rejeições elementos como o “confucionismo feudal”. Como dever, um revolucionário: vigiará rigorosamente para que não pe-

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netre em nossas filas o menor elemento ideológico alheio à classe trabalhadora e à revolução. Combaterá com intransigência as ideias burguesas, o confucionismo feudal, o revisionismo, o servilismo diante das grandes potências, o dogmatismo e outras correntes ideológicas reacionárias e contrarrevolucionárias (KIM J., 2002a, p. 87). No que concerne às singularidades coreanas, a supremacia da questão nacional se manifestará especialmente diante da grande lesão causada e mantida pelo imperialismo na região: a divisão da pátria coreana em duas. Devido à situação, Kim Il Sung chega a propor um caminho de reunificação que perpasse pelo mecanismo de “um país dois sistemas”, com Norte e Sul coexistindo de forma una, ainda que com o socialismo vigorando no primeiro e o capitalismo no segundo (KIM I, 1990, p. 24). Para seu filho “todas as classes e camadas que integram a nação possuem diferentes demandas (…). Entretanto todos têm interesses comuns relacionados com a salvaguarda da independência e identidade nacionais” (KIM J., 2002b). Assim, a defesa da centralidade da questão nacional e do nacionalismo aparece, na Revolução Coreana, como meio de combate ao imperialismo que não contrariaria, mas sim potencializaria, o exercício da solidariedade internacional. Conclusão O pensamento juche teve suas bases desenvolvidas pelo líder da Revolução Coreana, Kim Il Sung, ao longo da luta armada contra a invasão do imperialismo japonês. Inicialmente convivendo sob o campo do marxismo, o juche estabeleceu como princípio fundante as ideias de autossuficiência e soberania, buscando consolidar enquanto paradigmas a independência do povo coreano e a sua capacidade de resolver seus problemas por si mesmo. Todavia, no desenrolar do processo revolucionário e no estabelecimento de relações conflituosas não só para com potências inimigas, como os EUA, mas também perante nações aliadas, como União Soviética e China, esses paradigmas vão evoluindo no sentido de garantia da independência diante dos próprios aliados, inclusive no campo teórico e ideológico, levando a propor o juche enquanto uma transcendência do marxismo-leninismo, surgido a partir das necessidades nacionais coreanas, mas valido universalmente para outras nações por expressar o refinamento e as necessidades do socialismo científico, pensando de forma generalizável a questão nacional em um mundo em que o imperialismo negava-a aos mais diversos povos, especialmente da África, da Ásia e da América Latina. Nessas veredas, nota-se uma constante entre o legado leninista/ terceiro-internacionalista quanto ao direito dos povos à autodeterminação e à centralidade do combate ao imperialismo na luta pelo socialismo. O reconhecimento da questão nacional aparece no juche e em toda tradição marxista-leninista como caminho para se enfrentar o imperialismo e reconhecer a todos os povos o mesmo direito à igualdade. Mais do que um direito de uma nação, coreana, se estabelece o direito das nações à soberania e à não ingerência estrangeira.


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UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA

A União Reconstrução Comunista (URC) visa ser um polo aglutinador de todos os militantes revolucionários e ativistas descontentes com os rumos tomados pelo movimento comunista em nosso país, destruído e corroído pelo revisionismo e oportunismos de direita e esquerda. Após longos estudos e debates e um ano da fundação do Coletivo Bandeira Vermelha, conquistamos, enfim a base da unidade orgânica que deve nortear nossa prática: a unidade ideológica na teoria do proletariado desenvolvida por Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao; a luta pela refundação do Partido Comunista com base na teoria revolucionária do proletariado; a necessidade de se levar a cabo a Revolução Proletária dentro das condições concretas de nosso país.

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