Chancela Editorial de Unique Creations Unip. Lda. Título Original em Alemão: Von der Freiheit eines Christenmanschen Título Original em Latim: De Libertate Christiana Título da versão em Inglês: Concerning Christian Liberty Título: A Liberdade Cristã Autor: Martinho Lutero Tradução: Daniel T. Gomes Edição: Paulo S. Gomes Revisão: Susana Pires Design: Daniel T. Gomes Grafismo: UC Design Studio Depósito Legal: 433166/17 1ª Edição: Novembro 2017 Copyright desta Edição Portuguesa © 2017 Daniel T. Gomes / Unique Creations Unip., Lda. Usado com permissão de Gutenberg.org (domínio público), a partir da versão inglesa, de Elizabeth T. Knuth e David Widger. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, depositada em sistema de recuperação, ou transmitida por qualquer forma ou meio – eletrónico, mecânico, fotocopia, gravação, ou outro método – exceto breves citações em revisões (mencionando a fonte), sem a prévia permissão do editor. Citações das Escrituras baseadas na versão Almeida Revista e Corrigida (ARC). Restantes com menção “NVI-PT” (Nova Versão Internacional) © de Tyndale House Foundation. Todos os direitos reservados. Título disponível em formato ebook e digital (pdf). Pedidos de informação devem ser dirigidos a: Biblion/Unique Creations Tv. Francisco dos Santos, 2-6ºD 2745-271 Queluz – Portugal ou através do website: www.biblion.pt Uma Edição
Índice Introdução - - - - - - - - - - - - - - - - - 7 I - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 9 II - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 16 III - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 19 IV - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 22 V - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 32 VI - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 41 VII - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 51
Introdução
No ano de 1517, Martinho Lutero fez estremecer a Cristandade do seu tempo ao publicar as célebres 95 Teses, com as quais ele apenas pretendia iniciar um debate escolástico sobre a graça de Deus e o uso de indulgências. Foi o começo do cisma, de uma rotura até então inconcebível com a Igreja Católica que deu lugar à Reforma Protestante e que marcou a História para sempre. Porém nos dois anos seguintes, as obras de Lutero limitaram-se a comentários de livros e epístolas bíblicas. Nesse período de tempo, a sua atividade consistiu sobretudo da defesa das suas ideias em debates e convenções, perante estudiosos e embaixadores de Roma. Um dos debates mais ilustres em que Lutero participou foi o de Leipzig, em 1519, ao apoiar o seu antigo professor de teologia Andreas Karlstadt em oposição a João Eck, o mais afamado (e persistente) opositor de Lutero. Aí Lutero foi forçado a tomar uma posição considerada herética, semelhante à de João Huss, que confirmou o seu destino. Em Julho de 1520, a bula Exsurge Domine do Papa Leão X proibia a mera existência das obras de Lutero e ordenava que o monge se retratasse num prazo de sessenta dias. A resposta de Lutero, no entanto, foi bem diferente da pretendida por Roma. No mês seguinte, o monge alemão criticou veementemente a doutrina católica e o clero
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de Roma com a sua obra polémica À Nobreza Cristã da Nação Alemã, seguida por outra tese ainda mais controversa, Prelúdio no Cativeiro Babilónico da Igreja, publicada em Outubro do mesmo ano. O terceiro tratado em resposta à bula – o último antes da sua excomunhão efetiva – foi De Libertate Christiana, ou A Liberdade Cristã. Publicada em Novembro de 1520, A Liberdade Cristã foi a gota de água. Mais do que apenas criticar a Igreja e os seus costumes, Lutero afirmava a sua perspetiva reformadora de forma aberta nesta obra magnífica. De acordo com o livro de Jack D. Kilcrease e Erwin W. Lutzer, Martin Luther In His Own Words, Lutero escreve este tratado para “explicar o seu novo entendimento da justificação do pecador perante Deus”. O monge já não se limitava a contestar os erros da Igreja de Roma, mas propunha agora uma nova forma de encarar a própria fé Cristã. Depois de anos de debates e comentários bíblicos, a sua visão passava agora para a escrita – uma visão de liberdade dos costumes e das leis de Roma; “uma liberdade”, como Jorge Pinheiro explica, “cujas raízes e fundamentos se encontram apenas na Palavra da promessa, único garante do motor que deve fazer avançar o Cristão – a fé.”1 Depois de A Liberdade Cristã ter sido publicada, não havia como voltar atrás. No final desse mesmo ano, Lutero queimou a bula do Papa; no ano seguinte, o monge foi excomungado da Igreja Católica. A reforma que ele começara em 1517, com um simples convite de debate para os estudiosos da sua região, era agora um movimento distinto e independente de Roma. Mal sabia Lutero que, quinhentos anos depois de afixar as suas 95 Teses, milhões de Cristãos espalhados por todo o mundo celebrariam este ato de coragem e fé pelo qual eles são hoje verdadeiramente livres. 1
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I A fé cristã parece ser algo fácil para muitos; aliás, não são poucos os que a reconhecem apenas como uma virtude social, isto porque eles nunca experienciaram a fé nem obtiveram provas dela, não tendo nunca provado da sua eficácia. Pois não é possível para homem algum poder escrever bem sobre ela, ou compreender na íntegra o que está escrito na íntegra, sem ter em tempo algum provado do seu espírito mediante a pressão das tribulações; enquanto que aquele que a provou, mesmo que tenha sido o mínimo dos mínimos, nunca poderá escrever, falar, pensar ou ouvir o suficiente dela. Ela é uma fonte viva que jorra para a eternidade, como Cristo lhe chama em João 4. Agora, embora não me possa orgulhar da minha abundância e embora eu saiba o quão desprovido eu me encontro, ainda assim eu espero que, depois de ter sido envergonhado por várias tentações, eu tenha obtido uma gota de fé e possa assim falar deste assunto – certamente com mais solidez, se não com mais elegância, do que aqueles opositores demasiado literais e subtis que até agora têm falado sobre isto sem entenderem as suas próprias pa-
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lavras. De modo a abrir um caminho mais fácil aos ignorantes – pois são estes quem eu tento servir – deixo estas duas afirmações sobre a liberdade e servidão espirituais: “O Cristão é o mais livre de todos os senhores, e sujeito a nenhum outro; o Cristão é o mais obediente de todos os servos, e sujeito a todos os outros.” Embora estas afirmações pareçam contraditórias, elas satisfazem perfeitamente o meu propósito quando se juntam. Foram estas as palavras de Paulo, que diz, “Porque, sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos, para ganhar ainda mais,” (1 Cor. 9:19) e “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei” (Rom. 13:8). O amor é por sua natureza obediente e submisso ao que é amado. Desta forma Cristo, ainda que Senhor de todas as coisas, nasceu de uma mulher, sujeito à lei; ao mesmo tempo livre e submisso, tal como Deus e tal como um servo. Examinemos este ponto de uma forma mais complexa e aprofundada. O homem é composto por uma natureza dupla, a espiritual e a física. Referente à sua natureza espiritual, cujo nome é a alma, ele é chamado de novo homem, interior e espiritual; e à sua natureza física, cujo nome é a carne, é chamado de velho homem, exterior e carnal. O Apóstolo fala disto: “mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia” (2 Cor. 4:16) O resultado desta diversidade é que nas Escrituras são feitas afirmações contrárias em
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relação ao mesmo homem, pois no mesmo homem estes dois se opõem; a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne (Gal. 5:17). Nós abordamos o homem interior em primeiro lugar para que possamos ver como alguém se torna num verdadeiro Cristão, livre e justificado; isto é, num novo homem, interior e espiritual. É certo que não existe absolutamente nada do que é exterior, seja qual for o seu nome, que tenha alguma influência em produzir liberdade ou justificação Cristãs, nem maldade ou escravidão. Isto pode ser facilmente demonstrado com o seguinte argumento. Que benefício tem a alma pelo corpo estar em boas condições, livre e cheio de vida, e que coma, beba e faça como bem lhe aprouver, quando até o mais ímpio dos escravos de todo o tipo de vícios goza da mesma situação? E que dano pode causar à alma a enfermidade, o cativeiro, a fome, a sede ou qualquer outro mal exterior, quando até o mais pio de todos os homens e os mais livres na pureza de consciência são fustigados por estas coisas? Nenhuma das duas situações tem a ver com liberdade ou escravidão da alma. Assim de nada serve que o corpo esteja aproado com vestes sagradas, ou que habite em lugares santos, ou que se ocupe com ofícios veneráveis, ou que ore, jejue e se abstenha de certas carnes, ou que faça quaisquer obras realizadas na carne e pela carne. Algo bem diferente será necessário para a justificação e liberdade da alma, visto que todas as coisas que mencionei podem ser feitas por qualquer pessoa ímpia, e que a devoção a estas coisas só produz hipócritas. Por outro lado, não afligirá a alma de todo que o corpo se vista com indumentárias profanas, que habite em lugares ímpios, que coma e beba de maneira vulgar, que não ore em voz alta, e que deixe de lado
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todas as coisas anteriormente mencionadas e que podem ser feitas por hipócritas. De nada serve também a especulação, as meditações, e quaisquer coisas que possam ser realizadas unicamente pelo esforço da própria alma. Uma coisa, e apenas uma, é necessária à vida, à justificação e à liberdade Cristã, e ela é a palavra de Deus, o Evangelho de Cristo, que como Ele diz, “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (João 11:25) e “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente, sereis livres” (João 8:36) e ainda “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mat. 4:4). Assim que nos fique assegurado e estabelecido de que a alma de nada precisa senão da palavra de Deus, sem a qual nenhuma das suas carências seria satisfeita. Mas tendo a palavra, a alma é rica e não carece de nada, pois esta é a palavra da vida, da verdade, da luz, da paz, da justificação, da salvação, da alegria, da liberdade, da sabedoria, da virtude, da graça, da glória e de tudo o que é bom. É assim que o profeta suspira e clama pela palavra de Deus num Salmo inteiro (Salmo 119) – assim como noutros lugares – com tantas palavras e gemidos. Não há um golpe mais cruel da ira de Deus do que quando Ele nos dá uma fome de ouvir as Suas palavras (Amós 8:11), assim como não há maior bênção d’Ele do que o receber as Suas palavras, como fora dito, “Enviou a sua palavra, e os sarou, e os livrou da sua destruição” (Salmo 107:20). Cristo não foi enviado para nenhum outro trabalho a não ser o da palavra; e a ordem dos Apóstolos, dos bispos e de todo o clero foi chamada e instituída para nenhum outro propósito que não fosse o ministério da palavra. Mas você pode perguntar, “O que é esta palavra e como é que ela é usada, visto que há tantas palavras
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de Deus?” Ao passo que eu respondo, “O Apóstolo Paulo (Rom. 1) explica o que é nomeadamente o Evangelho de Deus, relativo ao seu Filho incarnado, que sofreu, ressuscitou e foi glorificado através do Espírito, o Santificador. Pregar sobre Cristo é alimentar a alma, justificá-la, libertá-la e salvá-la, caso ela creia no que é pregado. Só a fé e o uso eficaz da palavra de Deus trazem salvação. “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rom. 10:9) e também, “Porque o fim da Lei é Cristo, para a justificação de todo o que crê” (Rom 10:4) e “O justo viverá pela fé” (Rom. 1:17). Pois a palavra de Deus não pode ser recebida e honrada pelas obras, mas somente pela fé. Assim torna-se claro de que a alma precisa apenas da palavra para ter vida e justificação, visto que a alma só é justificada pela fé e não por quaisquer obras; pois se fosse possível ser-se justificado por quaisquer outros meios, não seria necessária a palavra e, consequentemente, nem a fé. Mas esta fé não consiste de todo com as obras, caso você imagine que pode ser justificado pelas obras juntamente com a fé, quaisquer que sejam essas obras; pois isso seria oscilar entre duas opiniões, adorar a Baal e beijar a própria mão, o que seria um pecado merecedor de condenação, como diria Jó (Jó 31:27-28 NVI-PT). Portanto quando você começar a crer, aprenderá ao mesmo tempo que tudo o que existe dentro de si é completamente culpado, pecaminoso e amaldiçoado, de acordo com o que foi dito: “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rom. 3:23) e também “Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” (Rom. 3:10-12). Quando tiver aprendido isto você
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ficará a saber que precisa de Cristo, visto que Ele sofreu e ressuscitou por si para que, crendo n’Ele, você possa por esta fé tornar-se noutro homem, todos os seus pecados sendo remitidos e você sendo justificado pelos méritos de outro, nomeadamente Cristo e somente Ele. A partir daí esta fé reina somente no homem interior, como está escrito “com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação” (Rom. 10:10), e como só ela justifica, é evidente que por nenhuma obra exterior pode o homem interior ser justificado, livre e salvo; nenhuma obra tem qualquer relação com ele. Por outro lado, é apenas pela impiedade e incredulidade do coração que ele se torna culpado e um escravo do pecado merecedor de condenação, não por nenhuma obra ou pecado exterior. Portanto o primeiro cuidado que o Cristão deve ter é o de deixar totalmente de depender das obras, fortalecendo exclusivamente a sua fé mais e mais para que cresça não nas obras, mas no conhecimento de Cristo Jesus, que sofreu e ressuscitou para o homem, como Pedro ensina (1 Pedro 5) quando ele não faz Cristã nenhuma obra. Foi assim que Cristo, quando os Judeus O questionaram acerca do que fazer para poderem realizar as obras de Deus, rejeitou a variedade de obras que os tornavam altivos aos Seus olhos, e comandou-os a fazerem apenas uma coisa, dizendo: “A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação” (João 6:27,29 NIV-PT). A fé certa em Cristo é portanto um tesouro incomparável, que traz salvação universal e que preserva de todo o mal, como está escrito, “Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado” (Marcos 16:16) Na sua busca por este tesouro, Isaías previu que “uma destruição está determinada, transbordando de justiça. Porque determinada já a destruição, o Senhor Jeová
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dos Exércitos a executará no meio de toda esta terra” (Isa. 10:22-23), como se tivesse dito: “a fé, que é o breve e total cumprimento da lei, encherá os que crerem com tal justiça que de nada mais irão precisar para serem justificados.” Daí que Paulo também diz: “com o coração se crê para a justiça” (Rom. 10:10). Mas você pode perguntar, “como é que de facto só a fé nos justifica e nos brinda com tão grande tesouro de coisas boas na ausência de obras, quando nos são prescritas nas Escrituras tantas obras, leis e cerimónias?” Ao passo que eu respondo, “Antes de mais tenham em mente o que tenho dito: que só a fé justifica, livra e salva”, como vos mostrarei de forma mais clara em seguida.
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II Entretanto há que ter em conta que toda a Escritura de Deus está dividida em duas partes: princípios e promessas. Os princípios certamente nos ensinam o que é bom, mas o que ensinam não é feito no momento, pois eles nos mostram o que nós devemos fazer, mas não nos dão poder para o fazer. Eles foram estabelecidos, no entanto, com o intuito de mostrar ao homem quem ele é, para que ele reconheça por si próprio a sua impotência para fazer o bem e desespere nas suas próprias forças. Por esta razão eles são chamados de Velho Testamento. Por exemplo, “não cobiçarás” é um princípio pelo qual todos nós somos condenados de pecado, pois nenhum homem pode deixar de cobiçar, faça ele o que fizer. De forma a cumprir este princípio e não cobiçar, ele vê-se obrigado a renegar-se e a buscar noutro lugar e noutra pessoa o apoio que não consegue encontrar em si mesmo; como foi dito, “Para tua perda, ó Israel, te rebelaste contra mim, contra o teu ajudador” (Oseias 13:9). O que é feito neste princípio aplica-se para todos, pois todos são igualmente impossíveis de serem cumpridos por nós.
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Agora, quando um homem se mentaliza da sua impotência perante estes princípios e não sabe como há de satisfazer a lei – pois a lei deve ser satisfeita de modo a que nem a menor letra ou o menor traço possam desaparecer, caso contrário esse homem deve ser irremediavelmente condenado (Mat. 5:18 NVI-PT) – ele já não vê em si mesmo nenhum recurso para justificação e salvação, tendo sido humilhado e se tornado insignificante aos seus próprios olhos. Depois vem a outra parte das Escrituras, as promessas de Deus, que declaram a glória de Deus e dizem, “Se você quer cumprir a lei e ela lhe pede para não cobiçar, creia em Cristo, no qual graça, justificação, paz e liberdade lhe são prometidas.” Todas estas coisas você terá se crer; e se você não crer, não terá nenhuma delas. Porque o que lhe é impossível por todas as obras da lei, que são muitas mas inúteis, você poderá cumprir de forma fácil e célere através da fé porque Deus o Pai fez tudo dependente da fé, para que quem a tivesse também tivesse todas as outras coisas, e quem não a tivesse não tivesse nenhuma das outras coisas. “Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia” (Rom. 11:32). Logo as promessas de Deus nos dão aquilo que os princípios exigem e cumprem o que a lei ordena; pois tudo é de Deus, ambos os princípios e o cumprir dos mesmos. Só Ele ordena; também só Ele executa. As promessas de Deus pertencem assim ao Novo Testamento; aliás, elas são o Novo Testamento. Agora, como estas promessas de Deus são palavras de santidade, verdade, justiça, liberdade e paz cheias de bondade universal, a alma que se agarra às promessas com uma fé robusta está-lhes tão ligada – ou melhor, está tão completamente absorvida por elas – que não só compartilha de, mas é irrompida e atestada pelas suas virtudes.
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Se o toque de Cristo curava, quão mais esse tão delicado toque espiritual, essa absorção da palavra, comunicará à nossa alma tudo o que pertence à palavra! É assim que a alma, pela fé e não por obras, é justificada, santificada, incutida com verdade, paz e liberdade, e cheia de todas as coisas boas pela palavra de Deus, tornando-se o filho de Deus, como foi dito: “aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (João 1:12 NVI-PT). Com tudo isto é fácil de entender porque é que a fé tem tanto poder e porque é que nenhuma boa obra, nem todas as boas obras juntas, se podem comparar com a fé, visto que nenhuma obra se pode agarrar à palavra de Deus ou estar na alma. Apenas a fé e a palavra reinam na alma; e tal como a palavra é, assim se faz a alma, como o ferro exposto ao fogo também brilha como o fogo devido à união entre eles. Torna-se claro a um homem Cristão que a sua fé é suficiente em tudo, e que ele não precisa das obras para justificação. Mas se ele não tem necessidade das obras também não tem necessidade da lei; e se ele não tem necessidade da lei, certamente ele é livre da lei, e o que foi dito é verdade: “a lei não é feita para o justo” (1 Tim 1:9). Esta é a liberdade cristã, a nossa fé, cujo resultado não implique que nós sejamos desmazelados ou que levemos uma vida má, mas que ninguém precise da lei ou de obras para a sua justificação e salvação.
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III Consideremos esta a primeira virtude da fé e vejamos agora a segunda. Também este é um dever da fé: que honre com a maior das venerações e estima Aquele em quem acredita, na medida em que o vê como verdadeiro e digno de confiança. Pois não existe tal honra como a reputação de verdade e justiça que conferimos em quem nós cremos. Que maior distinção podemos atribuir a alguém do que verdade, retidão e bondade absoluta? Por outro lado, é o pior insulto rotular alguém com uma reputação de falsidade e injustiça ou de suspeitar dele em relação a estas coisas, como acontece quando não cremos. Ao crer firmemente nas promessas de Deus, a alma vê-O como verdadeiro e justo; e não pode atribuir a Deus maior honra do que essa distinção. O maior louvor de Deus é atribuir-Lhe a verdade, a justiça e quaisquer outras qualidades que nós destinamos àquele em quem nós cremos. Ao fazer isto a alma mostra que está preparada para fazer toda a Sua vontade; ao fazer isto ela santifica o Seu nome e oferece-se para que Deus possa fazer o que bem entender com ela. Ela agarra-se às Suas promessas e
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nunca duvida que Ele é verdadeiro, justo, sábio e que fará, disporá e providenciará da melhor forma para todas as coisas. Não é assim a alma, numa fé como esta, obediente a Deus em todas as coisas? Que mandamento resta que não seja amplamente cumprido por tal obediência? Que concretização pode ser mais completa do que obediência universal? Agora, isto não é realizado pelas obras, mas só pela fé. Em contrapartida, que maior rebelião, impiedade ou insulto a Deus pode existir do que não acreditar nas suas promessas? Que mais é isto senão fazer de Deus um mentiroso ou duvidar da Sua verdade – isto é, atribuir a nós mesmos a verdade, mas a Deus a falsidade ou a leviandade? Ao fazer isto, não estará o homem a rejeitar a Deus e fazer de si mesmo um ídolo no seu coração? Como podem então as obras, feitas num tal estado de impiedade, nos beneficiarem mesmo se fossem apostólicas ou angelicais? Deus reteve todos justamente, não em ira ou paixão mas em descrença, para que todos os que fingem cumprir a lei pelas obras de pureza e benevolência (que são virtudes sociais e humanas) não presumam que serão salvos por isso, mas uma vez estando incluídos no pecado de descrença, buscarão misericórdia ou serão justamente condenados. Mas quando Deus vê que a verdade lhe é atribuída e que a fé dos nossos corações O honra com todo o mérito que Ele merece, Ele nos honra de volta pela nossa fé, atribuindo-nos verdade e justiça. A fé apresenta o que é de Deus como verdade e justiça, e em retorno Deus glorifica a nossa justiça. É verdade e justo que Deus é verdadeiro e justo; e confessar isto e atribuir-Lhe estas qualidades é ser verdadeiro e justo. Assim Ele diz, “porque aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão envilecidos” (1 Sam. 2:30). E também Paulo afirma que a fé
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de Abraão lhe foi imputada como justiça porque ela dava glória a Deus; e pela mesma razão também nos será imputada como justiça, se nós cremos (Rom. 4).
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IV A terceira graça incomparável da fé é esta: que ela une a alma a Cristo, como a mulher ao seu esposo, pelo mistério em que Cristo e alma se tornam uma carne, como o Apóstolo ensina. Se eles são uma carne, e se um verdadeiro matrimónio – de longe o mais perfeito matrimónio – é alcançado entre eles (pois os casamentos humanos são frágeis exemplos deste grande casamento), então tudo o que têm pertence aos dois em comum, tanto as coisas boas como as más; de maneira que o que quer que seja de Cristo possa ser reclamado e louvado pela alma crente como sua, e o que pertencer à alma possa ser reclamado por Cristo como Seu. Se compararmos estas posses, nós podemos ver o quão inestimável é o retorno. Cristo é cheio de graça, vida e salvação; a alma é cheia de pecado, morte e condenação. Deixe a fé entrar e o pecado, a morte e o inferno pertencerão a Cristo, e a graça, a vida e a salvação à alma. Se Ele é um Marido, Ele tem de carregar o que é da Sua mulher, e ao mesmo tempo conceder à sua mulher o que é d’Ele. Pois ao dar-lhe o Seu corpo e a si mesmo, como poderia
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Ele senão dar-lhe tudo o que é Seu? E ao tomar o corpo da Sua mulher, como poderia Ele senão tomar para si mesmo tudo o que é dela? Nisto é exibida a encantadora visão, não só de comunhão, mas de um próspero batalhar, de vitória, salvação, e redenção. Uma vez que Cristo é Deus e homem, e é uma Pessoa tal que não peca, nem morre, nem é condenada; ou melhor, que não pode pecar, morrer ou ser condenada, e uma vez que a Sua justiça, vida e salvação são invencíveis, eternas, e omnipotentes – quando digo que tal Pessoa pela sua aliança de fé toma parte nos pecados, na morte e na condenação da Sua mulher, Ele torna-os Seus, lidando com eles como se fossem Seus e como se Ele próprio tivesse pecado, e triunfando sobre todas as coisas quando Ele sofre, morre e desce ao inferno. Uma vez que nem pecado, nem morte, nem condenação o podem consumir, estes são por sua vez consumidos por Ele num conflito estupendo. A Sua justiça se eleva acima dos pecados de todos os homens; a Sua vida é mais poderosa que toda a morte; a Sua salvação é mais inabalável que toda a condenação. Assim a alma que crê, através da promessa de fé em Cristo, torna-se livre de todo o pecado, sem temer a morte, a salvo do inferno, e dotada de justiça, vida e salvação eternas do seu esposo, Cristo. Assim Ele introduz a Si mesmo uma noiva em toda a sua glória, sem nódoa ou sulco, que Ele purifica com o lavar da palavra; isto é, pela fé na palavra da vida, justiça e salvação. Assim ele a desposa para si mesmo “em fidelidade, em justiça, e em juízo, e em benignidade, e em misericórdias” (Oseias 2:19,20). Quem então pode dar valor suficiente a estas núpcias reais? Quem pode compreender as riquezas da glória desta graça? Cristo, esse Marido bondoso e rico, toma como sua esposa uma prostituta ímpia e carente, redimin-
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do-a de todos os seus males e providenciando com todas as Suas coisas boas. Agora, é impossível que os seus pecados a destruam, uma vez que eles foram postos sobre Cristo e este os consumiu, e uma vez que ela tem em Cristo, seu Esposo, uma justiça que ela pode reclamar como sua, dizendo, “se eu pequei, o meu Cristo, no qual eu creio, não pecou; tudo o que é meu é d’Ele, e tudo o é d’Ele é meu,” como está escrito, “O meu amado é meu, e eu sou dele” (Cant. 2:16). Isto é o que Paulo diz: “graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo,” vitória sobre o pecado e a morte, como ele diz, “o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei” (1 Cor. 15:56,57). De tudo isto você poderá mais uma vez entender porque é que tanta importância é atribuída à fé, para que só ela possa cumprir a lei e justificar sem quaisquer obras. Pois você vê que o Primeiro Mandamento, que diz, “adorarás somente a um Deus” (“não terás outros deuses diante de mim”) só é cumprido pela fé. Se você não fosse nada senão boas obras da planta dos pés ao cimo da cabeça, você não estaria a adorar a Deus, nem a cumprir o Primeiro mandamento, visto que é impossível adorar a Deus sem Lhe conferir a glória da verdade e da bondade universal como deve de ser. Agora, isto não se faz pelas obras, mas somente pela fé do coração. Não é por trabalhar, mas por crer, que nós glorificamos a Deus, e confessamos que Ele é real. Só a fé é a justiça de um homem cristão e o cumprimento de todos os mandamentos neste contexto, pois àquele que cumpre o Primeiro, a tarefa de cumprir os restantes é fácil. Obras, visto serem coisas irracionais, não podem glorificar a Deus, embora possam ser feitas para a glória de Deus se a fé estiver presente. Mas neste momento nós nos inquirimos não sobre a qualidade das obras realizadas, mas sobre aquele que as realiza, que glorifica a
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Deus e traz boas obras. Esta é a fé do coração, a líder e a substância de toda a nossa justiça. Daí que é uma doutrina cega e perigosa que afirma que os mandamentos são cumpridos pelas obras. Os mandamentos são cumpridos antes de quaisquer boas obras e as boas obras sucedem o seu cumprimento, como veremos. Mas de forma a termos uma visão mais abrangente da graça que o nosso homem interior tem em Cristo, temos de saber que, no Velho Testamento, Deus santificava para si mesmo cada primogénito masculino. O direito de nascença tinha grande valor, outorgando uma superioridade de dupla honra em sacerdócio e realeza sobre todos os outros. Cristo foi anunciado sob esta figura, o verdadeiro e único Primogénito de Deus o Pai e da Virgem Maria, e um autêntico Rei e Sacerdote; não num sentido terrestre e carnal, pois o Seu reino não é deste mundo. É em coisas espirituais e celestiais que Ele reina e atua como Sacerdote; e estas coisas são a justiça, a verdade, a sabedoria, a paz, a salvação, etc. Todas as coisas, mesmo as da terra e do inferno, estão sujeitas a Ele – pois como poderia Ele nos defender e salvar dessas coisas se assim não fosse? – mas não é nessas coisas nem por essas coisas que o Seu reino se ergue. Também o Seu sacerdócio não consiste no aparato exterior de vestes e gestos, como no sacerdócio humano de Arão e no nosso sacerdócio eclesiástico de hoje, mas nas coisas espirituais, onde no seu trabalho invisível Ele intercede por nós com Deus no céu e lá Ele se oferece a Si mesmo, realizando todas as obrigações de um sacerdote como Paulo o descreve aos Hebreus sob a figura de Melquisedeque. Não só Ele ora e intercede por nós, mas também nos ensina internamente no espírito com os ensinamentos vivos do Seu Espírito. Estes são os dois deveres
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especiais do sacerdote, que nos são expostos na imagem de sacerdotes humanos por orações e pregações visíveis. Como Cristo obteve estas duas distinções pela Sua primogenitura, também Ele as partilha e comunica a todo aquele que n’Ele crê debaixo da lei de matrimónio que abordámos acima, pela qual tudo o que é do esposo é também da esposa. Assim todos nós que cremos em Cristo somos reis e sacerdotes em Cristo, como foi dito: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pedro 2:9). É assim que as duas coisas se mantêm. No que toca a realeza, cada Cristão é tão exaltado sobre todas as coisas pela fé que, em poder espiritual, ele é absolutamente senhor de todas as coisas, para que nada lhe possa causar estragos; sim, todas as coisas estão sujeitas a ele e são compelidas a serem subservientes à sua salvação. De modo que Paulo diz, “todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto” (Rom. 8:28) e também “seja a vida, seja a morte, seja o presente, seja o futuro, tudo é vosso, e vós, de Cristo” (1 Cor. 3:22-23). Não é que no sentido de poder corporal alguém de entre os Cristãos tenha sido designado a possuir e governar todas as coisas, de acordo com a ideia louca e insensata de certos eclesiásticos. Este é um cargo de reis, príncipes e homens sobre a terra. Na experiencia que é a vida notamos que estamos sujeitos a todas as coisas, e sofremos muitas coisas, até a morte. De facto, quanto mais Cristão um homem é, mais são os males, os sofrimentos e as mortes a que está sujeito, como podemos ver em Cristo o Primogénito e em toda a Sua santa irmandade em primeiro lugar.
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Este é um poder espiritual, que rege no meio de inimigos e é poderoso no meio das aflições. E isto não é nada mais do que aquele poder que se aperfeiçoa na minha fraqueza, e que eu posso tornar todas as coisas em benefício para a minha salvação; para que mesmo a cruz e a morte sejam forçadas a me servirem e a trabalharem em conjunto para a minha salvação. Esta é uma dignidade eminente e esplêndida, um domínio verdadeiro e todo -poderoso, um império espiritual no qual não há nada tão bom ou tão mau que não trabalhe em conjunto para o meu bem, se eu crer. E contudo não há nada de que eu precise – pois somente a fé é suficiente para a minha salvação – a não ser que seja algo em que a fé possa exercer o poder e o império da sua liberdade. Este é o poder e a liberdade inestimáveis dos Cristãos. Não só somos reis e os mais livres de todos os homens, mas também sacerdotes para todo o sempre, uma distinção maior que qualquer realeza, porque por este sacerdócio somos dignos de comparecer perante Deus, de orar por outros, e de nos instruirmos mutuamente nas coisas que são de Deus. Pois estes são os deveres dos sacerdotes, e eles não podem ser permitidos a nenhum nãocrente. Cristo obteve para nós este favor, se n’Ele crermos: tal como somos Seus irmãos e reis juntamente com Ele, também devemos ser sacerdotes juntamente com Ele, e através do espírito da fé nos aventurarmos com confiança para entrar na presença de Deus e clamar “Abba Pai!”, e orar uns pelos outros, e fazer todas as coisas que vemos serem feitas e exibidas no exercício corporal e visível do sacerdócio. Mas ao não-crente nenhum serviço ou trabalho será para o seu bem. Ele é servo de todas as coisas, e todas as coisas resultam em prejuízo para ele, porque ele usa todas as coisas de uma forma ímpia para seu próprio benefício, e não para a glória de Deus. Assim, ele não é
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um sacerdote, mas sim uma pessoa profana cujas orações se convertem em pecado e que não aparece na presença de Deus, pois Deus não ouve os pecadores. Então quem é capaz de compreender a imponência dessa dignidade Cristã que pelo seu poder real reina sobre todas as coisas, até sobre a morte, a vida e o pecado, e que pela sua glória sacerdotal é omnipotente com Deus, uma vez que Deus faz o que Lhe bem apetecer e aprouver, como está escrito, “Ele cumprirá o desejo dos que o temem; ouvirá o seu clamor e os salvará” (Salmo 145:19)? Certamente esta glória não pode ser alcançada por obras, mas somente pela fé. A partir destas considerações qualquer um pode ver claramente como um Cristão é livre de todas as coisas; de forma que ele não precisa de obras nenhumas para ser justificado e salvo, mas recebe estas dádivas em abundância pela fé e só pela fé. Aliás, se ele fosse tão tolo ao ponto de fingir ter sido justificado, liberto, salvo, e feito Cristão por meio de qualquer boa obra, ele perderia a fé imediatamente, e com ela todos os seus benefícios. Tal loucura é representada habilmente na fábula onde um cão, correndo ao longo da água com um pedaço de carne na sua boca, é enganado pelo reflexo da carne na água e, ao tentar abocanhar esse reflexo, perde o bocado de carne e a sua imagem na água ao mesmo tempo. Aqui você pergunta, “Se todos os que estão na Igreja são sacerdotes, como podemos distinguir dos laicos a quem nós presentemente chamamos de sacerdotes?” Ao passo que eu respondo que pelo uso destas palavras – “sacerdote”, “clérigo”, “pessoa espiritual”, “eclesiástico” – uma injustiça foi cometida, pois elas foram transferidas do restante corpo de Cristãos para os poucos que por um costume prejudicial são chamados de eclesiásticos. Pois a Santa Escritura não faz distinção entre eles exceto que,
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àqueles que agora são presumidamente apelidados de papas, bispos e senhores, ela lhes chama de ministros, servos e administradores, para servirem o resto do ministério da palavra, para ensinarem a fé de Cristo e a liberdade dos crentes. Pois embora seja verdade que todos somos sacerdotes, não podemos – ou se podemos, não devemos – todos ministrar e ensinar publicamente. Assim disse Paulo, “que todos nos considerem como servos de Cristo e encarregados dos mistérios de Deus” (1 Cor. 4:1 NVI-PT) Este sistema perverso emite agora uma ostentação de poder tão pomposa e uma tirania tão terrível que nenhum governo terrestre se lhe pode comparar, como se os leigos fossem algo mais que Cristãos. Através desta perversão o conhecimento da graça, da fé, da liberdade e de um modo geral de Cristo morreu completamente, e foi sucedido por uma escravatura intolerável às obras e leis humanas; e de acordo com as Lamentações de Jeremias, nós nos tornámos escravos dos homens mais vis da terra, que abusam da nossa miséria em prol dos propósitos vergonhosos e ignominiosos das suas vontades. Voltando ao tema do qual partimos, penso que por estas considerações se torna claro que não é substancial nem um procedimento Cristão pregar as obras, a vida e as palavras de Cristo de uma perspetiva histórica, em que basta saber aqueles factos que nos mostram como devemos organizar as nossas vidas, como fazem os que são agora considerados os melhores pregadores, e ainda menos substancial e Cristão é manter o silêncio sobre estas coisas e ensinar em seu lugar as leis dos homens e os decretos dos eclesiásticos. Não são poucas as pessoas que pregam e leem sobre Cristo com o intuito de levarem as emoções dos homens a simpatizarem com Cristo, a se indignarem com os Judeus e a outros disparates infantis e efeminados do mesmo estilo.
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A pregação deve ter o intuito de promover a fé n’Ele para que Ele não seja somente Cristo, mas seja Cristo para mim e para si, e para que o que é dito d’Ele e o que Lhe chamam possa trabalhar em nós. Esta fé é produzida e preservada ao pregar porque é que Cristo veio, o que Ele nos trouxe e nos deu, e que benefício Ele é para nós se Ele for recebido. Isto é feito quando a liberdade Cristã que temos do próprio Cristo nos é ensinada corretamente, e quando nos é mostrada a maneira em que todos nós Cristãos somos reis e sacerdotes, e como somos senhores de tudo, e como podemos estar confiantes de que seja o que for que façamos na presença de Deus ser-Lhe-á agradável e admissível. Que coração não se alegraria no seu íntimo ao ouvir estas coisas? Que coração, ao receber tal consolação, não se tornaria doce com o amor de Cristo, um amor que não se pode conquistar com nenhuma lei ou obra? Quem pode magoar tal coração, ou assustá-lo? Se a consciência do pecado ou o horror da morte o tomam de assalto, ele está preparado para esperar no Senhor e não teme nem é perturbado por tais males até que baixe o olhar sobre os seus inimigos. Ele acredita que a justiça de Cristo é também a sua, e que o seu pecado já não lhe pertence, mas pertence a Cristo; mas, perante a sua fé em Cristo, todo o seu pecado precisa de ser consumido perante a face da justiça de Cristo, como mencionei acima. Ele também aprende com o apóstolo a escarnecer a morte e o pecado, e a dizer “Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor. 15:5557). Pois a morte é consumida na vitória, não só na vitória de Cristo mas também na nossa, uma vez que pela fé ela se torna nossa e nela também nós conquistamos.
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Isto é o que há a dizer sobre o homem interior e a sua liberdade, e sobre aquela justiça da fé que não precisa de leis nem boas obras; aliás, estas leis e obras são-lhe prejudiciais, caso alguém finja ser justificado por elas.
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V E agora viremos as nossas atenções à outra parte: o homem exterior. Aqui eu dou uma resposta a todos aqueles que, sentindo-se afrontados pela palavra da fé e pelo o que eu tenho afirmado, dizem “Se a fé faz tudo, e se ela por si só basta para a justificação, então porque são decretadas as boas obras? É suposto relaxarmos e não realizar obras nenhumas, e nos contentarmos com a fé?” Não é assim, homens ímpios, eu vos digo; não é assim. Esse seria realmente o caso se nós fossemos pessoas completamente interiores e espirituais, o que não acontecerá até ao último dia, quando os mortos ressuscitarem. Enquanto vivermos na carne, estamos apenas a fazer progressos que serão consumados numa vida futura. A isto se refere o Apóstolo quando ele chama o que temos nesta vida de primícias do Espírito (Rom. 8:23). No futuro teremos os dízimos, e a plenitude do espírito. A isto está relacionado o facto que eu proferi anteriormente: que o Cristão é servo de todos e sujeito a todos. Pois na parte em que ele é livre ele não realiza obras, mas na parte em que ele é servo ele realiza todas as obras. Vejamos em que princípio isto é assim.
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Embora, como tenho dito, um homem seja justificado, interiormente e de acordo com o espírito, de forma suficientemente ampla pela fé de forma a ter tudo o que precisa, esta fé e abundância devem crescer dia após dia até à vida futura; no entanto, ele ainda assim continua nesta vida mortal e terrena, na qual é necessário que ele discipline o seu corpo e que interaja com os outros homens. É aqui que as obras começam; é aqui que ele não pode relaxar; é aqui que ele deve exercitar o seu corpo através do jejum, das observâncias, do trabalho, e de uma outra disciplina regular, para que o corpo se submeta ao espírito, e obedeça e se conforme ao homem interior e à fé, e que não se rebele contra eles nem que lhes levante obstáculos, como é próprio da sua natureza quando esta não é contida. O homem interior, estando conformado com Deus e criado na imagem de Deus pela fé, se apraz e celebra em Cristo, no qual lhe é conferido imensas bênçãos, restando-lhe apenas uma única tarefa: servir Cristo com alegria e amar livremente. Mas ao fazer isto ele choca com a vontade contrária da sua própria carne, que ambiciona servir o mundo e buscar a sua própria gratificação. Isto o espírito da fé não pode nem irá suportar, mas ele se aplica com júbilo e zelo a deter e restringir esta vontade contrária, como Paulo diz. “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus. Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros” (Rom. 7:22-23), e também, “Antes, subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado” (1 Cor. 9:27), e “Os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gal. 5:24). Estas obras, porém, não devem ser feitas com a
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noção de que por elas o homem pode ser justificado perante Deus – pois a fé, que só ela é justiça perante Deus, não admitirá este raciocínio falso – mas somente com este propósito: que o corpo se vergue à submissão e que seja purificado dos seus apetites perversos, para que os nossos olhos se fixem apenas em expulsar esses apetites. Pois quando a alma é limpa pela fé e estimulada para amar a Deus, faria que todas as coisas fossem limpas da mesma maneira, especialmente o seu próprio corpo, para que todas as coisas se possam unir a ela em amor e louvor a Deus. Assim chegamos a que, a partir dos requerimentos do seu próprio corpo, um homem não possa relaxar, mas é motivado por sua vez a realizar muitas boas obras, de forma a vergar o corpo à submissão. Todavia estas obras não são meios de justificação perante Deus; ele os faz por amor inócuo ao serviço de Deus; com nenhum outro fim em vista do que aquilo que mais Lhe agrada, a quem ele deseja obedecer o mais fielmente em todas as coisas. Cada homem pode se instruir facilmente neste principio e descobrir em que medida e com que distinções ele deve regular o seu próprio corpo. Ele irá jejuar, observar e trabalhar tanto quanto achar suficiente para mitigar a lascívia e concupiscência do seu corpo. Mas aqueles que fingem ser justificados pelas obras olham não para a mortificação dos seus desejos, mas apenas para as próprias obras; pensando que se realizarem tantas e tão grandes obras quanto possíveis, tudo está bem com eles e são justificados. Às vezes eles até magoam o cérebro e extinguem a natureza, ou pelo menos a tornam inútil. Esta é uma enorme tolice e ignorância da vida e fé Cristãs, quando um homem procura ser justificado e salvo pelas obras sem a fé. Para tornar o que temos falado mais fácil de entender, vamos usar o seguinte exemplo. As obras do ho-
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mem Cristão, justificado e salvo pela sua fé a partir da misericórdia pura e impagável de Deus, devem ser vistas à mesma luz das que seriam realizadas por Adão e Eva no paraíso e por toda a sua descendência se eles não tivessem pecado. Acerca deles é dito, “E tomou o Senhor Deus o homem e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar” (Gen. 2:15). Adão fora criado justo e reto por Deus, de forma que ele não precisava de ser justificado e feito reto por guardar o jardim e nele trabalhar; mas para que não estivesse desocupado, Deus lhe deu a função de tomar conta do paraíso e de o cultivar. Estas teriam sido verdadeiras obras de pura liberdade, levadas a cabo com nenhum outro objetivo que não fosse agradar a Deus, em vez de obter justificação, coisa que ele já possuía na totalidade e que seria inerente a todos nós. Assim também o é com as obras de um crente. Sendo renovado no paraíso e criado de novo pela sua fé, ele não requer obras para a sua justificação, mas sim para que não esteja parado e para que possa exercitar e preservar o seu corpo. As suas obras são executadas livremente, com o único propósito de agradar a Deus. Apesar de tudo nós ainda não fomos totalmente criados de novo em perfeito amor e fé; no entanto, estas coisas precisam de crescer por si mesmas, e não através de obras. Um bispo, quando ele dedica uma igreja, confirma crianças, ou realiza qualquer outro dever da sua função, não é consagrado um bispo por estas obras; de facto, nenhuma destas obras seria válida se ele não fosse consagrado bispo antes de as realizar; elas seriam ridículas, imaturas e disparatadas. Daí um cristão, sendo consagrado pela sua fé, efetua boas obras; mas ele não se torna mais santo ou mais Cristão por estas obras. Este é o efeito da fé e somente da fé; a não ser que ele fosse um crente e um Cristão anteriormente, nenhuma das suas obras teria
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qualquer valor; elas seriam na verdade pecados ímpios e condenáveis. Assim, ambos estes dois ditados são verdadeiros, “Boas obras não fazem um homem bom, mas um homem bom faz boas obras”; “más obras não fazem um homem mau, mas um homem mau faz más obras”. Por isso é necessário que a essência ou a pessoa sejam boas antes que qualquer boa obra possa ser realizada, e que boas obras devem proceder de uma boa pessoa. Como Cristo disse, “Não pode a árvore boa dar maus frutos, nem a árvore má dar frutos bons” (Mat. 7:18). Torna-se evidente que não é o fruto que dá a árvore, nem é a árvore que cresce no fruto; pelo contrário, as árvores dão o fruto e o fruto cresce nas árvores. Como as árvores têm de existir antes do seu fruto, e como o fruto não faz da árvore nem boa nem má, mas pelo contrário, cada árvore dá fruto correspondente à sua origem, também a pessoa tem de ser boa ou má antes de poder efetuar uma boa obra ou uma má obra; e as suas obras não fazem dela uma pessoa boa ou má, mas é ela que faz das suas obras boas ou más. Nós podemos observar isto em todos os trabalhos manuais. Uma casa boa ou uma casa má não faz um bom empreiteiro ou um mau empreiteiro, mas um bom empreiteiro ou um mau empreiteiro faz uma casa boa ou uma casa má. E em geral o trabalho não faz o trabalhador como ele é, mas é o trabalhador que faz o trabalho como ele é. Assim também é o caso com as obras dos homens. Assim como o homem é, esteja ele na fé ou na descrença, assim também é a sua obra: boa se for feita na fé, má se for feita na descrença. Como as obras não fazem do homem um crente, também não fazem do homem justificado; mas a fé, que faz do homem um crente e justificado, também torna as suas obras boas.
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Uma vez que as obras não justificam nenhum homem, mas que o homem tem de ser justificado antes que possa efetuar qualquer boa obra, torna-se o mais evidente que é somente a fé que, pela mera misericórdia de Deus através de Cristo e por meio da Sua palavra, pode dignamente e suficientemente justificar e salvar a pessoa, e que o Cristão não requer nenhuma obra nem nenhuma lei para a sua salvação; pois pela fé ele é livre de toda a lei, e na perfeita liberdade faz tudo o que faz sem motivo, procurando nada para seu proveito ou salvação – uma vez que pela graça de Deus ele já é salvo e rico em todas as coisas pela sua fé – mas apenas aquilo que é agradável a Deus. Assim também nenhuma boa obra trará benefício a um não-crente para a sua justificação e salvação; e, por outro lado, nenhuma má obra faz dele uma pessoa má e condenável, mas essa descrença, que faz da pessoa ou da árvore más, faz das suas obras perversas e condenáveis. Daí que, quando um homem se torna bom ou mau, isto não advém das suas obras, mas sim da sua fé ou descrença, como o homem sábio diz, “O pecado começa ao nos afastarmos de Deus”; isto é, ao não crermos. Paulo diz, “É necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe” (Heb. 11:6); e Cristo diz o mesmo: “Ou dizeis que a árvore é boa e o seu fruto, bom, ou dizeis que a árvore é má e o seu fruto, mau” (Mat. 12:33) – que é como dizer, “Aquele que deseja ter bom fruto irá começar com a árvore, e plantará uma árvore boa; até aquele que deseja fazer boas obras tem de começar não por trabalhar, mas por crer, pois isso é que faz da pessoa boa. Nada torna a pessoa boa senão a fé, nada a torna má senão a descrença.” É certamente verdade que, aos olhos dos homens, um homem torna-se bom ou mau pelas suas obras; mas aqui o “tornar-se” significa que quem é bom ou mau é re-
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velado e reconhecido, como Cristo diz, ”Pelos seus frutos os conhecereis” (Mat. 7:20). Mas isto limita-se às aparências e ao exterior; e desta forma muitos se enganam a si mesmos quando presumem escrever e ensinar que somos justificados pelas boas obras, e no entanto não fazemos nenhuma menção à fé sequer, indo pelos nossos caminhos, enganando-nos cada vez mais, indo de mal a pior, líderes cegos de outros cegos, cansando-nos com muitas obras, e no entanto nunca alcançando a verdadeira justiça, da qual Paulo diz, “tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela, que aprendem sempre e nunca podem chegar ao conhecimento da verdade” (2 Tim. 3:5,7). Portanto aquele que não deseja se desviar com esses cegos tem de ver mais longe do que os labores da lei ou a doutrina das obras; mais, ele tem de afastar o seu olhar das obras e focar na pessoa e em que maneira ela pode ser justificada. Agora, ela é justificada e salva, não pelas obras ou leis, mas pela palavra de Deus – isto é, pela promessa da sua graça – para que a glória seja para a majestade Divinal, que salva os que creem, não por obras de retidão que nós fazemos, mas de acordo com a sua misericórdia, pela palavra da Sua graça. De tudo isto é fácil de perceber em que aspeto as boas obras são para ser deixadas de lado ou incorporadas, e por que regra são entendidos todos os ensinamentos relativos às obras. Pois se as obras são vistas como bases para a justificação e são feitas sob o falso pretexto de que podemos fingir sermos justificados por elas, elas impõem em nós um jugo de necessidade, e extinguem a liberdade juntamente com a fé, e por este somatório ao seu emprego elas já não são boas, mas tornam-se de facto merecedoras de condenação. Tais obras não são livres, mas blasfemam a graça de Deus, que apenas ela tem poder para justificar e salvar pela fé. As obras não podem alcançar isto, e ain-
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da assim, com presunção ímpia e através da nossa tolice, elas teimam em alcançar esse galardão, infringindo com violência o exercício e a glória da graça. Assim, nós não rejeitamos as boas obras; aliás, nós as abraçamos e as ensinamos ao mais alto nível. Não é por nós que as condenamos, mas por este somatório ímpio e esta noção perversa de buscar justificação através delas. São estas coisas que fazem com que as obras pareçam boas por fora, mas que não o sejam na realidade, pois por elas são os homens enganados e por elas os homens enganam outros, como lobos esfomeados na pele de cordeiros. Agora este Leviatã, esta noção perversa sobre as obras, é invencível perante a falta de fé sincera. Pois os santificados fazedores de obras aguentam até que a fé, que destrói essa noção, venha e reine nos seus corações. A natureza não pode expelir essa noção por si própria; aliás, ela não pode ver a noção como realmente é, considerando -a como a mais sagrada das vontades. E quando o hábito entra e fortalece esta depravação da natureza, como acontece por meio de ensinadores ímpios, o mal torna-se incurável, e leva muitos à irreparável ruína. Por isso, ainda que seja bom pregar e escrever sobre penitência, confissão e satisfação, tal ensino é sem dúvida enganador e demoníaco se parar aí e não abordar a fé. Pois Cristo, falando através do seu servo João, não disse só, “Arrependei-vos,” mas também, “porque é chegado o Reino dos céus” (Mat. 3:2). Pois não só uma palavra de Deus deve ser pregada, mas ambas; coisas velhas e novas devem ser trazidas do erário, a voz da lei bem como a palavra da graça. A voz da lei deve ser produzida para que os homens fiquem apavorados e sejam levados ao conhecimento dos seus pecados, e que daí se convertam à penitência e a um modo de vida melhor. Mas não podemos parar aqui; isso seria ferir sem
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tratar da ferida, atacar sem curar, matar sem dar vida, levar ao inferno sem trazer de volta, humilhar sem exaltar. Assim a palavra da graça e da promessa da remissão do pecado também tem de ser pregada de forma a ensinar e estabelecer a fé, uma vez que sem a palavra, a contrição, a penitência, e todos os outros deveres são instruídos e realizados em vão. É verdade que ainda restam alguns mensageiros de arrependimento e graça, mas eles não explicam a lei e as promessas de Deus com o fim de que os homens aprendam de onde o arrependimento e a graça vêm. Pois o arrependimento vem da lei de Deus, mas a fé ou a graça vêm das promessas de Deus, como foi dito, “a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rom, 10:17), daí que o homem, quando humilhado e levado a conhecer-se a si mesmo pelos terrores e as ameaças da lei, é consolado e levantado pela fé na promessa Divina. Assim “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmo 30:5). Isto é dito acerca das obras em geral e aquelas que o Cristão pratica relativas ao seu próprio corpo.
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VI Por último, vamos falar também das obras que ele efetua para o seu próximo. O homem não vive apenas para si mesmo neste corpo mortal de forma a trabalhar por sua conta, mas também para todos os homens na terra; de facto, ele vive para os outros e não para si mesmo. Pois é para este fim que ele leva o seu próprio corpo até à sujeição, para que possa servir outros mais livre e sinceramente, como Paulo diz, “nenhum de nós vive para si e nenhum morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos” (Rom. 14:7-8). Assim é impossível que ele se desleixe e não trabalhe para o bem do seu próximo, visto que ele precisa de falar, agir e conversar com os homens, tal como Cristo foi feito à imagem do homem e encontrado na forma de homem, e teve as Suas conversas com os homens. Ainda que o Cristão não necessite de nenhuma destas coisas para a justificação e salvação, ele deve em todas as suas obras ter isto em mente e focar-se apenas neste objetivo – que ele possa servir e ser útil aos outros em tudo o que faz, tendo mais nada perante os seus olhos
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do que as necessidades e o sucesso do seu próximo. Por isso o Apóstolo nos exorta a trabalhar-mos com as nossas próprias mãos, para que possamos dar a quem precisa. Ele pode ter dito para que não dependam de ninguém; mas ele nos diz para dar a quem lhe faz falta. O propósito do Cristão cuidar do seu corpo é que, pela sua capacidade e bem-estar, ele possa trabalhar e adquirir e preservar património para os que dele carecem; que o membro mais forte possa servir o mais fraco, e nós possamos ser filhos de Deus, a pensar e a agir uns para os outros, carregando os fardos uns dos outros e assim cumprindo a lei de Cristo. Eis aqui a verdadeira vida Cristã, a fé que realmente trabalha por amor quando um homem se aplica com alegria e amor às obras da mais livre servidão, na qual ele serve os outros voluntariamente e sem esperar algo em troca, estando ele próprio abundantemente satisfeito na plenitude e nas riquezas da sua fé. Assim, quando Paulo ensinou os filipenses como eles tinham enriquecido pela fé em Cristo na qual obtiveram todas as coisas, ele ensina mais profundamente com estas palavras: “se há algum conforto em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão no Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões, completai o meu gozo, para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa. Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros” (Fil. 2:1-4). Aqui vemos claramente que o Apóstolo deixa esta regra para a vida Cristã: que todas as nossas obras sejam dirigidas ao proveito dos outros, uma vez que cada Cristão tem tal abundância pela sua fé que todas as suas
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outras obras e a sua vida inteira continuam a servir e a beneficiar o seu próximo por boa vontade espontânea. Para este fim ele dá Cristo como um exemplo, dizendo, “De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendose semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte” (Fil. 2:5-8). Este relato salutar do Apóstolo tem nos sido escurecido por homens que, completamente equivocados acerca das expressões “igual a Deus”, “forma de servo”, “semelhante”, “forma de homem”, transferiram-nas para a natureza da Divindade e humanidade. O que Paulo quer dizer é o seguinte: Cristo, quando cheio da forma de Deus e abundando de todas as coisas boas, para que não precisasse de obras ou aflições para ser justo e salvo – pois Ele já tinha todas estas coisas desde o principio – não se envaideceu com estas coisas, nem se levantou acima de nós e exerceu a sua autoridade sobre nós, ainda que o pudesse fazer justamente; pelo contrário, ele labutou, trabalhou, sofreu e morreu como o resto dos homens e foi nada mais que um homem em semelhança e conduta, como se Ele carecesse de todas as coisas e não tivesse nada da forma de Deus; Ele fez tudo isto por nós, para que Ele nos pudesse servir, e para que todas as obras que Ele fizesse sob aquela forma de servo pudessem ser nossas também. É desta maneira que um Cristão, estando repleto em abundância pela sua fé como Cristo sua Cabeça, deve contentar-se com esta forma de Deus, obtida pela fé; no entanto, ele deve fortalecer esta fé até que ela seja perfeita, como tenho vindo a dizer. Pois esta fé é a sua vida, justificação e salvação, que preserva a sua pessoa e a torna agradável a Deus, concedendo-lhe tudo o que Cristo tem,
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como referi acima e como Paulo afirma: “a vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus” (Gal. 2:20). Ainda que esteja livre de todas as obras, ele deve desfazer-se desta liberdade, tomar a forma de servo, ser feito à semelhança dos homens, na forma dos homens, servir, ajudar e agir em prol do seu próximo de todas as maneiras, como ele vê que Deus através de Cristo tem agido e continua a agir através do Cristão. Tudo isto deve ser feito em liberdade, no que diz respeito a nada mais do que o bel-prazer de Deus, e ele deve raciocinar do seguinte modo: “O meu Deus, sem mérito da minha parte, mas sim da Sua misericórdia pura e livre, concedeu-me todas as riquezas da justificação e salvação em Cristo a mim, uma criatura indigna, condenável e desprezível, para que já não careça de nada excepto da fé para crer que assim o é. Pois se tal Pai me cobre com estas Suas riquezas inestimáveis, porque não deveria eu fazer tudo o quanto sei que Lhe é agradável e aceitável aos Seus olhos, de forma livre e alegre, com todo o meu coração e de zelo voluntário. Assim eu me entrego ao meu próximo como uma espécie de Cristo, tal como Cristo se entregou a mim; e não farei mais nada nesta vida senão aquilo que eu vejo ser necessário, proveitoso e saudável para o meu próximo, uma vez que pela fé eu excedo em todas as boas coisas em Cristo.” Da fé flui o amor e alegria no Senhor, e do amor um espírito livre, alegre e solícito, disposto a servir o próximo voluntariamente, sem ter em conta gratidão ou ingratidão, louvor ou culpa, ganho ou prejuízo. O seu fim não é pôr os homens sobre obrigações, nem distinguir amigos de inimigos, ou ver gratidão ou ingratidão, mas ele emprega-se a si mesmo e aos seus bens o mais livre e solicitamente, mesmo se os perde por ingratidão ou os ganha por boa vontade. Pois assim fez o Pai, distribuindo
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todas as coisas a todos os homens abundante e livremente, fazendo o Seu sol nascer sobre os justos e os ímpios. Assim também o filho nada faz nem suporta excepto a alegria livre com que se deleita através de Cristo em Deus, o Dador de tais grandes dádivas. Assim você pode ver que se reconhecermos estas grandes e preciosas dádivas que nos foram atribuídas, como Pedro diz, o amor é difundido rapidamente nos nossos corações através de Cristo, e por amor somos livres, alegres, todo-poderosos, trabalhadores ativos, vitoriosos sobre todas as tribulações, servos para com o nosso próximo e contudo senhores de todas as coisas. Mas, para aqueles que não reconhecem as boas coisas que lhes são atribuídas através de Cristo, o próprio Cristo nasceu em vão; tais pessoas andam pelas obras, e nunca irão experimentar o sabor e a sensação destas grandes coisas. Assim como o nosso próximo carece e precisa da nossa abundância, também nós carecemos aos olhos de Deus e precisamos da Sua misericórdia. E tal como o nosso Pai celestial nos ajuda livremente em Cristo, também nós devemos ajudar livremente o nosso próximo com o nosso corpo e as nossas obras, e cada um deve ser uma espécie de Cristo para outros, para que sejamos “Cristos” mutuamente, e que o mesmo Cristo esteja em todos nós; isto é, que todos sejamos verdadeiros Cristãos. Então quem pode compreender as riquezas e glória da vida Cristã? Ela pode fazer todas as coisas, tem todas as coisas, e não requer nada; é senhora sobre o pecado, a morte e a condenação, e ao mesmo tempo é a serva mais obediente e útil de todas. Mas enfim! É hoje desconhecida por todo o mundo; nem é pregada nem procurada, de forma que somos bastante ignorantes do nosso próprio nome, do porquê de estarmos aqui e de sermos chamados Cristãos. De certeza que nos chamam isso por
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causa de Cristo, que não está ausente mas habita entre nós – dado que nós cremos n’Ele e que somos Cristo uns para os outros de forma mútua e recíproca, tratando o próximo como Cristo nos trata. Mas agora, na doutrina do homem, somos ensinados a buscar apenas os méritos, as recompensas e as coisas que já são nossas, e fazemos de Cristo um capataz ainda mais severo que Moisés. A Bendita Virgem dá-nos um exemplo da mesma fé além de todos os outros, no sentido em que ela foi purificada de acordo com a lei de Moisés tal como todas as outras mulheres, ainda que ela não estivesse presa a tal lei nem precisasse de tal purificação. Mesmo assim ela submeteu-se à lei voluntariamente e de amor livre, fazendose como o resto das mulheres, para que ela não as ofenda ou menospreze. Ela não foi justificada por fazer isto; no entanto, estando já justificada, ele o fez de forma livre e desprendida. Assim também as nossas obras devem ser feitas, e não para que sejamos justificados por elas; pois sendo justificados pela fé primeiro, nós devemos realizar todas as nossas obras de um modo livre e alegre para o bem dos outros. São Paulo circuncidou o seu discípulo Timóteo, não porque ele precisava da circuncisão para a sua justificação, mas para que ele não ofendesse ou menosprezasse aqueles Judeus fracos na fé, que ainda não tinham sido capazes de compreender a liberdade da fé. Por outro lado, quando eles menosprezaram a liberdade e urgiram que a circuncisão era necessária para a justificação, ele lhes resistiu, impedindo Tito de ser circuncidado. Pois se ele não ofendeu ou menosprezou a fraqueza na fé deles, mas cedeu por algum tempo à vontade deles, também não deixaria a liberdade da fé ser ofendida e menosprezada por teimosos que se justificam a si mesmos, mas anda num meio-termo, poupando os fracos por algum tempo, porém
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sempre resistindo aos teimosos, de modo a converter todos para a fé. Neste princípio é que nós devemos agir, recebendo aqueles que são fracos na fé, mas resistindo de forma audaz a estes teimosos que professam as obras, de quem nós falaremos de seguida com mais atenção. Quando pediram o tributo aos discípulos, também Cristo perguntou a Pedro se as crianças de um rei eram livres de impostos. Pedro concordou; porém Jesus ordenou que ele fosse até ao mar, dizendo, “Mas, para que os não escandalizemos, vai ao mar, lança o anzol, tira o primeiro peixe que subir e, abrindo-lhe a boca, encontrarás um estáter; toma-o e dá-o por mim e por ti” (Mat. 17:27). Este exemplo vai de encontro ao nosso propósito; pois aqui Cristo chama a si mesmo e aos Seus discípulos homens livres e filhos de um Rei, carecendo de nada; e no entanto Ele submete-se voluntariamente e paga o imposto. Então, tal como esta obra foi necessária e útil a Cristo para salvação e justificação, também o são todas as Suas outras obras e as dos discípulos. Na verdade elas são livres e subsequentes à justificação, e são levadas a cabo apenas para servir os outros e lhes dar o exemplo. Assim são as obras que Paulo inculcou, que os Cristãos devem estar sujeitos aos principados e potestades, preparados para toda a boa obra (Tito 3:1), não para que sejam justificados por estas coisas – pois eles já foram justificados pela fé – mas para que em espírito de liberdade eles possam ser servos a outros e estar sujeitos às potestades, obedecendo às suas vontades com amor desprendido. Também assim devem ser as obras de todas as universidades, dos mosteiros e dos sacerdotes; cada um executando as obras da sua profissão e estado de vida, não para que sejam justificados por elas, mas para sujeitar os seus corpos como exemplos para outros, que também de-
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vem ser mantidos sob os seus próprios corpos, e também para se adaptarem à vontade dos outros, de amor liberto. Todavia temos sempre de nos defender cuidadosamente contra qualquer tipo de certeza ou presunção vãs de sermos justificados, de ganharmos mérito ou de sermos salvos por estas obras, isto pertencendo somente à fé, como vos tenho dito. Qualquer homem que possui este conhecimento pode facilmente evitar o perigo de entre os inúmeros preceitos e ordens do Papa, dos bispos, dos mosteiros, das igrejas, dos príncipes e dos magistrados, que alguns pastores tresloucados nos urgem como sendo necessários para a justificação e salvação, chamando-os preceitos da Igreja quando não o são de todo. Pois o Cristão livre falará como tal: “eu vou jejuar, eu vou orar, eu vou fazer isto ou aquilo que me é decretado pelo homem, não por precisar destas coisas para justificação ou salvação, mas para que eu satisfaça a vontade do Papa, do bispo, de tal comunidade ou magistrado, ou do meu próximo como um exemplo para ele; por esta causa eu farei e sofrerei todas as coisas, tal como Cristo fez e sofreu muito mais por mim, ainda que Ele não precisasse de o fazer de todo por mim, e para o meu bem Ele tomou a lei para si mesmo quando não estava debaixo dela. E ainda que tiranos me tratem mal ou com violência ao requerer obediência a estas coisas, decerto não serei afligido se as fizer, desde que elas não vão contra Deus.” A partir disto, todo o homem poderá alcançar um juízo firme e uma discriminação fiel entre todas as obras e leis e distinguir os pastores cegos e tolos dos bons e verdadeiros. Pois qualquer obra que não seja dirigida somente a subjugar o corpo ou a servir o próximo – tendo em conta que ele não requer nada contrário à vontade de Deus – não é boa ou Cristã. Assim eu temo seriamente que
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hoje em dia poucos ou nenhuns mosteiros, universidades, altares ou funções eclesiásticas sejam Cristãos; o mesmo pode ser dito acerca dos jejuns e das orações especiais a certos santos. Temo que em todas estas coisas não se busca nada excepto o que já é nosso; nós supomos que os pecados são expelidos e a salvação é alcançada por estas coisas, abandonando completamente a liberdade Cristã. Isto provém da ignorância na fé e liberdade Cristãs. Esta ignorância e este abatimento da liberdade são promovidas diligentemente pelo ensino de muitos pastores cegos, que agitam e urgem as pessoas a terem zelo por estas coisas, dando-lhes louvor e orgulho com as suas indulgências, mas nunca ensinando a fé. Agora eu dou-lhe um conselho: se você tem algum desejo de orar, de jejuar ou de construir alicerces na igreja, como é costume dizer, tenha cuidado para não o fazer com o intuito de ganhar algum proveito, seja ele temporal ou eterno. Assim você trairá a sua fé, que apenas ela lhe dedica todas as coisas, e o aperfeiçoar da fé é a única coisa com que tem de se preocupar, trabalhando ou sofrendo para tal. O que você der, dê livremente e sem retorno, para que outros possam prosperar e abundar em você e na sua bondade. Assim você será realmente um homem bom e um Cristão, pois que são para si os seus bens e as suas obras, que são feitas acima de tudo para a sujeição do corpo, uma vez que você tem tido abundância para si mesmo pela fé, na qual Deus vos deu todas as coisas? Nós ditamos esta regra: as coisas boas que temos de Deus devem fluir de uns para outros e ser comuns a todos, para que cada um de nós se possa ver no seu próximo e interagir com ele como se estivesse na sua pele. Estas coisas fluíram e fluem de Cristo para nós; ele põe-se na nossa pele e age por nós como se Ele fosse como nós. De nós estas coisas fluem para aqueles que precisam delas;
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de modo que a minha fé e justiça sejam entregues perante Deus como cobertura e intercessão pelos pecados do meu próximo, que eu tomo para mim mesmo, daí que trabalho e sustenho a servidão como se fossem meus; pois Cristo fez o mesmo por nós. Este é o verdadeiro amor e a verdade genuína da vida Cristã. Porém só é verdadeiro e genuíno onde existe fé verdadeira e genuína. Por isso o apóstolo atribui esta qualidade ao amor: que ele não procure quem é seu. Portanto nós concluímos que o homem Cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e no seu próximo, ou então não é Cristão: em Cristo pela fé, no seu próximo por amor. Pela fé ele é elevado para lá de si mesmo até Deus, e por amor ele volta a si mesmo para o seu próximo, sempre permanecendo em Deus e no Seu amor, como Cristo diz, “Na verdade, na verdade vos digo que, daqui em diante, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem” (João 1:51). Assim é a liberdade, que como pode ver é uma liberdade sincera e espiritual, tornando os nossos corações livres de todos os pecados, leis e mandamentos, como Paulo diz, “a lei não é feita para o justo” (1 Tim. 1:9), e é uma liberdade que ultrapassa todas as liberdades externas, tanto como o céu está acima da terra. Que Cristo nos faça entender e preservar esta liberdade. Ámen.
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VII Finalmente, em prol de quem não se pode dizer nada tão explícito que eles não consigam distorcer, nós temos de lhes dar uma palavra caso eles sejam capazes de compreender isto. Existem muitas pessoas que, ao ouvir desta liberdade da fé, imediatamente fazem dela uma oportunidade de legitimidade. Eles pensam que agora tudo lhes é lícito e não demonstram serem homens livres e Cristãos de outra forma senão em expressarem desdém e repreensão pelas cerimónias, tradições e leis humanas; como se eles fossem Cristãos simplesmente por se recusarem a jejuar em certos dias, ou por comerem carne enquanto outros jejuam, ou por omitirem as orações comuns; troçando os preceitos dos homens, mas deixando completamente de lado tudo o resto que pertence à religião Cristã. Por outro lado, eles resistem o mais obstinadamente àqueles que buscam a salvação apenas pela reverência e observância das cerimónias, como se eles só fossem salvos por jejuarem em certos dias, ou por se absterem de carne, ou por prestarem as orações formais; falando abertamente dos preceitos da Igreja e dos Pais sem se ralarem com as
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coisas que pertencem à nossa fé genuína. Ambas as partes são claramente culpadas, no sentido em que, enquanto ambas negligenciam temas que têm peso e que são essenciais para a salvação, elas brigam com grande alarido sobre o que não tem substância nem é essencial. Quão melhor nos ensina o Apóstolo Paulo a andar no meio-termo, ao condenar cada extremo e dizendo, “O que come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come” (Rom. 14:3)! Aqui você vê como o Apóstolo acusa aqueles que, não por sentimento religioso mas por mero desdém, negligenciam e se distanciam das observâncias cerimoniais, ensinando-os a não desprezarem, uma vez que este “conhecimento traz orgulho” (1 Cor. 8:1 NVI-PT). Também educa os defensores obstinados destas coisas a não julgar os seus opositores, pois nenhum lado trata o outro com o amor que edifica. Nós temos que escutar as Escrituras nesta matéria, que nos ensina não a escolher partidos, mas a seguir aqueles princípios corretos do Senhor que alegram o coração. Pois tal como um homem não é justo só porque ele serve e é devoto às obras e aos ritos cerimoniais, também não o é por rejeitar e desprezar estas coisas. Não é das obras que somos libertos pela fé em Cristo, mas sim da fé nas obras; ou seja, de presumir loucamente que se busca a justificação pelas obras. A fé redime as nossas consciências, as endireita e preserva, visto que por ela nós reconhecemos o facto de que a justificação não está dependente das nossas obras, embora as boas obras não podem nem devem estar ausentes, tal como nós próprios não podemos existir sem comida ou bebida ou todas as funções deste nosso corpo mortal. Mesmo assim, não é nas obras que a nossa justificação está assente, mas na fé; e no entanto elas não devem ser desprezadas ou omitidas por isso. Assim, somos impelidos neste mundo
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pelas necessidades desta vida corpórea, mas não somos justificados dessa forma. “O meu reino não é daqui, nem é deste mundo,” disse Cristo; mas Ele não disse “O meu reino não está aqui, nem está neste mundo”. Também Paulo diz: “Porque, andando na carne, não militamos segundo a carne” (2 Cor. 10:3), e “a vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus” (Gal. 2:20). Portanto as nossas ações, a nossa vida e o nosso ser, em termos de obras e cerimónias, são feitos a partir das necessidades desta vida e do motivo que governa os nossos corpos; mas nós não somos justificados por estas coisas, mas pela fé do Filho de Deus. O Cristão tem assim de andar no meio-termo, e distinguir estas duas classes de homens perante os seus olhos. Ele pode encontrar ceremonialistas obstinados e teimosos que, como cobras surdas, se recusam a ouvir a verdade da liberdade, e clamam, e impõem, e nos urgem as suas cerimónias, como se eles se pudessem justificar a si mesmos sem a fé. Assim eram os Judeus de antigamente, que não compreendiam para que dessem a entender que eram justos. Nós temos de resistir estes homens, fazer justamente o contrário do que eles fazem, e sermos ousados em criticá-los, a fim de que esta noção ímpia deles não venha a enganar muitos outros juntamente com eles. Perante os olhos destes homens é pertinente comer carne, quebrar jejuns e fazer em nome da liberdade da fé todas as coisas que eles veem como sendo as maiores iniquidades. Temos de dizer deles, “Deixai-os; são condutores cegos” (Mat. 15:14). Desta forma Paulo não deixou Tito ser circundado, ainda que estes homens o implorassem; e Cristo defendeu os Apóstolos, que tinham apanhado maçarocas de milho durante o Sábado; e muitas outras ocasiões semelhantes. Ou então encontraremos pessoas simples e ignorantes, fracas na fé, como diria o Apóstolo, que ainda não
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são capazes de assimilar essa liberdade da fé, mesmo estando dispostos a fazê-lo. Estes nós temos de os poupar para que não se sintam insultados. Temos de aguentar a enfermidade deles até que estejam melhor instruídos. Pois uma vez que estes homens não agem por malícia pertinaz, mas apenas por fraqueza na fé, nós temos de manter os jejuns ou fazer outras coisas que essas pessoas consideram essenciais, para evitar ofendê-los. Isto nos é requerido por amor, que não magoa ninguém mas que serve todos os homens. Não é pela culpa destas pessoas que elas são fracas, mas dos seus pastores, que por ardis e armas das suas próprias tradições as levam à escravidão e ferem as suas almas quando deviam ser livres e curadas pelo ensino da fé e da liberdade. Por isso o Apóstolo diz, “se o manjar escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que meu irmão não se escandalize (1 Cor. 8:13); e também, “Eu sei e estou certo, no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesma imunda, a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda. Mal vai para o homem que come com escândalo” (Rom. 14:14, 20). Embora nós devamos resistir ousadamente a esses mestres da tradição, e embora as leis dos pontífices pelas quais eles atacam as pessoas de Deus mereçam uma repreensão severa, nós temos de ter em consideração a multidão tímida, que estão presos pelas leis desses tiranos impiedosos até que sejam libertados. Lute vigorosamente contra os lobos, mas lute em prol das ovelhas, não contra as ovelhas. E isto você pode fazer ao investir contra as leis e os mestres da lei, e ao mesmo tempo observando as leis com os fracos para que não se ofendam, até que eles reconheçam por eles mesmos a tirania e compreendam a liberdade que têm. Se você deseja usar a sua liberdade, faça-o em segredo, como Paulo diz, “Tens tu fé? Tem-na em ti mesmo diante de Deus” (Rom. 14:22). Mas tenha cuida-
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do para não a usar na presença dos fracos. Por outro lado, na presença de tiranos e opositores obstinados, use a sua liberdade apesar da aversão deles a tal, e com a maior firmeza, para que também eles percebam que são tiranos e que as suas leis são inúteis para a justificação e mais, que eles não tinham o direito de estabelecer tais leis. Uma vez que não podemos viver num mundo sem cerimónias e obras, que a juventude fugaz e inexperiente precisa de ser contida e protegida por esses vínculos, e que cada um tem de controlar o seu corpo fazendo estas coisas, o ministro de Cristo tem de ser prudente e fiel ao governar e ensinar o povo de Cristo em todas estas coisas, de modo a que nenhuma raiz de amargura germine entre eles e que eles sejam corrompidos, como Paulo avisou os Hebreus; isto é, que eles não percam a fé e comecem a ser corrompidos por uma crença em obras como meio de justificação. Isto é algo que acontece facilmente e corrompe muitos a não ser que a fé seja constantemente incutida com as obras. É impossível evitar este mal quando a fé é mantida em silêncio e só os regulamentos dos homens são apregoados, como tem sido feito até agora pelas tradições pestilentas, ímpias e destruidoras de almas por parte dos nossos pontífices e pelas opiniões dos nossos teólogos. Um número infinito de almas tem sido arrastado para o inferno por estas armadilhas, para que se reconheça a obra do anticristo. Em suma, como a pobreza é posta em risco entre riquezas, a honestidade entre negócios, a humildade entre honras, a abstinência entre festejos, a pureza entre prazeres, assim também é a justificação pela fé posta em risco entre cerimónias. Salomão diz, “Tomará alguém fogo no seu seio, sem que as suas vestes se queimem?” (Prov. 6:27). E enquanto temos de viver entre riquezas, negócios, honras, prazeres e festejos, assim também temos de vi-
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ver entre cerimónias, isto é, entre perigos. Os meninos em bebé precisam de ser nutridos pelos peitos e pelo carinho das raparigas para que não morram, e no entanto a salvação deles está em risco quando eles crescem e vivem entre raparigas; daí que os jovens, fervorosos e inexperientes, precisam de ser contidos pelas barreiras das cerimónias como se fossem de ferro, de modo a que as suas mentes frágeis não se atirem de cabeça para o vício; e no entanto seria a morte destes homens perseverarem na ideia de que eles podem ser justificados por estas coisas. Em vez disso eles precisam de ser consciencializados que têm sido encarcerados, não com o propósito de serem justificados ou de ganharem algum mérito desta forma, mas para que evitassem cometer alguma falha, e para que sejam mais facilmente instruídos naquela justiça que advém da fé, uma coisa que o caráter impetuoso da juventude não poderia suportar se não fosse restringido. Na vida Cristã as cerimónias não devem ser vistas de outro modo senão como os empreiteiros e construtores veem as preparações para a construção e o trabalho que não têm por objetivo ser permanentes ou algo em si mesmas, mas que sem elas não haveria construção nem trabalho. Quando a estrutura é concluída, elas são retiradas. Aqui nós não desprezamos estas preparações, mas damos-lhe o maior valor; nós desprezamos uma crença nelas, porque ninguém pensa que elas constituem uma estrutura permanente e real. Se alguém estivesse tão manifestamente fora de si de modo a não ter outro objetivo na vida do que o de estabelecer estas preparações com todo o custo, a diligência e a perseverança possíveis, e de ter prazer e de se orgulhar nestas preparações e adereços inúteis sem nunca ter pensado sequer na própria estrutura, não deveríamos ter pena da sua loucura e imaginar que, com todo este esforço para nada, algum grande edifício podia
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ter sido ali erguido? Assim também não devemos desprezar as obras e as suas cerimónias – não, nós damos-lhes o maior valor; mas nós desprezamos a crença nas obras, que ninguém deve considerar como constituindo verdadeira justiça, como fazem os hipócritas que usam e desperdiçam as suas vidas inteiras em busca das obras, e no entanto nunca alcançam a razão pela qual as obras são efetuadas. Como o Apóstolo diz, eles “aprendem sempre e nunca podem chegar ao conhecimento da verdade” (2 Tim. 3:7). Eles parecem querer construir, eles fazem preparações, mas eles nunca chegam a construir; e assim eles continuam a mostrar devoção a Deus, mas nunca chegam ao seu poder. Entretanto eles se agradam com esta busca zelosa, e atrevem-se até a julgar todos os outros, que eles não veem aproados com uma amostra resplandecente de obras; enquanto que, se eles fossem imbuídos com a fé, talvez tivessem feito grandes coisas para a salvação deles próprios e a dos outros, com o mesmo esforço que agora desperdiçam no abuso das dádivas de Deus. Mas uma vez que a natureza humana e a razão natural, como lhe chamam, são naturalmente supersticiosas e rápidas a crerem que a justificação é alcançada por quaisquer leis ou obras que lhes são propostas, e uma vez que a natureza é também exercida e confirmada na mesma perspetiva pela prática de todos os mestres da lei terrenos, ela nunca poderá pelo seu poder se libertar desta sujeição às obras e chegar ao reconhecimento da liberdade na fé. Temos então de pedir que Deus nos dirija e nos faça instruídos de Deus, isto é, prontos a aprender de Deus; e Ele irá, como Ele tem prometido, escrever a Sua lei nos nossos corações; senão não existe esperança para nós. Pois a não ser que Ele próprio nos ensine interiormente esta sabedoria escondida num mistério, a natureza
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não pode senão condená-la e julgá-la como heresia. Ela é ofendida com esta sabedoria, que para ela é tolice, como outrora vimos acontecer no caso dos profetas e Apóstolos, e como pontífices cegos e ímpios e os seus aduladores agora fazem comigo e com outros que são como eu, em quem, juntamente connosco, Deus venha a ter misericórdia e levante a luz do Seu rosto sobre eles, para que nós conheçamos o Seu caminho nesta terra e o Seu vigor que salva a todas as nações, que é bendito para todo o sempre. Ámen. No ano do Senhor MDXX.
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