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DO CAFEZINHO AO PRATO INTERNACIONAL
by Agexcom
PONTO DE ENCONTRO MAIS FAMOSO DE NOVO HAMBURGO
POR DÉCADAS, O AVENIDA APRIMOROU A COZINHA E MANTEVE A HISTÓRIA PRESERVADA NAS PAREDES
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Nascido em 7 de fevereiro de 1969, em Porto Alegre, Luiz Felipe de Magalhães Soares tem nome de diplomata, como ele mesmo reconhece. O ousado gaúcho queria estudar Gastronomia e percebeu uma boa opção em Natal, Rio Grande do Norte, em um período de forte crescimento do setor de hotelaria no Nordeste, no fim da década de 1990.
“Eu tinha um buggy e surfava todo dia”, relembra Felipe Soares, sobre sua vida em Natal. Depois da formatura e de algumas experiências no comércio local, o gaúcho resolveu alugar um bar na paradisíaca Praia da Pipa. Trabalhando ali, Felipe conheceu um português que o convidou para surfar no seu país de origem. O convite foi aceito e a vida do gastrônomo começou a mudar bastante.
Já em solo português, jantando na casa do seu parceiro de surfe, Felipe ficou sabendo que a embaixatriz (esposa do embaixador) da Itália em Portugal precisava de um cozinheiro. Após o contato positivo, Felipe virou cozinheiro da embaixada da Itália em Lisboa. “Eu morava na própria embaixada e precisava ficar 24 horas à disposição”, detalha. Os momentos mais marcantes foram cozinhar para o primeiro-ministro de Portugal, António Guterres, atual secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), e para a delegação italiana de futebol que jogou a Eurocopa de 2004 em Portugal e viria a ser campeã do mundo dois anos depois.
Após alguns anos, outro embaixador foi designado para a missão diplomática italiana em Lisboa. Emilio Barbarani assumiu o cargo e, para surpresa do chef de cozinha, não tinha esposa. Então, sem embaixatriz, coube a Felipe assumir o cargo de administrador da residência. “Meu trabalho era de empregado doméstico de luxo”, conta, aos risos. Ainda durante o mandato de Barbarani, a filha de Felipe nasceu em solo português. “Eu me perguntava onde iria batizá-la e o embaixador pediu para ser na pia da rainha, onde se batizavam os reis de Portugal.”
Dali, Felipe Soares se mudou para Roma e teve uma passagem como cozinheiro do presidente da parte de gás natural da empresa multinacional ENI. Mas, logo em seguida, voltou a trabalhar em Portugal, dessa vez para ser cozinheiro da família Espírito Santo, dona do banco Espírito Santo. O proprietário da residência tinha 27 carros de luxo, boa parte dos quais Felipe dirigia. “Era uma curtição.”
O homem de camiseta preta, estatura média, cabelos pretos penteados para o lado, relógio branco no pulso esquerdo, calça jeans e óculos preto com cordinha esticada no peito conta que certa vez foi enviado para trabalhar em uma casa de passeio da família Espírito Santo, onde se hospedavam alguns amigos. Chegando lá, ele descobriu que uma das amigas era a princesa n Em 1968 (E), os hamburguenses se reuniam no Avenida para tomar café e conversar. Atualmente (D), recebe famílias na hora do almoço
Charlotte de Mônaco. “Todos os meus patrões aparecem no Google”, comenta, rindo, enquanto pega seu celular com capa vermelha para mostrar.
Depois da experiência na casa dos banqueiros, Felipe virou cozinheiro do músico espanhol José María Cano. “Fui morar na casa desse doido. Fiquei um ano lá. Festa todo dia. Era uma loucura”, define.
Nesse momento, ele teve uma nova proposta de emprego na Espanha: “Saio dos milionários e vou para os bilionários”. Em 2009, seu novo trabalho como cozinheiro foi na casa do segundo homem mais rico da Espanha na época, um dos membros da família Del Pino. “Põe no Google”, mostra novamente em seu celular. “Durante um ano e três meses que fiquei lá, nunca vi ele botar uma mão na maçaneta para abrir a porta”, lembra, para enfatizar o poder do sujeito. Porém, não foi fácil. “Del Pino me sugava, estava 24 horas à disposição do cara.”
Para finalizar sua passagem pela Europa, Felipe ainda trabalhou em Londres, mas, em dezembro de 2011, a distância da filha, que na época estava no Brasil, o fez retornar. De início, foi dono de padaria e trabalhou em um hotel, porém foi em 2015 que sua vida mudou.
Em um curto período desempregado, Felipe estava em casa e viu um anúncio no jornal Zero Hora. Um restaurante no centro de Novo Hamburgo estava à venda. Quando ligou, descobriu que se tratava do Café Avenida, o histórico café hamburguense.
Essa história começa muito antes. Em 15 de setembro de 1910, na cidade gaúcha de Montenegro, nascia Omar Antônio Guerreiro. Aos 20 anos, o jovem de pouca estatura e cabelos pretos curtos logo decidiu deixar a profissão de sapateiro para viver uma grande aventura: se voluntariou para lutar na Revolução de 1930. “A mãe dele quase teve um ataque do coração quando soube”, afirma a filha de Omar, Odete Guerreiro. Mas essa era a melhor chance de sair do ambiente de proteção da família, como o próprio disse em entrevista ao Jornal
VS na década de 1990: “Queria sair pelo mundo. Me sentia livre. Nem era getulista”.
Na época, a eleição nacional ficou reconhecida pelas diversas ações fraudulentas para que as oligarquias seguissem no poder. Mas, com Getúlio Vargas como líder da oposição, foi feita a Revolução de 1930, com o objetivo de depor o presidente Washington Luís. Em uma das primeiras batalhas, em Porto Alegre, o jovem soldado levou um tiro em sua coxa direita, mas conseguiu sair vivo do combate.
“Os antigetulistas nos atacaram de surpresa, fui ferido no meio da correria”, relatou Omar ao VS. Depois de outros combates entre os estados do Paraná e São Paulo, o retorno vitorioso aconteceu no fim de 1930. n O prédio de dois andares do Café Avenida era um dos mais altos do centro de Novo Hamburgo na década de 1940
De volta a Montenegro, Omar se casou com uma moça chamada Laydes Wolff. Como as empresas de sapato estavam em alta na cidade de Novo Hamburgo, em 1937, os dois, junto de sua primeira filha, se mudaram em busca de melhores oportunidades de trabalho. De início, Omar dividia o trabalho em uma empresa de sapatos durante o dia com a função de garçom à noite. Em seguida, ele assumiu o serviço em um bar de Novo Hamburgo, onde conviveu de perto com imigrantes alemães no período de início da Segunda Guerra Mundial. Ali, Omar já percebeu que seu estabelecimento chamava a atenção pelos debates e reflexões políticas.
Desde 1931, no centro da recém-emancipada cidade de Novo Hamburgo, na esquina entre a Avenida Pedro Adams Filho e a Rua General Neto, existia o Café Avenida, gerido por Eduardo Kraemer. Mas, “em 1941, a existência do Café foi adquirida pelos irmãos Omar e Oscar Guerreiro”, como definiu reportagem do Jornal NH de anos depois.
Oscar seguiu por algum período trabalhando ali, mas deixou o estabelecimento para que ficasse apenas aos cuidados do irmão. O local preservou durante todos os anos suas mesas de mármore, cadeiras de madeira e o eterno ventilador alemão que girava desde 1931 sem estragar. Omar abria o café às seis horas da manhã e só fechava à meia-noite. Nos primórdios vendia café e almoço, porém, a moda da época e a concorrência fizeram o estabelecimento se focar apenas nos cafés no decorrer dos anos.
O tempo foi passando e o público aumentando, entre mil e duas mil pessoas passavam por ali diariamente. Até uma lotérica foi aberta, o que sustentou a renda do café por várias décadas. “Aqui sempre se discutiu problemas de crimes, política e futebol. Tudo o que se possa imaginar é discutido nas mesas aqui no café”, contou Omar em umas das diversas reportagens de que participou e estão guardadas em um álbum da família.
O local ficou conhecido pelos debates políticos. Dizia-se que as eleições locais eram decididas ali. A reportagem da Zero Hora de 1986 esteve no Avenida e entrevistou um cliente que afirmou passar três vezes por dia no café. “É o melhor local da cidade para conversar e tomar café. Em suas mesas nós conseguimos resolver todos os problemas do Brasil”, garantiu César Foscarini, com 33 anos na época. Na mesma matéria, Omar exaltou que só não abriu o café em três momentos: “Nos dias em que morreram Getúlio Vargas, minha mãe e meu irmão”.
A terceira filha entre os oito que Omar teve, Odete Guerreiro, com 81 anos atualmente, recorda que a rotina de trabalho do pai era intensa. “Meu pai saía de manhã e voltava sempre tarde de noite, às vezes passava em casa rapidamente durante o dia para nos ver. Ele nunca foi assaltado, os guardas eram amigos dele, os moradores de rua eram amigos dele, ele ajudava todo mundo.”
Omar nunca deixou os filhos trabalharem no café. Mesmo assim, eles frequentavam o local. “De manhã eu ia lá tomar café antes de ir n Os clientes do novo Café Avenida podem almoçar nas mesas internas que ficam próximas ao buffet ou ao ar livre nas mesas externas n Foto do jovem Omar Guerreiro (E) ao lado de um retrato dele mais velho (D), nas mãos de sua filha Odete para escola, depois pegava o ônibus na parada que ficava do outro lado da rua”, lembra Odete. Além disso, era raro encontrar mulheres por lá. “Era um lugar mais para homem, no fim que as mulheres começaram a frequentar”, completa.
A senhora de cabelos brancos curtos, blusa de lã rosa e calça de moletom está contente relembrando os momentos passados. “Nos finais de semana, as mulheres ficavam caminhando de um lado para o outro na calçada perto do café e os homens se encostavam na parede do lado de fora do estabelecimento.” Ao ser questionada se aquele era o ponto de paquera da cidade, Odete dá risada: “Era a diversão do final de semana, não tinha outra coisa para fazer na cidade”.
Nesse momento, em busca de mais memórias, Odete telefona para sua irmã, Saragani Guerreiro. As duas juntas passam as informações dos últimos momentos do tradicional café.
Mesmo com o passar das décadas, Omar seguiu com o mesmo imóvel alugado no centro. O prédio foi passando de geração em geração, sempre aumentando o valor do aluguel. Até que em dezembro de 1994, mais de 50 anos depois, Omar precisou sair dali, o custo ficou insustentável. “Era um pouco antes do Natal, foi bem triste”, lembra Saragani. Ele ainda tentou se mudar para outro estabelecimento próximo, mas depois de alguns meses precisou sair. O lucro já não era mais o mesmo.
O prédio histórico do Café Avenida ainda pode ser visto no mesmo lugar no centro de Novo Hamburgo. A única diferença é que agora ele fica entre a Avenida Pedro Adams Filho e o Calçadão Osvaldo Cruz, já que a Rua General Neto foi transformada em calçada. No local, atualmente, funciona uma loja de operadora de celular.
O histórico Omar Guerreiro, fã de xadrez, vinho e Martinho da Vila, faleceu no fim de 2002, aos 92 anos. No mesmo período, o nome Café Avenida voltou ao mercado após pedido da empresária Joseane Allgayer, que não tem parentesco com Omar, mas foi liberada pela família a resgatar o nome do local. No novo ambiente, localizado na Rua Lima e Silva, ainda no Centro, quatros mesas e 16 cadeiras do antigo estabelecimento e diversas fotos pelas paredes recordavam os clientes do eterno Café Avenida. Mas, além do tradicional café, também foram servidos buffet a quilo e lanches.
Em 2004, o novo estabelecimento, localizado na Rua Lima e Silva, foi adquirido pelas irmãs Heloisa Bender Klippel e Elisabeth Bender. “Trabalhávamos das 7h às 18h diariamente com buffet de café da manhã, almoço e lanches, além do tradicional cafezinho”, lembra Heloisa. Ela diz que o pessoal antigo seguiu frequentando o Avenida, era quase uma turma fixa. Porém, em 2015, as irmãs decidiram vender o negócio. Foi quando colocaram o anúncio no jornal. “A realidade é que a gente cansou, o horário de trabalho era muito puxado”, finaliza Heloisa.
Essa é hora em que Felipe Soares entra em ação. Após a compra do estabelecimento, transformou a cafeteria totalmente em restaurante, já que os costumes de consumo da população mudaram durante os anos. Depois da passagem pela Rua Lima e Silva, no Centro, o chef se mudou para o bairro Vila Rosa, em 2021. Desde então, atende clientes de segunda a sábado para almoço das 11h às 14h30. Em domingos, vende churrasco para levar.
Iniciado o expediente durante a semana, às 11h Felipe já instrui: “Liga o rádio e coloca na União”. Começam a tocar músicas populares brasileiras nas caixas de som espalhadas pelo restaurante. Felipe vai para o caixa e começa a receber com “bom dia” cada um dos clientes que aos poucos vão chegando. Ele está sempre ligado no celular, possivelmente fazendo negócios.
Ao meio-dia o movimento fica bem intenso no Café Avenida. Os garçons andam bastante com suas camisetas pretas e calças jeans. Nesse momento, além de atender o caixa e responder ao celular, Felipe ajuda na pia lavando copos.
Quem se senta para comer ali é Leoni Mello. O homem alto de camisa social azul e cabelos pretos e grisalhos diz que tem o costume de frequentar o local há uns 10 anos. Mas de uns tempos para cá ele virou um cliente diário. “A comida é boa, o custo é favorável e a localização facilita”, analisa. A lembrança do antigo Café Avenida de Omar Guerreiro é viva na sua memória como “ponto de encontro de políticos e empresários de Novo Hamburgo”.
Às 13h o movimento já está bem mais baixo e tranquilo. Felipe diminui sua rotina frenética. Alguns clientes aproveitam para tomar o único café que restou do estabelecimento, o de cortesia que fica próximo ao caixa.
As mesas e cadeiras, por conta da idade, não são mais as mesmas do antigo negócio, o que resta são fotos espalhadas pelas paredes. O chef Felipe aproveita sua experiência internacional para adicionar pratos de diferentes países do mundo ao cardápio e tocar o restaurante em frente. Assim eles seguem, com o nome de café para fazer recordar os mágicos momentos vividos por muitos hamburguenses nas décadas passadas, e com uma avenida de novas histórias possíveis pela frente. n n Felipe recebe mensagens e ligações a todo momento. Quando o caixa está livre, ele aproveita para respondê-las