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EM FAMÍLIAALMOÇO

AAvenida Voluntários da Pátria, no Centro Histórico de Porto Alegre, é conhecida por ser um lugar caótico.

Lá tem lojas de departamento, ferragem, joalheria, empórios, floricultura, sapateiro, supermercado e qualquer outro estabelecimento que você possa imaginar. A cacofonia começa às cinco da manhã, após uma madrugada silenciosa e vazia. O barulho é um misto de buzinas, conversas, risadas, músicas vindo de lojas e de vendedores ambulantes. Mas o mais característico são os funcionários que ficam na beira da rua, gritando a plenos pulmões para que o cidadão que estiver passando pela longa avenida preste atenção no que ele ou ela está vendendo. Ali é possível comprar calcinha por R$ 5,99 e cueca por R$ 7,99. Vender ou adquirir ouro e comprar um chip de qualquer operadora.

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Na longa avenida que começa na Rua Marechal Floriano Peixoto, em frente à Praça Pereira Parobé, e termina na Rua Ricardo Seibel de Freitas Lima, existe à venda uma das coisas mais importantes para a vida do trabalhador durante o dia: comida. Café, almoço e jantar, tem tudo lá.

Vinícius Martins, 25 anos, atendente de e-commerce em uma empresa situada a duas quadras da avenida, vem todas as manhãs de Gravataí até Porto Alegre para trabalhar. Robusto, alto e sempre com o cabelinho na régua, costuma tirar soneca no ônibus, que leva um bom tempo até a capital. Vinícius já sente a barriga roncar antes de colocar os pés no escritório. Sem tempo para o café da manhã, por precisar se deslocar tão cedo e chegar ao serviço na hora, a primeira refeição é sempre o almoço, que tem disponível do meio-dia até a uma hora da tarde. Um período precioso para ele. Na empresa, Vinícius é conhecido pelo recorde de ter comido 12 bifes à milanesa em um só dia. Se ele pudesse, almoçaria às 10 horas da manhã.

Assim como a maioria dos funcionários que trabalham no Centro Histórico, Vinícius passa re-

NO RESTAURANTE QUALITÁ, É POSSÍVEL TER UMA REFEIÇÃO DE DOMINGO TODOS OS DIAS DA SEMANA, PODENDO ESCOLHER BUFFET

gularmente pela Voluntários da Pátria, às vezes escutando um trap nos fones, mas muitas outras vezes emprestando seus ouvidos para os comerciantes. Existem os que passam por lá para comprar, os que estão apenas querendo chegar ao outro lado e, no caso de Vinícius, com seu cigarro na mão – que acendeu no momento que botou os pés para fora do prédio comercial –, indo em direção ao Qualitá, restaurante que se encontra na agitada avenida.

Seguindo a tradição da Voluntários, o restaurante também tem um funcionário em pé à frente da porta, convidando qualquer um que passe para subir as escadas até o segundo andar e desfrutar de um bom almoço, buffet ou a quilo. Marcos Santos, sempre com o característico uniforme do res- taurante e seus óculos que passam simpatia, tem uma urgência menor que os demais que fazem o mesmo trabalho. Com apreço, convida sem alarde, e muitas pessoas acabam subindo. Marcos pode ser considerado o rosto do Qualitá. Responsável por divulgar no gogó as delícias que aguardam as pessoas no segundo andar, faz o trabalho de passar a segurança que nem todos costumam sentir em meio a uma avenida com alguns perigos. Além de recepcionar e cativar clientes, vira um guardião da pequena entrada do Qualitá, utilizando o grande quadro com o menu do dia como seu escudo, cheio de itens que se tornam argumentos do porquê alguém deve almoçar ali. “Ele acaba se tornando uma referência e imagem do estabelecimento, passando segurança ao cliente que não conhece o restaurante.” Alexandre Salvi, proprietário do lugar, garante que Marcos tem o poder de vender o lugar da maneira mais adequada. Pelas multidões que tomam as mesas, Marcos é bom no que faz.

Vinícius toca a bituca de cigarro no lixo de ferro e sobe a passos largos, repetindo o ritual mais de uma vez por semana, sempre ansioso. “O horário de almoço é a melhor hora do dia, é quando saio para a rua, tomo um ar, relaxo um pouco e como bem para voltar pro trabalho. Quanto mais perto da hora do almoço, mais feliz eu fico”, ilustra Vini – como é chamado pelos colegas.

Como se fosse possível se teletransportar, a avenida é esquecida a partir do sétimo ou oitavo degrau. O cheiro da comida fica perceptível e o barulho não é mais possível de ser ouvido. Em menos de 30 segundos o caos vira tranquilidade, e as portas do Qualitá são abertas, fazendo Vinicíus dar de cara para um longo buffet equipado também com uma chapa para os grelhados – seus favoritos –, um buffet de sobremesa, dezenas de mesas espalhadas e inúmeros funcionários muito bem uniformizados e prontos para mais um dia de servir os trabalhadores e moradores do Centro Histórico. Lasanhas, massas, saladas, frituras, carnes, pizzas, risotos, tortas, frutos do mar, molhos, doces e até mesmo sushi é servido, compondo um almoço para todo e qualquer gosto. O atendente de e-commerce já pega logo um prato e se serve.

Para além da comida, outro aspecto que captura os olhos de quem entra no restaurante é a grande faixa adornada por plantas, onde a frase “Cozinhando com amor desde 1998” é iluminada com luzes led amarelas. O restaurante Qualitá carrega raízes familiares e tem 24 anos. Isso Vinícius e qualquer outro que entre lá e leia o cartaz vai ficar sabendo, porém, a história tem muito mais nuances.

Hoje em dia, quem narra a trajetória do lugar é Alexandre. Com seus cabelos encaracolados e uma camisa social bem passadinha, mostra capricho ao lado de sua esposa, Katiane Valandro, loira e sorridente. Os dois costumam se revezar no caixa, sempre cumprimentando Vinícius quando chega a hora de pagar. Eles podem ser vistos em qualquer lugar do restaurante, pela quantidade de pessoas que sempre tomam os assentos, nunca conseguem parar. É o tipo de estabelecimento que está sempre lotado, mas ao mesmo tempo, extremamente confortável.

Um dos restaurantes favoritos de Vini foi idealizado pela família Salvi, que já possuía um comércio. Eles deixaram a cidade de Carlos Barbosa – localizada na Serra Gaúcha, a 100km de Porto Alegre – em 1998, para uma oportunidade melhor na Capital do Estado. Afinal, a vida que os cinco irmãos estavam levando com seus pais, trabalhando de domingo a domingo, sem poder descansar no final de semana, e sem ver o resultado do esforço que faziam, não estava dando conta de sustentar todos.

Havia chegado o momento de se arriscar, plantar uma quantidade inexplicável de sementes, regá-las e ficar de olho para que os frutos fossem colhidos aos montes posteriormente.

Em novembro de 1998, o Qualitá nascia, sendo inaugurado com muito orgulho pela família: Alexandre, seus irmãos e seus pais. A batalha foi intensa e o sucesso da comida e o atendimento familiar ficou tão popular que logo eles conseguiram abrir mais dois restaurantes.

Era importante para eles que tudo ficasse em família, portanto, os novos restaurantes passaram a ser administrados pelos irmãos mais velhos, Marcos e Isabel. O primeiro ficou nas mãos dos mais novos da família: Alexandre, Adriano e Sandra. “Foram bons tempos, mas de muita dificuldade e adaptação”, conta Alexandre, nostálgico. O proprietário narra uma história instável. Vindos de uma cidade do interior, todos eram acostumados com uma rotina mais simples e tranquila.

Atualmente, além do Qualitá em Porto Alegre, existem outras duas unidades em Caxias do Sul, comandadas por Adriano e sua esposa, Ariane. Mas o aspecto familiar nunca foi abandonado, afinal, o estabelecimento não conta só com seus irmãos de sangue.

Todos os funcionários do restaurante fazem parte da grande história do local. Sidnei é garçom do Qualitá há 17 anos e serve Vinícius toda hora, sempre perguntando se quer um suco do dia, que é apenas um real. Às vezes o atendente de e-commerce toma para economizar no vale-refeição da empresa, mas quase sempre, devido ao desconto que o Qualitá permite para ele, se entrega para uma Coca-Cola para acompanhar seu almoço. “Minhas comidas favoritas de lá são a lasanha e qualquer carne”, conta.

Juliane é cozinheira do estabelecimento há 14 anos e, junto com Eloi Terezinha, Adriana e Caroline, responsável por cozinhar as delícias seis dias por semana no Qualitá, que durante o período da manhã é marcado por uma correria extrema. “Costumo dizer a eles que são minha segunda família, pois passo mais tempo com eles do que com minha própria”, Alexandre conta aos risos. Ele diz fazer o possível para que os funcionários transmitam isso em suas funções.

Ao meio-dia, o restaurante pode proporcionar um momento tranquilo. Porém, para chegar a este patamar existe muito trabalho da parte da equipe do Qualitá. O dia dessa “família” começa às 8h da manhã em ponto, quando todos se juntam e tomam um grande café da manhã. Neste momento, é possível pegar a equipe em uma rotina, batendo papo, rindo e se preparando para os desafios do dia. Mas não há excesso de tempo para confraternização. Quando o café da manhã termina, a coisa fica séria. A rotina começa com o recebimento de mercadoria, cálculos exatos de quanto será utilizado de cada alimento. O som do descascar de legumes fica frenético e a cozinha começa a esquentar com a preparação de múltiplos pratos diferenciados. O almoço será servido pontualmente às 11h. “Ao meio-dia, a parte mais crítica é manter a qualidade dos produtos para que o cliente saia satisfeito. Como começamos cedo, o preparo é muito importante, e a manutenção da textura e cozimento dos alimentos é sempre um desafio, levando em conta que nenhum ingrediente é igual ao outro.” A preocupação do restaurante é clara, e Juliane, Eloi, Adriana e Caroline tomam a frente para garantir que a comida chegue da maneira correta até o buffet e, posteriormente, deixe Vinícius satisfeito.

Quando o salão começa a esvaziar, até o momento que o último cliente desce os degraus e entra novamente na caótica Voluntários da Pátria para encarar o segundo turno do seu dia, o buffet é recolhido e a limpeza é iniciada. “A parte mais braçal do dia” conta principalmente com Maria Doralice e Sonia, funcionárias do n Vinícius costuma ler em voz alta o menu disponível no Instagram, convencendo os colegas de trabalho a acompanhá-lo ao Qualitá restaurante há respectivamente sete e oito anos, que higienizam o restaurante inteiro.

Ao entrar no Instagram e pesquisar por Qualitá, dois restaurantes serão indicados como resposta. O de Porto Alegre e o de Caxias do Sul. Ambos têm similaridades, porém, a unidade de POA tem a mão de Alexandre, que aproveita o momento que o buffet está sendo servido para tirar as fotos favoritas dos clientes. “O Qualitá é simplesmente perfeito. Tanto o ambiente como o atendimento são impecáveis, e a comida então, nem se fala, fora do normal”, diz Vinícius, para quem a história de hoje termina aqui. Depois de comer, pagar e descer as longas escadas, acendendo outro cigarro, volta para o serviço um tantinho mais feliz, sabendo que no dia seguinte, a partir das onze horas, vai poder ficar namorando as fotos que Alexandre posta na conta do Instagram do Qualitá com os pratos do dia, começando o ciclo mais uma vez.

Acompanhando seus clientes chegando com uma expressão e indo embora com outra, o dono do Qualitá entende que o restaurante é um momento de descanso para os funcionários do Centro Histórico de Porto Alegre, momento esse que muitas vezes é feito na correria, sem prazer nenhum pela comida. “Sempre foi nossa prioridade fazer com que o cliente não só almoce. Ele precisa relaxar e curtir o momento, cada vez mais estamos trancados em uma rotina avassaladora, sempre correndo e não curtindo”, finaliza Alexandre, feliz por ver fregueses como Vinícius saindo de lá com um sorriso que não estava no seu rosto quando entrou.

Se o restaurante continuará em família, não se sabe. Mas, secretamente, Katiane e Alexandre torcem para que sim. “O futuro a Deus pertence, e nossos filhos criarão asas como todos jovens. Não podemos obrigá-los a pousar dentro da empresa familiar, terão a liberdade de escolher e seguir seus caminhos. Caso a opção seja o Qualitá, com certeza seremos abençoados por mais gerações cuidando do restaurante”, conta o dono, com esperança pelo que vem. n

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