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DAS BANCAS NO VAIVÉM

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À SOMBRA DO TEMPO

À SOMBRA DO TEMPO

NO LUGAR ONDE TODOS ESTÃO DE PASSAGEM, ALGUÉM DECIDIU FICAR

Tinha 52 anos quando saiu de casa sem saber se iria voltar. Com o tempo, entendeu que a rua tinha mais a oferecer do que o próprio lar. Mário Luis Severo teve família anos atrás. Hoje, ele tem duas filhas, irmã e mãe, mas não tem família. Nascido e criado em Novo Hamburgo, como boa parte dos locais, era frequentador das famosas Bancas de NH, hábito que de outro modo mantém. Um retângulo comprido tem uma das raízes mais sólidas da cidade. Desde 1949, oito repartições formam o complexo das Bancas. Não há hamburguense que não tenha passado por lá. É o ponto de encontro para quem finda as madrugadas no Vale do Sinos, mas poucos sabem da intensa afetividade que circula entre balcões e mesas.

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Passear rapidamente com os olhos é suficiente para notar que gente de todas as tribos ali habita (bem-intencionada ou não). E, para atender a vasta gama de público, dentre as sete bancas abertas encontram-se lanches de todos os tipos, para todas as fomes: de verdade, de beliscar, para levar ou aquele pingado para aquecer. Este último aquece as mãos de um senhor grisalho acomodadas no copo americano enquanto escrevo estas linhas. A geladeira de bebidas marca sete graus negativos e acho que na rua não está muito diferente. Ainda assim, o casal de jovens da mesa a frente preferiu um par de sorvetes.

O lugar tem cheiro de tudo ao mesmo tempo. Café com leite, cinzeiro, resto de cerveja, os mais variados perfumes, além da fumaça de carro e de cigarro (mentolado, vermelho e ilegal).

O mesmo serve para o som. Ruído de conversa, risada alta. A música que varia entre o bailão abafado que vem da Banca 1, o sertanejo do carro da frente e o funk do carro ao lado. Patinhas de cachorros que passeiam estrategicamente em busca de comida, conversas clássicas de rua: “Empresta o fogo?”, “Arruma um cigarro?”. A única sonoridade permanente é o “bip” que alerta os motoristas de aplicativos e dos andarilhos com suas frases sozinhas e inaudíveis.

“Eu vou te matar, velho des- graçado!”, diz um cliente que chega pelas minhas costas. Por um instante achei que mudaria para a editoria policial. Com ouvido curioso, descubro que se trata de um motorista de aplicativo, bravo com o “velho desgraçado” que lhe indicara uma passageira bêbada, da qual agora ele só queria se ver livre. Quem é ela? Não saberei. Assim como não conhecerei os sujeitos de pelo menos 30 bocas que falam simultaneamente.

A sensação é de que aqui se consegue tudo. O que precisa e o que se escolhe. Desde um pão de queijo com café até um programa e drogas - para essas, deve-se andar uns cinco metros ao lado. Uma pequena pracinha depois da meia-noite não é mais lugar de criança. Dia um. Dia dois. Dia três. Quase se confundem. Mudam as pessoas (exceto os frequentadores de carteirinha), mas a dinâmica é a mesma e reversa à grande maioria dos estabelecimentos comerciais: quanto mais tarde, maior o movimento.

Carro-chefe

Há quem diga que algumas bancas têm seu público fiel mais definido. Neste caso, quem diz é o Rafael. “A banca 1 é a do Uber. A 3 a dos jovens, quem vem da balada. E na 8 são os mais maduros. Se tornou um ponto de encontro do pessoal da noite. Sempre encontro algum conhecido.”

De estatura alta e porte físico condizente com o estereótipo das suas profissões, aos 39 anos Rafael Braga é personal trainer e segurança em um bar de rock que fica na mesma rua das bancas (Pedro Adams Filho, a principal do centro da cidade), apenas algumas quadras à frente.

Em uma rápida “fugida” da portaria, para buscar um lanche na Banca 1, ainda deu tempo de contar que o carro-chefe da casa é o prensado com bife e ovo. “Na Banca 1, o atendimento é o diferencial. A gente tá na era da experiência, né? Nenhuma banca faz um xis com quatro ovos, como eu pedi. Aqui sempre atendem o desejo do cliente.”

A flanela

Em meio ao turbilhão de informações que permeiam o ambiente, algo chama atenção. Peculiar por ser tão simples: uma flanela de cor amarela marca-texto que, para lá e para cá, desliza por todas as mesas. Perdi as contas de quantas vezes perambulei por ali, mas insistentemente a flanelinha se fazia visível de qualquer ponto de observação. Ergo meus olhos para descobrir quem comanda esse vai e vem. Descubro que “o Flanela” chama atenção não só pelo amarelo vibrante. Seu jeito singelo e o sorriso fácil que o acompanham em cada passo contrastam com o olhar sério e atento que se instala a cada movimentação minimamente duvidosa. Ele tá sempre ligado.

Entretenimento

A noite também é o horário dos garis do Centro. Circulam por quase uma hora. Para deixar o trabalho mais leve, eles brincam com sons de sirene policial e fazem graça com a clientela. Passam com os pés arrastando no chão, presos ao caminhão apenas pelas mãos. Neste momento o riso é coletivo e sem querer todos compartilham do mesmo afago.

Uma distração para quem senta na ponta da Banca 1 são as pessoas estacionando seus carros. O cordão da calçada é alto. Daria um bom jogo de apostas sobre quem vai encostar a lateral ou não. “Achei que o motoqueiro ia cair ali.” “Quase entrou no cordão.” Apenas um dos vários “quase aci- dentes”. Entretenimento para os motoristas que aguardam a corrida certa para voltar à rua.

Observada

Na décima segunda página do bloco que escrevi, eu me tornei objeto de observação. Desconcertante para quem foi até lá a fim de observar. Ainda que faça total sentido.

Confusão

Se desenhou no ambiente que um morador de rua ou “cara da jaqueta verde” tentou “passar a mão” em uma criança que brincava naquela praça sobre a qual já falamos antes. A briga chegou nas bancas. Já no chão, o culpado foi alvo fácil de diversos golpes. No caminho ficou seu tênis, o murmurinho e o Flanela.

Depois do episódio, o balconista da Banca 1 diz: “Dá confusão e eles vêm brigando até aqui. Aí depois o pessoal diz ‘ah, a confusão foi nas bancas’”. É uma crítica à má fama certas vezes atribuída.

O balconista profere a frase que me faz levantar na mesma hora:

“Pela metade não dá pra contar a história”. Finalmente, cansei de saber pouco sobre o Flanela.

Aprender a viver

Antes disso descobri a poesia do nosso coadjuvante, o balconista da Banca 1. Jaime Wiltgen aprendeu muita coisa ao longo dos seus 59 anos e muitas delas foram ali de trás do balcão.

Teve dois filhos homens. Wagner, de 21 anos, que mora com ele, e o outro não pude descobrir. Ele perdeu o filho mais velho, na ocasião com 27 anos. Passou quase uma década, mas ele continua relutante em falar sobre. “São coisas da vida.” De fato, não foi preciso sequer dizer o nome para que as lágrimas ocupassem metade de seus olhos. O curioso é que ele faz questão de tocar no assunto para dizer que trabalhar ali o ajuda a superar a dor (ou conviver com ela).

Mas, de todos os ensinamentos que adquiriu trabalhando na noite, o principal é a humildade: “Porque aqui tu aprende que tu não é nada e que é tudo ao mesmo tempo”. “Aqui uma noite é diferente da outra. Faz muitos amigos. Trabalho aqui porque eu gosto. É uma rotina que faz bem. Ninguém é mais que o outro. É um lugar democrático, tem desde moradores de rua até gente que tu nunca imaginou conhecer, de todos os lugares do mundo. Políticos como Giovani Feltes, por exemplo, são clientes. Não serve só para rico, nem só para pobre.”

Já ouviu falar em concorrência positiva? O Jaime diz que é assim que funciona ali. Cada um faz o seu, todos se ajudam e a brincadeira faz parte do cotidiano. O segredo é a união da “turma”. “A gente aprende a viver. Aqui a gente vive!”

E assim ele segue, conversando com todo mundo, fazendo amigos, conhecendo gente de todo lugar do mundo (sim, as bancas são internacionais na hospitalidade). Tudo isso mantendo em mente a sua filosofia de vida: “A gente costuma se pressionar sobre o que tem que ser feito a cada dia, mas eu digo que deve ser o inverso: o que eu posso fazer amanhã? Não o que tenho que fazer. Espero o amanhã e só”.

Quando a rua é casa...

...e a banca é lar. Isso resume a história do Mário Luis Severo. Ou apenas Severo, como é conhecido. Seu endereço é: “Debaixo da marquise de uma loja na quadra ao lado, na mesma rua”. Mas o que faz um homem encontrar seu lar nas calçadas? Ele já tinha perdido o chão quando também perdeu o teto.

Mário trabalhava em uma rede de supermercados quando sofreu um acidente de trabalho em 2018. Estava descarregando mercadorias de um caminhão e caiu ao escorregar pela plataforma de descida. Machucou o ombro e aí tudo começou. “Eu estava ‘encostado’, né? Quando o Temer entrou, ele fez um pente-fino. Aí ele me cortou. E aí eu caí na rua.”

Quando foi para as ruas, sempre morou pelo Centro. Achava mais seguro. Primeiro, dormiu na frente da UPA, por cerca de dois anos. Nessa época ele ganhava comida de alguns amigos que fez, como o segurança da unidade de saúde e também em uma padaria 24h que costuma distribuir sanduíches para os moradores de rua, além de sobras de comida de restaurantes, que enchiam o pote de sorvete que ele carregava como prato.

Na UPA ele comemorou Natal e Ano Novo em companhia dos funcionários. No inverno podia entrar para aproveitar o ar-condicionado. Coisas que ele conta com olhos alegres. Porém, o local chamou atenção de outros moradores. Mário não bebe e nunca usou drogas, mas os novos vizinhos sim. A partir daí ele precisou se mudar. Veio então para próximo das Bancas, o que mudaria mais uma vez a sua vida. “Um sábado de noite deu bastante movimento aqui. Aí eu vi que estava apertado para atender e eu comecei a recolher os pratos das mesas, para não atrasar o lanche, para eles não fazerem a volta e sair do ponto para limpar prato.”

O que começou de forma despretensiosa, talvez em busca de um prato de comida, se tornou um trabalho fixo há quatro anos. Virou “o Flanela”, e até já subiu de cargo: hoje ele agrega o serviço de rua, que é ir ao banco e lotérica pagar as contas que recebe dos funcionários.

Não é só dali que vem a renda. Mário também é beneficiário do programa do governo federal Bolsa Família e contratou um advogado com a esperança de conseguir se aposentar por invalidez. O pagamento do serviço é de 30% do valor que ele terá a receber. Isso porque ele precisava de cirurgia e, como o plano médico da empresa não cobria o procedimento, encaminhou via SUS, e até hoje não foi chamado.

Esta é apenas uma de suas frustrações. Por não conseguir trabalhar, virou alvo de piadas pejorativas na família. Foi tão longe que ele então optou pela rua, para fugir da situação. Os familiares não o procuram. Ele não procura de volta. Admite erros do passado em que bebia muito e não se fez um pai presente. Parece que não compensa.

Foi nas bancas que ele passou a se sentir em casa de novo. Com o frio das ruas ele está acostumado, mas o afeto encontrou ali. Tem muitos amigos e é grato pela atenção. O ponto alto foi uma festa de aniversário que recebeu em 2022 do pessoal que trabalha com ele.

Por tudo que sabemos e também que não saberemos nunca, Mário vai na missa quase todos os dias. Há uma catedral perto de onde ele sobrevive, e lá tem uma gruta para Nossa Senhora de Aparecida. Para ele, ela também significa uma missão: “Eu fiz uma promessa, se eu me aposentar agora, se der tudo certo, eu vou lá na Basílica percorrer as escadarias a pé”.

Assim ele vive um dia de cada vez. Próximo de quem o acolhe, servido de esperança.

Fraternidade

A verdade é que o mantra que guia tudo aquilo que rodeia as Bancas de NH é justamente o laço fraternal, a afetividade que permeia o simples e o torna imutável há mais de 70 anos. Como diz Jaime Wiltgen, o balconista da Banca 1: “Onde tu encontra tudo das sete às sete horas? Nas bancas!”. n

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