Olhos nos Olhos

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Foto: sxc.hu

Sumário

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Apresentação

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Um desejo: liberdade - entrevistado: Leonardo Apolinário

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O desabrochar de uma vida - entrevistada: Débora Gomes

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A cor Dai - entrevistada: Daiani Domingos

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Uma vida por um sonho - entrevistado: Paulo Roberto Homem

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(Re)descobrindo sem cessar - entrevistado: Gilmar Amaral

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Os caminhos do coração - entrevistada: Rosângela Castro

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A menina que enxergava longe - entrevistada: Maristela Bianchi

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De aprendiz a professor - entrevistado: Maurício Pereira

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Inês de Bicicleta - entrevistada: Inês Berlanda Seidler

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Questão de ter e ser - entrevistado: Jairo da Silva

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Além do que se pode ver - entrevistada: Marcilene Ghisi

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“De cego já basta eu” - entrevistado: Renan dal Pont

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Ao encontro dos olhos dos outros Expediente Textos, revisão, fotos e diagramação:

Adilson Francisco Costa Junior, Bianca Queda Costa, Giovanna Laurea Dutra, Kamila Machado Porto, Kate Silveira Caldas, Leonardo Fabio Contin da Costa, Madalena Bernardino Giostri, Maria Luíza Bolzan dos Santos, Mariana Eli de Souza, Natália de Ávila, Nícolas Horácio David, Rafaela Soares Bernardino

Projeto gráfico e foto da capa: Maria Luíza Bolzan dos Santos

Organização e edição: Cláudia Schaun Reis Esta obra é resultado da disciplina Laboratório de Vivência - Jornal-laboratório ministrada no segundo semestre de 2014 pela professora Cláudia Schaun Reis. A disciplina é integrante do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) unidade Pedra Branca, de Palhoça (SC). As legendas que acompanham as fotos são descritivas, a fim de que pessoas cegas ou com baixa visão também tenham acesso a elas. A obra também está disponível em áudio. Todas as matérias foram gravadas por seus respectivos autores.

Defende Cremilda Medina na obra “Entrevista – Um diálogo possível”, que a imponente entrevista – ferramenta de que se vale o jornalista para obter muitas das informações que irão compor o produto de seu trabalho – deveria ser humanizada. E quando se pensa em tornar mais humano o ato de duas pessoas conversarem – isso mesmo, é apenas uma conversa... – surge a pergunta: “Como?”. A própria autora responde em seu livro, mas penso que os alunos da disciplina Laboratório de Vivência - Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da Unisul Pedra Branca do segundo semestre de 2014 puderam, mais uma vez – e digo mais uma vez porque sei que foram estimulados a exercitar esse diálogo em outras matérias, no decorrer de todo o curso – colocar o que Cremilda propõe em prática, cada um do seu jeito. Eles levaram consigo temores e curiosidade. Foram atrás de histórias de pessoas cegas ou com baixa visão que vivenciam o dia a dia da Associação Catarinense para Integração do Cego, a ACIC, situada na Capital catarinense. Chegaram de leve e, aos poucos, tomaram coragem para olhar seus entrevistados nos olhos. A partir daí, abandonaram a tarefa exigida pela disciplina e fizeram da entrevista a troca com o outro – de vivências, afetos, e cotidianos. A missão era deixar de lado a ideia de que as pessoas com deficiência são exemplo de vida e de superação. E os alunos se concentraram nesse objetivo. Mas como não evidenciar o deslumbramento ao encontrar e reconhecer em si o outro? Principalmente quando esse encantamento nada tem a ver com uma suposta deficiência - e quem não tem nenhuma? - mas sim com a identificação surgida a partir do diálogo e da troca? Ouvi os relatos de cada encontro. Alunos e entrevistados estenderam o contato após a entrevista. Houve os que marcaram de sair para tomar umas cervejas, os que declararam, com todas as palavras, que gostariam de manter e intensificar a amizade recém-conquistada, e até quem influenciou o outro a praticar exercícios. O resultado de tantas trocas está aqui, em letras sobre o branco e também em áudio. Independentemente de notas, o semestre valeu a pena. As entrevistas - quer dizer, as conversas - ganharam forma e registram que sim: todo diálogo é possível quando a proposta é o verdadeiro encontro. Cláudia Schaun Reis

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Foto: Arquivo pessoal

Leonardo Por Maria Luíza Bolzan

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Nesta foto, o rosto de Leonardo Apolinário está voltado para diagonal e ele tem expressão séria

Um desejo: liberdade

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Um desejo: liberdade

do escritório, e a demanda era praticamente a mesma todos os dias. Escreveu projetos, entregou a diretoria que não deu atenção a sua sede de trabalho e,

“No início da conversa, eu estava preocupada em como conduzir o encontro (...) Pensei em mil maneiras de deixá-lo confortável e, por fim, foi ele quem me confortou. “

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hovia muito e quase não levantei da cama. Assim que saí de casa, percebi que demoraria mais do que previsto para chegar ao meu destino. Liguei para Leonardo Apolinário a fim de pedir desculpas. Nosso encontro aconteceria mais tarde, pois o trânsito também o impedia de chegar no horário combinado. Estava atrasado, como eu. Sua resposta simpática me acalmou. – A culpa é da chuva. Fique tranquila. Quarenta minutos depois estava lá. Toda aquela água que caiu trouxe o cheiro de terra ao lindo lugar, rodeado de árvores e flores que também adornavam o caminho até a porta. – Bom dia! – Disse o segurança, sorridente. – Bom dia! Vim conversar com o Leonardo. – Ah, o Léo! Você sabe onde fica a sala dele? – Fiz sinal de “não” com a cabeça. – Pode entrar, eu a acompanho. Senti que o segurança gostava de Leonardo pela maneira como repetiu seu apelido. Logo entenderia o motivo. Cheguei a sua sala e ele me recebeu com um sorriso enorme, caminhando em minha direção com a mão estendida para me cumprimentar. Nem se lembrou do meu atraso. Tão jovem, poderia arriscar dizer que não passou dos 20 ainda. Não precisei de muito tempo para começar a chamá-lo de Léo. Durante nossa conversa, ele sorria entre as palavras e me contava um pouco de tudo o que já havia feito. Seu primeiro trabalho foi como estagiário do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) de Criciúma, cidade onde nasceu. Lá, ministrava oficinas sobre direitos humanos para adolescentes e, aos 18 anos, assumiu a presidência da Associação Sul Catarinense de Cegos. Depois de alguns anos de experiência profissional, Léo decidiu realizar, em 2011, na própria cidade natal, o 1º Seminário Catarinense de Tecnologia, Inclusão e Acessibilidade para Pessoas com Deficiência Visual. Trabalhou também no setor de recursos humanos de uma grande empresa de saúde. Achava o trabalho muito monótono, pois ficava o dia inteiro dentro

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alguns meses depois, foi demitido. – Acho que estava lá para cumprir a cota, sabe? – disse ele. Léo tem uma alma livre. Não pode se ver parado. Depois da demissão, decidiu seguir seu desejo de ajudar as pessoas. A segunda edição do Seminário saiu logo depois e, dessa vez, contou com um número maior de participantes, que vieram de todo o Brasil. Jairo da Silva, presidente da ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego), esteve presente e, como amigo de Léo, convidou-o para levar o seminário a Florianópolis. Quase se formando no curso de Direito e, com o apoio de sua universidade, que garantiu as portas abertas sempre que precisasse de um lugar para trabalhar, Léo decidiu se mudar para a Capital catarinense em busca de oportunidades para fazer o que sempre gostou: lidar com a burocracia que envolve a criação de projetos. O projeto do seminário estava pronto e pôde auxiliar toda a equipe na organização do evento. Pouco tempo depois, surgiu uma vaga para trabalhar com projetos e captação de recursos na ACIC. Léo se candidatou e conseguiu o cargo. Segundo ele, foi uma ótima escolha, já que todos os dias aprende algo novo e continua lidando com o tema, associando-o à burocracia e interpretando-a a partir do direito, e acredita que esta é sua vocação. Ele brinca: - Enfim, essa é minha história. Acabo falando demais das instituições e me esqueço de contar sobre mim. Aos dois anos, Léo foi atropelado pelo homem que entregava leite à sua família. O choque resultou em um traumatismo craniano, atingindo um nervo ótico e causando a perda completa da visão. Após muitos encontros com médicos, a decisão de não fazer a cirurgia de reparação se deu pelo local delicado do trauma; a operação, assim, poderia afetar alguma parte do cérebro. Era 1994, e sua mãe queria, de qualquer jeito, que o filho tivesse uma educação igual a de seus irmãos. Encontrou uma escola especializada, onde os estímulos sensoriais eram trabalhados e os alunos se inseriam no ensino regular. Mas, enquanto seus irmãos estudavam meio período, Léo ficava na escola o dia todo. Foi sua professora quem passou todas as instruções de

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adaptação aos pais e, ainda hoje, amiga da família, conta que a mãe de Léo não poderia ter feito melhor trabalho. – Apesar de toda a teoria passada por essa professora, a mãe ainda tinha muito medo da minha independência, e o pai – era ainda pior –, mal me deixava sair de casa com medo de que me machucasse. Pegar ônibus e ir à padaria na rua de sua casa eram tarefas proibidas. Com um passo de cada vez, a conquista por sua liberdade aconteceu. Foi para São Paulo morar com uma tia e, ao retornar, decidiu que já era maduro o suficiente para enfrentar os medos de seus pais. Começou a voltar do colégio sem os irmãos e andava de bicicleta no terreno de casa, com a autorização do pai. Caía, se machucava, mas sentia a necessidade de fazer as coisas sozinho. Hoje, aos 23 anos, mora em Florianópolis com outros dois rapazes que também têm deficiência visual. É livre e completamente independente em todas as atividades. No início da conversa, eu estava preocupada em como conduzir o encontro. Não sabia de que forma deveria agir, se poderia usar certas palavras, se deveria sempre concordar sonoramente com suas histórias ou se poderia tocá-lo. Pensei em mil maneiras de deixá-lo confortável e, por fim, foi ele quem me confortou. Dono de uma autonomia e maturidade invejáveis, Léo é uma pessoa que transborda segurança. Aquele menino que encontrei na chegada me surpreendeu em uma manhã de conversa. Despedi-me e ele perguntou se já conhecia a ACIC; respondi que não, e ele me convenceu a conhecer os fundos da instituição. – Aqui é muito gostoso... vá andando por aí, veja como é bonito - disse ele. – Ei, e vamos manter o contato. Foto: Maria Luíza Bolzan

Nesta foto, vê-se o rosto de Leonardo sorrindo em frente ao lago nos fundos do terreno da ACIC de Florianópolis. “Eu deveria vir mais aqui, me sinto bem nesse lugar”, disse, no momento da foto.

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Foto: Mariana Eli

Débora Por Mariana Eli

Débora e seu esposo Jairo estão sentados em uma das mesas dispostas ao lado de fora do refeitório da ACIC, de mãos dadas, com árvores ao fundo e iluminados pela luz do meio-dia

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O desabrochar de uma vida

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O desabrochar de uma vida

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odos os meus lápis eram pequenos, pois os apontava com frequência para poder me aproximar do quadro negro. Também fazia bolinhas de papel e as arremessava na lixeira, sempre com o objetivo de errar o alvo; assim me levantava e conseguia ler de perto o que a professora havia escrito. Nos primeiros anos de escola, Débora Marques Gomes, 32 anos, já usava artimanhas para conseguir o que queria, sem que os outros soubessem da sua dificuldade visual, descoberta quando era bebê. Seu choro incessante, com apenas dois meses, deixavam seus pais, Célia e Graciliano, angustiados por ver aquele pequeno ser incomodado. Certo dia resolveram, então, procurar ajuda médica para descobrir o que sua filha tinha. O diagnóstico recebido foi de cólica. As noites mal dormidas e os dias de preocupação, porém, não cessaram. Após três meses, ainda sem solução, outro médico foi procurado, desta vez um clínico geral, que constatou apenas pelo olhar que a menina tinha glaucoma. Aquele era o começo de uma peregrinação por consultas e cirurgias. Um especialista na área confirmou o glaucoma congênito, pois os olhos da menina eram inchados. Esta doença é rara; aumenta a pressão intraocular, podendo atingir apenas um ou os dois olhos. A buftalmia, também conhecida como olhos grandes, é uma das características do glaucoma; além da fotofobia, que consiste na aversão à luz, o lacrimejamento e as córneas azuladas, ocasionadas pela alta pressão intraocular, estão também associados à doença. Aos 14 anos, Débora ficou cega do olho direito durante uma cirurgia para prevenir o aumento da pressão. – Durante o procedimento, minha córnea morreu e o olho ficou com a coloração azulada. Naquela época, meus pais já haviam se separado. Conhecidos começaram a falar sobre a ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego). Minha mãe e a atual esposa do meu pai me instigaram a conhecer o espaço, mas eu não havia gostado nem um pouco da ideia, até porque achava que

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o local era apenas para pessoas totalmente cegas. Contudo, Bete, a esposa de seu pai, fez com que ela conhecesse os espaços do Centro da cidade, para que pudesse aprender a se deslocar pela região, iniciando, um ano depois, os estudos no Instituto Estadual de Educação (IEE). A primeira cirurgia de Débora foi aos seis meses de vida. Depois disso ela já realizou mais de sessenta operações, sempre com o intuito de reduzir a pressão intraocular, a fim de evitar o vazamento dos olhos. Elas serviam para controlar o glaucoma, que poderia desencadear a cegueira irreversível. No mínimo a cada três meses ela consultava os médicos e realizava os procedimentos. Para a família, a rotina era corrida, e para ela, como criança, também era difícil. – Minha mãe sempre conta que, quando eu via pessoas de branco, saía correndo, pois tinha medo das agulhadas. Na escola, sentava sempre na primeira carteira para poder enxergar melhor o quadro. Frequentou as aulas de educação física até a quarta série, pois os exercícios eram mais leves. Mas a partir da quinta série as coisas começaram a complicar; as atividades eram mais rígidas, então fazia trabalhos para compensar as aulas e não reprovar. Havia trocado de escola e, na sétima série, começaram as pequenas mudanças: decidiu substituir o lápis comum pelo 6B – que tem um traçado macio e mais grosso, com escrita marcante – e, pouco tempo depois, começou a usar apenas a caneta, já que a escrita era mais escura, oferecendo um contraste melhor. Como não contava aos colegas e professores sobre suas dificuldades, começou a usar de artifícios para acompanhar os conteúdos passados. Na época em que cursou o primário, compreendido entre a primeira e a quarta séries, era rotulada como CDF; seguia normalmente a rotina escolar, apesar de ter apenas 10% de resíduo de visão. – As pessoas não consideravam, naquele tempo, que eu tinha uma deficiência visual; apenas diziam que era um problema de vista. Nem eu mesma sabia que esse resíduo já é considerado baixa visão. Contudo, quando conheceu a ACIC, alguns anos mais tarde, é que tomou conhecimento sobre as diferenças dos graus, sendo 5% a 30% de resíduo visual considerados de baixa visão; abaixo de 5%, portanto, já é considerado cego. A partir da quinta série, perguntava ao colega ao lado o que estava escrito em seu caderno, sempre com a desculpa de que não enxergava o quadro, mas sem que os outros soubessem que o “não enxergar” era devido a sua deficiência visual. – Geralmente se pensa que uma pessoa com deficiência visual é cega, e ponto. Eu mesma não tinha esta noção na época, de que a baixa visão era uma deficiência visual. Após ter concluído o ensino fundamental, parou os estudos por um ano, para só então retomá-los no IEE. Como o Instituto, considerado um dos me-

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lhores colégios na época, situava-se no Centro de Florianópolis, seus pais ficaram com receio de matriculá-la em um ambiente tão distante de casa, pois morava no bairro Ingleses. Frequentou o IEE por dois anos sem que soubessem que ela era deficiente visual. No entanto, as dificuldades para acompanhar as matérias aumentaram. – Eu estudava pelos meus resumos, mas com as disciplinas de matemática, física e química já ficava mais complicado. Então passava em todas, menos nas de exatas. Reprovei duas vezes no primeiro ano do ensino médio. Depois das reprovações, Débora desistiu da escola mais uma vez. Aos poucos, retomou a vontade de concluir o ensino médio, e começou a pensar em como seria sua vida. Foi trabalhando essas ideias que decidiu frequentar a ACIC; fez várias amizades e gostou do espaço. Durante o primeiro ano, participou do processo de reabilitação, aprendeu o braille, conheceu os sistemas de informática que auxiliam os deficientes visuais, através de sintetizadores de voz, e passou a usar a bengala – mesmo não havendo necessidade na época; levava-a à frente, para sinalizar a dificuldade visual. – Foi um ano diferente; foi muito bom. No começo, ia terças e quintas; depois, todos os dias e mais tarde comecei a ir à casa dos colegas também aos finais de semana. Apesar de todas as dificuldades, me sentia uma flor que desabrochava, porque, pelo fato de não enxergar tanto, havia coisas que eu mesma já sabia que não podia fazer – como as atividades de educação física na escola – e na ACIC descobri capacidades que não sabia ter. Após o ano de aprendizagem e novas amizades, ela resolveu voltar aos estudos. Retornou ao Instituto, e, chegando lá, procurou, junto com seu pai, a coordenadora pedagógica do primeiro ano, que não quis aceitá-la de início. – Ela dizia: “por que você não vai estudar no seu bairro? Lá você já conhece o espaço, a escola, será mais fácil”. Mas, eu tinha muito mais autonomia no Centro do que no meu bairro, e o ensino do Instituto era um dos melhores. Insisti e continuei. Decidida, emprestou a máquina de braille do namorado, Jairo, que conheceu na Associação, e a levava para a aula para copiar as matérias, como forma de facilitar o seu estudo. Durante os segundo e terceiro anos, a vida no IEE ficou mais fácil: uma nova coordenadora pedagógica lhe deu total apoio, encontrando maneiras, junto aos demais professores, de auxiliá-la no processo de aprendizagem. Desse modo, conseguiu concluir o ensino médio e, após seis meses, decidiu cursar psicologia. Naquele tempo trabalhava como telefonista na ACIC. Ela lembra do dia exato: 17 de junho. Já pela manhã, acordou com os olhos grudados, lacrimejantes, como se tivesse uma conjuntivite – e esse foi o diagnóstico dado pelo médico consultado, ressaltando que não deveria se preocupar e fosse trabalhar normalmente. Em sua mesa, além do computador que usava com o fundo de tela preto e as letras amarelas – que garantiam um maior contraste e lhe facilitavam a

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leitura –, ela também tinha uma luminária com lâmpada fluorescente, que clareava o ambiente. Decidiu ficar apenas com a luz do monitor, mas, aos poucos, aquela luz começou a incomodá-la. Sentia umas fisgadas em seu olho esquerdo, então decidiu desligar o monitor e descansar um pouco os olhos. Quando ligou novamente a tela, a dor era insuportável. – Sentia como se estivessem dando facadas no meu olho, e ele ficava cada vez mais inchado; doía demais. Pensei comigo: “se esta luz já está me incomodando, imagina quando eu chegar ao terminal de ônibus”, porque era noite, e lá era bastante iluminado. Sabia que não conseguiria ir embora sozinha, então pedi ajuda ao Jairo. O casal decidiu ir ao hospital. O médico desistiu de examiná-la por causa do inchaço, e apenas lhe passou uma medicação. No dia seguinte ela foi para o Hospital Regional de São José, mas já estava cega. – Naquele mesmo dia as luzes começaram a desaparecer, e eu fiquei totalmente cega. Esse período foi muito conturbado; acabou perdendo o vestibular, já que junto com a cegueira contraiu uma infecção no olho e precisou ficar internada por um tempo. Contudo, conseguiu ingressar no curso por meio do histórico escolar, e em agosto iniciou a faculdade. Foto: Mariana Eli

Nesta foto, o rosto de Débora está de frente para a câmera, sorridente. Ela tem a luz do sol sobre a face, e sombras ao lado direito de seu rosto. Ao fundo há um arbusto

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O curso de psicologia era uma de suas metas; a partir dele queria conhecer um pouco mais sobre as pessoas e seus comportamentos. No início, recém-cega, ela se perguntava se daria conta das matérias – nove no primeiro semestre –, já que precisava passar em todas para não perder a bolsa de estudos integral. – Uma coisa é você ter um resíduo visual; outra é ficar totalmente cega. Antes eu olhava para um ponto e sabia que aquela parede estava ali; depois, tive que começar a imaginar, e isso altera o equilíbrio. Eu pisava no chão e parecia que não tinha chão; eu ficava tonta, às vezes tropeçava no próprio pé. Por menor que fosse o meu resíduo, tive que aprender a me orientar no espaço, então precisei criar outras maneiras de me relacionar com o mundo.

“A ACIC me mostrou um mundo de possibilidades que eu não sabia ter”

– Estou podendo, de certo modo, devolver aquilo que a ACIC me deu, para que eu pudesse desabrochar para a vida. Minha existência se divide entre o que vivenciei antes da ACIC e depois dela. Sei que se não tivesse passado pela Associação eu não teria terminado meus estudos, não teria casado, estaria lá em Ingleses com a minha mãe, no meu mundinho. O dia da formatura de Débora foi festejado em dobro, pois além do diploma adquirido, ela também foi pedida em noivado pelo homem que esteve ao seu lado durante aqueles oito anos, sempre a ajudando e a apoiando em sua caminhada. As comemorações ocorreram em um espaço pelo qual o casal tem um carinho especial, a ACIC. Seis meses após o noivado, ela e Jairo compraram um apartamento e oficializaram a união. A cerimônia simples, para 30 pessoas, foi realizada no bairro Sambaqui, e a noiva teve direito ao vestido no estilo tomara que caia, com uma fita branca cinturando seu corpo e um véu fixado com um ornamento de pedras brancas, que contrastaram com seus cabelos pretos. Na capa do álbum de fotos, guardado com muito carinho, o olhar dos dois se encontra e o sorriso comprova a relação de carinho que um tem pelo outro. – Ele é uma pessoa muito cúmplice com quem eu adoro estar.

Durante os primeiros quinze dias de aula, seu namorado fazia o trajeto da ACIC até a Unisul da Pedra Branca, no município da Palhoça, onde ela estudava, para lhe auxiliar. Naquele período, ela estava muito fraca, pois havia estado cerca de dois meses em tratamento por causa da infecção, e também tinha perdido a noção de equilíbrio e ainda se habituava ao uso da bengala. Ele trabalhava como office boy na Associação o dia inteiro, e a acompanhava à noite, mesmo cansado. Dormia na carteira esperando por ela, e eles retornavam às 22h30min. Depois Débora passou a ir sozinha. Se não começasse a ter autonomia, não teria nunca mais. – Com toda a ocupação que eu tinha para dar conta das matérias e não perder a bolsa de estudos, acabei me esquecendo da minha cegueira. Foi de uma forma natural. Consegui dar conta da faculdade, fiz no tempo previsto de cinco anos; eu gostava do curso, foi uma realização conclui-lo. Nas disciplinas como Neuroanatomia, que tinha aulas práticas, ela contava com uma estagiária do Programa de Promoção de Acessibilidade (PPA) da Unisul, que, anotava o conteúdo e o digitalizava, e Débora então podia prestar atenção na explicação em sala. Ela também tinha contato com peças em gesso para conhecer melhor as partes do corpo e conseguir fazer as provas práticas. Hoje, aos 32 anos, os sentimentos de dever cumprido e gratidão lhes são garantidos por fazer parte da diretoria da Associação, junto com seu esposo.

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Foto: Arquivo pessoal

Daiani divide a foto com seu filho, que olha fixamente para a câmera. Ela está do lado esquerdo, e ele, do direito. Daiani sorri abertamente; seu filho esboça um sorriso curioso

Daiani Por Madalena Giostri

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arquei de conversarmos em meio ao caos do centro da cidade, e fiquei surpresa quando, por telefone, ela me descreveu a cor de sua blusa para que eu pudesse reconhecê-la, afinal, aquele seria nosso primeiro encontro. Durante a conversa ela contou que gosta que as pessoas descrevam roupas, fotografias, lugares e cores, pois assim pode criar uma imagem através do que ficou armazenado em sua memória. Durante nosso papo em um café barulhento pude notar a relação do não vidente com outros sentidos, como o toque e a audição. Esses sentidos ficam mais aguçados e, através deles, as pessoas com deficiência visual criam outras percepções sobre objetos ou pessoas. Daiani Domingos nasceu com baixa visão. − A patologia que eu tenho é regressiva; lembro que no início da escola eu conseguia ler, mas o resíduo foi diminuindo devagarinho, até que, aos 14 anos, não enxergava mais. Além da perda total da visão, seu pai faleceu de ataque cardíaco naquele mesmo ano. O luto tornou-se incalculável. Sua feição triste no momento em que falou do pai não foi a mesma de quando referiu-se à cegueira. − Tem pessoas que jamais conseguiram viver com a perda e têm outras que vão superar, como qualquer coisa na vida. A vida tem que seguir em frente. Filha única, ela conta sobre relação com as primas: − Nunca tiveram pena de mim pelo fato de eu não enxergar. Elas criavam maneiras de andar sem ficar dizendo a todo o momento o que havia no caminho. Nos comunicávamos através de códigos, como levantar e abaixar o braço a cada degrau. Ao terminar o colegial, cada prima seguiu um rumo diferente; naquela época ela sentiu que também deveria seguir seu caminho, aquele era o momento! Daiani hoje oferece possibilidades para outras pessoas que não acreditam haver luz em meio à escuridão. − Tenho um primo que também é cego e um dia me falou da ACIC, mas

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nunca quis ir porque o próprio nome já dizia “Associação para Integração do Cego” e eu não era cega, na minha percepção. A aceitação é um processo difícil; é necessário passar por muitos caminhos até reconhecer que todos nós necessitamos de axílio. − Arrependo-me de não ter conhecido a ACIC antes, mas me orgulho por ter ido, por aceitar que precisava de ajuda. Na ACIC ela começou como usuária (pessoa que está em processo de reabilitação) e depois se tornou professora; atualmente é voluntária na associação. Ao falar sobre a ACIC, ela deixa no ar o carinho pelo lugar e pelos amigos que ali conquistou. − Vi pessoas cegas dando aula para outros cegos; aquilo, para mim, foi motivador; me impulsionou! Daiani nasceu em Florianópolis e mora no bairro Campinas com sua mãe e seu filho Thiago, de sete anos. Sua relação familiar é movida por afetos. Com muito amor e carinho, sua mãe Manuela ajuda a cuidar do neto durante todas as tardes, enquanto Daniani trabalha. − Meu filho é uma figurinha; é muito carinhoso, bem companheiro e super divertido. Temos uma relação muito boa. Desde bebê procurei mostrar para ele que eu não enxergava; ele apontava para as coisas e eu seguia o dedinho dele e dizia o nome do objeto para que ele já fosse se acostumando a falar e não a apontar, tanto que, com nove meses, ele começou a falar. Para ela, não existe nenhuma limitação doméstica.

“Tem pessoas que jamais conseguiram viver com a perda e têm outras que vão superar, como qualquer coisa na vida. A vida tem que seguir em frente”

− Eu cozinho, lavo e passo, só não gosto muito de faxinar. Há três anos ela levanta todos os dias às cinco da manhã para trabalhar, pois sente ser gratificante poder fazer algo de útil para outras pessoas, e passa o dia todo transcrevendo materiais escolares para o sistema Braille. Seu trabalho no CAP (Centro de Apoio Pedagógico para pessoas com deficiência visual) é transcrever livros e materiais escolares para o sistema Braille e também para o sistema Mac Deise, já que há quem prefira o Braille como forma de aprendizado e os que optam pelo sistema de áudio. O CAP integra a Secretaria de Educação do município de Florianópolis e é responsável pela transcrição desses materiais impressos. Ela deixa clara a sua preferência: − A voz do Mac Deise não me cativa.

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A independência é característica forte de sua personalidade, e talvez seja devido ao seu signo astral, sagitário, que busque cada vez mais a liberdade. A liberdade de ir e vir, na maioria das vezes, é contraditória para ela, devido à acessibilidade. Os pisos-guia − os “tapetes vermelhos” espalhados pelas calçadas −, geralmente são afixados de maneira irregular; as calçadas são niveladas com a rodovia e os obstáculos no centro da cidade, como as mercadorias que os feirantes colocam no chão, dificultam a mobilidade. − Eles deveriam consultar as pessoas com deficiência visual antes de implantar o piso-guia, pois são os cegos que utilizam esse recurso. Ela deseja, para o futuro, ver seu filho crescer com muita saúde, conseguir comprar uma casa com o esforço do seu trabalho e poder cursar o mestrado. −Sou uma pessoa que, assim como outras, tem um objetivo, procuro estabelecer metas e vou atrás de concluí-las. Sou um pouco ansiosa, gosto de viver e gosto da troca com outras pessoas.

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Foto: Giovanna Dutra

Paulo Por Giovanna Dutra Nesta foto hรก o rosto de Paulo sorrindo, olhando para frente; ao fundo, temos luminรกrias e uma estante

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Uma vida por um sonho

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Uma vida por um sonho

− Antes eu vivia tranquilo, na boa. Mas poxa, não sabia que rumo tomar. Minha vida começou a se transformar por causa da deficiência visual. Desde 1999 ele se aproximou do esporte de alto rendimento, iniciando a prática do atletismo. Gostava da modalidade porque dependia somente de seus esforços para alcançar os objetivos. Quando começou a correr, já sonhava alto; gostaria de um dia participar de uma competição internacional. Queria poder mostrar seu talento mundialmente.

“Foi naquele momento que comecei a realizar meu sonho”

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uma cidade em meio ao caos, Paulo Roberto Homem aceitou o convite para ser conhecido mais de perto. Florianópolis atravessava outro período de ataques a ônibus; bases policiais eram alvejadas e a população vivia um clima tenso. Mas Paulo não aparentava preocupação com nada; transmitia tranquilidade e paz e tinha sorriso sempre fácil. Quem o olha de longe nem imagina o quão fascinante é sua história de vida. Com passos firmes, anda pela Ilha da Magia buscando ser aquilo que sempre quis: simplesmente ele. Atualmente, aos 45 anos, sente-se realizado em todos os aspectos. Há quase quatro anos passou no concurso público para a SOL (Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte). Ter conseguido essa façanha é motivo de orgulho. Com as mãos trêmulas, conta que poderia contribuir ainda mais em seu trabalho, mas, infelizmente, não consegue. Paulo tem baixa visão; descobriu sua deficiência no ano de 2000. Conta que, como todo mundo, passa por dificuldades, porém, nunca desiste de conquistar seus direitos. ̶ Hoje trabalho na Secretaria de Turismo, no setor de atendimento jurídico. Sou técnico-administrativo. Por causa da deficiência é um pouco complicado, porque o Estado não é acessível. A gente tá sempre brigando, tentando melhorar, mas o bom é que tenho um pouco de visão e autonomia para me deslocar, para fazer outros serviços. Verifica e responde emails, entrega documentos em prédios diferentes e atende telefonemas no escritório. Às vezes, depara-se com brincadeiras dos colegas: “Olha, Paulo, acho que você colocou na sua inscrição do concurso que tem baixa visão só pra conseguir a vaga, hein?!”. Ele se diverte, pois percebe como é visto pelos companheiros: como uma pessoa igual a todas as outras. Porém, é muito importante destacar que sua autonomia é algo notável. Paulo relata que, em seu coração, sua história realmente começou na virada do século. Ele não despreza sua trajetória, mas os grandes acontecimentos de sua vida iniciaram-se a partir daquele ano.

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Porém, seus planos tiveram contratempos; devido à idade e a algumas lesões, teve que abandonar a prática. ̶ Botei na cabeça: eu vou participar de uma competição internacional. Só que eu queria o atletismo, sabe, porque gosto de esportes individuais, porque depende só do atleta. Mas como tive alguns percalços, me voltei ao Goalball, em 2003. O destino, no entanto, tinha planos muito maiores para vida desse atleta que estava nascendo. Por causa de sua deficiência, Paulo conheceu um novo esporte, o Goalball, que ele mal sabia que iria transformar completamente sua vida. Dessa vez ele teria que trabalhar em grupo. O Goalball havia sido especialmente criado para a prática de pessoas com deficiência, e hoje é adotado em mais de 100 países. É considerado esporte olímpico e, atualmente, o Brasil é o número um do ranking mundial. Paulo tem também grande “culpa” por essa colocação brasileira. Aderindo ao novo esporte, o sonho de participar de uma competição internacional parecia mais distante, já que, com o Goalball, era necessário ser convocado junto com o time todo. Paulo então deu início à luta para conquistar seu espaço nos cenários catarinense e nacional da modalidade. E não é que deu certo? Em 2007 a seleção brasileira de Goalball conseguiu a vaga para participar das Paraolímpiadas de Pequim, na China. ̶ Foi naquele momento que comecei a realizar meu sonho. Paulo foi convocado junto com outros nove atletas para a peneira que selecionaria seis deles para representar a nação brasileira nos jogos olímpicos na Terra do Sol Nascente. Após ser convocado, Paulo teve a rotina virada do avesso; sua dedicação era quase que exclusiva aos jogos. A partir do primeiro semestre de 2008, ele já não passava muito tempo em Florianópolis; ficava concentrado com mais nove atletas da seleção interna para saber se realmente iria a Pequim. O so-

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nho estava tão próximo que o coração já não conseguia explicar o que sentia. Mas uma certeza gritava dentro dele: “não vou deixar essa oportunidade passar”. ̶ Passei por duas seletivas com cortes de dois atletas, em fevereiro e março. Em maio e junho fiquei mais 15 dias em João Pessoa, com o corte de mais dois atletas. A partir daí foram definidos os seis atletas que iriam para China. O time e a comissão técnica ficaram confinados durante 45 dias em João Pessoa (Paraíba), para realizar mais treinamentos. Voltando a Floripa para um breve período de descanso, no mês de agosto ele foi para Taubaté (São Paulo) para a finalização dos treinos para a competição. E no dia 29 de agosto daquele mesmo ano, embarcou rumo à realização do seu grande sonho. Antes de pisar em solo chinês, toda comissão brasileira fez uma escala no Canadá e finalmente no dia 30 de agosto de 2008 já estavam nas terras do Sol Nascente. Ao chegarem à China não houve muito descanso, pois, era preciso fazer com que todos se adaptassem à nova rotina e ao fuso horário. − As competições começaram no dia 6 de setembro e teve toda uma rotina. A gente não chegou lá só para a competição, porque era um jogo por dia, geralmente na parte da tarde, e aí a gente tinha períodos de treinos na parte da manhã. Tinha todo um ciclo. E a oportunidade de estar na China durante 21 dias não poderia passar em branco: ̶ Ficamos uma semana só aproveitando a cidade. Conhecemos alguns pontos turísticos, a Praça Celestial, as Muralhas da China. E também acompanhamos outras competições, como as de natação, esporte que também fez parte da minha história de atleta. A seleção brasileira de Goalboll ficou em décimo lugar. Mas isso não foi motivo de tristeza para Paulo; ele comemorou finalmente ter realizado seu sonho e também ter representado seu país. Para deixar marcado para o resto da vida sua ida aos jogos da China, fez uma tatuagem em seu braço direito: o símbolo das olímpiadas, as famosas argolas coloridas que representam a união dos cinco continentes através do esporte. Nos anos que se seguiram às Paraolimpíadas, ele não deixou de sonhar com o esporte. Continuou praticando e participando de competições estaduais e nacionais pela equipe de Florianópolis. Quando o questionam quantas medalhas já ganhou, ele suspira e diz “Ah, mais de cem!”. Ele também já perdeu as contas dos campeonatos que disputou e das medalhas têm em sua casa. Sua primeira medalha foi conquistada quando ainda era adolescente: prata na natação. Ainda nas piscinas, participou, em 2001, da Copa Brasileira de Natação no Rio de Janeiro. Também não deixa de contar que, antes de descobrir sua deficiência, ele surfava; o esporte, portanto, nasceu com ele, e, ao longo do tempo, foi se adaptando às suas condições. Um já não vive sem o outro; é um casamento perfeito. O atleta agora tem a consciência de que disputar outra Paraolímpiada é impossível, devido à idade. Porém, agradece todos os dias a oportunidade de

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realizar seu sonho mais caro. Agora, com a esposa Vanessa, deseja continuar a praticar esporte e ter uma vida feliz. Enquanto seu corpo permitir, vai jogar e ganhar mais medalhas. Os sonhos? Eles continuam grandes, e um dia vão se realizar, assim como todos os outros.

Foto: Giovanna Dutra

Nesta foto, Paulo mostra a tatuagem que fez em homenagem a sua ida às Paraolimpíadas. Sua mão, que tem uma aliança de casamento, segura sua camisa para mostrar o braço. A tatuagem é composta de argolas que simbolizam os cinco continentes, e logo abaixo está escrito Beijing, que significa Pequim em inglês e ao lado está tatuado o ano do evento, 2008

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Foto: Rafaela Bernardino

A imagem mostra uma calçada com piso tátil; do lado esquerdo da foto estão Gilmar, nosso entrevistado, e Júlio, que guia Gilmar durante as corridas. Eles aparecem de corpo inteiro, usam roupas adequadas à prática de esporte e estão andando de costas. Do lado direito está a rua, e ao fundo, há prédios e carros estacionados

Gilmar Por Rafaela Bernardino

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G

ilmar Silva Amaral tem atualmente 44 anos, e carrega consigo uma história para poucos ouvidos. Natural de São Luiz Gonzaga, cidade no noroeste do Rio Grande do Sul, depois de estabelecer-se em Florianópolis, em meados de 2000, nunca mais quis voltar ao interior. Formado em Pedagogia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), atualmente ele faz corridas com o seu guia boa pinta, Júlio. Os dois praticam o esporte nas manhãs de sextas nas redondezas da Trindade, em Florianópolis, e, entre meia corrida e outra, alcancei o gaúcho para uma entrevista. A cidade do gaúcho é conhecida como o território das missões, onde os jesuítas alfabetizaram os índios, ainda em 1687, pelo padre Miguel Fernandes. Foi lá, no meio de tantos católicos, que nasceu Gilmar Silva Amaral, em dezembro de 1971. São Luiz Gonzaga, que perde população anualmente para os centros urbanos, trouxe a Gilmar, há 14 anos longe do local, a chance de viver dias tranquilos e também difíceis. Em Florianópolis, melhor de vida em uma cidade cheia de belezas naturais (sim, ele pode senti-las, não precisa enxergá-las), o professor sente-se realizado e satisfeito com a vida profissional e pessoal. 1992: No ano do movimento caras pintadas e do impeachment do então presidente Fernando Collor, Gilmar tinha seus 22 anos de juventude e inquietação. Muito longe das situações políticas que tomavam as ruas de São Paulo e Rio de Janeiro, o jovem vivia no noroeste do Rio Grande do Sul com agitação. Sua cabeça, muito a frente de seu tempo, não aguentava concentrar as atenções apenas no ensino médio. Largou a escola no primeiro ano do segundo grau, em meados de 1988, e nos quatro anos seguintes dedicaria-se aos esportes e à conquista de seus suados cruzados para comprar a moto do ano. Gilmar gostava de festar com amigos, jogar bola nos finais de semana e andar de moto com a namorada pela cidade. Ele conta que tinha uma boa vida,

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e sempre fez questão de trabalhar (começou aos 12 anos). Depois de tirar a carteira de motorista, aos 18 anos, dirigia carros e motos. Na época, em 1992, o jovem curtia andar nas ruas da cidade com seu Escort. Em um dia chuvoso e nublado, e Gilmar andava em alta velocidade com seu Escort dentro de São Luiz Gonzaga. Sem cinto de segurança, ao fazer uma curva perigosa, o jovem perdeu o controle do veículo. O carro foi em direção a um poste e, com a falta do cinto, seu corpo foi arremessado em direção ao para-brisa, que se estilhaçou em sua face. Ali mesmo tudo apagou. Gilmar diz que ficou consciente durante todos os instantes, mas que do percurso do carro até o hospital já não enxergava mais. O acidente afetou suas córneas. O médico da pequena cidade gaúcha lhe deu quinze dias para que o local lesionado fosse desobstruído. Com a diminuição gradativa do inchaço, a esperança da visão retornar era grande. Os dias viraram meses. Anos. E nada aconteceu.

Reveja os dados: A lei que obriga o uso do cinto de segurança dentro das cidades existe há 17 anos, e, ainda hoje, na Grande Florianópolis, a cada 496 motoristas, 25%, ou seja, 100 deles, andam sem cinto, alegando trajeto curto*. Atualmente a infração é considerada grave, com cinco pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH), além de uma multa de 127 reais. A Legislação de Trânsito permitia, até 1997, que as pessoas circulassem dentro das cidades sem cinto; apenas nas rodovias federais o uso era obrigatório. Hoje, o item é considerado de segurança. Em 2009, por resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) foi decidido que até 2014 todos os veículos produzidos no Brasil teriam, obrigatoriamente, freios ABS e airbargs frontais como itens de segurança. * dados retirados do Jornal Diário Catarinense e da Revista Pense Carros.

A família, o seu alicerce - Se Gilmar tivesse que construir uma casa, a família seria o terreno fértil. Com quatro irmãos – um com 32 anos e três moçoilas, a mais nova com 25 anos –, ele nunca ficou sem respaldo para o que quissesse na vida. E o apoio nada tem a ver com superação e lições monumentais, e sim com o conforto necessário que era preciso naquele momento. – O que me colocou de pé novamente, além da fé que eu sempre tive, foi a minha família. O meu alicerce foi a minha família. Aquelas dores de cabeça - Sentimento de pena? Isto não existe no voca-

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bulário de Gilmar atualmente. E se você, leitor, está imaginando uma pessoa inativa, frágil e debilitada, esqueça. Gilmar é ágil, atlético, jovem e bem disposto. Algumas feridas, claro, demoram a cicatrizar. A namorada com quem mantinha três meses de relacionamento desistiu dele ao receber a notícia do acidente. Segundo Gilmar, a soma da pressão familiar com a imaturidade do relacionamento foi uma bomba-relógio para os dois. – O amor durou pouco; fiquei revoltado com tudo, era muito difícil, a pressão era grande e eu não tinha maturidade para compreender a atitude dela. Sem motivos de menos para condenar a moça, Gilmar conta que agora, com o dobro da idade, entende o quão complexa a situação podia parecer na época. – Ela deve ter passado um período muito difícil, até porque as pessoas questionavam se ela me largaria no momento em que eu mais precisava. Mesmo magoado, procurei entender sua atitude um tempo depois. A tempestade em sua caminhada, em 1992, deixou-lhe trovões. Além de perder a namorada, outras pessoas começaram a se distanciar. – No início eu tinha bastante amigos, mas depois, quando eles começaram a perceber que eu não voltaria a enxergar, quando caiu a ficha, foram me deixando aos poucos. A vida, tão controversa, deu a Gilmar um novo jeito de viver, que a princípio foi difícil de acostumar. – Lembro que ficava ao lado da minha casa, caminhando para lá e para cá, assim como estamos fazendo agora. Eu não sabia mais andar na rua. De vez em quando minha irmã passeava comigo, mas para mim os dias pareciam uma eternidade. Porque você imagina: sempre trabalhei, saí com os amigos e, de repente, tinha que ficar em casa, preso dentro de um espaço mínimo. Durante as idas e vindas pela rua de sua casa, ele pensanva em sua vida e nas possibilidades que tinha para sair daquela situação. Sua mente rodava soluções, mas a cidade pequena e preconceituosa não ajudava em sua recuperação. A população pequena conjecturava futuros incertos ao jovem. – Havia uma senhora de rua, cega, que pejorativamente todos chamavam de “ceguinha”. Ela pedia esmolas, e todos naquela época achavam que eu acabaria no mesmo rumo. Hoje, Gilmar ri da situação, mas o período havia sido duro para ele e a família. Morava com os pais e agarrava-se na busca por resultados. – Eu não sabia por onde procurar, não tinha conhecimento algum, só queria encontrar um lugar para sair de onde estava. Todos diziam que eu ficaria para sempre sendo cuidado pelos meus pais, e essa era a última coisa que eu queria. 1994: Dois anos após o acidente, já com 24 anos, o jovem colocou, literalmente, a mochila nas costas. Junto com seus pais, viajou por Curitiba e Porto

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Alegre à procura de tratamento para a cegueira. Chegou a fazer dois transplantes de córnea e voltou a enxergar 10% de sua capacidade, a chamada baixa visão. Porém, os dois tratamentos falharam meses após as cirurgias, e novamente Gilmar voltou ao quadro clínico inicial. A depressão surgiu em pequenos sintomas como, por exemplo, a falta de vontade para atividades cotidianas. – Eu ficava trancado no meu quarto, com as janelas fechadas e as luzes apagadas, não queria fazer nada. Mas o baixo astral não durou muito, pois no mesmo ano o jovem resolveu morar em Porto Alegre e aprender a lidar com a nova condição. – Comecei a me preparar para a minha reabilitação quando entendi que a visão estava em segundo plano; eu precisava recuperar a minha autonomia. Para isso, Gilmar voltou a estudar e seu desafio era completar o ensino médio, se quisesse prestar vestibular. A vontade de voltar a enxergar foi trocada pelo desejo de liberdade. – Eu queria me estabilizar, e pra isso precisava estudar, precisava entender a realidade das pessoas cegas. Além disso, precisava aprender também a me locomover com a bengala e até aprender atividades da vida diária (AVD), como Foto: Rafaela Bernardino

Nesta foto, Júlio, está à esquerda, fazendo sinal de positivo ao lado de Gilmar. Os dois estão na frente de uma faixa de pedestres, e sorriem

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lavar uma roupa, cozinhar, amarrar um tênis e fazer a barba. O outro lado - Bem como dito no início do texto, São Luiz Gonzaga é uma cidade bastante católica e com famílias tradicionais na região. Como a curiosidade vem à tona, obrigo-me a questioná-lo sobre religião. Ele me explica: é batizado, fez crisma e catequese, mas tem perfil espírita. – Foi onde encontrei maiores explicações. Começou a prestar uma atenção especial a seu lado religioso após o acidente. – Quando você tem um problema como o meu, não enxergar, é como um ímã: todos que aparecem perto de você é para levar ao milagre, à salvação. No entanto, seu encontro com o lado espiritual surgiu quando um amigo o convidou para frequentar a igreja de Allan Kardec, o chamado kardecismo. A chegada da música foi uma consequência natural em sua vida. – O primeiro presente de um cego é um violão, porque as pessoas fazem essa associação de que cegos são bons músicos, mas uma coisa nada tem a ver com outra. A única vantagem de um cego é o tempo disponível, pois a musicalidade e afinação são dons. Seus outros sentidos foram se aprimorando com o tempo, mas não se potencializaram, como a maioria das pessoas imagina. – Você, por exemplo, se baseia muito na visão; já eu preciso me referenciar com os outros sentidos. É possível treinar com venda nos olhos para aprender a utilizá-los, mas nada se amplia. São só tecnicamente mais trabalhados. Contextualizando Allan Kardec foi um grande filósofo e escritor, conhecido como o codificador do espiritismo ou da doutrina espírita. Pode-se até mesmo traçar uma semelhança entre Gilmar e Allan. Allan também nasceu em uma família católica e, ao se tornar adulto, virou pedagogo e espírita. Em seu túmulo, em Paris, no Cemitério do Père-Lachaise, a lápide traz os dizeres “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei”, filosofia que se aproxima do que Gilmar acredita.

Os sentimentos - Enquanto perambulamos em frente a um parque, peço a Gilmar que descreva o que passou em sua mente durante os anos de aceitação e reestruturação. Sem pesar, o gaúcho respira fundo: – Eu pensava, desesperado: “meu Deus, como ficarei 15 dias sem enxergar?”. Eu não imaginava que tudo acabaria assim. O ser humano tem uma capacidade imensa de tirar forças de dentro de si. Você pode pensar hoje que não suportaria ficar sem ver, mas isso porque nunca passou por tal situação. Gilmar ainda lembra do que sentiu dias depois. – Um sentimento de morte, não há como explicar. A vida perdeu a graça, e

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de certa forma aquele Gilmar morreu mesmo. Então nasceu outro Gilmar, com uma outra visão de mundo. Eu amadureci muito; gostaria de ter essa cabeça de hoje, mas enxergando. O pedagogo ainda não desistiu de enxergar. – Eu não me conformo e nunca vou me conformar. Eu gostaria de enxergar, eu quero, na verdade. Mas a minha realidade é essa, e eu preciso viver da melhor forma possível. Enxergar não é mais prioridade. Nos aproximamos de uma poça, mas, ao tentar avisá-lo para desviar dela, com minha pouca ou escassa habilidade de indicar direções, ele acaba acertando-a em cheio e cortamos a conversa. Retomando o caminho e a entrevista, e Gilmar conta como foi o retorno aos estudos. – O meu objetivo era ir a Porto Alegre estudar, mas, alguns dias antes de ir embora, duas professores foram até a minha casa me convidar para estrear a recém-aberta sala de recursos, um local onde eles ensinavam Braile. Até então não fazia ideia de como ler. Gilmar permaneceu em São Luiz Gonzaga até o final dos anos 1990. Aprendeu Braile e terminou o ensino médio. Era a hora de partir para o vestibular, e a escolha por uma cidade próximo a sua, mas com melhores possibilidades de ascensão profissional, ajudou o gaúcho a dar um passo significante em sua carreira. – Tentei Direito e Pedagogia, mas não consegui passar no curso de Direito porque minha redação era terrível. Passei em Pedagogia na Unijuí, então fui morar na chamada Casa do Estudante, em Ujuí. Nesse momento ele para de andar, vira-se para mim e pergunta: – Onde estamos indo? Digo que estamos dando uma volta, e ele, e ele, preocupado, esclarece que “não podemos nos afastar muito”. É que seu guia Júlio irá chegar a qualquer momento. Retomando a conversa, o gaúcho conta que veio a Santa Catarina por uma coincidência. – Vim para passar oito meses e desenvolver novas habilidades para poder me virar sozinho. Aqui aprendi a andar com uma bengala, pois existe uma técnica, e durante anos usei-a errado. – Conta, às gargalhadas. Durante o período, o gaúcho afirma ter se deparado com um universo de possibilidades, que foram decisivas para a escolha de permanecer na cidade. O esporte foi o elo que mais o uniu ao Estado. – Aqui encontrei o melhor do esporte; fiz programas sociais na Universidade Federal de Santa Catarina, fiz atletismo, natação, futebol, tudo que você pode imaginar. Ele já participou de três maratonas, duas em 2012 e 2013 em Florianopólis, de 42 quilômetros, e outra em Urubici, na região serrana do Estado.

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Dificuldade na Ilha - Elogiei sua coragem em vir com uma mão na frente e outra atrás, literalmente às cegas, e arriscar seu futuro em uma capital que nunca havia estado na vida. Gilmar até fica sem graça, e, meio sorrindo, diz um “então” bem longo, e aparentemente agradecido. – Então, é isso que eu digo; sempre tive essa força dentro de mim e a minha família me apoiou em tudo, eu me orgulho. Dentro das dificuldades mais eminentes, Gilmar destaca a péssima mobilidade urbana (em todos os sentidos) de Florianópolis, principalmente a da região central. – Andar no Centro de Florianópolis foi muito difícil para mim e ainda hoje acho complicado; eu consigo, mas com bastante cautela. Nesse momento eu dou risada e digo que mesmo enxergando tenho sérios receios em relação à locomoção. Pergunto o que o deixa mais saudosista quando lembra da visão, e, apesar de não ver seus olhos (pois Gilmar usa óculos escuros), posso perceber em seu suspiro um ar melancólico. – Puxa, agora você me fez uma pergunta profunda. A resposta me pega desprevenida, principalmente pelo fato de nunca ter passado tal situação em minha mente.

“Eu gostaria de enxergar, eu quero, na verdade. Mas a minha realidade é essa, e eu preciso viver da melhor forma possível. Enxergar não é mais prioridade”.

– Tenho uma esposa deficiente visual e essa dependência é ruim; têm lugares em que não dá para conversar, é difícil. Por exemplo, não dá para ir em uma praia sozinho com ela, pois não sabemos se estamos sozinhos ou não. E a falta de mobilidade na cidade piora ainda mais. Apesar dos percalços, que inevitavelmente Gilmar encara, sua maior saudade é poder andar de moto. – Eu sou apaixonado por moto. Eu sonhava constantemente que estava andando, mas procuro não pensar mais nisso.

têm dificuldades em português, Gilmar tem com o Braile, e digamos que não é sua “disciplina” favorita, – Não tenho tanta habilidade em ler Braile quanto uma pessoa que já nasceu cega. Uma leitura rápida não consigo fazer, mas com calma, leio até o fim – Diz, aos risos. Questiono o que passa pela mente quando caminha por determinado local, como fazemos nesse instante. A intenção é captar onde ele imagina estar pisando. – Quando estou correndo com meu guia e quando quero saber sobre o local, ou pergunto ou ele o descreve naturalmente. Eu elaboro o espaço em minha mente. Como tenho uma memória visual, consigo imaginar algumas coisas melhor do que alguém que nunca enxergou. É óbvia a confrontação da situação de Gilmar com a de uma pessoa nascida com cegueira, e, apesar da infeliz comparação, o gaúcho diz ser comum ouvir isso de quem descobre sua história. –Tudo na vida tem seus prós e contras. A pessoa está ali com sua deficiência; ela aprendeu com ela. Eu já sei lidar com a minha e não gostaria de ser um cadeirante, por exemplo. Mas felicidade plena não existe; a insatisfação é o que faz a pessoa ir adiante e querer sempre mais e melhor. Não tive a chance de dizer-lhe, mas Gilmar, sem ver, carrega dentro de si seu antigo e fiel amigo de 22 anos, que continua lá, na espreita. Percebi ao ligar pela primeira vez; ao ouvir sua voz, tive a certeza de que se tratava de um jovem rapaz. Ligando vários dias seguidos para conversar sobre local e hora adequados para encontrá-lo, deparei-me até com gírias e expressões que minha idade alcança. Quando o encontrei, com uma camisa bem chamativa, esportivamente vestido, percebi se tratar de um cara de quarenta anos, ostentando a mesma alma de 22 anos atrás.Quando encerramos o papo, Júlio, seu guia das corridas de sextas, chega para começar a atividade. Perdida, peço para mostrarem como sair de carro por ali, e é Gilmar quem me indica o caminho.

Não sou obrigado- Para quem imagina que todo cego tem fluência no Braile: não é bem assim que anda a carruagem. O Gilmar, por exemplo, viveu durante seis anos sem dominar a técnica. Buscou auxílio, pois para concluir suas provas e avançar nos estudos, era necessário. No entanto, assim como alguns

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Foto: Kate Caldas

Rosângela Por Kate Caldas Rosângela contou sua história sentada na sala de seu apartamento. Ela aparece de lado, da cintura pra cima; olha para frente e sorri

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noite de quinta-feira estava agradável para uma conversa. Soprava uma brisa cada hora mais fria, deixando o calor do dia para trás. Desembarquei do ônibus e caminhei alguns metros, cumprindo as indicações que tinha recebido ao telefone. Virei na rua à direita antes da ponte e segui pela calçada, relembrando a orientação que havia recebido. - O número 88 fica em frente ao poste pintado de branco. Você vai identificar, é a única parte que tem calçada-guia. E assim foi. Logo avistei o poste, pintado da metade para baixo de branco, e a calçada ainda novinha, com seus relevos e desenhos característicos para quem precisa se guiar por ela. Cheguei ao número 88. Depois de uma sequência de blocos de prédios de dois andares apenas, parei em frente do portão baixo, de metal, instalado em um muro branco. Poucas luzes estavam acesas e minha missão era achar o apartamento cinco. Abri o trinco, entrei e, em uma rápida olhada, não identifiquei meu destino. Talvez pela ansiedade, resolvi pedir informação, em vez de explorar um pouco mais o lugar. Passei pelo portão novamente. – Com licença, boa noite, o senhor sabe me informar onde é o apartamento cinco? – Perguntei ao morador que esquentava algo no microondas e estava na janela da cozinha, de frente para a rua. – Com quem você quer falar? – Com a Rosângela. – Uma magrinha, de cabelos compridos? – Não sei dizer; eu estou procurando por ela, preciso fazer uma entrevista. – Se for ela, você sobe as escadas. O número cinco é esse aqui em cima. – Falou-me, apontando para um apartamento, aparentemente, com as luzes apagadas. – Tudo bem, vou bater ali. Obrigada! Abri novamente um portão e fui em direção à escada, que estava ao lado esquerdo do corredor aberto e largo, iluminado apenas pelos feixes de luz

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oriundos dos apartamentos do térreo. Subi o lance seguinte, virado para a direita, e no topo cheguei ao número oito. Virei de costas; ali estava o apartamento que procurava. E, antes de bater na porta, peguei-me pensando: por que morar no segundo andar? Subir as escadas não seria mais um obstáculo? Bati três vezes e, em poucos segundos, ouvi o barulho das chaves virando. A porta se abriu e ali estava Rosângela, magrinha, os cabelos pretos logo abaixo dos ombros, vestindo uma camiseta azul e uma calça jeans; nos pés, um par de tênis. Ela me recepcionou com a mesma voz calma que conheci ao telefone e me convidou para entrar. A televisão estava ligada e passava um telejornal nacional. À esquerda, logo que entrei, havia dois sofás floridos, um ao lado do outro. Ao lado, formando um “L”, havia um outro maior, marrom escuro. Rosângela me convidou para sentar, foi até a TV, desligou o aparelho, voltou e sentou no sofá maior. Na sala não havia mesa de centro, tapetes ou móveis no meio do caminho. A passagem era livre e ela fez o trajeto tranquilamente, com movimentos de quem conhece muito bem o espaço, cuidadosamente decorado, nos dois sentidos da palavra. Um corredor, que começava ao lado do sofá maior, levava para outros cômodos, de onde ouvi a presença de mais alguém. Logo a minha frente estava a cozinha, mas eu enxergava apenas um pedaço dela. O ambiente era amplo, quase integrado à sala. As paredes eram brancas - até onde eu conseguia perceber - e o piso também, com as linhas de rejunte mais escuras. Na parede do corredor, algumas fotos devidamente emolduradas mostravam-me que Rosângela havia se formado. Sentei-me e percebi que não sabia ainda qual pergunta deveria fazer primeiro. Ela sempre me atendeu com muita receptividade, desde a primeira ligação. Com uma voz tranquila, combinou o melhor dia para a entrevista e senti boa vontade em me ajudar. Eu poderia perguntar como ela perdeu a visão. Se nasceu assim. Ou só pediria para me contar sua história. Olhei para ela por alguns segundos enquanto ajeitava o celular e conversava sobre o tempo, dizendo como estava esfriando, e ela arrumava os cabelos. Rosângela estava virada para mim, encostada no sofá, com um sorriso meio tímido. Eu sabia que ouviria em seguida uma história muito interessante. Ajeitei-me na poltrona, avisei que já estava gravando e pedi para que ela me contasse sobre a sua infância. Rosângela Castro, 34 anos, nasceu com uma deficiência visual, assim como quatro de seus irmãos – seus pais tiveram sete filhos, dos quais seis são meninas e apenas um é menino. Até os nove anos, ela ainda enxergava alguns vultos, mas não identificava cores. Brincava com sua irmã mais nova e não frequentava a escola. A infância em Porto União, norte de Santa Catarina, foi de poucas descobertas. Rosângela acredita que essa deficiência seja hereditária, da família da mãe, mas nunca descobriram a origem de fato. Ainda não sei se ela estava ou não à vontade em me contar a sua vida. Rosângela me pediu para ir perguntando, porque não sabia exatamente o que ou como deveria contar. Sua voz ia ficando mais baixa à medida que finalizava alguma

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parte da história. Às vezes ela parava e continuava. Mas não senti, em nenhum momento, que ela não queria falar sobre a sua vida. Acredito que era só a sua timidez, mais evidente do que qualquer outra característica. Eu imaginava que ela me contaria muitos dos obstáculos que enfrentou, ou as dificuldades em se adaptar à cidade, ou, ainda, o que precisou deixar de fazer. Mas, na verdade, essas eram questões que estavam na minha cabeça, mas nunca em sua vida. Lembrei então de quando me deparei com as escadas até o segundo andar. Eu é que pensei em como seria difícil descer todos os dias aqueles degraus. Na verdade, é apenas uma escada que leva até o apartamento onde Rosângela mora há nove anos. Então, os obstáculos, eu entendi, eram coisas da minha cabeça. Em sua vida só havia espaço para realizações. Entre uma ajeitada de cabelo, uma mudança na posição e uma cruzada de mãos, Rosângela me contou que soube pela primeira vez da ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego), localizada em Florianópolis, aos 12 anos, quando esteve em uma palestra em Canoinhas, cidade vizinha de Porto União, e o então presidente da associação estava lá. Antes disso, seu primeiro contato com o Braile se deu a partir funcionária da Prefeitura de Porto União, que ia às quartas-feiras na sua casa. Mas não teve tempo de se alfabetizar. Apenas aos 15 anos ela conseguiu se mudar para o centro de hospedagem da ACIC junto com outros três irmãos. Atualmente ela não enxerga nada, não percebe claridades e nem vultos. Assim que chegou à ACIC, teve aulas de orientação e mobilidade, aprendendo técnicas de uso da bengala e a se locomover no bairro e no centro da cidade. Assim, foi se adaptando ao novo lugar. – Por conta de eu não ter nascido na cidade, acho que aprendi rápido e de maneira tranquila. Rosângela começou no meio da adolescência um processo que geralmente se inicia ainda nos primeiros anos de vida. Na ACIC, ela se alfabetizou por meio do Braile e aprendeu, inclusive, a escrita cursiva, para poder assinar seu próprio nome. Deu sequência a todas as etapas dos estudos, engatando um aprendizado no outro e se propondo, inclusive, alguns desafios. Ela fez o supletivo por meio de uma indicação da própria associação, aprendendo as disciplinas básicas e concluindo o ensino fundamental. O desafio veio no ensino médio. – Era um sonho meu ver como funcionava um colégio normal. Consegui uma vaga no Instituto Estadual de Educação e cursei os três anos do ensino médio lá. Terminei essa etapa com 25 anos, na turma dos adolescentes. Para conseguir acompanhar as aulas, Rosângela tinha que se esforçar mais do que seus colegas. Ela tirava cópia das matérias que os professores passavam em sala, comprava fita cassete e pedia para alguém gravar o áudio do conteúdo. Alguns dos materiais eram passados para o método Braile por uma instituição da Prefeitura.

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– Quase desisti no primeiro ano, porque achei que não ia dar conta. Mas depois resolvi continuar. Com 25 anos, Rosângela estava formada no ensino médio. Mérito de todo o seu empenho. Durante o tempo em que me contou sua história, tinha um semblante tranquilo e bastaram alguns minutos de conversa para perceber que esse é o tom que ela usa mesmo. Sua voz é suave. E Rosângela me explicou todos esses detalhes da sua vida sempre com um sorriso no rosto. Um ano depois de concluir aquela etapa dos estudos, inspirou-se no trabalho das assistentes sociais da ACIC para escolher a faculdade que cursaria. Antes do 30 anos, Rosângela estava formada em Serviço Social, pela Universidade do Sul de Santa Catarina. – No início me assustei um pouco, porque fiz o curso regular. Sou bastante tímida, não gosto de falar em público, então para apresentar o primeiro trabalho foi bem difícil. Cheguei a pensar que não era pra mim. Mas consegui superar isso, eu não podia ser covarde, né? A formatura, ocorrida em 2010, estava retratada nas fotos penduradas na parede, ao lado de alguns outros retratos - que observei quando me sentava na poltrona, antes de iniciarmos a conversa. Ela não começou a trabalhar na área assim que concluiu o curso de Serviço Social. Quando ainda estava no processo de habilitação na Acic, fez alguns cursos profissionalizantes. Em um deles foi auxiliar de radiologia e, no outro, telefonista, função que exerceu como estagiária na própria ACIC. Depois disso, Rosângela vendeu cartão telefônico nas ruas do centro de Florianópolis. – Trabalhei um pouco mais de um ano com isso, mas não gostava muito. Rosângela teve outras experiências profissionais e me contou pacientemente cada uma delas, até mencionar o Conselho Municipal de Assistência Social, onde trabalha atualmente como secretária executiva. A voz calma permaneceu inalterada durante a quase uma hora em que estive no seu apartamento ouvindo sua história, que foi interrompida apenas por um momento, quando o celular tocou. Após atender a ligação e passar o aparelho para alguém que estava em um dos cômodos no final do corredor, Rosângela retornou ao sofá. A conversa durou ainda mais alguns minutos e certamente a trajetória da sua vida encheria muito mais que algumas páginas de um livro. A paciência do seu timbre de voz, percebi, é uma característica da sua personalidade. Se existe uma limitação em um dos sentidos vitais, isso foi compensado com a paciência de construir passo a passo a sua história e conquistar a cada dia algo novo. Sem pressa. Como se a correria dos dias não atingisse em nenhum momento seus objetivos e ela soubesse, claramente, que iria alcançar cada um deles. Casada há nove anos com Gil – o homem que atendeu a ligação no meio da conversa – morando no apartamento cinco do número 88 há nove, a vida de Rosângela tem os obstáculos que a cidade impôs, mas não tem limites. Porque o coração não distingue barreiras e distância.

Os caminhos do coração

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Foto: Leonardo Contin da Costa

Maristela Por Leonardo Contin

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Maristela está em sua sala na ACIC. Ela está sentada em sua mesa, que aparece de lado nesta imagem, e usa o mouse para ler livros pelo computador. Ao seu lado direito há uma mesa com apostilas e um calendário, e à esquerda localiza-se uma janela de onde se avistam árvores

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A menina que enxergava longe

Q

uando cheguei na ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego), em Florianópolis, esperava encontrar uma pessoa tímida, que não me revelaria muito de sua vida. Foi essa a impressão que tive ao telefone, ao agendar a entrevista. Tinha convicção, também, que Maristela Bianchi, minha entrevistada, não enxergava absolutamente nada. Foi com surpresa que, ao estender a mão para cumprimentá-la, percebi que rapidamente ela respondeu à saudação. Nos dirigimos para sua sala nos fundos do prédio e ela, sempre de óculos escuros e sem bengala, não aceitou em momento algum ajuda para percorrer o caminho. Pensei que havia decorado a quantidade de passos à esquerda e à direita para ir da secretaria da instituição, onde a encontrei, até sua sala de trabalho. Tive vergonha de perguntar se enxergava alguma coisa; pensei que poderia ser indiscreto ou deixá-la constrangida de alguma forma. Maristela logo mataria minha curiosidade. Revelou que um de seus sonhos é reconhecer as pessoas nas ruas e poder cumprimentá-las, chamando-as pelos nomes. Contou que, caminhando, muitas vezes passa por amigos e parentes e não os reconhece: – Um dia desses vi uma moça se aproximando. Ela vinha toda feliz me cumprimentar, mas só reconheci que era minha filha quando chegou a aproximadamente um metro de distância. Ela consegue enxergar as pessoas, mas não diferencia cor dos olhos ou detalhes da face, como pintas, por exemplo. Maristela tem apenas dez por cento da visão e é albina – algo que eu não havia reparado. Em sua família, o albinismo (que geralmente é acompanhado de cegueira parcial ou total) é uma característica genética. Um de seus irmãos também é albino e tem a visão comprometida. Nascida no bairro Santo Antônio de Lisboa, em Florianópolis, ela revela que teve uma infância comum e foi criada da mesma forma que seus outros cinco irmãos. Não se dava conta de que era diferente das outras crianças. Adorava

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ir para a escola: – Tínhamos sempre a mesma turma no primário; éramos todos muito amigos e os professores e colegas sempre me ajudavam a anotar os conteúdos do quadro negro. Ela também cultivou desde cedo o hábito da leitura. – Naquela época existia o carro-biblioteca, que passava pelos bairros periodicamente. Sempre pegava um livro e, na semana seguinte, trocava por outro. Certa vez, um de seus irmãos achou um caco de vidro grosso na beira da praia e o trouxe para casa: – Percebi que era um ótimo instrumento para aumentar as letras dos livros. Minha mãe não gostava que eu usasse aquele caco de vidro, mas sempre que ela saía para trabalhar, meu irmão me chantageava: se eu fizesse algo em troca, ele me emprestava aquele caco. Mais tarde ela descobriu outros instrumentos para facilitar a leitura: – Aqueles “binoclinhos” de fotografias vendidas nos circos, os monóculos, aumentavam as letras. Depois, enchi tanto a paciência da minha mãe para conseguir uma lupa, que fomos numa ótica e compramos uma, mesmo sem receita do oftalmologista. Em outra ocasião, assisti ao Silvio Santos carregar no bolso uns óculos, em vez de apoiá-los nas orelhas. Vi que se eu fizesse algo parecido, poderia usar sem vergonha. Fui na ótica, pedi para retirar o aro dos meus e pendurei-os numa correntinha de ouro. Ninguém percebia que eu usava aqueles óculos de forma diferente, como uma lente de aumento. Diversos oftalmologistas acompanharam Maristela. Um deles, durante a adolescência, aconselhou-a a desistir dos estudos, pois não chegaria muito longe, já que apresentava sérias dificuldades para ler: “Ele disse que deveríamos procurar uma escola para pessoas cegas e não para as normais. Minha mãe saiu chorando do consultório”. Era um momento difícil; havia trocado a escola em Santo Antônio de Lisboa pelo Instituto Estadual de Educação, no centro da cidade, perdendo a referência dos amigos e professores que sempre a acompanharam desde pequena: – No Instituto as turmas eram grandes e mudavam todos os anos. Eu era tímida, tinha vergonha de usar a lupa na frente dos colegas. Teve uma época em que deixei o cabelo bem comprido para utilizá-la por baixo, enquanto lia e escrevia. Não queria que ninguém me visse usando aquilo. A desmotivação para os estudos chegou a fazer com que ela reprovasse em virtude do excesso de faltas: “Cheguei a ter apenas 25% de comparecimento nas aulas em determinado ano”. A afirmação do médico, de que Maristela não deveria investir muito nos estudos, serviu-lhe, ao contrário, como uma mola propulsora: – Ele me desafiou porque não acreditava em mim. Ele me provocou, me deixou tão irritada! A partir daquele momento, coloquei na cabeça que iria me formar em Pedagogia e, um dia, levaria meu diploma até ele para mostrar-lhe que era possível concluir meus estudos.

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E foi na preparação para o curso de Pedagogia, desafiando a afirmação do médico, que Maristela conheceu seu marido, aos 20 anos. Hoje, aos 45, tem três filhos com ele, nenhum com deficiência visual. Quando ainda cursava Pedagogia, conheceu a ACIC através de uma oftalmologista que lhe indicou que ali poderia comprar lupas para leitura com preços muito abaixo dos de custo. Ainda na faculdade, Maristela trabalhou como auxiliar de sala em uma creche, mas não se adaptou com facilidade. – Não gostei porque era muita informação visual. Assim, quando se formou, percebeu que tinha vocação para lidar com educação de deficientes visuais. Retornou à ACIC, primeiramente como aluna, em 1996, quando aprendeu o Braile, teve contato com o soroban, instrumento utilizado para cálculo, além de trabalhar com artes. No ano seguinte, passou a ensinar aquilo que havia aprendido na Associação. Mais tarde, atuou como coordenadora pedagógica, vice-presidente da ACIC e, atualmente, ocupa a função de gerente técnica da instituição: – Hoje eu gerencio o setor de atendimentos a pessoas com deficiência visual. Temos aqui dois centros de atendimento; um infantil, para crianças de 0 a 10 anos, e o CRPC (Centro de Reabilitação e Profissionalização e Convivência), para pessoas a partir dos 11 anos até a terceira idade. No CRPC, há uma coordenação pedagógica para o programa de habilitação e reabilitação e outra coordenação para a profissionalização. Ela narra que a ACIC surgiu em 1977 e, inicialmente, somente atendia a pessoas com cegueira. Hoje recebe também quem tem baixa visão.

revela que procura olhar para o chão, na tentativa de desviar de obstáculos, e seguir os passos dos que estão na sua frente: – Nisso de seguir as pessoas e cuidar com os desníveis nas calçadas, acabo sempre olhando para baixo. Para atravessar a rua, confio em quem está a minha frente. Se algum dia essa pessoa for atropelada, serei atropelada junto. – Revela, dando risada. E a minha timidez inicial em lhe fazer questionamentos sobre sua vida e sua dificuldade de visão, nesse momento, já havia caído por terra. A vontade, naquele instante, era passar o resto do dia conversando com Maristela.

“Teve uma época em que deixei o cabelo bem comprido para utilizá-lo por baixo, enquanto lia e escrevia. Não queria que ninguém me visse usando aquilo”

– Mensalmente passam por aqui em torno de 200 pessoas. Algumas frequentam a ACIC diariamente, outras apenas vêm em busca de algum encaminhamento de assistência social ou de psicologia. O sonho de Maristela em reconhecer as pessoas na rua me foi revelado bem ao fim da entrevista, quando questionei como fazia para ir e voltar do trabalho de ônibus. Por ter baixa visão, imaginei que seria difícil descobrir qual linha de ônibus pegar e, também, atravessar a rua. Ela respondeu que geralmente os motoristas são sempre os mesmos nos horários em que vai e volta do trabalho; como já a conhecem, param no ponto para que ela embarque ou desembarque. Contudo, para andar nas calçadas e atravessar a rua, Maristela

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Foto: Adilson Costa

Maurício Por Adilson Costa

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Maurício está sentado em uma mesa de cozinha, voltado para a câmera e de lado para a mesa; usa óculos escuros e uma camisa preta de risca de giz

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–L

evantei, coloquei os pés no chão e me dirigi até a cozinha. Deixei a água do café esquentando e fui tomar um banho. Como nos outros dias da semana, Maurício pôs-se a postos para contribuir com o café da manhã que tomaria em breve com seus companheiros de apartamento, Leonardo Apolinário e Renam Dal Ponte. Eles moram e trabalham juntos, por isso acordam simultânea e rigorosamente às cinco e quarenta e cinco da manhã. – Depois do banho servi as três xícaras e comi o misto quente que o Leonardo havia preparado. Acordar cedo, tomar café e se arrumar antes de sair de casa são práticas que Maurício Sá Pereira aprendeu com Marion Sá, a quem ele adjetiva de guerreira, forte, cuidadosa, preocupada, mãe. Marion tinha 24 anos e estava grávida de seu primeiro filho, morava numa cidade pequena, São João Batista, no interior de Santa Catarina. Do primeiro ao sexto mês teve uma gravidez normal, até que complicações a fizeram entrar em trabalho de parto prematuro e complicado. Em 1990 o primogênito ansioso nascia três meses antes do prazo. – Contam que quando cheguei minha mãe fez uma rifa e mobilizou a família toda. Até hoje preservo o que Dona Marion me ensinou, essa vontade de querer ser mais e maior e não desistir. Depois de tomar o café, os três moradores do Estreito – parte continental de Florianópolis – caminham até o ponto de ônibus e sobem no Corredor Continente. Como repetem o mesmo caminho e estão rigorosamente no mesmo horário esperando pelo mesmo ônibus, o motorista é quem os reconhece e os convida para subir. Depois de dez minutos de prosa até o Terminal, deslocam-se à plataforma A e sobem no segundo coletivo: Terminal da Trindade Direto. A segunda condução os leva ao segundo terminal. Lá pegam o SC Retorno, que começa a viagem uma hora depois de terem pegado a primeira condução.

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De fala pausada e didática, o jovem de 23 anos só revela o jeito travesso quando conta da infância. – Minha mãe ficava doida comigo! Maurício tinha uma Caloi bordô, com o banco amarelo. – Eu tinha uns oito ou nove anos e ela, seis marchas. Eu andava como um louco naquela bicicleta. Marion ficava mais preocupada ainda com as brincadeiras da infância do menino levado. – Esconde, Esconde... Pega, Pega. Nunca deixei de brincar”. Mesmo ouvindo os gritos de sua mãe clamando por responsabilidade e cuidado, nada lhe tirava a sagacidade. Maurício corria, se escondia, e tinha vários amigos. – Nós morávamos de aluguel, então morei em muitas casas diferentes e, por isso, tive muitos amigos. Muitos amigos. Com um deles aprendeu a tocar violão; virou fã do Legião Urbana. Nininho era o apelido de seu companheiro de música. O rapaz, que estudava na mesma escola, tocava na banda de rock mais famosa do colégio e levava Maurício aos ensaios na garupa da motocicleta. – Minha mãe não gostava muito dele, mas nessa época eu era revoltado. Precisava ser aceito e não queria deixar de fazer nada. Aos quinze anos já contabilizava diversos óculos. Uma vez bateu contra um varal; outra, não percebeu um caminhão parado. Ele tinha que aumentar seu grau a cada ano.

“Foi difícil pra minha mãe quando eu saí de casa. Ela queria que eu ficasse por perto, mas não dava. Tinha que viver minha vida, querer minhas coisas, andar com minhas próprias pernas”

– Até que preferi não usar mais por uma questão estética, e porque já não me serviam mais. Os catorze graus das lentes corretoras não alteravam mais a percepção do rapaz, que só enxergava vultos, cores e sombras. Maurício recebia de si mesmo o diagnóstico de cegueira. Assim, começou a perceber o mundo de outro jeito, sentir o cheiro das coisas, tocar para saber a forma e a ouvir. – Meu primeiro aniversário eu passei nos Estados Unidos. Imagina minha mãe nova, nem trinta anos tinha e teve que cuidar de um filho que nasceu com as retinas dos dois olhos descoladas. A cirurgia era caríssima e por isso

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a rifa – a família toda, todo mundo se mobilizou pra conseguir pagar. Era muito dinheiro e minha mãe não tinha. O procedimento era tão delicado que não havia estrutura para realizá-lo no Brasil, e o prazo de Maurício estava se esgotando; após completar o primeiro ano de vida, a má formação dos olhos seria irreversível. Depois da cirurgia, o olho esquerdo via trinta por centro, e o direito, menos que cinco. A tendência era que, com o passar dos anos, a visão diminuísse ainda mais. Hoje, ele é professor da ACIC (Associação Catarinense de Integração do Cego) ensina aos alunos informática básica e digitação. E esse é o destino do último ônibus, ACIC, trabalho. – Foi bom vir pra cá e encontrar meus pares. A sala, com seis computadores e espaço livre para circulação é, além do nosso ponto de encontro, o local de trabalho dele. Puxo uma cadeira desocupada, preta, daquelas que geralmente se vê nas salas de aula de informática. Na mesa maior, a do professor, não há caneta nem papel, somente alguns livros e um laptop branco com luzes azuis. A sala quadrada é preenchida por fileiras de três computadores nas paredes laterais e uma mesa maior na parede do fundo. Entre Maurício e eu há um laptop; atrás dele, a janela; do lado de fora, árvores retorcidas, caules finos e escuros, típicos de manguezais. – Eu prefiro sair na rua com dia assim, nublado – o sol irrita os olhos. Chovia bastante e o cheiro de terra molhada acusava a preservação de uma área grande de vegetação intacta nas proximidades. A cada dez palavras, um sinal novo do computador portátil. Palavras rápidas recitadas por uma voz eletrônica que eu não entendia. Maurício pedia desculpas, soltava um sorriso de canto de boca e digitava rapidamente. – O segredo para a digitação é a posição da mão. O professor explica que colocar os indicadores nas saliências nas teclas J e F é a única maneira para quem não enxerga usar o computador. A voz falante apressada vem do programa leitor de telas, usado para converter em áudio tudo o que o visor da máquina mostra. – Dessa forma não tem nada que impeça o cego de usar a internet. Alguns minutos depois e algo mais audível e incisivo interrompe nossa conversa. – Acho que é o Marcão. Um negro traz em cada mão um bastão de Hoover. Marcão também não volta seu olhar a ele, e parece localizar Maurício através do tato. – Olha aqui, Marcão, minha ponteira caiu. Eu nem percebi. – Desta aqui eu troquei a canaleta e a ponteira. – Ficou melhor, né? Depois de conversarem no vão da porta, os dois se despedem e retornamos à conversa. – Ele é da manutenção de bengalas, essa aqui ficou mais alta com a ponteira nova. Sons emitidos pelo alto-falante do notebook indicam a interação de seus

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amigos em de uma rede social. Sim, ele está online e se relaciona com sua rede de amigos. – Até já conheci uma namorada pela internet. Minha mãe a conheceu e aprovou, mas não estamos mais juntos. As relações interpessoais do professor nas redes sociais também abrangem o grupo de viajantes, que combinam pelas páginas as próximas cidades a serem visitadas. – É muito legal viajar, conhecer lugares novos, novos amigos. Maurício conta que se diverte em bares, mas não gosta de balada por causa do barulho. Diz que pretende continuar acordando cedo e revezando com os amigos as incumbências do café da manhã antes de vir para a ACIC, pelo menos até o fim da licenciatura em Informática que cursa na Unisul. Ele deseja, ambiciosamente, ser maior a cada dia.

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Foto: Bianca Queda

Inês Por Bianca Queda

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Inês aparece sorrindo para a câmera, e vemos o braço esquedo enfaixado e a tipoia presa ao pescoço que a auxilia a segurá-lo. Ela está na sacada de seu apartamento, de onde avistamos outros prédios de seu condomínio

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– Inês, como faço para subir, Inês? A ligação caíra. Lá de baixo, já enxergava o condomínio, no Saco Grande, em Florianópolis. A arquitetura local permitia prédios amplos, o que os tornavam muito parecidos em meio àquela tempestade. Tinha esperanças de que o primeiro fosse o Via Áppia. Mas não havia sequer uma sinalização indicando qual deles poderia ser. – Inês, você está me ouvindo? Fora de área. Dobrei o papel com o endereço rabiscado e coloquei no bolso de trás. Improvisei o casaco de guarda-chuva ali mesmo no pé da escada e comecei a desbravar o desconhecido ambiente. Inês havia me perguntado se eu precisava de orientação. – Não se preocupe, Inês, tenho GPS. O interfone estava quebrado. Com aquele temporal, mal havia sinal no celular, quem diria sinal de vida. O vento ecoava os sinos da igrejinha. Eram três da tarde. Se eu sobrevivesse ao dilúvio, a primeira coisa que perguntaria quando chegasse lá era: – Inês, você gosta de dias chuvosos? Fui pela intuição. Via Appia era o nome de uma das principais estradas da antiga Roma. Entrei na primeira porta que vi a minha esquerda. Pensei que cairia na garagem daquele prédio branco com pastilhas azuis-celestes. Dei de cara com um enorme espelho que refletia a minha imagem molhada e desorientada. Duas poltronas púrpuras preenchiam aquele pequeno hall de entrada. Foi então que ouvi uma voz. – Tem alguém aí? Talvez Nelson Rodrigues tivesse razão. Deus está nas coincidências.

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– Desculpe não ter atendido, estava em outra ligação e não ouvi o telefone. – Remitiu-se. – Com esse braço estou tendo que resolver todas as questões da ACIC por telefone. – E como você se machucou? – Levei um tombo no sábado; caí de bicicleta. – Você ficou muito assustada ou manteve-se tranquila quando caiu? – Nenhum dos dois, apenas pensei: Iiih vou ter que sair da rotina. – Você gosta da rotina? – Não é que eu goste. É que sair dela me desestabiliza. O braço quebrado era o esquerdo. O médico disse que teria ainda mais duas semanas de gesso pela frente. Era visível o quanto aquela tipoia a incomodava. Não devido ao peso ou ao desconforto, mas pela limitação que aquilo a causava. Inês mostrava-se com a imobilização do braço. Não parecia aproveitar os dias de folga. O cabelo curto marrom-glacê estava bem penteado. Vestia uma blusa branca de manga curta com detalhes em pedrarias douradas e uma calça azul-marinho. A professora parecia estar pronta para dar aula. – Pode entrar, fique à vontade. Encostou o bastão de Hoover ao lado da porta de entrada e me convidou para sentar no sofá. A sala recendia a terra molhada. Os pingos de chuva que escorriam pelos vitrais da varanda davam charme ao delicado apartamento. As cores frias predominavam no ambiente; as cadeiras e o sofá cinza harmonizavam com a mesa espelhada e o lustre inglês. A neutralidade dos móveis castanhos marcava a elegância daquele lugar. – Podemos começar, Inês?

– Eu era uma criança muito levada. – Respondeu-me gargalhando, quando lhe perguntei de sua infância. Inês cresceu em uma fazenda na capital do milho, Xanxerê, a 508 km da Ilha de Santa Catarina. Gostava de brincar na rua, desenhar e andar de triciclo. Era a filha caçula de Itacir e Emília. Junto com seus cinco irmãos Ivani, Ivonar, Ivonete, Ivete e Ivone, aprendeu tudo que precisava sobre a vida, desde amarrar os sapatos até as brincadeiras de criança. Seus pais ensinaram Inês a ver o mundo com as mãos. Quando seu Itacir chegava da rua com as compras, ela pedia: – Pai, posso ver? E então o pai dava nas mãos da menina aquilo que acabara de trazer. As

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irmãs faziam o mesmo pedido, e o pai respondia: – Não precisam tocar; vocês não são como sua irmã. Vejam apenas com os olhos. Com sete anos, aprendera a usar a tesoura: era época de festa junina e as irmãs mais velhas estavam cortando as bandeirinhas para a quermesse da escola. Passou a tarde inteira recortando. Gostou tanto que não queria parar; foi com a tesoura nas mãos até o armário do quarto que dividia com as irmãs e pegou a calça de uma delas. – A calça virou um short. Levei uma bronca enorme de minha mãe. Quem a protegia de suas artes era Ivone, por serem gêmeas univitelinas. Não era apenas a aparência o que as tornava tão próximas. As duas nasceram em 28 de setembro de 1978, prematuras, e ficaram dois meses em incubadora. Eram duas meninas magricelas, de ombros caídos e pernas de sagui; usavam o mesmo corte de cabelo, lambido e reto, e as mesmas roupas. Compartilhavam segredos, medos e receios. Passaram pela vida estudantil primária e secundária juntas.

– Lembro-me de meus pais colocarem em mim os óculos de todos que nos visitavam. Eles então perguntavam se ela estava vendo alguma coisa com os óculos e Inês apenas negava com a cabeça. A menina só ouvia suspiros dos pais. Experimentou óculos de todos os tipos e tamanhos, do vizinho, da prima distante de sua mãe, da comadre e do compadre. Nem os do vendedor da quitanda se salvaram. A resposta era sempre a mesma: ela continuava vendo com as mãos. Um dia levou um tombo brincando de correr com Ivone. Nada fora do normal; era muito comum que a menina esbarrasse nas coisas e nas pessoas. Naquela tarde, seus pais pediram que Inês se arrumasse, pois consultariam um médico. A menina refutou, dizendo que não iria a lugar nenhum. Não estava doente, então para que ir ao médico? – E então eles me sentaram na mesa da cozinha e disseram que precisavam me contar uma coisa.

– Até os seis anos eu não sabia que não enxergava. Nesse momento da conversa Inês ficou irrequieta. Cruzou as pernas e colocou a mão direita sobre os joelhos, com palma voltada para cima. Pensei: Caramba! Sua voz soou branda, quase transparente, preenchendo o vazio dos acontecimentos passados. Nunca tinha pensado em como uma

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pessoa descobre que vê o mundo diferente das outras. No fim das contas, a garota xanxerense começou a notar a distância ente ela e os irmãos. Ainda que todos a ajudassem, Ivani cuidava do preparo de suas refeições, Ivonar consertava sua reglete – prancheta que contém os caracteres do Braille –, Ivanete a levava para escola, Ivete aprendeu a ler em Braile para escrever histórias que Inês pudesse ler e Ivone, sua gêmea, ensinou dezenas incontáveis de coisas. Ainda que todos a ajudassem, Inês tinha suas limitações, ou pelo menos achava que tinha. Então a insegurança e o medo vieram junto com a descoberta. – Comecei a colocar a mão na frente quando sentia que ia cair. Antes nem me preocupava com o que pudesse acontecer.

– Errei a tabuada de propósito; queria ver o que ele faria comigo. – Recorda ela, e continua: – Eu estava na terceira série. Até aquele ano era apenas ouvinte na escola. O professor havia dito no dia anterior que quem errasse a tabuada teria que ficar em pé o resto da aula virado para o quadro-negro. Sempre tive uma boa memória e sabia as multiplicações de cor e salteado. Mas precisava saber se ele me trataria diferente. – E tratou? – Sim. Quando perguntei por que não havia me deixado em pé com os outros, ele apenas me ignorou. Inês aprendeu a exercitar sua mente aos sete anos. Naquela época as crianças estavam sendo alfabetizadas com a Cartilha Minha Abelhinha. Ela pedia para as irmãs lerem o conteúdo do livro e assim repetia tudo até decorá-lo. Quando chegava à sala de aula saía-se muito bem; repetia letra por letra, sílaba por sílaba e palavra por palavra. Ivone organizava todo o material da irmã. Ensinou a gêmea a usar pastinhas para guardar seus deveres, coloria e enfeitava os cadernos da irmã. Inês reflete por um instante ao falar desse episódio. – Todo esse ritual deixou vestígios do passado dentro de minha sala de aula. Não é porque as crianças não enxergam que o seu material não deve estar bem caprichado. Os anos escolares tiveram altos e baixos para a professora. Aos 14 anos começou a usar bengala para ir ao colégio. O desconforto começou quando os colegas de sala tomavam a vareta de sua mão para brincar na hora do intervalo. Com sua voz lisa e delicada, assim como seus fios de cabelo, Inês relembra o quanto isso a incomodava. A melhor aula era a de Educação Física. Toda a empolgação com a discipli-

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na se devia ao professor, que a tratava como igual. – Ele me mandava correr em volta da quadra com os outros, fazer polichinelo e até jogar vôlei. Claro que o esporte lhe causara muitas boladas no rosto. A intenção do professor era apenas fazer com que a menina se sentisse igual aos colegas, ainda que, por falta de experiência, tenha sido perigoso. A adolescência lhe trouxe um leque de amizades. Luciele, Liliane, Rosi – que tinha uma irmã com deficiência auditiva – , Fátima e Neiva – que mais tarde viera a se casar com o irmão de Inês –, foram as companheiras de juventude. Tomavam banho na cachoeira, que ficava a sete quilômetros do centro de Xanxerê, andavam de bicicleta e se bronzeavam no terreno do sítio quando o verão chegava.

– Eu gosto mesmo é de bailão. – Anima-se ao contar como tudo começou. Aos 16 anos Inês perdera sua irmã gêmea. Jovem e imatura, engravidou muito cedo e logo se mudou para viver com o namorado. Nessa época a casa ficou vazia. Apenas a caçula dos seis filhos ainda vivia lá. Foi quando a jovem começou a querer participar de festivais de canto. No início dona Emília era contra, mas acabou cedendo aos caprichos da filha, pedindo que seu Itacir levasse a menina para os bailes. – Eu não tinha a voz bonita; na verdade nem gostava de cantar. Só me inscrevia nos concursos para poder aproveitar os bailes. A vontade foi morrendo à medida que a cada evento a garota ficava mais frustrada. Ninguém a tirava para dançar e então a festa trnscorria com um copo de groselha em cima da mesa e o pai sentado ao lado. Inês treinou sorrisos-paisagem para o caso de alguém perguntar se estava feliz. Nada adiantara. Começou a vasculhar o próprio interior. As tardes eram longas em Xanxerê. As vacas mugiam no quintal. Ela passava os dias no quarto pensando no que poderia fazer. Saía apenas na hora do jantar. Logo se mudou para Florianópolis. Com sede de autonomia, foi morar em um alojamento da ACIC com mais nove meninas. Era uma casa dentro da comunidade do bairro Saco Grande, próximo ao Parque da Figueira. Ali, viveu três anos colocando em prática as ADVs (Atividades da Vida Diária) que aprendia na Associação. Começou a limpar vidros, fazer faxina e cozinhar. Ela enche os pulmões e enfatiza. – Se não cozinho hoje é porque não estou a fim, e não porque não sei. Aos finais de semana saía para os bailes com seus amigos da Associação. O CTG Guarani era o local preferido deles, com música de tradição gaúcha. – Eu gostava de dançar a dois. O bem-estar que sentia junto aos amigos lhe causava um efeito colateral:

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Inês se sentia deslocada. Precisou vigiar-se para que essa sensação não acabasse por excluir os videntes de seu convívio. A mulher, que a esta altura já tinha deixado de ser uma menina, começou a comandar a própria vida. Trabalhou como telefonista no TRE ( Tribunal Regional Eleitoral) e lecionou como professora temporária no curso de alfabetização de adultos na ACIC, demonstrando sempre maior afinidade com as atividades voltadas à educação. A professora se sentia realizada. Moradia, emprego e amigos contemplavam toda sua independência. Mas ainda faltava algo. Foi então que encontrou seu destino na noite de seu aniversário, em 1998. Ela havia conhecido Alirio Seidler em um curso de massagem na própria ACIC, e o colega começou então a frequentar o grupo de bailão. Naquela noite ele lhe deu uma correntinha – que ela usava no momento da entrevista – e a pediu em namoro. Naquele momento nem ela sabia que, um dia, aquele rapaz, que emanava um perfume que tanto lhe agradava, seria o homem de sua vida.

– Pedalar proporciona muitas sensações. (Caramba, essa pausa foi tão longa que até divaguei nos meus pensamentos, Inês!). O flashback foi lá de sua infância. Impulsionada pelo sonho infantil de ter uma bicicleta, guardou a vida inteira o desejo de pedalar. Achava impossível realizar esse desejo. Em 2009, teve seu primeiro contato com a pedalada, quando utilizou uma Tadem Bike – duas bicicletas unidas por uma barra de ferro –, concretizando assim a vontade de menina. Depois que sentiu os pedais pela primeira vez, não quis mais parar. A paixão tomou conta de sua vida. A adrenalina de subir e descer morros, a velocidade das rodas e o vento no rosto transcenderam seu modo de viver. Hoje, pedalar não é só um esporte para a professora, mas um modo de existir. No mesmo ano entrou para o projeto Novos Horizontes e ali começou a se aperfeiçoar na arte de andar sobre duas rodas. Todos os sábados de manhã encontra o grupo para percorrerem um trajeto de duas horas e meia. Todo o fascínio pela prática levou Inês a participar de competições. O Audax, evento ciclístico não competitivo, foi um dos primeiros, quando pedalou 200 km. A disciplina foi fundamental para assumir a vocação de atleta. Inscreveu-se no Para-Jasc e no Desafio Marcio May, cumprindo os percursos junto com Maide Marchese, sua companheira de pedal. – Não me importo de chegar em último lugar. O desafio é o meu limite.

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– Trabalhei até o último dia, e à noite fui para o hospital. – Relata a professora. A lembrança veio à tona quando pensei em encerrar a entrevista. – Então acho que é isso, Inês. Teria mais alguma coisa que gostaria de me contar? – Minha filha. Alice nasceu em 2001, um ano após o casamento. A confirmação da gravidez veio através de um telefonema de Alirio. Inês estava em casa ouvindo Roupa Nova. Seu marido avisou do próprio laboratório que a futura mãe já estava de oito semanas. O período da gravidez foi tranquilo. Tão tranquilo que às vésperas da internação estava dando aulas. Naquela fase da vida já era professora efetiva no letramento de crianças de três a 10 anos da ACIC. Naquela quinta-feira, 7 de abril de 2001, a menina inspirada na boneca Alice, da Baby Brinky, estava nos braços de Inês. O momento não poderia ser melhor; os recém-casados conceberam uma filha que enxergava o mundo de uma maneira diferente dos dois: com os olhos.

doenças genéticas e se apaixonam. No segundo, a empresária Tully Harry é abandonada pela mãe e começa um relacionamento com um rapaz problemático. Talvez por isso Inês enxergue sua vida pelo prisma da sensibilidade. Por fim, quando pergunto se teria uma definição para sua personalidade, ela fala: – Eu me acho uma pessoa sonhadora. De fato, durante toda a entrevista Inês parecia estar prestes a flutuar, quem sabe levada pelas rodas de uma bicicleta.

– Escutava as gotas caírem no copo para medicar Alice. Durante os primeiros 10 dias, Ivonete ficou com a irmã para auxiliar nos cuidados do bebê. O restante ficou por conta de Inês, que precisou se adaptar a milhares de situações para cuidar de Alice: medicação, amamentação, higiene do bebê e tudo que uma mãe de primeira viagem acaba descobrindo na marra, mas com as limitações de um mundo primordialmente para os videntes. Foram inúmeras adaptações, desde o medidor de mamadeira – que teve os mililitros marcados com ferro para ficarem salientes – até as seringas cortadas em tamanhos diferentes a partir da dosagem de cada remédio.

– Gostaria de fazer o caminho de Santiago de Compostela pedalando com meu marido; acho que seria um sonho. Romântica incurável, seu jeito sonhador é inspirado inteiramente nas histórias que leu durante a vida. As favorita são: Dançando sobre cacos de vidro, de Ka Hancock e Por toda a eternidade, de Kristin Hannah; ambas narram amores impossíveis. No primeiro, Lucy Houston e Mickey Chandler sofrem de

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Foto: Arquivo pessoal

Jairo Por Kamila Porto

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Nesta foto, o rosto de Jairo estĂĄ de frente, levemente voltado para a direita, e tem expressĂŁo sorridente

QuestĂŁo de ter e ser

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Questão de ter e ser

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oi uma tarde de descobertas, conhecimento e de muitas risadas a que passei com Jairo da Silva, de 37 anos, presidente da ACIC (Associação Catarinense para Integração dos Cego) e técnico da Comissão das Pessoas com Deficiência na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Jairo nasceu com um conjunto de doenças hereditárias que deterioram a pigmentação da retina ao longo do tempo, denominado Retinose Pigmentar. Como ainda enxerga vultos, reconhece as pessoas de seu convívio pelo jeito de andar, vestir e também identifica alguns objetos. − Quando criança, eu tinha cerca de 60% da visão; com o passar do tempo, o campo visual foi se fechando, e a deficiência, progredindo. Hoje, estou com apenas 1% ou 2%. Apesar de já ter enxergado, relata que foi perdendo a memória visual com o tempo; hoje não lembra de detalhes, não se recorda de enxergar rostos a distância, mas lembra que um dia já andou de bicicleta e copiou matéria do quadro. A partir de 1996 seu problema começou a se agravar, e ele teve que recorrer a outros recursos, como o uso da bengala. Por ser uma doença que diminui o campo de visão aos poucos, sua adaptação também aconteceu de forma lenta e gradativa, o que, de certa forma, mascarou sua percepção sobre a deficiência. Nos últimos dois anos, enfrentou o avanço mais significativo da Retinose. Analisando esse momento, Jairo faz uma analogia muito interessante: - Imagine que você está dentro de um nevoeiro, caminhando normalmente, sem enxergar nitidamente nada; dependendo da claridade, não consegue ter percepção nenhuma das coisas ao seu redor. É isso que acontece comigo hoje: as coisas estão se tornando nebulosas, estão se apagando. Esse nevoeiro está se condensando. O não enxergar sempre me remete a uma expressão que, na minha opinião, é muito curiosa: “confiar de olhos fechados”. Assim que cheguei na Assembleia, onde marcamos a entrevista, fiquei imaginando como seria dialogar com

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alguém que não me olharia nos olhos. Incrível! A recepção calorosa e a confiança que depositou em mim fez com que as coisas fossem fluindo. O trajeto entre o ambiente em que o encontrei até a sala de imprensa onde conversamos foi percorrido entre troca de informações e de confiança − da parte dele, por conhecer o local e poder me orientar; e da minha parte, por enxergar e poder direcionar o caminho. Grande aprendizado! Quando mencionei minha percepção, ele comentou o quanto é necessária essa confiança no dia a dia de um deficiente visual. Para conhecer a Assembleia e poder se locomover somente com a bengala, Jairo teve a ajuda de um professor de orientação e mobilidade da ACIC, que analisou com ele alguns espaços-chave, como a entrada principal, a recepção, a sala da comissão onde trabalha, o ponto de ônibus e o relógio de ponto. Essas referências o ajudaram a fazer uma mapa mental, que lhe possibilitou deslocar-se sozinho. Ele chama essa habilidade de memória arquitetônica, que é a noção do espaço do seu dia a dia. Na rua, a relação com os espaços se modifica; de fato, o auxílio de uma pessoa que enxerga torna-se quase indispensável em trajetos longos. Com isso, Jairo comenta a importância da cordialidade e educação. − Se alguém me pega pelo braço de forma errada e quer me conduzir, esforço-me ao máximo para explicar que devo eu mesmo segurar em seu braço. É uma coisa meio estranha, um vínculo repentino e meio rápido. É uma confiança necessária. E quando fala sobre confiança, explica que é importante deixar claro o local para onde quer ir; sempre conversar com quem se oferece a guiar, pedindo para que lhe descreva o lugar por onde estão passando e, principalmente, utilizar da bengala como instrumento de proteção, posicionando-a à frente e em diagonal. A medida, que parece exagerada, tem razão de ser: − As pessoas que enxergam não costumam se ligar em objetos que atrapalham o caminho, como um degrau ou qualquer obstáculo mais alto. A confiança também é posta à prova quando se trata de dinheiro, já que no Brasil as cédulas ainda não possuem elementos para identificação tátil. Algumas pessoas se utilizam de táticas para saber se a quantia dita confere com o dinheiro apresentado. Um exemplo que ele me deu foi mostrar a cédula e perguntar seu valor, depois colocá-la na carteira, fingir que pegou outra nota e perguntar novamente o valor. Se a pessoa responder a mesma quantia, provavelmente está falando a verdade. As novas notas, com tamanhos diferentes para identificação, são um processo de inclusão muito importante; mas, de acordo com ele, na atual conjuntura, não resolvem a necessidade do deficiente visual. Jairo acredita que quando as notas velhas saírem de circulação, a identificação do dinheiro ficará muito mais fácil. Para quem nasceu e se alfabetizou através da tinta sobre o papel, a adaptação à leitura em Braile é bastante complicada. Jairo conta que, durante a quarta série, quando percebeu que sua visão diminuía, tentou se adaptar ao

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Braile, mas a dificuldade que sentiu fez com que desistisse e acabou reprovando três anos. Do quinto ao oitavo ano, não se valeu de conteúdos escritos em português; o colégio em que estudava, Governador Ivo Silveira, na Palhoça, não estava preparado para lidar com pessoas com deficiência − não tinha assessoria adequada, suporte e, muito menos, professores que soubessem lidar com a situação. Simplesmente foi aprovado para ganhar o certificado, sem adquirir os conhecimentos devidos como todos os outros alunos. − Na época em que era pequeno, tínhamos um disco de vinil; eu o colocava para tocar, e, quando chegava ao fim, estava acabando de ler o lado de uma folha. Era um exercício terrível o de aguçar o tato; até hoje tenho um pouco de dificuldade. Jairo relata a dificuldade de acesso aos livros, principalmente os científicos; os materiais eram bem escassos naquele tempo. Por isso, prefere utilizar o computador; com um programa sintetizador de voz, consegue fazer todas as leituras − de livros, e-mails, redes sociais e sites. São várias as vantagens que um deficiente visual encontra com esse recurso; um deles é poder tirar dúvidas sobre a grafia das palavras; o software pode soletrá-las ou, ainda, ler palavra por palavra, determinada linha ou um parágrafo completo.

“Era um exercício terrível o de aguçar o tato; até hoje tenho um pouco de dificuldade” A questão da acessibilidade e mobilidade também foi discutida, e Jairo deixou claro que acredita que as coisas estão melhorando, mas que muito ainda é deixado a desejar pelos gestores. - Em Florianópolis há calçadas com pisos-guia colocados inadequadamente; existem vias, por exemplo, em que nivelaram calçada e rua. Para pessoas que usam cadeira de rodas ficou perfeito, mas nós, com deficiência visual, só temos duas referências − a parede e o piso-guia. Então, se ando no piso-guia e me desoriento, não sei se estou no meio da rua ou não. Com a rotina pré-estabelecida, Jairo tem conhecimento dos caminhos pelos quais passa, do trajeto que percorre e de como pode fazê-lo de forma mais segura. Sua rotina em casa é tranquila; ele mesmo criou plaquinhas em Braile para identificar mercadorias e utensílios domésticos. Vive com sua esposa Débora, que também possui deficiência visual. Apesar das dificuldades de mobilidade e da falta de inclusão ainda existente, Jairo tem uma vida sossegada. Deixou clara a necessidade das pessoas com essa deficiência, e de qualquer outra, buscarem seus direitos a fim de conseguirem melhorias no seu dia a dia.

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Foto: Natália de Ávila

Marcilene, que nesta foto é vista de baixo para cima, está usando óculos escuros e segura sua bengala. Diz que jamais usaria cão guia e que prefere a bengala, que a ajuda a se movimentar por onde quer que ela vá

Marcilene Por Natália de Ávila

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Além do que se pode ver

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− Às vezes eu a perdia pela casa. Mas me guiava pelo perfume Mamãe e Bebê que passava nela, então, geralmente conseguia encontrá-la com mais facilidade.

“Não ia querer me ver; capaz de eu me assustar. Não ia me reconhecer na pessoa que veria lá no espelho. Ia ser muito estranho”

−E

u gosto do amarelo, porque me disseram que é uma cor quente, a cor do sol. E não gosto do branco, porque sou muito atrapalhada. Parece que o branco suja muito fácil e

me engorda. Essas foram as palavras de alguém que nunca enxergou as cores, mas aprendeu a ver, sentindo e ouvindo as pessoas ao seu redor. Marcilene Aparecida Alberton Ghisi é coordenadora pedagógica da ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego). Ela ocupa a função a pedido do antigo presidente da entidade, Adilson Ventura, desde o ano 2000. Em 1997, tornou-se mãe de uma menina chamada Victória. É ela quem ajuda a escolher as roupas da mãe e, desde criança, conta com o auxílio de Marcilene nos conteúdos escolares . − Sempre ajudei Victória com os deveres da escola. Quando era pequena, trazia seus trabalhinhos para eu tocar o que tinha feito; ela me mostrava página por página. Teve que ter muita força de vontade para superar os obstáculos que a função de mãe impõe. Muitas vezes, demorava para fazer a mamadeira da filha, que chorava à espera do alimento. Aprendeu com a sua mãe Zulma em apenas quinze dias a trocar fralda e suprir todas as necessidades de um bebê. Zulma sempre amparou a filha, e, como trabalhava de cozinheira, não teve muito tempo de folga para ajudar a cuidar da neta. − Acho que não diria “ah, nossa, como foi bom ser mãe!”. Não, não foi algo assim. A lembrança boa que tenho foi quando ela nasceu. Marcilene conta como foi difícil aquele momento. Na época, tinha vinte e sete anos, e não contava com o apoio total do pai de Victória, que também era cego. Ele acabou se afastando gradativamente após o nascimento da menina. A pedagoga de 44 anos nunca contou à filha que era cega; Victória foi descobrindo aos poucos. Marcilene lembra, divertida, de quando a filha engatinhava de um lado para o outro.

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Ela se define como uma pessoa não muito simpática, mas, ao contrário, esboça dezenas de sorrisos a cada minuto do nosso bate papo. Sentada a minha frente, numa mesa no meio da praça de alimentação de um shopping, demonstra ser muito atenciosa e carinhosa. Em meio às conversas e ao barulho da máquina de milk shake logo atrás da gente, ela resumiu em apenas uma hora os momentos mais importantes de sua vida. Lembrou-se da infância, de quando subia em árvores, pedalava, andava no mato e corria com seus irmãos pelo terreno da sua antiga residência, no bairro Trindade. Quando pequena, passava as férias na casa da avó, que morava em Orleans, cidade em que nasceu, localizada no sul de Santa Catarina. − Tive uma infância muito normal. Meus irmãos são mais novos que eu, mas sempre me levavam com eles para todos os lugares. De vez em quando uma vizinha observava eu subir em árvores e alertava minha vó, dizendo que eu podia me machucar. Minha avó Anita explicava: “Tá, mas não adianta eu falar”. Quando começou a frequentar a escola, Marcilene percebeu que não era igual às outras crianças. O sinal tocava na hora de ir embora e todos conseguiam sair ao encontro de seus pais. Ela se sentia presa com tantas cadeiras e mesas a envolvendo, dificultando sua locomoção. − Andava de um lado para o outro esbarrando em tudo e não conseguia chegar até minha mãe. Era como se ela estivesse perto e eu não conseguisse alcançá-la. O medo de ir à escola foi desaparecendo aos poucos, e, no lugar, surgiu o amor aos livros e uma imensa dedicação aos estudos. − O que eu mais gosto de fazer na vida é lidar com os livros, ler. A partir da quarta série do ensino fundamental ela começou a ter mais amizades e ser mais independente na escola. Fez magistério e graduação em pedagogia. Sofreu pelo desconhecimento de professores e alunos que, num primeiro contato, não sabiam como agir com alguém que não enxergava. − Quando tinha trabalho, o professor me colocava no grupo que sobrava. No início, ninguém gostava; depois, viam que eu dava conta, daí não queriam mais que eu saísse.

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Na escola, teve um atendimento especial na sala de recursos até o ensino fundamental. A partir dos 14 anos, começou a frequentar a ACIC como ponto de encontro − na época ainda não era uma associação de reabilitação e profissionalização de cegos e de pessoas com baixa visão. Lá aprendeu a usar a bengala e andar pela cidade. Hoje, a ACIC atente a diversas faixas etárias, de crianças a idosos, e Marcilene orienta os professores para trabalharem com esses grupos. A ACIC dá instruções de como se movimentar pela casa, desenvolver a noção de espaço e fazer a própria higiene. Também oferece cursos - culinária, informática, artesanato. Assim como o Braile, a associação lança mão de outros recursos táteis para a aprendizagem, como o soroban, instrumento utilizado para cálculos matemáticos. No seu tempo livre, Marcilene gosta de ficar em casa ou na casa de sua mãe Zulma, construída no mesmo terreno que o seu, no bairro Saco Grande, em Florianópolis. Além disso, participa de um grupo de troca de livros, que, ao final de cada mês, se encontra para debater as obras lidas. Assiste a filme com as amigas − se valendo da audiodescrição − e adora passear no shopping. As saídas com as amigas ou com a família são raras, já que a coordenadora prefere ficar em casa, que só se mantém organizada por causa de Zulma. − Eu não nasci para cuidar da casa; sou muito lerda. Até aprendi a limpar, cozinhar, mas não gosto, minha mãe é quem se encarrega dessa parte; eu almoço e janto na casa dela todos os dias. A pedagoga foi casada por três vezes; o primeiro relacionamento foi com o pai de Victória; o segundo durou dois anos, e o terceiro começou pela internet, atravessando o oceano − ela se casou com um português. Todos acabaram não dando certo, ou ainda: deram certo, mas por um determinado tempo. Hoje em dia, ela diz que quer apenas “amassar e sentir saudade”. Seus maridos tinham em comum a cegueira. Ela brinca e diz ter preconceito com homens que enxergam. − Eles iriam ficar me olhando o tempo todo. Não sei se tenho coragem de ficar nua na frente de alguém que me enxergaria. Apesar de nunca ter tido a oportunidade de se olhar no espelho, Marcilene se considera feia, julga estar acima do peso e ser cheia de acnes. Fiquei instigada quando me relatou que não era bonita, mas que sua irmã Márcia era. Questionei como ela sabia disso. E então ela falou que a irmã se cuidava, ia à academia, ao salão de beleza e estava sempre arrumada. − Eu não enxergo, mas sinto; essa é a minha forma de saber das coisas. A gente vai pelo que o outro diz. Quando era pequena, Marcilene não tinha recursos tecnológicos que lhe facilitassem os estudos e a leitura. A menina, que veio muito pequena com sua família de Orleans, sempre foi humilde. Hoje ela não vive sem o seu notebook. Vai até a Livraria Nobel, sua loja preferida no shopping, leva os livros para casa, escaneia, passa para o programa Word e os escuta através do software que converte as palavras em voz sintetizada.

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− Tenho que escanear página por página. Marcilene participa de redes sociais, como o Facebook, e faz ligações a partir de recursos de acessibilidade como o Voice over, encontrados nos celulares da Apple e nos computadores com sistema Windows. Apesar de ser cadastrada em redes sociais, acha perda de tempo ficar postando coisas e diz que só utiliza o “Face”, por causa do grupo de amigas que trocam livros. Ela prefere ler. Quando perguntei o que gostaria de ver se pudesse enxergar por apenas um minuto, Marcilene diz que queria visualizar os rostos da filha e da mãe. − Não ia querer me ver; capaz de eu me assustar. Não me reconheceria na pessoa que veria lá no espelho. Ia ser muito estranho. Ela também contou que queria ter mais força de vontade para fazer uma dieta, emagrecer, frequentar uma academia. Queria também ter mais independência financeira para alugar uma casa de veraneio em todas as suas férias, pois adora caminhar na praia. Das diversas características de Marcilene, uma me chamou muito a atenção: seu modo feliz de levar a vida. Ela relembra qualquer momento de sua trajetória sorrindo, até quando relata os mais difíceis. De cada dificuldade elaencontra um motivo para sorrir. Foto: Natália de Ávila

Nesta foto, Marcilene é vista dos ombros à cabeça; está de óculos escuros, sentada no sofá da praça de alimentação do shopping e deixa escapar um sorriso tímido.

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Foto: NNícolas David

Renan Por Nícolas David

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Nesta foto, Renan utiliza uma de suas principais ferramentas de trabalho na ACIC, a impressora. Ele está ao lado da máquina e tem uma das mãos sobre ela

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“De cego já basta eu”

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“De cego já basta eu”

M

úsica eletrônica, cerveja e a companhia dos amigos e da namorada. Essas são boas pedidas para Renan dal Pont. Natural de Criciúma, onde viveu até os 18 anos, veio para Florianópolis no início de 2014 para trabalhar. Agora, divide um apartamento com outros dois amigos e, distante da família, aprendeu a lidar com as demandas da vida diária e da vida de adulto. Até aqui, essa história parece comum. Mas, palavra de repórter, não é bem assim. Conhecer e conversar abertamente com Renan pode ser uma experiência muito interessante. Interrompidos por alguns risos meus, viajamos pela sua história. Começamos pelos deleites da infância em Criciúma, e ele me contou que até os 11 anos possuía ainda baixa visão e brincava principalmente de bicicleta, skate e esconde-esconde com crianças que enxergavam. A partir dessa idade, teve que enfrentar as limitações da cegueira completa. Nesse período, disse que se afastou um pouco dos antigos amigos, pois não podia, por exemplo, jogar videogame. Por outro lado, passou a conviver com outras pessoas com deficiência, criando novos laços afetivos. − Quando eu era criança, brincava com os meninos. Eu enxergava um pouco, então sempre estive no meio das pessoas que viam. Isso era muito tranquilo, porque, com o pouquinho que enxergava, conseguia me virar. No ensino médio, os hábitos da adolescência, principalmente um que ele muito aprecia, o de tomar uma cervejinha, levou-o novamente a conviver com pessoas que enxergam. Nessa época, frequentou muita balada em Criciúma, foi a festivais de rave que duram às vezes três dias e, enfim, aproveitou sem moderação um de seus prazeres prediletos. − Gosto muito de música eletrônica, mas, principalmente, de uma boa festa com música eletrônica. No ensino médio eu saía direto. Sempre gostei muito de festa, de balada… Sempre bebi bastante também. Perguntei se ele não tinha dificuldades em frequentar uma balada pelo fato de não enxergar. Se isso não o deixava assustado, afinal, na balada, as pes-

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soas não param e, além disso, estão quase todas alteradas pelos efeitos do álcool e de outras drogas. Renan foi rápido na resposta. − Não tenho problemas na balada, porque lá eu também sempre estou alterado. A maior dificuldade que a gente tem é que o som é muito alto e perdemos um pouco da referência auditiva. Mas para a balada vou sempre com alguém que enxerga, porque fica ruim pra se locomover. Eu queria ir além nessa questão, explorar mais suas sensações e entender melhor a experiência dele. Mas não conseguimos. Renan não é um entrevistado de frases prontas e nem dá muita trela para apelações emotivas. Disse-me que tem algum bloqueio para lidar com os sentimentos e que é bastante tímido. Foi incisivo ao afirmar que isso nada tinha a ver com a cegueira. É uma característica da personalidade dele mesmo. Tropeçando nas palavras, fez um novo esforço para me traduzir suas sensações. − Eu consigo escutar um pouco e sentir muito a energia da galera na balada. Desenvolvi outros sentidos, né? Estar lá é muito bom. Quem enxerga tá vendo a turma, mas quem não enxerga também se diverte. Ficamos bons minutos nesse assunto até que o entrevistado soltou uma declaração polêmica, a de que sempre gostou mais de ficar com quem enxerga. Em ficar, leia-se beijar, namorar, apalpar, acariciar. Renan se lembrou do seu primeiro namoro. Durou pouco, cerca de três meses. A menina também tinha deficiência visual e ele não gostou da experiência. Agora está em um outro relacionamento. Sua nova companheira enxerga, mas ele pediu que a reportagem não revelasse a identidade dela. Fiquei curioso e busquei entender como era esse atual relacionamento. − É uma relação tranquila. Pra mim sempre foi melhor estar com alguém que enxerga. De cego já basta eu. − Brincou, preenchendo a sala onde estávamos com uma desconcertante irreverência. Ao soltar essa frase, pediu que eu não a incluísse, mas não resisti. Penso que ela revela e muito o humor de Renan. Encerrado esse papo baladeiro e amoroso, voltamos às questões familiares. Como os pais dele reagiram com a mudança de Criciúma para a Capital? Estimularam sua independência? Tentaram impedi-lo? Apoiaram? Bingo! Sim − eles o apoiaram. A mãe de Renan aconselhou o filho a fazer mesmo a mudança. Em Criciúma, estava à toa. Tinha iniciado o curso de Direito, mas não gostou e resolveu trancá-lo. Repleto de conhecimento, disse que é muito comum, principalmente com as mulheres, que as famílias tentem superprotegê-las quando possuem a deficiência visual e criticou essa atitude. Foi sozinho e longe da barra da saia da mãe que conheceu e aprendeu as tarefas da vida diária. Agora, fala com orgulho de sua independência. − Resolvi vir pra cá e pensei: meu Deus, quando morava com meus pais eu não sabia merda nenhuma. E não é nem pelo fato de ser cego, era pela comodidade mesmo. Eu não sabia nem lavar roupa. E, quando encerrou a frase, pensei com meus botões: eu ainda não sei.

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Foi na ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego) que Renan desenvolveu seus conhecimentos em atividades domésticas. Ele e os outros dois jovens com quem divide apartamento − que, aliás, também trabalham na ACIC e possuem a deficiência visual −, aprenderam por meio das aulas de Atividades da Vida Diária a executar tais tarefas. − Quando optei por morar sozinho, percebi que tinha que saber fazer as coisas. Aprendi a me virar e está sendo bom. Faço o que quero, não dou satisfação a ninguém. Quando falei que viria, minha mãe disse pra eu vir mesmo, porque aprenderia a ser gente. Novamente me peguei pensando: será que os pais de Renan forçaram a saída dele de casa? Será que era um peso para eles ter que ajudá-lo, orientá-lo, auxiliá-lo? Mas minha intuição falhou. Não era isso. Renan me explicou mais uma vez que a preferência dos pais era por vê-lo livre, independente. E, nesse caso, o convívio com os amigos que também trabalham na ACIC, Maurício e Leonardo, foi primordial. Com Leonardo a amizade é mais longa. Os dois se conheceram ainda crianças, em Criciúma, e o relacionamento com Maurício existe há quatro anos. Depois de saber sobre suas amizades, entramos em outra esfera. Aquela que fala dos sonhos e anseios para o futuro. Eu queria saber quais eram as ambições do entrevistado. O assunto também rendeu. Pode-se dizer que Renan tem dois grandes sonhos profissionais. Um deles é mais “pé no chão”, o outro é um pouco mais “nas nuvens”. A área de atuação preferida de Renan é a de informática. Ela pouco tem a ver com seu trabalho atual no Centro de Materiais Acessíveis da ACIC. Lá, ele faz impressões em Braile para professores, desenvolve cartões de visita, flyers de eventos, apronta scanners de livros, enfim; ainda não atua na função mais prazerosa para ele, mas não parece estar infeliz com as atribuições.

“Quando morava com meus pais, eu não sabia merda nenhuma. E não é nem pelo fato de ser cego, era pela comodidade mesmo. Eu não sabia nem lavar roupa” − Penso em mudar. Pretendo mesmo trabalhar na área de informática. Atualmente, faço também curso para concurso na área de administração. Estou sempre atento aos editais do Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Eleitoral... Os deficientes têm uma cota de vagas nesses concursos e, apesar de haver bastante concorrência, a chance é maior. Renan também externou outra vontade: a de ser DJ. O gosto pela música eletrônica é que impulsiona essa ambição. Ele sonha tocar em um festival e

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diz que esses eventos são verdadeiras loucuras. Eu queria que ele me explicasse com detalhes, mas o entrevistado me devolveu um curto e objetivo “só indo pra saber” e depois citou artistas que admira: Zen Mechanecis, Symbolic, Astrix e Ace Ventura. O Psy e suas vertentes é o seu ritmo musical favorito. Um rockzinho às vezes também cai bem. A conversa fluía, mas tentei insistir naquelas questões mais emotivas novamente. Queria saber como ele vê o mundo. Renan relutou muito em responder. A timidez entrou em cena outra vez. Ele me enrolou e a sala onde a entrevista ocorria foi ocupada pelo silêncio. − Não sei. Sou meio travado com essas coisas do sentimento. Sou tímido, um pouco travado para falar e me expressar. É meu jeito. Voltamos a falar de informática. Aliás, apesar de ser um aficionado por computador, não perde tempo com jogos online, nem os acessíveis. Está na rede para conversar com os amigos. Repentinamente, avançamos para o futuro. Onde ele queria estar daqui a dez anos? Como e com quem? − Daqui dez anos imagino estar bem, ter um bom trabalho e estabilidade financeira. Quero estar fazendo o que gosto, morando no lugar que eu queira e com uma pessoa que eu goste. E você pensa em ter filhos? − Não penso, porque vejo como uma grande responsabilidade que também traz muita incomodação. Não estou a fim. Se acontecer, será algo diferente, mas não planejo. Talvez um dia isso mude. Ao menos no que diz respeito a uma entrevista, eu estava satisfeito. A meia hora do gravador ligado para coletar informações e declarações estava encerrada. Passou rápido. Desliguei o aparelho e Renan me apresentou a estrutura da ACIC; aliás, ele não poupou elogios à instituição e me explicou sua finalidade. Daí em diante, caminhamos ACIC adentro. Surpreendeu-me o tamanho do local e a quantidade de serviços oferecidos. Ele me apresentou ainda para outros colegas, ao amigo Maurício, que estava na sala de informática ensinando às pessoas a teclarem. Depois, voltamos à sala onde a entrevista ocorreu para nos despedirmos. Dedicamos ainda mais tempo para conversar. Renan mostrou seus aparelhos de trabalho, como uma máquina de escrever em Braile, onde imprimiu o seu e o meu nome. Pedi para levar o papel como recordação daquela experiência rica e inédita para mim. No desfecho, um agradável convite. Ao que tudo indica, muito em breve, eu e Renan nos encontraremos novamente, mas daí, para tomar uma, duas e outras tantas cervejas pelos bares da cidade.

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Como as pessoas cegas e com baixa visão se veem e se inserem na sociedade? Como a mídia aborda o tema e como alunos de jornalismo - e futuros profissionais da comunicação - podem retratá-los? A proposta da disciplina Laboratório de Vivência - Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da Unisul Pedra Branca, ministrada no segundo semestre de 2014, foi ir ao encontro do outro, buscando em matérias de perfil a oportunidade de ressignificar a imagem sobre as pessoas com deficiência e também repensar a si mesmos. Eles levaram consigo temores e curiosidade. Foram atrás de histórias dos que vivenciam o dia a dia da Associação Catarinense para Integração do Cego, a ACIC, situada na Capital catarinense. Chegaram de leve e, aos poucos, tomaram coragem para olhar seus entrevistados nos olhos. A partir daí, abandonaram a tarefa exigida pela disciplina e fizeram da entrevista a troca com o outro – de vivências, afetos, e cotidianos. O resultado está aqui. São textos, fotos, projeto gráfico, diagramação e revisão feitos pelos próprios estudantes. E eles assumem não só o deslumbramento surgido pelo encontro com quem, por circunstâncias diversas, é considerado diferente, como também o discurso apaixonado e apaixonante dos próprios entrevistados, sem, no entanto, reforçarem a ideia de que as pessoas com deficiência são, necessariamente,exemplo de superação.


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