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4 Duas cartas de um imigrante
Os imigrantes transmitiram para seus descendentes muitas histórias de aventuras, mas também de angústias e de sofrimentos. As tempestades que aconteciam em alto mar levando muitas vezes o navio à deriva; os ventos contrários desviando o navio de sua rota; calmarias que impediam o prosseguimento da viagem; as doenças, morte e sepultamento no mar... Tudo isto, no entanto, era superado pela expectativa de, fi nalmente, pisar na terra onde dias melhores os aguardariam.
O primeiro contato com solo brasileiro era o Rio de Janeiro. Nesta cidade os passageiros deixavam o veleiro transatlântico e eram encaminhados para a Ilha das Flores onde fi cavam de quarentena alguns dias, às vezes algumas semanas. Alojados numa grande hospedaria, os imigrantes deviam fazer alguns exames de saúde, regularizar a documentação de ingresso no Brasil e outras formalidades burocráticas e aguardar o navio costeiro que os levaria até o destino fi nal, Desterro, em Santa Catarina. A viagem do Rio de Janeiro até Desterro – assim se chamava Florianópolis naquela época – durava até oito dias.
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c) A chegada
Depois de três meses de viagem desde a saída da terra natal, os imigrantes podiam fi nalmente avistar o cenário da nova pátria, as verdes montanhas da ilha e do litoral de Santa Catarina. Podemos imaginar os sentimentos e as emoções que sentiam na hora do desembarque. De um lado, o alívio em poder deixar o navio e ter fi nalmente chão fi rme debaixo dos pés. Por outro lado, a expectativa pelo novo lar que estava próximo. Desterro era uma cidade pequena, com apenas algumas ruas nos arredores da praça central. Na falta de um porto adequado, os navios que traziam os imigrantes fundeavam em algum lugar perto da cidade e de lá os passageiros eram levados em barcos menores até o trapiche junto à praça.29 Aí esta vam eles, em Desterro, a milhares de quilômetros de distância da pátria, dos pa rentes e dos amigos. Aí estavam eles com sua mudança,
29 Não há informações precisas sobre o local de desembarque dos imigrantes. Os navios costeiros fundeavam, em geral, na Baia Norte, e de lá os passageiros eram transportados de barcos menores até a Praia de Fora (atual Beira Mar Norte) onde havia um barracão de alojamento para imigrantes. Existiam também alguns trapiches nas imediações do prédio da antiga alfândega. Todos esses ancoradouros desapareceram com os aterros da Baia Sul e da Baia Norte na década de 1970 e de 1980 respectivamente.
que não passava de alguns caixotes contendo seus modestos pertences. Podemos imaginar as mães cansadas e aborrecidas, quem sabe chorando, ou com lágrimas recolhidas, com um dos fi lhos no colo e os outros em volta, cuidando da mudança, enquanto os maridos se ocupavam dos afazeres pertinentes ao momento do desembarque tais como documentação, hospedagem, alimentação. O que representava para eles, naquele momento, a cidade de Desterro? Estavam numa ilha e a terra que lhes era destinada fi cava no outro lado do mar, no continente fronteiriço. Com que expectativa e ansiedade terão olhado para aqueles vales e montanhas cobertas de fl orestas! Estavam agora num país estranho onde se falava uma língua que eles não entendiam.
Antiga Desterro, hoje Florianópolis, por volta de 1900
Mas, a viagem não terminava aí. Preenchidas todas as formalidades legais, os imigrantes tomavam outra embarcação, de menor porte, que os transportava pela Baía Sul até a barra do rio Aririú, em Palhoça. De lá, a mudança seguia em lombo de mula ou em carro de boi ao passo que os imigrantes seguiam a pé ou, então, as mulheres com crianças a cavalo. Ao longo do trajeto de aproximadamente 50 quilômetros havia algumas hospedarias onde era possível pernoitar e descansar. Depois de três a cinco dias chegavam em Teresópolis, ponto final da longa viagem. Que alívio poder, enfim, estar definitivamente em terra firme. Mas também, quão longe estavam da terra natal. Agora começava o grande desafio de uma vida nova na terra dos sonhos e da esperança. Todavia, atravessar o Atlântico não significava apagar o passado.
O recém-chegado no Brasil conservava intacta a lembrança da pátria distante, com tudo aquilo que simbolizava sua natureza familiar, amigos e parentes, túmulos carinhosamente cuidados, templos veneráveis nas aldeias e cidades, usos e hábitos típicos, costumes consolidados, agricultura, artesanato, profi ssões, comércio, arte e ciência em plena atividade. Aqui, logo no início sentiase em ambiente estranho, via plantas diferentes, outras espécies de animais, novas constelações, ninguém a quem pudesse fazer uma confi dência, lugar algum que lhe fi zesse recordar o passado, nenhuma igreja ou escola para os fi lhos, a par de usos e costumes diversos dos seus. Um permanente tatear, procurar, começar da estaca zero tudo o que na Europa já estava ordenado e demarcado. Enquanto lá a paisagem podia ser apreciada em sua beleza cultivada e até os bosques eram plantados e cuidados, aqui a natureza exuberante se manifestava pela mata virgem das fl orestas e pela extensão das campinas incultas, povoadas de animais estranhos, bravios, alguns venenosos, que se mostravam menos amigos do homem do que seus inimigos.30
Teresópolis era a sede da colônia, situada no vale do rio Cubatão e tinha as diversas linhas coloniais: Rio Cubatão – conhecido também como Rio dos Porcos (Schweinebach), Rio dos Bugres (Bugerbach), Rio dos Cedros (Cederbach), Rio do Miguel (Michelsbach), Rio Novo e Rio Salto. Uns, satisfeitos com a terra que receberam, acomodaram-se ali mesmo. Outros sucumbiram sob o peso das difi culdades. A maioria, mais cedo ou mais tarde, seguiu adiante, estabelecendo-se nos vales do Capivari e do Braço do Norte, com o objetivo de conseguir terras melhores para si, para seus fi lhos e para os fi lhos de seus fi lhos.
4 Duas cartas de um imigrante31
Na primeira carta, de 12 extensas páginas manuscritas, Wilhelm Dörner,32 casado com Rose e Lauterjung e seus fi lhos Bertha, Karl, Gustav e Karl Robert que estavam com coqueluche, conta, com coração pesado e
30 FOUQUET, Carlos. O imigrante alemão e seus descendentes no Brasil. São Paulo: Instituto
Hans Staden, 1974. 31 O texto original das duas cartas dirigidas a Robert Lauterjung, cunhado de Wilhelm
Dörner, encontrava-se em poder de August Hollweg, residente à rua Rathausstraβe, 4 – Solingen. Na edição de 24 de maio de 1929, o jornal “Die Heimat”, de Solingen, publicou um resumo dessas cartas sob o título “Solinger auswanderung nach Brasilien um das Jahr 1860”, de autoria de Albert Weyersberg. 32 Heinrich Wilhelm Dörner (*1831), de Wald – Solingen, era casado com Johanna Rose e
Lauterjung (*1834). Filhos: Bertha (*12.9.1852), Karl (*20.11.1854), Gustav (*1857), Karl
Robert (*14.1.1859).
muita tristeza, que eles “deixaram a terra natal no dia 16 de março de 1860 ao embarcarem no porto de Antuérpia, na Bélgica. Antes de partir, o navio, de boa construção, permaneceu ainda três dias no porto. Levantou âncoras mas, logo em seguida, fez nova parada em Vlissingen, na Holanda. No dia 4 de abril veio vento favorável que, no entanto, se tornou impetuoso e que provocou em muitos a doença do enjoo, mas não em nossos solinguenses. Quando alcançamos a linha do equador no dia 6 de maio, fi cou muito quente e, se isso não bastasse, sobreveio uma calmaria de 8 dias impossibilitando o navio de prosseguir. O capitão decidiu então racionar o fornecimento de água, pois temia que a mesma viesse a faltar. Em consequência disso, os emigrantes tiveram que passar muita sede. Finalmente, no dia 30 de maio, após 78 dias de viagem, dos quais 59 no mar e 19 nos portos de Antuérpia e Vlissingen, chegamos em Santa Catarina, no Sul do Brasil”. Na verdade, os solinguenses pretendiam ir ao Rio Grande do Sul. Porém, após longas hesitações sobre as propostas sumamente favoráveis das autoridades, desembarcaram em Desterro no dia 2 de junho. Agora a vida era bem melhor e bem diferente do que era no navio: laranjas, carne e tudo o mais que se deseja, em abundância, à exceção do pão preto da terra natal.
“No dia 11 de junho teve continuidade a viagem, de lanchão à vela ao longo de um rio, mas só por algumas horas. Como o rio estava muito assoreado, não havia calado para o navio de duas velas. Por isso, seguimos a pé, deixando transportar os caixotes da mudança num barco menor. Trechos através da fl oresta virgem, mais adiante por pomares de laranja sem fi m, chegamos fi nalmente num povoado onde um estalajadeiro alemão, um renano da região de Düsseldorf, nos acolheu durante três dias. A partir daí começou uma viagem pouco confortável, sendo a mudança transportada em carro de boi e as pessoas, inclusive as crianças, andando a pé. O caminho estava não só lamacento por causa da chuva ininterrupta, mas também ruim por causa do péssimo estado de conservação, como na Alemanha não se vê há dezenas de anos. A próxima parada foi na casa de um estalajadeiro alemão de nome Eller, da região de Koblenz, onde fi camos cinco dias. De lá em diante não era mais possível seguir com carro de boi, pois o caminho era intransitável. As caixas e caixotes tiveram que ser desembarcados e carregados em mulas para seguir viagem. Houve ainda um pernoite em casa de colonos alemães muito acolhedores e então chegamos fi nalmente na sede do novo distrito colonial. Todos se alojaram num ran-
cho que havia sido erguido para os imigrantes e lá esperamos quase duas semanas até ser-nos indicado o terreno e o rancho próprio.
“Perigosa não é a viagem para o Brasil, mas penosa”, escreve Wilhelm Dörner, e agradecem a Deus pela vida tranquila e satisfeita que agora levam, porém às custas de pesado trabalho nos primeiros anos. Nos primeiros três meses, até setembro, eles derrubaram três morgos33 de mato onde plantaram feijão, milho, mandioca e batata. Como propriedade, Wilhelm Dörner recebeu 240 morgos de terra [60 hectares] e, por sorte, quase toda plana, que é raro de se encontrar. A terra tem alguma semelhança com a região de Kohlfurter, todavia o vale é pelo menos o dobro mais largo. O rio dos Porcos corre uns dez passos por detrás do rancho da família Dörner. No outro lado do rio mora o vizinho mais próximo, de nome Weck34, de Wald. Outros vizinhos são Bennert,35 um cunhado de Friedrich Graf, e Doberstein36, de Pilghausen. Seis navios já trouxeram imigrantes e muitos outros seguirão.
“Até agora ninguém morava por aqui, mas animais selvagens havia em abundância: veados, macacos, grandes marrecos e patos selvagens, gansos e galinhas selvagens. O rio oferece peixes em tanta abundância que em um quarto de hora se pesca o sufi ciente. Muito abundantes são cobras e lagartos, mas não são perigosos. Não se planta aqui grãos europeus. Há trinta anos há europeus em Santa Catarina, mas conhecem pouco do antigo costume alemão de cultivar a terra. A principal cultura é a da mandioca cujas raízes misturadas à farinha de milho dão um pão muito bom. Em seguida vem o milho, o feijão, cana-de-açúcar, café e pouco de fumo. Todos os gêneros alimentícios são muito caros. Uma saca de farinha de mandioca (=90 Pfund)37 custa 5 mil-réis38; uma saca da batata: 8 a 10 mil-réis. Peças de roupa, panelas e louça e, sobretudo, todos os objetos de ferro e aço são excepcionalmente caros. Também os produtos mais comuns de ferro e aço são de origem ingle-
33 Morgo é uma unidade de medida agrária em uso na Alemanha e equivale a 2.500 m², ou seja, 0,25 hectare. Três morgos correspondem, portanto, a ¾ de hectare. 34 Robert Weck era proprietário do lote 10, da margem esquerda do rio Cubatão. 35 Friedrich Bennert, (*1824) de Wald – Solingen, casado com Johanna Helene Dinger, (*20.8.1826). Era proprietário do lote 13 e metade do lote 14, na margem direita do rio
Cubatão. 36 Rudolf Doberstein (*1828), de Pilghausen – Solingen, era casado com Caroline, (*1833).
Filhos: O o (*1859) e Maria (*...4.1860). 37 O autor usou a medida de peso em uso na Alemanha naquela época. Uma saca de 90
Pfund corresponde a aproximadamente 40 kg. 38 Um mil-réis valia aproximadamente 25 Groschen prussianos (2.50 Marcos).
sa. Um canivete, 1 mil-réis; tesoura, 3 a 4 francos; uma dúzia de facas e garfos bem simples de ferro e que enferrujam, 11 a 12 francos. Por isso, recomenda-se a todo imigrante prover-se, na medida do possível, com essas coisas; também cobertas de pena, que não se conhecem na colônia, mas que se pode usar muito bem.”
“O principal meio de pagamento consta de dinheiro em papel e de moeda de cobre cuja menor parcela é de 10 réis (3 Pfennig). Raramente se vê moedas de ouro e de prata. De vez em quando aparecem francos de ouro franceses nas casas de comércio.”
“É lamentável a falta de escolas e igrejas. A igreja mais próxima encontra-se a quatro horas de distância na vizinha colônia de Isabel. Um alemão, de nome Scheidt, mandou construí-la às suas custas. É para ser inaugurada em outubro de 1860, se bem que ainda falta um Pastor. No Brasil há liberdade religiosa e a maioria da população nativa pertence à Igreja Católica. Os alemães são tratados de maneira muito cortês e, no todo, de modo amigável. Crianças de 8 a 10 anos cumprimentam tirando o chapéu enquanto dizem “bom dia”. O governo provincial transfere à família dos imigrantes um lote colonial e durante seis meses cada pessoa acima de 10 anos recebe mais ou menos 10 Groschen de prata por dia. Dörner recebeu 49 mil-réis que ele deverá reembolsar ao Estado em seis anos a começar do terceiro ano.”
“Os imigrantes alemães precisam saber conformar-se com a privação de muitas coisas que não existem na nova colônia do Brasil. Não deve vir quem não gosta de abrir mão de sua vida social e muito menos aqueles que não são amigos do trabalho! Wilhelm Dörner, mais que aconselhar, prefere desaconselhar aos que têm a intenção de emigrar. Todavia, ele está convencido de que todo aquele que realmente é trabalhador, pode tranquilamente emigrar e no Brasil se sentirá um alemão livre e não um oprimido por autoridades, impostos e desemprego, como em sua terra natal na Alemanha.”
“Todo bom diarista – e esses são raros para conseguir – ganha, além da pensão, um mil-réis por dia, e não precisa trabalhar com tanta exaustão como muitas vezes ocorre na Alemanha! No que tange à melhoria das condições de vida, os alemães se sairão bem.”
“No fértil solo de terra arenosa crescem bem hortaliças alemãs que outrora aqui não existiam. Aqui a principal alimentação é feijão preto, pão de mandioca com farinha de milho e carne seca de gado, que não é muito cara. Como a atividade econômica com gado e pastagem é muito