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The girl with the kaleidoscope eyes
Por: Gabriela Teixeira - mixcloud.com/Submundo
Esse olhar que é só meu
Numa altura em que cada vez mais (e bem!) se fala em inclusão das pessoas com deficiência na nossa sociedade, decidi usar esta página para relatar brevemente a minha experiência enquanto fã de heavy metal que tem a particularidade de estar a viver um processo de perda de visão e que aprecia muito ir a concertos e até faz umas reportagens e tal…
Julgo que, pelo menos de vista, uma vasta maioria da comunidade me reconhecerá, principalmente os fregueses do Hard Club e do Vagos, por que eu não posso e nem sequer tenho qualquer intenção de esconder a minha condição oftalmológica, faz tão parte de mim, tais como os meus cabelos. É apenas uma característica e não me define de modo algum! Posso partilhar convosco que a minha doença degenerativa se chama glaucoma, que pode afectar qualquer pessoa, em qualquer idade e que é o maior responsável pelos casos de cegueira no mundo. O glaucoma está a provocar-me inúmeras alterações visuais que não servem só para me dificultar a vida e fazer-me tropeçar mais vezes do que eu gostaria, mas também me instiga a criatividade, ou vocês acham que o gamanço do verso dos Beatles como nome desta rubrica foi inocente? Não, não foi! O nome deste cantinho onde debito umas ideias foi inspirado nos aros luminosos que tenho constantemente no campo visual de ambos os olhos e que me alteram a tonalidade das cores. Soa estranho, não? Mas pensem bem no dinheiro que eu pouco em LSDs e demais aditivos! Não preciso de me “drógár” para ver cenas!! “Always look on the Bright side of life”, já diziam os Monty Python…
Galhofice à parte, comecei a frequentar concertos de metal há cerca de 20 anos e, como sempre vi muito mail, a minha experiência é mais acentuada ao nível dos restantes sentidos. Por exemplo, bateristas é coisa que tende a não “existir” para mim, a menos que eu esteja mesmo junto às grades e não haja demasiado fumo em palco. Acredito que, para a maioria das pessoas, observar minuciosamente a performance dos músicos, seja a grande motivação para ir ver um espectáculo. Para mim é uma vivência essencialmente imersiva onde o poder do som e estar rodeada de pessoas conhecidas e desconhecidas, que partilham do mesmo gosto que eu, se misturam e me proporcionam um momento único de verdadeira felicidade. É obvio que, como ainda tenho alguma equidade visual, tento estar o mais próxima possível do palco, no entanto tenho plena consciência que, mesmo assim, muitos pormenores me escapam. Nunca mais me vou esquecer do concerto de My Dying Bride, no Vagos 2010, e do meu irmão, a meio do concerto, me perguntar “estás a ver o Aaron deitado no chão?”, ao que eu respondi que não e apercebi-me assim que tinha acabado de perder um momento de grande intensidade visual…
O meu irmão, que felizmente partilha o mesmo gosto musical que eu, acompanha-me a muitos concertos e festivais e “empresta-me” os seus olhos em duas circunstâncias: ao responder às minhas dúvidas sobre o que se passa em palco e ao avisar-me de potenciais perigos como o crowd surf ou a mosh. O som tem uma preponderância ditatorial na minha orientação no mundo, mas, num concerto de metal, o som alto das colunas, aliado ao facto de eu não ter visão periférica, diminui-me bastante o sentido de orientação e, assim sendo, preciso de me proteger ao máximo porque um pé ou uma mão contra a minha cara podem trazer-me graves consequências. Confesso que já houve um ou outro concerto em que não me senti tão segura e, quando isso acontece, vou mais para trás e foco-me em ouvir a banda, em detrimento da performance. Outro exemplo: eu devo ser a única pessoa que pisa o Riverstone e foge da palha a sete pés porque me aterroriza a ideia de me entrar alguma para os olhos, mas não é por isso que lá deixo de ir, até porque o recinto é pequeno e eu consigo ver razoavelmente bem para o palco. O ideal para mim, digo-vos, é encontrar um cantinho onde possa estar relativamente sossegada a sentir a energia do momento, a sentir-me esmagada, no bom sentido, pelo som da banda que está a tocar enquanto fecho os olhos e sinto o chão a vibrar. Claro que nem sempre quando estou de olhinhos fechados é sinal de estar num transe religioso, muitas vezes são só as luzes que me estão a encandear. Por esta altura estão vocês a perguntar como é que esta Mrs Magoo faz reportagens de concertos, e eu respondo a vossas excelências: como eu nunca vou a concertos sozinha, no final converso sempre com as pessoas para averiguar a exactidão das minhas percepções e para colmatar, tal como expliquei acima, o que me possa ter escapado, no entanto, e para que fique bem esclarecido, eu nunca escrevo nada que não tenha sido pensado ou sentido por mim.
Em termos gerais, nunca tive problemas em nenhum concerto ou festival devido à minha “diferença”, à excepção de um bêbado no concerto de Sargeist no Caos Emergente de 2009 que me tentou tirar os óculos, mas mais uma vez, a presença do meu irmão foi essencial para a situação ter sido resolvida sem alaridos. Não vou omitir, no entanto, que fui alvo, quando estava ali pelos 20s, de bastantes olhares intrusivos e um ou outro risinho acéfalo por parte de gente malformada que, obviamente, me incomodavam… mas felizmente, com o passar dos anos, as pessoas amadurecem, tornam-se pais e mães, e actualmente não sinto qualquer laivo de hostilidade quando estou a curtir um concerto.
A minha condição pesa muito na escolha dos festivais a que vou. Dou preferência aos mais pequenos e aos que já conheço, por isso colossos como Hellfest ou Wacken estão descartados porque a percepção de muito movimento à minha volta causa-me imensas dores de cabeça e provoca-me um forte sentimento de insegurança. Assim sendo, Vagos, Comendatio, Sonicblast, Laurus ou Milagre Metaleiro preenchem os meus requisitos na perfeição e, neste momento, só me interessa saber qual deles vai confirmar Riverside para eu confirmar também a minha presença. :-)
Apesar das minhas inegáveis dificuldades visuais, eu sou uma pessoa bastante observadora e atenta a pormenores, e tenho vindo a notar que, pelo menos aqui pelo norte, não se encontra muitas pessoas com algum tipo de deficiência nas plateias do metal… Já vi uma ou outra pessoa de cadeira de rodas mas creio que nunca vi ninguém cego. Deixo então a questão no ar: porque será que tal não acontece? Será que os fãs de metal que têm alguma limitação não se sentem à vontade para ir a um concerto? Ou será que não têm como se deslocar? Tenho plena consciência que nem toda a gente tem a minha sorte e não há dia que não me sinta grata pelo irmão que a vida me deu. Em todo o caso, fico sempre muito contente quando vejo pessoas com alguma deficiência nos espaços públicos e, em especial em concertos, porque nós não nos devemos esconder, porque as pessoas sem deficiência têm de estar consciencializadas para a nossa existência e o convívio e o cruzamento dos dois “universos” é benéfico para ambos. Quebram-se preconceitos, estreitam-se laços de empatia e a humanidade fica um bocadinho mais unida. Quem tem uma deficiência não é diferente, não é inferior, é um ser humano como todos os outros e merece respeito, principalmente se estiver num concerto de metal a erguer os metal horns bem alto, caso tenha mãos para isso porque se não tiver, também não faz mal! O que importa é ouvir o som e sentir o peito a explodir porque aquela banda que nós tanto queríamos ver está ali à nossa frente!
Em jeito de conclusão, só me resta dizer que, enquanto a vida me permitir, vocês vão continuar a cruzar-se comigo em concertos, quer tenha eu ou não resíduo visual. E como diria o nosso caríssimo editor da Versus, Eduardo Ramalhadeiro, “Deus nosso senhor te conserve estes ouvidinhos”! Ao que eu retribuo: se não for Deus nosso senhor, há-de ser o Belzebu!
E já agora, caso interesse a alguém, eu tenho um podcast onde reflito sobre a minha experiência enquanto pessoa portadora de deficiência visual, basta pesquisar De Olhos Bem Abertos no Spotify ou no Anchor. Grata!
Até a próxima!