Deus está morto, por Victor Costa

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CINEMA

por victor costa

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ogo no início do livro O Mito de Sísifo, Camus escre­ ve que existe somente um problema filosófico real­ mente sério: o suicídio. A ideia cortante é que julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é respon­ der à questão fundamental da Filoso­ fia. Imagine um filme cuja trama passa a se desenrolar a partir de um suicídio. Um suicídio assistido. Enquadramento subjetivo do braço dobrado levando lentamente a mão com a arma até a cabeça. Som alto de disparo. Corte seco. Sangue escorrendo pela escada. Estou me referindo ao filme O clube, de Pablo Larraín. Pablo é um jovem diretor que tem se destacado na cena cinematográfica sul-americana. Numa recente entrevista lhe perguntaram se seu cinema seria político. Ao que ele respondeu: todo cinema é político. A pergunta trazia consigo a referência da pequena, mas significativa, cinemato­ grafia de Pablo relacionada ao perío­ do ditatorial chileno capitaneado por ­Augusto Pinochet. Fazem parte dessa cinematografia Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012). Os filmes de Larraín são um caso inte­

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ressante. É claro que não são filmes comerciais. Mas especialmente No, e agora O clube, ganharam relevância in­ ternacional. No concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2012 e O clube ganhou o Grande Prêmio do Júri na Berlinale do ano passado. O clube, diferentemente dos filmes anteriores de Pablo, toca apenas sutil­ mente no tema da ditadura pinoche­ tista. Mas isso não faz dele um filme menos político. Nem menos filosófico. O filme começa com a citação de um versículo bíblico, do livro do Gênesis: “E Deus viu que a luz era boa, e se­ parou a luz das trevas”. Em Berlim, na estreia internacional do filme, Larraín acrescentou: “eu creio que estejam juntas”. A história de O clube apresen­ ta acontecimentos ligados a uma casa de repouso para padres delinquentes católicos. Uma casa de detenção à beira-mar, em uma cidadezinha chile­ na afastada da civilização contemporâ­ nea. Sem Wi-Fi, sem smartphones, sem redes sociais. Nessa casa vivem qua­ tro padres e uma religiosa que presta cuidados a eles. Tudo começa com a chegada de um novo padre-detento. Padre Matias Lazcano, o que mete um

tiro na cabeça. Flashback imprescin­ dível: antes do suicídio descobrimos que Padre Lazcano molestou, tempos atrás, um jovem menino. Esse jovem menino, agora homem feito, vive se­ guindo-o e está lá fora no portão da casa, embriagado e descrevendo aos berros o que o padre recém-chegado cometia com ele no passado. Em meio à desconcertante situação, um dos pa­ dres internos apresenta uma arma a Padre Lazcano. Padre Lazcano sai da casa e caminha em direção ao portão. É nessa caminhada que cabe a mesma pergunta de Nietzsche em Genealogia da Moral. Sob que condições esses ho­ mens inventaram para si os juízos de bom e de mau? Fim do flashback. De frente ao portão; mão com a arma até a cabeça. Som alto de disparo. Corte seco. Sangue escorrendo pela escada. Foi também naquela caminhada que Padre Lazcano ficou diante d’O Mito de Sísifo de Camus e do proble­ ma de julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida? Que contrassenso o suicídio de um padre­. Pecado­, se é que se pode dizer isso, mortal; que lhe tira o acesso à vida eterna. Quais são os valores de bem e de mal de Padre


Em O clube, a noção de redenção, fundamental à doutrina católica, ganha contornos conflituosos quando aplicada aos padres e à própria Igreja

L­ azcano? O filme é uma espécie de genea­ logia da moral desses padres “delinquentes”. Uso aqui delinquentes entre aspas porque Larraín, de um modo muito próximo ao ­ nietzschiano, critica de forma contunden­ te os valores que norteiam as condutas de

civis de seus membros, criando tribunais, julgamentos internos e essas casas de retiro onde tudo se oculta. É pelo ponto de vista desse novo padre que vamos conhecer os crimes dos outros padres “delinquentes” e seu modo de pensar, sua genealogia m ­ oral.

imagens: divulgação

O clube tem uma amplitude temática fascinante característica da Filosofia, que é a tentativa de olhar para a natureza humana para além do bem e do mal cada padre-personagem. E, tal como Niet­ zsche na Filosofia, mostra que o bem nem sempre contribui e o mal nem sempre de­ genera. Por que Padre Lazcano se mata? O mal-estar da culpa de Padre ­Lazcano diante de seus pares foi insuportável? Chega então na casa-detenção de O clube um jovem padre com o objetivo de investigar a morte de Padre Lazcano. Mais que isso, esse jovem padre, representante do pensamento contemporâneo da Igreja Católica (certamente ele usa Wi-Fi, smart­ phone, redes sociais), quer fechar a casa­ -detenção. Embora trate de, o foco do fil­ me não é a homossexualidade ou ainda a pedofilia. Esse é um ponto crucial da leitura sobre o filme de Larraín: seu alvo é o fato de a Igreja Católica acobertar os crimes

Esse novo personagem funciona como contraponto moral com relação aos outros habitantes da casa. Por ele descobre-se aos poucos: há o padre homossexual; o padre que fez contrabandos de recém-nascidos; o padre-militar que acobertou crimes da ditadura pinochetista; o padre pedófilo. To­ dos sofrem com o fardo de suas ações (ou paixões) criminosas e com a culpa de não conseguir coaduná-las à doutrina católica. Vamos conhecendo-os aos poucos. As consciências desses padres-perso­ nagens são pouco definidas. É realmente difícil encontrar o solo de onde brotam seus juízos de valor. Em determinadas ce­ nas eles se mostram pessoas tão afetuosas (riem e conversam sobre amenidades num fim de tarde), ora tão sombrias (acessos de

victor Costa é redator e roteirista. Mestrando em Filosofia no HCTE-UFRJ e bacharel em Filosofia pela PUC-Campinas. Estudou roteiro cinematográfico na EICTV, em Cuba. victorcosta.pauta@ gmail.com

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raiva na mesa de refeição). O modo de construção desses personagens na tra­ ma de Larraín, tomada as proporções (conceituais, inclusive), assemelha-se ao exercício de equipolência cartesiana nas Meditações metafísicas, exercício de opor a um elemento qualquer o seu contrário (por exemplo, opor à cruel­ dade a benevolência), provocando no pensamento o mesmo efeito pelo qual passou Descartes no percurso do cogito: a suspensão das certezas. É tentador lançar um olhar cético para os persona­ gens do filme de Larraín; mais por não ter a mínima noção de quem eles são do que por preconceito aos crimes que eles cometeram. A rotina da casa segue com refei­ ções, orações, horta, banho de sol, vigília. De fato uma casa de retiro. Eles não usam trajes religiosos e, o que pode passar totalmente desper­ cebido, elemento banal, mas crucial: quase não falam sobre Deus. Há um contrassenso sinistro na vida destes padres que já não mais exercem o sa­ cerdócio. É como se para eles Deus estivesse morto. A morte de Deus os priva de todo consolo metafísico, como também de toda possibilidade de orientação. Não existem malevo­ lências. Não existem benevolências. O clube de Larraín tem uma amplitu­ de temática fascinante tão caracterís­ tica da Filosofia, que é a tentativa de olhar para a natureza humana para além do bem e do mal.

Se Deus está morto, tudo é permi­ tido. Os padres do clube estão numa terrível situação de perversidade existencial. Porque, diferentemente da situação de um Zaratustra nietzs­ chiano, não é a morte de Deus que os faz se isolarem da sociedade para refletirem sobre si mesmos e atingir a saudabilidade da transvaloração dos valores. Não. Não há aurora possí­ vel no filme de Larraín. A fotografia é soturna, com cores desbotadas que ditam o tom dessa casa-purgatório. Larraín tem uma estética muito par­ ticular. Uma estética argumental, ou seja, uma estética que também ela dita aspectos da narrativa. Uma es­ tética que está imbricada com o ro­ teiro. Encontro de forma e conteú­do, um modo de fazer extremamente re­ finado. Nesse sentido, O clube é um filme-penumbra. Na penumbra tudo é permitido. E facilmente ocultado. É a punição e a introjeção da cul­ pa que devasta os padres de Larraín. No isolamento eles não pensam para além do bem e do mal. Eles pensam, senão a partir do ressentimento, a par­ tir de um niilismo profundo. Seus va­ lores mais característicos vêm de fora, dos outros. Essa é a perversidade da existência do ressentido, a existência pela negação. Eles vivem o suplício da consciência na crista da onda da de­ cadência do catolicismo. Como dizia Nietzsche, é no niilismo que ocorre o empobrecimento do eu.

Padre Lazcano ficou diante d’O Mito de Sísifo de Camus e do problema de julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida? Nietzsche sugere que o homem vivencia a morte de duas maneiras: há a morte covarde e há a morte voluntária. A morte voluntária tem como causa o desejo de morrer. Deseja-se logo morrer porque se morre inevitavelmente. A finitude da vida bas­ ta para que se pregue o abandono da própria vida. Os que pensam assim são os “pregadores da morte”. ­ Nietzsche está sendo irônico, é claro. Ironiza a mi­ serável e terrível comédia que o cristia­ nismo fez da hora da morte. Diz ele: o cristianismo é a “religião que, de todas as horas da vida humana, considera a última mais importante”. A esperança dos pregadores da morte é que a re­ núncia da vida finita abrirá portas para uma vida eterna. A morte voluntária é aquela do tempo certo do querer. O voluntarioso com a morte a deseja não porque se morre anyway, mas porque quer a morte para afirmar a si mesmo. Sim, é uma apologia ao sui­ cídio. Mas deve ser vista com imenso cuidado e reservas. Toda morte, na­ tural ou não, é um suicídio. Definha­ remos por obra de nós mesmos. Mas aqueles que desejam uma morte covar­ de têm a impressão de que a morte é obra de outro alguém.1 Cf. NASSER, E. Nietzsche e a morte. In: Cadernos de Filosofia Alemã. São Paulo: Humanitas-FFLCH/USP, nº 11, págs. 99-110, 2008.

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Sugiro a leitura de Genealogia da Moral, livro escrito por Nietzsche como complemento e esclarecimen­ to de Para além do bem e do mal. Genealogia se tornou um dos livros mais influentes de Nietzsche. Entre as obras da maturidade do autor,

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Genealogia é o maior esforço de reflexão contínua sobre um único tema: a moral. Nele são tratados os conceitos de ressentimento, culpa, má consciência e de ideal ascético. É uma boa leitura para acompanhar O clube.

GENEALOGIA DA MORAL Autor: Friedrich Nietzsche Editora: Companhia das Letras 176 págs.

imagem: divulgação

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