Espelhos Quebrados Dor, Sofrimento, Vida e Morte na Linguagem Suicida

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Espelhos Quebrados Dor, Sofrimento, Vida e Morte na Linguagem Suicida

Patrick Alif Victor Hugo Sanches



ESPELHOS QUEBRADOS DOR, SOFRIMENTO, VIDA E MORTE NA LINGUAGEM SUICIDA



PATRICK ALIF VICTOR HUGO SANCHES

ESPELHOS QUEBRADOS DOR, SOFRIMENTO, VIDA E MORTE NA LINGUAGEM SUICIDA

Campo Grande/MS, Brasil 2015


Título: Espelhos quebrados - dor, sofrimento, vida e morte na linguagem suicida Copyright © 2015 Patrick Alif e Victor Hugo Sanches. Todos os direitos reservados. Autores Patrick Alif Victor Hugo Sanches Fotos Victor Hugo Sanches Orientadora Katarini Giroldo Miguel Coorientador Edilson dos Reis Projeto gráfico e diagramação Patrick Alif e Victor Hugo Sanches Contato patrickalif@hotmail.com victorhugosanches9@gmail.com

Projeto Experimental do Curso de Comunicação Social Jornalismo 2015 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul


Sumário Prefácio.............................................................................................9 Introdução.......................................................................................11 Capítulo I - Por trás dos atos........................................................15 Miriam.........................................................................................17 Matias.........................................................................................25 Decepções de Miriam...................................................................33 Fraquezas de Matias....................................................................43 Capítulo II - Dramas incompreendidos........................................53 Marlene........................................................................................55 Mônica.........................................................................................63 Jéssica..........................................................................................67 Caio.............................................................................................73 Júlio.............................................................................................83 Capítulo III - Anjos da prevenção................................................89 Capelão Reis................................................................................91 Roberto Sinai..............................................................................111 problemas demais, voluntariado de menos....................................117 o drama da juventude em Campo Grande.....................................118 suicídios mascarados................................................................128 o desamor e o desamparo..........................................................130 o rapport.................................................................................134 Sílvio Romero.............................................................................141 Major Wagner............................................................................149 Emerson Leite.............................................................................157 Decepções: o gatilho para os suicídios..........................................161 Desafios Paralelos.....................................................................165


Capítulo IV - Além do ato............................................................173 Para quem fica...........................................................................175 Pastor José................................................................................183 Padre Dirson..............................................................................191 Médium Luciano........................................................................202 O Instituto..................................................................................211 Clínica do Luto..........................................................................221 Capítulo V - Fuga do Labirinto...................................................233 Retomada..................................................................................235 Ação.........................................................................................239 Reação.......................................................................................243 A pauta suicídio.........................................................................247 Unidos por uma causa................................................................255


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Prefácio Apresentar a obra de Patrick e Victor, não é apenas motivo de orgulho e honra pessoal. Possui o sentido da essência em minha militância como educador do comportamento humano. É o significado da consagração pessoal, afinal, vou falar sobre o trabalho de dois jovens acadêmicos e futuros jornalistas, que muito têm estudado e pesquisado sobre a temática do suicídio e suas interfaces, tema este alicerçado no mito, no tabu e no paradigma da ignorância. Ambos me surpreenderam com um trabalho, enveredando por um tema totalmente desconhecido e ausente nas redações da mídia nacional. Só mesmo dois intelectuais inquietos e investigativos como o Patrick e o Victor, para dar forma a um tema tão difícil e complexo, o qual em suas mãos se torna tão suave, sereno e de fácil compreensão. Eles pincelam o discurso acadêmico com a sensibilidade humana, a inteligência e o caráter individual, que somados dão voz a quem sofre a dor da existência humana. Este livro não tem a pretensão de ser um manual ou uma espécie de volume de estudo sobre o suicídio ou a saúde mental. Ao contrário, é uma obra humanizada e investigativa, que vem preencher o vazio literário deste gênero. O bom jornalismo possui fatos e narrações baseados em evidências, e este livro foi lapidado com valores éticos e credibilidade, facilitando a receptividade e contribuindo para uma formação de opinião por meio dos fatos expostos. Neste livro encontra-se mais que uma pesquisa ou uma investigação, encontra-se a paixão por uma obra. Edilson dos Reis Educador e Coorientador



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Introdução O suicídio é a reação final dos sofrimentos individuais. Desejo que sufoca a vida. Fenômeno que se revela entre lágrimas na escuridão. Epidemia invisível que é responsável por ceifar uma vida a cada 40 segundos no mundo. O Brasil registra em média duas tentativas de suicídio a cada 45 minutos. De acordo com o Mapa da Violência de 2014, Mato Grosso do Sul é o terceiro estado brasileiro com maior índice de autoextermínio, a cada 100 mil habitantes. Considerando as mesmas proporções, Campo Grande ocupa a sétima posição entre as capitais. Nossa jornada teve início em fevereiro de 2015, quando decidimos procurar por profissionais engajados sobre o tema. O objetivo deste livro é mostrar que o suicídio é um ato que envolve comunicação, um pedido de socorro manifestado por sentimentos. Desde o primeiro momento a afirmação de Émile Durkheim reforçou nossa proposta. “É uma denúncia individual de uma crise coletiva”. Foi um grande desafio escrever sobre o tema. Não tínhamos nenhuma referência e muito menos conhecimento. As aulas do curso de jornalismo não envolveram este debate. Partíamos literalmente do zero para descobrir um universo que muitas pessoas não enxergam. Dois repórteres dispostos a conhecer e principalmente perguntar. A única certeza que tínhamos sobre o tema era que o suicídio é um tabu enraizado na sociedade. Portanto, explicamos antecipadamente nossa proposta para os personagens deste livro e agendamos as entrevistas com três meses de antecedência. O objetivo foi conquistar a confiança das fontes. Enfrentamos também algumas dificuldades nessa etapa do trabalho. Em determinadas situações, encaramos a desistência por parte de algumas fontes, outras simplesmente nos evitaram. Hou-


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ve pessoas que se arrependeram em querer conversar sobre o assunto e expor os sentimentos e momentos em que optamos por respeitar o luto recente dessas vítimas e não abordá-las. A intolerância de alguns personagens marcou este trajeto. Pessoas que manifestaram opiniões radicais sobre o tema e não nos autorizaram a realizar nenhum tipo de registro. Conteúdos que coletamos e não utilizamos, alguns por desejo da fonte e outros por não obter aceite nos termos de autorização. Durante o ano de 2015, período que envolveu todas as etapas do trabalho, tivemos a oportunidade de participar e integrar vários eventos em Campo Grande, como o I Curso de Prevenção ao Suicídio do Brasil e o IX Seminário de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio. O objetivo foi aprofundar nossos conhecimentos sobre o assunto. O conteúdo deste livro traz relatos de pessoas sobre o suicídio. Histórias que narram momentos de dor e sofrimento que antecederam o ato. Ora por familiares, ora por amigos, ora por profissionais. A intenção foi ouvir pessoas de diferentes faixas etárias, evidenciando que o suicídio pode atingir todas as idades. Tentamos mostrar para a sociedade alguns sinais manifestados por indivíduos que viveram este drama. Espelhos mostram além dos reflexos. Quebrados, revelam angústias no íntimo das pessoas. Cacos que simbolizam as infelicidades da vida. Resultado de ações diárias que levam uma pessoa a acreditar que o autoextermínio é a solução dos problemas. Vontade de quebrar. Almas destruídas. A metáfora “espelhos quebrados” ilustra o drama individual como consequência do ato. A nossa opção foi desenvolver uma construção textual que utiliza a primeira pessoa do singular. Acreditamos que o uso da primeira pessoa no plural confundiria o leitor e dificultaria sua imersão nas histórias relatadas. O objetivo principal foi valorizar o texto com as narrativas e trechos descritivos. Participamos juntos de to-


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das as entrevistas e situações de apuração e é evidente que temos algumas experiências e impressões individuais sobre os mesmos acontecimentos. Mas tentamos nesse livro apresentar um consenso em relação aos relatos. Desejamos que este livro ajude a acender o sinal amarelo de alerta dentro de cada pessoa sobre o tema. Este trabalho é uma pequena semente que pode inspirar novos frutos. O suicídio é um problema de saúde pública, não deve ser tratado com descaso e interpretado com os olhos do preconceito. Merece toda atenção. Afinal, o que nos trouxe até aqui não foi coragem, mas sim esperança. Boa leitura! Patrick Alif Victor Hugo Sanches



I Por trรกs dos atos: Sentimentos e comportamentos



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Miriam

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ia frio do mês de maio de 2015, fim de tarde e, consequentemente, fim de sol. A caminhada se torna longa pelo fato de não conseguir localizar a rua correta no primeiro momento. No final do dia estava difícil encontrar alguém por ali, as ruas estavam vazias. Felizmente, as tecnologias da modernidade foram responsáveis por me mostrar o caminho correto, mapas completos que cabem no bolso. No local, dois toques consecutivos na campainha não foram suficientes para anunciar minha chegada. Foi necessária uma ligação para a anfitriã da residência. Ao atender, Hannah diz: - Oi, você já chegou? Desculpe, já estou indo, estou terminando de me arrumar. Não ouvi a campainha. Percebo que na casa acontecia uma faxina acompanhada de uma música bem alta, talvez fosse essa a melhor opção para motivar este tipo de atividade em plena sexta-feira. Durante os minutos de espera, observo uma figura feminina, até então desconhecida, limpando um tapete na garagem. Entretanto, a minha presença ali não era notada. No tempo de espera observo aparentemente, um bairro tranquilo, pouco movimentado e com uma vizinhança silenciosa. Todavia, ao me receber, Hannah surpreende pela companhia de três avantajados cachorros Rottweilers. A jovem abre o portão de sua residência e me convida a entrar. - Oi, tudo bem, pode entrar, eles são mansinhos. Passos curtos e vagarosos eram os reflexos daquele momento de tensão que foi inibido por uma lambida na minha mão esquerda. Com a intenção de quebrar o gelo, decidi então fazer uma piada em relação aos cães, enquanto secava discretamente a saliva quente entre os dedos. - Nossa, a casa está bem protegida mesmo, né?


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- Sim, por aqui o bairro anda meio perigoso. Na casa, tudo parecia ter o seu lugar. Hannah estampava uma fisionomia de tensão e um pouco de nervosismo nas palavras que trocava. De repente dispara uma enfática bronca na até então desconhecida moça que lavava o tapete, sua irmã Carina: - Não deixe o tapete molhado em cima do sofá! Com a visível ansiedade ainda prevalecendo, Hannah a priori não consegue definir o melhor local para iniciar a conversa. Portanto, ela me permitiu escolher entre as cadeiras da mesa de jantar ou as poltronas da sala. Por instantes fiquei na dúvida e não consegui optar pelas sugestões, porque o notável objeto rosa daquele ambiente roubou completamente minha atenção. A referência colorida era a televisão, que associava a feminilidade dominante naquela residência, constituída por Hannah, Carina e a mãe. O ambiente era constituído por um cenário familiar. Entretanto, não notei nenhuma foto referente à protagonista da entrevista, a avó paterna das moças. O horário não parecia ser o mais apropriado. A música alta é substituída por outra composição, uma sinfonia de latidos dos três cachorros e a carência dos outros quatro gatos que disputavam a atenção de Hannah e a deixavam ainda mais impaciente. A escolha da sala pareceu agradá-la pelo maior conforto, entretanto todo aquele barulho dispersava a atenção da jovem e dificultava o início da conversa. Nos primeiros diálogos ficava evidente a esquiva dos olhos da entrevistada. Durante todo o tempo, a sua visão era conduzida para o peludo tapete marrom de chão. A postura clássica do sentar, em conjunto da suave voz que propagava em tom baixo, deixava claro a sua boa educação, porém era evidente também o contraste de reações. Suas mãos se apertavam constantemente e os movimentos de nervosismo coloriam os dedos para um tom rosado. - Hannah, conforme conversamos brevemente por telefone, estou aqui porque gostaria que você falasse sobre sua avó. Podemos começar?


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Durante os primeiros questionamentos, era perceptível o brilho sutil que a manifestação das lágrimas proporcionava aos olhos da jovem, que se permitia transbordar na saudade, reação de um sentimento puro, que rendia também à frágil voz feminina um tom trêmulo e embargado de respostas. Miriam, a avó de Hannah, era a caçula de um casal espanhol que imigrou para o Brasil e se instalou na cidade fronteiriça de Ponta Porã (MS). As descendências europeias lhe proporcionaram uma beleza autêntica, personalidade muito forte e, com o tempo, a reputação de ser uma aluna aplicada em sala de aula. Hannah traz lembranças de um passado não muito distante, presente em sua memória, por meio de histórias e também pela rotina vivida por sua avó. - Minha avó faleceu com 73 anos de idade, era uma idosa muito ativa e alegre. Frequentava academia e praticava natação, sua boa saúde permitia nadar 1000 metros com facilidade. Adorava dançar um bom chamamé¹, além de frequentar bailes, gostava de ler livros referentes à religião e espiritualidade como A Cabana e a Bíblia. Era muito católica. Também era muito vaidosa e tinha hábitos saudáveis. Nunca se envolveu com bebidas e nunca fumou. Sempre quando saía, arrumava o cabelo com bobe, ficava muito bonita e elegante. Mesmo tentando, Hannah não conseguia segurar as emoções. Pequenas lágrimas escorriam pelo seu rosto e marcavam o trajeto até seus lábios que finalizavam a frase com sabor salgado. Neste momento, sua irmã Carina pede autorização para poder integrar a conversa. Percebi a curiosidade da moça já nos primeiros momentos. A escolha das poltronas da sala me proporcionou sentar ao lado de um móvel espelhado. Nomenclatura de mobílias não é minha especialidade, mas, sim, era uma bela cristaleira. A antiguidade entregava o reflexo da silhueta de Carina na cozinha, que atentamente Chamamé¹: estilo musical tradicional da província de Corrientes, Argentina, apreciado também no Paraguai e em alguns locais do Brasil como nos estados de Mato Grosso do Sul e do Rio Grande do Sul.


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refletia sobre as falas ao saborear uma maçã e aguardava o momento propício da sua entrada. Logo a jovem surge. - Oi, eu tava ouvindo o que vocês estavam conversando. Posso participar? Mesmo irmãs, o contraste de personalidades era notável. A sensibilidade de uma era substituída pela impulsividade da outra. Carina, a irmã mais nova, estava disposta a dar o seu ponto de vista, entretanto com uma opinião recheada pelo dobro de saudade. - Minha avó era uma pessoa muito boa. De todas as suas virtudes, a que me recordo mais era a sua vaidade e o fato de ser uma excelente cozinheira, prática que adquiriu pela necessidade. Eu me lembro que quando queríamos aprender alguma coisa, eu e uma amiga minha, a Luisa, ligávamos para ela e falávamos: “Vó, me ensina a fazer tal coisa”. Então ela dizia para irmos lá, mostrava como tinha que ser, tinha as regrinhas dela e ela sempre alertava: “Não aprenda e nem queira saber muita coisa em relação à cozinha, porque senão vocês se tornam escravas”. Ela sempre dizia isso para nós. Era uma delícia ter uma avó europeia que fazia as melhores comidas do mundo e nos dizia: “Tem que comer porque eu fiz tal coisa”. Não tinha coisa melhor do que chegar lá e ter trufas de maçã, ter bolo de chocolate e inúmeras outras coisas boas, Nossa Senhora! O engraçado é que ela não queria que a gente engordasse, não é mesmo Hannah? - Sim, eu me lembro também que a vó fazia salgados e eles eram uma das comidas mais valorizadas aqui de Campo Grande. Eu lembro que ela dizia: “Ah, eu fiz salgado para o show da Ivete Sangalo”, rotina que se repetia todo fim de semana. Carina apresentou uma postura incisiva a partir do momento que foi integrada na conversa, tomava a frente da maioria das respostas, talvez por ter um temperamento forte e também pela proximidade maior com a avó. - Eu tenho fotos antigas, você gosta? Eu vou lá pegar.


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O movimento brusco ao se levantar, combinado com passos largos e apressados, resumiram a atitude de Carina ao buscar a caixa de recordações, tomada pela agitação e euforia como uma criança que mostra pela primeira vez o brinquedo novo a um amigo. Foi inevitável não prender o olhar após todos os relatos. A essência das antiguidades tem um valor ainda maior quando as suas referências são contadas com tanto sentimento, tomam proporções maiores que o sentido da visão, acabam influenciando pelo cheiro e principalmente pela imaginação. Foi impossível não realizar esta breve viagem naquela caixa colorida de 10 x 15. Carina então, se deliciava com as lembranças, enquanto Hannah permanecia estática reagindo somente quando questionada. - Esta aqui é minha avó jovem. Ela era muito bonita, né? Estes são os filhos. O maior deles é meu pai e estes aqui são os meus bisavós. Este é meu tio que faleceu. Alguns parentes dizem que ele se parece comigo, mais do que meu pai, inclusive. Mais que objetos e muito além de lembranças, este sim é o tesouro precioso de Carina. Ali estava um pouco da essência em vida de um perfil vaidoso e religioso de Miriam. Símbolos caracterizados pela forma do tradicional leque espanhol, uma frágil presilha de cabelos e um terço católico. As fotos registraram uma época que Miriam viveu momentos únicos. Ela viajava frequentemente para Miranda (MS) para ver os irmãos, além de ir para rios e cachoeiras. Os vários passeios e viagens eram o reflexo de uma jovem com espírito aventureiro. Consequentemente, atraía a atenção de rapazes, não demorando muito para se casar, fruto de um amor correspondido, como recorda Hannah: - Quando minha avó conheceu meu avô, ela era jovem e eles se amavam muito. Ela tinha uma qualidade e condição de vida muito boa. As amizades da minha avó na época eram somente pessoas da alta sociedade.


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Independente das situações, Miriam, de acordo com as netas, era uma pessoa que só tentava ajudar, sugeria conselhos e às vezes dava alguns “puxões de orelha”. A prioridade dela eram valores que considerava relevantes para a vida. - Ela brigava com a gente porque nós gastávamos dinheiro à toa. “Vou levar vocês ao hospital do câncer para verem um pouco da realidade das pessoas que ali estão e pararem de reclamar da vida” – relembra Hannah. Hannah foi a primeira indicação sugerida pelo capelão do Hospital Universitário de Campo Grande (MS), Edilson dos Reis. A conversa com as netas de Miriam acontecia sem contratempos, mas as feridas teriam que ser abertas para compreender o drama. O desconforto seria inevitável, mas era necessário tocar neste assunto.

Dentro do baú da nostalgia ainda existe um sopro de vida de quem se foi, revigorando a caminhada de quem fica. Patrick Alif




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Matias Sob forte calor em Campo Grande, o ônibus me conduz para a periferia da cidade. O trajeto até então estava longo e por ser “bandas” desconhecidas, a impulsividade me fez descer antecipadamente do local planejado. Minha caminhada tinha como único companheiro o sol das duas da tarde. Dessa vez não estava perdido, porém muito confuso. Os números das ruas se apresentavam com uma desordem completa. Sequências maiores seguidas por sequências menores, não existia ordem e sentido algum, dificultando encontrar o endereço desejado. A rua altamente movimentada, ilustrada por diversos estabelecimentos comerciais, não sugeria ali um fluxo de pedestres. Buscar alguma informação para me esclarecer não era possível. Novamente me restou a ligação telefônica. No outro lado da linha, Marlene atende: - Alô! - Oi Marlene, tudo bem? - Tudo ótimo. - Estou na rua da sua casa, mas infelizmente não consigo achar o número. É impressão minha ou a numeração da rua não apresenta uma ordem correta? - Essa rua é bem bagunçada mesmo. Faz o seguinte, acha a loja de material de construções do Barbosa. A minha residência é no mesmo quarteirão. Precisei caminhar mais dois quilômetros para, enfim, localizar a loja de material de construções e logo a residência com o número indicado. Trata-se de uma área bem afastada do centro da capital. Os números não adotavam um padrão e eram referências próprias de acordo com a chegada das pessoas que moravam ali. A minha impressão é que o bairro ainda era novo e estava crescendo, mesclando ruas de terra com um pouco de pavimentação.


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No local encontramos uma residência simples na cor verde. As acinzentadas grades de altura média mostravam também a preocupação pela segurança. Entretanto, o destaque era o intenso branco das flores, decoração que ganhava vida com o brilho do ensolarado dia de sol. Neste momento, volto a ligar para Marlene, anunciando minha chegada. Logo um adolescente me recebe e me convida para entrar e aguardar em uma mesa comprida, típica de grandes famílias. Trata-se de Erick, filho da anfitriã da casa. De imediato, o garoto me questiona: - Você está com pressa? - Não, sem pressa nenhuma. - Que bom, porque acho que ela vai demorar um pouco. A espera não é longa, um simpático e carinhoso gato se aproxima e faz amizade comigo. Ao acariciar o bichano, observo que talhado na madeira da porta da sala existia a imagem de Jesus Cristo acompanhado da hóstia consagrada. Posso notar também que, em um cômodo interno da residência, Cintia, a filha de Marlene, realiza uma faxina. Um simples cumprimento mostra que a moça encontrava-se ocupada com seus afazeres. Em seguida, Marlene me recebe. O tempo de espera mostra que a sua vaidade esteve presente até mesmo para uma simples conversa. Os seus cabelos molhados revelam um banho recém tomado. - Oi Marlene, tudo bem? - Olá, achou? (risos) - Sim, depois da sua dica foi tranquilo. - Ah, que bom. O que você acha de conversarmos lá é mais fresco. Depois de uma longa caminhada sob alta temperatura, um ambiente fresco seria a pedida perfeita. Ao caminharmos para o local sugerido, Marlene explica que ali, além de sua residência, é o negócio da família. Trata-se de uma grande área de lazer, estruturada


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com o objetivo de receber pessoas para reuniões, ocasiões festivas e até mesmo a prática de alguns esportes. Nosso destino era um quiosque, que estava preparado para a ocasião. No centro da mesa estava uma tentadora garrafa de água gelada que em seguida foi me oferecida. Sem muitas delongas, dei início à conversa. - Marlene, conforme nos falamos em outra ocasião, gostaria que você falasse sobre seu pai. A euforia e a agitação nos primeiros momentos de conversa com Marlene foram confusas. A mistura de lembranças e saudade refletiu diretamente no discurso um tanto desestruturado daquela mulher. A impressão que tenho é que o excesso de histórias tornava os relatos da personagem um tanto embaralhados, sem começo, meio e muito menos fim de raciocínio. Aos poucos, as informações foram se encaixando e ganhando sentido. - Meu pai se chamava Matias, faleceu com 49 anos e era um típico homem do campo, nascido e criado em zona rural. Tudo o que conquistamos veio praticamente deste estilo de vida, da roça. Eu, meus irmãos e minha mãe ajudávamos ele no serviço do campo. Já teve época de eu bater feijão de cambão, creio que vocês nem conhecem né?! É um pau com um ferro na ponta, onde se bate o grão. Era um pano grande de encerado e a gente batia ali. Nós batíamos também o arroz, era um pau aonde você pegava os feixes de arroz, batia e os grãos caíam. A nossa vida era voltada ao campo o dia inteiro. Íamos para a escola, mas era só chegar, almoçar e ir para a roça. Aos finais de semana a gente limpava a casa. O estilo de vida simples permanece em todo o comportamento de Marlene, como na pronúncia das palavras e nos gestos com as mãos. O jeito aparentemente não mudou nem mesmo com o passar do tempo, muito menos com a chegada das tecnologias e dos novos hábitos de um cenário urbano. Durante a conversa, observo que Erick, após terminar de lavar


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uma moto, trabalha na manutenção de um canteiro de hortaliças. O jeito simples do rapaz e até então mal humorado, manifestava uma suposta curiosidade sobre o que estávamos conversando ali. Independente disso, ele apresentava comprometimento com suas responsabilidades. Marlene, ao observar o filho, dá continuidade ao seu relato: - A vida do meu pai era só trabalhar. A única coisa que meu pai fez para fugir da rotina foi a ida a uma romaria² para Aparecida do Norte (SP) devido a uma promessa que foi cumprir, mas foi só isso. Do resto era só trabalho, ele ficava o tempo todo na roça. Trabalhava desde quando clareava o dia até a noite. A nossa vida era essa, não tinha um lazer. No sítio onde morávamos havia um riozinho, aonde eu e meus irmãos íamos para nos divertir, mas era mais para nós, meu pai dificilmente conseguia ir. Lembro que quando a gente parava de trabalhar aos domingos, íamos para o rio pescar e tomar banho. Embora a rotina de trabalhos e obrigações com o campo ocupasse a maior parte de seu tempo, os relatos deixavam claro que Matias foi uma pessoa presente para sua família. - Meu pai era uma pessoa muito apegada aos filhos. Na região onde morávamos, eu e minhas irmãs éramos conhecidas como as filhas do “Seu Matias”, devido ao respeito que ele havia adquirido por lá. Lembro que ninguém poderia fazer mal para as filhas dele. Quando alguém da família fosse magoado, ele fazia de tudo para defender. Ficava cada vez mais evidente o afeto que Marlene sentia pelo pai. Sentimento ora manifestado por gratidão, ora por saudade, nesta sessão nostalgia. O vínculo era forte, tão forte que me permitiu interpretar maior valor da figura paterna em relação à materna durante alguns relatos. - Olha, ele era o verdadeiro pai, aquele paizão. Ele me defendia em tudo e não deixava ninguém bater em mim. Minha mãe era Romaria²: Viagem ou peregrinação religiosa a um local considerado santo.


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muito brava, batia nos filhos com pedaço de pau e meu pai sempre protegia. Para nós, ele era um exemplo. Ele poderia não ter nenhum centavo, porque tiveram momentos muito difíceis em nossas vidas onde meu pai ficou sem comer para nós comermos. Teve uma situação muito feliz e inesquecível que me lembro bem. Certa vez, eu estava muito mal, de cama, e com convulsões. Então, meu pai pegou um dinheirinho que restava, foi até a cidade e comprou um calçado para mim. Eu deveria ter uns cinco aninhos e ele me deixava dormir com aquele calçadinho. Quando eu dizia: “Quero meu pai”, minha mãe o chamava e ele vinha da roça, ele era fantástico cara, sem explicação. As lembranças de Marlene não inibiam as reações que teve durante todo o depoimento. As mãos que pressionavam e esfregavam o pingente do colar em seu pescoço, evidenciavam que o passado ainda a comovia. Uma infância construída por momentos únicos e a figura de um bom pai. - Meu pai era o presidente da igreja do bairro rural onde morávamos, ajudando inclusive a construí-la. E realmente ele era assim, se você precisasse, ele largava tudo para te ajudar. Ele ajudava todo mundo, se sacrificava pelos outros, tanto pelos filhos, quanto pelos amigos e principalmente pela família. Ele era um homem muito bom e só faltava tirar a roupa do próprio corpo para dar aos outros. Se existe uma coisa que aprendi com meu pai e tento passar para os meus filhos é a honestidade, que deve estar sempre em primeiro lugar. Não existiam palavras suficientes que descrevessem Matias nas impressões da filha. Entretanto, o respeito e a admiração de Marlene eram confrontados com um sofrimento complexo que até então eu desconhecia. Conheci Marlene no Grupo de Amor à Vida (GAV) na busca instintiva por informações que me permitissem entender mais sobre o suicídio, tema tão complexo. No local, fui muito bem recebido e


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realizei meu primeiro contato com a mulher, que atualmente é voluntária dessa Organização Não Governamental (ONG). Ela queria falar, desde o momento no qual nos conhecemos pelo acaso, porém lhe faltava oportunidade. Conversando sobre suicídio, surgiu a oportunidade de conhecer um pouco sobre sua história. Ela queria tocar neste assunto trancado dentro do baú de suas emoções. Parecia ironia do destino, mas a humilde mulher que dedicava seu tempo de forma voluntária para escutar os sofrimentos humanos, naquele momento achou a oportunidade para compartilhar seus dramas.

Referência, zelo, honestidade e lealdade múltiplas virtudes que mascaram realidades. Mas nada abala a gratidão de um profundo e sincero amor paterno. Patrick Alif




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Decepções de Miriam - Minha avó casou com meu avô quando ele era jovem e muito rico, só que ele era meio safado, sabe? Inclusive ele tem filhos fora do casamento que tem minha idade e até mais novos do que eu. Isso machucou muito minha avó. Ele não dava valor na pessoa que tinha, pisava muito na bola e minha avó não sabia administrar essa situação. Ela sempre foi muito negativa com os erros dele e não adotava ações para mudanças, criando diversos atritos que o fizeram procurar outra família fora da relação. Situação que acontece no casamento, não tem jeito – desabafa Carina. A condição financeira privilegiada, que proporcionava ao casamento navegar sobre um tranquilo mar de rosas, enfrentava suas primeiras tempestades. Os ventos fortes levaram para outras direções e os episódios do novo cenário permitiam experimentar as sensações da incerteza. Miriam passava a carregar o pesado fardo da culpa e mergulhava nos profundos lamentos dos próprios pensamentos. Ela acreditava que poderia ter feito diferente, ser mais inteligente naqueles momentos, e ter conduzido o relacionamento pelas águas calmas da felicidade. - Ela dizia algumas vezes que se fosse possível, voltaria o relacionamento com meu avô e faria diferente – confessa Carina. Miriam e Luís possuíam um empreendimento enquanto casados, mas o lucro obtido não se limitava aos cofres da empresa e tomava um destino até então desconhecido pela esposa. - Meu avô nunca soube administrar o dinheiro que teve e isso destrói qualquer relacionamento. Ele desviava o dinheiro para sustentar a outra família que tinha fora do casamento. Essa situação gerou reflexos futuros, eles perderam a casa por não pagarem os impostos – recorda Hannah. Separada do marido, Miriam enfrentava os desafios da dificuldade financeira. Os fantasmas das mentiras do antigo companhei-


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ro não impediram a idosa de retomar a antiga residência por meio de usucapião. Nessa fase foi necessário buscar alternativas para obter renda, sua única fonte se resumia à aposentadoria de um salário mínimo. - Esse dinheiro era pouco para se manter, por isso, apesar da idade, ela trabalhava muito, não era pouco. Acho que nem os jovens tem pique para trabalhar da forma como ela trabalhava. As amigas não precisavam trabalhar como ela, feito uma condenada. Isso a chateava muito. Chegou um momento em que ela não tinha mais prazer de fazer comida, que era uma coisa que amava, não queria mais nadar, não queria mais dançar, não tinha mais prazer em fazer nada. Ela não aguentava mais trabalhar. A noite ela sentia dores na perna, então, nós dissemos: “Que não seja por isso, venha morar com a gente”. Porém, ela também não queria isso, você tá entendendo? Na cabeça dela, ela não queria aceitar a idade e se colocar em uma situação de invalidez para não trabalhar. Isso foi muito ruim para ela, pois era muito independente – explica Carina. A preocupação de Miriam em não incomodar seus familiares e o medo por atritos e intrigas entre seus filhos impedia que ela aceitasse algum tipo de ajuda. - O que eu percebia era que ela não queria ficar mal com nenhum filho. Ela pensava: “Como que eu vou morar com o Clóvis e deixar o Renato?”, ela ficava dividida o tempo todo. Quando ficou internada, eu a visitava e ela dizia: “Ai filhinha, não quero te dar trabalho”. Ela não queria ser estorvo na vida de ninguém, deixava muito claro que não gostaria de dar trabalho para os filhos e netos. O divórcio com o marido foi inevitável e, com isso, vieram as consequências. Nova rotina, novas responsabilidades, nova realidade. Entretanto, o que parecia ser a maior fenda desses buracos era a solidão que agravava diretamente todas as angústias. Portanto, estar aberta a novos relacionamentos sem perder os melhores hábitos parecia ser uma boa alternativa que surgiria com o tempo, mas a idosa enfrentou uma resistência familiar para esta opção.


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- Certa vez, quando eu estava conversando com minha avó, ela me falou que estava muito triste porque descobriu que o Mário, o namorado que teve depois da separação com o meu avô, estava se relacionando e morando com outra senhora. Lembro da tristeza dela dizendo isso. A nossa família não aceitava esse namoro. Acredito que isso foi um grande agravante para a minha avó. Ela reclamava da solidão, que era muito triste, estava idosa e ficando só. Sempre batia nesta tecla e reclamava muito disso. Dizia que a pior coisa era chegar à velhice sem ter ninguém – recorda Hannah. Mudanças radicais de comportamento podem ser estimuladas por sofrimentos e são responsáveis por vários sintomas caso a pessoa não possua resiliência para encarar determinadas situações. O que veio a aflorar ao longo desta trajetória infelizmente foi a depressão que se instalou em Miriam e passou a compor os momentos de sua vida. - Minha avó, embora alegre, sempre foi depressiva e no auge dessa condição, ela não era mais a mesma pessoa. Mas isso teve vários estágios. Nós íamos visitar minha avó na casa dela e ela só reclamava, nós víamos que não estava bem. Por isso, meu pai falava para nós ficarmos mais com ela. Dessa forma, fui morar lá, mas eu mais atrapalhava do que ajudava, porque trazia os meus problemas para a casa. O maior dilema é que minha avó era sozinha e queria ficar sozinha, não aceitava que alguém ficasse lá por muito tempo. Na época, Carina decidiu morar com o namorado porque a nova rotina de estudos e trabalhos incomodavam a avó na sua residência. Entretanto, a ausência da neta foi sentida por Miriam, situação que também agravou o quadro de solidão. - Me afastei muito e ela reclamava que eu não a visitava mais. Então, na mente dela, era como se estivesse com a missão cumprida. Afinal, nós que somos as netas mais velhas crescemos, os outros netos são crianças e os filhos já estavam grandes – explica Carina.


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O buraco negro da depressão se tornava maior, sem fundo. O afastamento dos familiares era sua realidade, a ausência dos quatro filhos homens e, principalmente, dos netos, conforme cresciam foram os protagonistas da solidão, além da precoce morte de um dos filhos, cada vez mais sentida. - Minha avó teve várias crises de depressão, como por exemplo, quando o filho morreu, quando o casamento acabou e quando terminou o relacionamento com o namorado Mário. Mas uma coisa que chateou e machucou muito ela, era o fato de não sermos uma família unida. Era muito triste para uma mãe, ainda mais uma mãe de antigamente, ter quatro filhos que não podiam se encontrar. Em relação aos netos mais novos, eles não gostavam muito de ficar na casa dela. Gostavam mais de ir para a casa da outra avó porque lá tinha piscina e isso a deixava um pouco triste também. Dentre as feridas abertas do passado, a morte precoce do filho passou a ser o acontecimento de maior influência em toda a situação de Miriam. Com o tempo, o luto foi substituído pela culpa. - Nos últimos dias que conversei com a minha avó, ela lamentava muito a morte do filho ainda jovem. Dizia que se pudesse trocaria de lugar com ele e que gostaria de reencontrar seus pais que também já haviam falecido – recorda Olga. Outra frustração que se tornava evidente, que refletia no comportamento e nas decisões de Miriam, era o fato de se preocupar com a opinião alheia dos familiares. Isso influenciava diretamente em sua proatividade. - Minha avó era muito inteligente e tinha o sonho de fazer o curso de Contabilidade. Só que não quis cursar faculdade para não ser “mais inteligente” que o marido, pois meu avô sequer terminou a 4ª série. As realidades presentes e os traumas do passado se misturavam, acentuando cada vez mais esses dramas de Miriam. Apesar de todos os problemas, o estopim da situação foi mesmo a ausência dos familiares, amigos e conhecidos que se distanciaram e consoli-


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daram uma vida de solidão. - Notávamos nas conversas que ela não estava bem, contando coisas tristes que sentia e que estava chateada. Eu, papai e Hannah passamos a nos revezar para ficar com ela. Tinha também uma nora da minha avó que era muito presente, mas se mudou de cidade e isso a chateou muito. Ela dizia que sentia muita falta da nora e da neta. Chegou um momento que estava muito evidente que aconteceria alguma coisa ruim, você via no semblante dela. Com o passar do tempo, a depressão, a desesperança e a falta de motivação, fizeram com que Miriam perdesse aos poucos a batalha pela vida, deixando de lado tudo o que lhe proporcionava algum prazer. - Ela foi perdendo forças para reagir, foi aceitando essa condição que tinha colocado em sua mente. Dava muitos sinais que não estava bem, que não via sentido. Ela não precisava dizer nada, pois com seu silêncio entendíamos a gravidade da situação. Ao perceberem o quadro de saúde de Miriam, os familiares decidiram interná-la em uma clínica psiquiátrica, fator que gerou desconforto para aquela idosa, que não gostava de incomodar seus entes queridos e de ficar na dependência deles. Além disso, no passado, ela já havia investido no tratamento de meningite de um de seus filhos, o Beto, que veio a falecer. - Minha avó falava que não precisava gastar muito dinheiro com ela. Lembro que naquela clínica gastávamos 500 reais por dia. Pode ser que não, mas acho que ela associou o fato de terem gastado muito dinheiro tentando curar o Beto e ele morreu. Naquela situação a gente fazia o mesmo, tentando curá-la, e ela acreditava que não iria ter cura. Também nesses dias, quando a gente conversava, ela chorava e você via que sofria muito. No quarto da clínica, ela se ajoelhava e com as mãos juntas dizia: “Perdão filhinha”. Dava uma agonia a ver ajoelhando daquele jeito. Eu lembro que muitas vezes ela se ajoelhava e eu falava: “Levanta!”. Dava pra ver que ela havia mudado muito – revela Hannah.


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Durante o período em que Miriam esteve internada, Hannah recorda que sua avó se culpava constantemente. Além disso, as netas suspeitam que o médico responsável pelo tratamento da avó possa ter cometido um equívoco ao liberá-la precocemente. - A partir do momento que nós resolvemos interná-la, ficava sempre alguém com ela na clínica. A família não mediu esforços para tentar assim, se fosse com tratamento, se fosse com médicos, se fosse com remédios, para amenizar esta dor, para não levar ao suicídio em si. Não dá pra colocar a culpa em ninguém, mas o médico deu alta como se ela estivesse bem e nós não queríamos, porque sabíamos que ela deveria passar um período lá internada, sem pensar em nada para passar esta primeira fase, para não pensar em se matar e para esperar os remédios fazerem efeito. Levamos ela pra clínica justamente por isso, porque tínhamos este medo. A gente sempre tomava todo tipo de cuidado, mesmo acreditando que ela não pudesse cometer o ato. Infelizmente, acho que recebeu alta antes do período adequado – lamenta Hannah. Pouco antes de Miriam sair da clínica, ficou decidido que a idosa iria morar na casa de Hannah. Já havia inclusive sido reservado um quarto que seria destinado à ela. - Quando tivemos que internar ela, para renová-la e posteriormente restabelecê-la, pretendíamos trazê-la para morar conosco. Ela iria morar com meu pai, com minha irmã e minha mãe. Eu na época não morava com eles. Meu pai tinha até reservado um quarto pra ela. Como eu fazia estágio perto da casa dela, ia sempre visitá-la. Foi a última vez que eu a vi viva. Ela estava incrivelmente bem, sorridente e eu dizia: “Vovó, você vai ficar bem. A senhora vai morar conosco, vou ver a senhora todo dia, você vai sair logo dessa, vem cá então e me dá um abraço da felicidade”, ela tinha muito disso, de dar o saudoso abraço da felicidade. Ela então vinha e abraçava e beijava a gente – relembra Carina. Entretanto, o plano das netas foi atrapalhado devido à inter-


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ferência de Vera, uma das noras de Miriam. Esta mulher deixou Hannah e Carina muito aborrecidas, pois forçou a ida da idosa para a sua residência. - Lembro que a Vera disse pra gente: “A dona Miriam tem que ir lá pra minha casa, porque lá tem criança e vocês já estão grandes”. No dia em que disse isso, eu queria dormir na clínica e ela também não deixou eu fazer isso, sendo que eu fui uma pessoa que dormi com a minha avó inúmeras vezes - recorda Carina. Após receber alta na clínica, Miriam mudou-se para a casa de Vera. Na mesma semana, às cinco horas da manhã do dia 16 de abril de 2013, enquanto todos na casa dormiam, a idosa se enforcou na despensa. Naquela noite, a avó de Hannah e Carina estava dormindo sozinha em um dos quartos da residência. - Nós ficamos muito chateadas porque sabíamos que ela estava passando por uma situação difícil. E a orientação do meu pai era não deixá-la sozinha. Então isso pesou muito na minha consciência e na da minha irmã, porque nós nunca teríamos deixado ela sozinha. No quarto que a idosa dormia, foi encontrado um bilhete dentro da Bíblia Sagrada de Miriam, com as seguintes palavras: “Tudo passa”. - Não sei, talvez este foi um recado – interpreta Carina. Acontecia ali o meu primeiro contato com duas vítimas que enfrentaram o luto de ter um ente querido que cometeu suicídio. No entanto, de acordo com Hannah, os sinais de que o pior poderia acontecer, não deixaram de ser mostrados pela idosa. - Foi tudo muito rápido, mas ela foi mostrando e talvez tenha passado despercebido.


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“Tudo passa... Todas as coisas na Terra passam. Os dias de dificuldade passarão... Passarão, também, os dias de amargura e solidão”... Chico Xavier




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Fraquezas de Matias - Por ser uma pessoa muito generosa, meu pai possuía muitos amigos, mas era ingênuo. Entrava muitas vezes em situações que eu não sei explicar. Nunca vi meu pai em vida cometer um erro. Eu, Marlene, nunca vi. O exemplo de um pai modelo, que viveu e trabalhou no campo, ganhava contornos dramáticos naquele início de 1988. Considerado um homem de boa índole, honesto, solidário e exemplo de pai, Matias vê a máscara social que construiu durante toda a sua vida entrar em ruínas com a aproximação de um velho conhecido. - Repentinamente, o irmão de meu pai se torna próximo de nossa família e demonstrava muito ciúmes por ele. Lembro claramente das seguintes palavras ditas pelo meu tio: “Voltei para cumprir uma missão. Não vou sossegar enquanto meu irmão não sair deste plano”. Me recordo muito bem que depois deste episódio meu pai começou a ficar nervoso, muito nervoso mesmo e nós perguntávamos: “Pai, o que está acontecendo?”. Mas no sítio, como éramos pessoas muito simples e humildes, jamais pensávamos que poderia acontecer algo pior. A partir deste episódio, Matias passou a viver uma angústia incompreendida pelos seus entes queridos. O singelo homem do campo apresentava alguns sintomas físicos que intrigavam a família, principalmente na escuridão da noite, no silêncio das madrugadas. Um antigo problema de saúde maquiava os segredos obscuros daquele homem. - Ele sentia uma agonia, principalmente quando chegava a noite, quando escurecia. Ficava angustiado e passava mal. Me lembro que ele estufava o estômago, chegava a crescer, era algo grave que estava acontecendo e a gente nem percebia. Nesta época, meu pai passava noites em claro e lembro que minha mãe fazia chá que ele tomava e cuspia, isso acontecia constantemente. Então pensáva-


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mos: “Nossa, o pai tá diferente”, mas o problema era que a gente era inocente e jamais imaginávamos que algo pior poderia acontecer. Meu pai não falava nada para a gente, nada. Como ele havia sido operado da úlcera nervosa duas vezes, achávamos que o que vinha acontecendo poderia ser decorrente desta doença e isso nos impedia de entender o verdadeiro problema. Ele agia conforme a sua vontade, afinal de contas, era um modelo para os filhos. Com certeza seria uma revolta muito grande se descobríssemos a realidade. Matias cometia erros, que eram justificados por Marlene pela influência de terceiros e principalmente de seu tio. O homem do campo mostrou ser capaz de cometer atrocidades, motivado principalmente pelo irmão que o chantageava em razão de um segredo que os filhos não poderiam ter conhecimento. - É um fato muito triste. Me recordo que meu pai tinha um amigo, que era também nosso vizinho de sítio. Então esse meu tio que se aproximou da gente, comprou um revólver e deu para meu pai para que ele atirasse neste homem. Meu pai fez o que meu tio pediu, só para não sabermos o que ele escondia. Matias era um homem viciado em relações sexuais, fato que escondia da família, mas que causava inevitáveis consequências para sua vida e agravava o drama que vivia. Aproveitando esta necessidade compulsiva de Matias, seu irmão ameaçava contar seus segredos para toda a família se não o ajudasse com seus interesses. - Eu não sei como se chama, mas o meu pai era uma pessoa que não ficava sem sexo, ele praticava até com animais. Esse meu tio então aproveitou esta fraqueza dele e o levou para se encontrar com algumas adolescentes, crianças praticamente. Nesta situação meu pai ficou com uma menina de menor e meu tio pagou a garota. Para o meu pai esse era um escândalo muito grande. Se a gente descobrisse na época, não iríamos perdoá-lo, tenho certeza. Selma, a mãe de Marlene, sempre foi omissa e obedecia as ordens do seu marido. Muitas vezes era humilhada, mas obrigada a


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se manter calada por Matias. Mesmo antes de se casar, ouvia da boca do futuro marido alguns desejos insanos, contrastando com o perfil de boa índole que sua máscara encobria. Depois de casado, o comportamento machista daquele homem se confirmava, colocava em prática o modelo de família patriarcal e superioridade em relação à mulher. - O meu pai falava antes de casar que teria só filhas mulheres, para abrir uma casa de prostituição. Como ele poderia ser aquele homem correto e falar isso? A minha mãe conta que ele ia para a “zona” e ela sofria muito. Quando estava internado no hospital, mexia muito com as enfermeiras e beliscava minha mãe para ela ficar quieta, era uma coisa absurda. Dentro dos ônibus, quando eles estavam viajando, mexia com as mulheres e elas ficavam bravas. Minha mãe não poderia falar nada, pois era submissa ao marido. Mesmo com muito medo de Matias, Selma sempre discutia de forma calorosa com o marido e era agredida com frequência. Os dois se ameaçavam movidos na maioria das vezes por ciúmes. - Meus pais tinham brigas feias dentro de casa, principalmente em época de Natal, não sei por quê. Uma vez um padre disse que o amor deles era esse, feito de brigas. Meu pai amolava facas dizendo que iria matar minha mãe no meio da noite e ela não deixava barato. Eles lutavam, se agrediam fisicamente e nós entravámos no meio e gritávamos. Lembro que fui morar no colégio de freiras, mas voltei porque tinha muitos sonhos com aquelas brigas, sonhos presentes até hoje. Durante a noite às vezes grito: “Não, não faça isso pai, não faça isso mãe”, acho que tá no meu subconsciente. Devido ao meu pai ter tido estes problemas com sexo e ter frequentado casas de prostituição, as brigas aconteciam durante a noite. Meu pai e minha mãe eram duas pessoas muito ciumentas. Marlene mergulhava naquele período de sua vida, que era um constante pesadelo. As discussões e agressões dos pais tornaram-se fardos, afastando da pacata moça do interior o sonho de servir a igreja como uma freira. Literalmente a vida de Marlene se tornou


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um pesadelo que permanece até hoje. Cicatriz nostálgica que a perturba cronicamente. - Quando eu tinha 20 anos ingressei em um colégio de freiras, mas fui mandada embora devido aos sonhos que eu tinha à noite, pois eu acordava o dormitório inteiro. Eu aceitei até dormir em quartos separados, mas daí a irmã não poderia nos deixar sozinhas e dormia junto comigo. Toda noite eu sonhava e gritava: “Pai, socorro. Mãe, não faça isso. Pai, não faça isso”, era algo constante. Era aquilo que estava na cabeça, era só isso, meu sonho era esse, como até hoje eu e minhas irmãs sonhamos com estas coisas, mas comigo atualmente são mais raros. Ainda existem noites que meu filho me acorda e diz: “Mãe, o que houve? Você tá sonhando?”. Na verdade eu não sonho, eu grito. Por insistência da esposa e das filhas que buscavam novas perspectivas em suas vidas, Matias decide se mudar para a cidade. O homem que nunca experimentou outras realidades além do campo, deparava-se com uma situação onde suas fontes de felicidade se esgotavam com o tempo. Mesmo assim, neste novo cenário, tentava manter hábitos e procurava sustentar as tradições que adquirira com sua educação. - Mas meu pai nunca foi de cidade, éramos nós que queríamos ir para lá, porque a nossa vida era só sítio, sítio, sítio e queríamos buscar algo diferente, descobrir coisas diferentes. Só depois que meu pai faleceu que meus irmãos começaram a trabalhar fora, seja de empregados, seja de qualquer outra coisa. Eu fui a exceção e trabalhei antes do meu pai falecer em um clube social, aonde ele achava “o fim” e queria que eu saísse dali o mais rápido possível. Ele também não queria que fosse freira, mas quando voltei para a casa devido aos sonhos que tinha no colégio, eu disse: “Já que voltei, quero trabalhar”. Por esta condição, me deixou trabalhar para que eu não ficasse triste, ele não queria me ver triste. Mesmo morando na cidade, Matias ainda tentava empregar sua antiga filosofia de vida, em que não permitia que os filhos traba-


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lhassem fora de casa, fazendo questão de manter o sustento da família somente com sua renda. Era o símbolo de orgulho e modelo de família patriarcal. No entanto, na época que havia migrado da área rural para o perímetro urbano, dois de seus filhos já haviam se casado e ajudavam o pai, que continuava a trabalhar no campo para manter a roça, cuidar das criações e dos demais afazeres. - Dois dos meus irmãos já estavam casados, ficaram no sítio e nós fomos para a cidade. Mesmo assim, meu pai queria que os filhos estivessem sempre próximos. Por isso, quando um dos meus irmãos casava, ele fazia questão que construísse uma casa no sítio. Mesmo morando na cidade, ele continuava a trabalhar na roça e ainda tinha aquele pedaço de terra. Embora tentasse manter-se rígido quanto às regras que impunha à sua família, Matias sentia dificuldades de fazer o mesmo em uma realidade urbana. Além disso, passou a conviver com o medo de ter seus segredos descobertos, pois o círculo de relações dos filhos aumentava. Naquele momento, ele perdia o controle da situação e estava imerso em um problema. - Lembro que meu pai não deixava a gente frequentar bailes, jamais poderíamos dançar. Então, por ser uma pessoa muito rígida, como seria se descobríssemos tudo aquilo? Como ficaria para ele? Acho que aí ele se complicou. Após mudarmos para a cidade, meu pai começou a sair muito e devido a isso viu que algo a mais seria descoberto. Depois de um tempo juntamos os fatos e percebemos que esses inúmeros problemas de meu pai vinham desde a época em que ele era solteiro, eram coisas anteriores que vieram dos pais dele, como por exemplo, ter relações com animais. Tenho certeza que naquela época todos ficariam contra o meu pai. No meio deste emaranhado de nós, Matias sofria calado e não tinha a quem recorrer para compartilhar suas dores e seus problemas que eram acentuados pelos múltiplos fatores que o circundavam. Para aquele simples homem do campo, o castelo de areia que havia construído durante toda a vida se desmoronaria se os filhos


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descobrissem os problemas graves em que estava envolvido. Como explicaria toda aquela situação? Como explicaria que teve que atirar em um amigo e que havia se relacionado com uma adolescente e que tinha frequentes relações sexuais com animais? Certamente, Matias encontrava-se em um labirinto naquele instante. Foi então que no dia 22 de fevereiro de 1988, Matias saiu de casa com uma arma de fogo com a intenção de cometer suicídio, mas não teve coragem. Quando retornou para a casa, comentou o que havia acontecido com a esposa e pediu sigilo. Mas as outras tentativas não tardaram em acontecer. - Meu pai disse para a minha mãe: “Não conta para os filhos” e como ela era quieta e obedecia tudo o que ele falava, não disse nada. Passou uma semana e ele tentou outra vez, carregou a espingarda e tentou cometer o suicídio, mas não conseguiu novamente. No mesmo dia, ele entrou aonde tirávamos o leite, onde tinha as criações, pegou o veneno, segurou o vidro, tirou a tampa e ficou olhando. Como éramos inocentes, não imaginamos nada, mas ao ver essa cena minha irmã gritou: “Pai, não faça isso”. Quando ela gritou, ele tomou rápido, muito rápido e começou a passar mal. Acredito que o suicídio acontece no momento que você fala com a pessoa. O veneno era aquele que mata peixe, ele vai matando aos poucos. Ele não morreu de imediato, é um veneno que vai tirando a vida devagar. Na época, Matias, a esposa e os filhos solteiros já estavam morando na cidade, mas continuavam indo com frequência para a casa do campo, onde ainda residiam os outros filhos do casal que estavam casados. No momento do incidente, Marlene e uma de suas irmãs iam a um vizinho que morava a 100 metros de distância da antiga casa da família. Ao observarem a movimentação, voltaram correndo para verificar o que havia acontecido. - Eu e minha irmã estávamos indo visitar um dos antigos vizinhos, mas não deu tempo. Quando escutamos os gritos, corremos para o local e vimos meu pai naquela situação, ele já tava roxo.


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Um dos vizinhos conduziu Matias até o hospital, em meio aos gritos das pessoas que ali estavam. Entretanto, alguns contratempos aconteceram durante o caminho. Ao chegar em um dos morros, na saída do sítio, o carro parou de funcionar, deixando Marlene e sua irmã em pânico. - Eu gritava, implorava a Deus, me ajoelhava e dizia: “Deus, faça esse carro pegar para o meu pai chegar no hospital”. Foi uma luta. Esse carro ia apagando, ia afogando. Quando esse carro chegou em frente ao quartel da cidade, “morreu” em definitivo. Os milicos que estavam lá vieram, pegaram meu pai, colocaram em outro carro e eu não via nada, não via ninguém na minha frente, só agia no impulso do momento. Foi quando nós o pegamos e trouxemos para o hospital arrastado porque ele não conseguia nem trocar passos. Quando chegamos ao hospital, abri a porta com tudo e o médico estava atendendo um paciente. Eu disse: “É meu pai, ele tá morrendo”. O médico então arrancou tudo dali, começou a atender meu pai por conhecê-lo e fez tudo o que deveria ser feito que seria a limpeza pra sair o veneno e nessa parte não tivemos problema. Depois de alguns dias internado, Matias estava sem dinheiro e precisava ir ao banco. Sem condições, o homem orientou Marlene a executar este procedimento. Feito isso e de volta ao hospital, a moça impediu que o pai dissesse algo, o que a fez se arrepender amargamente. - Ele me disse: “Vai ao banco e tira um dinheiro para mim”, então eu fui ou alguém me levou, não me lembro bem. Depois voltei ao hospital e ele disse pra mim “Eu sei que a única pessoa que pode fazer tudo e cuidar das coisas é você. E eu quero falar pra você tudo o que você tem que fazer”, mas eu não deixei ele falar. Hoje me arrependo por isso. Naquele momento eu disse pra ele: “Não pai, não diz nada”, isso foi no dia que ele faleceu. Eu falei: “Não pai, não me diz nada porque o senhor não vai morrer. O senhor vai estar presente com a gente aqui e eu não quero que isso aconteça e não quero que o senhor fale”. Ele então dizia: “Deixa eu falar” e


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eu dizia: “Não, não fale, eu não quero que o senhor fale”. E isso eu penso até hoje “O que ele queria me falar?”. Eu não dei essa oportunidade pra ele, não deixei ele falar. Eu chamei a minha mãe pra ele não falar nada, não queria que ele falasse. Matias ficou oito dias no hospital, e no nono, à meia noite, faleceu devido ao efeito do veneno. A família sofreu um abalo emocional e estrutural, porque o pai de Marlene resolvia todas as questões relacionadas à casa. - Era meu pai que fazia compras, meu pai que comprava uma roupa, a gente não comprava uma peça de roupa, tudo era o pai que fazia. Quando isso aconteceu, a família ficou tão desesperada que não sabia mais qual rumo tomar. Lembro que uma das minhas irmãs não conseguia nem ver ele no caixão, ela desmaiou quando recebeu a notícia de que o pai tinha falecido. De acordo com Marlene, o irmão de seu pai se aproveitou da situação e começou a vender alguns dos pertences de Matias, ficando inclusive com patrimônios que a família tinha. - Ele começou a vender as coisas de meu pai, falando que era pra pagar hospital, pagar as despesas e acabou vendendo tudo praticamente e nós ficamos naquela situação por ninguém saber nada. Além disso, ficou com algumas coisas que eram nossas, como o gado. O suicídio de Matias e todo o contexto que o fato envolvia fizeram com que a família de Marlene demorasse um tempo para recomeçar e reorganizar sua estrutura. - Nossa, foi uma coisa que acabou comigo, demorou um bom tempo pra gente começar a ter uma vida. Isso tá marcado até hoje.


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“A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico cujo campo lhe é tudo, esse campo é um império”. Fernando Pessoa



II Dramas incompreendidos



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Marlene - Eu também já pensei em suicídio, mas devido à minha separação eu pensava antes em matar a outra pessoa. Ficava planejando isso na minha cabeça, sozinha. Os meus filhos já tinham vindo para Campo Grande e eu fiquei morando sozinha em Ivinhema (MS), planejando tudo na minha cabeça. Não tinha nenhum parente naquela cidadezinha, ninguém, só amigos mesmo. O ano de 2008 estava chegando ao seu final. Já haviam se passado 21 anos que o pai de Marlene, Matias, havia se suicidado e os filhos da mulher estavam na adolescência. Foi o início do drama de Marlene. Com o casamento extremamente conturbado, ela e o marido já não dormiam na mesma cama há 6 meses e a relação tornava-se cada vez mais insustentável. Envolto nesta situação, seu filho, Érick, resolve sair de casa e ir morar com a avó em Campo Grande, para não ver o pai deixar o lar, pois não aceitava a separação. O desfecho indesejado, mas esperado por todos acontece, Marlene e seu marido se separam. Um ano depois da ida do irmão para Campo Grande, Cintia, a filha do casal, consegue uma bolsa de estudos em uma universidade e também migra para a capital para iniciar seu curso superior. A partir daquele momento, resquícios de um passado infeliz parecem assombrar a vida da filha de Matias novamente. Ela estava sob ideação suicida de alto risco. Morando sozinha, carregava mágoas de seu ex-marido e desejava matá-lo, em seguida cometer suicídio. - Eu trabalhava o dia inteiro e quando eu chegava em casa e deitava eu ficava pensando: “Nossa, eu posso fazer isso. Em tal lugar tem os caras que matam. Eu vou lá e pago pra eles uma mixaria. Mando matar meu ex-marido”, isso na minha cabeça. A gente brigava muito, mesmo separados. Quando a gente se encontrava eu não sabia lidar com aquela situação, era só revolta, revolta e se


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falasse comigo eu falava muito mais. Queria que nós dois morrêssemos. “E se isso não acontecer, eu me mato, ou senão vou fazer muito bem planejado, eu mato ele e depois me mato. Mas eu pensava: “Se eu não conseguir vai dar tudo errado”. Para Marlene, um plano mal elaborado seria como morrer duas vezes, afinal de contas teria que lidar com a vergonha de não ter morrido e não ter resolvido seus problemas. Ela estava sob a linha tênue do que Sigmund Freud chama de Eros (vida) e Thanatos (morte). Sempre que acordava no dia seguinte a estes pensamentos nefastos, ela se autoquestionava se seria esta a melhor alternativa para resolver seus problemas, pois acarretaria consequências drásticas para sua família e principalmente para seus filhos. - Quando eu pensava nessas coisas era durante a noite. No outro dia eu levantava, ia trabalhar e pensava: “Mas meu Deus, é pai dos meus filhos. Se eu fizer isso os meus filhos ficarão o resto da vida revoltados comigo”. No entanto também pensava: “Isso não vai ser bom nem pra mim nem pra ninguém da minha família, porque vai fazer todo mundo sofrer. Então eu vou fazê todo mundo sofrer?”. O período de maturação da ideação suicida de Marlene começou ainda durante o casamento. Os pensamentos maléficos e assustadores já faziam parte da rotina dela. No entanto, o gatilho para um final infeliz surgiu quando ela passou a morar sozinha e os fantasmas do passado a assombravam impetuosamente. A desesperança da mulher fez sua vida ficar por um fio durante três anos. Isso, no entanto, era um segredo que ela guardava a sete chaves para que sua morte fosse arquitetada de forma infalível. - Até mesmo antes da separação eu pensava e depois que meu ex-marido e minha filha saíram de casa, piorou. Nesse intervalo de tempo que eu fiquei sozinha, até mesmo em 2011 quando vim para Campo Grande, eu ainda fiquei mais um ano pensando em suicídio. Durante 3 anos fiquei bolando as coisas na minha mente e não contava pra ninguém, porque quando você pensa você não conta pra ninguém.


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Marlene não era a única da família a ter que encarar os fantasmas do passado. As marcas de uma tragédia afetaram antes dela uma de suas irmãs, que havia ficado tremendamente abalada com a morte do pai. - Minha irmã quis se suicidar também, mas nem chegou a ir até o local que estava planejando. Ela pensou em fazer isso e ainda sofre com isso. Hoje é separada. Até devido à separação, ela pensou nisso. Quando minha irmã ficava nervosa ou acontecia um problema na família, começava a se morder muito, ficava toda roxa, se judiava demais. É um negócio que eu nem sei te explicar. Tendo o pai como um espelho durante sua criação, Régis, o irmão de Marlene, ainda passa pelo mesmo drama. Ele é outro afetado com as feridas de um passado longínquo, mas com consequências que parecem intermináveis para aquela simples família do interior de Mato Grosso do Sul. As heranças da personalidade do pai causaram sérios danos ao núcleo familiar dele. - Meu irmão tem o suicídio em mente ainda. Ele passa por tratamento, mas não sei até quando. Ele trata partes sexuais, porque ele queria ter relações com a mulher dele a força e os filhos chegaram a presenciar isso, mas por eles terem conhecimento, encaram essa situação de maneira diferente da nossa naquela época, entendeu? Eles dizem: “Pai, você precisa de tratamento”. “Vamos ao médico, vamos juntos”. Isso é o que deveria ter acontecido com meu pai. Portanto foi pai, mãe e filhos ao médico e lá contaram tudo o que estava acontecendo em casa. Hoje ele está trabalhando normalmente, tem o negócio dele, porém é claro que deve estar em vigilância. Mesmo com o tratamento, Régis explana o desejo de se suicidar com frequência para sua esposa, utilizando o seu pai como exemplo, como algo que tivesse que seguir na família caso seus problemas não fossem solucionados. - Ele fala: “Se pai fez, porque eu não posso?”. Se ele teve tentativas eu não sei, a minha cunhada nunca me falou. Pelo pouco que


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eu falo com ele, quero dizer, pouco que falo a respeito do problema, né? Sempre que estou com Régis, percebo que ele não tirou isso da mente, tem essa fraqueza pelo que o meu pai cometeu e acha que também deve cometer. Olha, tentar, tentar mesmo eu não sei, mas de falar pra mulher dele, já contou várias vezes, não sei quantas. No entanto, Marlene desabafa um fato até então desconhecido e que pode se caracterizar como um dos fatores preponderantes para os problemas dessa família, o aborto. A mãe dela realizou algumas vezes, inclusive na gestação de Marlene, motivada pelo desejo de Matias de não ter mais filhos. Ao tomar conhecimento deste fato, a mulher passou a alimentar mágoa da mãe. - Minha mãe tentou me abortar. Fiquei sabendo pela minha avó, que me contou isso, devido às brigas entre elas. Quando passei a saber disso, eu era adolescente, comecei a ficar revoltada e pensava: “Por que me abortar? Por que tirar minha vida?”, então sabe qual era o meu desejo, que ela viesse a tirar minha vida agora quando eu fosse grande, porque diria pra ela: “Mãe, eu amo você”, como já disse isso pra ela. Tem até uma fita gravada onde eu disse isso no dia do aniversário dela, mas eu não consigo ter aquele contato com minha mãe, de pegar, abraçar e beijar minha mãe, eu não consigo e nem ela comigo. Nós temos esse afastamento e penso, quantos dos meus irmãos poderiam estar aqui e hoje não estão, isso não me deixa feliz. Nós não nos damos. Eu e minha mãe temos diferenças, por mais que tentamos nos tratar bem uma a outra, entendeu? Eu discutia e enfrentava seriamente minha mãe e falava tudo o que vinha na minha cabeça, assim como discutia e enfrentava meu pai. Lembro que eu era a única filha que enfrentava ele. Além do desejo pelo autoextermínio, alimentado por sentimentos como o ódio e a mágoa, Marlene se colocou diante da mãe várias vezes e pediu que ela a matasse. Sob ideação suicida de alto risco, a mulher tentava transferir a responsabilidade de sua possível morte para um terceiro.


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- Acho que minha mãe cometeu três ou quatro abortos, tudo isso porque meu pai dizia: “Não, eu não quero mais, é muito filho”. Um aborto que minha mãe cometeu certa vez, ela deveria estar de uns seis meses e meu pai ajudando, entendeu? E isso traz problemas hoje, por quê? Isso vem lá de trás. Já falei para minha mãe: “Se a senhora já tentou me matar várias vezes e não conseguiu, porque não me mata agora que eu cresci e estou aqui?”. O ambiente de brigas entre os pais e os conflitos internos entre os membros de sua família levaram Marlene a adotar a mesma postura ao constituir seu núcleo familiar. A realidade no seu casamento e no tratamento com seus filhos espelharam o que ela viu dentro de casa na sua infância e adolescência. - Eu achava que eu deveria viver o resto da minha vida daquele jeito, brigando, como meu pai e minha mãe viviam. Então meus filhos cresceram com este mesmo ambiente dentro de casa, tanto entre eu e o pai deles, quanto entre eu e eles. Já cheguei a bater no meu filho com uma vassoura. Marlene atualmente tem 52 anos, seu irmão que passa por tratamento tem 48 e a irmã que pensou em suicídio está com 56 anos. O pai faleceu com 49 anos de idade. Todos os irmãos e o pai pensaram em suicídio mais ou menos na mesma época da vida, o que leva Marlene a construir uma reflexão preocupante em torno destes fatos. - Acho que devemos estar mais atentos nessa idade perto dos 50 anos, porque, pensando agora, o desejo de suicídio na nossa família é tudo mais ou menos nessa idade. No ano de 2011, na cidade de Campo Grande (MS), Marlene se relacionou com uma pessoa que lhe apresentou uma luz que amenizaria seus sofrimentos. O Grupo de Amor à Vida (GAV).


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Déjà vu que insiste em aparecer naquele mesmo tempo, Inimigo invisível, o mesmo moinho de vento. Uma família prejudicada a cada construção de novos laços, mas eis que surgirá a solução para desfazer estes embaraços. Patrick Alif




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Mônica - Ela tinha quinze anos de idade. Vivia em um lar desestruturado, com um pai alcoólatra e uma mãe com problemas mentais. Foi criada pelos avós com uma energia repressiva, onde era orientada a se casar virgem. As lembranças de Débora reforçavam a melancolia daquele dia nublado de inverno do mês de julho de 2015. Os relatos remetiam à sua prima, Mônica. Estávamos no banco do parque, ainda molhado pela fina chuva da manhã. O assobio do vento era mais alto que o canto dos pássaros e sua força era responsável pelo suave balanço entre as árvores que pareciam dançar para nós. Naquele dia frio, Débora lamentava o modo que a vida de sua prima chegou ao fim. Mônica teve uma adolescência recheada por hábitos saudáveis, principalmente pela prática de esportes. Era uma pessoa de alto astral, cercada de amigos e levava uma vida simplesmente feliz, apesar dos problemas que enfrentava na família. Estudava em uma escola católica onde foi uma aluna muito aplicada. - Minha prima era uma menina muito querida, popular no colégio, otimista e gostava de praticar vôlei e basquete. No entanto, Débora relata que a jovem alegre começou a ter algumas mudanças de rotina e em seu comportamento, que nenhum familiar percebeu, com exceção de uma pessoa. - Apenas um primo percebeu que ela estava tensa, triste e se fechava no quarto. Os avós falavam que ela estava estudando. Ela fingia que comia. Eles notaram só que ela tava mais quieta. Por volta das duas da tarde, de um dia triste do ano de 1997, Mônica foi encontrada morta. Ela cometeu suicídio com a arma de fogo de sua tia, uma policial civil. - Ela morreu porque não soube pedir socorro. Por ter sido educada de uma forma castradora, ela teve medo de contar para os avós que estava grávida, afinal ela sabia que seria rechaçada por


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todos. Na cômoda do quarto foi encontrado um bilhete onde Mônica pedia perdão aos avós por ter falhado. A princípio, ela não deixou claro os motivos que a levaram a cometer esta atitude, além do medo. Ela de certo estava pensando: “Vocês não me conhecem, nunca me conheceram, antes que me julguem, vou acabar com isso”. Infelizmente, em quantas famílias isso acontece, não é mesmo? Somente no momento de preparar o corpo de Mônica para o velório, foi descoberto que a garota estava grávida. A adolescente tinha no momento de sua morte pouco mais de dois meses de gestação. - Minha prima não contou seu drama pra ninguém, nem para a pessoa que mais confiava, minha tia. O namorado, inclusive, deve ter ficado sabendo de tudo apenas depois do velório. Infelizmente, ela não teve a oportunidade de saber se o seu filho seria amado ou não.

As ondas são anjos que dormem no mar, Que tremem, palpitam, banhados de luz... São anjos que dormem, a rir e sonhar E em leito d’escuma revolvem-se nus!... Álvares de Azevedo




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Jéssica - Ela pra mim sempre foi uma pessoa maravilhosa, mas gostava muito de sair, só que assim, questão de cuidar de casa, de cuidar dos filhos né, ela deixou a desejar. As coisas de casa como mãe, como dona de casa, essas coisas né, preferiu mais, “tipo assim”, querer sair, se divertir. E foi chegando um certo tempo que pra mim não estava dando mais certo, foi quando eu resolvi me separar dela – relata Vinícius, ex-marido de uma mulher que cometeu suicídio. Jéssica, a ex-esposa de Vinícius, tinha 24 anos quando cometeu suicídio por asfixia em frente à casa dos pais. Na época, Jéssica e Vinícius já estavam separados e tinham quatro filhos. A primeira gravidez da moça aconteceu quando ela tinha apenas 17 anos. Ao se separarem, Vinícius ficou com a guarda das crianças e Jéssica passou a considerar os interesses de sua vida, sem dar prioridade aos filhos. A atitude dela é interpretada por Vinícius como resultado da ausência familiar em sua criação. - Quando eu me separei dela, as crianças, “tipo assim”, ela deixou as crianças comigo, eu fiquei com as crianças. Então ela ficou na casa que a gente tinha alugado na época, mas ficou lá só por dois meses também, aí ela pegou e voltou a morar com a mãe e com o pai, cê entendeu? E eu acho que é aí que veio essa falta da presença da mãe, do pai, do irmão, “tipo assim”, de ajudar né, de pegar as crianças, porque qual mãe não queria ter seu filho ao lado? E foi, foi e as crianças ficou morando comigo, cê entendeu? Quando cheguei à casa de Vinícius percebi que não havia ninguém na residência e tive que esperá-lo por cerca de 20 minutos. Eis então que ele se aproxima, pilotando uma moto e carregando dois de seus filhos juntos, um na frente e o outro na traseira, ambos sem capacete. Naquele momento foi possível começar a observar o contexto em que estava envolvida a vida daquele homem. O moço,


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agora com 28 anos, já era pai de cinco crianças. O filho mais novo, com um ano de idade, era fruto de seu novo relacionamento. Na parede da sala, um quadro destacava um recomeço na vida de Vinícius, onde ele abraçava a atual esposa ainda grávida. No corredor que dava acesso à cozinha, dois de seus filhos brincavam com pequenos carrinhos. Ao lado do sofá, um grande coração de pelúcia com os braços abertos simbolizava um ambiente que transparecia acolhimento e amor. Entretanto, no decorrer daquele relato, o ambiente de amor e tranquilidade se alterou para um clima de tristeza com o andamento do depoimento. Os sentimentos de saudade começaram a escorrer pelos olhos de Vinícius. O dedão do seu pé começa a se flexionar a todo o tempo, sinalizando nervosismo e um certo desconforto ao contar todo aquele episódio. As expressões de seu corpo literalmente pareciam compensar o seu discurso curto e objetivo. Tudo isso se passou no momento em que Vinícius começou a se recordar de sinais evidentes demonstrados por Jéssica, por meio de ligações direcionadas a ele, após a separação. A moça, naquele momento, revelava ser uma pessoa com ideação suicida sob risco elevado e passava por um sofrimento agudo. Mesmo separado, Vinícius ainda sofria com o drama de sua ex-esposa que parecia não admitir o fim da relação. Nesta época, Vinícius tentou se afastar de Jéssica devido às constantes brigas, pois quando se encontravam não conseguiam estabelecer uma relação pacífica. O contato entre os dois passou a ser estritamente por telefone, mas, mesmo assim, as discussões eram inevitáveis. - Depois que a gente se separou tudinho, a gente teve um afastamento, não se via muito, não conversava muito e quando conversava era só por telefone mesmo. Ela muitas vezes me ligou chorando e “tipo assim” até falava que pensava em se matar essas coisas tudinho e tal, porque não tinha mais felicidade e não tinha mais vontade de viver, cê entendeu? Isso ela cansou de falar.


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De acordo com Vinícius, o comportamento de Jéssica mudou muito após o fim do casamento. Quando moravam juntos, ela se preocupava muito com a aparência ao sair de casa e, após o término da relação, ficou com a autoestima baixa e buscava compensar essa situação com as bebidas alcoólicas. Este certamente foi um gatilho no drama daquela jovem moça. - Ela era uma pessoa muito vaidosa, saía bem arrumada, se maquiava tudinho e tal e de repente ela passou a não se cuidar mais. Outra coisa é que a gente sempre foi casado e se tinha uma coisa que ela não fazia era beber, cê entendeu? Depois que a gente se separou e tal, ela começou a beber. Ela também começou a andar com muitas pessoas, que vamos supor assim, não eram pessoas de boa índole, cê entendeu? Pessoas que às vezes, às vezes não, tenho quase certeza que usavam drogas, essas coisas assim, mas eu não tenho provas. Então acho que tudo isso foi influenciando nessa situação. Mesmo antes da separação, Vinícius relatou que Jéssica indicava que pudesse fazer o pior. Em uma discussão entre o casal, ela tentou se suicidar, mas ele conseguiu contornar a situação e convencê-la a não fazer isso. - Uma vez dentro de casa, a gente ainda tava casado e numa briga ela tentou, “tipo assim”, fazê isso, cê entendeu? E como eu tava com ela, a gente vai acalmando e tal, tentamos conversar. Depois nunca mais. Nunca mais ela fez isso casada comigo. Em meio às suas lágrimas e recordações, Vinícius lamenta não ter acreditado que Jéssica pudesse chegar a tal ação, devido ao fato da moça gostar de sair e se divertir. - Rapaz, eu nunca imaginei que ela pudesse fazê isso, às vezes ela brincava né, falava essas coisas tudinho, mas nunca imaginei isso não, justamente por que ela era uma pessoa que gostava de sair, então às vezes, “tipo assim”... eu mesmo nunca proibi ela de sair, cê entendeu?


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Vinícius admite que acabou contribuindo negativamente no período que Jéssica amadureceu a ideia de suicídio. O ex-marido da moça revela que a situação poderia ser diferente se tanto ele como a família dela dessem o apoio necessário. - É que nem eu falo assim, quando a gente se separou, ela ficou sem uma base, sem alguém, sem um pai, sem a mãe né, sem o apoio. Então ela deve ter pensado: “Ah eu não sirvo pra nada, então o que é que eu vou fazê aqui?”. Quando a gente achava que não, ela já tinha feito, tinha se matado, tinha se enforcado. Talvez naquilo ao invés de ajudar, eu criticava. Então eu falo que a morte dela poderia ter sido evitada, poderia ter sido tudo diferente.

E há tempos são os jovens Que adoecem E há tempos O encanto está ausente E há ferrugem nos sorrisos Só o acaso estende os braços A quem procura Abrigo e proteção Legião Urbana - Composição: Dado Vila-llobos, Renato Russo, Marcelo Bonfá.




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Caio - Os caras falaram para ele: “E aí bixo, o que é que foi, você perdeu? Quer chorar? Vem aqui e chora com a gente”. Ele então falava: “Naaaaum, naaaaum”, mas isso é normal, né? É uma zoação normal de todo mundo. Não ficou chateado, não fechou a cara. Normal, ficou ali, comeu, nós contamos mais algumas piadas, saiu e foi dormir. Essa foi a última vez que eu vi ele vivo. Mãos apertadas e dedos entrelaçados que realizavam um repetido movimento de três batidas, naquela enorme mesa de refeitório branca, TOC, TOC, TOC. O soldado Max relatava os últimos acontecimentos que envolveram seu colega de trabalho, Caio, de 24 anos. - O dia anterior foi normal, atendemos as ocorrências durante o dia, percebemos que ele sempre foi quieto, na dele, parado, mas eu gosto sempre de aproximar as pessoas. Estávamos no refeitório, ele é amplo, as pessoas que estão de serviço almoçam aqui e é uma hora de descontração onde todos conversam durante o horário de almoço. Tem-se um ambiente familiar, inclusive na hora das refeições. Lembro que estava no canto dele, comendo como sempre, e o pessoal conversou com ele dizendo: “Oh, senta mais pra cá, tá com medo da gente?”. Ele pegou o prato, foi lá, sentou ao nosso lado e conversou normalmente. Para Max, o jovem sempre foi bastante reservado, adorava assistir programas de TV, mas sua atenção era voltada para seu smartphone, aparelho que nunca abandonava. O jovem estabelecia uma relação de respeito entre seus colegas de trabalho, onde limitava a trocas de cumprimentos e poucas palavras. - Creio que ele gastava muito tempo no celular e nas redes sociais, o que hoje é muito comum. Lembro muito dele assistindo televisão, ele gostava muito de frequentar a nossa sala de TV, sempre estava por ali e também no alojamento, porque as vezes quando


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ele estava no celular, ele se recolhia no alojamento e ficava lá. Você sabe que hoje em dia quem tá com o celular não tá isolado, né? Os relatos de Max se limitavam ao ambiente de trabalho, relação que acontecia a cada três dias, pelo período integral que compreendia essa escala. - Quando estava junto dele, posso dizer que era uma pessoa sempre séria, nas suas atividades de trabalho sempre foi correto, nunca vi nada que desapontasse a conduta profissional, nem como pessoa. Aqui dentro eu sempre tive ele como uma pessoa introvertida, na dele, fechada. Tanto é que até a data do acontecido ninguém sabia o que se passava na cabeça dele. A gente levou um dia normal. Ele comeu com a gente, conversou, e até meio que os caras brincam, tiram o sarro mesmo, não tem jeito, esse negócio do cara de... mas ninguém sabia de nada. Tipo, aquela brincadeira quando o cara tá meio de canto do tipo: “Vixi, esse cara já perdeu. Tá levando chifre”. Brincadeira, todo mundo faz isso, né? Às vezes o cara brinca, coisa e tal, beleza né!? Naquele dia estavam presentes na corporação sete soldados, recorda Max: “Estava calor, bem quente”. A escala da noite e o tempo de descanso eram revezados por hora entre os colegas de trabalho, tendo início às onze horas da noite e finalizando às seis da manhã. Ao anoitecer, foi decidido pedir alguma comida para jantar. - À noite também tivemos um momento de descontração. Decidimos pedir umas pizzas e quando ela chegou, ele já estava deitado porque tinha o hábito de dormir cedo, não ficava muito lá pela frente. Então chamei ele, perguntei se não queria comer, convidei para participar lá com a gente e ele falou que não ia por uma questão boba até, que é a financeira, então eu disse que poderia ficar tranquilo, que não tinha nada a ver, que poderia ir lá participar, que estava tudo certo. Então prontamente se levantou, foi lá, participou normalmente com a gente, não reclamou, não fez nenhum tipo de comentário, normal. Eu costumo dizer que quando ele foi


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dormir, não tinha esse pensamento ou pelo menos não deixou demonstrar que tinha em momento algum. A última hora para a troca de turno seria entre Caio e Max. Entretanto ela não aconteceu. Naquela madrugada, Max não foi chamado pelo colega para assumir o posto da guarda. - Eu achei que ele quis tirar... porque as vezes acontece, o cara tá na internet ali, ou tá sem sono, tá acordado e acontece. Às vezes o cara tem que chamar o próximo e não chama. Tá sem sono, tá com algum relatório pra fazer, ele fica ali no computador, passa o horário dele e muitas vezes pula o horário de mais um, fica ali, fazendo alguma coisa ali de ocorrência, né! Então ele não me chamou, mas ele tinha que me chamar, porque eu tinha que lavar o pátio. Max despertou por conta própria. Ao levantar se questionava os motivos de não receber o alerta do colega para troca de tuno. Quando realizou o percurso até o posto que deveria ocupar, notou a bagunça feita no refeitório pelo jantar da noite anterior. - Eu vim então recolhendo as garrafas, as coisas que estavam sujando o pátio, nada de fazer barulho. Eu pensei então: “O que aconteceu? Vixi, o bixo deve tá dormindo então, né?”. Sabe quando você vai na ponta do pé? Quando cheguei no posto, até desavisadamente porque ninguém está preparado, eu acabei me deparando com ele naquela situação. Max é tomado pelo espanto ao chegar no posto de guarda. De todas as possibilidades cogitadas pelo soldado, a que se deparou foi a mais improvável. Os primeiros segundos daquele momento foram eternos. - Cara, foi terrível ver ele naquela situação. O cara, tava morto e tinha sangue pra tudo quanto é lado. Poça de sangue na cadeira, coisa que... eu vou falar, não foi legal não. Porque somos uma corporação, é a mesma coisa que um corpo. Se você perder um braço você vai ficar bem? Se perder o... qualquer coisa que você perde, é


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terrível. Foi terrível, entendeu? De imediato muita coisa passou pela cabeça de Max. “Será que atiraram nele?”. Mas o soldado relacionou o fato às coisas do momento e percebeu que Caio cometeu o autoextermínio. “Ele se matou”. O jovem que estava sozinho tinha acesso a arma de fogo para cumprir a guarda do turno. - O armamento estava na mão dele e ele estava caído. Então eu já sabia porque já tive em outros casos de suicídios que redesenharam aquele cenário. Então, já me deu um feedback do que tinha acontecido. Mesmo experiente, Max não conseguiu esconder o trauma de toda situação. O olhar do soldado é tomado pelo brilho da lembrança. A sensação é impossível de ser descrita por palavras. Naquele momento o sentimento é representado pelo movimento de negação. Expressão de cabeça baixa, sinal de luto ao eterno assombro. - Cara, eu vou falar pra você, eu já vi coisa, já passei situações ruins de ver família inteira morta e de gente estraçalhada, tudo o que você pensar eu já vi. Mas foi a pior sensação do mundo que eu já tive, porque eu não sei, nunca imaginei que isso poderia acontecer dentro deste ambiente da corporação. O soldado imediatamente acionou os demais companheiros que estavam de serviço no dia, comunicando o fato que havia acontecido. As reações, no primeiro momento, foram de desconfiança, não encarando o fato como real e até associando a uma piada. - Todos se dirigiram ao posto e viram o que tinha acontecido, todos ficaram chateados e não acreditavam no que estava acontecendo, porque nós estávamos acostumados a atender a pessoa de fora, né? A gente realmente achava que aquilo não iria acontecer, né? Não tinha nenhum indicativo de que aquilo iria acontecer, tanto que se tivesse, nós não teríamos colocado ele em um plantão, de madrugada, sozinho, de posse de um armamento, sabendo que ele tinha este tipo de pensamento.


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Caio nunca demonstrou para os colegas de trabalho algum comportamento fora do comum, mudanças de humor ou hábitos. No ambiente corporativo, o jovem nunca apresentou indicativos que associassem ou demonstrasse desejo àquele ato. - Não havíamos percebido qualquer mudança comportamental ou qualquer mudança na pessoa que pudesse indicar que ele estivesse precisando de ajuda ou precisando de auxílio, ou alguma coisa assim, no entanto parece que estava. Porque todo mundo sabe que se você quiser ajuda, as pessoas aqui ajudam e estão prontas para isso. Max reforça que os hábitos de Caio sempre foram o mesmo no ambiente de trabalho. No período da madrugada, ficava sozinho no seu quarto de hora, trocava mensagens em um aparelho celular com uma pessoa. Em determinado momento, Max acredita que Caio recebeu uma mensagem. - Não sei se eles começaram a discutir, não sei qual era o assunto do teor das mensagens, que foi algo que ele não superou, não lidou bem, não tratou bem com esse assunto e de posse de um armamento ele acabou cometendo esse fato. A perícia tinha olhado o celular e afirmava que era um caso passional, de desentendimento entre ele e a mulher, coisa e tal. Vou falar a verdade para você, eu sei que não era minha culpa, mas eu tava com um peso enorme, justamente pela dúvida. Ficou claro no rosto de Max que o fato teve e ainda tem seus reflexos. Restava o luto pelo colega de trabalho, além das dúvidas que motivaram Caio a cometer o ato. O olhar baixo do soldado deixava evidente uma suposta culpa, manifestada por questionamentos de incerteza sobre o caso. - Em determinado momento me perguntei: “Fui eu? Foi algo que eu fiz? Foi algo que alguém fez? Foi algo que alguém falou?”. A gente não sabia. Foi uma situação passional, entre ele e a pessoa pretendida ou o amor não correspondido. Ele recebeu uma mensa-


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gem que não era o que esperava e respondeu, até de forma banal, que faria o ato, mas falou que faria. Foi posto à prova e acabou realmente cometendo o suicídio. Inclusive, a mulher que terminou dele vem aí, aqui perto, em um posto de gasolina, acontece um furdunço e ela tá aí direto. No momento talvez ela tenha até ficado chateada, não sei nem se ficou, mas ela tá aí, levando a vida dela. O barulho do disparo, que resultou na morte de Caio, não foi interpretado de forma incomum ou alerta pelos colegas de trabalho. A função do guarda, posto que Caio ocupava naquela madrugada, seria responsável por sinalizar acontecimentos extraordinários ou que envolvessem algum perigo para a corporação. Max deixava claro que aquela localização era caracterizada por um perímetro urbano de muito movimento, principalmente no período da noite. - A gente trabalha em um local que é frequentado por muitas motocicletas e o pessoal tem muito aquele negócio de cortar o combustível e ligar novamente. Este barulho é muito semelhante a um disparo de arma de fogo, portanto nós escutamos o barulho sim, porém quando acontece qualquer fato estranho, a pessoa que tá na guarda aciona uma sirene, que é um toque de emergência para os militares que estão no quartel. Só que neste dia, após o disparo ninguém saiu e nem se apresentou à frente do quartel, porque a pessoa que era responsável por dar o alerta foi também a pessoa que cometeu suicídio. Para Max, o suicídio de Caio foi uma surpresa. O jovem discreto de comportamento introvertido, não manifestava sinais de que enfrentava algum tipo de problema ou sofrimento. Talvez por vergonha ou medo, o jovem não conseguiu pedir nenhum tipo de ajuda. - Não se percebia tristeza, ou algum caso de depressão, ou alguma coisa assim, pois nós temos outros companheiros de serviço que são assim também, pode-se dizer que é na dele, tranquilo, se você não provocar a pessoa não puxa assunto. Tanto é que se ele tivesse um comportamento diferente, talvez nós tivéssemos essa abertura pra ele conversar com a gente. Era sempre dessa forma,


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conversava só quando você conversava com ele. Tanto é que nós não percebemos nada no ambiente de trabalho para que pudéssemos ajudar. O quebra-cabeças que envolveu o ato espontâneo de Caio era um mistério. Entre os colegas de trabalho a relação sempre foi normal, o jovem não apresentou mudanças de comportamento que permitissem desconfiança de alguém. Para Max, a possível causa para a decisão do rapaz estava associada ao relacionamento que mantinha por meio da troca de mensagens no celular. - Eu não sei se ele estava brigando com essa pessoa há algum tempo ou se ele brigou com essa pessoa na hora do fato, não sei se de noite ele amava essa pessoa e tava junto e durante a madrugada eles terminaram o relacionamento, tiveram uma discussão e o fato aconteceu. Não temos conhecimento disso, eu não tenho conhecimento do que acontecia antes e ele também não deixava transparecer para nós se estava passando por algo fora do comum. Não pelo comportamento. De acordo com Max, até o momento que Caio saiu do alojamento, assumiu o posto de trabalho e teve o contato com o armamento, o jovem não tinha intenção de cometer suicídio. - Isso não fazia parte do pensamento dele. Isso aí aconteceu no calor do momento dele ali, parece que ele trocava mensagens com uma pessoa, né? O que escutou não era o que queria ouvir. Embora existam questionamentos, as hipóteses que talvez possam justificar o suicídio de Caio são desconsideradas por provas e tornam o caso além de confuso, inexplicável. O jovem não possuía histórico referente a nenhuma patologia e além disso teria sido submetido a testes médicos antes de assumir o cargo de emprego. Max reforçava essas impossibilidades e explicava alguns procedimentos realizados para a prática daquele trabalho: - Existe um curso de formação onde a pessoa deve estar habilitada fisicamente e mentalmente. Se ela tiver sido reprovada em umas das coisas, é impedida de assumir o cargo. Portanto só pode


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exercer a função quando passa pelo curso e é habilitada tanto emocionalmente quanto fisicamente. Entretanto, ficava claro que aquela é uma profissão estressante e com uma sobrecarga nos horários de serviço. Depois de todos os relatos de Max, embora o suicídio de Caio seja considerado inexplicável, é evidente que em alguns casos, o profissional é submetido a um treinamento, onde lhe é incorporada uma mentalidade que pode refletir em todo seu comportamento. Principalmente o de desconsiderar algum tipo de ajuda. Talvez, o medo de expor algo que possa ser interpretado por fraqueza no ambiente de trabalho, ou usado pelos colegas para deboche é um sério fator de risco. - Infelizmente aqui tem uma política muito de você ser obrigado a ser durão e as pessoas levam isso a sério. Aqui eu fico admirado o quanto as pessoas ficam duras, né? Na verdade é uma frieza por conta do trabalho. Você também não pode ser emotivo quando o fato é o trabalho, imagina você precisando de auxílio em uma hora difícil, e chegar o profissional para prestar atendimento e ser emotivo. Dessa forma ele age com a emoção e não com a razão que exige a profissão. Então para que você seja capacitado, até o próprio curso de formação preza muito isso, tirar o seu lado emocional e priorizar a parte profissional, né! Porque o seu emocional é um e seu profissional é outro.

Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz... Manuel Bandeira




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Júlio O dia ensolarado facilitou minha chegada ao local da entrevista. Sim, parece mentira, mas não existia nenhum contratempo até o momento. Após descer do táxi, caminhei por alguns minutos sem localizar o endereço. Resolvi apelar para o meu GPS, em vão, o nome da rua não consta no mapa do aplicativo e para variar, também eram ausentes as placas de rua naquela região da cidade. Entretanto, consegui obter informação com um mendigo, que revirava o lixo do supermercado daquele bairro logo pela manhã em busca de algum alimento. - Bom dia amigo, tudo bem? Poderia me informar que rua é essa? O senhor, que aparentava ter uns 50 anos, não hesitou em se aproximar estendendo a mão para um cumprimento. - Opa, bom dia. Mas o que cê tá procurando? A simplicidade daquele homem era evidente e também a sua curiosidade. - Procuro esse endereço para realizar uma entrevista. - Ah, cê é jornalista? O senhor levou a mão sobre meu ombro e começou a explicar o trajeto e também aproveitou a oportunidade para contar sobre sua rotina. - Rapaiz, todo dia eu venho aqui cedo, pra catar algumas fruta, legume e verdura que sobra. Faço isso há alguns anos já. Consigo aproveita muita coisa daqui. Mas tô doenti, sem dinheiro, cê não pode me ajudá com alguma coisa pra comprá remédio? Achei justo retribuir a informação com alguns trocados que tinha no bolso, para a compra do remédio. Agradeci e me despedi. Com um sorriso no rosto, o homem continuou sua atividade e se despediu com poucas palavras. - Fica com Deus.


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A casa de grade alta é discreta e chama a atenção pela cor da pintura, verde escuro. Um único toque na campainha foi suficiente. Rapidamente sou recebido por Rosa, mãe de Júlio. - Bom dia Rosa, tudo bem? A mulher de feição simpática correspondeu ao cumprimento com um beijo em meu rosto e me convidou a entrar. - Bom dia, gostei da pontualidade. Vamos entrando. Rosa com uma respiração pouco ofegante me conduziu para uma área de lazer, nos fundos da residência. Na curta caminhada, ela explicava que ali morava com sua mãe. - Venha por aqui, ele está no fundo esperando por você. Sou levado para uma grande varanda, rodeada por algumas cadeiras de sol, churrasqueira e ao centro uma mesa comprida de madeira. Em sua cabeceira o jovem me aguardava sentado. - Oi, prazer Júlio. Tudo bem? O que resumiu a primeira reação do rapaz foi um olhar sutil ao levantar a cabeça. No momento, sua atenção estava voltada para um notebook sobre a mesa. - Olá, prazer. Tudo ótimo. Até o momento, o diálogo estabelecido era somente com a mãe do rapaz. Rosa foi responsável por intermediar e proporcionar o contato. - Júlio, gostaria de conversar com você sobre a situação que vivenciou. Os primeiros relatos do rapaz, ainda pouco desconfiado sobre o assunto da conversa, se resumiam em respostas objetivas. - Minha história de vida não foge da realidade de muitas pessoas. Sou filho de pais separados, tive uma infância tranquila, muito ligado a jogos, muito isolado, sabe? Apesar de ser muito brincalhão e de sempre estar rindo, brincando na escola e tal, sempre tive esse meu lado isolado, quando queria fugir do mundo, dava um jeito de me retrair e acabava me isolando um pouco.


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A atenção do jovem ficava dividida entre a apresentação das minhas intenções e a tela do seu computador. Júlio demonstrava um comportamento calmo e olhar sereno. Muito educado, sequer reagia a cada novo questionamento, suas respostas eram de plena razão e reflexão. O rapaz deixava evidente que os últimos cinco anos foram repletos de acontecimentos que influenciaram radicalmente sua vida. O início de uma faculdade, a aprovação em um concurso público e seu casamento foram protagonistas das mudanças de sua rotina. - Isso pra mim foi muita informação, pra uma pessoa que só estudava, trabalhava, tinha uma vida comum, isso foi muita coisa. De lá pra cá comecei a perceber alguns problemas, não sei dizer se isso importa muito, mas eu sofro de um transtorno, o transtorno bipolar. Ou você fica muito eufórico, feliz ou muito deprimido. Você fica nessa vertente de subir muito ou descer muito. Aconteceu que por problemas no trabalho, não consegui conciliar muita coisa, como faculdade e casamento. Eu cheguei ao ponto de me estressar, não ver mais saída mesmo e pensar realmente em suicídio. Daquele momento em diante que começaram essas disfunções. Naquela época, a pressão e as novas responsabilidades começaram a influenciar no emocional de Júlio. Mudanças de comportamento e reflexos nos hábitos tornaram-se visíveis para os familiares que presenciaram aqueles momentos. - Cheguei ao ponto que literalmente comecei a perder o controle, comecei perder noites de sono, comecei a acabar descontando na minha esposa, não fisicamente, mas verbalmente. Ela percebeu que eu não estava bem e passava noites acordada comigo também, né? Os acontecimentos foram relacionados ao estresse. O rapaz interpretava esses sintomas como passageiros e buscava alternativas independentes para superar aquele momento de sua vida. - Acho que cheguei a escrever pra extravasar, mas nada no sen-


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tido de despedida, mas de sentimentos que estavam acontecendo no dia. Era mais um diário do que um bilhete de despedida. Nada pra alguém ler, mas para extravasar mesmo, para tentar achar uma válvula de escape, mas bilhete de despedida não. A cada dia a situação se agravava mais. O estresse ganhava proporções maiores e Júlio começava a perder o controle sobre toda a situação. Pensamentos que nunca existiram surgiram como opção para resolver os problemas. A consciência do rapaz era tomada pelo conflito diário da incerteza de viver e o medo de um ato ineficiente. - Olha, é bem estranho dizer isso, mas quando você está pensando em suicídio, você tenta se focar em alguma coisa eficaz, alguma coisa que realmente vá dar certo. Então quando eu pensei nesses últimos meses, eu pensei muito em faca, tinha muita coisa com faca, de pegar uma faca e enfiar no coração. Mas aí eu ficava pensando: “Poxa, tem uma costela aqui no meio então pode não dar certo. Eu vou acabar me lesionando e não vou me matar de fato”. Mas pensava muito, ao ponto de acordar pensando, imaginar como seria e só não chegar a fazer por medo de não conseguir findar, medo das consequências de não morrer de fato. É uma luta consigo mesmo, é bem difícil tirar da cabeça. Os pensamentos suicidas de Júlio trouxeram à tona as lembranças de uma tragédia familiar. Um acontecimento traumático que envolveu parte de sua infância, agora era responsável por agravar aquela ideação repentina. - A minha avó por parte de pai, se suicidou, ela se enforcou há mais ou menos uns 12 anos. Apesar de eu não ter uma ligação tão forte com a parte da família do meu pai, mexeu comigo bastante, mexeu muito comigo, me atingiu porque você fica pensando: “Poxa, alguém da minha família, alguém do meu sangue, será que isso é hereditário?” e já começam a surgir várias ideias na sua cabeça que acabam te estimulando também.


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A situação de Júlio estava completamente fora do controle. Os pensamentos diários eram substituídos por planos. Eram métodos arquitetados em detalhes, onde ele considerava todos os fatores de risco e as possíveis problemáticas para consumar o ato. Então, eis que ele tomou uma decisão importante. - Fui procurar ajuda psicológica, consequentemente ajuda psiquiátrica com medicamentos para dormir, para poder me acalmar, mas a família, sim, não só percebeu como me apoiou totalmente. Não tive nenhuma negligência por parte da família. Na parte dos amigos e da sociedade sim, mas da família não, em nenhum momento.

Quem nunca quis morrer Não sabe o que é viver Não sabe que viver é abrir uma janela E pássaros pássaros sairão por ela... Mário Quintana



III Anjos da Prevenção



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Capelão Edilson dos Reis Terça-feira, dia 10 de fevereiro de 2015. Naquele dia eu dava o pontapé inicial para a produção deste livro. Eu tinha em mãos poucas informações. Embora estivesse em Campo Grande (MS) há 4 anos, não conhecia ninguém que trabalhasse com o tema suicídio. Para ser mais específico, meu objetivo era ir atrás de duas peçaschave, que encontrei via internet e que acreditei que pudessem me fornecer um suporte inicial. Tratava-se do Centro de Valorização da Vida (CVV) e do bombeiro Edilson dos Reis. O primeira conhecia por comerciais de TV e sabia que desenvolviam trabalhos via ligações telefônicas em quase todas as capitais brasileiras. O segundo conheci por meio de uma matéria publicada no final do mês de janeiro daquele mesmo ano, no portal Uol, que se referia aos repetidos casos de tentativas de suicídio no estádio Pedro Pedrossian (Morenão), em Campo Grande. Chamou-me a atenção o fato de destacarem aquele homem, um bombeiro, como um agente de prevenção ao suicídio. O tempo estava nublado e parti em busca da primeira peça-chave. Desci no terminal Morenão e caminhei até uma das ruas que cruzavam a Rua Calógeras, já no seu final. Era aquele o endereço que fazia referência à sede do CVV que encontrei na internet. Chegando ao local, deparei com uma casa aparentemente abandonada. Intrigado, questionei um mecânico vizinho àquela residência: - Boa tarde. Aqui não é a sede do CVV? - Não. Faz muito tempo que eles se mudaram daí. - Sério? Mas você sabe me informar o endereço atual deles? - Olha, não sei. Na verdade, ninguém por aqui sabe. A única coisa que sei é que mudaram para bem lonjão. Naquele momento, me lembrei da pesquisa feita na internet. Bem que estava desconfiando da escassez de informações referentes àquela organização. A única coisa que achei foi aquele endereço


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e um telefone fixo, que já havia tentado ligar, mas sem sucesso, estava fora de serviço. Voltei a tentar, mas novamente não obtive êxito. Para deixar aquele cenário mais desanimador, as nuvens carregadas que ameaçavam chuva forte se transformaram em um dilúvio. Corri então para a conveniência do posto de combustível localizado na esquina das Avenidas Salgado Filho com a Costa e Silva. Esperando uma trégua, tomei um café, pois meu estômago já encontrava-se vazio naquele horário. Depois de 15 minutos, São Pedro foi benevolente e concedeu uma pausa no aguaceiro. Sem pensar duas vezes, fui ao 1º Grupamento de Bombeiros Militar localizado cerca de 500 metros daquele posto, na Avenida Costa e Silva, para saber informações a respeito do bombeiro Edilson dos Reis. Fui recepcionado por uma bombeiro que integra a equipe de comunicação do Grupamento. Logo pergunto: - Por acaso você conhece o bombeiro Edilson dos Reis? - Conheço sim. Ele pertence ao Comando Geral. - E onde fica o Comando Geral? - Fica ao lado do Parque de Exposições Laucídio Coelho. Lá poderá encontrar o capitão Reis. - Obrigado e bom serviço. Pude conhecer pela fala da moça a patente do bombeiro a quem eu procurava. Imediatamente fui até o local sugerido, que estava apenas à 1 km do 1º Grupamento. Na portaria, fui recepcionado por um soldado. - No que posso ajudá-lo? - Boa tarde. Gostaria de falar com o capitão Edilson dos Reis. - Sobre o que se trata? - Estou desenvolvendo um trabalho sobre suicídio e fiquei sabendo que ele atua com este tema. Gostaria de conhecer ele e falar sobre isso.


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- Ah sim. Infelizmente ele não está aqui, o turno dele aqui no Comando Geral é somente até à uma da tarde. Ele retorna amanhã a partir das oito da manhã. - Perfeito, volto aqui pela manhã. Meu esforço naquele momento, com o tênis e a roupa encharcados pela chuva que ainda insistia em cair, foram pelo menos recompensados pela quase certeza que poderia encontrar o capitão Reis. No dia seguinte, 11 de fevereiro de 2015, retornei logo pela manhã ao Comando Geral do Corpo de Bombeiros. Fui recepcionado por um soldado diferente do dia anterior. - No que posso ajudá-lo? - Gostaria de conversar com o capitão Reis, ele se encontra? - Acho que ele ainda não chegou senhor. Espere um instante, vou averiguar. Minutos depois ele retornou e disse: - Acompanhe aquele rapaz, ele te levará até a sala do capitão. Um soldado ainda jovem me levou até a sala de Reis. - Aqui é a sala dele. Ele ainda não chegou, mas você pode sentar e aguardar aqui. Entrei naquela pequena sala e comecei a observar o ambiente que possuía um quadro com pinturas abstratas e coloridas na parede. De repente, de uma porta que dava acesso a um ambiente desconhecido, saiu uma bombeiro que em seguida se debruçou sob um balcão que separava os bancos da parte reservada à espera. Com um leve sorriso, disse: - Posso ajudar? - Eu gostaria de falar com o capitão Edilson dos Reis, mas parece que ele ainda não chegou não é? - Não chegou ainda, mas ele tá prestes a chegar. Sobre o que se trata? - Estou desenvolvendo um trabalho sobre o tema suicídio e gos-


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taria de conhecer como ele atua neste assunto. - Ah sim. Olha, só posso dizer uma coisa pra você, se você quiser, ele vai te ajudar muito com este tema. Ele tem muita experiência no assunto. Pode ficar a vontade, qualquer coisa é só chamar. A moça então adentrou novamente pela porta que saíra localizada atrás do balcão. Após uns cinco minutos, a tão esperada figura entrou na sala e me cumprimentou. - Bom dia senhor. No que lhe posso ser útil? - O senhor é o capitão Edilson dos Reis? - Sim, sou eu. Edilson dos Reis nasceu no dia 18 de janeiro de 1967 no distrito de Porto Esperança, em Corumbá (MS). Teve desde cedo proximidade com o exército e a marinha, e, cresceu portanto, com o objetivo de seguir carreira militar. Aos 22 anos, passou a integrar o Corpo de Bombeiros. Mais tarde, formou-se em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de Campo Grande. Esta formação, juntamente à designação de pastor na Igreja Batista, o habilitou para capelão do Hospital Universitário da UFMS (HU), função que exerce há 20 anos. Embora já tivesse visto algumas fotografias daquele homem, sua baixa estatura me surpreendeu. Logo respondi a pergunta que ele havia feito anteriormente e me apresentei. - Bom capitão, eu sou aluno da Universidade Federal e estou desenvolvendo um trabalho de conclusão de curso sobre o tema suicídio, gostaria que o senhor me ajudasse. - Você é corajoso hein cara? Ajudo sim, mas me responde uma pergunta: Como você me encontrou? - Pela internet. - Cuidado, internet é meio perigosa hein (risos). Olha, vou só atender uma ocorrência e já volto, espera um pouquinho, ok? Após o capitão cumprimentar alguns colegas de trabalho, ele se retirou da sala para prestar o atendimento da ocorrência.


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Reis se ausentou durante intermináveis 30 minutos. Neste meio tempo sua secretária entrou na sala e me cumprimentou. - Bom dia, você já foi atendido? - Já sim, o capitão Reis me recepcionou. Disse que foi atender uma ocorrência mas já retorna. - Ah sim, fique a vontade. - Obrigado. Permaneço ali tenso com a expectativa daquela conversa. Eis que o capitão retorna, cumprimenta sua secretária com um sonoro “Bom dia” e senta-se ao meu lado se desculpando. - Me perdoe, mas tive que atender uma ocorrência. Era urgente. - Sem problemas, tranquilo. - Então quer dizer que você está desenvolvendo um trabalho sobre suicídio, é isso? - É sim capitão. - Pois é. Mas deixa eu dizer uma coisa pra você, há uns dois anos veio uma estudante de jornalismo me procurar com essa mesma proposta e ela desistiu no meio do caminho, mesmo eu fornecendo muito material pra ela, você acredita? (risos). Não gosto de aluno preguiçoso, sabia? Certeza que você quer trabalhar com este assunto? - Com certeza capitão. Confesso que neste instante fiquei um pouco temeroso, mas Reis seguiu me questionando. - Deixa eu te perguntar outra coisa agora. Quando você tem que entregar este trabalho? - No final do próximo semestre. - Então você está atrasado. O que já sabe sobre suicídio? - Bom professor, eu li um pouco sobre a abordagem na imprensa e vi que não se deve publicar casos de suicídios que podem causar um efeito de contágio, não é mesmo? - Não, você tá equivocado, você vai ver. Vou te passar alguns


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materiais pra você ter uma base do assunto. Olha, quero que me prometa uma coisa. - O que capitão? - Durante um bom tempo você vai manter sigilo em relação a este trabalho. Você vai fazer um trabalho de repórter investigativo. É um tema delicado, portanto não pode deixar que informações “vazem”, ok? - Ok, pode deixar. - Faz o seguinte então. Às duas da tarde você me procura no Atendimento Geral do HU da Universidade Federal. Lá é meu outro local de trabalho. - Combinado. Quando estava quase me retirando da sala, ele disse: - Mais uma coisa, não esquece de levar um pen drive. Saí do Comando Geral do Corpo de Bombeiros animado com aquele primeiro contato. Descansei um pouco, almocei e estava no hospital 15 minutos antes do combinado. Ao ver uma moça andando de jaleco branco, interceptei-a e perguntei. - Boa tarde, você sabe onde fica a sala do capitão do Corpo de Bombeiros Edilson dos Reis. - Ah sim. Nós conhecemos ele aqui como capelão Reis. Pode pegar o próximo acesso à direita que encontrará um balcão. Ao chegar lá, os recepcionistas te encaminharão para a sala dele. - Obrigado moça. Capelão era uma expressão desconhecida para mim até então. Logo descobri que trata-se de um ministro religioso autorizado a prestar assistência e a realizar cultos em comunidades religiosas, conventos, colégios, universidades, hospitais, presídios, corporações militares e outras organizações ou corporações, além de geralmente cuidar de uma capela. Normalmente é uma função exercida por um padre ou pastor. O artigo 5º, inciso VII da Constituição Federal diz: “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”.


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Ao chegar ao balcão indicado pela moça de jaleco branco, perguntei ao rapaz que estava na recepção: - Tenho um horário marcado com o capelão Reis. - Ah sim, espera um pouco. Após poucos minutos o rapaz retornou e disse: - Me acompanhe, por favor. Aquele moço me conduziu adentro daquela unidade hospitalar, fazendo algumas curvas. O local até se parecia um pequeno labirinto. Enfim chegamos à sala e fui anunciado: - Boa tarde capelão. O moço já está aqui. - Pede pra ele entrar. Entrei na sala e observei Reis diferentemente trajado, sem a farda do Corpo de Bombeiros. Estava vestido com um traje social, sendo uma camisa preta, com botões brancos, uma calça cinza e um sapato preto. - Pode se sentar, aqui é meu outro ambiente de trabalho, pode ficar a vontade. Dentro daquela sala pude observar o perfil cristão de Reis. Ao meu lado direito, encontrava-se um quadro com a figura de Jesus Cristo segurando um cajado, tendo as ovelhas ao seu redor. Nada era por acaso. Edilson dos Reis era também pastor da Igreja Batista. Um armário, uma mesa com um computador e um telefone preenchiam a pequena sala reservada no hospital ao capelão. Pouco depois, soube também que ele ministrava a disciplina de bioética no curso de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Por meio dessas informações, Reis demonstrava a sua polivalência profissional. Em meio às primeiras impressões que eu tinha do ambiente, ele me disse: - Fiz um teste pra ver se você vinha mesmo. Se o aluno não vem, já vejo que ele é preguiçoso. Mas no seu caso, me parece que você está realmente a fim de trabalhar com este tema, não é mesmo? - É sim capitão.


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- Se preferir, pode me chamar de professor. - Ok, pode deixar. - Trouxe seu pen drive? - Trouxe sim. - Me dê ele aqui que eu vou te passar o material. Aquela quarta-feira de fevereiro antecedia a maior festa popular brasileira: o carnaval. Aproveitando-se desta festividade, ao transferir os conteúdos para o meu pen drive, Reis fez uma piada: - Você vai passar este carnaval estudando e lendo este conteúdo. Nada de folia. Afinal, Satanás está com as chaves das cidades nesta época (risos). Apesar de deixar transparecer um pouco seu lado religioso, Reis demonstrava ser extrovertido, irreverente e bem humorado. Entretanto, mostrava-se exigente quando necessário. - Olha, é o seguinte. Aqui está o material que você precisa ler para ter uma base sobre o que é o suicídio. Daqui 10 dias você volta a falar comigo, ok? - Perfeito professor. - Vou te passar meu contato por e-mail e celular. Qualquer coisa que precisar, me avise. Me debrucei o carnaval inteiro sobre aqueles artigos, dissertações e vídeos a respeito do fenômeno suicídio. Aos poucos, quebrava meus próprios paradigmas e preconceitos em torno do tema. Fiquei espantado com os dados alarmantes referentes ao número de autoextermínios no estado de Mato Grosso do Sul e na cidade de Campo Grande. Depois dos 10 dias combinados, voltei a procurar o professor conforme o combinado. - E aí, o que você aprendeu com este material? Durante cerca de meia hora conversamos sobre aquele conteúdo que serviu de base para dar início ao meu trabalho. Em seguida, ele me recomendou a segunda bateria de leituras. Nela estava inclusa um livro, talvez o mais importante, que analisa o fenômeno suicídio e a sua complexidade, denominado O suicídio,


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escrito pelo sociólogo francês Émile Durkheim. Li esta bibliografia e, uma semana depois, estava eu novamente na sala de Reis no HU, debatendo todo o conteúdo compreendido. Por coincidência, era desta obra que o capelão usou o trecho que foi incluído do portal de notícias Uol sobre os casos de tentativas de suicídios no estádio Morenão publicada em janeiro de 2015. Na matéria, uma citação feita por Reis dizia: “O suicídio é uma denúncia individual de uma crise coletiva”. Esta frase pertence a Durkheim e procura quebrar paradigmas em torno do tema. Ao final da minha explanação sobre o livro, Reis me disse: - É isso mesmo que eu quero que você saiba. Quero que fale isso em um seminário que eu vou organizar. No mês de outubro de 2015, este seminário veio de fato a se concretizar. Tratou-se do IX Seminário de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio. Neste evento, pude compartilhar com o público como se abordar o suicídio de maneira correta em publicações feitas pela mídia. Quando discutia com Reis os pensamentos antropológicos, filosóficos e sociológicos de Émile Durkheim a respeito do suicídio, ele afirmou: - Está vendo como aos poucos vai pegando alguma coisa? É isso aí, toda vez que voltar aqui vou te dar um docinho. Realmente, foi um prazer saborear os docinhos de sabedoria fornecidos por este profissional com 20 anos de experiência no assunto. A partir daquele primeiro contato, Reis me autorizou a usar o telefone de sua sala no HU sempre que eu necessitasse ligar para os contatos que integrariam meu trabalho. Reis também me forneceu por diversas vezes celulares de especialistas que tinham propriedade para falar sobre a prevenção ao suicídio, facilitando o contato. A trajetória do capelão do HU no trabalho de prevenção ao autoextermínio teve início no ano de 1995. Em um dia comum de expediente no Corpo de Bombeiros, o então soldado Reis foi aciona-


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do para acompanhar o atendimento a uma tentativa de suicídio de uma adolescente. Mal sabia ele que aquele fato transformaria para sempre sua vida pessoal e profissional. Tratava-se de uma jovem que tinha 14 anos de idade e que ameaçava pular do alto de um prédio residencial. As pessoas que estavam no local já haviam tentado conversar com a adolescente, mas não tiveram sucesso. Chegando ao local, o primeiro procedimento da equipe do Corpo de Bombeiros foi tentar retirar a adolescente da zona de risco. Logo, Reis estabeleceu o primeiro diálogo com a jovem, ouvindo dela palavras impactantes: - Eu perdi o sentido da vida. - Qual o sentido da vida? O sentido da vida é acreditar. Durante a conversa com a moça, Reis constatou que ela sofria um problema até então pouco debatido na sociedade, o bullying. Para piorar ainda mais o drama da garota, a família ignorava esta situação. Com a experiência de capelão, Reis tentou mostrar à moça o outro lado da moeda. - Por que não dá uma oportunidade pra você, uma chance pra você? Você está se importando muito com a opinião das pessoas. Neste diálogo houve um apego mútuo entre o capelão e a adolescente. A ocorrência teve êxito e a jovem foi tirada daquela situação de risco. Reis ainda conversou com a garota durante um tempo no próprio quarto dela e depois a levou e acompanhou no atendimento médico. Entretanto, ele percebeu que a vida da garota estava por um fio e se a equipe demorasse mais um pouco, o fato poderia não ter tido o mesmo desfecho. - Comecei a conversar com e vi que se a gente não tivesse chegado a tempo, ela poderia ter cometido suicídio, ia se atirar daquele prédio. Então, eu fui trabalhando com ela o sentido da vida, até que ela saiu da situação onde podia se lançar e morrer. Marcado por aquele acontecimento, Reis fez um trabalho de acompanhamento com a garota durante dois dias na semana no período de três meses. Foi então que, despertado por aquele fato,


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percebeu que ela não era um caso isolado entre os jovens de Campo Grande. - Não era só ela que estava sofrendo e passando por aquele drama, eram muitos outros adolescentes da faixa etária de 14 anos na nossa capital que passavam pelo mesmo problema. A partir daí, despertei a necessidade de começarmos a falar sobre isso. A frase “O sentido da vida” me deu o lampejo que era preciso falar sobre isso, que o suicídio tinha como ser evitado. Depois desta ocorrência, Edilson dos Reis procurou analisar estatísticas e números para trabalhar em métodos eficazes de prevenção ao suicídio. Atualmente, desenvolve pesquisas, eventos, seminários e palestras. Há alguns anos o professor iniciou no HU um projeto de prevenção ao suicídio nas escolas, para atender a necessidade de tantos adolescentes que sofriam com aquilo. A repercussão foi grande, levando-o a ultrapassar a fronteira da capital sul-mato-grossense e ir para algumas cidades do interior do estado com o objetivo de trabalhar com a causa. Com a grande demanda, criou no ano de 2015 o I Curso de Prevenção ao Suicídio do Brasil. - Vi a necessidade de criar este curso porque dando aula aqui na Medicina, na disciplina de bioética, percebi que o profissional de saúde não tem o manuseio necessário para lidar com pessoas com ideação suicida. Há 27 anos no Corpo de Bombeiros, eu vejo como as pessoas estão sofrendo porque não existem alternativas de tratamento e informação sobre o tema. Oito meses após nos conhecermos, ele relatou-me sua trajetória e falou sobre esta história, em uma sala de aula do bloco VI da UFMS, onde ministrava o I Curso de Prevenção ao Suicídio do Brasil, do qual eu tive a oportunidade de participar e entender melhor este fenômeno tão complexo. Reis estava trajado socialmente, com quase a mesma combinação de roupa que o vi quando o encontrei pela primeira vez na sua sala do HU, ou seja, camisa preta de botões brancos, sapatos pretos


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e a única peça de roupa que se diferenciava era a calça, que desta vez era preta também. Em uma mesa próxima, estava a bolsa de couro que o acompanha em todos os lugares. Sentado com as pernas cruzadas, Reis apoiava seu cotovelo sobre uma mesa, com o dedo indicador direito entre os lábios. Aquela posição acompanhava sua feição séria, embora seja uma pessoa de característica extrovertida e bem humorada. Somente nós estávamos na sala. Faltava pouco menos de uma hora para a aula começar. No decorrer da conversa, Reis dizia-me sobre o primeiro passo para contribuir com um indivíduo que tem ideação suicida. De acordo com o capelão, é essencial ouvir e permitir que a pessoa fale sobre suas dores e angústias. - O indivíduo quer ser ouvido sem ser interrompido. Ele quer ter apoio, e fazer parte de algo, como a família e sociedade. Os estudos mostram que 80% dos casos de suicídio consumados poderiam ter sido evitados, então é legal quando se fala isso. Não existe uma técnica, existe o ouvir que é terapêutico. Por meio deste ouvir, nós vamos apontar os caminhos, as possibilidades da pessoa começar o tratamento sem negligência e com o apoio profissional, da família ou até na religião, e se for o caso de medicamentos. Mas jamais abandonar o tratamento, essa é a nossa fala. Devemos encorajar o indivíduo a compartilhar suas dores, uma dor não compartilhada dói mais. Pode ser difícil pra família esta situação, mas pra ele é terapêutico. Compartilhar o sofrimento é um dos passos indicados pelo especialista para amenizar a dor das pessoas. Mas, de acordo com o professor, é importante que as pessoas saibam interpretar o que aquele indivíduo quer comunicar ou transmitir. - As pessoas costumam dizer: “Ah, ele quer chamar a atenção” e julgam dizendo: “Nossa, são três tentativas de suicídio em dois meses, hein?”. Então precisamos parar e pensar o que estes indivíduos estão tentando falar ou transmitir. Nós temos que estar abertos a isso aí. Como a sociedade não trabalha esse tema, a gente


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acha que é frescura, que é “falta de macho”, já ouvi muito isso - em referência ao argumento machista. Sob o eco daquela sala vazia do Bloco VI, Reis me contou que certa vez, em um dos atendimentos a uma garota, atendeu a família da jovem e descobriu um grande trauma que seus familiares não haviam percebido. - Era uma jovem de 15 para 16 anos de idade que foi abusada sexualmente pelo pai quando tinha por volta dos seus 10 anos. Ela relatava que sua irmã caçula, que atualmente completava 10 anos de idade, enfrentava a mesma situação. Sendo assim, por meio de três tentativas de suicídio, a adolescente tentou comunicar que alguma coisa estava acontecendo com a irmã dela, mas ninguém percebeu. Ninguém questionava qual era a comunicação e o que ela tentava transmitir. Às vezes devemos ouvir aonde não tem palavras porque pode haver muitos significados. Ao longo dos relatos de Reis, percebi que problemáticas como a ausência familiar, o bullying, a busca insana pela beleza, o isolamento que as redes sociais causam, entre outros fatores, podem agravar o quadro depressivo. - A depressão, muitas das depressões, não são somente patológicas, são circunstanciais e podem ser evitadas. Diversos fatores extra físicos como padrões de beleza, a questão do bullying, as redes sociais, a aceitação em grupos sociais, tudo isso leva o indivíduo a não ter esperança, pô! É uma situação que vai puxando a outra, são várias causas que interagem de forma complexa, que levam este indivíduo a não ter esperança. Com o dedo indicador apontando para o alto, Reis atenta para um fator que pode contribuir para o grande número de suicídios na capital sul mato-grossense: a escassez de opções de lazer para a população. - Campo Grande é uma cidade plana, mas sem área de lazer para os jovens. Hoje a cidade recebe muitos universitários que se instalam nas kitnets, mas não tem um referencial de apoio longe



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da família, não tem um vínculo social com o grupo que estuda. Esses indivíduos não têm muitas alternativas de lazer e relação. Até poucos anos atrás, a nossa cidade era conhecida como a capital de um único shopping. Hoje temos três shoppings, mas mesmo assim o shopping cansa. O que precisamos é área de lazer para que esses jovens possam aproveitar o dia e o final de semana. Embora o drama do suicídio tenha ganhado destaque em Campo Grande na faixa etária jovem, mais especificamente entre 15 e 29 anos, este fenômeno é um problema de saúde pública e pode atingir pessoas de todas as idades. Com a fisionomia triste e fechada neste instante, Reis recordou um fato que teve conhecimento nesses anos de experiência como capelão. - Outra situação que deparei era a de um idoso que foi obrigado pelos seus três filhos a vender uma chácara. Nascido e criado em fazenda, tinha seus animais, seus gados, seus cachorros, seus bichos, seus engenhos de cana e seus passarinhos. Os filhos o obrigaram a vender tudo sob a justificativa que já estava idoso, mas na verdade um queria o dinheiro pra comprar uma casa, o outro um carro e o outro abrir um negócio. Os pais por pressão venderam a chácara que era imensa. Então, esse senhor vendeu sua propriedade e foi morar em um apartamento de dois quartos, sala, banheiro e cozinha. Os filhos raramente faziam visitas e ele entrou em uma depressão profunda, chamada depressão circunstancial que o levou àquele sofrimento psíquico. Ele perdeu todo seu ambiente, seus relacionamentos e ficou isolado. Foi então que tentou suicídio pela primeira vez tomando remédio em excesso, mas não conseguiu. Certo dia sua esposa saiu de casa e ele se trancou no quarto e deu um tiro no peito. Ele não queria se matar, queria apenas se livrar daquela situação, porque vivia muito bem na chácara e os filhos o forçaram a viver em um apartamento de dois quartos, sala, banheiro e cozinha. Aquilo foi mortal pra ele. Como enfatizou Reis em um momento da entrevista, não existe receita de bolo para se trabalhar com a prevenção do autoextermí-



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nio. Ou seja, não existe algo padronizado para se trabalhar o suicídio por se tratar de um fenômeno muito individual. Como dizia Durkheim, é uma denúncia individual de uma crise coletiva. - A nossa maior dificuldade na prevenção ao suicídio é trabalhar de uma forma individual em uma população de 200 milhões de pessoas. Não existe receita mágica, mas nós podemos começar a falar que o autoextermínio pode ser prevenido. Quando a gente se conscientiza e leva a sociedade a debater sobre isso nas famílias, escolas e na mídia, as chances aumentam. Alterando o tom de voz, Reis manifestou no discurso a indignação com o sistema de saúde brasileiro. Na visão dele, o governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, negligencia os casos de suicídios, pois não possui o número de unidades de saúde adequadas, além de reduzir o número de leitos nos hospitais psiquiátricos do estado. - Para você ter uma ideia, em Mato Grosso do Sul nós temos o hospital Nosso Lar que atende as redes públicas, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o setor de psiquiatria da Santa Casa e um hospital lá em Paranaíba e só. Mas pra onde vai essa massa de pessoas? É negligenciada. Além disso, nós teríamos que ter cinco Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps Ad), mas infelizmente só temos duas com 6.000 pessoas na fila de espera e com uma equipe reduzida de assistentes sociais, psicólogas e psiquiatras. Para piorar ainda mais o quadro de falta de apoio às pessoas que são assombradas pelo suicídio, Reis enfatiza que o Centro de Valorização da Vida (CVV), uma das peças-chave que procurei em Campo Grande para dar início em meu trabalho, e que atualmente é representado na capital sul-mato-grossense pelo Grupo de Amor à Vida (GAV), está prestes a fechar na capital por falta de voluntários. A instituição atende pelo número 141, conhecido como o telefone da vida, onde as pessoas falam sobre as angústias, os problemas, as dores psíquicas e as neuroses.


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- O GAV está praticamente fechando as portas por falta de voluntários, ninguém quer se interessar pela dor do outro, nós queremos postar felicidade, amor e paz nas redes sociais. “Queremos estar na balada, mas não queremos ouvir angústias ou dores”. Deus quer o nosso tempo para servir ao próximo e podemos fazer isso sendo voluntário do GAV. Aos poucos os alunos tomam conta da sala de aula e temos que encerrar a entrevista. Aquela conversa que durou exatamente uma hora foi mais um momento de aprendizado e acúmulo de conhecimento com o capelão Reis. Inclusive, foi ele que me apresentou Roberto Sinai, porta-voz do GAV, fonte importante para a composição do livro.

Moça, sai da sacada Você é muito nova pra brincar de morrer Me diz o que há, o que que a vida aprontou dessa vez. Venha desce daí Deixa eu te levar pra um café Pra conversar, te ouvir e tentar te convencer. Banda Supercombo - Composição: Leonardo Ramos




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Roberto Sinai Era uma manhã fria do mês de julho, a garoa fazia meus ouvidos doerem, quando cheguei ao endereço marcado. Tratava-se de uma empresa de transportes, responsável por oferecer o serviço de guincho, localizada próximo à rodoviária nova de Campo Grande. Fui recepcionado no portão por um dos funcionários, que aquecia suas orelhas com um gorro. - Bom dia, pois não? - Bom dia, eu gostaria de falar com o senhor Roberto Sinai. - O Roberto pai ou filho? - Acredito que seja o pai. - Aguarde um instante. Após alguns minutos, sou convidado a entrar no local. Era uma garagem, onde ao fundo podia-se ver alguns automóveis acumulados. Da mesma direção, surgiu um senhor, de feição simpática, que limpava as mãos sujas de graxa. Era ele, Roberto pai, ou melhor, Roberto Sinai. Como um bom anfitrião, logo me disse: - Bom dia meu querido, madrugou hein? Pode entrar. Fui convidado a entrar em sua sala, um ambiente aquecido, algo que estava urgentemente necessitado. Ele convidou-me a sentar e logo no início da conversa pude perceber a vasta experiência daquele senhor sobre a prevenção do suicídio. Há 11 anos como voluntário no GAV, Sinai é uma das figuras em destaque quando o assunto é prevenção ao suicídio em Campo Grande. Um homem que aprendeu desde cedo semear os valores de vida que os familiares lhe deram. Nascido no dia 5 de fevereiro de 1960 na Vila dos Remédios, em São Paulo, Sinai teve os pais voluntários da “Cruz Vermelha”. Seguindo as tradições da família, sempre exerceu o voluntariado em algum lugar, de alguma forma, como na própria “Cruz Vermelha” e na ONG “Amor Exigente”. Em uma determinada situação,


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quando já residia em Campo Grande, estava em sua casa assistindo TV e viu uma importante chamada que despertou sua atenção. Tratava-se do Grupo Amor à Vida (GAV), um serviço voluntário e anônimo. - O que mais me chamou a atenção nesta causa foi o sigilo. Hoje meu trabalho não é mais anônimo porque você fica muito tempo nas ruas, apresento palestras em universidades e também concedo entrevistas para TV. Mas o que é gostoso? É você ajudar pessoas e nunca saber quem são. Já aconteceu comigo de pessoas me encontrarem em ambientes públicos e dizerem: “Oh, vi você Sinai, em uma matéria e tal. Olha, já liguei lá quando tive muitas dificuldades em minha vida e você me atendeu”. E você acaba conversando com a pessoa. Mas na verdade o que é legal? É o voluntário que não aparece em situações. Ele muitas vezes ajuda tantas pessoas e essas pessoas nunca vão o reconhecer. Então cara, esse segredo é fantástico lá no trabalho, o anonimato. Com a intenção de espantar um pouco o sono, Sinai solicita um café a uma de suas funcionárias. - Maria, oh meu amorzinho, dá dois golinhos de café pra nós. Ele então se dirige a mim e pergunta: - Você quer tomar café? - Sim, sim. Aos poucos percebo que o principal objetivo do GAV é ser uma escuta de angústias e um destinatário de desabafos, evitando que as pessoas cometam suicídio. É um trabalho voluntário onde qualquer pessoa que tenha mais de 18 anos pode participar. Não exige nenhuma formação específica em áreas da saúde mental, deve existir apenas o interesse em ajudar durante uma carga horária mínima de 4 horas semanais. - Eu sou do transporte, mas nós “contamos” também com professores, aposentados, pessoas com necessidades especiais e o curioso é que não temos nenhum voluntário da saúde mental.


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Neste momento Maria entra e entrega os cafés, mas sem interromper a entrevista. - Obrigado Maria. Como eu dizia, é um trabalho de amor, porque o voluntário fica lá pra ouvir e é treinado por meio de ferramentas de destravamento que facilitam o desabafo da pessoa que está do outro lado da linha. Degustando um café, Sinai me explica que o treinamento dura em média quatro meses, no qual a pessoa adquire a filosofia do trabalho da instituição e aprende a lidar com os sentimentos e com as técnicas de escuta. Para ele, esse não é um trabalho profissional, não oferece tratamento, nem acompanhamento. No GAV, os voluntários são treinados para poderem encaminhar as pessoas para o Caps ou para um centro de reabilitação e tratamento, mas este tipo de auxílio não é oferecido durante o atendimento, pois pode interferir no desejo e na vontade da pessoa. - Por que o nosso trabalho funciona? Porque nós não aconselhamos, não julgamos e não fazemos chacota. E a segurança do trabalho está em que? No sigilo. A pessoa tem a convicção de que não iremos delatar o que ouvimos, é segredo de confessionário. Nós não vamos binar, nós não temos o telefone dela e também não precisamos disso. Não oferecemos tratamento, somos apenas um amigo daquele momento. Ela liga, desabafa e vai embora. Tem pessoas que nos procuram bastante? Tem, inúmeras e repetidas vezes. Mas chega um ponto que ela dá uma fortalecida boa, que ela engrossa a casca, vai embora e não liga mais. Como sabemos que o trabalho funciona? Pelas pessoas que ligam agradecendo. Eles dizem: “Olha, passei por uma situação difícil, liguei e fui bem atendida” ou até mesmo “fui mal atendido, mas eu usei o trabalho de vocês e hoje estou bem”. Por isso que nós sabemos que o trabalho surte resultado. Também nunca saiu na mídia que alguém se suicidou e a última conversa foi no GAV (risos). Pode acontecer? Pode, mas não aconteceu ainda.


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Cerca de 98% dos atendimentos do GAV atualmente são realizados por telefone. No entanto, existe também o atendimento presencial que deve ser feito com hora marcada, onde homem atende homem e mulher atende mulher. - O encontro acontece assim: a pessoa liga no telefone 141 e diz: “Olha, eu me sentiria mais a vontade conversando pessoalmente, eu queria olhar nos seus olhos e falar com você.” Então digo: “Tudo bem, pode vir tal dia, tal hora, que eu vou te encontrar aqui”. Normalmente realizamos este encontro com a pessoa, que dura de 30 a 40 minutos. “Ah, e se ela confessar um crime?”, o assunto morre ali, é segredo confessional. “Ah, mas é um crime hediondo, uma pedofilia”, não importa, nós nunca vamos delatar ninguém. “E se a polícia te chamar pra depor?”, a justiça nos ampara com a lei do silêncio. Os nossos voluntários não têm obrigação, mesmo que haja suicídio depois da ligação, de falar o que ouvimos. É segredo que a pessoa nos confidenciou. Sinai explica que existem algumas circunstâncias em que o GAV desliga o telefone, como por exemplo, quando a pessoa está do outro lado da linha e utiliza a ligação para finalidades sexuais. - Como eu disse, nós somos o amigo daquele momento. Ligou, desabafou, bateu papo, falou o que tinha necessidade vai embora ou desliga quando quiser. Se quiser ficar quatro horas, eu fico quatro horas no telefone se a pessoa tiver assunto. Mas se acontecer ligações com a intenção de “tele sexo”, nós vamos desligar. Educadamente vamos desligar. Chegam diariamente ao GAV todos os tipos de ligações, inclusive dos presídios, onde não é autorizado o uso de celulares pelos detentos. Nestas situações eles ligam para desabafar, para falar sobre a vida na prisão. Isso mostra que os perfis das pessoas atendidas são de todos os tipos e de todas as faixas etárias também: desde crianças até idosos e com diferentes personalidades. - Existem pessoas que tem facilidade para desabafar, outras demoram, não conseguem. Há pessoas que ligam e somente riem


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devido ao seu estado de nervosismo. Algumas ligam para xingar e outras conversam educadamente. Mas o que é isso? É o sentimento dele naquele momento. E nós estamos ali pra que? Pra facilitar o desabafo daquela pessoa. “Ah, mas se ele te xingar de filho da puta?”, não quer dizer nada, ele não está querendo me atingir, ele quer achar alguém que possa ouvir o sentimento dele naquele momento. Então às vezes ele está agressivo, mas depois que desabafa, ele se acalma. Outros simplesmente desligam. Tem situações que a pessoa liga e fica cinco, dez ou até 20 minutos na linha sem falar uma palavra. Mas como sei quando ela está na linha? Ouvindo a respiração ofegante ou calma. Só pergunto se ela está me ouvindo, se está bem, se gostaria de conversar. Houve “N” casos que eu atendi e a pessoa disse: “Estou ligando pra você mas já estou desligando o telefone e vou me matar”. Eu digo: “Tudo bem, se é isso que você vai fazer, pode fazer. Eu vou respeitar seu sentimento”. Daí a pessoa conversa, desabafa e diz: “Obrigado cara, eu tô bem, tô tranquilo. Oh, não vou fazer nada não, pode ficar sossegado”. Após a explicação, um dos filhos de Sinai interrompe o diálogo e diz: - Pai você quer um lanche? - Eu quero. Sinai explica que além do sigilo, aceitação e acolhimento são duas das palavras-chave dentro do GAV, visto que quando um indivíduo apresenta ideação suicida, ele não quer ser julgado, direcionado, aconselhado e muito menos ser motivo de chacota, por isso os voluntários são treinados para aceitar e acolher estas pessoas. No entanto, uma terceira palavra-chave existe e talvez seja a mais importante para essas vítimas. - Eu posso não concordar com o problema da pessoa, mas eu aceito como ela é. A pessoa diz: “Eu acabei de praticar uma pedofilia contra minha enteada, estou me sentindo mal, é melhor eu me matar”. Eu não concordo com a pedofilia e com o que ela fez, mas eu tenho que aceitar o sentimento dela, como ela está.



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Problemas demais, voluntariado de menos O GAV sofreu uma queda brusca de voluntários. Há alguns anos a instituição chegou a ter 96 voluntários, mas hoje possui apenas 42. Como consequência, o número de atendimentos reduziu consideravelmente. Atualmente, os voluntários atendem ao todo 2.500 pessoas, mas deixam de atender 4.000, segundo os números fornecidos pela empresa de telefonia Oi. O fato mais preocupante é que não são números de telefone repetidos que tentam entrar em contato, mas sim diferentes números que tentam fazer chamadas, mas não alcançam êxito. - Devido à redução de voluntários e a impossibilidade de atender grande parte das ligações, eu tive que tirar as inserções que são referentes a instituição da mídia, porque dava uma reação ao contrário. Nós não temos um número suficiente de voluntários e a demanda é muito grande - afirma Sinai. Naquele momento, descobri a razão por não ter encontrado informações atualizadas sobre o GAV na internet. Descobri também que a Prefeitura Municipal de Campo Grande não fornece recursos suficientes para a manutenção da instituição. Em 2012, Sinai apresentou na Câmara Municipal uma proposta de projeto para que a prefeitura ajudasse a ONG com uma despesa de três salários mínimos, que é referente ao aluguel da sede, a manutenção do prédio e a compra do material de limpeza, sob o argumento de que com mais apoio, mais pessoas estariam livres do suicídio. Entretanto, não obteve sucesso. - Na época, quando apresentei este projeto, cada tentativa de suicídio estava custando de 6 à 9 mil reais aos cofres do município e eles não deram bola. Então cheguei à conclusão de que o Poder Público não está interessado em reduzir o número de suicídios. Enquanto a capital não for extremamente surrada com isso, não vão ter estratégias de prevenção.


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Sinai explica que o GAV não desenvolve ações de prevenção, mas, sim, um serviço de urgência e acolhimento às pessoas que passam por sofrimentos psíquicos. Entretanto, fala da importância de ter mobilizações de cunho preventivo na cidade e do prejuízo que o município tem com a ausência dessas ações. - O nosso trabalho é pronto-socorro. Prevenção é feito de forma externa, como as palestras, isso sim é prevenção. Quem liga para o GAV, já liga daquele jeito. Infelizmente, em uma cidade de 800 mil habitantes como Campo Grande, eu não ouvi falar de prevenção ainda, nem em igrejas, nem nos centros de recuperação e nem nos Caps. Um Sinai da vida, um Reis fazendo palestras uma ou duas vezes por semana, vão mudar a história? Não consegue! Não conseguimos, não tem como.

O drama da juventude em Campo Grande Pela segunda vez, um dos filhos de Sinai adentra a sala para entregar o tão esperado lanche ao pai. - Se você não se importar, eu vou comendo e conversando. Hoje levantei às quatro da manhã. Meus “guris” não deixam o véio sem comer, porque senão o véio não aguenta. Tá servido? - Não, obrigado. - É pão com ovo. Tenho que comer pão com ovo de manhã, senão não aguento. Se quiser, eu divido com você. Mas pode perguntar, eu vou comendo e falando. Mesmo desconhecendo a quantidade de ligações diárias ou nomes de pessoas que contatam o GAV, Sinai percebe que a maioria dos telefonemas são de jovens. Ele também realiza palestras para adolescentes na capital e observa que a solidão ganha cada vez mais espaço. De acordo com o último Mapa da Violência de 2014, Campo Grande é a quarta capital brasileira com os maiores índices de sui-


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cídio na faixa etária entre 15 a 29 anos. A cada 100 mil jovens são registrados nove casos de autoextermínio. Saboreando seu lanche, Sinai recorda um episódio que vivenciou em uma de suas viagens, relacionada a esta situação. Certa vez, ele viajava de avião de Manaus até a capital federal Brasília. Era um voo longo, onde teve a oportunidade de conhecer um sujeito chamado Luiz Carlos, um dos diretores da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Por meio da história daquele homem, o voluntário do GAV pôde perceber como a ausência da família muitas vezes é sentida pelos adolescentes. Luiz Carlos é filho de professora e desde criança foi muito apegado aos pais. Quando prestou vestibular, conseguiu passar em segundo lugar do curso em engenharia mecatrônica da Universidade de São Paulo (USP). Após formado, fez o concurso da ANAC e da Petrobrás, vindo a passar em ambos e assumiu a primeira. Sentado ao lado de Luiz e atento ao relato daquele homem, Sinai fez uma pergunta que levou o diretor da Agência Reguladora a refletir: - O que você sentiu falta neste tempo todo? - Cara, eu tenho um vazio na minha vida de 5 anos que é a família. O maior baque que eu passei na minha vida foi quando eu passei no vestibular, porque eu pirei e falava “Eu sou o cara, passei na USP”. Só que quando meus pais me levaram em São Carlos (SP) e alugaram uma casa, vi que estava sozinho, não tinha amigos e a família estava distante. Então entrei em uma depressão que eu quase abandonei os estudos. - Mas você superou isso? - Cara, até hoje tem dia que eu choro. Eu lembro do que eu passei, me dá um vazio e choro. - Mas você não está realizado? - Estou realizado profissionalmente e financeiramente, mas tem um vazio na minha vida que é a solidão.


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De acordo com Sinai, o mesmo fenômeno acontece em Campo Grande por tratar-se de uma cidade universitária que recebe muitos estudantes de outros municípios e estados. Esses jovens saem dos seus lares e veem para a capital sul-mato-grossense ter sua moradia, seja em um apartamento, uma casa ou uma república. Desse modo, passam a ter obrigações, como fazer sua comida caso não tenham dinheiro para comerem e cuidar dos demais afazeres domésticos. Além disso, em muitas situações, precisam começar a trabalhar para conseguir se manter. - O adolescente passa no vestibular e se desliga da família repentinamente. Fazer faculdade longe do apoio da família faz falta. Então, o que eu percebo de Campo Grande? É uma cidade universitária, tem universitário de várias partes do país que vêm pra cá, moram sozinhos, vivem sozinhos. E assim é também com os empregos. Quando chegam esses feriados prolongados, principalmente quando tem alguma festividade, dispara a procura pelo nosso trabalho e o que eles querem é desabafar e muitas vezes é só companhia e conversar. “Eu acho que se não tiver ninguém pra conversar eu morro”. Tem uns que conseguem ser mais quietos, mas tem algumas pessoas que tem necessidade de falar e desabafar. Sinai é dono de uma empresa de transportes há alguns anos e passou por uma experiência curiosa. Como de rotina, ele costumava ligar para a empresa para conversar com o guarda. No entanto, durante um determinado período, ele verificou que o telefone encontrava-se sempre ocupado. Decidiu, então, fazer plantão uma vez por semana e descobriu o que estava acontecendo. Logo na primeira noite recebeu uma ligação e do outro lado da linha a voz de uma garota dizia: - Boa noite, como o senhor está? Onde está o Bento? - Está de folga hoje. De imediato o telefone foi desligado. Passou um tempo e a mesma garota voltou a ligar. Sinai atendeu novamente e desta vez con-



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versou 40 minutos com a garota. Utilizando sua experiência no GAV, fez uso das técnicas de destravamento, levando a garota ao desabafo. Surpreendentemente, ela queria se masturbar, estimulada por algumas palavras. - Mas por que você quer isso? Quantos anos você tem? - Eu tenho 19. - Mas por que você liga aqui? - Porque sei que tem gente aí a noite inteira e eu tô carente de sexo. Sou de Mirandópolis (SP) e tenho medo de sair e alguém me estuprar, me fazer mal, me seguir, mas preciso conversar com alguém. Moro sozinha e cheguei aqui há pouco tempo. Tenho minhas necessidades e converso com quem me dá atenção. Então eu ligo no telefone da funerária ou do guincho, pra encontrar alguém que possa conversar comigo. Por incrível que pareça, naquela mesma noite Sinai conversou com três garotas na mesma situação. Todas moravam perto da sede da empresa e tinham entre 20 e 22 anos. Incomodado com aquilo, o voluntário do GAV questionou uma das garotas com quem conversou naquela noite: - Por que você não liga na polícia? - Porque lá eles desligam e é gravada a conversa. Em outros lugares que eu ligo eu converso, me masturbo e vou dormir. Por meio destas ligações, Sinai passou a observar graves reflexos da solidão entre os jovens. Passado alguns dias, quando retornava para a sua residência após mais um dia de expediente, como de costume passou em frente a um bar que fica localizado próximo a UFMS, onde muitos jovens se aglomeram, chegando a invadir a rua. Tomado mais uma vez pela curiosidade, Sinai disse para sua esposa que o acompanhava: - Vamos descer e nos misturar no meio desses jovens para ouvir a conversa. Devido ao grande movimento que ocorre ali às sextas-feiras, Sinai teve que parar o seu carro a três quadras do bar. No local,



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pegou um refrigerante e acompanhado de sua esposa se misturou em meio ao tumulto de jovens e começou a se atentar aos diálogos, ouvindo conversas como: “Que saudade da minha mãe, véi. Que saudade do meu irmão, que saudade do meu pai”. Sinai ouvia aquilo e entendia o que levava muitos jovens que estavam ali a ficarem parados tomando cerveja durante um longo período com os amigos. Levou-o a refletir também que falta identidade a Campo Grande, devido a muitas pessoas migrarem de outros estados. Analisando estes fatos, o experiente voluntário do GAV estabeleceu uma metáfora à solidão que muitos desses jovens enfrentam. - O que acontece com uma panela de pressão quando você vai cozinhar feijão? Ela vai chegar em um ponto de fervura, que gera pressão e se não abrir a válvula ela vai explodir. Ela é igual a nós. O sábio que engenhou a panela de pressão, assim como nós e esses jovens com quem eu tive contato, precisava descarregar, precisava desabafar, porque senão chegaria uma hora que iria explodir. Cada um tem um tipo de reação ao lidar com a solidão e com os problemas que enfrentam. Alguns xingam, alguns gritam e outros infelizmente atentam contra a própria vida. Estes jovens que tiveram suas histórias relatadas precisam se policiar. Caso não recebam ajuda podem desenvolver a primeira das fases de um suicida. - Nós estudamos três fases da pessoa que se suicida. A primeira delas é a ideação. O que é a ideação? É quando eu estou na faculdade e te digo: “Cara, eu tô de saco cheio. Hoje se o professor olhar pra mim eu dou um murro nele”. Isso é ideia suicida. Mascarada? Sim! Mas é ideia suicida. “Cara, hoje vou pegar minha moto e vou sair voando” ou “Hoje eu tenho que pegar minha moto e sair por aí pra extravasar, pra desestressar”. São ideias suicidas mascaradas que nós ouvimos todos os dias e não damos valor. As palestras que eu tenho feito em escolas, igrejas e instituições é chamando a atenção dos pais para observar estes sintomas, pois em mais de 99%


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dos suicídios sinais evidentes são deixados. Isso é ideação. - A segunda fase é a maturação. Nesta fase, a pessoa começa a ver que a vida não vale a pena e a autoestima começa a baixar. É possível observar isso quando o indivíduo diz: “Eu não tenho amigos. Ninguém me valoriza. O que eu estou fazendo aqui? Não sirvo pra nada. Ninguém me ama, eu não tenho ninguém pra amar, eu sou um inútil. Eu acho que eu vou me matar, vou parar de dar problema pra minha família, eu sou um problema pras pessoas”. Então a autoestima vai baixando e o indivíduo começa a pensar o seguinte: “Acho que eu vou pular da ponte. Eu vou me jogar na frente de uma carreta. Eu vou pular dentro do rio. Eu vou dar um tiro na minha cabeça. Eu vou tomar um copo de veneno”. A pessoa começa a trabalhar em sua mente maneiras de praticar o ato, porque para quem quer se matar a vida é um fracasso, o sucesso é a morte. E o pior, se a pessoa tentar se matar e não conseguir, se sentirá muito envergonhada “Que vergonha, tô aqui de novo. O bombeiro me trouxe, o SAMU me trouxe e ainda tenho que ouvir deboches, ser humilhado”. Isto é a maturação. - O terceiro e último é o gatilho. “Cara, aquele menino só porque a namorada largou, ele se suicidou? Só porque perdeu o emprego? Só porque o banco veio aqui e prendeu a moto com mandato de busca e apreensão?”. Não é só por isso, mas por mais isso. Isso é a “gota d’água”, ele já estava no limite e uma gota derramou. Então isso é um gatilho. Quando a pessoa está na fase da maturação, infelizmente esta tecnologia da comunicação atual passa a ser uma aliada terrível para quem quer se matar. Porque se eu digitar “Quero morrer” ou alguma coisa referente a morte, você vai encontrar agora “N” sites de suicídios com transmissão ao vivo, com notas de avaliação. “O que você achou desse suicídio? Bom, ruim ou ótimo?”. São pessoas dando tiro ou tomando veneno ao vivo. E nós como cidadãos temos o compromisso, o dever e a obrigação de identificar um site desses e ligar na hora pra Polícia Federal ou


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para a Delegacia de Crimes Digitais. Eles vão combater isso, porque é crime. Alguns pais acreditam que se o filho permanecer somente em casa, estará seguro, mas isso é um grande engano. Com 11 anos de atendimento no GAV, Sinai já teve a experiência de atender ligações de crianças de oito anos de idade na madrugada dizendo: “Eu tô com medo, eu tô sozinha. Meus pais não voltaram”. Ao perguntar onde estão os pais, a criança responde: “Estão na balada” ou “Estão trabalhando”. Em algumas situações, a mãe trabalha e é obrigada a deixar o filho em casa para buscar sustento. A criança liga então para o GAV desesperada, mas evita entrar em contato com a polícia, pois não a enxerga com segurança, mas com medo. - O pai sai pra festa e diz: “Olha, você assiste só a Xuxa, você assiste só a Graça Online, que é desenhinho bíblico, não sai disso, tá bom?” e a criança diz: “Tá bom”. Mas lá no cantinho da tela tem uns capetinhas pulando, tem uns pedófilos fingindo ser criança chamando pra bater papo, falando de boneca da Barbie e tem também os sites que incitam a auto destruição, o suicídio. A criança vê tudo aquilo e procura alguém pra ligar. Ao ligarem para os bombeiros ou para o SAMU, eles mandam ligar para o GAV. As crianças devem ser o foco das atenções quando o assunto é suicídio. As famílias devem saber que não é aconselhável deixa-las sozinhas em casa, no computador e sem vigilância. É sempre bom verificar o que seu filho absorve, assiste, posta e faz. Quando ocorre o isolamento social, seja criança, idoso ou adulto, a “luz amarela” deve ser acesa. Além de voluntário do GAV, Sinai também é capelão e ex-policial. Certa vez, a família de uma garota de 12 anos o chamou pouco tempo depois de ela cometer suicídio. Todos estavam desesperados. A primeira atitude de Sinai ao iniciar a conversa com a mãe da garota foi tentar decifrar as causas que a levaram a cometer o ato.


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- Como estava a autoestima dela? - Ah, adolescente, sabe como é, né. A menina ficava o dia inteiro trancada no quarto escuro e não queria sair. Queria que desse comida pra ela no quarto. - Ela se penteava? - Não. - Tomava banho? - Não. Nem escovar os dentes ela queria. - Pois é, ela já estava chamando a atenção e vocês não perceberam. - Não, mas como? Ninguém nunca me falou isso. - Você levou ela ao psicólogo alguma vez? - Levei, mas não adiantou. Os familiares devem estar atentos ao comportamento dos filhos. Neste caso, especificamente, os pais pecaram por achar que era normal a garota ter se isolado e ficado no quarto durante cinco horas. - Quando a menina começou falar aos pais que não tava bem, aquilo era ideação suicida e quando ela se trancou assistindo aqueles filmes de terror e vivendo no escuro, já era maturação. E o que foi o gatilho? Alguma coisa que às vezes é um simples detalhe e a levou ao suicídio, porém suicídio não tem volta. Adolescente que tem qualidade de vida, adolescente que se sente amado, não perde os princípios de higiene, não perde a estima. Esse negócio que moleque não toma banho, não troca a meia, não corta o cabelo, não faz a barba, que não passa perfume, é mentira. Só quem está com a estima baixa faz isso. Quem está com a estima boa, não abandona os princípios, principalmente os de higiene. Então, nós precisamos conscientizar essa sociedade que tem uma visão distorcida deste fenômeno.


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Suicídios mascarados Quem nunca ouviu alguém dizer algo do tipo: “A minha vizinha dormiu o dia inteiro. Não deu nem comida pras crianças”, “Ela tava cortando repolho e cortou o pulso” ou “Um homem sofreu um acidente de trabalho e ninguém entende o que aconteceu”. De acordo com Sinai, todas estas situações podem estar enquadradas em tentativas mascaradas de suicídio. - Quando nós começamos a estudar as causas de acidentes de trânsito, você acha que é normal em uma quadra o motoqueiro bater a cabeça em um poste? Poxa, tem tanto lugar pra cair e ele vai bater a cabeça justamente no poste? Se nós começarmos a estudar o trânsito veremos que a grande maioria dos acidentes são suicídios mascarados. Aí dizem: “Ah, mas não foi identificado”. Como é identificado o suicídio? O suicídio pela polícia é tratado da seguinte forma: evidenciado no local, o cara tá lá pendurado na porta, isso é suicídio. Aquele que tentou suicídio foi socorrido com vida e morreu no hospital, é chamada morte apurada. Então você vê que a estatística é muito furada. Quando ocorrem tentativas de suicídio e Sinai é chamado para acompanhar o caso, ele tem o hábito de saber como era a rotina da pessoa. Em todos esses anos de experiência, já acompanhou alguns casos onde tudo apontava para o homicídio ou o latrocínio, mas que, por fim, era suicídio com um plano de morte bem arquitetado. - Em uma ocasião, fui conversar com a família e descobri que um jovem tinha 24 anos, era formado em química e estava já fazendo física ou era o inverso, alguma coisa assim. O corpo dele havia sido encontrado enforcado em uma árvore próxima a um rio, nas imediações de Campo Grande. Tudo apontava para homicídio, mas depois foram descobrir que era suicídio. E aí eu fui conversar com a família e sabe quanto tempo ele tava na maturação? 14 anos. Ele começou a maturar com 10 e se suicidou com 24. Foram 14 anos



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de maturação. Antes que o suicídio aconteça, geralmente a pessoa tenta se comunicar de várias formas e foi o que aconteceu com este menino. Ele tentou chamar a atenção da família que algo não estava bem, mas não foi notado. Então quando a vítima tomou essa atitude extrema, também foi um ato de comunicação. Existe em Campo Grande uma situação muito comum entre os indígenas. Quando um indígena ainda jovem, entre 18 e 20 anos, deixa a tribo e vem para a cidade, ele se sente algumas vezes em uma situação de impotência perante a sociedade quando se depara com a diferença de camada social. Então passa a se questionar: “Por que ele consegue ir para a faculdade e eu não? Por que ele é um médico bem sucedido e eu não consigo ser isso?”, “O cara tem uma moto e eu não tenho”, ou “O cara tem uma roupa de marca e eu não tenho”. Movidos por essa situação de impotência, os indígenas ficam com a estima baixa e tentam compensar a frustração com bebidas alcoólicas, como a aguardente ou substâncias ilícitas como a maconha e o crack. Consequentemente, se deparam mais tarde com a depressão e a morte por suicídio. - Quando eles observam que as pessoas da mesma idade já têm carro, moto, começam a sentir o impacto. Na tribo, ele queria carne, ele caçava, ele queria um peixe, ele pescava. Não tinha custo. Ele não precisava pagar energia, não pagava água, qualquer casa servia. Agora na cidade, a situação é diferente.

O desamor e o desamparo - Sem dúvida nenhuma, o carro chefe do suicídio é o desamor, a baixa estima e a depressão. Nós nascemos para amar e ser amados. Se saiu disso, destoa. Você precisa do amor dos seus pais para ter sua identidade, para depois transferir para os seus filhos e essa cadeia não morre, não diminui e não cai a frequência. Ela deve ser


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na frequência alta. E quando não é, acontece isso: jovem revoltado e rebelado. E não é só jovem, idoso também. A terceira interrupção da conversa acontece. Desta vez era o outro filho do voluntário do GAV. - Oh meu filho, pode falar. - Pai, você viu meu irmão? - Saiu daqui faz um tempo. Seguindo em seus relatos, Sinai me revelou que há alguns anos estava em uma madrugada de pleno verão às 3h20 da manhã no antigo posto de atendimento do GAV. Pelo fato de o telefone não tocar, o voluntário pegou uma mangueira e começou a molhar as plantas do jardim que adornavam e coloriam a paisagem da sede. A rua estava deserta, nenhum barulho, apenas ruídos de isolados automóveis ao fundo. Eis que parou em frente à casa um carro e desceu uma pessoa que cumprimentou o voluntário: - Bom dia, podemos conversar? Tratava-se de um senhor de meia idade de cabelos grisalhos. Prontamente o voluntário respondeu: - Podemos, mas eu não posso te receber agora porque de madrugada não recebemos pessoas no posto, só em horário comercial. - Tudo bem, podemos conversar mesmo assim, sem problemas. Sinai desligou a mangueira, tirou o telefone do gancho para se dedicar somente àquele encontro e pegou duas cadeiras. O voluntário passou então uma cadeira por cima da grade do portão para o anônimo senhor se sentar e deixou uma para o lado de dentro da sede para a sua melhor acomodação. Então o desabafo começou: - Meus filhos já se formaram, mudaram, moram fora do Brasil. Eu sou viúvo e conquistei financeiramente tudo o que queria. Tenho uma excelente profissão, porém hoje o que está me matando é a solidão. Se estou em um sinaleiro, paro, faço um sinal de positivo pra alguém e a pessoa acha que sou homossexual. Pela minha profissão, não posso sentar em uma lanchonete, fazer amigos. Eu não



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tenho liberdade pra andar sozinho por todos os locais, estou enojado das pessoas me chamarem de Doutor, de Excelência, eu quero ser normal, levar uma vida normal. Sinto falta de uma família. O senhor era um alto funcionário do Poder Judiciário e o seu relato transcorria como mais um atendimento comum do GAV, vindo a se encerrar somente às seis da manhã. Em determinado momento, porém, ele disse uma frase que foi a mais marcante para Sinai em todos os anos de experiência como voluntário. - Hoje eu sou tão pobre que eu só tenho dinheiro. Embora tivesse uma condição financeira muito boa, a ausência da uma estrutura familiar, de amigos e consequentemente de qualidade de vida, levavam aquele senhor a entender como o dinheiro, além de ser fugaz, não era o contemplativo da felicidade. - As pessoas focam tanto no dinheiro, pensam tanto em ganhar, em ficar rico, em conquistar. Existe tanta ambição, passam por cima, pisam e chegam ao fim da vida e vê que isso não valeu a pena. Então, a vida vale a pena, mas vale a pena ser vivida. Temos que viver um dia de cada vez, amar, ser amado, ter tempo e espaço pra isso, precisamos disso. Nesse instante, o filho que anteriormente havia adentrado a sala para entregar o lanche ao pai, entra mais uma vez. - Oh meu filhão, pode entrar. O Roberto está te procurando. - Beleza – o jovem então deixa um papel na mesa e se retira. - Este meu filho é o Lucas, o outro que entrou antes é o Roberto. Sou esclarecido da dúvida que tive no momento em que cheguei na empresa e me deparei com o questionamento do funcionário, me perguntando se gostaria de falar com o Roberto pai ou filho. O garoto tinha o mesmo nome do pai e espero que tenha o mesmo espírito solidário, pois um Roberto ajuda muita gente, dois Robertos ajudam muito mais.


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O Rapport Sinai também é negociador em situações que envolvam tentativas de suicídio. Esta especialização o ajudou com uma pessoa, em uma das ocasiões mais perigosas que já vivenciou. Uma pessoa estava há cerca de quatro horas em processo de ameaça de suicídio e a polícia ligou para Sinai. O local era uma residência e dentro dela estava uma travesti, de nome Laura, 23 anos. Ela estava em um quarto pequeno, onde só havia uma porta, uma pequena escrivaninha, mas não havia janela, impedindo a jovem de enxergar novos horizontes. Fechada naquele ambiente, ela já estava com partes de seu corpo cortadas, além de estar muito assustada e desesperada. A polícia não poderia jogar uma bomba dentro do quarto, porque até fazer efeito, ela poderia consumar o ato. Sinai então foi acionado, chegou ao local, entrou no quarto sob a autorização da polícia, cumprimentou a jovem e se deu conta da gravidade da situação. Laura tremia muito e tinha nas mãos uma faca grande, conhecida popularmente como peixeira. Ela a apontava para o pescoço e a veia aorta saltava sem parar, quando Sinai disse: - Eu quero conversar com você. - Mas eu não vou te dar a faca. - Mas eu não quero a faca, eu quero conversar com você. Deixa eu sentar perto de você, não sou polícia, não sou bombeiro, não estou armado. O negociador Sinai então ergueu a camisa, mostrou para Laura que estava desarmado, virou de costas, e voltou a dizer: - Eu quero conversar com você. - Manda todo mundo sair daqui então! Atendendo a exigência da jovem, Sinai disse: - Vocês se afastem. A responsabilidade do voluntário do GAV era grande naquele momento. Qualquer movimento errado por parte dele poderia ser


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fatal e levar a pessoa a cortar o pescoço. Ele tentava conquistar daquela jovem o que os psicólogos chamam de Rapport, ou seja, uma técnica usada para criar uma ligação de sintonia e empatia com outra pessoa, prática de praxe dos negociadores. Sinai então disse: - Não vou sentar onde você está, quero fechar a porta pra ficar a sós com você. A jovem estava nua, com o corpo todo ensanguentando. Sinai, então, ao verificar que todos haviam se afastado, fechou a porta e disse: - Pode abaixar a faca, quero conversar de boa com você. - Não vou abaixar, eu quero me matar! Fazia quatro horas que ela estava naquele processo e já havia cortado os braços, o pulso, a perna, havia fatiado a coxa e estava desesperada. Por meio daquele ato, ela mostrava que gostaria de ser reconhecida como um ser humano. Para tranquilizá-la, Sinai pediu: - Você está cansada, descansa seus braços, coloca a faca em cima da mesa. Ela atendeu o pedido, colocou a faca em cima da mesa e começou a conversar com o negociador. Então, um novo pedido foi feito por Sinai: - Cara, deixa eu sentar aí, eu tô cansado de ficar em pé. A travesti deixou a faca de lado, se sentou e depois de 20 minutos de conversa, Sinai solicitou o último pedido: - Tira sua faca daqui, porque eu tô com medo dela. - Eu não vou fazer nada contra você! É pra me matar, não é pra matar você. - Mas eu não gosto de faca, tira ela de perto de mim. Naquele momento a jovem abaixou a faca e Sinai passou a ter maior segurança sobre a situação. Ela havia se inclinado para o lado do Eros (vida) e se distanciado do Thanatos (morte). Mesmo assim, entretanto, a confiança da jovem não havia sido completamente conquistada, ainda estava em desenvolvimento.


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- Você deve estar sentindo muita dor, né? - Tá ardendo o corte. - Eu imagino que esteja, mas você confia em mim? Eu quero apenas o seu bem. - Confio. - Então vamos pro hospital pra você fazer um curativo. - Já te falei que isso não vai dar certo. O tempo passava e era eterno para o negociador e também para as pessoas que estavam do lado de fora. Além do obstáculo da ansiedade que envolvia a situação, Sinai sabia que existia a torcida para que aquela intervenção não tivesse êxito. - Tenho certeza que tinha alguns caras ali que queriam que aquela ação desse “merda”, pra eles dizerem: “Falei pra você que não dava certo”. Infelizmente existem pessoas assim, cara. Sinai tentou então estabelecer um novo elo de confiança com a jovem após a recusa anterior. - Ninguém vai te prender, ninguém vai te agredir e eu vou ao hospital com você. Pensando somente no bem-estar da vítima, o negociador então abraçou a jovem que era soropositiva e estava toda ensanguentada. Após este ato, Sinai pegou a faca e, após o acolhimento, os dois saíram da casa, entraram na viatura e foram para o hospital. - Já passei “N” apertos que nós negociamos bastante, mas este me marcou pela longa duração. Eram quatro horas de negociação e não havia êxito. Então quando eu cheguei lá foi Deus que agiu, não eu. Deus foi misericordioso com ela e a fez desistir. Mas são experiências marcantes como essa que não dá pra tremer na base, cara. O papel do negociador, muitas vezes, pode surtir um efeito mais positivo do que propriamente o da PM, pois ele e a vítima podem buscar soluções que não necessariamente as pessoas que estão cercando o ato precisam saber o que se passou. - Negociação é algo anônimo e silencioso e quando o indiví-


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duo está ali em cima do viaduto para pular, a polícia geralmente não tem essas técnicas de convencimento. A pessoa, muitas vezes, tem muito medo da polícia. A farda, a arma, tudo aquilo simboliza agressão. O indivíduo está acuado, com medo. A sociedade busca o espetáculo e pretende ver algo heroico como, por exemplo, um bombeiro pular na corda, abraçar a pessoa e não deixar ela se jogar. Mas, segundo Sinai, nem sempre essa é a melhor solução quando o cidadão está na fronteira entre o Eros e o Thanatos. De fato, a vontade de viver fala mais alto, porém o desespero pode levar à morte. Portanto, é um momento delicado. - Como eu falei, para o potencial suicida a morte é o sucesso e a vida é um fracasso. Aquele ato do bombeiro de saltar e agarrá-lo pode ser heroico pra sociedade, mas é vergonhoso pra vítima. A pessoa se sente agredida e invadida quando o policial “cata ele” na marra, toma a arma e não deixa pular. Os aplausos públicos são humilhantes para o indivíduo. Mas as pessoas são inocentes e enaltecem o ato do bombeiro ou do policial. Como filosofia nas negociações, Sinai opta por jamais atacar a vítima, a fim de impedi-la a praticar o ato, mesmo que a pessoa esteja com o revólver engatilhado. O segredo é convencer o indivíduo a buscar uma atitude diferente, mas sem agressão. - A minha função não é avançar e arrancar a arma da mão dele, até porque ele pode se voltar contra mim, ele pode pegar a faca e me pinchar. A minha função é negociar, não é atacar. A função de policial e do bombeiro, se preciso for, é atacar para impedir. Mas por que nós temos tantas tentativas repetidas? Porque elas são combatidas de forma agressiva. Quando ele é agredido, não desiste, volta a tentar e quase sempre consegue. O voluntário do GAV admite que não tem medo de negociar com ninguém e confia muito no êxito. Isso proporciona tranquilidade e serenidade necessária para que ele solucione o problema. Afinal de contas, sempre são vidas que estão em jogo.


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- Eu não sinto medo. A pessoa pode estar até com arma de fogo e me dar um tiro? Pode! Posso levar uma facada? Posso! O cara pode tacar o copo de veneno no meu rosto e me cegar? Sim! Mas estou ali para fazer o bem, pra cuidar de uma vida, deixando meus afazeres pra ajudar uma pessoa que nem conheço. Se o bombeiro vir aqui agora e me buscar pra negociar, eu vou. Posso me omitir, me acovardar? Não posso, não tenho esse direito. Não temos né, nem você nem eu. É uma situação de risco, de muito risco, não é brincadeira, é sério. A maioria das pessoas que chega a esse ato de desespero busca ajuda diariamente. Quantas vezes é possível ouvir: “Oh fulano, senta aqui um pouquinho, vamos conversar”. “Ah, não posso cara tenho hora para o dentista e para entrar na faculdade”. O jovem está lá na balada e diz: “Oh, vem cá, preciso falar com você, preciso desabafar agora”. “Não dá bixo, a fila anda, depois, depois”. Ninguém tem tempo. Isso é uma somatização, pois aquilo que não é jogado pra fora, é somatizado. Já no final da nossa conversa naquela manhã fria de julho, Sinai fecha com chave de ouro o papel de anjo da guarda. - Estarei sempre à sua disposição para o que precisar. - Obrigado, digo o mesmo pra você. Retiro-me da empresa de Sinai e volto para a congelante temperatura que fazia Campo Grande naquela manhã de inverno. Saio, no entanto, aquecido pelo acolhimento e sabedoria do porta-voz do GAV.


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Ser feliz não é só apreciar o sorriso, mas também refletir sobre a tristeza. Não é só celebrar os sucessos, mas aprender lições dos fracassos. Não é só sentir-se feliz com os aplausos, mas ser feliz no anonimato. Papa Francisco



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Sílvio Romero Era início de uma tarde ensolarada do mês de setembro de 2014 quando o centro de operações do Corpo de Bombeiros de Campo Grande notifica o 1º Grupamento sobre a ocorrência de uma pessoa que estaria subindo em uma das torres do estádio Morenão, a cerca de 700 metros daquela unidade. Oito bombeiros em duas viaturas, sendo uma delas de resgate e uma ambulância, partiram até o local para verificar o que havia ocorrido. No comando estava o capitão Sílvio Romero Brites, com 21 anos de experiência acumulados no Corpo de Bombeiros, sendo um dos fundadores do resgate em Mato Grosso do Sul. Era ele que conversava comigo em uma manhã fria de junho de 2015, na mesa do refeitório do Corpo de Bombeiros deste mesmo grupamento onde a ocorrência foi solicitada. Com os braços sobre a mesa, mostrava serenidade ao relatar casos de tentativas de suicídio que presenciou. No dia dessa ocorrência no estádio Morenão, quando a equipe do capitão Romero chegou ao local, os bombeiros se depararam com uma mulher aparentando ter entre 28 e 30 anos, pendurada em um dos ferros que sustentam a torre do estádio. Por ter uma fisionomia jovem, os curiosos que estavam próximos suspeitavam inclusive que fosse uma estudante. Aqueles profissionais, no entanto, responsáveis por salvar tantas vidas, se deparavam com uma situação até então atípica, pois há muito tempo ninguém subia naquele local para tentar esse tipo de ato. O último caso registrado havia sido 25 anos antes, quando um jovem escalou exatamente a mesma torre e pulou, vindo a óbito posteriormente. Enquanto um dos bombeiros fazia o isolamento da área, o sargento Magalhães, envolvido na ocorrência, começou a subir a torre e ficou a quatro metros da vítima. Neste momento ela ficou em pé, abriu os braços e seu corpo balançou. Foi quando houve a tentativa do primeiro diálogo por parte do profissional:


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- Se você pular, eu pulo. Eu estou com você. A mulher desceu um pouco, recuou e se sentou próximo à haste da torre. A tentativa de um novo diálogo foi realizado, a fim de tranquilizar e ganhar a confiança da vítima: - Como você se chama? Fique tranquila. O diálogo prosseguiu e Magalhães foi progredindo, chegando cada vez mais perto da vítima. A moça percebeu a aproximação e voltou a subir no topo da torre, vindo novamente a abrir os braços. Nesse momento, o sargento tentou mais uma intervenção. - Não faz isso porque se você fizer eu pulo com você. Ela então desceu, sentou, abaixou a cabeça e ficou quieta. Naquele momento, Magalhães conquistava a confiança da moça. Era tudo o que aquela vítima precisava, um mínimo de apoio, que servia de bálsamo sobre o seu sofrimento. Logo três militares da equipe que atendiam a ocorrência, junto com o sargento Magalhães, conseguiram fazer a contenção da moça no alto da torre de iluminação por meio da técnica de rapel, pois ela se encontrava a cerca de 30 metros de altura do chão. Romero explicou que de acordo com a filosofia do Corpo de Bombeiros, toda vez que existe uma ocorrência, se o indivíduo der chance para ser interceptado, a equipe responsável pela ocorrência não pode hesitar. No entanto, em determinadas situações é exigido um pouco de cautela. Em outras, dependendo da atitude do indivíduo, como por exemplo, quando uma pessoa coloca uma arma sobre sua cabeça, a ocorrência deve ser transferida para o Batalhão de Operações Policias Especiais da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul (BOPE), considerando que este órgão possui técnicas e instrumentos para lidar com esse tipo de caso. Naquela ocasião, em dez minutos, a equipe do Corpo de Bombeiros conseguiu tirar a moça daquele risco eminente. Ao chegar ao solo, o capitão Sílvio Romero tentou novamente conversar com a vítima, mas encontrou dificuldades, pois ela não dizia nenhuma


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palavra. De acordo com ele, esse comportamento é comum em pessoas que tentam o suicídio e não consumam o ato. - Geralmente, essas pessoas que atentam contra a vida ficam constrangidas e não falam nada. Eles não expressam nenhum tipo de conversação. Você tira muito pouco dela, às vezes não tem documentação. Depois de ela ser medicada, pode dizer algo, mas a maioria das vezes isso não acontece. Após a abordagem e a contenção, a vítima disse que tomava remédio controlado e que em um período próximo havia perdido um filho. Essa foi a única explicação que deu aos bombeiros. A moça então foi encaminhada para os procedimentos posteriores à ocorrência e passou a tomar medicamentos. Por se tratar de um serviço sistematizado, após a viatura fazer a abordagem, outro veículo faz o transporte para o destino posterior da pessoa, tudo sob monitoramento da central de regulação do Corpo de Bombeiros. Depois disso, o paciente é levado para um centro médico, onde é atendido. Portanto, existem quatro sistemas que auxiliam: o sistema de abordagem, o de resgate, o de transporte e o hospitalar. O caso teve grande repercussão na mídia, sendo divulgadas inclusive fotos da vítima em cima da torre. Após 15 dias deste episódio no estádio Morenão, a moça subiu em outra torre, desta vez de um supermercado e pulou, vindo no mesmo momento a óbito. Na opinião de Romero, a vítima tentou comunicar por meio da ação que passava por um drama e não foi ouvida. - Ela queria mostrar que estava sofrendo. Nem a família, nem o Estado e nem a sociedade estavam querendo acolhê-la. Eu penso que é isso, ela tinha um sofrimento grande e as pessoas eram alheias àquele sofrimento. Talvez, na visão dela, a gente não a salvou, mas só atrapalhamos seus planos. Para o capitão Romero, o papel do bombeiro nesse tipo de situação não é meramente técnico. O militar que integra a corporação


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deve compreender o drama da vítima que acabou de tentar um suicídio e demonstrar que está disposto a ajudá-la, desde que tenha algumas cautelas. - Primeiramente o bombeiro deve ouvir as angústias da pessoa. Ainda que ela esteja depressiva, procure entender que aquilo faz parte dos seus problemas e assim induzi-la a buscar um médico e tomar medicação. Talvez a parte mais difícil para as pessoas é não ter com quem conversar, então devemos dialogar nessas situações. Damos um ânimo de ele vir conosco, fazer um tratamento, dar todas as garantias que ele está pedindo e solicitar que se entregue. É muito raro a pessoa falar: “me leve”. O que a gente faz é ganhar a confiança. A cada centímetro nós ganhamos espaço e quando chega a um metro do seu alcance nós pegamos, como pegamos aquela mulher. Neste momento do diálogo foi quando Romero se mostrou mais emocionado. Ele demonstrou que o trabalho que exerce em algumas situações ultrapassa a fronteira profissional e alcança situações da vida pessoal. Ele tem um filho, resultado do primeiro casamento, que sente a falta da presença materna. Situação muito parecida com as ocorrências que envolvem adolescentes com ideação suicida que ele atende. - Eu penso que é um contexto. Por exemplo, o do meu filho, eu sou separado da mãe dele e ele não recebe este carinho, mas demonstra uma necessidade de compaixão. Parece que ele tem esse buraco e quer que os outros fiquem falando: “Oh, coitado”, “Oh, ele está sofrendo”. Mesmo tendo tudo, ele parece não ter nada, porque nós interpretamos muito erradamente que as coisas materiais nos suprem. Nas ocorrências que atendo, noto que as pessoas que tentam suicídio estão extremamente irritadas. Elas reclamam da ausência de um pai, de uma namorada, de um namorado, ausência de carinho. Elas não querem nada de material, querem afeto. No final, você compreende o que levou elas àquela situação.


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O capitão do Corpo de Bombeiros mostrava-se um pai preocupado naquele momento, por isso, de todos os perfis de suicidas que lida, o mais preocupante é o dos jovens. Também neste fator, as situações que vivencia no trabalho impactam a vida pessoal, que faz uma relação com membros da sua família, principalmente os que se encontram na fase da adolescência. - Você vê muito suicídio de pessoa de meia idade, 30, 25 e 40 anos, é o que mais observei. Mas o que marca é o suicídio de um jovem. Você lembra que tem filho nesta idade, tem primos, sobrinhos e isso te frustra, dá medo. Eu acredito que nesta fase as questões que levam ao suicídio têm muito a ver com problemas de sexualidade e amor não correspondido pelos pais. Sem enxergar saída, a fuga dele é o autoextermínio. Em junho de 2015, o capitão Romero atendeu uma ocorrência numa tarde de domingo. O adolescente de nome Maicon pegou uma faca, se trancou no quarto e ameaçou se matar. Ele reclamava da ausência paterna, entretanto o pai que presenciava a situação alegava: - Eu sempre dei tudo pra ele. Não era aquilo, no entanto, que Maicon queria. Ficava claro que ele tinha uma carência afetiva e evidentemente um problema comportamental, mas a reclamação dele era essa. Era um menino de 17 para 18 anos. Paralelo a essa situação, já fazia o uso de drogas. - Quis comunicar que a família não olhava para ele, que o pai não dava carinho e atenção. A maior crítica era referente ao pai. O garoto morava com a mãe e o pai estava de passagem por aqui. Ele não queria se matar, queria se livrar dos problemas. A solução para a equipe do Corpo de Bombeiros foi tirar Maicon do quarto. Para tal ato, eles abriram a fresta da porta, jogaram o spray de pimenta e depois de 30 segundos o garoto jogou a faca. Situações como esta podem ter um agravante a mais quando a pessoa que tenta suicídio está em um ambiente externo, onde pode


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ser facilmente vista pelo público. De acordo com Romero, isso ocorre porque a população brasileira tem um fascínio muito grande em torno das situações de tragédia, o que dificulta o trabalho do Corpo de Bombeiros. Vários curiosos geralmente se aglomeram em torno do local, fazendo obrigatoriamente que o isolamento seja o primeiro procedimento de cautela dos bombeiros ao chegar na ocorrência. - Nós procuramos isolar a área. Todo mundo quer ajudar, mas às vezes sua ajuda não é técnica, né? Eu fiz um curso em Minas Gerais, aí em uma madrugada tinha um cara tentando subir na torre. Reclamava que ele tinha mulher, mas ninguém dava atenção pra ele, a sogra falava isso, falava aquilo, aquela coisa toda, sabe? E aí esta negociação durou bastante. Isso era uma hora da manhã e lá pelas três horas já começou a circular o ônibus. Daí, em dado momento, passou um “bocudo” lá e falou: “Saí daí seu corno. Não fica dando trabalho pros bombeiros, se mata logo”. Aí o indivíduo disse: “Aí oh, até ele sabe que eu sou corno”. Então foi uma pessoa que não ajudou. Tudo aquilo que nós conseguimos chegar perto, voltou a estaca zero. Às vezes tem pessoas que falam certas coisas que podem atrapalhar tudo. Quando o bombeiro chega, o indivíduo potencialmente suicida se assusta também, porque acha que pode ser preso. Então eu acredito que o isolamento faz com que você tenha a situação sobre controle. Em todos estes casos de tentativas de suicídio e nos demais que Romero vivenciou, ele notou que houve falhas na base social daquelas pessoas, que se resume para ele em três elementos. - Primeiramente a parte familiar; depois a parte médica, que seriam os psicólogos, os psiquiatras; e em terceiro a religião. É o tripé do ser humano, ele necessita dessas coisas pra sobreviver. Com essa reflexão, eu finalizava mais uma conversa com um dos denominados anjos da prevenção.


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Um ente querido é como um membro do corpo, Os laços de amor não se desatam e nem se dissolvem. Não faças o mal a ninguém, nem a si mesmo. Patrick Alif e Victor Hugo Sanches



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Major Wagner Primeira sexta-feira de agosto do ano de 2012, antevéspera ao dia dos pais. A equipe de negociação do BOPE é acionada para uma ocorrência em uma das principais vias do centro de Campo Grande. Matheus, um garoto entre 17 anos e 18 anos, ameaçava pular de um viaduto. A situação que o indivíduo se colocou era de risco. A equipe de negociação tinha poucas possibilidades de fazer uma ação tática porque o terreno não permitia uma aproximação. Então, a técnica prioritária foi o convencimento. - A causa de todo o transtorno era a falta de um pai e o rompimento com um tio que era uma referência paterna para o garoto. Felizmente, a ação teve sucesso e o suicídio não ocorreu. Pelo padrão que adolescente se comportava naquela situação, foi uma das ocorrências de ameaça suicida onde a pessoa mais se aproximou da morte que a nossa equipe presenciou até hoje – relata o Major Wagner. Com 15 anos de experiência no serviço policial, o Major Wagner Ferreira da Silva me recebeu no batalhão do BOPE em uma tarde do mês de julho. Ao se recordar deste dia, ele me levou a uma sala onde existem algumas fotografias de ocorrências bem sucedidas nas quais a equipe já participou. A foto do garoto em cima do viaduto era como um troféu para aquele policial, que havia conseguido fazer uma negociação com êxito e salvar uma vida que estava em risco. Na sala dele, onde ocorreu a maior parte da entrevista, elementos misturados me chamavam a atenção. A caveira que para muitos assusta e simboliza a morte, na filosofia da equipe do BOPE tem outro significado. Simboliza a alquimia, ou seja, a inteligência humana nas negociações a fim de não balançar a corda suspensa e fraca onde se encontram muitas vítimas potencialmente suicidas. Abaixo da caveira, estava posicionada um de seus mais im-


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portantes instrumentos de trabalho, a farda. Na mesa, a foto de uma criança, uma garotinha que aparentava ter um ano de idade, simbolizava o lado paterno de Wagner, provando estar em sintonia com a família. Ao longo da conversa com o Major, descubri que dentro do BOPE em Campo Grande existe hoje uma equipe composta por nove policiais, preparados e treinados especificamente para lidar com situações de ameaças suicidas e casos com envolvimento de reféns. Essa equipe foi criada em 2005, inicialmente denominada por Companhia Independente de Gerenciamento de Crises e Operações Especiais (Cigcoe) e em 2013 passou a adotar o nome BOPE. O major me relatou com orgulho que sua equipe não teve insucesso em nenhuma ocorrência que envolveu ameaças suicidas. Em todos os casos os policiais responsáveis conseguiram remover a pessoa do local com vida. O procedimento da equipe não envolve somente a direta conversa ou negociação com o causador da crise, como é tecnicamente denominada a pessoa que ameaça se suicidar. Existe uma preparação do local, onde é realizado o isolamento, se estuda uma forma de conter a pessoa que está se ameaçando, uma forma de preparar as ações de negociação, ou seja, o uso de ferramentas verbais e táticas. O BOPE possui equipamentos de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo, como, por exemplo, o taser³, que age em cima de uma das ondas do traçado eletrocardiográfico, T4, e imobilizam o indivíduo. - A intenção do BOPE no local é impedir ou convencer a pessoa que tenta o ato suicida, empregando uma técnica policial, se for preciso, para preservar aquela vida. Quando a barreira da prevenção for ultrapassada, é que nós vamos atuar. Não estamos preocupados naquele momento em iniciar um tratamento. A nossa principal intenção na crise é preservar a vida, então eu não vou utilizar nenhuma técnica de psicologia ou religiosa para iniciar o tratamento daquela pessoa. Muitas vezes temos que utilizar algumas Taser³: Marca de arma de eletrochoque utilizada para imobilizar momentaneamente uma pessoa. Ondas T 4: Uma das ondas do traçado eletrocardiográfico, responsável pela repolarização ventricular.


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ferramentas de emprego de força, de técnicas de convencimento ou de subjugamento, para manter aquela pessoa viva e propiciar que ela seja encaminhada a um tratamento. Todos os profissionais da Polícia Militar recebem uma formação para lidar com este tipo situação nos primeiros momentos. Então, inicialmente, quando chega na polícia uma notificação de tentativa de autoextermínio, é deslocada ao local uma equipe de rádio patrulhamento para a primeira intervenção. Se esses policiais realizarem o primeiro contato com a ocorrência e notarem que não têm as ferramentas para resolver aquela situação, o BOPE é acionado. - Nossa equipe só vai quando já existiu a primeira interferência e se verificou que os policiais de rádio patrulhamento não darão conta. Geralmente estes fatos estão relacionados a tentativas de suicídio com altura, ameaça por arma branca ou arma de fogo. Normalmente, são nesses três tipos de ocorrências que nós temos atuado. Quando chegam ao local para o trato da ocorrência, a equipe do BOPE não se preocupa somente com o causador da crise, mas também com o público externo, porque existe um grande preconceito por parte da sociedade com o suicida. - Em diversas situações tivemos até incitações ao suicídio, embora o Código Penal prevê isso como prática criminosa. Em casos envolvendo altura, temos o clamor público para que o ato se concretize. Existe toda uma forma de isolamento, para que mantenha estas pessoas longe do indivíduo que ameaça se suicidar. Os curiosos ainda podem interferir na ocorrência ao fazer com que uma terceira pessoa fique em risco, dependendo do tipo de situação. Assim, os policiais devem estar preparados para lidar com a complexidade de ação e não somente com o causador da crise. - Nesse tipo de ocorrência, estamos preocupados também com os policiais, com os terceiros que estão envolvidos e mais do que isso também, resolver a situação e solucioná-la e não só resolver


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aquele caso, pois uma situação desta mal gerida pode gerar situações em série. O indivíduo pode sair dali e cometer atos muito mais danosos. Como foi dito anteriormente, a equipe do BOPE se preocupa em retirar o indivíduo da situação perigosa em que se encontra e encaminhá-lo ao tratamento. No entanto, eles podem enfrentar obstáculos quando, por exemplo, a pessoa não recebe tratamento adequado e ameaça se suicidar pela segunda vez. Nestas situações, o causador da crise já tem o conhecimento das técnicas utilizadas pela polícia. - Quando o indivíduo é removido, ele dá início ao tratamento. Ele passa por um momento de pós ação e é encaminhado ao médico para consulta. Mas quando ele não dá continuidade ao tratamento e volta a tentar o ato, aí está o problema. A técnica policial que é utilizada se complica porque o indivíduo já sabe o método que foi utilizado da última vez. Então a meta deixa de ser comunicativa e passa a ser tática. Além da preocupação com a preservação das vidas de vítimas envolvidas nestas ocorrências, o BOPE se preocupa com a saúde mental de seus policiais. Quando o grupo foi fundado em 2005, uma sargento psicóloga fazia um trabalho de apoio. Ela permaneceu cinco anos na equipe, depois foi transferida. Atualmente, uma outra sargento que ingressou no Batalhão e é acadêmica de psicologia, tem sido preparada para dar continuidade nesse trabalho. Essa é uma das funções que está prevista no organograma de criação do grupo. Existe também dentro da Polícia Militar um programa de prevenção, onde todo policial militar que se envolve em uma ocorrência de alto risco, seja ela qual for, deve passar por seis sessões de tratamento psicológico junto à Fundação de Apoio Feminino (FAF). Não se trata de um órgão governamental, mas um braço da Polícia Militar fundado por esposas de policiais militares que


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ajudam neste acompanhamento à saúde mental daqueles profissionais. - Existe um programa de prevenção nesse sentido, mas que não pertence ao BOPE. Ele obrigatoriamente tem que passar por essa avaliação que vai dizer se pode ou não ser escalado novamente. O acompanhamento psicológico para os integrantes do BOPE é importante, pois seus membros podem se deparar com pessoas que protagonizaram antigas ocorrências e ter comportamentos variados. Ao mesmo tempo em que o policial pode ser um herói para um cidadão, pode também ser um vilão. - Toda vez você é surpreendido e o negociador deve estar preparado para diversas histórias. São situações de carinho com o negociador, tivemos vários casos de receber visitas de pessoas que se ameaçaram e depois do tratamento vêm nos agradecer, como também enfrentamos situações agressivas. Já tivemos casos em que fomos reconhecidos, agredidos e hostilizados na rua por conta de uma ação como essa. Então nós esperamos de tudo. Dentro da doutrina policial, existem cinco tipos de suicidas: os oblativos, que querem transferir a culpa do ato para outras pessoas; os escapistas, que querem fugir dos problemas; os agressivos, que adotam postura violenta durante a tentativa; os lúdicos, que inventam uma situação para justificar a tentativa do ato; e os parasuicidas ou suicidas baycoop, que induzem o policial a adotar uma reação agressiva. De acordo com o Major Wagner, o tipo de ocorrência vai mostrar qual ferramenta deve ser utilizada. - Para cada tipo de parafuso, você deve ter um tipo de chave de fenda. É o fato concreto que vai nos dizer se vamos utilizar só as técnicas, só o meio de convencimento verbal e de organização do local ou qualquer outro equipamento acessório.


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Remova o dedo dele do gatilho, e use o seu para apontar o caminho da vida. Remova também a munição do revólver, e ofereça seu ouvido para que se exaurem as dores da alma alheia. Este é o melhor escudo de prevenção que rebate para longe as reflexões voragens de autodestruição. Patrick Alif




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Emerson Leite Sábado a noite, 3 de agosto de 2012. O Projeto Labirinto era fundado com o intuito de realizar a prevenção primária ao suicídio em Campo Grande. Após deixarem o local de reunião que oficializara o projeto, Emerson e os demais integrantes, seguiam de carro pela Avenida Afonso Pena. Quando alcançaram o cruzamento com o Córrego Prosa, avistaram em cima da ponte um jovem sentado. Imediatamente pararam o automóvel e tentaram estabelecer um diálogo com o garoto que estava muito alcoolizado - Você vai se jogar? – pergunta Emerson. - Não vou não. - Desce daí então que a gente vai pagar um lanche pra você. O garoto foi convencido a descer de cima da ponte e como combinado foram comer lanche, logo o jovem disse: - Nossa, era alto, né? Coincidentemente, logo no dia de fundação, os membros do Projeto Labirinto tiveram que atuar em prol de uma vida. Era a primeira de muitas situações que aqueles soldados da prevenção primária vivenciaram ao longo destes três anos de atuação. - Talvez aquele garoto nem queria se matar, tava só ali pensando. Mas ao mesmo tempo ele poderia se jogar ou cair por um descuido. Então o primeiro caso foi muito marcante porque nós pudemos ver de fato como é esta situação – recorda Emerson. Conversava com Emerson na sala ao lado a qual ocorriam as aulas do I Curso de Prevenção ao Suicídio, promovido por Edilson dos Reis. O local estava vazio e o jovem Emerson demonstrava ser próximo de Reis. Emerson Leite é um campo-grandense nascido no dia 1 de abril de 1987. Graduado em Educação Física, teve a ideia de formar junto com quatro amigos o Projeto Labirinto quando participou do curso de Capelania Escolar, da UFMS, ministrado também pelo


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capelão Reis. Um dos módulos apresentados neste curso foi a prevenção ao suicídio na adolescência. A partir do momento em que os integrantes tiveram conhecimento das estatísticas sobre o suicídio na capital, ficaram chocados com a situação e decidiram apresentar palestras nas escolas falando do assunto. - Dentro do curso, o Reis falava da dificuldade de atender essa demanda e o projeto surge daí, de irmos para as escolas pra suprir um pouquinho dessa demanda. Embora o projeto promova ações de prevenção primária ao suicídio, os casos aumentam e consequentemente a demanda também. - Com a criação da página no Facebook, você tem uma média hoje de 1000 a 1100 pessoas visualizando cada postagem. De 2014 para 2015, o número de palestras alcançadas foi muito maior, a sociedade conhece muito mais a gente, chamando e convidando. Nós tivemos, contando casos específicos, a Jornada de Psicologia da Anhanguera, onde algumas pessoas nos procuraram com o interesse em criar pólos em outras cidades de Mato Grosso do Sul, como Dourados, Naviraí e Aquidauana, que também registram números altíssimos de suicídios. Pretendemos ampliar o projeto tornando as ações mais localizadas. Com o tempo, os integrantes do Projeto Labirinto descobriram outras organizações e instituições que atuam na causa do suicídio em Campo Grande, como o GAV e os Neuróticos Anônimos. O foco passou a ser na prevenção primária, termo criado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), com o intuito de conscientizar e capacitar pessoas em relação ao tema. - Nós percebemos que a palavra conscientização nunca foi usada para trabalhar o tema. Existem manuais e protocolos, mas eles não são popularizados e divulgados. Devemos divulgar os materiais de prevenção, por meio de palestras, seminários e estar nas escolas estimulando os valores sobre a vida. Nós, do Projeto Labirinto, de-


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vemos também respeitar o espaço das outras instituições e atuar em parceria. Devemos avaliar uma situação de risco, conduzir da maneira correta e encaminhar aos profissionais. Não tratamos, mas nós encaminhamos e sugerimos procurar meios de ajuda. Nas palestras sobre prevenção primária do Projeto Labirinto, são trabalhadas duas partes: indícios de ideação suicida no dia a dia e nas redes sociais. A primeira parte dessas palestras tem o objetivo de alertar sobre os possíveis sinais manifestados pelos jovens. Desabafos como “Eu desisti da vida, eu cansei do mundo ou eu preferiria estar morto”. Na perspectiva do grupo, as pessoas devem observar alguns princípios de irritabilidade repentina como agressividade e isolamento social. Algumas mudanças de atitude, como o uso de casaco em dias de calor, devem ser vigiadas, pois a pessoa pode estar escondendo algum problema, como a automutilação. - Nós tivemos um caso muito famoso, o do menino Daniel, na cidade de São Paulo, que antes de cometer o suicídio matou os pais. Mesmo com muito calor, o jovem andava de casaco e capuz na escola, então esse foi um sinal. Além disso, ele poderia estar escondendo a automutilação, que é uma reação presente entre os adolescentes. É muito importante estar atento a esses sinais. Na segunda parte, os membros do projeto alertam para as mensagens publicadas nas redes sociais, principalmente entre os jovens. Postagens que revelam angústias dos indivíduos e também comentários agressivos sobre conteúdos compartilhados, como, por exemplo, nas fotos de uma pessoa. Isso é ciberbullying. Os integrantes do Projeto Labirinto trabalham com três níveis de ideação suicida: baixo, médio e alto. No nível baixo, recomenda-se para as pessoas o envolvimento em grupos sociais, igrejas, lazer, esportes e atividades físicas no geral. Para as pessoas deste nível, essas atitudes são suficientes. Para o nível médio, os integrantes do projeto procuram encaminhar para psicólogos. E no ní-


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vel alto, o atendimento psiquiátrico acompanhado de medicação é imprescindível. Por precaução, não é utilizado nenhum tipo de imagem ou filmagem nas palestras, com atos ou tentativas de suicídios. - Uma das nossas preocupações é a viralização de vídeos e imagens pelo Whatsapp mostrando atos suicidas. Isso tem gerado um impacto muito grande na sociedade. Para você ter uma ideia, teve o suicídio de um jovem em um hotel de Campo Grande e a nossa página tinha uma média de 400 visualizações. No dia em que ele cometeu o ato, as fotos vazaram e repercutiram muito. Nós postamos uma mensagem em nossa página do Facebook que teve 2.500 visualizações porque as pessoas queriam saber mais sobre aquilo. Atitudes como essa comprovam como o suicídio é um tabu enraizado na sociedade. Durante o Setembro Amarelo, em 2015, mês em que foram realizadas campanhas e ações de prevenção ao suicídio, foi possível observar outro tipo de atitude curiosa por parte da população. - No Setembro Amarelo nós realizamos panfletagem nos sinaleiros. As pessoas quando recebiam o informativo diziam: “Não quero. Isso não. Tá louco. Não quero me matar. Pelo amor de Deus, não vamos falar de suicídio, vamos falar de vida”. Para quebrar o paradigma sobre o tema e também conscientizar a população, o Projeto Labirinto utiliza, quando possível, termos diferentes para substituir a palavra suicídio, gerando maior aceitação. - A palavra suicídio carrega muito peso. Talvez trazer o termo autoextermínio ou saúde mental possa gerar novas perspectivas. São alternativas que podem quebrar este estigma. Atualmente, o Projeto Labirinto é organizado pela divisão de funções. O grupo é composto por seis pessoas, sendo um coordenador, um gerenciador de redes sociais, um fotógrafo, uma pessoa responsável pela parte financeira e dois palestrantes que vão às escolas.


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Decepções: o gatilho para os suicídios - A cidade de Campo Grande tem alguns fatores que contribuem para o aumento dos números de suicídios. É a capital nacional de divórcios, é uma cidade que tem presença universitária muito grande e apesar de não ter uma vida noturna tão forte como em outras regiões, o consumo de álcool aumentou muito nos últimos anos, principalmente entre os jovens. O poder aquisitivo e financeiro das pessoas também têm interferido nisso e as pessoas são infelizes e frustradas. Nas palestras e encontros do Projeto Labirinto, observamos como as pessoas lidam mal com a decepção. Faltam políticas públicas mais específicas pra Campo Grande. Esse tema ainda está embaixo do tapete, então fica difícil as pessoas falarem sobre isso. A decepção é o gatilho para o autoextermínio de muitas pessoas em Campo Grande e região. Bastou um evento para demonstrar essa situação. Os integrantes do Projeto Labirinto foram convidados pela Igreja Batista a fazer uma intervenção social na cidade de Aquidauana, a 130 km de Campo Grande. A programação do grupo no município incluía a montagem de um labirinto na praça principal e a realização de uma palestra na escola estadual Dória Mendes. Emerson recorda que durante o dia, naquela praça, o grupo falou para a população de Aquidauana. Era agosto de 2015 e até aquele momento haviam ocorrido 24 suicídios nos primeiros sete meses do ano, o triplo da média anual na cidade, que é de oito. - Nós chegamos na praça e inicialmente 10 pessoas nos procuraram porque haviam tentado suicídio nos últimos 10 dias. Aquilo nos chocou muito porque ouvi uma pessoa dizer: “Eu tentei me matar faz quatro dias”. Em seguida, uma senhora disse: “A minha filha tentou também”.


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Entre todos os atendidos, quatro pessoas procuraram o Projeto Labirinto especialmente para falar de suas angústias. Naquela ocasião, foi reforçado o convite público para a palestra noturna que aconteceria na escola Dória Mendes como continuidade na intervenção. Após a conclusão da palestra, uma grande movimentação tomou conta do local. Ao fundo da multidão, Emerson se deparou com um menino de 15 anos que tinha cortado os pulsos na noite anterior. O garoto mostrou os cortes e com ele havia uma menina de 14 anos que relatou: “Eu tentei me matar anteontem também”. - Foi muito chocante ver aquela situação, uma cidade pequena, com 40 mil habitantes, em oito horas você achar 20 pessoas que tentaram cometer suicídio nos últimos 30 dias. Aquilo marcou muito a gente e foi uma prova de que o nosso trabalho dá certo. Dois meses depois, os integrantes do grupo estavam voltando de um evento na BR 267, próximo a Campo Grande, e encontraram um jovem sentado no meio fio da rodovia, tomando cachaça. Emerson parou o carro e foi conversar com o garoto, temendo que ele se jogasse na frente de um veículo. Ao se aproximar do indivíduo, ouviu: - Não quero me matar, não quero me matar. - Você tá vindo de onde? - Tô vindo do presídio de segurança máxima. O rapaz havia acabado de cumprir sua pena e, desamparado pela família, não tinha para onde ir. Estava correndo um risco imenso e naquele momento qualquer ação negativa poderia levar aquele homem a tentar o autoextermínio. - Sempre tem um gatilho, principalmente para pessoas com ideação suicida.


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Tire-o da ilha da solidão, e do mortífero minotauro fatal. Mostre que Eros ainda persiste, e o melhor caminho para esse portal. O afaste do labirinto confinante, e sejas para a vida o protetor mais confiante. Logo dê a ele um novelo de lã, E o faça pertencente ao teu clã. Patrick Alif



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Desafios Paralelos Era manhã do dia 17 de novembro de 2015. Entrava no Hospital Universitário da UFMS, para conhecer mais um profissional e obter informações sobre a realidade das pessoas potencialmente suicidas que chegam com frequência naquele ambiente. Ao aguardar uma pequena fila para ser atendido no balcão de entrada, vejo ao meu lado um detento algemado, virado de costas para mim, sob os olhos atentos de um policial. Por um instante, me intriga saber qual o problema de saúde daquele rapaz. Quando dou-me conta, já era a minha vez de ser atendido. Pergunto a um dos três recepcionistas que ali estavam: - Bom dia. O senhor poderia me informar onde é a sala da psiquiatra Danusa? - É só subir esta rampa. Chegando lá o pessoal vai te encaminhar. - Obrigado. Faço conforme o indicado e no local, questiono uma moça de cabelos curtos sentada atrás do balcão: - É aqui neste setor que trabalha a psiquiatra Danusa? - É sim, mas às quintas e sextas ela não trabalha aqui nesta ala. Ela fica na própria sala. Faça o seguinte: volte e pegue o corredor da direita, siga até o fim e a encontrará. Desço a rampa, mas acho conveniente ligar para a minha entrevistada e não correr risco de ficar perdido entre as alas do hospital, pois poderia até atrapalhar a recepção de um paciente que precisasse de atendimento com urgência levando em conta a movimentação constante que havia no local naquele momento. Por telefone, Danusa me informa: - Bom dia. Aguarde um pouquinho que chego em cinco minutos. - Combinado, te espero em frente ao hospital Depois de cinco minutos Danusa aparece. A primeira impressão


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que tive é a de que se tratava de uma mulher elegante. Estava bem trajada com uma blusa azul, saia preta, sapato de salto alto e óculos de sol. - Desculpe por te fazer esperar. Pode me acompanhar? Sigo Danusa pelos corredores e observo naquele setor algumas crianças que choravam incessantemente. Entramos em uma sala e a psiquiatra cumprimentou a todos com um sonoro “Bom dia”. Em seguida ela me disse: - Pode entrar aqui favor! A psiquiatra me convidou a entrar em sua sala, atrás de uma divisória. Ela ligou o barulhento ar condicionado e tirou seu óculos de sol. Naquele momento, sua vaidade foi ressaltada, quando observei um preciso contorno de lápis preto sob seus olhos grandes. Danusa Céspedes Guizzo Ayache tem 45 anos e é médica psiquiatra do HU desde 1993. Seu jeito simpático e a voz suave contrastavam com aquele cenário e com sua rotina frenética de trabalho. - Vamos lá, pode começar. A partir de agora estou à sua disposição. Começamos aquela conversa sem muitas formalidades e protocolos. Logo ela me explicou a sua real função no hospital. Danusa comentou que após o paciente receber os primeiros socorros, relacionados a procedimentos de urgência como verificação de lesões ou realização de cirurgias, ele recebe um diagnóstico da psiquiatra. É neste momento que ela entra em cena, a fim de fazer com que o indivíduo retome a consciência na maioria das vezes, além de acolhê-lo da melhor forma e avaliar cada situação de maneira particular. - Nós vamos avaliar o caso e verificar a necessidade de medicação que na maioria das vezes é antidepressiva. Se o paciente tiver muito angustiado, com dificuldade para dormir ou ansioso, podemos dar alguns ansiolíticos, calmantes. Em casos de delírios ou


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alucinações, receitamos psicóticos. Então, avaliamos caso a caso, mas acho que mais importante é o acolhimento, independente do tipo de medicação que o indivíduo está tomando. Nós médicos devemos compreender e ajudar o paciente a superar aquela situação, sem julgá-lo. Em um determinado momento, ela pergunta se me importo se ela desligar o ar condicionado. Digo que não e agradeço em silêncio, pois a temperatura no ambiente estava fria. Em seguida, ela relata uma informação que me deixa assustado: - Aqui no HU chegam com frequência pacientes que tentaram suicídio e precisam de um atendimento de urgência. Pessoas que ingeriram medicamentos em excesso, que tentaram se ferir com armas de fogo, que tentaram cortar os pulsos, se jogar na frente de carros para serem atropeladas. Recebemos os mais variados tipos de tentativas de suicídios. Quebrava-se naquele momento um paradigma pessoal. Eu não imaginava que os atendimentos a pacientes potencialmente suicidas fossem frequentes naquele hospital. Porém, ela me explicou que nessas situações o HU está apto para realizar o pronto-atendimento clínico e cirúrgico, a fim de resolver as lesões provocadas por tentativas de suicídio. - O hospital realiza muito bem o primeiro momento, que é de urgência. A prioridade inicial é preservar a vida do paciente, por meio de cirurgias, lavagens gástricas ou desintoxicações. Sob um olhar tristonho, ela revela uma realidade que comprova que vivemos em um país onde o tabu do autoextermínio também está enraizado entre os profissionais da saúde mental. De acordo com a psiquiatra, os próprios médicos daquele hospital não prestam o devido acolhimento para pacientes que tentaram o suicídio. - Eu percebo que muitos colegas tem uma dificuldade em lidar com pacientes potencialmente suicidas e transferem uma carga negativa a eles, como se a pessoa tivesse ali enrolando e prejudi-


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cando o tempo deles. Isso ocorre principalmente quando a tentativa de suicídio é mais inócua, ou seja, onde as pessoas acham que o indivíduo quis mais chamar a atenção do que morrer. Nesses casos os colegas dão o atendimento geral, mas me chamam para acompanhar a pessoa durante a internação. Além da precariedade no acolhimento, Danusa remete também ao descaso das autoridades públicas em relação ao seu espaço de trabalho. Ela se queixa que o HU não possui uma estrutura com enfermaria psiquiátrica. A estrutura atual do serviço de saúde do hospital é dedicada ao pronto-socorro. - Infelizmente, não temos um atendimento de urgência específico para a psiquiatria. O que acontece aqui é apenas um atendimento de urgência no geral. Os hospitais públicos não são os únicos setores a apresentar problemas nos serviços prestados à saúde mental para pessoas com ideação suicida. Nas conversas que aconteceram nos intervalos do I Curso de Prevenção ao Suicídio do Brasil, conheci Suelen Arguelo, uma jovem psicóloga de 27 anos que trabalha em um dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Durante nosso diálogo, Suelen comentou sobre a importância do atendimento para este tipo de paciente. Porém, assim como Danusa, ela revelou que existe preconceito entre os seus companheiros de profissão em relação ao atendimento de pessoas que tentaram suicídio e são atendidas na unidade: - Se a pessoa não foi bem atendida desde o começo, ela não quer dar continuidade ao seu atendimento ou ao seu tratamento. Portanto, é necessária uma capacitação para os profissionais acolherem os pacientes. Percebo que isso é uma coisa que carece muito – afirma Suelen. O Caps tem o objetivo de trabalhar com a reinserção social e familiar. Os pacientes que passam o dia na instituição aprendem sobre cidadania, para que ele possa conviver normalmente com


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as pessoas e com as limitações, sendo elas físicas ou psiquiátricas. Mas existem pacientes que precisam ser internados. O Centro cuida da prevenção terciária, ou seja, quando a tentativa de suicídio já ocorreu. O acolhimento é feito pelo psicólogo ou pelo assistente social e depois se agenda uma consulta com o psiquiatra. Dentro da instituição também existem técnicos de enfermagem, para que a pessoa receba o atendimento pós-tentativa. - Hoje a atuação é preventiva, para que não venha a acontecer mais, então tratamos aquilo que já está inserido na pessoa. Temos muitos pacientes com depressão, com esquizofrenia e bipolares. Depois que começamos a fazer algumas palestras, aumentou nossa demanda e passamos a atender até adolescentes, perfil que não atendiamos porque era só para maiores de 18 anos. Toda semana chegam pessoas para atendermos através do encaminhamento de um clínico geral. Suelen explica que no primeiro contato com o paciente, o profissional do Caps realiza perguntas de acordo com o histórico de vida da pessoa. - Nós abordamos desde a primeira queixa, o que levou ele a buscar o atendimento, se foi por vontade própria, encaminhamento ou se está lá por causa da família. Isso nos indica um bom ou mal prognóstico. A partir daí perguntamos sobre estudo, trabalho, religião, relacionamentos, sexo e histórico familiar de doenças mentais. Com isso, as vezes obtemos informações de suicídios envolvendo parentes da pessoa. Existem três categorias para a classificação de pacientes durante o tratamento no Caps: podem se enquadrar na modalidade “intensiva”, onde a pessoa fica todos os dias da semana no centro; existe o “semi-intensivo”, que são os pacientes que recebem tratamento três vezes por semana; e o “não intensivo”, que é o atendimento que acontece uma vez por mês. Todos os atendimentos são


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acompanhados por psicólogos e psiquiatras. Um dos desafios para a recuperação dessas pessoas é a desistência precoce. Na maioria dos casos, quando a pessoa apresenta melhora no seu diagnóstico, consequentemente abandona o tratamento, atitude que não é recomendada pelos psicólogos. - Muitos pacientes vêm até o Caps duas ou três vezes na primeira semana, apresentam uma melhora, que no ponto de vista deles é significativo e não retornam. Ou seja, muitos pacientes abandonam o tratamento e às vezes não aceitam os medicamentos. Quando acontecem recaídas, eles voltam, às vezes depois de meses, só quando as coisas não vão bem. Nesses casos, realizamos o acolhimento diurno, que é o atendimento a essas pessoas que retornam ao centro. Suelen costuma recomendar aos familiares dos pacientes que fiquem atentos para que o tratamento seja realizado da maneira correta, com disciplina e que mantenha a frequência. - Uma orientação que fazemos para situações que envolvam medicamentos é o acolhimento por parte dos familiares. Muitas vezes o indivíduo, sozinho, não administra bem o tratamento, por isso pedimos para que parentes ajudem com esse auxílio. Infelizmente ainda existe resistência por parte do paciente e também dos familiares, que não aceitam o tratamento ou a internação. A psicóloga pede atenção para os objetos que podem oferecer riscos a pessoas potencialmente suicidas. Suelen explica também que a instituição pode realizar atendimentos fora das datas agendadas, caso o indivíduo tenha crises: - Dentro das casas, aconselho retirar de perto dos pacientes objetos que podem oferecer risco, como, por exemplo, facas e cordas. Existe também a orientação para ele ou para a família buscar nosso serviço caso aconteça uma crise. Essas situações provam que nem sempre anjos da prevenção como Danusa e Suelen vivem em paraísos celestiais, mas enfren-


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tam na pele as dificuldades dos serviços de atendimento público referentes à saúde mental. As realidades narradas por essas duas profissionais demonstram uma marginalização tanto na infraestrutura quanto nas relações interpessoais e de acolhimento primário aos pacientes.

Tu não precisas ter visão de raio x, para enxergar a angústia de outrem. Basta que seus olhos abram e sejam guias do seu coração, contribuindo para a desopressão da dor da alma alheia. Patrick Alif



IV Além do ato: perdão ou sofrimento?



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Para quem fica As diferentes personalidades e os modos expressivos de cada uma daquelas pessoas com quem falei por instantes não se diferenciavam durante os relatos. Compartilhavam o mesmo sentimento, a mesma essência de dor, olhar e lágrimas. O luto manifestava entre eles uma revolta que fez transparecer a mesma reação: o suave balanço de cabeças que representava mais do que um simples gesto de negação. O suicídio é um ato de desespero que, independente do tempo, faz surgir dúvidas entre os envolvidos e, principalmente, nos familiares. Para os que ficam, a dor do luto é o sentimento comum nesta jornada. A busca por respostas que justifique essa decisão extrema é evidente e os questionamentos são sufocados por medo e incertezas. Existe explicação ou esclarecimento que possa confortar essas vítimas? Os depoimentos foram semelhantes no aspecto da não aceitação. A dificuldade em encarar esse ato como uma realidade foi perceptível em alguns momentos durante as conversas. Nos primeiros relatos de Hannah, ao relembrar da avó Miriam, tal postura foi explícita. - Não sei nem como começar, como explicar. É um negócio que traumatiza todo mundo. Acho que ninguém esperava porque ela ficou internada 10 dias na clínica e logo recebeu alta. Ela foi liberada numa sexta-feira e acabou se suicidando na segunda. No domingo, meus pais foram lá e ela estava super bem, estava super animada e cheia de planos. Não tem muito o que falar. O médico tinha dado alta. O relato se complementou com a opinião da irmã Carina, que introduziu um discurso relacionado à religião de Miriam: - Para você ter uma ideia, foi muito difícil acreditar que minha avó cometeu suicídio. Minha avó era muito católica. É uma das pes-


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soas que nós nunca imaginávamos que faria isso porque ela sabia o caminho que o suicídio trilhava pela perspectiva de sua religião. A questão religiosa também foi presente nas conversas realizadas. O tema foi abordado por discursos de fé que envolveram as histórias, costumes e crenças dessas pessoas em vida. A necessidade em tentar esclarecer o ato envolvendo interpretações religiosas e reflexões baseadas em alguma doutrina espiritual foi notável. Era inegável a existência de um desconforto sobre as consequências do suicídio, as incertezas da vida após a morte e os julgamentos religiosos. Postura ereta sobre pernas e braços cruzados, Carina estava inquieta, queria assumir logo a palavra que estava naquele momento com Hannah. Olhar direto, seguido por um generoso suspiro e a jovem atravessou o relato da irmã. A ansiedade de Carina foi maior ao afirmar: - Eu penso que a minha avó não morreu sozinha. A minha avó foi uma vítima de suicídio porque o suicídio não é a gente que comete. No meu ver, religiosamente, em uma linha esotérica, suicídio é quando a gente perde nossa vida pra Deus. Perde de Deus para algo inferior, entendeu? Carina me olhou, novamente resgatou o fôlego com outro longo suspiro e continuou: - Você vence batalhas diárias de superação e problemas. Você pode escolher: “Eu quero ser melhor ou eu quero ser pior”? Esse tipo de coisa. Então eu acho que ela não estava em sanidade. Como ela era uma pessoa muito religiosa e rezava muito, rezava por mim, pela minha irmã, pelo filho que morreu, sabe, rezava por todo mundo. Ela me ensinou a rezar e tudo. Acho que Deus é muito, como que eu vou dizer assim, atende quem clama por ele, sabe? Se eu conheço a minha avó, ela com certeza, se ela fez isso, fez pedindo perdão. Sem brincadeira, não é Hannah? Hannah, com um jeito acanhado e pouco assustado, sussurrou: - Ela estava com a bíblia.


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A jovem abandona, de repente, a postura tímida. - Eu acredito que esteja em paz porque é igual ela falava: “Deus é misericordioso e justo” e minha avó, cara, quem a conheceu sabe o quanto ela era católica e participava desses círculos de orações. Carina manifestava sua impulsividade ao concordar com a irmã. O gesto simples de balançar para cima e para baixo a cabeça ilustrava sua fala. - Exatamente. É isso que eu ia falar, que me tinha fugido. Deus é misericordioso. Então se você clamar, ele vai atender. Ela tinha muita fé, acreditava em muitas coisas, tinha vários livros e acreditava em espiritismo embora fosse católica. Independente da identidade de cada história, notei que o suicídio proporcionou sintomas parecidos entre as vítimas. Os relatos me mostravam, além do luto daquelas pessoas, os reflexos desse ato amplificados com o tempo. Marlene deixou clara a influência do ato de seu pai e a repercussão entre seus familiares. - No desespero minhas irmãs começaram a pensar: “Se meu pai fez, porque eu não posso fazer?”. Eu acho que tem uma ligação de fraqueza até então. Uma irmã minha tentou cometer suicídio ao jogar álcool no corpo inteiro e “tacar” fogo. Ela foi socorrida e levada para o hospital, mas teve queimaduras de terceiro grau. O desapontamento era estampado no rosto de Marlene. Cabisbaixa, desabafou: - Recentemente o meu irmão tem estado em depressão e já falou várias vezes em cometer o suicídio. Então nós ficamos vigilantes com isso. Ele está passando por um tratamento, nunca o deixamos sozinho, estamos sempre preocupados em saber o que está acontecendo e assim nós vamos levando. Portanto, neste ato do meu pai, os filhos acham que podem fazer, mas eles não tem consciência de que não é por aí. O trauma e a dor que Marlene sentia transpareciam em seu olhar. Mesmo com o tempo, o luto era uma ferida que parecia nunca cicatrizar, sempre presente em sua memória.


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- Já deve ter quase 30 anos que isso aconteceu. Lembro de tudo como se fosse hoje, a cerquinha do sítio, eu vendo meu pai, pegando ele e colocando no carro. Chegando no morrinho lá em cima, esse carro apagou, não subia, eu gritava, implorava a Deus, me ajoelhava e dizia: “Deus, faça esse carro pegar para o meu pai chegar ao hospital”. Nossa! Foi uma coisa que acabou comigo, demorou um bom tempo para a gente começar a ter uma vida, pois até hoje isso está marcado. O sorriso singelo e banhado por lágrimas colocava um ponto final naquela lembrança. Durante toda a conversa, Marlene demonstrava um contraste de sentimentos e expressões. A ascensão a um sorriso era instantânea e seguida por um choro sutil, sem a necessidade de se recompor. Então a moça passou a abordar sua religiosidade: - Na época em que aconteceu me revoltei e questionava: “Deus, por que meu pai? Por que você deixou meu pai? O meu pai não, poderia ter sido eu, poderia ter sido outro, mas meu pai não”. Mas, com o tempo, fui ver que não tinha nada a ver, Deus é poderoso demais, ele ajuda tanto, tanto, tanto, que eu não sei nem te explicar os milagres que aconteceram na minha vida porque Deus estava ali e não me abandonou em hora nenhuma. Se eu te contar milagres que aconteceram comigo será inacreditável, então Deus nunca me deixou só. Marlene deixava nítida a influência direta que sofreu com o suicídio do pai. A ideação suicida surgiu a partir disso e, naquele período, esteve em sua cabeça, compondo suas ideias e fazendo parte de sua realidade. A mulher de sorriso alegre confessava que também cogitou o ato, mas sua fé a ajudou: - Tinha tempo que eu ficava pensando nisso: “Isso não vai ser bom nem para mim nem para ninguém da minha família, pois vai fazer todo mundo sofrer. Então, vou fazer todo mundo sofrer? Para que? Não! Vou começar a pensar diferente”. Aquilo sempre vinha na minha cabeça, mas tinha algo que me tirava isso constantemen-


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te, sempre tirava. E quem tirava isso da minha cabeça? Era Deus, porque ele nunca me abandonou. Aquela moça simples mostrava ser praticante da religião católica. O discurso que enaltecia a fé era repetido como complemento em alguns dos relatos, como quando dizia sobre as possíveis consequências do ato do pai. - Acho que ele deve ter sofrido até ter alcançado a luz, até ter encontrado o caminho certo. Acredito que hoje ele está bem, devido aos pressentimentos, devido ao que eu sinto hoje, eu não sei te explicar. Até acontecer tudo isso ele frequentava a igreja, era presidente de uma igreja que ajudou a construir. Por isso que na época eu falava: “Por que meu pai, Deus?”. Ele ajudava a todo mundo, se sacrificava pelos outros, tanto pelos filhos quanto pelos amigos, mas, principalmente, pela família. A relação do suicídio com julgamentos e consequências provenientes das religiões eram realidades entre os relatos. Essas vítimas, apesar de demonstrarem certo medo e receio sobre a questão, comportavam-se de modo bem esclarecido. O discurso que envolvia a questão religiosa naqueles suicídios era manifestado de maneira natural por parte dos familiares quando relatavam as histórias. Com Débora não foi diferente, as lembranças sobre sua prima Mônica despertavam a necessidade da moça em falar sobre o tema. - Naquela época eu era católica, de uma família que não era praticante. Eu não fiquei com vergonha, fiquei triste, fiquei assustada, fiquei chocada por ter acontecido na minha família. Na verdade, quem fica é quem mais sofre. A maneira discreta de enxugar as lágrimas não disfarçou o choro e, sensibilizada com a lembrança, Débora discorreu sobre seu amadurecimento em relação ao suicídio: - Eu venho de uma formação católica burguesa que entende que isso é pecado. Eu cresci com o símbolo do pecado, se suicidar era a pior coisa que um ser humano poderia fazer na terra. Só que como


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ser humano, personalidade autônoma, entendia o fato de algumas pessoas chegarem ao suicídio, mas eu sempre vi como uma coisa muito triste. Falava assim: “Claro, a pessoa que se suicida é porque ela não tem religião, porque não crê em nada, não acredita em Deus, não é cristã”. Só que conforme eu fui amadurecendo, estudei, tive contato com várias pessoas, com vários públicos, com vários grupos e baseado em todo esse conteúdo de vida mais a minha religião, que há oito anos é o espiritismo, cheguei à conclusão de que é um ato extremo, é um ato de desespero, mas pode ser prevenido. Eu acho que ao invés de as pessoas julgarem religiosamente elas deveriam estudar mais esse assunto na psicologia e na sociologia. Entre todas as vítimas esteve evidente o incômodo manifestado pelas incertezas das possíveis consequências religiosas e o sentimento de luto que carregavam. No entanto, para Vinícius, os bons momentos com sua ex-mulher, Jéssica, sempre sobressairão à dor da perda. O jovem confundia as palavras com um choro ressentido. O pranto soluçado de Vinícius não escondeu a saudade e enorme dor daquele desabafo. Independente das suas crenças e de sua religião católica, o rapaz acredita no bem de sua ex-mulher e prefere resumir a situação de forma breve: - Pode ter vida após a morte? Eu acho que sim, né. Poderia ter um caminho? Eu acho assim que o dela seria um dos bons. Poderia ter um destino bom sim porque ela não era uma pessoa maldosa. Ela não era pessoa de prejudicar outra pessoa, cê entendeu? Era uma pessoa boa, bacana. Então creio que Deus reservou um espaçozinho pra ela, sim.


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...Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada?... Carlos Drummond de Andrade



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Pastor José O início do mês de julho veio com a necessidade de buscar novas opiniões e olhares sobre o suicídio. Quais seriam as interpretações desse ato extremo para os líderes das crenças cristãs? Foi então que defini um novo caminho a ser explorado. Na manhã de uma segunda-feira chuvosa, recebi o primeiro aceite dos convites que havia feito para alguns líderes que representam as religiões e doutrinas das vitímas de suicídio das quais obtive relatos. Por telefone, o pastor José Roberto, da Igreja Batista, demonstrou disposição em conversar sobre o tema, confirmando que poderia me atender na tarde do dia seguinte. - Combinado então, amanhã às duas da tarde. Todo o trajeto daquela tarde fria e cinzenta foi marcado por minha ansiedade em tentar esclarecer alguns paradigmas religiosos sobre o suicídio. No local escolhido pelo pastor, apenas um toque no interfone foi suficiente e logo fui atendido. Após passar pelo portão, percorri rapidamente uma curta trilha de pedras que me levou ao encontro de um homem que me aguardava. Então, sem conhecer a fisionomia de José, arrisquei a pergunta: - Oi, muito prazer. Pastor José? - Sim. Olá. O pastor estendeu uma das mãos para cumprimentar-me, enquanto a outra segurava uma xícara de café. Repentinamente um movimento brusco finalizou a bebida com um único gole. Disse ao lamber os lábios: - Vamos entrando. Minha sala é logo ali. O ambiente escolhido para a conversa era simples, prateleiras repletas de porta-retratos e quadros decoravam as paredes daquele cenário com fotos que pareciam ser de seus familiares. Enquanto explicava a proposta daquele encontro, José dividia a atenção do


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olhar com a tela de seu computador sobre a mesa. Apresentado novamente o tema, sugeri ao pastor falar sobre sua concepção do suicídio. - Dentro da cultura cristã entendemos que o suicídio traz uma forma de expressar que eu não tenho mais saída, não tenho mais para onde ir, não tenho mais o que fazer a respeito da minha vida e estou causando problemas, transtornos e dificuldades para as pessoas que estão ao meu redor e a forma de acabar com isso é tirando minha própria vida. O suicídio mostrava ser um tema cada vez mais delicado e complexo, era impossível não notar certos desconfortos ao abordar o assunto. O objetivo era esclarecer dúvidas e obter opiniões, portanto resolvi ser direto ao colocar alguns questionamentos. - Como é interpretado o ato de suicídio na Igreja Batista? - É algo que é errado, assim como todas as outras coisas que entendemos ser erradas. Entendemos que tirar a própria vida é um pecado, é errado perante Deus. Nos primeiros momentos daquela conversa, refletia a possibilidade de estar sendo inconveniente ao questionar sobre o tema, mesmo com o consentimento do pastor. Entretanto, era necessário o esclarecimento pontual em alguns aspectos religiosos sobre o suicídio. A cada resposta concluída de José, surgia-me um novo questionamento. - Para a Igreja Batista, quais seriam as consequências de uma pessoa que pratica o ato e na interpretação da religião existiria o perdão? - Dentro do ponto de vista bíblico, entendemos que uma pessoa que tira a própria vida não está em sã consciência. Acreditamos, eu acredito e analisando o contexto bíblico, uma pessoa para tirar a própria vida precisa estar transtornada mentalmente e psicologicamente. Não há assim uma explicação do tipo: “Ele cometeu suicídio por isso e a consequência é essa”, mas entendemos que essa


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pessoa não teve tempo ou não teria tempo para pedir perdão, para falar com Deus a respeito de... Pedir perdão naquele momento, daquele ato que ela está cometendo. Então, é uma pessoa que está totalmente transtornada sem nenhuma condição de raciocínio lógico ou de buscar uma ajuda de Deus, um perdão de Deus naquele momento. Pode acontecer? Não sei, é muito difícil, mas dentro do que podemos entender, não. Ela infelizmente não tem salvação... Não tem a salvação. Existia, entretanto, uma única resposta que justificasse esse ato terrível? Com novos casos a cada dia e ocorrências todas as semanas, não poderia ser tão simples assim. As estatísticas são cada vez mais elevadas, apontando uma tendência preocupante para o país e principalmente para o estado. - Por que o senhor acha que tem acontecido muitos casos de suicídio em Campo Grande entre jovens? - O meu ponto de vista, que eu entendo, é por causa da ausência familiar e também a não aceitação dentro de um grupo específico. A recusa dele naquele meio o leva a entender que não há mais porque continuar vivo e a forma de manifestar essa indignação é tirando a própria vida. Pastor há 18 anos da Igreja Batista, José, apesar de apresentar um comportamento calmo sobre os meus questionamentos, transparecia certo incômodo ao falar sobre o tema. Questionava-me se para aquele líder existiria outros fatores que justificassem o suicídio além de uma sólida base religiosa e familiar. A chuva não dava trégua e aumentava a ansiedade de José para o desfecho daquela conversa. Sem hesitar, continuei com minhas perguntas: - Na opinião do senhor, quais seriam os outros fatores que podem contribuir para uma pessoa praticar esse ato, além do problema espiritual em si? Podem ser fatores sociais, políticos ou algum outro?


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O ritual do pastor era o mesmo, refletia por alguns segundos e então respondia: - Nós vemos várias situações, né? Já existiram situações de pessoas que tiraram a própria vida por conta de problemas financeiros e agora já lembrando um caso de uma pessoa não tão próxima, mas conhecida, que tirou a própria vida por causa de uma enfermidade. Então, são vários pensamentos, várias formas de ver que tirando a própria vida pode trazer paz ou trazer refrigério para alguém, para algum familiar ou uma solução para aquilo que está vivendo. Mas o maior problema mesmo é realmente uma fraqueza, uma fraqueza psicológica, mental ou espiritual, porque nós sabemos que existem vários tipos de situações, de várias pessoas que passaram por vários tipos de problemas e nem por isso tiraram a própria vida. Existiria, porém, uma comunicação? O suicídio poderia ser um ato de expressão que essas vítimas encontraram para evidenciar uma dor e um trauma que envolviam suas vidas? Os julgamentos e as consequências poderiam transformar uma simples conversa em uma decisão extrema? Para obter uma opinião religiosa sobre esses aspectos, era necessário questionar. - Quando uma pessoa realiza esse ato, o senhor acha que ela quer comunicar alguma coisa, quer passar algum tipo de mensagem? O pastor José me encarava, tomava seu fôlego com um novo suspiro e colocava sua resposta: - Passa a mensagem de que está tentando resolver o problema dela ou de alguém. No caso de um problema financeiro, estará dizendo: “Olha, eu tirei a minha própria vida, você pode ficar tranquilo, não vou te trazer mais problema, a dívida acabou, acaba aqui comigo”. Numa situação de enfermidade, vai comunicar: “Não vou mais trazer peso sobre vocês, transtornos sobre vocês, vocês não precisarão mais ficar cuidando de mim, me limpando, me tratando, eu não quero terminar desta forma, vocês terão paz e tranquilidade”. Então, essas podem ser as mensagens que queiram transmitir.


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- Existe senso comum ou opinião pública sobre o suicídio, pastor? Como a sociedade, de uma maneira geral, interpreta este ato? A expressão de José era tomada por longos suspiros que demonstravam a impaciência e o nervosismo sobre o assunto. Entretanto, o pastor correspondia: - Eu vejo que a sociedade encara aquele que cometeu suicídio como alguém que praticou algo errado, contrário à sua moral, ao seu bom costume, à sua família e às pessoas que estão ao seu redor. Eu acho que a sociedade interpreta por essa ótica. Naquele momento a conversa praticamente se transformava em uma entrevista, onde a postura adotada pelo pastor era a de responder. Notava que a valorização da questão familiar era essencial na opinião de José e então decidi explorar esse aspecto. - Esse é um ato de difícil aceitação para os familiares e entes queridos? - Eu acho que é difícil para a familia entender, né? O que eu acho que a família não aceita, e não aceitaria bem, é o fato de as pessoas dizerem: “A pessoa se matou por causa disso, se matou por causa daquilo, se matou porque é fraco, se matou porque é louco”. Eu acho que nesses casos a família teria dificuldades para aceitar. Mas eu acho que a família em si não tem problema, acho que ela não tem tanta dificuldade em falar sobre isso, em tratar sobre isso, desde que não haja acusações. Acho que a família, é o meu ponto de vista, trata esse assunto de uma forma mais tranquila, desde que não haja acusações. - Na opinião do senhor, qual seria a principal característica que envolve os suicídios atuais? - A melancolia. A depressão. Hoje a nossa sociedade é muito acometida de situações depressivas, de comportamentos depressivos. É muitas vezes por falta de um... É o desemprego, é uma situação frustrante quanto a um filho, uma filha, é quando há perda de alguém que amava tanto... Enfim. Então, acho que a nossa sociedade hoje tem sido muito atacada com essa questão depressiva.


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O suicídio melancólico, o suicídio que é o resultado da depressão, é o que tem trazido hoje mais tragédias e mortes dentro de uma sociedade. Os pensamentos suicidas além de provocar sintomas, geram barreiras, vergonha e medo. - Pastor, qual o tipo de conselho que a Igreja Batista dá para a pessoa que está com ideação suicida, que tenta suicídio e o suicídio não é consumado? - O conselho ou a orientação é que essa pessoa busque Deus, busque um encontro com Deus, busque uma saída em Deus. As pessoas que são levadas ao suicídio são levadas por algum tipo de problema, algum tipo de situação, nós já falamos que ela não vê alternativa senão tirar a própria vida. E o suicídio é um assassinato, é um assassinato, você tira sua própria vida. A gente procura orientar e trazer esta pessoa para caminhar conosco e buscar uma saída em Deus. Sabemos que muitas vezes as pessoas vão entender que é um problema mental, um problema psicológico, mas também pode ser um problema espiritual e emocional. Entendemos que tratando isso espiritualmente, você consegue resultados fantásticos e maravilhosos na vida das pessoas porque elas tiram o foco do problema. Mostramos que existem outras soluções, outras saídas, sem ser necessário tirar sua própria vida. - Mas o senhor acredita que o suicídio pode ser evitado somente com a fé, com a oração, somente desta forma, ou precisa de outras coisas como, por exemplo, uma ajuda psiquiátrica? - Você está dizendo que poderia estar sendo utilizado uma terapia, né? Para se tratar isso. Uma terapia ou medicamental ou ou... - Ou somente por meio da religião a pessoa pode sair desta situação? - Olha, eu acredito que até mesmo pode haver problemas mentais e a pessoa pode fazer uma terapia ou um tratamento medicamentoso. Mas na maioria dos casos, se a pessoa tiver um acompa-


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nhamento espiritual, bíblico cristão, eu creio que ela tem muitas chances de mudar o seu conceito a respeito de tirar a sua própria vida. - Em relação à prevenção pastor, como fazer? - Eu acho que a única forma de prevenir isso é objetivando e fortalecendo a família. Acho que isso é uma das melhores formas de prevenção, famílias estruturadas, famílias bem estruturadas. A tendência do ato passa a ser mínima. - Caso você queira expressar mais alguma opinião em relação à própria religião, em relação ao que o senhor considera pertinente sobre o tema, fique à vontade. - O suicídio dentro do contexto bíblico é um pecado porque a pessoa tira a própria vida. A nossa correria do dia-a-dia hoje está trazendo muitos problemas. Problemas de estresse, que acabam causando situações emotivas, que levam a um quadro depressivo e aí então algumas pessoas acabam tentando algum ato ou até mesmo tirando a própria vida. Nós estamos envolvidos hoje dentro de um sistema de afastamento. Os relacionamentos são mais virtuais do que pessoais. Como nós estamos aqui hoje, muitas entrevistas são feitas via Skype, on-line ou por outras formas de videoconferência. E isso vai causando um afastamento muito grande, você não tem pessoas próximas, não tem amigos, só tem amigos virtuais, só amigos distantes. Você só tem amigos que não entendem a sua situação, que não te ouvem.

A morte deveria ser assim: um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim... Mario Quintana



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Padre Dirson - O suicídio é um tema muito complexo que a igreja busca estudar para ter uma compreensão melhor a respeito, pois se trata de um assunto presente na humanidade não só agora, mas desde sempre. Antigamente, em um tempo não muito distante de nós, a igreja via o suicídio como um ato de grande pecado e que a pessoa que cometia o ato não tinha o direito nem à benção do padre depois da morte. O sacerdote não ia ao velório, ele não fazia a celebração das exéquias5, a benção do corpo. Hoje a compreensão é outra. Nós vamos ao velório, realizamos a benção do corpo e entendemos que o suicídio é um momento de profunda fraqueza da pessoa. Fraqueza humana, espiritual ou psicológica, pois para você chegar ao ponto de cometer um ato assim, é porque não está bem. Nesta situação, significa que você perdeu o controle das coisas, inclusive o controle de si mesmo. Então, veja que a igreja olha com misericórdia para as pessoas que cometem suicídio, com misericórdia e com amor porque essa pessoa não estava em total controle de seus pensamentos, de suas emoções, de si mesmo. Houve um crescimento na compreensão do suicídio. Essa foi a resposta do padre Dirson Gonçalves quando perguntei sua opinião em relação ao autoextermínio. Não estava fácil obter o ponto de vista da religião católica sobre o suicídio. Mesmo após realizar vários convites, por meio de ligações telefônicas e visitas em igrejas da capital sul-mato-grossense, o assunto era evitado por esses líderes. As tentativas até então eram frustrantes e não apresentavam nenhuma abordagem aprofundada. Foi então que decidi marcar um horário com o conhecido padre Dirson sem notificar o assunto em específico. Essa talvez fosse a minha última alternativa de êxito e, como previsto, o padre aceitou o convite, mas sem saber o rumo de nossa conversa. Celebração das Exéquias5: Celebração onde a comunidade cristã acompanha seus mortos e os encomenda a Deus.


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O local definido era a Igreja Nossa Senhora Perpétuo Socorro, em Campo Grande (MS), quinta-feira à uma hora da tarde. No dia, o calor estava insuportável e o sol parecia queimar qualquer coisa, o que não tornou agradável a caminhada até o compromisso. Minha chegada foi marcada por um pedido desesperado por água para uma senhora que estava logo na entrada da igreja: - Oi, hummm...boa tarde. Sabe me dizer se tem água por aqui? A mulher de olhar espantado e sem manifestar qualquer palavra, simplesmente apontou a direção do bebedouro com seu dedo indicador. Um sorriso simpático foi a única forma de agradecimento que consegui expressar naquele momento. A marcha de passos largos me conduziu até aquela fonte, onde finalmente minha sede foi saciada. No interior da igreja, era notável a presença dos fiéis que manifestavam individualmente gestos de devoção por meio de orações e pedidos. Desloquei-me discretamente até a recepção, onde fui orientado pela secretária a aguardar a chegada do padre: - Olá, ele deve chegar logo. Fique à vontade se quiser se sentar. Parecia ser uma boa ideia, afinal a caminhada até o local foi cansativa. Quando me acomodei em uma daquelas cadeiras estofadas, uma senhora espontaneamente resolveu puxar conversa: - Oi, você também veio falar com o padre Dirson? A idosa carismática me surpreendeu com um questionamento direto enquanto costurava seu crochê. Decidi perguntar também, pois ficou claro ali o desejo de bater um papo. - Sim, estou aqui para falar com ele. Você também? Sem perder tempo a mulher cheia de personalidade respondeu: - Sim. Claro que eu também vim aqui falar com ele. Ele me ajuda muito, você já viu ele? Ele é lindo. Não consegui disfarçar a risada. Aquela prosa foi interrompida com a chegada do padre. Em seguida, fui orientado pela secretária a entrar na sala onde ele me receberia.


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Fui convidado a aguardar sentado em um enorme sofá marrom. O ambiente era limpo e confortável. Assim que o padre entrou na sala me apresentei com um simples aperto de mãos. O comportamento calmo de Dirson no primeiro instante demonstrava um bom sinal sobre as intenções daquela conversa. A boa educação do padre ficou evidente ao se expressar: - Boa tarde, no que posso te ajudar? O momento decisivo finalmente havia chegado. Sem rodeios fui direto ao tema. - Padre, estou aqui para conversar com o senhor sobre suicídio. A personalidade tranquila não deixou transparecer surpresa em Dirson e a postura ao sentar deixava aparente um apto esclarecimento sobre o assunto. Após direcionar o objetivo daquele encontro, iniciamos a conversa: - Padre, para a igreja e em sua opinião pode existir alguma explicação ou justificativas para a prática deste ato? - De acordo com a nova compreensão da igreja, o ato foi um momento de desespero da pessoa. Na esfera humana, ela foi até as últimas consequências e não conseguiu encontrar respostas. Ela esgotou todas as possibilidades de respostas. E o que ela achou melhor? Finalizar a caminhada. Orientamos às pessoas que tem esta tendência a procurar ajuda psicológica ou um psiquiatra, porque se ela não está encontrando as respostas dela mesma, nas dores dela, nas angústias dela, ela precisa de uma ajuda profissional. E a igreja orienta na busca desta ajuda, inclusive temos um grupo de psicólogos que atende aqui na comunidade Perpétuo Socorro. Ao ouvir a resposta do padre pensei se seria esse um tema abordado nas missas e disposto a ser esclarecido entre os fiéis. - Padre, como o suicídio é trabalhado dentro da religião? Após uma sutil franzida na testa e um breve suspiro, veio a resposta: - Eu acho que a gente trabalha pouco. Acho que este tema de-


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veria ser explorado mais dentro da igreja. Mas, pelo menos aqui, trabalhamos com duas vertentes: uma é a de quebrar o tabu e não ter medo de falar sobre suicídio, pois tem pessoas que não gostam de falar sobre o assunto, temos que enfrentar o assunto, é a primeira coisa. A segunda, visto que tem vários casos de suicídios na cidade, é se trabalhar o pós-suicídio, aquela preocupação de que “ai, será que isso tem salvação”, então devemos dizer: “Tem sim, Deus é misericordioso e ele vai salvar esta pessoa, pois ela fez isso em um ato de fraqueza, não foi em um ato de maldade”. E Deus percebe isso na fraqueza humana. Então, trabalhamos nestas duas vertentes, o antes, não tendo medo de falar sobre o assunto, e o depois, caso aconteça, tranquilizando as famílias e as pessoas que tem certo preconceito. - Gostaria que o senhor comentasse quais as ações de prevenção que a igreja está apta a fazer e que pode contribuir para evitar o suicídio. - Quando somos procurados, nós orientamos para a pessoa que tem esta tendência e está sentindo alguns sintomas que podem levar a isso, a mudar um pouco o ritmo de vida. Desacelerar um pouco a sua rotina. Procurar fazer coisas que são novas e diferentes, como sair com os amigos, ir a um parque, ouvir músicas, coisas que ajudam a alma. O fato de se chegar ao suicídio significa que a alma da pessoa não está bem, o espírito da pessoa não está bem. Então pedimos como prevenção, para que as pessoas procurem mudar o seu ritmo de vida, valorizar coisas mais simples. O que causa tanta depressão hoje no mundo? É que as pessoas estão muito desiludidas com tudo, parece que tudo está indo por um caminho negativo e as pessoas vão somatizando essas situações. E é muito interessante, pois passamos por uma época de avanços tecnológicos, parece que tudo isso é melhor, a comunicação é uma benção, uma maravilha, hoje nos comunicamos rapidamente com Whatsapp, Facebook, enfim... Mas nem isso preenche o ser humano. Ele está


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vazio ainda. Então orientamos a pessoa a não ficar somente nisso, mas procurar viver de modo mais harmônico com os outros seres humanos. Por instantes, me encontrava surpreso com a argumentação do padre e com o ritmo da conversa. Não esperava me deparar com este discurso opinativo, que considerava também outros fatores de risco além da limitação a uma dialética religiosa. Mas por quê? Seria essa uma realidade social tão presente? - Existem pessoas que te procuram? Você consegue identificar a ideação suicida ou são poucos os casos que você realmente teve este contato? Com naturalidade, o padre aplicava uma resposta atrás de outra: - São vários casos. Muitas pessoas já chegam e dizem abertamente: “Padre, estou muito mal, não sei o que eu faço da minha vida, já pensei em suicídio”. E tem pessoas que você vai interpretando aos poucos, você vai conversando, vai entrando na história delas. Elas não dizem que tentaram suicídio, mas você percebe que se não tratar, elas vão fazer isso. Estas pessoas são mais perigosas porque não expressam muito, quando vai ver, já fizeram. Aquelas que já falam: “ai padre, eu tentei tirar minha vida”, fica mais fácil trabalhar, porque elas já sabem, tem consciência que quase chegou lá. - A igreja Católica teve uma evolução teológica em relação ao tema. Na Idade Média existia condenação pública para quem cometesse o suicídio, como a exposição do corpo nu em praça pública. As pessoas passaram a não cometer suicídios, pois além do medo e vergonha familiar, tratava-se de um pecado imperdoável. Hoje, a igreja não diz mais isso e o senhor confirma que o suicídio é passível de perdão. Os fiéis podem interpretar de forma deturpada que se cometerem o suicídio serão naturalmente perdoados? O senhor considera isso perigoso ou não?


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Após um espontâneo sorriso singelo, o padre argumentou: - Considero. A partir do momento que a igreja diz: “Não é um problema, foi um momento de fraqueza, Deus perdoa”, pode não ser bem compreendido e se tornar um ato normal. E não é. Por isso, eu digo que devemos estudar mais o tema e falar abertamente sobre o assunto para não ser necessário trabalhar o pós suicídio. “Ah! Ele se suicidou e pode ficar tranquilo que ele vai para o céu”. Não! Devemos trabalhar com a prevenção, entendeu? Então assim, se acontecer, devemos dizer que foi um momento de fraqueza, mas vamos fazer de tudo para não acontecer? Vamos trabalhar estas questões antes? - A Bíblia apresenta a história de seis personagens que cometeram suicídio como, por exemplo, Judas. A maioria destes personagens praticou o suicídio altruísta, que é entendido como o ato por uma causa maior. O senhor acha que pode ser perigoso caso aconteça uma má interpretação por parte dos fiéis? Considera algum risco sobre essa situação? - Vejo um risco porque são suicídios bíblicos, né? Então tudo que está na Biblia tem um perigo de má interpretação. Agora no caso de Judas, ele se suicidou por peso na consciência, não enxergava mais futuro nenhum porque ele tinha traído o próprio Cristo. Ele viu que tinha feito um grande erro e cometeu suicídio. Mas assim, realmente, alguns casos bíblicos podem ser mal interpretados. - Os padres são pessoas que exercem a comunicação pela prática da oratória. Para uma pessoa que tenta ou executa o ato suicida, o senhor acredita que ela tenta passar alguma mensagem com essa decisão? Existe comunicação no autoextermínio? - Eu acho que existem várias mensagens no ato suicida. Ele está dizendo: “Olha, eu estou aqui e eu não consegui levar minha vida para frente. Por uma série de fatores, eu saí do mundo, eu saí do convívio de vocês”. Sempre são várias as mensagens que a pessoa deixa para a humanidade. Só não entendo quais são do ponto de


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vista espiritual, mas até que gostaria de estudar sobre isso. Eu tenho a impressão de que no momento do ato existe a presença de Deus. Não sei, pode ter duas vertentes: uma que a pessoa se revolta com Deus e comete suicídio, outra que ela abandona tudo que é humano e entrega sua vida para morar com o senhor. Mas para nós que ficamos, para a socidade, o recado mais forte é o seguinte: “Eu não consegui levar minha vida em frente e portanto preferi parar por aqui”. Esta é a mensagem que fica. O suicídio é um tabu. Além de complexo é um assunto de difícil diálogo social, considerando os paradigmas e preconceitos do senso comum. - Para a igreja católica existe preconceito nos debates que envolvem esse tema? Levando em conta principalmente as possíveis consequências para a pessoa que pratica suicídio. - A igreja, como você sabe, tem algumas linhas de pensamentos, né? Tem linhas que são mais libertadoras, mais ligadas à humanidade e outras mais conservadoras, voltadas para a tradição. A maioria da igreja compreende que o ato é um momento de fraqueza, mas tem algumas reflexões que ainda entendem e pregam o suicídio como um tema pesado. Mas se me perguntasse qual é a minha opinião, eu diria que sou da linha de Jesus Cristo, que olha com miserircódia e diz: “O que faltou na sua vida para você ser feliz? O que eu não te fiz? O que seus irmãos não te fizeram para sua felicidade? Eu te fiz para você ser feliz. É nossa culpa, porque estávamos convivendo com você, estavámos ao seu lado e não percebemos isso. E você foi se definhando tanto, que chegou a este ponto. Então, o que nós não fizemos?”. Assim, assumo uma certa culpa, como padre, igreja e sociedade. - O luto que o suicídio deixa para os familiares, amigos ou entes queridos é devastador. É uma dor que se difere de qualquer outra. Para o senhor, o que fica para as pessoas que enfrentam esta situação?


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- Fica uma coisa horrível por dois motivos: primeiro porque a morte por si só já deixa um legado de tristeza e saudade, sentimentos ligados a perda. Agora, o suicídio, além disso, deixa um outro legado que é pior: “o por quê?”. A interrogação. Imagina os familiares das pessoas que se matam. Eles ficam eternamente com aquele questionamento: “Por que ele fez isso? Por que chegou a este ponto?” Então o legado deixado é duplo: o da morte e o da dúvida ou falta de respostas. - E para a igreja, como fica na comunidade a influência de uma pessoa que se suicidou? - Daí entra a parte espiritual. Temos que trabalhar nos encontros e nas missas as seguintes questões: vamos continuar as nossas vidas, temos muito o que viver, vamos confiar na misericórdia de Deus e rezar por ele, para que ele descanse em paz. E que este tempo de oração, cure o coração de quem ficou. Então trabalhamos essas duas realidades: a da pessoa para com ela mesma e a da pessoa para com quem se foi. A opinião do padre Dirson não demonstrava ter nenhum tipo de preconceito. Todos os argumentos eram reconfortantes para uma vítima de suicídio. Entretanto, o medo nos relatos do qual presenciei ainda me envolviam de incertezas sobre o aspecto religioso do assunto. - Padre, o senhor já comentou sobre, mas gostaria que o senhor aprofundasse um pouco mais. Voltando a situação da evolução teológica... Na época medieval, principalmente, o clero negava muitos benefícios a uma pessoa que cometia suicídio como, por exemplo, o ato da sepultura eclesiástica6, celebração pública, solene e a Santa Missa. Hoje, um suicida ainda não teria esses direitos? - Hoje o padre vai ao velório, faz a celebração das exéquias, a benção, reza a missa de sétimo dia, tudo normalmente. Antigamente, se o menino fosse para o seminário e os pais descobrissem na família dele algum caso de suicídio, ele era mandado embora. Sepultura eclesiástica 6: Reza pública do sacerdote para encomendar a alma do defunto.


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Nem um candidato a padre poderia ter isso em seu histórico. Era tão forte assim a questão, que impedia o menino de entrar no seminário. Quando notei já tinha tomado quase todo o tempo daquela tarde do padre Dirson. Os questionamentos eram muitos e a disposição para resposta também. O líder religioso mostrava ter esclarecimento sobre o tema. - Padre, em sua opinião, como o senso comum e os fiéis interpretam o suicídio? - Acho que existe um preconceito com o tema. Dentro da igreja existem famílias com casos de suicídios. Sinto que essas famílias não querem tocar no assunto. Em um caso específico, eu fiz a benção do corpo e os familiares evitaram de falar sobre e diziam: “Ah morreu, morreu, não pergunte o porquê e do quê”. Então o suicídio é um tabu. Às vezes me perguntam: “Ah padre, ele cometeu suicídio, será que ele vai para o céu? Será que Deus vai perdoar esta pessoa?”. Existe uma falta de aprofundamento do tema, tanto da sociedade, quanto da igreja. - Com base em algumas histórias que obtive relatos, tive impressão de que a manifestação da fé por meio da devoção religiosa foi muito forte. Mas esse apego seria suficiente para tratar esse ato extremo? O senhor acredita que a igreja por si só consegue reverter este quadro? - Em casos mais simples sim, como uma angústia, algo espiritual. Mas existem casos que são mais complexos, como traumas que a pessoa sofreu em determinado momento da vida e então não é algo espiritual, é psicológico e a igreja sozinha não consegue resolver. Por isso, acho bonita a união entre os vários saberes. A igreja, a patologia, a espiritualidade, mas também a medicina, a psicologia e a psiquiatria. Somando isso, nós conseguimos ajudar as pessoas. Pelo tempo que a conversa levara, Dirson já desmonstrava a ansiedade em atender outras pessoas, que espiavam curiosos pelo


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pequeno vitral da porta. Então, resolvi fazer uma última pergunta: - Você considera Campo Grande uma capital que tem elevadas taxas de suicídios? - Eu tenho lido algumas matérias na imprensa de que Campo Grande, aliás, o Mato Grosso do Sul é um dos estados com um dos maiores índices de suicídios. Vejo que é uma preocupação, que devemos tratar deste tema na área da saúde e nas várias religiões porque isso não é um ato de quem não tem fé, muitos fiéis também cometem suicídio. Então é algo que precisa ser estudado e aprofundado. A tarde chegou ao fim em conjunto com aquela conversa.

...Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto... Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto... Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri? Cecília Meireles



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Médium Luciano O próximo desafio seria aprofundar o assunto na doutrina espírita. Os convites por telefone não renderam nenhuma conversa, então resolvi seguir a perseverança do repórter de rua e apresentar pessoalmente a proposta assim que surgisse uma oportunidade. Sábado, 24 de outubro de 2015, o Grupo de Apoio Espiritual às Pessoas Enlutadas (Gaepe) de Campo Grande (MS) promovia um evento público que traria como tema o suicídio. A ocasião era ideal, a divulgação dava ênfase na prevenção, cuidados e consequências do ato. Alguns dos palestrantes eram representantes do espiritismo e o conteúdo apresentado seria transmitido ao vivo para o Japão via Youtube. O evento aconteceu em uma livraria da capital sul-mato-grossense, no mesmo local em que são realizados os encontros do Gaepe. Na ocasião, tive a oportunidade de conhecer Luciano Montalli, um dos palestrantes da noite e vice-presidente da Casa Espírita Semente de Amor. Com o término das apresentações, finalmente pude estender uma conversa. Luciano também era membro do Conselho de Administração da Federação Espírita de Mato Grosso do Sul (FEMS) e adepto da doutrina há 13 anos. Após explicar brevemente minhas intenções, o homem concordou em agendar uma conversa. O local definido foi o escritório de Luciano, localizado em uma região afastada do centro da cidade. O horário combinado, às sete horas da manhã. Para evitar qualquer tipo de atraso optei pelo deslocamento por táxi. Na manhã do compromisso, percebendo o mau humor do taxista tentei fazer o pedido educadamente. - Bom amigo, tudo bem? Poderia me levar para esse local, por favor? A primeira reação do taxista foi me encarar e em seguida rosnar com um tom de reclamação.


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- Ruurrr. No banco de trás, o espelho retrovisor mostrava transtorno no olhar daquele homem ao girar as chaves para dar partida no veículo. Suas atitudes ficaram preocupantes com a acelaração excessiva de velocidade. Durante todo o trajeto, o taxista além de demonstrar pressa, fora muito mal educado. O horário pontual agendado para ocasião me fez aguentar aquela situação e não pedir para descer. Em alto tom, o taxista me perguntou: - Vai pra onde mesmo? Supostamente quando nos aproximávamos do destino, o endereço não estava preciso. O fato é que não localizávamos o prédio. Tentei sugerir a referência que Luciano havia me informado. - Olha, esse local é perto daquela escola. Isso foi suficiente para provocar uma revolta no motorista. - Cara, quando você pega um táxi tem que saber o endereço certo. Olha aí, vamos ter que procurar. Nossa... Ficar dando voltas. Esses foram alguns dos comentários. Quando finalmente chegamos e paguei, recebi a última lição daquela manhã. - Viu, da próxima vez procure se informar melhor antes de querer pegar táxi. Fortes emoções em poucas horas, foi assim que começou meu dia. Finalmente no prédio, fui atendido por uma recepcionista e após alguns minutos de espera Luciano veio me receber. - Bom dia, vamos entrando. O homem dava os cumprimentos enquanto seus curtos passos me conduziam até sua sala. Um giro rápido na maçaneta e o leve toque em meu ombro finalizavam aquele percurso com a seguinte sugestão: - Fique à vontade. Assim que entrei, senti imediatamente um aroma doce. O incenso que queimava sobre uma das prateleiras perfumava todo o


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ambiente e obras de arte coloriam as paredes daquele cenário. - Aceita água ou café? - disse Luciano. Optei pelo copo de água, embora o vício por café fosse maior. Ambos acomodados e uma mesa repleta de documentos era o móvel entre nós. Após um gole de água, fiz o primeiro questionamento: - Luciano, como o suicídio é interpretado pela doutrina espírita e qual sua opinião sobre o ato? Ele posicionou os dois cotovelos sobre a mesa e após entrelaçar os dedos entre as mãos respondeu: - Vejo como um equívoco do ser humano. Ao tentar acabar com a sua vida corporal, imagina que esteja acabando com sua existência e aí está o equívoco porque depois de praticado o ato ele continua a viver em espírito. Ele tenta fugir dos seus problemas, das suas relações tumultuadas achando que com aquele ato vai resolver. A intenção dele é solucionar da maneira mais rápida possível aquela situação e, num equívoco, imagina que vá chegar a esse fim pelo suicídio. Uma rápida alinhada nos óculos e continuou: - Segundo a doutrina espírita, nós vemos o suicídio como um equívoco, mas também como um momento de desequilíbrio, que a pessoa enfrenta, de influência espiritual ou mesmo de um momento de enfermidade psiquiátrica. Então, cabe à doutrina espírita esclarecer para prevenir. Se já praticado o ato, nós entendemos que, como o espírito continua a viver, temos que auxiliá-lo com preces e vibrações para que ele possa se recuperar. Minha intenção era tentar esclarecer as incertezas e dúvidas que envolviam o suicídio naquela doutrina. - Quais seriam as consequências para a pessoa que comete o ato de suicídio em uma vida espiritual que continua após a morte? A postura de Luciano não se alterava e o comportamento calmo prevaleceu durante sua explicação.


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- Segundo Alan Kardec, não dá para dizer especificamente qual a consequência que cada espírito vai ter. A única que ele diz que é inevitável, que todos os espíritos têm, é o desapontamento de quando cometem o ato de suicídio e depois percebem que continuam a viver, que a situação continua a mesma, ou seja, os problemas permanecem e ele vai ter que lidar com aquilo. Numa situação dessa, houve um rompimento da vida terrena antes do período. Então, existe um tempo para que o espírito se restabeleça e possa planejar uma nova reencarnação para voltar a partir daquilo que foi interrompido. - Mas seria esse um ato imperdoável para a doutrina espírita? A reflexão foi manifestada através de palavras para Luciano, que até o momento não demonstrava surpresa ou algum incômodo com minhas dúvidas e educadamente esclarecia: - Não é um ato imperdoável porque nós cometemos erros em nossa existência, erros de várias ordens, de vários graus e sempre é nos dado uma oportunidade de refazer aquilo. É claro que, dependendo da situação, vai ser mais complexo, mas a misericórdia divina sempre nos concede uma oportunidade. Deus é justo e é bom, filosoficamente parece que são coisas contrárias, mas ele é justo porque nos concede de acordo com nossas obras. E só vamos conseguir a equação dessas duas situações, justiça e misericórdia, se colocarmos a reencarnação, sem ela nós não conseguiríamos entender essas atos divinos. Para a doutrina espírita, a reencarnação é uma realidade, independente do tempo. Luciano me observava fixamente demonstrando atenção. - Mas, o suicídio pode ter reflexos em uma próxima reencarnação? Neste momento um discreto sorriso compôs o rosto de Luciano para aquela resposta. - Sim. A pessoa que comete suicídio, por exemplo, com um tiro


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no ouvido, não machuca somente o corpo físico, que acaba deixando em razão da morte, mas afeta seu próprio períspirito7. Então em uma nova existência, é preparado um corpo e ele vai vir justamente com uma deficiência onde ele cometeu a lesão, ele pode vir surdo, enfim, são várias as consequências dependendo do ato, que justamente não é para punir, mas é para encutir naquele espírito a necessidade do entendimento e da importância da vida. A resposta ganha maior complemento quando insisto na dúvida sobre a relação direta com ato. - Mas todo o espírito suicida pode reencarnar? Reencarnarão ou não? - Reencarnam. A reencarnação é necessária para que eles possam se restabecer e ter progresso. Dependendo da situação em que ele se encontra, ele reencarna sem que ele saiba disso. Luciano argumentava que o suicídio era um tema muito complexo, carente de esclarecimento social e religioso, pois o ato ainda era interpretado com preconceito e visto como pecado. Para ele, o suicídio não teria justificativa, pois só a Deus cabe o direito de nos conceder e tirar a vida. O médium acredita que é um ato que pode ser motivado no sentido de que a pessoa não está em uma situação de normalidade, relacionado a algum transtorno psquiátrico ou obsessivo. Luciano manteve em mim sua atenção e sem desviar o olhar tomou um lento gole de água. Antes de tocar a mesa com o copo, apliquei minha questão: - Teria como descrever o ambiente que o suicida vai encontrar após sua morte? Os lábios de Luciano hesitam por segundos, mas respondeu: - É de sofrimento com idas e vindas na sua mente. Então se a pessoa se jogou em um abismo, ela terá a sensação de estar caindo, como se queda não tivesse fim. Fica se repetindo aquele ato tresloucado, reiteradamente, vai e vem, até que ele possa receber Períspirito 7: Nome dado pelo codificador espírita Alan Kardec ao elo de ligação entre o espírito e o corpo físico.


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o amparo. Então ninguém vai passar por situações que não sejam necessárias para reparação. Esse sofrimento, essa dor, não é para punir a pessoa, mas é só para que ela se restabeleça perante as leis divinas, para que ela entenda o porquê da situação. Luciano explicou que após a pessoa cometer o ato, o espírito fica em um estado de inconsciência e quando reestabelece a consciência, é acolhido e encaminhado para receber o tratamento necessário para uma nova reencarnação. Prevenção para a doutrina espírita é também o esclarecimento sobre a verdade da imortalidade do espírito. As pessoas devem ter consciência de que continuam a viver enquanto espírito e caso cometam suicídio, continuarão a lidar com os mesmos problemas. - Mas pessoas esclarecidas pelos conhecimentos da doutrina espírita também poderiam cometer suicídio? A situação dessas pessoas seria diferente? - Aquele que mais foi dado, mais será cobrado. Tendo ciência da situação, da existência do espírito imortal, claro que será mais difícil. Mas como também é filho de Deus e deve estar passando por uma situação muito difícil, por um desequilíbrio psiquiátrico ou problema de obsessão terrível, tudo isso deve ser levado em consideração. Mas tendo o conhecimento da doutrina, a prática do ato torna a decepção ainda maior. Não nos cabe julgar ninguém, né? Mas com certeza a pessoa será mais cobrada. - Considerando a vida após a morte, poderiam pessoas receber influências espirituais para a prática do suicídio? Após conferir o horário no relógio de pulso, Luciano respondeu: - Sim, tem influência espiritual. - Sempre? - Sempre tem influência espiritual. - Por quê? Luciano demonstrava um pouco de impaciência. - Por obsessão. Às vezes você cometeu um ato terrível contra


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algum espírito que não conseguiu lidar com aquela situação, não conseguiu perdoar e este espírito pode influenciar você a cometer este ato tresloucado. Podem ser ideias que geram sofrimento na pessoa. Existem situações em que o espírito permanece em sua redoma familiar e sua presença, energia e vibração podem influenciar aqueles que estejam desprotegidos. Manda Jesus que precisamos vigiar e orar para não cometermos erros, né? Então essa presença vai começar a influenciar, não que seja um espírito ruim, mas a sua vibração estimula nos parentes ou amigos pensamentos de suicídio. O homem considerava que as patologias também eram fatores que poderiam influenciar suicídios e nesses casos o amparo médico especializado era totalmente necessário. Para Luciano, são várias situações diárias que podem gerar desespero e desequilíbrio na pessoa. - Hoje a cultura é do “ter” e não do “ser”, então nós temos que ter as coisas, nós temos que parecer aquilo que nós não somos, demonstrar algo que nós não somos e aí vamos maquiando e escondendo a nossa verdadeira essência, nos apegando as coisas ilusórias. Não somos do mundo, mas estamos no mundo e temos que viver aqui com as problemáticas. Mas nós temos que tomar cuidado para não deixar de lado aquilo que é essencial. As duas batidas na porta anunciaram a entrada da secretára. O simples olhar para Luciano bastou para confirmar que o tempo da conversa tinha esgotado. Dessa vez, não existiu última questão.


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O suicídio tanto pode ser afirmação da morte como negação da vida. Tanto faz. É mentira. E vou explicar: o suicida é aquele que perdeu tudo, menos a vida Fernando Sabino



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O Instituto Poderiam existir outras opiniões fundamentadas que interpretam o suicídio, além das ideologias cristãs? A dúvida que me custava noites em claro foi o estímulo que me levou até o Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia (IIPC) de Campo Grande (MS). O local tem como proposta o estudo científico das experiências fora do corpo, bioenergias, fenômenos projeciológicos, autoconsciência, desenvolvimento pessoal e parapsíquico. Cerne interessante para aprofundar, caso a relação com o suicídio fosse considerada. Na manhã de uma segunda-feira, o convite foi feito e prontamente a presidente do IIPC/MS, Rosane Amadori, aceitou. - Combinado, quinta-feira desta semana, sete horas da noite, pode ser? Acenei a cabeça concordando com a proposta. Oficialmente a conversa estava agendada e aconteceria no próprio Instituto. Na quinta-feira, após descer do ônibus, o frio sútil da noite proporcionou uma caminhada agradável até o endereço. Durante todo trajeto esteve intenso o aroma que trazia o sinal da chuva e por já estar acostumado à cidade, conhecida pela brusca mudança climática, carregava comigo um guarda-chuva. No local, fui recebido por Rosane. - Boa noite, vamos entrando. Enquanto limpava as solas das botas no tapete de entrada, tentei retribuir pela disposição da presidente em me receber naquele horário. - Com licença. Obrigado, agradeço toda a atenção. Dentro do Instituto, poucos passos foram suficientes para revelar o cenário da conversa. O ambiente era reservado, a poucos metros da recepção, com apenas uma mesa rodeada por seis cadeiras. Nesse instante Rosane foi direta:


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- Fique à vontade, pode se sentar em qualquer uma. Antes de sentar, optei por tirar o casaco para amenizar o calor que sentia. Minha intenção inicial era entender um pouco mais sobre os estudos que aconteciam naquele instituto, portanto iniciei sem rodeios. - Você poderia explicar um pouco sobre os conceitos de projeciologia e conscienciologia? - Conscienciologia é o estudo da consciência. Consciência é a alma, o espírito, o ego, o self, é aquilo que nós somos, independente do corpo físico ou além do corpo físico. É aquilo que fica, é a nossa verdadeira identidade, é um princípio inteligente que nós somos, que acaba se manifestando aqui, nas várias vidas. Então a conscienciologia estuda o que está além do corpo físico, aquilo que sobrevive àquela vida orgânica. Um rápido suspiro para retomar o fôlego e então Rosane retomou: - Projeciologia é o estudo da capacidade que temos de sair do corpo físico enquanto consciências e do que isso representa. Então eu aqui, enquanto estou me manifestando pelo corpo físico, posso deixá-lo, principalmente, durante o sono e posso me manifestar sem ele. Essa é a projeciologia. A presidente apresentava um comportamento tranquilo em que a simpatia sempre prevalecia. Demonstrava pleno conhecimento sobre os estudos desenvolvidos pelo Instituto. O momento pareceu ser pertinente para introduzir o tema em questão. No entanto, era necessária uma relação. - O instituto debate o suicídio considerando esses conceitos? - Nós temos hoje dentro da projeciologia e da conscienciologia uma série de especialidades. E existe dentro dessas especialidades aquilo que a gente chama de dessomatologia, que é o estudo da dessoma, o descarte do corpo físico. Este é o termo que a gente aplica. A partir da dessomatologia, estudamos o descarte do soma,


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que as pessoas entendem como a morte. Uma das variantes é o suicídio. Então justamente esta abordagem vem de encontro com aquilo que a ciência traz: que nós somos seres que não morremos, o que acontece com a gente é a dessoma ou o descarte do soma. Nesse sentido, o suicídio não é como comumente as pessoas entendem, não é o fim da vida. Nós entendemos que a vida não acaba, o que acaba é o corpo físico. Então neste ato a pessoa descartou voluntariamente este corpo. Para a presidente, o suicídio é um ato de desespero em relação a uma condição ou uma situação difícil da pessoa lidar, além de um profundo processo de desestrutura emocional e também de fatores extrafísicos. No momento em que a chuva começou a cair, Rosane ainda argumentava que o suicídio é um ato que apresenta uma série de contextos interpessoais. - Esse é um ato que não é só físico. O vento frio voltava e me fez vestir novamente o casaco. As explicações eram interessantes e o estudo considerava amplamente o tema. Portanto, decidi introduzir melhor a conversa com o seguinte questionamento: - Mas o que acontece com essas pessoas? Quais as consequências? Em um primeiro momento, Rosane foi sucinta com a resposta: - Depende muito, isso é muito variável. Depende da bagagem da pessoa, ou seja, aquilo que ela trazia, no caso da consciência. A perspectiva da resposta demonstrou existir uma interpretação aprofundada sobre a questão. Educadamente resolvi retomar a dúvida proporcionando maior liberdade de argumentação. - Poderia explicar um pouco mais? A moça sem perder tempo deu continuidade ao raciocíno: - Depende daquilo que a pessoa era, depende do processo emocional dela. Então é muito comum que venha o remorso, que a gen-


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te chama de arrependimento. A pessoa fica dentro de um processo de autoculpa. Mesmo sem o corpo físico, numa outra dimensão, e aquilo acaba pesando contra ela e ela acaba se mantendo por conta desse processo emocional, culposo, às vezes dogmático, religioso, se punindo, ela acaba se mantendo em um ambiente mais pesado. Mas a rigor, se não pesar sobre ela nenhum sentimento de culpa, se a bagagem for relativamente tranquila, o que pode acontecer é o que vai acontecer com todos nós. De alguma maneira, ela vai colher o resultado da sua ação e logicamente, a gente volta a reforçar, não recomendamos e não é recomendável o suicídio para ninguém. Então ela vai colher os efeitos do ato, vai ter que ter um aprendizado com aquilo, mas vai ter novas chances de poder recomeçar, retomar e voltar para o processo de aprendizagem físico. - Quais são as características desse ambiente pesado que você se refere? - Não dá para falarmos especificamente. É difícil fazer uma associação entre as características extrafísicas e físicas, porque pode não existir nenhuma relação. A impulsividade do questionamento fez transparecer uma incompreensão no olhar de Rosane, que em seguida continuou o raciocíonio: - Não tem como eu precisar para você como uma característica específica porque vai depender, são vários ambientes. Os ambientes extrafísicos que a gente fala tem várias características, então vai ser mais ou menos pesado de acordo com a afinidade daquela pessoa. Mas vamos dizer assim, um suicida que se mantenha ligado na ideia de condenação, no processo de autoflagelação, provavelmente vai para um ambiente bastante carregado, onde a lucidez, o entendimento dele fique bastante comprometido e entra num processo movido por energia, um processo mais doloroso. Sem perder a simpatia, Rosane era objetiva e demonstrava muita atenção em cada detalhe que poderia envolver o tema. Sua postura permanecia invariável, cotovelos apoiados sobre a mesa


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e pequenos gestos com as mãos complementavam suas respostas. - A questão energética que cada pessoa pode manifestar é um ponto muito importante para o estudo do Instituto e o ato de autoextermínio é repleto de cargas emocionais. Portanto, toda pessoa que comete suicídio pode gerar sentimento ou energia negativa? - Dentro do contexto que nós temos hoje, eu penso que deixa sim. Por que não deixa de ser um ato de violência da pessoa contra si mesma, independente da condição que ela esteja é uma violência que está cometendo contra o corpo físico que ela ganhou naquele momento. Então isso vai deixar sim um saldo negativo no ambiente, algumas vezes nas pessoas, porque elas ficam muito tocadas e o processo emocional faz com que as energias se coliguem. Então a energia que fica acaba de alguma forma atingindo as pessoas ou as pessoas se deixam atingir por aquela energia gravitante. Rosane explicou que o IIPC incentiva as pessoas a trabalharem com as energias, a conhecer seu próprio padrão para que exista a interação com lugares e entre consciências. - A gente chama de psicometria, que é fazer o sensoriamento energético de objetos, de pessoas, de lugares. Conforme você vai refinando a percepção, trabalhando energia no processo, desenvolvendo, você vai tendo mais elementos para poder perceber esses diferentes padrões das pessoas, de lugares. - Então é possível receber influência negativa tanto de pessoas como objetos? - Sim. Nós interagimos o tempo todo, positivamente ou negativamente. Quando a gente não sabe filtrar, não sabe perceber isso, ficamos muito à mercê, acaba entrando dentro do processo negativo do ambiente. Então é pra isso que trabalhamos o domínio. A chuva finalmente nos dá uma trégua, a moça simpática se levanta e apanha um copo de água. Depois de dois goles, educadamente me oferece: - Quer um pouco de água? Aceito a bebida. Em seguida agradeço. Rapidamente Rosane


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retorna à mesma cadeira que estava sentada e sem perder tempo continuamos a conversa. - Quais as consequências para a família do suicida se eles não desapegam dos objetos? A moça sutilmente inclina seu corpo para frente, após reposicionar os cotovelos sobre a mesa. Depois de um longo suspiro, lança sua resposta: - Nós, como consciências, absorvemos e emitimos energia o tempo todo. No ambiente onde o suicida convive vai se formando um processo negativo, pelas próprias energias dele e pelas consciências que são atraídas e acabam fortalecendo esse processo. Parte da energia dessomada fica gravitante ali, tanto a energia da pessoa, como a energia das consciências que ficam se alimentando disso. - Então o que é recomendável? - A gente sabe que é um processo doloroso, não é simples e naturalmente a família do suicida sofre os abalos emocionais. Mas é recomendável que as pessoas se desapeguem. Primeiro que elas não emitam nenhuma energia de condenação para o suicida e nenhum tipo de remorso, se entendeu que deixou de fazer alguma coisa por ela, e nenhum tipo de apelo emocional, no sentido da falta da pessoa. Outro gole de água e a presidente retoma: - É importante que a pessoa consiga cortar esse vínculo de energia negativa e consiga mandar energia positiva para que ajude a pessoa a ficar mais lúcida, para ela reencontrar um pouco do equilíbrio e seguir o caminho. Intrafisicamente, além dessa postura, a família deve fazer uma limpeza de objetos, de tudo que for pesaroso, que traga memórias da pessoa que dessomou. O ideal é às vezes até queimar, enterrar para neutralizar as energias que ficam para gerar mais benefícios à consciência que já foi. Ficou evidente que o suicídio provoca manifestações emocionais muito fortes e consequentemente pode ter reflexos, como o


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afeto, remorso e às vezes a condenação. Rosane explica que a partir do momento em que o suicida pensa no ato, ele cria um processo de energia, que atrai e estabelece um vínculo entre outras consciências. - Para desfazer esse vínculo e limpar efetivamente é preciso trabalhar a cabeça dessa pessoa que está com retenção suicida. Não existe algo que possamos fazer externamente por conta. O que podemos fazer para ajudar é tentar trazer ele para a lucidez ou buscar aquilo que chamamos dentro da conscienciologia de fixador psicofisiológico que é fazer com que a pessoa crie um vínculo de interesse com a vida intrafísica. É uma coisa que faça com que ela realmente se motive e passe a abandonar e limpar essas ideias suicidas. A conscienciologia atribui alguns processos suicidas inconscientes à dificuldade de adaptação à vida e ao corpo físico, que nem sempre acontece com naturalidade. - Não é incomum que a consciência tenha algumas dificuldades de adaptação naquele meio onde ela escolheu ou foi escolhida para ela ter essa nova vida, considerando o processo orgânico, a vida intrafísica. Por meio da projeção é possível sair do corpo. Compreender que utilizamos esse corpo e retornamos para um mesmo ambiente. A presidente argumenta sobre a situação: - Às vezes a pessoa, sente muita saudade ou muita falta de um ambiente onde estava, que era um ambiente muito mais sadio, ambiente de fáceis convivências, principalmente com as outras consciências do que aquele ambiente que está atualmente e aí vem aquele sentimento de banzo8, da falta que a pessoa sente e não sabe do que. Essa situação é denomida como síndrome do estrangeiro. É relacionada às dificuldades de adaptação da pessoa nos ambientes em que vive por não conseguir estabelecer relações da maneira que Banzo8: Significado de saudade criado pelos negros do continente africado quando estavam ausentes de seus países.


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gostaria e, portanto, se sente deslocada. Para a conscienciologia e projeciologia, não necessariamente nessas situações as pessoas possuem um senso suicida. - A pessoa tem uma necessidade às vezes de viver ou de estar naquele ambiente que considerava mais positivo. Podem existir outras circunstâncias muito comuns, onde essa falta é manifestada de outras formas, como, por exemplo, pessoas que praticam esportes radicais. O processo da adrenalina é uma sensação que coloca a pessoa muito próxima de risco de morte e isso é uma vontade inconsciente suicida de retornar e voltar para o ambiente de onde ela veio. Às vezes muitas pessoas encontram nesse esporte de risco seu fator motivacional para vida. Para a presidente, as possíveis formas de prevenção ao suicídio no aspecto físico estariam no trabalho do fortalecimento emocional ou do entendimento da pessoa a respeito da sua emocionalidade de maneira mais efetiva. O tempo da conversa estava chegando ao fim e Rosane mostrava-se ansiosa para resolver outros compromissos no Instituto. Decidi aproveitar os últimos minutos para esclarecer mais algumas dúvidas: - A pessoa que tem projeção pode desenvolver uma ideação suicida? - A projeção mostra a importância da valorização da vida, pois é um instrumento de evolução que nos mostra além do corpo físico. Pode acontecer de a pessoa se projetar e ter a percepção que no outro ambiente as relações são melhores. Se isso acontecer, recomendamos que ela procure um fixador psicofisiológico. A conversa chegava ao fim. A simpatia de Rosane prevalecia, então decidi realizar o último questionamento: - A projeção pode ser uma forma de pedir socorro para as consciências boas? - Pode, mas as consciências mais sadias que estão tentando aju-


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dar precisam que a pessoa com ideação suicida crie uma condição de aproximação, tudo depende da pessoa. Às vezes o indivíduo se mantém naquela ideia, naquela energia e aquele ambiente não permite que as consciências sadias se aproximem. Dificilmente as consciências podem ajudar aleatoriamente. Concluímos a conversa. Em seguida Rosane me acompanhou até a saída, junto ao radiante sorriso e se despediu. Agradeci mais uma vez pela disposição. Por fim ela disse: - Boa sorte.

...A oeste a morte Contra quem vivo Do sul cativo O este é meu norte... Vinicius de Moraes



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Clínica do luto Na ocasião que participei do evento público sobre suicídio, tive a oportunidade de conhecer Bete, uma das integrantes do Grupo de Apoio Espiritual às Pessoas Enlutadas (GAEPE) de Campo Grande. Ao fim das apresentações, Bete falou sucintamente sobre o trabalho que o grupo realiza naquele local e fez um convite: - Os encontros acontecem aos sábados a partir das 9h30 da manhã. Apareça. A manhã daquele sábado me permitiu uma experiência única. O trajeto até o local já era conhecido e dessa vez não existiu contratempos. O dia amanheceu cinzento e deixou a caminhada até o endereço um pouco melancólica. A ventania fria parecia congelar meus pulmões e desajeitava meu cabelo. O tempo indicava chuva. Na livraria, fui recepcionado por um dos funcionários e solicitado a aguardar quando mencionei sobre o encontro. Não demorou muito e outras pessoas começaram a chegar. Logo, Bete apareceu. - Bom dia, você veio! O rápido cumprimento de aperto de mãos foi marcado pelos meus dedos ainda frios devido à caminhada. Só me restou disfarçar com um sorriso. A mulher que demonstrava um comportamento tranquilo de poucas palavras me indicou o trajeto para a sala da reunião. Estendeu o braço apontando com os dedos e disse: - Continue em frente até chegar a uma escada. Suba e será a primeira sala à direita. Sem perder tempo localizei o cômodo e fui o primeiro a chegar. O espaço era grande e iluminado por duas janelas. Nas paredes, prateleiras com livros. A composição daquela sala estava formada por cadeiras posicionadas em círculo que tornavam o ambiente acolhedor. Logo todos os lugares foram ocupados. Após todos sentarem, ficaram evidentes os novatos daquela manhã e antes de iniciar a reunião foi sugerida para cada uma dessas


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pessoas uma rápida identificação. Deixei claro o objetivo da minha visita, tratar sobre o suicídio e os reflexos que envolviam este ato e, portanto, o luto seria um fator fundamental para esta compreensão. Minha intenção com um discurso direto não foi desrespeitar o luto de cada uma daquelas pessoas, principalmente entre as possíveis vítimas de suicídio presentes. - Agradeço a oportunidade de participar. Estou aqui para ouvir. Em seguida, uma moça que estava sentada à minha esquerda se levantou e deu continuidade. - Bom dia, meu nome é Raíssa Ferreira. Sou psicóloga dedicada ao luto. O discurso da jovem revelava o desejo em ajudar pessoas enlutadas. O que chamou atenção foi o momento em que ela disse: - Realizo esse trabalho na minha clínica do luto. Nesse instante fiquei surpreso. Nunca imaginei existir uma clínica do luto na capital sul-mato-grossense. O tema abordado é tratável nas áreas da psicologia e psquiatria e também objeto de estudo apronfundado, mas até o momento não tinha deparado com uma situação tão específica. Após Raíssa concluir sua apresentação, outra moça se apresentou e passou a conduzir a reunião. - Bom dia, para os que não me conhecem meu nome é Carolina. A mulher era uma das duas psicólogas responsáveis por acompanhar todo o período de reunião. As psicólogas administravam o tempo da fala de cada participante e também ofereciam suporte emocional durante os relatos. Carolina, muito educada, agradeceu as apresentações e sem perder tempo iniciou a reunião daquela manhã de 31 de outubro de 2015. A forte chuva marcava o começo dos depoimentos. Os diferentes relatos, histórias e lembranças eram representados pelas mesmas


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lágrimas de saudade. Por trás de cada choro estava o consolo que era manifestado entre todos os participantes por abraços e mensagens de conforto. Todos faziam parte da mesma luta, compreendiam e compartilhavam a mesma dor do luto. Durante toda a reunião, fui um singelo ouvinte. As horas que levaram embora toda aquela manhã, inclusive a chuva, foram simbolizadas pelo apoio coletivo. Os desabafos iniciais carregados de tristeza eram substituídos pela união e sorrisos entre os integrantes. A despedida foi marcada por muito carinho. O momento foi oportuno para me apresentar e iniciar um diálogo com Raíssa. - Oi, tudo bem? Muito interessante sua especialização. Estabelecemos uma conversa, a psicóloga contou um pouco sobre o trabalho que desenvolve com a clínica do luto e também demonstrou curiosidade nas minhas intenções sobre o suicídio. Logo expliquei os motivos em aprofundar esse tema e posteriormente realizei um convite. - Gostaria de conhecer mais sobre a clínica do luto. Você estaria disposta a conversar em outra ocasião? A jovem simpática aceitou e ao me entregar seu cartão de visitas sugeriu que telefonasse na próxima segunda-feira para combinar o melhor horário. Um aperto de mãos selou nossa despedida. Após realizar a ligação, decidimos marcar a conversa para quarta-feira, dia 11 de novembro. O horário era às cinco da tarde, na clínica do luto. Foi fácil chegar ao endereço, o prédio é localizado no centro de Campo Grande. O trânsito intenso do fim de tarde, exigiu atenção dobrada ao atravessar as ruas. O cheiro de fumaça impregnou minhas roupas e me causava constante vontade de espirrar. As manchas de pneu sobre o asfalto e o barulho das buzinas simbolizavam pressa entre os cruzamentos. No local, o porteiro do prédio autorizou minha entrada. Após


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subir as escadas, Raíssa me aguardava na porta da clínica, depois de percorrer o corredor até a entrada. - Boa tarde, pode entrar. - Oi, tudo bem? Com licença. Imediatamente a jovem me direcionou até sua sala, onde sem perder tempo iniciamos a conversa. O espaço era reservado, com apenas uma escrivaninha e duas poltronas estofadas que estavam sobre um tapete peludo de cor marrom. Nos sentamos. Raíssa demonstrava ansiedade enquanto eu esclarecia a proposta da conversa. O comportamento da mulher foi amenizado quando sugeri que falasse um pouco sobre seu trabalho e envolvimento com luto. - Sou psicóloga há seis anos e eu tenho contato com a morte e com os serviços póstumos desde o nascimento, eu trabalho em um grupo funerário que é da minha família. Então desde que eu nasci a minha família já tinha o grupo funerário, já tinha o cemitério e eu sempre vivi nesse meio observando o sofrimento das famílias. Desde o começo da minha formação e da minha faculdade, eu fui me interessando e venho me especializando ao longo do tempo. Apesar de ter outros trabalhos em paralelo, este sempre foi um assunto que me interessou muito. A psicóloga explicou que pessoas enlutadas apresentam características similares em momentos da vida, ações posteriores a acontecimentos traumáticos, relacionadas ao processo de superação do luto. - Depois de um tempo eu vi que não terminava ali. As pessoas ficavam voltando muitos anos no cemitério e às vezes de uma maneira muito intensa, às vezes todos os dias. Levavam livros, levavam coisas e aquilo foi me instigando para entender o que acontecia. Percebi que esses indivíduos precisavam de uma ajuda para o depois, porque existe uma ajuda na hora da morte, mas depois encerra e essas pessoas ficam desamparadas de auxílio.


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Raíssa explicou que o luto é uma resposta normal e esperada. - Tem que haver luto. Quando não há o luto, o luto tardio ou o luto negado, então isso é um problema. O sentimento de luto foi presente entre os relatos da minha jornada. Dor eterna e única. A reação desenvolvida entre as vítimas foi relativa. - Gostaria que você falasse sobre a importância em se trabalhar o luto nas pessoas e também os reflexos que podem existir. - As pessoas têm no inconsciente coletivo que o tempo cura as coisas e o que as pessoas tendem a fazer é não fazer nada e isso se escuta no momento da perda, “O tempo cura, vai passar, daqui a pouco não vai doer tanto”, e não é verdade. Existem pessoas que apesar de muito tempo, a dor ainda continua muito intensa porque o luto está ainda presente de uma forma não evolutiva. Então, primeira coisa, o luto é para sempre. O luto não tem fim, mas o luto pode ser elaborado, resolvido, e a elaboração é como a pessoa funciona. Então, como eu funciono? Como é minha psicodinâmica9? Como eu me relacionava com aquela pessoa que faleceu? Como era a minha vida e como está a minha vida agora? Isso vai ser determinante pra ter uma elaboração saudável do luto. Após um breve respiro, a jovem, agora menos ansiosa, continuou: - Ficar triste todo mundo fica e deve passar por esse período de pesar, de ruptura do vínculo. O adequado é administrar este luto, vivenciar a perda e a dor para aos poucos ir se acostumando a viver essa realidade. A morte da pessoa amada não pode ser mais importante do que foi sua vida. Então, esse é o luto saudável, quando a pessoa consegue viver, apesar dessa dor. Quando a pessoa não consegue isso, podem existir prejuízos. Considerava os argumentos da jovem e refletia sobre o fator do tempo de luto. Sobre essa perspectiva, resolvi direcionar a seguinte questão: Psicodinâmica 9: conjunto de fatores de natureza mental e emocional que motivam o comportamento humano.


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- Existe período estabelecido para se desenvolver ou alcançar esse luto saudável a que você se refere? A postura elegante de sentar da jovem reforçava o carisma de sua personalidade. Raíssa demonstrava muita segurança até o momento, seu raciocínio era instantâneo. - Não, não existe, mas falamos que o primeiro ano é o mais complicado, porque tem uma coisa que se chama reação de aniversário, que é a primeira vez que você vai passar o aniversário da pessoa falecida sem ela, o primeiro natal, o primeiro ano novo ou aniversário de casamento. Esse é o ano mais difícil. Porém, isso não significa que depois de um ano, o luto vai estar resolvido, pode se passar vários anos sem que o luto esteja resolvido. O luto é um processo completamente individual, cada pessoa vai ter uma reação diferente, porque isso depende que tipo de bagagem ela carrega naquele momento da perda. A jovem faz uma pausa, por segundos olha fixamente para o horizonte e retoma: - Então como eu estava falando, “Quem era a pessoa que faleceu? Como era a minha relação com a pessoa que faleceu? Como que foi a morte dessa pessoa que faleceu?”, se estamos falando aqui do suicídio, isso pesa muito no luto. Foi uma morte considerada boa ou uma morte considerada ruim? Nesse momento a conversa que envolvia o sentimento do luto em contexto amplo entra na questão do suicídio. A psicóloga argumentava sobre as interpretações que caracterizam uma morte por autoextermínio e, posteriormente, os reflexos para o luto dessas vítimas. - Temos inconscientemente conceitos de morte, aquela morte que a pessoa morre velhinha, morreu deitada na cama, dormindo. É uma morte boa, porque ela viveu tudo o que tinha que viver e morreu sem sofrimento. E aquela morte que a pessoa morre por suicídio, assaltos, esses acontecimentos trágicos são mortes muito ruins,


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então são coisas que temos mais dificuldade de lidar. Raíssa levantou rapidamente para buscar um copo de água e foi educada ao me oferecer. Agradeci a gentileza e sem perder tempo, realizei outra questão: - Quais os maiores desafios em se trabalhar o luto nas pessoas? A moça ouvia atentamente cada palavra. Após saciar a sede com um gole de água, respondeu: - O desafio é lidar com o que a sociedade pensa, na minha visão. Porque as pessoas recebem muitos conselhos, muitas revalidações do luto. Então, às vezes faz um mês que aconteceu e a pessoa está no mesmo estado de dor e sofrimento. E as pessoas falam: “Não, já tinha que ter passado, está estranho, já passou um mês e ainda está assim”, então o “já” e o “ainda” são expressões que as pessoas usam. A mesma coisa quando a pessoa tem o luto, mas ela passou pelo luto de uma maneira mais seca. Daí começam os comentários: “Nossa, ela já voltou ao trabalho? Já vai fazer uma viagem?”. Então, quando a pessoa chega aqui no consultório está com muita culpa, muita revalidação daquele luto, muitas pessoas acham muita coisa sobre aquela situação e ela acaba confrontando os próprios sentimentos. A jovem interrompe o raciocínio para beber outro gole de água, em seguida retoma: - Então o maior desafio é revalidar o sentimento que aquela pessoa tem. É ok você querer viajar depois de ter perdido alguém e é ok você também não querer fazer nada porque é muito individual o sentimento. A pessoa tem o direito e deve manifestar o que ela realmente está sentindo naquele momento, sem o julgamento da sociedade. O paciente fica numa briga porque as pessoas não esperam aquele comportamento dele naquele momento ou as pessoas esperavam um pouquinho mais. Quando a pessoa não chora no velório, dizem: “Nossa, ele nem liga, não amava” e quando chora demais, falam: “Nossa, essa pessoa está exagerando. Ela está


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descontrolada. Vamos dar um remédio. Será que não seria melhor internar em uma clínica para passar uns dias?”. As pessoas revalidam e julgam o que as outras pessoas pensam e quando os enlutados chegam ao consultório, estão com um sofrimento ainda maior que o luto, justamente pelo julgamento da sociedade. - Veio-me na lembrança uma citação que marcou algumas leituras. Em uma das passagens do livro Viver é a melhor opção, de André Trigueiro, existem os relatos: “Ninguém, depois da morte de um ente querido, saí bailando”; em seguida, o complemento “se isso acontecer é algo que merece atenção e é perigoso”. Esse conteúdo está relacionado a casos de suicídio. Por que isso é perigoso? Por que merece atenção? - Existe um luto tardio que é um luto um pouco mais complicado. Acontece quando a pessoa não apresenta reação nenhuma no momento da perda. Se ela reage como se nada tivesse acontecido ou fica a ponto de sair bailando, isso pode trazer consequências graves futuramente. O luto tardio já é considerado luto patológico, a pessoa não vivencia naquele momento, ela nega e depois começa a ter vários sintomas complexos, que são todos os sintomas físicos e emocionais. Depois de ter a negação, ela tem a aceitação. Isso acontece um tempo depois, talvez demore anos ou meses para essa reação. E aí dificilmente alguém vai falar: “É um luto tardio”. Raíssa explicou que as pessoas que negam e não vivenciam o luto desenvolvem reações individuais e isso pode desencadear alguma doença psiquiátrica. Mesmo as respostas sendo esclarecedoras, a intenção era relacionar o luto com o suicídio. - Existiriam características distintas para esse processo em casos de autoextermínio? O enlutado que apresenta esse perfil deve desenvolver um trabalho de superação? - O luto pelo suicídio deixa muita culpa e também é um pouco da linguagem do suicida culpabilizar as pessoas sobreviventes. En-


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tão, quando a pessoa enlutada tem uma perda por suicídio, ela não tem um suporte social, porque as pessoas rechaçam este tipo de morte, é uma vergonha pra família. A sociedade entende que existe um erro, uma omissão e alguém tem de ser culpado por aquela pessoa que tentou cometer o suicídio. Existe um abandono social nesses casos. Muitas vezes o suicida deixa cartas, bilhetes, mensagens, direcionando e culpando alguém pelos motivos de ter feito aquilo. Às vezes o suicida não deixa nada, então é um segredo. Quando a morte envolve segredo e vergonha social, isso é muito mais complexo. A pessoa não tem oportunidade de elaborar um luto saudável. Nesses casos, os enlutados ficam num estado mais precário e patológico. Todos deveriam ser assistidos e ter suporte tanto psicológico quanto social, inclusive pelas políticas públicas. Para a psicóloga, esses enlutados sofrem com a morte abrupta, que não estava anunciada. Nessas situações a família entra em colapso e o choque do trauma é maior. Nos casos de suicídio, existem outras questões envolvidas como, por exemplo, a culpa que reflete desde o âmbito familiar até a esfera social. - As pessoas querem achar um culpado. Então a esposa pode culpar o esposo, ou vice-versa e os filhos podem culpar os pais. A sociedade vai procurar quem foi omisso, quem foi culpado, eles tendem a rechaçar a vítima que praticou, colocando-a como culpada ou inocente. A morte por suicídio deixa muitos questionamentos. A ansiedade de Raíssa retornava. Discretamente, a jovem começou a monitorar o hórario pelo seu celular, mas isso não impediu que continuassemos a conversa. - Você poderia falar sobre as etapas que envolvem o tratamento na clínica? - Entendemos hoje que existe um modelo dual de comportamento, suas fases se alternam como se fosse as ondas do mar, o luto vem e vai. Então esse modelo dual é orientado para perda e


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restauração. E o que significa isso? Uma pessoa que está afetada pela perda, está pensando na dor, no sofrimento, em tudo que perdeu, onde que o ente querido está, “por que isso aconteceu comigo?”, toda essa frustação e sentimentos pesados podem causar prejuízo na vida da pessoa. Quando a pessoa está orientada para a restauração, pensa em projetos futuros, “ela morreu como pessoa, mas ela tá viva dentro de mim, ficaram boas lembranças, consigo levar minha vida hoje, me sinto alegre e feliz apesar da perda”. Esses dois modelos estão presentes o tempo todo na vida do enlutado. Às vezes ela está super bem e orientada para a restauração e de repente acontece algum fato, acha uma foto, uma carta, algum recado que não tinha visto ainda e a partir daí faz uma orientação para a perda. De repente o interfone toca. Raíssa se levanta rapidamente e diz: - Desculpe-me, é que agora eu tenho um paciente. Vou recebê-lo, só um minuto. Toda ansiedade fora justificada. Após alguns minutos, a moça retornou com a respiração ofegante e sorrindo retomou a questão: - Então, existem duas fases que elas se alternam o tempo todo. A pessoa vive no movimento de vai e volta para essas fases. Quando ela fica mais tempo orientada para a restauração, dá continuidade a sua vida e consegue evoluir. Mas nada impede que ela fique orientada para a perda. A concentração de Raíssa estava dividida, a preocupação para atender o paciente no horário agendado mostrava ser prioridade. No entanto, a moça decidiu continuar a conversa. Sem desperdiçar o tempo, perguntei: - Existe faixa etária de maior demanda nos atendimentos da clínica do luto? - Sim, mulheres por volta dos 30 anos. São as pessoas que mais buscam tratamento.


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Mesmo sentada, o nervosismo de Raíssa era evidente. A jovem cruzava e descruzava as pernas constantemente. O tempo estava acabando e eu continuava a perguntar. - Além do tratamento psicológico para superação do luto em casos de suicídio, pode ter algum aspecto religioso que contribua nessa situação? O sorriso de Raíssa ganhava traços de tensão, a pressa agora refletia em respostas objetivas. - Eu não diria religioso, mas espiritual. A espiritualidade é o que traz consolo e conforto para as pessoas, então é muito importante no tratamento do luto. Quando tentamos entender cientificamente o que aconteceu, isso não consola a pessoa. Agora, a espiritualidade, dependendo da religião, vai explicar pra onde essa pessoa foi. A espiritualidade é o que transcende a matéria. Mesmo tomada pelo desconforto, Raíssa não abandona a simpatia. - Pessoas que cometem suicídio querem comunicar o quê? - Na minha opinião, elas estão pedindo ajuda e querem comunicar que estão em um sofrimento muito profundo e que precisam ser ajudadas. Elas também querem mostrar que não encontraram suporte e ajuda o suficiente para reverter o estado de desespero. O fim da conversa devolveu a tranquilidade para moça e, por fim, nos despedimos.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim. Fernando Pessoa



V Fuga do Labirinto



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Retomada Fugir do labirinto é desistir do medo e retomar um caminho cheio de luz. Júlio e Marlene foram dois exemplos relatados neste livro que conseguiram superar a ameaça suicida de formas diferentes, mas com algo em comum: o apoio. - Eu pensei no suicídio de uma forma racional. Chega uma parte da vida em que a pessoa se vê desesperada, com medo, preocupada e isso é comum. Acho que cada pessoa tem o seu limite. Acredito até que todas pensam nisso, poucas realizam. “Poucas”, né? Cheguei em um momento da vida que eram tantas coisas acontecendo que eu disse: “Poxa, eu não quero mais dar conta disso, eu não quero fazer isso” pois é mais fácil desistir do que encarar. Eu pensava: “É realmente uma saída” e tive sorte de ter a família perto, mas muitas pessoas não têm – recorda Júlio. A ideação suicida de Júlio teve duração de três meses, aconteceu entre março e junho de 2015. Neste período, além da depressão, ele sofreu com crises de transtorno bipolar que agravaram seu emocional. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% dos casos de suicídios estão vinculados à doenças mentais. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) afirma que 15% das pessoas que sofrem de transtorno bipolar cometem autoextermínio. O trabalho de recuperação teve início quando o jovem chegou ao fundo do poço. A situação ficava cada vez mais evidente, os familiares inicialmente optaram por um procedimento de recuperação inadequado para este tipo de caso, recorda Júlio: - Eles acharam que podiam me ajudar sozinhos... ficar em casa, descansar. Entretanto, somente o suporte familiar não era suficiente para melhorar a situação. Logo, a atitude materna foi buscar ajuda do amigo e professor capelão Reis.


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- A minha mãe conhecia o capelão Reis, tinha feito um curso com ele. Então, para chegar até ele não foi complicado. Mas eu acredito que outras pessoas não tenham essa facilidade e muito menos a vontade de querer superar o sofrimento. Realmente foi muito difícil. Reis iniciou o processo de recuperação do jovem, que durou meses e envolveu a ajuda de psicólogos, psiquiatras e apoio familiar. - Cheguei até a ficar internado por um tempo para descansar e tentar me acalmar um pouco. Eles me levavam para todos os lugares, não me deixavam ficar só, porque ficar sozinho neste momento é muito difícil. Você literalmente fica arquitetando como vai ser. Foi difícil, bem difícil mesmo. Júlio relatou que sua maior dificuldade foi aceitar ajuda e reconhecer que não estava bem. - Achava que não estava errado e pensava: “Não tem jeito pra mim. Já deu”. Acredito que a minha família me fez ver que eu realmente estava errado. Tive a sorte de mesmo contrariado receber ajuda. Com apoio da família e tratamento profissional, o jovem se reestabeleceu. A retomada de sua rotina preencheu o seu tempo e o ajudou a tirar o foco do suicídio. Falar sobre o problema inicialmente foi um desafio, que posteriormente se tornou exercício terapêutico fundamental para sua recuperação. - A parte de exteriorizar é muito importante. Falar para a família, para um psicólogo, capelão, padre ou pastor. Colocar pra fora o que você está sentindo, isso ajuda ver outras perspectivas, porque naquele momento você está focado no suicídio e acredita que aquela é a única saída. Acho que a conversa é o ponto chave para você começar a sair dessa situação. Tento me focar mais nos estudos, praticar esportes, estar na internet lendo alguma coisa, conversando com alguém, porque quem já passou por isso fica com um pé atrás, com medo de passar de novo.


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Mesmo estável, o jovem reconhece que é necessário manter o tratamento e estar sempre vigilante com sua saúde mental. A depressão é uma doença que pode se manifestar por meio de múltiplos fatores. - Ainda estou em uma fase depressiva que necessita de cuidados. Mantenho tratamento, tomo remédios para dormir e antidepressivos. Não posso ficar nem muito deprimido nem muito eufórico. Além do tratamento e atenção constante com a saúde, Júlio encontrou na família e no lazer a oportunidade de recomeçar. - Gosto de jogar futebol, saio bastante com a minha esposa, fico bastante na casa da minha família. Sou casado e moro em outra casa, mas sempre passo por aqui para dar um beijo na vó, tomar um café, conversar com a mãe, a irmã e o padrasto. Sempre estar perto deles para continuar caminhando, né? Quem já passou e viveu isso fica marcado, não de forma ruim, mas você fica se policiando, porque sabe que pode passar por uma nova depressão, então tem que ficar se cuidando.

Uma ferida na alma não se cura do dia para a noite. As dores que a alma sente exigem cuidados para que o pus das angústias e sofrimentos humanos não voltem a se manifestar e machucar. Patrick Alif



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Ação - Eu consegui reverter tudo isso pelos meus filhos, porque eu tive uma responsabilidade maior, tinha que ser o exemplo. Tinha que cuidar deles até a hora que eu pudesse. Não poderia estar mais pensando nisso porque eles iriam se revoltar contra mim se eu tirasse a vida do pai deles. Comecei então a pensar outras coisas. E com a experiência que eu tive no Grupo de Amor à Vida (GAV), fui enxergando: “Meu Deus, eu não tenho problema nenhum em relação a essas pessoas que ligam aqui”. Após completar um ano em Campo Grande e voltar a morar com os filhos, Marlene foi convidada por um amigo a conhecer o trabalho do GAV. A iniciativa de amparo daquele grupo contemplou a mulher, que decidiu se tornar voluntária. As ligações diárias de desabafos compartilhavam dezenas de histórias tristes, recheadas por puro sofrimento anônimo. Marlene recorda que teve um início difícil, onde ouviu relatos impactantes e cogitou desistir. - Quando comecei a participar do GAV eu dizia: “Magina, isso aqui não é pra mim não”, ainda mais depois que recebi uma ligação referente a suicídio que a pessoa falava: “Só estou ligando para avisar que vocês me ajudaram muito, mas eu não quero continuar vivendo”. Entrei em pânico e disse que nunca mais voltaria ali. Após esse episódio, a coordenadora do grupo buscou convencer Marlene a mudar de ideia, argumentando que aquele tipo de situação fazia parte da ação voluntária. No entanto, por três vezes, a mulher pensou em desistir e veio pessoalmente à sede do GAV comunicar sua decisão. - Hoje eu só vim para comunicar que é meu último dia. Segundo Marlene, a coordenadora respondia: - Você não vai voltar mais, mas você veio. Você não veio à toa. Vou ficar com você nas ligações que atender hoje. Mesmo incomodada, Marlene voltou a atender algumas liga-


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ções, supervisionada pela coordenadora do grupo. No entanto, quando se deparava novamente com os dramas alheios, se sentia-se mal e voltava a dizer: - Eu vou embora, isso aqui não é pra mim, eu não quero ficar aqui ouvindo essas pessoas falarem coisas absurdas. Não posso falar nada, só tenho que ficar aqui ouvindo. Como vou interagir com a pessoa sem dar conselhos? Tenho que ajudar! Não posso deixar a pessoa se matar, tenho que impedir. Mesmo pensando em desistir da ação, Marlene percebeu que após integrar a equipe de voluntários do GAV, a sua relação familiar melhorou. - Eu parava e analisava: “Eu estou aprendendo muito, estou aprendendo a lidar melhor com meus filhos e também com a minha mãe”. Quando pensava nisso, eu sempre mudava de ideia e não desistia. Após superar este período de adaptação do GAV, Marlene acreditou que havia mudado completamente, mas, ao longo do tempo, percebeu que precisava estar em um constante aprimoramento para se tornar uma pessoa melhor. - Logo que entrei no GAV, já achava ser outra pessoa. Mas na verdade eu não tinha mudado nada, tinha muita coisa de ruim ainda. Hoje considero que não estou completamente mudada. O acúmulo de experiência no GAV também proporcionou a Marlene o aprendizado do “ouvir mais do que falar”. A ação voluntária não tem julgamentos e proporciona alívio das angústias daquelas pessoas. Isso faz a diferença. - Esse serviço voluntário ajuda muito as pessoas que ligam pra desabafar, porquê? Quando fala, ela tira de dentro aquilo que está machucando, que está magoando. Mas aí é a hora de ter alguém da família pra estar presente e nunca deixar a pessoa sozinha, eu acredito nisso. É bom sempre ter alguém por perto e não pense que não vai acontecer, pode acontecer.


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Marlene alerta também sobre as pequenas mudanças nas pessoas que estão ao nosso redor. Mesmo que sutis, em algumas situações podem significar grandes dores, por isso não podem ser desconsideradas. Colocar os ouvidos à disposição é proporcionar uma oportunidade de desabafo para as pessoas. - Ao observar uma mudancinha que seja no comportamento dos nossos parentes ou amigos, o nosso papel é chegar e perguntar: “Você gostaria de conversar?”. Isso pode evitar muita coisa, como o suicídio ou outros problemas dentro de casa. Ao final da conversa, a impressão que tive foi que Marlene inverteu seu papel, passando de ouvinte a emissora, compartilhando comigo as suas angústias. A minha presença para ela naquele momento transcendia a de um mero repórter. Ao praticar o simples exercício da escuta, fui um consolo ao menos momentâneo para as dores que aquela voluntária do GAV ainda carregava na alma como fardo do seu passado. - Às vezes o que falo dá angústia. Mas depois do desabafo é um alívio. Estou aliviada e acho que valeu a pena tudo isso.

Quando não houver caminho Mesmo sem amor, sem direção A sós ninguém está sozinho É caminhando que se faz o caminho. Quando não houver desejo Quando não restar nem mesmo a dor Ainda há de haver desejo Em cada um de nós, aonde Deus colocou... Titãs - Composição: Sérgio Britto



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Reação - Ela iria morar com meu pai, com minha irmã e minha mãe. Na época eu não morava com eles. Meu pai tinha até reservado um quarto para ela (Miriam). Como eu fazia estágio perto da casa dela, sempre a visitava. Foi a última vez que eu a vi viva. Ela estava incrivelmente bem, sorridente e eu dizia: “Vovó, você vai ficar bem. A senhora vai morar conosco, vou ver a senhora todo dia, você vai sair logo dessa, vem cá então e me dá um abraço da felicidade”. As últimas lembranças de Carina em relação à avó acompanhavam um enorme sorriso e pequenas lágrimas que escorriam pelas bochechas rosadas. Memórias recheadas de esperança e frustração. - Muitas coisas que aconteceram na minha vida são reflexos dessa situação. Muitas coisas mesmo. O suicídio de Miriam afetou e ainda afetava aquela família. As cicatrizes apareceram com o tempo. Os relatos de Hannah revelavam alguns desses sintomas. - Meu pai entrou em um quadro depressivo, que acho que já tinha tendência e até hoje fica mal. Às vezes conversamos e ele fala o quanto sente falta dela, porque achamos que ele a ajudava, fazendo os favores, mas no fundo era ela que ajudava todos nós. Somente agora, depois de dois anos, que ele está começando a melhorar. A jovem tentava segurar o choro com pequenas pausas entre longos suspiros. Mas as emoções eram mais fortes. - Minha mãe também ficou mal uma época e se culpou bastante pelo egoísmo de não perceber que a minha avó estava precisando da gente, que estava doente, de ter pensado só nela. Ela ficou se sentindo culpada, porque, talvez, se ela tivesse agido diferente, nada teria acontecido. O divórcio dos pais foi outro fator motivado pelo suicídio de Miriam. Hannah explicou que a avó era responsável por sempre intermediar as discussões do casal. “Todas as vezes que eles tinham


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alguma crise, recorriam à ela. Ela sentava, conversava e tudo se resolvia. Sempre foi assim”. Para a jovem, se a avó estivesse viva os pais não tinham se separado. O choro era evidente no rosto de Hannah, sem disfarçar a voz trêmula afirmou: - A Carina amadureceu muito, ela era rebelde, não acreditava em Deus. Nossa, era demais. Espontaneamente Carina completou: - A falta dela me fez dar valor às coisas, sinceramente. Carina declarou que a morte da avó foi a pior perda de sua vida. A jovem, que apresentava comportamento impulsivo, agora tinha olhar cabisbaixo e postura curvada. Neste momento compartilhou seu drama: - Eu fiquei muito mal com a morte da minha avó. Só que foi gradativo meu mal, não foi do nada assim, né! No começo eu não acreditava, tanto é que eu fiquei muito brava com a minha irmã e com a minha mãe, quando elas falaram que minha vó tinha se matado. Falei: “Vocês estão brincando, não pode falar isso não, como falam um negócio desse?”. Eu não aceitava, não queria acreditar. Até hoje ainda tenho reflexos disso porque, por exemplo, todo aniversário ela me ligava e eu falava: “Olha, a vó já me ligou, lembrou de mim”. Ela me falava coisas boas, aí chegou meu aniversário e meu telefone não tocou. Sinto saudades. O fim de tarde se transformou em noite, após Hannah se recompor das lágrimas e ouvir atentamente o relato de sua irmã, disse: - Quando penso na minha vó, só penso coisa boa e tento conversar com meu pai e não ficar lamentando. Não adianta a gente querer ficar procurando explicação, ficar botando culpa porque não vai trazer ela de volta. Pra quê ficar se martirizando, sabe? Oro por ela onde quer que esteja, ela sabe o quanto a gente a ama. A minha vó foi responsável por muitos momentos bons, por muito aprendizado. Então, eu lembro dela com muito amor, com muito carinho. As irmãs se envolveram por um olhar mútuo de compaixão.


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A cicatriz do passado, o tempo nĂŁo apagarĂĄ. Mas a dor da ferida, certamente cessarĂĄ. Patrick Alif



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A pauta suicídio A preguiça após o almoço era dominante, o silêncio da sala vazia me fez cochilar por minutos. Estava quase no horário da aula e minhas únicas companhias eram os vorazes pernilongos. Logo, a chegada dos colegas despertou meu intenso sono, quando comentaram o fato: - Vocês viram? Tem uma mulher na torre do morenão. Levantei a cabeça para entender melhor. Nunca tinha escutado algo parecido e não demorou para aquele fato protagonizar o debate da sala. - Uma mulher subiu na torre do morenão e quer pular. Os bombeiros estão tentando impedir. A imprensa está lá também. A chegada do professor desviou os comentários da situação, mesmo demonstrando espanto, preferiu iniciar a aula. - Boa tarde pessoal, silêncio. Vamos começar. Aquele fato ficou na minha cabeça. No final da aula já havia sido publicado uma matéria e também várias fotos. Quinta-feira, 25 de setembro de 2014. No dia seguinte, pouco se falou sobre a situação. O interessante para todos foi somente o momento do fato e os comentários da web que eram sensacionalistas e ignorantes para aquele ato. A reta final do semestre estava puxada, ao contrário do que muitos pensam, acadêmicos de jornalismo estudam bastante. Reportagens, gravações e muitas notícias. No dia primeiro de dezembro, na cidade de Campo Grande (MS), o estádio Pedro Pedrossian, popularmente conhecido como Morenão, era novamente protagonista de uma tentativa de suicídio. Quinze dias depois, outro homem tentaria o ato. Algo estava errado. Meses depois fiz minha escolha. O tema de meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) seria o suicídio. Decidi falar sobre isso,


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pois ninguém esboçava essa intenção. A grande maioria estava disposta somente a criticar ou simplesmente ignorar. Com o início de 2015, comecei a pesquisar sobre o tema. Em fevereiro do mesmo ano, dei início à minha pesquisa e a partir desse momento, ao entrar em contato com profissionais e ter acesso a algumas bibliografias, pude estruturar meus objetivos nesta jornada. Um dos fatores que decidi aprofundar foi a relação do suicídio com a imprensa. A motivação surgiu a partir das várias matérias que analisei em websites da capital. Nesses portais me deparei com um padrão editorial que apresentava algumas características equivocadas com base no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e também no Manual de Prevenção ao Suicídio para Profissionais da Mídia, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O desejo era analisar o posicionamento da imprensa sobre conteúdos que envolvem o autoextermínio. Entretanto, seria impossível realizar esta apuração somente no prazo de um ano e muito menos generalizar a pesquisa. Neste aspecto, optei pelo recorte sobre a formação acadêmica. Algumas publicações sobre o suicídio na imprensa foram produções de formandos e veteranos do curso de jornalismo da UFMS. Portanto seria interessante explorar o tema desde a formação do aluno por meio de debates e exercícios éticos? A alternativa para essa reflexão foi procurar Marcos Paulo da Silva, coordenador e professor do curso de Jornalismo da UFMS. A preocupação inicial de Marcos foi esclarecer a respeito da inserção precoce dos estudantes locais no mercado de trabalho. - Eu vejo que os estudantes entram de forma prematura no mercado de trabalho, muitas vezes antes do final da formação universitária e esse é um fator que pode ocasionar equívocos individuais. Se fizermos uma metáfora com o jogo de forças entre mercado e universidade como se fossem vetores, vê que antes da conclusão do vetor universitário tem um vetor contrário que é o mercadológico.


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Do ponto de vista pedagógico, isso é bastante sério. Muitas vezes, essa situação sobrevaloriza a técnica e inibe a formação. No curso de jornalismo da UFMS, a disciplina de Legislação e Ética Jornalística estuda o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Dentro dele, casos de suicídios podem ser debatidos. No entanto, para Marcos, essa não é a única disciplina do curso que permite a inserção do tema. - Além de Legislação e Ética, acho que esse tipo de assunto pode perpassar também as disciplinas do curso que incentivam a técnica a partir de um diálogo com a ética, tentando fazer essa leitura ampla desde a confecção da pauta e debatendo esse tema em todas as etapas da produção jornalística. Nas aulas poderiam questionar: “Como vamos construir a cobertura do caso X de suicídio?”. Aqui também temos uma iniciativa de fazer diálogos entre as disciplinas quando possível. Nesses casos, a situação permite que o assunto seja trabalhado, pois os alunos, futuros jornalistas, certamente irão lidar com isso no mercado de trabalho. O suicídio é um tema melindroso no exercício da atividade jornalística. Na opinião de Marcos, a mídia de Campo Grande, em determinadas situações, trata o tema de maneira superficial. - A imprensa campo-grandense cobre o suicídio na sua singularidade. Isso é crítico e é reflexo da rotina profissional, o cotidiano do jornalista que tem pouco tempo para refletir sobre o assunto. Durante a conversa, Marcos reforçou a sua opinião em torno de uma reflexão do pesquisador em jornalismo Adelmo Genro Filho, feita na década de 80. Nela, o autor sugere aos jornalistas que entendam o contexto que está por trás de um simples fato. - Você deve sair do singular ou particular e ir para o contexto que determinado fato está inserido. Tentar entender o que está por trás daquilo. O aluno deve fazer esse exercício também. Esse é o meu modo de ver. O jornalista deve entender esse tipo de pauta não em seu fenômeno singular, mas ancorada no fenômeno estrutural.


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O jornalismo enquanto profissão perpassa três pilares: as esferas da técnica, da ética e da estética. Essas três esferas estão vinculadas, embora em alguns momentos uma se valorize mais em detrimento de outra. - A supervalorização da técnica é presente em determinados momentos. Não adianta, por exemplo, o acadêmico decorar o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros se isso não fizer sentido profissional e individual. A ética deve estar presente em todos os tipos de debate, inclusive para os casos de suicídio. Quando questionei o professor sobre a utilização do suicídio como tema para as aulas, ele expressou um incômodo e admitiu a ausência do assunto em seu planejamento. - Confesso que não me lembro de ter trabalhado o suicídio dentro do contexto jornalístico com meus alunos. Mas também confesso que essa provocação é interessante de acordo com aquilo que a pesquisadora Cremilda Medina propõe para uma entrevista, onde o entrevistado e o entrevistador saem transformados e incomodados. Sair de uma entrevista como essa me incomoda e leva-me a pensar em questões que eu possa implementar. Vocês me levaram a refletir sobre isso. Após a entrevista com Marcos, vi a necessidade de um diálogo com um jornalista que tivesse experiência com o tema. Coincidentemente, naquele mesmo mês, tomei conhecimento do livro Viver é a melhor opção, do também jornalista André Trigueiro. Sabia que se tratava de um profissional conhecido, além de apresentador de uma emissora de TV. Enviei um e-mail para a assessoria do profissional para verificar a possibilidade de uma entrevista. Logo, obtive a resposta que a única forma para o contato seria a ligação telefônica. A entrevista foi agendada, o tempo era curto, assim como os créditos de meu celular naquela manhã do dia 13 de novembro de 2015. André conversava comigo pelo seu celular, a caminho do tra-


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balho, por isso, optei apenas por questões que considero essenciais quando o tema é pautado. Sem perder tempo, quando iniciamos a conversa, questionei André: - O que é necessário para os jornalistas trabalharem o suicídio de modo correto? - Estar bem informado e ter fontes seguras, com credibilidade, como por exemplo, a Organização Mundial de Saúde e o Ministério da Saúde. O jornalista deve saber também o que dizem os especialistas sobre o papel da comunicação. Não é possível trabalhar qualquer doença ou morbidade sem informação, e isso também vale pra suicídio. Temos uma função social no jornalismo que é informar como as pessoas podem ter saúde, como as pessoas devem proceder quando estão sob ameaças de algum tipo de problema, como é que você busca ajuda e apoio naquilo. O tema suicídio ainda é um tabu na imprensa. Algumas redações de jornais se sustentam com o paradigma conhecido como Efeito Werther. Trata-se de uma justificativa para não divulgar casos de suicídios. A teoria é referente ao romance Os sofrimentos do jovem Werther, escrito por Johann Wolfgang von Goethe e publicado em 1774. O protagonista da história comete suicídio com um tiro na cabeça devido a um amor mal correspondido. Após a publicação da obra, uma onda de suicídios começou a se disseminar no continente europeu e inúmeros jovens cometeram o ato usando o mesmo método. Isto resultou na proibição do livro em diversos lugares. Portanto, independente do conhecimento e instrução do profissional, ainda existe o receio de publicar esse tipo de conteúdo. No entanto, André ressaltou que o jornalista não deve brigar com a notícia, mas sim reportar o suicídio com precauções, tomando os devidos cuidados, seguindo um manual já estabelecido internacionalmente. Devem ser criadas ações mais direcionadas ao âmbito nacional.


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- Existe uma forma de se falar sobre isso sem derivar para o sensacionalismo barato. Defendo que a gente produza um manual dirigido à profissionais de imprensa que instrua como deveria ser a abordagem do suicídio à luz do Manual da Organização Mundial de Saúde sobre prevenção ao suicídio direcionado a profissionais da mídia divulgado no ano 2000. Poderíamos fazer algo mais ajustado à realidade brasileira, essa é uma boa ideia. Acho que você deve ter um manual, dar divulgação a ele e a partir dele promover debates e seminários. Na opinião do jornalista, seria interessante realizar discussões em torno do suicídio em assembleias e fóruns que debatem ética no jornalismo. No entanto, necessita-se de tempo para imbricar nas rotinas jornalísticas um procedimento correto na abordagem deste assunto. - Precisamos de um novo modelo de cobertura para este tema, mas isso faz parte de uma mudança de cultura e esse tipo de mudança não acontece por decreto, não se muda isso de forma imediata e automática. Então, temos que dar tempo ao tempo. Mesmo com as dificuldades em torno de um tema tabu como o suicídio, André finalizou a entrevista observando que durante o ano de 2015 houve um avanço positivo por parte da imprensa brasileira que passou a trabalhar com mais frequência o tema dentro da pauta jornalística e também ações foram desenvolvidas por órgãos e empresas em nível nacional. Com ações preventivas no mês de setembro, o Setembro Amarelo, por exemplo, é uma mobilização que conta com o apoio de entidades médicas e da Associação Internacional de Prevenção ao Suicídio (IASP). O objetivo é utilizar a cor amarela como alerta para a sociedade, apontando o suicídio como um problema de saúde pública que pode ser evitado. - Há um processo em andamento que tenta desconstruir a cultura prevalente do tabu e abrir caminhos do tema suicídio em


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diversas frentes e segmentos. Já estivemos em situação pior. Na minha opinião, o ano de 2015 foi um divisor de águas. A campanha Setembro Amarelo foi muito bem sucedida, com a iluminação com a cor amarela do Cristo Redentor, do Palácio do Planalto e de vários monumentos no Brasil, como o estádio Beira Rio em Porto Alegre. Vários suplementos especiais, textos, artigos, colunas e redes voltadas a esse assunto foram criados. Eu sinceramente não me lembro de um ano como esse em 16 anos de pesquisa sobre o assunto. Acho que estamos em um caminho interessante.

Ser um alto falante da verdade é dar voz a quem é calado pela indiferença coletiva. Patrick Alif



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Unidos por uma causa Naquela manhã chuvosa em que eu conversava com o voluntário do GAV Roberto Sinai, um de seus relatos trouxe uma informação muito valiosa. A partir do mês de agosto de 2015 aconteceria o I Curso de Prevenção ao Suicídio do Brasil. Ao saber do fato, liguei para o professor Reis, que estava organizando o curso e então pude manifestar o interesse em participar. Ele orientou-me a preencher um cadastro de matrículas e enviar para suas secretárias juntamente com o meu currículo lattes. No começo de julho daquele ano, recebi o e-mail de aceite informando sobre a data de início do curso. A primeira aula que frequentei foi no dia 6 de agosto de 2015. As aulas aconteciam em período noturno, às terças e quartas-feiras, das sete às dez da noite. Logo na primeira aula, notei a presença de vários profissionais pertencentes à área da saúde, como enfermeiras e psicólogos. Mas também haviam advogados, bombeiros, assistentes sociais, jornalistas, agentes penitenciários, empresários, policiais, entre outros. Foi uma experiência única, que reuniu várias opiniões sobre o tema, além do conteúdo apresentado. O curso contou com a presença de representantes de alguns órgãos importantes que já foram mencionados neste livro, como Emerson Leite, do Projeto Labirinto, e Roberto Sinai, do GAV, além de ter a participação especial do Major Wagner, do BOPE, por duas aulas, explicando os procedimentos técnicos da instituição sobre negociações que envolvem as tentativas de suicídios. Liderado pelo capelão Reis, os alunos que integravam o curso eram de áreas diferentes. Desenvolveram uma integração, que mobilizou e promoveu alguns movimentos em prol da causa, como intervenções em semáforos, confecção em faixas, além de seminários em escolas e universidades.


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Depois de participar do curso, de realizar pesquisas e de obter vários relatos, pude concluir que todas as ações feitas para a prevenção de atos suicidas são válidas. Para combater esta guerra invisível deve existir a união e a interação entre diferentes setores da sociedade, além de religiões e profissões. Durante o I Curso de Prevenção ao Suicídio do Brasil notei ser possível que diferentes áreas trabalhem juntas em prol de uma causa. Exemplos citados como o Grupo de Apoio Espiritual a Pessoas Enlutadas (GAEPE) proveniente da Doutrina Espírita, o Centro de Valorização da Vida (CVV), representado na capital sul-mato-grossense pelo Grupo de Amor à Vida (GAV), o Projeto Labirinto e também novas iniciativas que descobri ao longo da minha jornada, como o trabalho desenvolvido na Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de Campo Grande, que possui o apoio de 18 psicólogos e atende pessoas de todas as faixas etárias gratuitamente na comunidade. Na última aula do curso, Reis designou funções a alguns alunos que participaram do curso para iniciar o projeto da Associação Sul-Mato-Grossense de Prevenção ao Suicídio. A intenção em criar uma organização que representesse o estado em ações que envolvem a prevenção ao suicídio, como mobilizações, eventos, esclarecimentos sobre o tema e arrecadação de recursos. Por essas e outras ações, o ano de 2015 foi realmente muito produtivo nesta causa. Com essa união de forças e a partir dessa estrutura, os anos seguintes sinalizam uma perspectiva muito promissora em relação à prevenção do autoextermínio na capital sul-mato-grossense, no estado e no Brasil. A árvore da integração, frutifica cooperação. Com um sopro ao vento, sementes caem no terreno e reflorestam de amor, os corações necessitados. Patrick Alif






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