Amor em Dose Dupla Quais são as facilidades e virtudes da adoção LGBT Henrique e Fernando* conheceram seus filhos na manhã de uma quinta-feira. Eles saíram de Porto Alegre para enfrentar uma viagem de sete horas pela BR386, com destino a uma cidade do interior do noroeste rio-grandense. Lá, o casal encontrou os irmãos Gabriel e Lucas*, que estavam em um abrigo pela terceira vez. O biólogo Henrique, 32 anos, vem de uma família com histórico de adoções e desde jovem tinha certeza de que queria ser pai. Fernando, economista, é nove anos mais velho que seu marido e só sentiu vontade de adotar depois do depoimento de um amigo que se arrependeu de não ter filhos enquanto podia. À primeira vista, o abrigo parecia aconchegante. Os beliches estavam arrumados; as refeições, bem servidas; e os cômodos da casa, impecáveis. As crianças, por outro lado, tinham aspecto magro e cabelo mal cortado. A última vez que tiveram contato com sua família biológica havia sido oito meses antes. Em agosto de 2015, o Conselho Tutelar tirou a guarda do pai por capotar seu carro, que dirigia embriagado com os filhos no banco traseiro. Desde que Gabriel e Lucas tinham, respectivamente, um e dois anos, eram levados ao abrigo da cidade. Na primeira ida, foram entregues pela mãe, que os abandonou. Mesmo tentando recuperar seus filhos, o pai perdia sucessivamente o poder familiar em função de seu vício com álcool e drogas. Só no dia 7 de abril, aos cinco e sete anos, as crianças encontraram um novo lar. Quando o casal chegou, tomou café da manhã com os meninos. Depois de passar a noite na estrada, Henrique e Fernando dedicaram o dia seguinte para conhecer os futuros membros da família. “Foi horrível. São dois estranhos de um lado, conhecendo dois estranhos de outro. Eles estão receosos, olhando de canto, afinal, foram abandonados”, conta Henrique. Por volta das 13h, levaram as crianças para cortar o cabelo. Na volta, a juíza concedeu uma autorização de viagem por quatro dias. Aquela era a primeira vez que um casal homoafetivo adotava no município.
O processo de adoção iniciou em agosto de 2014, quando o casal fez a petição de entrada nos cadastros locais e nacionais de pretendentes. Demorou um ano até juntar todos os documentos obrigatórios e passar pelas avaliações psicossociais da Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. Inicialmente, o perfil criado por Henrique e Fernando considerava apenas crianças de zero a três anos. Eles ficaram cerca de meio ano aguardando a vez no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Foi aí que uma amiga comentou sobre a facilidade de adotar no interior do Estado. O casal foi diretamente à Comarca de um município com 7 mil habitantes. Em uma cidade interiorana, a adoção é acompanhada mais de perto, tanto por assistentes sociais quanto por juízes e promotores, tornando o procedimento mais rápido. Quinze dias depois, eles viraram pais. A decisão pela paternidade foi oficializada exatamente dez anos após o primeiro encontro do casal, em agosto de 2004. Era noite de sexta-feira, e Fernando já era um economista com quase 30 anos. Ele estava em uma festa quando conheceu Henrique, ainda estudante do curso de Ciências Biológicas. Mas naquele dia, nada aconteceu. Fernando tinha namorado. Só depois de dois meses, agora solteiros, se viram novamente. A sintonia foi tanta que bastaram 15 dias para que morassem juntos. Exatos 10 anos após a mudança, se casaram no cartório. Eles foram apenas um dos 8.555 casais homoafetivos a oficializar o matrimônio no ano de 2014, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2011, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Isso garantiu às famílias LGBT os mesmos direitos das relações heterossexuais, como à herança, à pensão alimentícia e à inclusão em plano de saúde. Pela resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os cartórios brasileiros são impedidos de recusar a conversão de uniões estáveis em casamentos civis. Famílias biológicas não são perfeitas e, em alguns casos, a negligência por parte de um ou ambos pais traz consequências devastadoras para a educação dos filhos. Gabriel e Lucas não tiveram figura materna na maior parte de suas vidas. Isso favoreceu a situação de Henrique e Fernando, que só poderiam oferecer dupla paternidade. “O que levo em conta é a flexibilidade e a disponibilidade em relação ao perfil da criança, suas condições de saúde e história de vida. Os casais
LGBT parecem aceitar e lidar melhor com as diferenças”, ressalta a assistente social Andrea Mantese. De acordo com um estudo publicado em 2014 pela Universidade de Melbourne, filhos de pais homoafetivos apresentam índices de saúde, comportamento e estabilidade familiar em média 6% superiores aos de casais heterossexuais. A pesquisa avaliou 315 casais LGBT e 500 crianças com até 17 anos. Quem é criado por mães lésbicas tem melhores notas na escola, menos problemas de conduta e de autoestima. É o que afirmam dois estudos da Universidade da Califórnia feitos em 2012 e 2014. O planejamento familiar é um dos fatores apontados pelas pesquisas para explicar o bom desempenho das crianças educadas por mães e pais LGBT. Conforme o CNJ, há 7.159 meninos e meninas à espera de uma família pelo CNA. Desses, 63% têm irmãos. Já os pretendentes somam 38.071, sendo que apenas 31% aceitam receber mais de um filho. O maior obstáculo às adoções é a idade das crianças. Somente 6% dos que aguardam a adoção têm menos de um ano, ao mesmo tempo em que 87% têm mais de cinco anos, faixa etária aceitável por apenas 11% dos pretendentes. Os perfis pretendidos, além de condicionar o tempo de espera, também influenciam em decisões tomadas para receber as crianças. “Como esperávamos por bebês, já havíamos escolhido os nomes. A troca foi feita no carro. Eles saíram do abrigo com um nome e chegaram a Porto Alegre com outro”, relatam Henrique e Fernando. O casal até inventou uma história de super-heróis com vida dupla, que estavam indo para uma super cidade. Para isso, precisariam de nomes mais bonitos e o antigo seria apenas uma página virada. Sete gatos, dois cachorros e um papagaio aguardavam a nova família em uma cobertura situada no bairro Rio Branco. Pela primeira vez, Gabriel e Lucas conheciam uma grande cidade. Nunca tinham visto sinaleiras, prédios altos ou até mesmo ido ao supermercado. Agora estavam em uma metrópole com mais de um milhão de habitantes. “Nos primeiros dias foi um terror: botar tela na janela, comprar camas, não saber que roupa vestir. Era um processo de nada ter”, desabafa Henrique.
O processo de adaptação ainda não estava completo, pois a adoção não se concretizara. Retornaram ao abrigo no domingo. Por uma semana, o casal ligava diariamente para os meninos. Fernando telefonava pela manhã, e Henrique, à tarde. A família só se reencontrou no sábado seguinte, quando almoçaram com a juíza e a assistente social. Os novos pais voltariam a Porto Alegre às 14h, mas as crianças foram aos prantos quando perceberam que estava na hora da despedida. A juíza, então, conferiu mais uma autorização de viagem válida por quatro dias. Só conseguiram a guarda provisória na quarta-feira, 20 de abril. Fernando recebeu a licença-maternidade no mesmo dia. Até 2015, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) negava a concessão desse tipo de licença aos casais pais homoafetivos. O artigo sétimo da Constituição Federal prevê que as mães tenham direito a 120 dias para cuidar de seu filho, sem prejuízo do emprego e do salário. Desde janeiro de 2013, o mesmo vale para pais adotivos. Há quem defenda que a concessão deveria ser chamada de “licença-natalidade”. É o que pensa a vice-presidente do Instituto Nacional do Direito da Família, Maria Berenice Dias: “Trata-se de um benefício a favor do filho e não de sua mãe. A licença natalidade deveria ser de 180 dias, independente da orientação sexual dos pais”. Com o passado perturbado dos meninos, Henrique e Fernando se empenharam em construir novas memórias. Ocuparam seus finais de semana com programas especiais: cavalgaram, pescaram, conheceram o mar, foram ao circo e andaram de trem. “Em sete meses, as crianças tiveram mais memórias do que em sete anos de vida”, se orgulha Henrique. A rotina de segunda à sexta é outra. As escolas de Lucas e Gabriel têm ensino em turno integral. De manhã, eles fazem atividades recreativas, como assistir a filmes. Se não há lições de casa pendentes, seu tempo é reservado para as brincadeiras. Lucas está no segundo ano do Ensino Fundamental e estuda à tarde a partir das 13h30min. Gabriel, por sua vez, ainda está no maternal. Às 17h30min, os dois voltam para casa. Mas as aulas do irmão mais velho não terminam por aí. É nesse momento que chega a professora particular, contratada com a missão de ajudar Lucas em sua alfabetização. Por conta do histórico dos filhos, os pais procuraram uma escola que fosse inclusiva, menos elitizada, mas com boa estrutura educativa.
O pai biológico de Gabriel e Lucas era pastor. No entanto, pode ser que outro evangélico também tenha um papel na vida dos meninos: o deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE). Ele é o autor do Projeto de Lei (PL) 6.583/2013 da Câmara, mais conhecido como Estatuto da Família. No artigo 2, entidade familiar é definida como núcleo social formado apenas por homem e mulher, sendo legitimado a partir de casamento ou união estável. O PL — que está parado, há um ano, no Congresso — é, basicamente, uma bomba-relógio contra os direitos civis. Mães solteiras, avós que criam os netos, pais que não casaram e famílias como a de Henrique e Fernando seriam excluídas pela lei. Para essas pessoas, acabaria a garantia de licença-maternidade, pensão ou aposentadoria. “Não somos a família tradicional brasileira. Podemos morar em um bairro tradicional, com pessoas tradicionais e vir de uma família tradicional. Mas ninguém vai nos olhar como uma. Vamos ser sempre um lado obscuro”, lamenta o casal. Justamente por não seguirem o estereótipo de família, Henrique e Fernando foram os melhores pais que seus filhos poderiam ter. Sem mãe e com pai perturbado, Gabriel e Lucas provavelmente ficariam no abrigo até a maioridade. Apenas 3,7% dos pretendentes no CNA aceitam crianças com até sete anos, idade do irmão mais velho. Em alguns meses, a lembrança dos meninos magricelos ficou no passado. Se um acidente de carro pôs fim à sua antiga família, os novos nomes foram escolhidos também na estrada. Lá, ganharam a chance de nascer de novo. *Nomes fictícios