Com licença, podemos trocar de lugar?

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Com​ ​licença,​ ​podemos​ ​trocar​ ​de​ ​lugar? Quarta-feira, 19 horas. T7 lotado. Trabalhadores e estudantes estão completando a última etapa das suas rotinas: encarar o trânsito de Porto Alegre em um ônibus quase claustrofóbico. São diferentes vidas que se cruzam por tempos medidos​ ​em​ ​paradas. Os poucos idosos sentam na frente. Os estudantes mais novos formam a turma do fundão. Os universitários, de cabeça encostada na janela, ficam perto da porta para não perder a parada. Nos assentos próximos à cobradora, estão os vendedores de lojas, seguranças e um trio de senegaleses com malas cheias de eletrônicos baratos. Executivos subalternos preferem as cadeiras mais altas, para aproveitar​ ​o​ ​único​ ​instante​ ​do​ ​seu​ ​dia​ ​em​ ​que​ ​estão​ ​acima​ ​de​ ​alguém. Logo atrás, uma jovem chama a atenção. Não segue padrão de modelo europeia e nem é celebridade. Apenas está com aparência anormalmente rosada: cabelo rosa, sapato rosa, blusa rosa, bolsa rosa, batom rosa e unha rosa. Eu estou sentada do lado dela já na minha oitava parada. A moça aperta o botão que solicita ao motorista que alguém quer descer. Se espreme entre os demais passageiros que reclamam da falta de espaço. Depois que ela desce, a galera do fundo vai às gargalhadas. “Ela parece um algodão doce ambulante”, diz um dos adolescentes. O resto concorda enquanto segura risada, como se não tivesse problema em rir de uma desconhecida. Os insultos e deboches continuam até a descida dos jovens. Na minha frente, dois homens de terno sussurram sobre a suposta orientação sexual de um dos garotos. “Nada contra, mas se fosse meu filho não ia virar um viadinho”, comenta​ ​um​ ​deles,​ ​pressupondo​ ​que​ ​o​ ​conhece. Chegando à parada do Iguatemi, a parte de trás do ônibus esvazia por um breve instante, mas os novos passageiros já começam a passar pela roleta. Me levanto e vou pedir à cobradora que me avise da parada do Hospital Cristo Redentor. Agora, estou sentada em frente aos senegaleses. Uma passageira com uniforme de segurança reclama que a porta não abriu para ela descer. A cobradora responde que a luz que sinaliza a parada não acendeu. A mulher insiste em discutir com a funcionária do ônibus, que fica quieta num primeiro momento. “Por isso que


vocês têm esse trabalho chinelo, vão morrer pobres, bando de incompetentes”, grita a segurança, que desce na parada seguinte. A porta mal se fecha e a cobradora já começa a conversar com os idosos do seu lado. “Que mulherzinha nojenta, com esse cabelo de bombril devia era tá lavando louça”, disse ela, distribuindo discursos que​ ​misturavam​ ​“ismos’,​ ​das​ ​palavras​ ​“racismo”​ ​e​ ​“machismo”​ ​pelo​ ​T7. Já são 20h15 e estou quase na minha parada. Tento desviar a atenção olhando para o que acontece na rua. Então, uma questão me deixa inquieta: se o preconceito nasce da falta de compreensão sobre o outro, será que não vivemos presos​ ​em​ ​ônibus​ ​como​ ​esse,​ ​em​ ​que​ ​ninguém​ ​quer​ ​trocar​ ​de​ ​lugar?


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