OS PASSOS DE UM INVENTÁRIO a celebração do Bom Jesus Oeiras | Piauí | Brasil
OS PASSOS DE UM INVENTÁRIO a celebração do Bom Jesus Oeiras | Piauí | Brasil
S237p Santos, Francisco Stefano Ferreira dos Os passos de um inventário: a celebração do Bom Jesus, Oeiras Piauí / Francisco Stefano Ferreira dos Santos, Áurea da Paz Pinheiro. – Oeiras: Educar artes e ofícios, 2020 71 p. : il. color. (Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Victor Veríssimo Guimarães) ISBN 978-65-86484-01-4 1.Patrimônio cultural 2. Inventário Participativo 3. Bom Jesus dos Passos I. Pinheiro, Áurea da Paz II. Título CDD 363.69
© Copyright 2020 Francisco Stefano Ferreira dos Santos Áurea da Paz Pinheiro Créditos Esta publicação, sob o título “Uma tradição secular | A celebração do Bom Jesus dos Passos - Oeiras | Piauí | Brasil” é parte dos resultados da pesquisa-ação sob o título “Inventário Participativo da Celebração do Bom Jesus dos Passos”, de autoria de Francisco Stefano Ferreira dos Santos, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, sob a orientação da Profª Drª Áurea da Paz Pinheiro. Universidade Federal do Piauí
Prefeito Municipal de Oeiras José Raimundo de Sá Lopes Presidente da Câmara Municipal de Oeiras José Alberto Pinheiro Secretário Municipal de Cultura Francisco Stefano Ferreira dos Santos Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Oeiras Herbert Vinícius Virgínio de Sousa e Silva Presidente do Instituto Histórico de Oeiras Francisco de Assis Rocha Carvalho Júnior
Reitor Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes
Bispo da Diocese de Oeiras Dom Edilson Nobre
Vice-reitora Profª. Drª. Nadir do Nascimento Nogueira
Pároco da Igreja Catedral de Nossa Senhora da Vitória Possidônio Ferreira Barbosa Júnior
Pró-reitora de Ensino de Pós-graduação Profª. Drª. Regina Lucia Ferreira Gomes
Pároco da Igreja Matriz da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário Benedito Silva de Macedo
Coordenador de Programas Stricto Sensu Prof. Dr. Welter Cantanhêde da Silva Reitor da Universidade Federal do Delta do Parnaíba Prof. Dr. Alexandro Marinho Oliveira Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro Revisão Profª Drª Áurea da Paz Pinheiro Arte da Capa Flores de Passos. Óleo sobre tela. Autoria Isa Marília Silva de Oliveira. Diagramação e Editoração Víctor Veríssimo Guimarães Editora Educar artes e ofícios
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Participantes do Inventário Paróquia de Nossa Senhora da Vitória Diocese de Oeiras, Famílias cuidadoras dos Passos, Funcionários da Catedral de Nossa Senhora da Vitória, Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus, Conselho Municipal de Cultura-CMC, Instituto Histórico de Oeiras-IHO, Museu de Arte Sacra de Oeiras- MAS Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, Diretores, Coordenadores Professores da Escola Municipal Juarez Tapety Santiago Francisco Borges Pereira (Técnico em Rádio e TV). Fábio Estefanio Lustosa de Brito Lopes (Artista Visual, documentarista e Mestre em Museologia pela UFPI).
agradecimentos
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Ao Bom Jesus dos Passos e a Maria Santíssima, que guiam minha caminhada! Às minhas amadas Mães, Doiô e Roseni, pelo amor e o carinho de sempre. A minha amada família, em especial aos meus irmãos, Vânia, Rossana, Abdias Junior e Gabriela, pelo apoio e motivação constante, bem como meus tios, sobrinhos, cunhados e primos, pela admiração e respeito. À Pedro Dias de Freitas Júnior, meu companheiro de todas as horas, que compartilhou comigo dessa intensa imersão proporcionada pelo Mestrado em Artes, Patrimônio e Museologia. À minha professora, orientadora e amiga, Áurea da Paz Pinheiro, por ter me proporcionando construir um novo olhar sobre o patrimônio. À professora e amiga Cássia Moura, pela ajuda sempre presente e as lindas fotografias que ilustram este livro. Aos meus colegas de Mestrado da Turma quatro, em especial a Danilton Nobrega (In Memória), pelo companheirismo. A comunidade do Bairro Coqueiro em Luís Correia pelo acolhimento. Aos componentes da Equipe deste Inventário, bem como a todos os atores envolvidos, cuida-dores, floristas, associadas do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus, nessa rica e complexa manifestação de fé do povo Oeirense. A minhas amigas Cassandra Barroso e Cineide Pacheco, parceiras na vida e no trabalho. Ao Prefeito José Raimundo de Sá Lopes, por compreender a importância desse trabalho para a divulgação de nosso patrimônio cultural. E aos amigos da “Casinha da Praia do Coqueiro” pela convivência e aprendizado que levarei por toda a vida.
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Para José Alves Ferreira (Cabí), Abdias Viana dos Santos (Meu Pai), José de Helena (“Jardineiro Fiel” do povo de Oeiras).
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SUMÁRIO
_ 1.
Os Passos do Inventário da Celebração de Bom Jesus dos Passos
[09]
2.
As origens de uma tradição
[33]
3.
A tradição em Oeiras
[35]
4.
A Procissão da Fugida: o cenário urbano se transforma
[39]
5.
Vem romeiro de todos os cantos... se estiver chovendo, vem ainda mais gente agradecer....
[44]
6. O ofício
[48]
7.
O dia mais oeirense de todos
[49]
8.
Há personagens bíblicas estão no meio da multidão
[52]
9.
Uma marcha para o Bom Jesus Passar até parar nos Passos
[55]
A Preparação
[57]
10.
11. O santo já subiu... tem que ter quibebe na mesa
[61]
12. O ano em que o Bom Jesus não saiu em Procissão
[65]
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Flores de Passos Foto: Cássia Moura
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Os Passos do Inventário da Celebração de Bom Jesus dos Passos
A cidade de Oeiras é detentora de um rico patrimônio cultural. A marca da presença portuguesa está no casario colonial dos séculos XVII, XVIII e XIX, nas festas e celebrações religiosas, que atravessam a vida cotidiana até os dias atuais. O calendário católico dita a agenda sociocultural dos habitantes. Há um complexo patrimônio edificado, o que justificou o reconhecimento, por solicitação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do tombamento definitivo do Conjunto Histórico e Paisagístico de Oeiras, conforme Processos n.º 1.602-T-10 e n.º 01450.006978/2010-20, publicado no Diário Oficial da União em 27 de novembro de 2013. Os patrimônios foram inscritos no Livro do Tombo Histórico, Volume III, fls. 81/86, sob o n.º 622; e, no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Volume II, fls. 93/98, sob o n.º 169. Amparo legal: Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937; Portaria n.º 11, de 11 de setembro de 1986; Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e Decreto n.º 6.844, de 07 de maio de 2009. Há também um rico e complexo patrimônio cultural imaterial, intangível, que estamos a investigar, documentar, comunicar e salvaguardar, o que permite fomentar o sentimento de identidade e pertencimento da comunidade. O patrimônio é um elemento agregador, que emana de um grupo humano diverso e complexo, vivendo em um território e que compartilha memórias e histórias, um presente, um futuro, modos de vida, crises e esperanças. Para a Profª Drª Áurea Pinheiro “[...] são ricas e complexas as relações entre patrimônio, educação e museus. Frente às crises políticas e econômicas, buscamos viver em um mundo atravessado por antagonismos os mais diversos, sobretudo, aqueles referentes às relações dos seres humanos com o ambiente, com o patrimônio cultural e natural, assim devemos considerar as interfaces entre cultura e economia, mas não perder de vista a importância da consciência social, sensível e cidadã.” Diante dessa realidade resolvemos disponibilizar à sociedade e comunidades esta publicação, sob o título “Uma tradição secular | A celebração do Bom Jesus dos Passos | Oeiras | Piauí | Brasil”, parte dos resultados da pesquisa-ação sob o título “Inventário Participativo da Celebração do Bom Jesus dos Passos”, de autoria de Francisco Stefano Ferreira dos Santos, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí, sob a orientação da Profª Drª Áurea da Paz Pinheiro. 9
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Festas e celebrações religiosas em Oeiras. 11Foto: Arquivo Pessoal do Senhor Inamorato Gonsalves Reis
A minha condição é igualmente de oeirense, jornalista, devoto e agente cultural, que com a comunidade a qual pertenço e me reconheço, questionei: Como construir um Inventário Participativo da Celebração de Bom Jesus dos Passos incentivar o seu reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil? Realizamos um Inventário da Celebração usando métodos e técnicas de pesquisa, dentre elas a pesquisa-ação, para investigar, documentar, comunicar e propor políticas públicas para salvaguardar essa manifestação, patrimônio cultural do território, de Oeiras e do Piauí, marca de identidade, parte da vida religiosa e social da maioria dos residentes da cidade e entorno. Hugues de Varine, estudioso francês no campo teórico e prático do patrimônio e da museologia foi uma de nossas fontes de inspiração. Varine afirma que “Para a própria população, assim como para cada um de seus membros, o inventário do património não é necessário, ao menos enquanto este permaneça vivo e conserve uma significação para cada um e para todos.” O nosso trabalho teve natureza participativa e colaborativa. Iniciamos em julho de 2019 e o concluímos em março de 2020. O nosso objetivo foi construir junto com as pessoas de Oeiras um Inventário da Celebração de Bom Jesus dos Passos, para criarmos um instrumento que potencialize o reconhecimento dessa Celebração como Patrimônio Cultural de Oeiras, do Piauí e do Brasil. Identificamos e analisamos fontes históricas, a exemplo do documento da Confraria do Bom Jesus dos Passos de Oeiras sobre a Celebração, que faz parte do acervo documental do Arquivo Público do Estado do Piauí, um dos documentos relevantes para o Inventário desta cultura religiosa ancestral, símbolo de identidade da maioria da população de Oeiras. O trabalho teve o propósito de investigar e documentar os símbolos da Celebração: flâmulas de tecido, dossel (quadrilongo de tecido veludo decorado com franjas nas bordas), imagens, vestimentas, lanternas em prata, guião (estandarte que vai à frente das procissões, espécie de pendão), cânticos, flores, personagens bíblicas, bem como as narrativas que retroalimentam a Celebração manifestação centenária. O Inventário e o Reconhecimento da Celebração como patrimônio cultural é uma forma de garantir o direito à memória e salvaguardar, fortalecer o sentimento de pertencimento. A construção do Inventário de forma participativa foi uma ação de educação e interpretação do patrimônio cultural em Oeiras. A recolha e registro das memórias dos devotos nos informa do envolvimento da comunidade, de sua devoção, da presença de uma tradição transmitida de geração a geração. Eu, Stefano Ferreira, participo ativamente da preparação da Celebração há mais de três décadas, faço parte de um dos grupos da Paróquia Nossa Senhora da Vitória divididos por áreas, que planejam e realizam ações para que a Celebração aconteça ano a ano. Como profissional da área da comunicação, colaboro no planejamento do material comunicacional, desde a elaboração das peças de divulgação à transmissão pela TV aberta. Essa experiência comunitária nos proporciona uma vivência diferenciada, pois ao final da Celebração, somos chamados a fazer uma avaliação, o que nos permite observar se a comunidade se identifica, quais as permanências e rupturas desse patrimônio cultural, como a população e a igreja estão preocupadas com a sua salvaguarda. 12
Ao ingressar no Programa de Mestrado em Artes Patrimônio e Museologia da UFPI, o único Mestrado Profissional do gênero no Brasil, tendo como sede a cidade de Parnaíba, Patrimônio Nacional desde 2008, revela-se no campo da Museologia como de Inovação Social, por formar profissionais qualificados, para o exercício de prática profissional avançada e transformadora; atendendo demandas culturais, econômicas e sociais do território do Meio Norte do Brasil. No percurso do Programa, tive acesso a uma vasta referência sobre patrimônio cultural imaterial, percebi na escrita de Hugues de Varine sobre Inventários, em sua obra “As Raízes do Futuro”, a possibilidade de um trabalho de Inventário e Salvaguarda da Celebração, no Livro de Registro das Celebrações. Para alcançar nossos objetivos usamos a pesquisa-ação, visto que precisávamos estabelecer uma relação entre o conhecimento e ação, entre pesquisadores e pessoas implicadas na situação investigada e destes com a realidade. Nos valemos das reflexões e estudos e Michel Thiollent, para quem, nessa natureza de investigação, deve haver “uma ampla e explícita interação entre os pesquisadores e envolvidos na pesquisa e que esta não se limita a uma forma de ação (risco de ativismo), mas pretende aumentar o conhecimento dos pesquisadores e o conhecimento ou nível de consciência das pessoas e grupos que participarem do processo, bem como, contribuir para a discussão ou fazer avançar o debate acerca das questões abordadas. Com a pesquisa-ação tentamos realizar uma autorreflexão e criação coletiva, no diálogo, escuta ativa e potencialização, num processo que se modifica e se adequa às necessidades que a pesquisa vai apontando continuamente, revelando a própria identidade da comunidade. Alinhamos a pesquisa-ação com o método etnográfico, visto que como agente de cultura local eu já sou comunidade, vivencio a Celebração, participo ativamente dos ritos e registro as impressões dos atores envolvidos, durante e depois da Procissão. A partir dos dados coletados, iniciamos o processo de Inventário Participativo, referenciado pelas reflexões de Hugues de Varine sobre Inventários Participativos. Tivemos bastante cautela e estabelecemos uma metodologia qualitativa que nos permitisse sublinhar a nossa efetiva participação na Celebração, como membro da Igreja, agente de cultura e devoto, o que facilitou a recepção das pessoas entrevistadas e uma abertura para responderem às perguntas dos questionários aplicados. O método etnográfico foi crucial para o processo, visto que enquanto pesquisador, mesmo precisando envolver-me com a lógica dos participantes, tinha que manter o cuidado para lançar um olhar com certo distanciamento, não esquecendo da minha relação com a manifestação objeto do Inventário. O Inventário que realizamos permitiu que envolvêssemos a comunidade na pesquisa-ação. Associados como método também a história oral para reconstituição de narrativas, o que inclui pesquisa histórica, e técnicas de coleta de informações como as rodas de conversa, registros fotográficos, audiovisuais e aplicação questionários, além de audiências públicas e discussão comunitária que envolveram estudantes, clero, agentes de desenvolvimento local, cuidadores dos passos, floristas, devotos e romeiros. É importante ressaltar que construímos fichas para coleta de informações sobre a Celebração a partir de fichas propostas e disponibilizado Manual de Aplicação técnica 13
do Inventário Nacional de Referências Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Selecionamos os métodos e técnicas sempre atentos a especificidade do patrimônio cultural inventariado. Seguimos os conselhos de Varine, que nos diz que fazer um inventário, consiste em escolher um método e para tanto, é importante conhecer e diferenciar os diversos tipos de inventário e seus métodos, cujas qualidades e defeitos devem ser analisadas em função dos objetos e o que se procura obter ele, sendo indispensável sempre saber o que não será jamais exaustivo nem definitivo e que ele deverá, portanto permanecer evolutivo, subjetivo, condicionado pelo objetivo da pesquisa e pelos saberes do momento. Nessa direção, optamos pelo o Inventário Participativo, visto que nosso somos comunidade e o patrimônio é importante para nós, deve ser salvaguardado, logo a documentação deve ser colaborativa, refletindo o pertencimento da comunidade. Varine nos orienta que : “A concepção de inventário participativo tem por trás ser o debate sobre o direito de decidir o que é e ou que não é passível de preservação e, portanto, merece todos os esforços do poder público para sua valorização e difusão e preservação, o que evidentemente deve ser de todos. Na verdade, o método também tem seus defeitos, ligados em particular à subjetividade dos habitantes e aos fenômenos da moda, de qualquer modo relativizados pela necessidade de consenso para as decisões. Mas o mais difícil nesse tipo de inventário reside nas perspectivas de futuro de tal inventario, feito pela geração ativa hoje, com seus gostos e sua relação com o passado. O Inventário Participativo é, e deve permanecer estritamente complementar ao tombamento dos monumentos e sítios e outros elementos culturais naturais, e pode unicamente agregar uma espécie de ´marca´ de qualidade nas riquezas de interesse superior, nacional e internacional. Se ainda é o utópico na maior parte das situações, o inventário participativo é a forma mais acabada de inventário local, mais é difícil, metodologicamente exigente, longo. Além do que deve ser repetido em intervalos regulares para dar conta da evolução da cultura e das modas. Assim, a participação no inventário participativo deve em todo caso ser voluntária e livre e deve acontecer em total transparência, no respeito pela vida das pessoas e pela propriedade privada. Deve convencer e não impor. Ao usarmos esse tipo de inventário relacionamos o patrimônio cultural imaterial de Oeiras, especificamente, a Celebração dos Passos do Bom Jesus, à realidade sócioeducativa, econômica, linguística, religiosa e étnica da comunidade. Ao buscarmos estabelecer uma rede comunitária colaborativa, iniciamos o processo de inventário participativo com uma mobilização, isso traria de forma mais transparente o esclarecimento do problema já identificado: a preocupação da comunidade Oeirense com o registro da Celebração dos Passos e a partir do registro, um reconhecimento desse patrimônio como patrimônio cultural não apenas local, mas nacional. 14
Após uma imersão em uma vasta literatura sobre a prática das Celebrações dos Passos pelo mundo. Estivemos em Portugal, em Lisboa, na Igreja de São Roque, no dia 04 de abril de 2019, onde a Procissão dos Passos da Graça é realizada há mais de 400 anos, por obra da Real Irmandade de Santa Cruz e Passos da Graça, com apoio da Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa. Observamos muitos elementos comuns entre as Celebrações dos Passos de Lisboa e Oeiras. A presença de vários elementos comuns na liturgia nos chamou a atenção, o uso da cor roxa, tanto nos paramentos do clero, vestimentas usadas pelos sacerdotes nas celebrações eucarísticas, bem como nas roupas dos fiéis e membros da Confraria. A Imagem de Bom Jesus carregando a cruz e de Nossa Senhora das Dores com um semblante de sofrimento e piedade. Os andores em estrutura de madeira resistente, em forma de padiola portátil e ornamentada, usados em cortejos religiosos, transportados nos ombros dos carregadores das famílias encarregadas que transmitem a tradição para as novas gerações, como em Oeiras no Piauí,
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Procissão de São Roque Foto: Stefano Ferreira
Procissão de São Roque Foto: Cássia Moura
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Outro elemento importante na Celebração da Igreja de São Roque foi o uso do sudário, peça em tecido que possui a face de Cristo pintada, mostrada pela personagem Verônica durante o canto do lamento nas duas procissões. Através dessa observação na Celebração dos Passos da Graça em Lisboa, constatamos as transformações na Celebração dos Passos em Oeiras no Piauí com o hibridismo de elementos da cultura popular. Outro aspecto importante foi confirmar a salvaguarda da tradição em terras lusitanas, mas também perceber a existência de um número melhor de fiéis em relação à Celebração do Bom Jesus dos Passos em Oeiras. A segunda etapa de nosso trabalho foi a elaboração de um cronograma de atividades e ações participativas-colaborativas para a coleta de narrativas de e com diversos atores envolvidos na preparação e manutenção da Celebração, conseguimos envolver desde o clero, a cuidadores das imagens e preparadores das figuras bíblicas, personagens que compõem a via sacra secular. Antes da aplicação de questionários e gravação dessas entrevistas que intitulamos de Diálogos, Cafés e Memórias, apresentamos em aula pública o projeto de pesquisa, proposta de pesquisa ação para o inventário participativo, no auditório da Biblioteca Municipal de Oeiras, tendo este evento ampla divulgação e participação da comunidade, professores e estudantes.
Aula Pública Foto: Jadson Osório 17
Essa ação fez com que outros atores sociais e entidades contribuíssem para a construção do Inventário, propondo outras atividades e ações. A aula pública contribuiu igualmente para a comunicação, elemento basilar do processo de inventário, visto que se trata de um processo comunitário. A partir dessa atividade o processo de Inventário foi comunicado nas emissoras de rádio, portais locais e redes sociais diversas, permitindo mobilizar um número maior de pessoas envolvidas. Com a adesão voluntária dos atores envolvidos na organização da Celebração dos Passos, iniciamos as rodas de conversa, usamos entrevista temática, gravação em áudio e vídeo, além de registros fotográficos e em caderno de campo. O primeiro encontro foi na residência da Senhora Célia Maria Oliveira Santos, localizada na Rua Zacarias de Góes e Vasconcelos, nº 292, Centro de Oeiras, no dia 23 de julho de 2019. Na ocasião, reunimos sete senhoras responsáveis pela arrumação, vestimenta e deslocamento da imagem de Nossa Senhora das Dores na procissão. Todas elas pertencentes ao Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus, sendo elas, Maria da Guia Dantas, Costureira e Zeladora do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus, Maria Jucilene Cunha, Dentista e Zeladora do Sagrado Coração de Jesus, atual Presidente do Apostolado da Oração, Conceição de Maria Barroso Moura de Albuquerque, Professora e Zeladora do Apostolado da Oração, Gabriela Maria Ferreira dos Santos Reis, Pedagoga e Zeladora do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus, Maria Martins de Oliveira, Costureira e Zeladora do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus, Teresa de Jesus Salvador, Professora e Zeladora do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus e Célia Maria Oliveira Santos, Dona de Casa e Zeladora do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus. Além de se identificarem, as participantes revelaram há quanto tempo se dedicam a essa tradição e quem transmitiu a elas. Na fala percebemos que a prática foi repassada, geralmente pelas famílias. Nenhuma delas vê esse trabalho como uma obrigação, mas sim como uma missão. Na conversa, um fato que nos chamou a atenção, a preocupação das mesmas em transmitir às novas gerações a tradição, o que no convenceu ainda mais da importância de um trabalho de inventário, pois as mesmas temem a transmissão da tradição, de um momento sagrado, que devotam respeito, um ritual silencioso e sigiloso. Em 2015 uma pessoa lá na hora do encontro chegou do meu lado e disse ´- Eu posso levar Nossa Senhora?´ e eu disse ´Não só pode como deve´, aí quando chegou no Passo do Engano ela disse ´Eu posso continuar?´ aí eu disse que pode e fiquei atrás dela levando o descanso, quando chegou na igreja ela me agradeceu tanto, que o maior desejo que ela tinha na vida era de Nossa Senhora e não tinha coragem de pedir. (Gabriela Maria Ferreira dos Santos Reis em Roda de Conversa com Zeladoras do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus em julho de 2019) 18
As participantes expressaram a importância de um inventário, pois não existe nenhum registro, nem mesmo fotografias. A roda de conversa revelou a necessidade de registro das informações necessárias para que a tradição não desapareça. Então o que tá faltando? Informação, Conhecimento. A partir de quando houver registros isso não vai acontecer, porque o conhecimento tá ali arquivado, registrado e isso que é importante porque realmente, vocês têm toda razão, Nossa Senhora é assim como nossos pais. A minha mãe quase não tira a roupa na minha frente e esse respeito de tirar a roupa, é tirar a roupa da imagem de Nossa Senhora, é um gesto sacramental, não deixa de ser, é um gesto sacramental que virou uma tradição é aqui em Oeiras. E eu senti ao primeiro momento que eu entrei lá eu senti, Stefano, eu senti. Olha, alguma sorriu pra mim e disse “não, não se preocupe, eu já tenho noção” e aquilo eu guardei comigo caladinha e continuei minha ajuda que já precisa de gente novo. (Conceição Barroso de Moura Albuquerque em Roda de Conversa com Zeladoras do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus em julho de 2019)
As falas ainda revelaram a emoção de vestir a imagem e o respeito do ato que antes era realizado na catedral, a portas fechadas e que hoje acontece no salão paroquial. Isso mostrou transformações na celebração e exercitou também as memorias submersas refletidas nas falas das senhoras mais idosas. O grupo possui também jovens, mas dessa etapa da preparação da Celebração participam apenas mulheres, é um mundo feminino. Segundo as participantes das rodas de conversa, nunca foi permitida a presença de homens nem no ritual de vestimenta da Imagem de Nossa Senhora das Dores, nem para carregá-la durante a procissão. Todas acreditam na manutenção dessa tradição, pois segundo as mesmas é uma forma de expressar respeito. A gente segurava na mão dela com o broche pregado na roupa. Pegava a combinação puxava a manga do vestido da roupa e com a combinação a gente pegava com o broche, pegava na roupa. Mas aí quando os devotos chegavam, pegava na mão, puxava. A gente queria amarrar o barbante que nem a gente amarra hoje e Teresa Silvia não aceitava porque dizia que ia quebrar o pescoço da santa. Teresa Silva não aceitava de jeito nenhum aí depois ela deixou de participar que a gente botou amarrado, segura bem com o barbante. (Maria Martins de Oliveira em Roda de Conversa com Zeladoras do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus em julho de 2019)
Nessa perspectiva, as histórias narradas nos permitiram observar detalhes dessa missão, antes desconhecidos, o cuidado com as roupas e acessórios de Nossa Senhora, recomendados à Dona Maria Martins de Oliveira. Em sua casa está a mala com os pertences da santa. Trata-se de um ponto importante da pesquisa-ação que realizamos, os próprios atores narram as suas vivências e histórias que dão o tom da pesquisa. A roda de conversa nos levou a uma visita à casa de Dona Maria Martins, visto que a mesma queria falar de sua missão de guardiã das roupas de Nossa Senhora das Dores, além de entender que era preciso registrar todos os pertences que ficam sob sua responsabilidade. 19
Produção do Inventário Participativo Foto: Pedro Dias de Freitas Júnior
O seu desejo nos instigou a marcar uma visita à sua casa, o que nos permitiu um exercício dos conceitos metodológicos da etnografia, pois vivenciamos o universo domiciliar mais íntimo da devota, o quarto, onde conserva as roupas, anáguas, mantilhas e os vários véus, doados por devotos e promesseiros. Todos os pertences foram mostrados pela devota que revelou guardar uma folha de papel avulsa com a lista de pertences da Imagem que recebeu em 2008 da Senhora Thereza de Jesus e Silva. Não é uma mala com zíper, Chico Rêgo disse que a mala foi ele que deu. Eu ia para Teresina porque as meninas queriam que eu fosse para Teresina, mas eu disse que não ia. Aí quando eu estava em Teresina Chico Rêgo recebeu, Teresa entregou e quando eu voltei eu fui pegar. (Maria Martins de Oliveira em Roda de Conversa com Zeladoras do Apostolado da Oração Sagrado Coração de Jesus em julho de 2019)
Durante a entrevista registramos as vestes existentes hoje, sendo elas, 03 túnicas em tecido, 02 combinações, 03 anáguas e seis mantilhas usadas vários anos na Celebração.
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Vestes da Celebração Foto: Stefano Ferreira
O local do segundo encontro de Diálogo, Cafés e Memórias foi escolhido pelos próprios atores que seriam entrevistados, o que os deixou à vontade, quebrando com o processo tenso geralmente ocorrido em entrevistas para pesquisas. A casa do Senhor Francisco de Moraes Rego, localizada na histórica Rua do Fogo, no coração do Centro Histórico de Oeiras foi o cenário para coleta de narrativas dos homens que cuidam e vestem a Imagem do Bom Jesus dos Passos e se deu no dia 28 de julho de 2019. Ao partirmos desse princípio, percebemos nas primeiras falas uma certa resistência ao questionário e aderimos a termos que continham apenas a essência das perguntas, deixamos que cada um narrasse de onde surgiu sua devoção e de como iniciaram a sua participação na Celebração. Essa estratégia nos permitiu chegar às memórias afetivas da Celebração, as narrativas revelaram não só o trabalho voluntário, mas o status de guardar o que é sagrado para a comunidade, visto que a imagem do Bom Jesus dos Passos é o símbolo mais emblemático para a população Oeirense. Esse sentimento de poder sentido ao ter essa tarefa, de guardar a tradição, esse patrimônio, tão caro à população, mostrou o porquê da transferência da responsabilidade para os filhos. 21
No encontro, estavam o Senhor Francisco de Moraes Rêgo e seu filho Rafael Bandão Portela Rêgo, bem como o Senhor José Alberto Tomaz dos Santos e seu filho José Alberto Tomaz dos Santos Júnior. Ao longo do processo, ao exercitarmos a pesquisa ação, associada a imersão etnográfica, revelamos uma heterogeneidade de objetos ao longo da investigação, sem eleger um como superior ao outro no registro. Eu comecei como coroinha da Igreja com seis ou sete anos, a partir desse momento eu já tinha interesse e já tinha devoção por Bom Jesus e eu tive interesse em participar com Manoel que era o sacristão da época, era o pai do Beto e eu comecei a ver, assistir, ajudar a trocar, e são poucas pessoas que têm esse privilégio, poucas mesmo, são escolhidas pra que? É muito sério, a tradição diz que é muito sério, a gente não pode chegar lá com qualquer pessoa pra ver e fotografar, não se faz isso. Então comecei com sete anos e fui crescendo e isso foi, todo mundo sabe que essa parte de tradição da Semana Santa vem de pai pra filho, de família para família e como que isso aconteceu em Oeiras? O padre da época era o José de Freitas, ele tinha vários filhos e ele definiu aqueles pontos para que ajudasse ele nesse trabalho, nessa evangelização, nesse teatro porque quer queira ou não é um teatro que a gente faz e ele colocava pessoa deles, os filhos, e assim foi se passando de pai pra filho. Eu alcancei a filha dele, a tia Maroca fazendo, que era irmã da minha vó, ela fazia esse trabalho e eu ia assistir ela fazer isso e me inteirando e aprendendo com aquilo que ia acontecendo. Quando ela morreu ela deixou pra mãe de Maria Oliveira e eu continuei indo e quando Maria Oliveira não tinha mais condição ela chegou e me perguntou se eu podia ficar já que eu era da mesma descendência então eu que continuaria, porque não tinha mais ninguém próximo então. (Francisco de Moraes Rêgo em Roda de Conversa com cuidadores da Imagem do Bom Jesus dos em julho de 2019)
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Visistas de Memórias Foto: Pedro Dias de Freitas Júnior
No inventário, o conhecimento acadêmico dialogou com o saber leigo, narrativas se entrecruzaram com sentimentos expressos pela linguagem simples provenientes de vivências. Nunca perdi uma Semana Santa, estava lá sempre ajudando, comecei desde pequeno com ele e o meu pai começou a trabalhar com o Cardoso. Eu tinha quase 11 anos de idade, daí quando seu Cardoso perguntou pra mãe Vincentinha que era uma parteira antiga que tinha] na cidade, porque naquela época a situação da medicina era um pouco caro e pegou muita gente aqui, não cheguei a conhecê-la mas gente mas as pessoas mais antigas aqui que repassavam. Eram seis filhos e Cardoso foi lá perguntar se ela não queria dar o menino pra morar com ele com 11 anos, aí ela disse que dava e ele foi morar com Cardoso daí o papai começou a trabalhar com Cardoso e Vasconcelos se não me engano, vindo de Castelo do Piauí, no tempo não tinha e daí papai trabalhou com Dom Expedito, dom Raimundo, dom Aguilberto e só não chegou a alcançar dom Juarez e dom Adilson que hoje é o berço atual, mas com todos esses bispos e todas essas pessoas. Quando eu comecei esses meus entendimentos, tive vontade do seminário, mas não deu certo pois eu era muito novo, dom Gilberto pediu pra meu pai que era pra deixar para ver o que ele queria, aí veio a música. Mas eu era danado, mexia nos vestidos da minha mãe e eu pegava pra celebrar a missa , a gente morava bem aqui nessa casa que Paulo mora que é da diocese da igreja, há muito tempo, a gente morava ali, tinha os colegas, doutor Zé Reis, doutor Darci e eu sempre com os meninos celebrando missa, eu achava bom, achei engraçado, só que deu me botou nessa missão e eu não cheguei a ser sacerdote mas estou lá cantando, louvando, tocando e agradecendo a Deus, tudo que eu faço é com amor. Eu amo. (José Alberto Thomaz dos Santos em Roda de Conversa com cuidadores da Imagem do Bom Jesus dos em julho de 2019)
As narrativas revelaram também uma preocupação com os objetos cuidados no que se refere a segurança dos mesmos, bem como a preocupação em não se incorporar novos elementos como forma de manter viva e fiel a tradição secular. O que acontece, se tivesse a possibilidade de voltar teria que ser estudado e pesquisado, pra ver como é que poderia acontecer. Inclusive você sabe a questão do museu que tem as lanças, são quatro lanças que entram, existiam o centurião fazendo isso lá na frente, tocando o berrante, mas isso há muito tempo desapareceu. E com dois anos voltou, mas de uma maneira aleatória e não é pra ser assim, teria que ser feito um estudo e uma pesquisa para que se fosse necessário voltar. (Francisco de Moraes Rêgo em Roda de Conversa com cuidadores da Imagem do Bom Jesus dos em julho de 2019)
A partir do relato dos cuidadores, registramos as peças tradicionalmente usadas na Celebração, a Imagem do Bom Jesus dos Passos, a Imagem de Nossa Senhora das Dores, o Resplendor do Bom Jesus dos Passos, o Resplendor de Nossa Senhora das Dores, o Andor do Bom Jesus dos Passos, o Andor de Nossa Senhora das Dores, o Guião, as Lanternas, o Pálio, o Dossel, o Sudário e a Relíquia do Santo Lenho. Objetos, suas descrições, registros fotográficos e especificidades litúrgicas estão agora devidamente documentados.
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No terceiro encontro, mobilizamos representantes do Clero da Diocese de Oeiras, a saber, o Bispo Dom Edilson Soares Nobre, o Pároco da Catedral de Nossa Senhora da Vitória, Possidônio Ferreira Barbosa Júnior e o Padre Benedito Silva de Macedo da Paróquia Nossa Senhora do Rosário.
Visistas de Memórias Foto: Santiago Francisco Borges Pereira
Ao tratarmos do processo da pesquisa, buscamos nas narrativas a visão da Igreja sobre o inventário participativo como instrumento para o registro da Celebração. A percepção dos sacerdotes foi importante não para chancelar o processo de inventário, mas para revelar o sentimento voluntário e comunitário como grupo participante da Igreja, fundamental para os resultados do Inventário Participativo. Eu, particularmente dos três, sou o que conhece há menos tempo essa experiência. Estou a pouco mais de dois anos residindo na cidade de Oeiras, já participei de três eventos porque quando cheguei no primeiro ano já estávamos vivência a efervescência desse ato religioso que para mim foi uma grande surpresa, porque eu vejo de fato como um fenômeno que se destaca a nossa diocese e por que não dizer no nosso Piauí onde as celebrações, as atividades realizadas despertam o interesse e motivam a participação de pessoas de vários locais. Eu vejo que isso acontece de forma muito natural, praticamente fazendo ou não fazendo divulgação, é algo que já está estabelecido no calendário das pessoas. Então ter-se um registro disso, reconhecer como um patrimônio nosso, creio eu, é de fundamental importância. No meu entendimento, entre todos os eventos que nós realizamos aqui, daqueles que eu tenho conhecimento e pude participar, de fato é um evento que tem uma maior mobilização de pessoas e que acontece de uma forma quase que natural, onde cada pessoa que tem as suas responsabilidade vão se envolvendo de uma forma muito natural de modo que todo mundo, a cidade toda está envolvida e a cidade toda se transforma com o 24
evento Bom Jesus dos Passos. Então eu particularmente, considero como algo que merece ser dado um grande destaque e ser registrado para que de fato seja reconhecido mundialmente. (Dom Edilson Soares Nobre, Bispo da Diocese de Oeiras em Roda de Conversa com representantes do clero em agosto de 2019)
A roda de conversa revelou no discurso da Igreja uma percepção de que não é a Instituição a realizadora da Celebração, mas coparticipante, vez que os leigos têm um papel decisivo na manutenção e transmissão da tradição, salvaguardando de forma viva o patrimônio cultural. A Ciência é uma grande construtora da própria história, da própria sociedade, dos conhecimentos compartilhados e construídos a partir da base. Penso em uma outra perspectiva de fazer ciência que é muito louvável no dia de hoje, que não se faz apenas fechada em livros mas se faz com comunicação, com participação, onde o objeto de estudo é vivo e não apenas algo que está ali para se ler, para se pesquisar, então parabenizo também pela metodologia de pesquisa. Eu nasci em Oeiras, próximo ano eu completo 50 anos então eu vivi na minha pele, minha família viveu, meus parentes todos viveram essa experiência dos Passos [...]. Registrar se torna, digamos, até um legado para a própria sociedade, para própria história porque a Semana Santa, a sexta-feira de Passos é um evento religioso, mas que é também cultural, é histórico porque as pessoas que vão nascendo, vão vivendo e vão assumindo uma característica social, antropológica e histórica e encontrando no religioso o seu grande assento. O registro vem justamente como modo de conservar, de propagar, de manter e de responsabilizar as instituições no sentido de conservar e de promover então a corresponsabilidade do registro é o chamamento da pesquisa, das instituições das sociedades para promover aquilo que é da história, que é da cultura, que é antropológico, que é da sociedade. (Padre Possidônio Ferreira Barbosa Júnior, Pároco da Catedral de Nossa Senhora da Vitória em Roda de Conversa com representantes do clero em agosto de 2019)
Usamos a etnografia em todo o processo pela imersão cotidiana para a pesquisa. Na vivência com a manifestação, no registro que realizamos com a ajuda de uma equipe de vídeo e áudio, bem como no registro escrito dos relatos transcritos na integra em anexo na dissertação, que deram subsídios para este livro e para um vide inventário; amostra áudio visual dos resultados. O método etnográfico facilitou um exercício dialógico e se transformou em diversas linguagens, fruto de uma abordagem que visou expor fielmente as vivencias dos grupos pesquisados, criando um painel de vários espectros sobre uma celebração que é diversa e heterogênea, manifestando-se de maneira simples, porém carregada de significados, onde muitos elementos não podem ser vistos, pois são frutos de vivencias da fé dos devotos, do trabalho e da crença, e que somente uma arqueologia da memória poderia registrar em palavras, imagens e sons. Olha, uma coisa bonita é que esse alecrim por mais que seja tirado, tudo é feito de forma artesanal, não existe uma agressão ecológico, quer dizer, de destruição do próprio alecrim. Pelo contrário, essa união entre a ecologia e a Semana Santa é também promovida, aqui tem um restauro da própria natureza, a natureza ecológica do alecrim e depois a própria natureza, vamos dizer, também 25
exegética, como o Monte das Oliveiras. Vamos dizer, a Semana Santa, a ecologia, a natureza, a história e a vida se tornam um momento dinâmico. O cuidado, uma coisa que também achei interessante, um zelo para evitar a poluição é também um cuidado ecológico, o atendimento para que as pessoas não passem sede, é uma outra manifestação de fé. O cuidado com a água em servir a pessoa, para que as pessoas não desidratam em muitos pontos. E também o cuidado com a própria água, são pequenos selos ecológicos e uma atenção importante. E que essa pesquisa também é, uma coisa muito boa. Um elemento também que vem encontro da ecologia nesse momento, por exemplo, é que a própria manutenção das estruturas elas são feitas com elementos sustentáveis, você vai manter a própria amada catedral da Igreja do Rosário, os passos não são feitos com materiais degenerativos que vai poluir a sociedade. Não, é tudo feito com material ecologicamente correto. Se a gente entende essa questão ecológica também é um modo de conservar, preservar e promover. Eu penso nesses três pontos, por exemplo, nossa amada catedral construída em 1733 e toda a conservação dela é feita ecologicamente correta, ela foi construída com produto, digamos, natural e é mantida durante toda essa época com produto natural que não agride a natureza, que não agride a ecologia. O uso do alecrim, o uso de tantas outras coisas. Não existe uma sujeira depois de uma procissão, talvez um ou outro evento deixe sujar mais as estradas, as vias do que um evento com tanta gente. Nós mesmos temos essa preocupação porque a fé tem que também pactuar com a vida das pessoas, a sociedade, a dignidade humana, o compromisso de todos com o outro, de todos com si, de todos com Deus, de todos com a sociedade, por um mundo melhor. Um compromisso com todos para que a vida seja promovida, a vida seja garantida. A fé vem promover, isso é uma perspectiva de promoção da própria vida. (Padre Possidônio Ferreira Barbosa Júnior, Pároco da Catedral de Nossa Senhora da Vitória em Roda de Conversa com representantes do clero em agosto de 2019)
Durante a pesquisa, atentamos para o fato de que além dos executores, existe um grupo importante que participa ativamente da Celebração e que não se configura apenas como receptores passivos, mas partícipes ativos na manutenção e transmissão dessa tradição. Era preciso investigar de forma mais objetiva esse grupo, sem uma visão romântica e estereotipada do romeiro. Com a pesquisa desejávamos apresentar olhares diversos sobre a Celebração dos Passos, visto que há uma diversidade sociocultural de devotos. Portanto, era preciso ouvir as gerações sobre a Celebração, coletando dados de pessoas de diferentes bairros e comunidades rurais. Isso daria uma visão diversa e plural, inclusive detectando como as novas gerações vêm a Celebração. Para isso, elaboramos um questionário com questões objetivas e subjetivas sobre a manifestação, relacionadas à participação, à tradição, à manutenção e qual a visão desse grupo em relação às relações sociais na manutenção desse patrimônio cultural local. A pesquisa foi aplicada dia 11 de dezembro de 2019, tendo a participação de 725 alunos da Escola Municipal Juarez Tapety, Rede Pública Municipal de Ensino, Escola localizada na Avenida Rui Barbosa, no Centro da Cidade de Oeiras e que recebe alunos do quinto ao nono ano do Ensino Fundamental, de diferentes bairros da cidade e comunidades rurais. Essa amostra nos daria um reflexo sobre a celebração sob a ótica de jovens de contextos sociais, econômicos e culturais diferentes. 26
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Criança durante a celebração Foto: Cássia Moura
Sobre a religião dos entrevistados percebemos a forte tradição católica da cidade, ainda com maioria de fiéis no município, mesmo nas faixas etárias mais novas. Ao somarmos todos os informantes, colaboradores deste trabalho, que se identificaram com outras religiões, os que se não possuem religião e os que não responderam a questão, não ultrapassam o numero de católicos que responderam o questionário, mostrando assim, a forte presença da pratica católica na região até hoje. Uma amostra como essa nos mostrou por que uma celebração como a dos Passos ainda se mantêm como a maior manifestação religiosa da cidade. Uma maioria expressiva dos pesquisados participa da Celebração dos Passos em Oeiras, mostrando o reconhecimento dessa manifestação como um evento cultural importante já estabelecido no calendário da cidade e da região. A investigação nos mostrou também que os colaboradores da pesquisa participam da Celebração dos Passos por tradição familiar. Esse dado é importante, visto que a maioria dos informantes se declararam católicos, reafirmando assim a presença da do catolicismo na vida das pessoas, o que inclui participar das procissões. Nesse quesito, chamou a nossa atenção o fato dos 725 alunos que responderam ao questionário, 129 não souberam por que vão à Celebração, o que demonstra que nem sempre estão na procissão pessoas incentivadas por suas famílias ou por crença; reforça o caráter cultural da Celebração. Essa interpretação se torna ainda mais evidente quando olhamos para o dado de que dos 725 informantes, 271 frequentam a Procissão e a veem como um evento cultural da cidade. A maior parte das famílias dos jovens que responderam aos questionários não tem a tradição de transmitir, nos dias atuais, a cultura religiosa da Procissão, a frequentam como um evento cultural da cidade, que desperta curiosidade e movimentação. O fato da maioria dos entrevistados se sentirem apenas observadores mostra que, se por um lado, algumas famílias da cidade transmitem a tradição para as novas gerações, sendo guardiãs dessa herança ancestral, isso limita a participação de grande parte da população que quando não é devota ou promesseira, não se sente ativamente participante na preparação e nas responsabilidades que matem a tradição viva. Isso mostra uma concentração de poder nas famílias mais tradicionais católicas, geralmente residentes em volta da catedral, como mantenedoras de uma tradição que toda a comunidade a reconhece como patrimônio. Entretanto quando a questão formulada se referiu a participação da população em geral na celebração, dos 725 entrevistados, 598 pesquisados admitem que a maioria da população participa ativamente, visto que já olhando o aspecto geral da participação popular, observam a comunidade participando não nos bastidores, na preparação da procissão, mas sim, como promesseiros, romeiros e devotos. Por isso, consideram a celebração aberta a toda a comunidade, incluindo até mesmo os não féis, mostrando assim mais uma vez, o reconhecimento da celebração pelos pesquisados, não apenas como um ritual religioso, mas, sobretudo, cultural.
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Na última questão do questionário, os alunos poderiam deixar palavras chaves, frases, poemas ou qualquer tipo de expressão em relação ao sentimento que os mesmos possuem pela procissão dos passos. Nessa questão aberta, a maioria preferiu elencar palavras-chaves para responder à proposição. O resultado da análise desses dados revelou mais uma vez a visão dos entrevistados em relação à celebração do Bom Jesus. A palavra mais citada foi “Patrimônio”, consolidando a ideia de identidade que liga a população Oeirense à celebração. Quando tratamos de patrimônio entendemos que para uma comunidade mantenha um sentimento de pertencimento e consequentemente sua preservação é preciso o conhecimento dessa população em relação a si mesmo. Assim, para contrapor a visão dos pesquisados na Escola Juarez Tapety, aplicamos também, via on-line, um questionário com representantes das entidades de Salvaguarda de Oeiras, sendo elas, O Instituto Histórico de Oeiras, o Conselho Municipal de Cultura de Oeiras, A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Oeiras, o Grupo de Consciência Negra Quilombo do Rosário, Representantes do Segmento Educacional e do Museu de Arte Sacra de Oeiras. Os resultados sobre a visão desses atores e agentes culturais em relação à Identificação da Celebração dos Passos como um importante Patrimônio Cultual de Oeiras e do Piauí, a importância de seu registro para a salvaguarda da memória. Foi unânime a percepção de conflitos e mudanças ao longo dos anos e a preocupação com uma tradição secular e a defesa de um Inventário Participativo como instrumento para potencializar o registro dessa celebração como Patrimônio Cultural do Brasil. Mesmo entendendo esse reconhecimento das entidades de salvaguarda locais, tanto públicas, quanto privadas, surgiu também a necessidade de se discutir instrumentos jurídicos do município para o reconhecimento da Celebração como Patrimônio Cultural da Cidade. Promovemos discussões com a Câmara Municipal de Vereadores para sensibilizar o grupo de políticos para o reconhecimento da Celebração como patrimônio cultural imaterial de Oeiras, uma chancela que nos permite propor políticas públicas de salvaguarda.
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Foto: Cássia Moura
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As origens de uma tradição
No Brasil, nos períodos Colonial e Imperial, as confraria e irmandades religiosas foram criadas como confrarias fraternais ao modelo português, firmes na caridade e nas relações sociais; prestando ajuda e assistência, com características próprias, associadas ao contexto histórico, à cultura religiosa de cada território. O culto era ritualizado nas colônias portuguesas (século XVI), o que ampliava o campo religioso da Igreja Católica Romana. Sob o Padroado Régio, os leigos ajudavam na construção de igrejas, na organização de cultos e promoção de devoções. As arquiconfrarias eram responsáveis pela assistência social da população das mais diversas formas: atendiam aos pedidos dos encarcerados, administravam hospitais e supriam a necessidade que a população sentia em pertencer a alguma dessas associações, pois estar fora de seus quadros poderia significar exclusão até mesmo no momento da morte. Pertencer a uma confraria ou irmandade era algo tão importante quanto professar a fé cristã. As confraria e irmandades dedicadas ao Senhor Bom Jesus dos Passos tinham como irmãos somente homens de cor branca e abastados; associações tinham a responsabilidade de organizar as cerimônias e procissões durante o período da Semana Santa e de realizar obras caritativasde caridade. Em Oeiras, à Confraria do Bom Jesus dos Passos cabia organizar a maior celebração do Cristianismo, a Páscoa, bem como o período que a antecede, a Quaresma; relembrar os momentos finais da vida de Cristo, antes de sua imolação pela humanidade; a Confraria da Misericórdia tinha como principal função o dever cristão da caridade e de servir aos necessitados, como Cristo, amparar a pobreza, os que necessitassem de auxílio. A origem da Celebração dos Passos em Oeiras está ligada à Confraria do Senhor Bom Jesus dos Passos da Cidade de Oeiras. Remonta ao século XIX, como herança do catolicismo português, remanescente do século XVI, transferidos para o Brasil ao longo da colonização, tendo desde sua origem uma ritualística de caráter emotivo e penitencial. A Celebração era mantida e organizada por aquela Confraria, as capelinhas do Centro Histórico representam as 14 estações da via sacra e já estavam na planta baixa da Cidade, encomendada pelo Governador Carlos César Burlamarqui.
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Foto: Cássia Moura
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A tradição em Oeiras
A Celebração dos Passos em Oeiras e em várias cidades do mundo ocidental está ligada ao período da Quaresma, antes do Domingo de Ramos. Trata-se de uma representação do último encontro de Nossa Senhora com seu filho Jesus, antes de sua crucificação. Os motivos das celebrações são a devoção e agradecimento de membros de confraria dedicadas ao Senhor Bom Jesus dos Passos. Em Oeiras, da Confraria somente participavam homens de cor branca e abastados. Tinha a responsabilidade de organizar as cerimônias e procissões durante o período da Semana Santa e realizarem obras caritativas. As confrarias e irmandades dos Passos com as confrarias e irmandades da Misericórdia e do Santíssimo Sacramento, no Brasil, eram compostas por membros da elite imperial. À Confraria dos Passos cabia organizar a maior celebração do Cristianismo, a da Páscoa, bem como o período que a antecede, a Quaresma, relembrar os momentos finais da vida de Cristo, antes de seu sacrifício imposto pela humanidade. A Confraria da Misericórdia tinha como principal função realizar o dever cristão da caridade, de servir aos necessitados, como Cristo diante dos pobres e dos que necessitavam de auxílio. Em Oeiras, a tradição das confrarias é herança dos colonizadores portugueses de realizarem vias sacras pelas ruas das cidades, teatralizando os últimos momentos do calvário de Cristo. No caso dos Passos o ritual é motivado pela piedade e gratidão, a maioria dos promesseiros, preparadores da Procissão e devotos buscam pagar promessas, por meio de ex-votos, que são trocas simbólicas, materializas esmolas, sacrifício como pedras e potes de água trazidos na cabeça durante a procissão, bem como vestidos de túnicas roxas a acompanharem a imagem do Bom Jesus de pés descalços pelas ruas estreitas do Centro Histórico de Oeiras, o que reflete uma motivação associada à penitência, própria da liturgia católica do tempo quaresmal. A Semana Santa é uma das mais emblemáticas celebrações religiosas de Oeiras. As ruas estreitas e becos históricos ficam repletos de romeiros, pagadores de promessas, a cantar, orar, 35
e louvar. Representa para os católicos a coração do ano litúrgico, momento de celebração da paixão, morte e ressureição de Jesus Cristo. Antes de iniciar a Semana Santa, na condição de católicos, nos preparamos para o período da Quaresma, quarenta dias após a Quarta-feira de Cinzas, quando somos marcados na testa com uma borra torrada de palha de carnaúba, palmeira típica do Nordeste do Brasil, sinalizando a condição de pecadores, a necessidade de nos redimir diante de Jesus e de seu Pai; até a Quinta-feira da última ceia, momento em que Jesus lavou os pés dos doze apóstolos e fez com eles a ceia final, antes de ser crucificado. Durante a Quaresma acontecem vias sacras, repetidas vezes, sempre às quartas e quintas-feiras, na igreja Catedral de Nossa Senhora da Vitória; trata-se de ritual que representa a condenação, crucificação e ressurreição de Jesus Cristo. Uma quantidade significativa de fiéis comparece à Matriz vestindo roxo, a cor da penitência, do sofrimento e do luto pela morte do filho de Deus. Durante um período de quarenta dias, os fiéis fazem promessas e creem que vestindo roxo estão mais próximos de Bom Jesus dos Passos. O historiador Dagoberto de Carvalho afirma que a devoção acontece há mais de 300 anos. Contudo, um fato curioso reafirmou a origem remota da Celebração. Na planta da cidade de Oeiras de 1809 já estão presentes pequenas edificações conhecidas como “passos”; hoje, são cinco capelas que representam algumas das estações da via sacra. São pequenas capelas, um registro arquitetônico único, dispostas ao longo do Conjunto Histórico e Paisagístico de Oeiras, lugares por onde passa a procissão, o cortejo com orações e bênçãos. Os “passos” (as pequenas capelas) têm a parte da frente voltada para o poente, o que representa o morrer e o nascer do sol, um ato que simboliza a ressureição de Jesus Cristo. A Semana Santa em Oeiras tem início na Quinta-feira, que antecede a Quinta-feira da Paixão; uma Celebração em honra ao Bom Jesus dos Passos. Segundo a professora Espírito Santo Rêgo no livro “Oeiras Tradição e Fé”, a partir das três horas da tarde no mesmo dia, sempre de meia em meia hora, os sinos da Catedral dobram em um tom solene, específico e preparado para a Quinta e Sexta de Passos.
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Foto: Cássia Moura
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A Procissão da Fugida: o cenário urbano se transforma
Os sinos dobram, parecem chorar, trazendo para a cidade uma atmosfera de tristeza e piedade. Há tristeza na face dos fiéis, ao verem representada na Imagem a dor vivida por Bom Jesus dos Passos. Os sons dos sinos seculares chamam as pessoas de longe e de perto para a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória. Aos pés do Bom Jesus rogaram a Deus uma prece. O badalar dos sinos trazem inúmeros romeiros, vindos da zona rural, de outras cidades, do interior do Piauí, da Capital (Teresina), de outros Estados do Brasil. O cenário urbano se transforma. Às dezenove horas, a Catedral - Igreja Matriz é tomada pelos romeiros, que assistem atentos à missa da Quinta-feira da Fugida, termo que simboliza a fuga de Jesus Cristo para o Monte das Oliveiras, segundo a tradição bíblica, Jesus precisava rezar e preparar o seu espírito para a via dolorosa e para os momentos de flagelo que estavam por vir. A missa chega ao fim, diante da imagem do Senhor Bom dos Passos, em andor do século XIX (1856), acontece a cerimônia do canto do Miserere, versão musicada à cappella do Salmo 50, feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri. Miserere, palavra com a qual começa, na sua tradução latina, a Vulgata. Vozes entoam as estrofes lamuriosas e tocantes, que chegam a arrancar lágrimas dos devotos. Mantendo a tradição, a Imagem do Bom Jesus é coberta por um dossel roxo para que não a vejamos. Estar coberta é uma forma de representar a fuga de Jesus, de esconder-se dos centuriões romanos. Após a Cerimônia, a Imagem deixa a Catedral em Procissão, carregada por homens, em direção à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada em uma altitude elevada, uma espécie de colina, no Bairro do Rosário, habitado por remanescentes de populações escravizadas quando da colonização portuguesa no Piauí. A Igreja representa, na tradição Oeirense, o Monte das Oliveiras, onde Jesus ficou recolhido a meditar. No templo do Rosário, a Imagem é venerada durante toda a noite. A Procissão da Fugida, ao sair da Catedral, segue até o à Igreja do Rosário, em silêncio, rompido apenas pelos sinos da Catedral e da Igreja do Rosário. Até a década de 1960, apenas os homens acompanhavam a Procissão. Hoje, homens e mulheres, durante aproximadamente uma hora, acompanham a Procissão da Fugida. 39
Quando a Procissão chega à Igreja de Nossa Senhora do Rosário – antiga Igreja dos Pretos, o dossel, uma espécie de cortina portátil, quadrilongo de tecido decorado de franjas, sustentado por hastes, é retirado, e a Imagem é descoberta. Novamente é cantado o Miserere e os sacerdotes incensam a Imagem de Bom Jesus dos Passos, como símbolo de divindade. É feita a aspersão (o respingar) de água benta e a benção sacerdotal. Sobre a cabeça da Imagem de Bom Jesus dos Passos está o resplendor de prata, que faz jus à sua condição de rei. O Horto, o Monte da Oliveiras é representado pelo Bairro do Rosário. A Igreja é ornada com plantas nativas da região, como o alecrim, planta da espécie Rosmarinus officinalis e flores artesanais de “passos”, feitas de forma artesanal, com papel de seda laminado, colados com cera de abelha e com suporte em talos de buriti ou coco. A Igreja do Rosário se transforma no Santuário do Senhor Bom Jesus dos Passos. O aroma do alecrim torna o ritual místico; a essência perfumada do Santo devoto de Oeiras, odor da redenção dos devotos. A túnica roxa do Santo é constantemente tocada pelos fiéis, que no andor depositam esmolas, pedidos de cura do corpo e da alma. O olhar expressivo da imagem oitocentista emociona os romeiros, que não cansam de tocar a cruz, os cabelos e a coroa de espinhos sobre a cabeça de Bom Jesus. Ao longo da noite da Quinta para a Sexta-Feira dos Passos, as famílias católicas de Oeiras ornam as pequenas capelas dos Passos com André-miúdo, planta nativa da região, com o alecrim, para perfumar o ambiente sagrado, e com as flores de passos, como são conhecidas em Oeiras. Segundo o senhor Francisco Rêgo, um dos devotos responsáveis por preparar a imagem de Bom Jesus, não é possível saber quem criou a flor de passos, mas sabe-se que só existe aquela forma de fazer em Oeiras e que é elemento da alegoria da Celebração, oferece alegria e beleza às estações da via-crúcis. Segundo o senhor, os Passos têm sua frente voltada para o poente, demostrando o morrer e o nascer do sol, uma metáfora da ressureição.
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Foto: Cássia Moura
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Vem romeiro de todos os cantos... se estiver chovendo, vem ainda mais gente agradecer...
Quando o sol nasce na Sexta-Feira, dia do Bom Jesus dos Passos, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário faz soar o sino, são seis horas da manhã, a cidade e o bairro despertam. As ruas são tomadas por flâmulas roxas, que acenam para os romeiros que chegam em caravanas para assistirem à primeira missa do dia na Catedral. Os romeiros vêm de toda a zona rural do município de Oeiras para pagarem promessas. São homens, mulheres e crianças. Além dos promesseiros da região de Oeiras, há aqueles que viajam de ônibus, vans e caminhões, são romeiros da região do Vale do Canindé, território que pertence a Oeiras, bem como cearenses e maranhenses. A chegada se dá pela manhã à Igreja do Rosário para assistirem à primeira missa diante da imagem do Bom Jesus dos Passos. Quando há bom inverno, muitas chuvas na região, a quantidade de romeiros aumenta consideravelmente, pois veem pagar promessas pelo sucesso do plantio e colheita. Assim, as promessas estão ligadas também ao ciclo da agricultura.
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O ofício
Ao meio dia da Sexta-Feira é rezado o ofício dos Passos na Igreja do Rosário. Centenas de fiéis participam. O ofício é melodiado por vozes que ora rezam, ora cantam o martírio de Jesus Cristo. As vozes dos fiéis representam a paixão e morte de Bom Jesus. A assembleia faz um ato de contrição, roga perdão a Deus pelo sofrimento do redentor. Para os romeiros é um momento de graça e de pedidos ao Santo. O ofício é rezado atualmente pelas Senhoras Onezinda Portela Serra e Maria do Espírito Santo Rêgo, professoras Oeirenses que receberam essa tradição de suas mães, as Senhoras, Maria de Lourdes Portela Rêgo e Maria da Conceição Portela Serra. Hoje, já participa da cerimônia ajudando as tias, a Jornalista Isnara Rêgo Guimarães.
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"O dia mais oeirense de todos"
A partir das dezesseis horas, o Largo da Igreja do Rosário é tomado por uma multidão de mais de trinta mil romeiros, o grande público da Procissão, que veem no sofrimento de Cristo o seu próprio sofrimento. Olhando do alto da torre da velha Igreja de Nossa Senhora do Rosário é visível a imensa cortina roxa que toma as ruas de Oeiras. São pagadores de promessas, com pedras na cabeça, pés descalços, carregando cruzes, com flores de Passos nas mãos e muita fé. No interior da Igreja há enorme movimentação. Os sacerdotes cuidam dos paramentos. Os homens que carregam o andor com a Imagem do Bom Jesus, vestem a roupa roxa, uma espécie de camisola para diferenciar dos demais fiéis, representando a Confraria daqueles homens que a receberam, nossos antepassados, seguimos adiante com a tradição. Ainda carregam nas mãos hastes de ferro conhecidas como descanso, que servem para sustentar o andor, quando a imagem para diante dos Passos. Os sinos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário tocam novamente, chamam os romeiros para o interior do templo barroco. Os sacerdotes acompanhados dos ajudantes de cerimônia se posicionam diante da Imagem, que se encontra na capela-mor, a principal desse templo. Canta-se novamente o Miserere (Salmo 50) da misericórdia; a Imagem é incensada ao som das vozes que cantam: “Tem de piedade Senhor e sê clemente tua bondade, apague os meus pecados”. A bênção da imagem é feita pelo bispo diocesano, que traz nas mãos a relíquia da Santa Cruz, um fragmento que se acredita ser da cruz original na qual Jesus Cristo foi crucificado. É um símbolo da fé católica. A relíquia foi trazida para Oeiras pelo terceiro bispo da Diocese, Dom Edilberto Dinkelborg, que a geriu de 1959-1991. Os restos mortais do sacerdote estão depositados na capela do Bom Jesus, na Igreja Nossa Senhora da Vitória de Oeiras. Após a benção, a Imagem deixa a Igreja do Rosário levada por homens que herdaram dos antepassados a missão de carregadores do Bom Jesus. O senhor Francisco Rêgo, afirma que “a Imagem do Santo é vestida com uma túnica roxa, cabelos longos e humanos, sobreposta em um andor de madeira, atado por duas cordas e uma coroa de espinhos para designar a condição de rei. A sua fronte está perfurada e as mãos maltratadas, seguram uma cruz como sinal dos pecados da humanidade e ainda sobre sua cabeça uma auréola de prata, mostrando a divindade do Santo”. 49
Acompanhando a imagem, quatro lanternas de prata do século XVIII. À frente estandartes ou flâmulas romanas roxas, que representam o poder do Império Romano. Uma das flâmulas traz a seguinte inscrição em latim: S.P.Q.R, que significa Senatus Populusque Romanus, que quer dizer: “O senado e o povo romano”. Os católicos de Oeiras ,na sua fé, modificaram de forma cristã o sentido da inscrição: “Salvai Povo Que Remi”. Pedindo a salvação a Jesus, através das indulgências, do perdão dos pecados.
Foto: Reginaldo Oliveira
A Imagem é retirada do interior da Igreja e colocada no adro da Igreja do Rosário. Atrás, os sacerdotes e o bispo que vêm debaixo do pálio-dossel, uma espécie de toldo coberto com varas de prata, a guardar a pessoa sagrada do bispo.
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Há personagens bíblicas no meio da multidão
No ritual, antes dos estandartes romanos e logo depois da Imagem do Bom Jesus, seguem quatro personagens bíblicos. São jovens mulheres, vestidas com trajes típicos do tempo de Jesus, que representam as santas mulheres que seguiram Jesus até o calvário: Verônica, Maria Madalena, Maria de Cléofas e Salomé. Verônica é conhecida em Oeiras como Maria Beú, em virtude da estrofe final do canto em latim “meus”. Com o passar dos séculos, as pessoas entendiam “Beú” em vez de “meus” e assim passaram a chamá-la de Maria Beú. Traz nas mãos um fragmento de tecido, que representa um pergaminho, com uma pintura da face do Bom Jesus - o Sudário, que é desenrolado em cada uma das estações ou passos. A Procissão apenas segue após Verônica abrir o Sudário e cantar o lamento do Profeta Jeremias: “Ó vos ommes, qui transitis per viam, atendite et videte si est dolor sicut dolor, dolor meus, meus, meur”, traduzido como “Caminheiros que passais por este caminho parai e olhai por favor se neste mundo existe uma dor assim tão grande, como uma dor de minha dor, de minha dor”. O canto é repetido nos cinco Passos dispersos pelo Centro Histórico de Oeiras; ora é cantado em latim, ora em português, sempre de forma intercalada.
Foto: Reginaldo Oliveira
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Uma marcha para o Bom Jesus Passar até parar nos Passos
O cortejo sai em procissão, acompanhado pela banda de música Santa Cecília, criada em 1940 e sempre presente nos eventos festivos da cidade. Ao longo da Procissão, a Banda executa o “Dobrado” de Bom Jesus dos Passos, registrado como Marcha Tradicional e Afetiva do Bom Jesus dos Passos de Oeiras, que tem Arranjo do Maestro Joaquim da Silva Copeiro. Para o Senhor Sousa, “cada passo (capelas) apresenta duas estações da “via-crúcis”. Como só existem 5 capelas-passos em Oeiras, o encontro em frente à Casa de Câmara e Cadeia e o final da procissão na Igreja da Vitória são considerados passos para totalizar 14 estações (7x2=14). Em cada passo repete-se o ritual. O coral canta, o sacerdote queima incenso, dá benção do Santo Lenho e Verônica canta de novo as palavras de Jeremias” Os fiéis acompanham o cortejo que segue, fazem as paradas em cada um dos passos até chegarem à Praça das Vitórias, em frente ao antigo Palácio da Cidade, hoje, Prefeitura de Oeiras ou Paço Municipal. Quando a Procissão chega ao centro de Oeiras é quase noite. Os sacerdotes se dirigem às janelas do Sobrado e um deles faz o Sermão do Encontro entre Jesus Cristo e sua Mãe. Segundo o teólogo e ex-pároco da Igreja Catedral de Nossa Senhora da Vitória, Raimundo Nonato Marques, esse é o momento mais importante da cerimônia, o “Sermão do Encontro”. A cena representa o encontro de Bom Jesus com Nossa Senhora das Dores, a mãe que vem ao encontro do filho, sinônimo de amor e piedade. A imagem das Dores data do século XIX, sobre ela há um manto e véu sobre a cabeça, ambos com a cor roxa. Trás ainda sobre a cabeça um resplendor de prata, para designar a condição de rainha. O andor de Nossa Senhora é levado por mulheres que fazem parte do Apostolado da Oração – Sagrado Coração de Jesus, Confraria religiosa secular a cuidar pelas tradições religiosas da cidade. Quando as duas imagens se encontram, a Procissão continua a parar ainda em dois passos, sendo que um deles o Passo do Engano, onde o andor com a Imagem do Bom Jesus faz três voltas, simbolizando que Jesus desejava enganar os seus malfeitores. A tradição Oeirense considera esse momento como a cerimônia do engano, os fiéis devem fazer pedidos e orações. 55
Ao chegar à Catedral de Nossa Senhora da Vitória, a Procissão segue para o adro do templo. São entoados o Miserere e o canto da Maria Beú; as imagens do Bom Jesus e de Nossa Senhora adentram o templo, aclamadas por palmas e cantos piedosos. Muitos fiéis, que durante o cortejo pagaram suas promessas se despedem de Jesus e Maria, sua mãe, oferecendo esmolas e fazendo pedidos, para que no ano seguinte estejam novamente acompanhando a Procissão.
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A Preparação
A Celebração é organizada pela comunidade, em equipes coordenadas pela Diocese de Oeiras, através da Paróquia de Nossa Senhora da Vitória. Desde o início do ano, é feito um planejamento com leigos e participantes que preparam a Celebração. As equipes são de infraestrutura, que se responsabiliza pela logística; de comunicação, através da Pastoral da Comunicação da Paroquia, que faz o plano de mídia como a arte para cartazes, outdoor, spots para rádio e carros de som, camisetas, leques etc. Os leigos preparam as roupas das Imagens. O Apostolado da Oração formadas por famílias dentre as quais há aquelas encarregadas do andor do Bom Jesus e do andor de Nossa Senhora das Dores, bem como responsáveis pela alimentação do Clero; o Terço dos Homens fazem a coleta de esmolas durante o Sermão do Encontro. Hoje, usam placas para identificar esses coletores na Praça das Vitórias, localizada em frente à Catedral. Há a equipe de acolhimento ao romeiro, responsável pelos pontos de apoio como a Unidade Escolar Nogueira Tapety e a Escola Municipal Francisco Quirino, localizadas no Bairro do Rosário e que permanecem abertas para receber os promesseiros com espaço para descanso, banho e também com disponibilidade de água. A Prefeitura de Oeiras, através da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, está responsável pela decoração do Centro Histórico, preparação do Paço Municipal para o Sermão do Encontro, pelo som usado durante o Sermão e pela transmissão ao vivo da Procissão pelas rádios, televisão e redes sociais. Também dão suporte, a Secretaria Municipal de Obras, responsável pela logística durante o trajeto da Procissão e limpeza das ruas, tanto antes, quanto depois da romaria; Secretaria Municipal de Saúde, que disponibiliza profissionais, o que incluem 100 tendas armadas para serviço de pronto socorro, caso necessário. A Secretaria Municipal de Educação disponibiliza escolas para apoio dos romeiros, que vêm em caravanas de outras cidades e também da zona rural do município. A segurança é reforçada pela Polícia Militar do Piauí. Há um grupo de pessoas responsáveis pela preparação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a chegada da imagem do Bom Jesus dos Passos na Quinta-feira da Fugida. Ao longo de dois meses, confeccionam sacos com alecrim, planta da espécie Rosma57
rinus officinalis, tradicionalmente usada no altar da igreja e que é levada pelos devotos. Além de organizarem a Igreja, armam tendas ao redor para abrigarem os romeiros durante o ofício dos Passos, que acontece na Sexta-feira e pontos de apoio aos romeiros nas escolas dos bairros. A organização e gestão da Celebração contam com a participação dos leigos e o capital financeiro das próprias paróquias, recursos que arrecadam durante as intenções, as ofertas, venda de camisetas, livros de cânticos e ofícios, patrocínio de empresas e instituições que são devotas.
Foto: Stefano Ferreira
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O santo já subiu... Tem que ter quibebe na mesa
O tradicional quibebe, receita transmitida de geração a geração, alimento à base de abóbora, é o prato típico da Semana Santa de Oeiras e é consumido no dia da Celebração também nos dias da Celebração de Bom Jesus dos Passos, na maioria das casas dos devotos.
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O Inventário Participativo da Celebração dos Passos de Oeiras, Piauí resultou em um conjunto normalizado de registros que são fruto de procedimentos, práticas e conceitos. Entretanto, mesmo com uma metodologia prevista, a construção desse documento teve em seu percurso ações que partiram de uma necessidade coletiva, fruto da participação dos atores sociais envolvidos. A teia de narrativas, fruto da memória dos Oeirense, os significados atribuídos pelas pessoas e a ressignificação de uma prática ancestral, ligados a fé das pessoas, criaram um repertório documental que alinhavou o saber acadêmico, fruto de um referencial teórico que sustenta sua execução, bem como os saberes e vivências das pessoas, o que dá todo o sentido à coleção constituída com este Inventário, visto que o patrimônio só faz sentido quando existe com e para as pessoas. O desejo de salvaguarda presente nesse trabalho extrapola não apenas uma questão de registro de uma tradição, mas à interpretação do patrimônio de forma analítica, com reflexões teórico-metodológicas, que refletem dicotomias envolvidas na Celebração como: autoridade e poder, cultura e religião popular, tradição e modernidade. Obviamente, muitas questões e detalhes de uma Celebração tão rica quanto a dos Passos de Oeiras não foram tratadas, pois não fora o objetivo de uma pesquisa como esta, visto que em uma pesquisa colaborativa, as prioridades dos objetos da investigação são decididas em conjunto, pelos colaboradores-participantes. Assim, uma arqueologia etnográfica foi apontando, ao longo das recolhas e registros, as memorias dos atores construtores conosco desses instrumentos de pesquisa, juntos decidimos o que deveria ser prioritariamente documentando, registrado, inventariado. Nos orientamos pelos estudos e pesquisas no campo do patrimônio cultural imaterial e da museologia contemporânea. Buscamos trazer para com as memórias afetivas do povo Oeirense um grande painel da procissão dos passos, ressaltando o que de mais raro essa celebração possui na identidade dessa comunidade. Por isso, além da parte escrita com todas as normas que um registro como esse requer, produzimos também com o material das rodas de conversa, sendo eles, fotografias, vídeos, áudios e anotações, um Videoinventário, intitulado “Inventário da Celebração dos Passos de Oeiras Piauí: Amostras do Processo”, realçando todo o processo da pesquisa, seu caráter comunitário e sua metodologia construída, revelando que esse registro, por ser comunitário pode ser revisitado e alimentado por outras pesquisas, pois a interpretação do patrimônio deve ser dinâmica para que o mesmo esteja vivo. O Inventário da Celebração de Bom Jesus dos Passos de Oeiras, Piauí, vem como um chamamento público para a construção de instrumentos legais de proteção, a partir da mobilização dos agentes públicos e privados, alicerçados na educação para o patrimônio, sua promoção, valorização e preservação de um rico patrimônio cultural intangível presente nos sertões de dentro.
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O ano em que o Bom Jesus não saiu em Procissão
Em dezembro de 2019, o mundo inesperadamente assistiu a proliferação de um vírus na China. O que o mundo não imaginava à época era que se tornaria uma pandemia que devastaria a Europa e chegaria aos países da Amarica Latina em 2020. Denominada de COVID-19 pela Organização Mundial de Saúde é uma doença respiratória aguda causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto uma pandemia e até 15 de abril de 2020, pelo menos 1 970 879 casos da doença foram confirmados em mais de 210 países e territórios, com grandes surtos nos Estados Unidos (mais de 611 000 casos), Espanha (mais de 174 000 casos), na Itália (mais de 162 000 casos), Alemanha (mais de 132 000 casos), França (mais de 103 000 casos), Irã (mais de 75 000 casos) e China continental (mais de 82 000 casos). Pelo menos 125 910 pessoas morreram (mais de 25 000 nos Estados Unidos, pelo menos 21 000 na Itália, cerca de 18 000 na Espanha, por volta de 15 700 na França, mais de 12 000 no Reino Unido e pelo menos 3 300 na China) e 474 261 foram curadas. Esse fato que mudou a vida politica, econômica e social do mundo chegou ao Brasil desde o mês de março de 2020, chamando a atenção das autoridades públicas de saúde nas cidades e municípios, que foram orientados a mudarem seus hábitos e a vida cotidiana, através de isolamento social, fechamento do comercio, cancelamento de eventos públicos e aglomerações. Aqui no estado do Piauí, no dia 19 de Março de 2020, o Governador Wellington Dias decretou Estado de Calamidade Pública no Piauí, em decorrência da pandemia da Covid-19, através do decreto Decreto Nº 18.895 e Suspensão de serviços e controle de fluxo, através do Decreto Nº18.901/2020. A oficialização das restrições por conta da epidemia orientava para tomada de decisões por todos os municípios de estado, visando conter a disseminação do vírus. Em Oeiras, a preparação da Tradicional Semana Santa, incluindo a Celebração dos Passos, manifestação religiosa e popular que já data de mais de 200 anos, começa muito cedo, mobilizando famílias guardiãs das tradições, artesãos, clero, leigos e leigas, bem como o poder público municipal. 65
Assim sendo, perante as perspectivas da pandemia e as restrições e orientação da OMS sobre aglomerações públicas, a comunidade Oeirense foi surpreendida com possibilidade de não realizar sua principal manifestação cultual de caráter imaterial e símbolo maior da fé do povo de Oeiras, a Procissão do Bom Jesus dos Passos. Antes mesmo do decreto Estadual e Municipal, preocupados com a realização da Semana Santa de Oeiras e, sobretudo com a Celebração dos Passos, representantes da Igreja Católica, da Prefeitura Municipal, Conselho Municipal de Cultura, Instituto Histórico de Oeiras, Secretaria Municipal de Saúde e Museu de Arte Sacra, estiveram reunidos na manhã do dia 16 de março de 2020, na sede da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, para discutir a realização da Semana Santa de Oeiras, prevista para acontecer de 02 a 12 de abril.
Reunião comunitária para providencias sobre a Semana Santa de Oeiras 2020 Foto: Secult-Oeiras-Piauí
Na ocasião, o Padre Possidônio Júnior, pároco da Catedral de Nossa Senhora da Vitória manifestou que o momento pedia cautela e que a Igreja estava atenta às medidas tomadas pelas autoridades de saúde, mas que uma decisão definitiva sobre a realização ou cancelamento do evento religioso deveria ser tomada nas semanas seguintes, após reunião do clero e interlocução com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), visto a complexidade da Procissão dos Passos, sendo esta a principal manifestação de fervor, devoção e fé do Estado do Piauí e uma das maiores do Brasil. Naquela ocasião, as cerimônias de preparação para a Semana Santa foram mantidas. 66
Em decreto assinado pelo bispo de Oeiras, Dom Edilson Soares Nobre e pelo Padre Kleyton Vieira, Chanceler da Cúria, a Diocese de Oeiras, a partir do dia 16 de março de 2020, suspendeu todas as atividades que reuniriam grande número de fiéis, a saber: encontros (catequese, círculos de estudos, reuniões pastorais, etc), assembleias, Vias-Sacras públicas, procissões, festas de padroeiro e aglomerações acima de 100 pessoas em ambiente fechado e 200 pessoas em ambiente aberto, dentre outras recomendações. Acompanhando as medidas emergenciais adotadas pelas autoridades de saúde de todo o país, o prefeito de Oeiras, José Raimundo de Sá Lopes, assinou no dia 19 de março de 2020, novos decretos que intensificam as ações essenciais para o enfrentamento da emergência de saúde pública no município de Oeiras. Os documentos declararam “estado de calamidade pública” e suspenderam o funcionamento de todos estabelecimentos comerciais, de serviços e industriais, bem como as atividades da construção civil, com exceção apenas de serviços essenciais, como mercados, supermercados, mercearias, açougues, peixarias, frutarias e centros de abastecimento de alimento, farmácias e drogarias, postos de combustível, padarias, distribuidoras de energia elétrica, água, saneamento básico, serviço de limpeza urbana e coleta de lixo, entre outros, estabelecendo horários de funcionamento. Além disso, Bancos, casas lotéricas e outros serviços financeiros devem apresentar Plano de Ação de Controle de Fluxo, considerando o limite máximo para acesso e distância mínima de dois metros entre as pessoas. Parques municipais e áreas públicas de recreação, lazer e práticas esportiva também ficaram fechados. Restaurantes, lanchonetes e espetinhos devem funcionar apenas pelo serviço de delivery. No decreto de municipal Nº 026 de 19 de Março de 2020, que dispõe sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo corona vírus(COVID-19) no Município de Oeiras-PI e dá outras providências, no seu artigo 5º, recomendava aos organizadores e produtores de eventos o cancelamento de eventos esportivos, culturais, artísticos, políticos, científicos, comerciais, religiosos e outros eventos que reuniriam grande quantidade de pessoas. Nesse contexto, a Semana Santa com suas cerimonias tradicionais, sendo a Procissão dos Passos a maior delas com grande aglomeração, chegando a 20 mil pessoas, não poderia, por medida de saúde pública, ser realizada esse ano. Assim sendo, o Bispo da Diocese de Oeiras, Dom Edilson Soares Nobre, confirmou através de coletiva de imprensa os rumores de cancelamento dos atos paralitúrgicos da Semana Santa em Oeiras, dia 25 de março de 2020, considerando grave perigo de contaminação do COVID-19. Por este motivo, as cerimonias que aconteceriam entre 3 abril (sexta-feira do Bom Jesus dos Passos) à 12 de abril (Domingo da Ressurreição) estavam suspensas. Pelo decreto do dia 25 de março de 2020, todas as procissões estavam canceladas, a saber; a Procissão da Fugida, Procissão do Bom Jesus dos Passos, Procissão dos Ramos, Procissão do Fogaréu, Descimento da Cruz, Procissão do Senhor Morto; Procissão do Cristo Ressuscitado”, afirmou o Bispo Dom Edison Nobre.
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Em relação, as Celebrações Eucarísticas e Orações reservadas para o dia do Bom Jesus dos Passos, estas, seriam realizadas sem a presença do povo. Mas acompanhadas através dos meios de comunicação, sendo eles, rádios locais e redes sociais tanto da diocese, quanto da paróquia, para que a comunidade não deixasse de vivenciar a mística e a tradição daqueles dias. Recomendou ainda às famílias responsáveis pelos Passos, as capelas situadas no Centro Histórico de Oeiras, que neste dia os mantivessem abertos e arrumados, como fazem anualmente com as tradicionais toalhas na cor roxa, isto é , púrpura, e com as flores de passos decorando o ambiente. Após o decreto do Bispo Dom Edilson e o posicionamento das autoridades civis, um clima de comoção tomou conta da cidade e dos seus filhos espalhados pelo mundo que achegam essa época para a celebração mais importante para o povo da primeira capital. A imprensa regional começava a noticiar a não realização das procissões e a Igreja, através tanto da Pastoral de Comunicação da Paróquia de Nossa Senhora da Vitória, quanto da Diocese de Oeiras, passaram a traçar um plano de mídia que visava divulgar as celebrações, já que os fiéis, pela primeira vez em mais duzentos anos, não acompanhariam presencialmente. Portanto, no dia 02 de abril de 2020, teve início, a Semana Santa de Oeiras, com as cerimônias em honra ao Bom Jesus dos Passos, sob novo formato. Somente o clero, dois leitores e a parte do coral Madrigal de Nossa Senhora da Vitória, entravam na catedral. Com a mudança da programação tradicional não aconteceu a procissão da Fugida, momento em que a imagem secular do Bom Jesus sai em procissão até a Igreja do Rosário, simbolizando o recolhimento de Jesus para o Horto das Oliveiras. Durante este dia aconteceram várias atividades, como mesa redonda acerca do tema da Semana Santa 2020: “Nos Passos do Bom Jesus – vida, missão e compromisso” e o lema: “Ele viu, sentiu compaixão e cuidou” (Lc 10,33- 34). No turno da tarde, os católicos acompanharam de casa, pelas mídias sociais e rádios locais, a recitação do terço ao Bom Jesus e às 19h, a celebração da santa missa direto da Igreja catedral. É bem verdade que alguns fiéis ainda entraram na igreja, a fim de ver as imagens do Bom Jesus e de Nossa Senhora das Dores, que foram descidas do altar. Porém, nas falas dos padres, a orientação é que não fossem à catedral e que contemplassem de suas casas. Dando sequência, rezou-se novamente o Ofício ao Bom Jesus, encerrando com a ladainha da Paixão e Morte de Cristo. Nesta cerimônia, Dom Edilson, conectado aos fiéis, através das mídias sociais e rádios locais, exortou-os a ficarem em casa, a viverem esse itinerário da Semana Santa, acompanhando as atividades litúrgicas em família, visto que para muitos esse novo formato celebrativo era inconcebível, pois tratava-se de uma tradição secular ligada à fé das pessoas, e, por isso mesmo, a igreja precisava ser enfática naquele momento, pois era uma questão de saúde pública mundial. Após ter encerrado a cerimônia na Igreja Catedral, já no final da tarde, Dom Edilson deixou a Igreja e fez o percurso solitário da procissão, passando em cada Passo, capelas em número de cinco espalhadas pelo centro histórico que representam as estações da via-sacra. Ao passar em cada Passo, Dom Edilson presidiu a bênção das capelas e das flores de passo, um dos símbolos da celebração ao Bom Jesus. 68
Canto da Verônica, Maria Beú, sem fiéis, no interior da Catedral Foto: Pascom Paróquia de Nossa Senhora da Vitória
Dom Edilson Soares Nobre, Solitário em uma das Capelas dos Passos 69 Foto: Pascom Diocese de Oeiras
Na missa das 19h, presidida pelo Pe. Possidônio Barbosa e concelebrada pelos padres José Francisco e John Elves, na Igreja Catedral, os romeiros do Bom Jesus puderam fazer seus últimos agradecimentos, acompanhando a celebração eucarística pelas rádios Primeira Capital e Vale do Canindé, bem como pelas mídias sociais da Paróquia Nossa Senhora da Vitória. Esse relato revela um fato inusitado não só para os fiéis, mas para moradores, turistas, agentes culturais e pesquisadores dessa celebração. Até mesmo para a própria igreja que no mundo inteiro teve que reinventar sua prática celebrativa, buscando estratégias comunicacionais para chegar ao maior numero de pessoas, exercitando assim, o que ela mesma denominou de Igreja Domestica. Este inventário, estava prestes a ser defendido como dissertação de mestrado no âmbito do Mestrado Profissional em Artes, Patrimônio e Museologia da Universidade Federal do Piauí, quando as limitações por conta do Coronavirus mudou o mundo. Como tratamos de uma celebração secular que é marcada por uma tradição, entendemos que precisaríamos registrar esse momento inusitado que os fiéis do Bom Jesus dos Passos de Oeiras vivenciaram, registrando também de que forma, mesmo limitados, a comunidade se reorganizou para que a celebração acontecesse, mesmo que com outro formato, não permitindo assim que a tradição fosse quebrada. Esse fato veio também evidenciar uma preocupação relatada desde a identificação do problema dessa pesquisa, que é a necessidade de registro do patrimônio cultural de uma comunidade, sobretudo daquilo que ela identifica como identitária, importante e raro, bem como a importância do envolvimento de uma comunidade na preservação de sua cultura e de seu patrimônio. Como parte do processo da pesquisa e da produção dos produtos desse inventário participativo, fizemos com a Professora Doutora Áurea da Paz Pinheiro, orientadora deste inventário, uma live, transmissão ao vivo pelas redes socias, no dia da Celebração dos Passos, e discutimos com estudantes, professores, comunidade Oeirense e interessados no patrimônio cultural do Piauí, a Celebração do Bom Jesus dos Passos de Oeiras em tempos de pandemia.
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Divulgação da Live sobre a Celebração dos Passos com transmissão via redes sociais Foto: Rainner Sá
É de suma importância reconhecermos que a ausência da Procissão dos Passos de Oeiras e a celebração das cerimonias, mesmo que de uma forma nova, mostrou-nos a relação intima que deve existir entre os processo de registro e comunicação para a eficácia da preservação do patrimônio cultural de um povo.
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Para saber mais acesse o QR CODE abaixo e leia o relatório dos resultados da pesquisa-ação sob o título “Inventário Participativo da Celebração do Bom Jesus dos Passos em Oeiras - Piauí”, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional da Universidade Federal do Piauí, composto de dissertação, anexos, apêndices e toda a bibliografia utilizada durante a pesquisa.