Vida
secreta REVISTA DE LITERATURA E IDEIAS
3ÂŞ Os leitores da brasileira Clarice Lispector [1920-1977]
3ª Vida Secreta Edição, arte e projeto gráfico João Gomes Contato facebook.com/leiavidasecreta vidasecreta.weebly.com São de responsabilidade exclusiva dos autores as opiniões expressas.
Por Claudia Andujar, 1961.
Capa: com o 2ยบ filho, Paulo.
Carta aos leitores por João Gomes Provocação de apaixonado falar do seu amor. É esta a impressão quando dedicamos, guiados pelo mistério secreto de sua prosa, toda uma edição a uma das vozes mais lidas na literatura brasileira. Temos motivo para tanto, porque seus leitores habitam o imaginário do real até o virtual das frases associadas ao seu nome, gerador de entendimento relacionado às profundezas do humano. Talvez só aquele que se desinteressa pela leitura pode se dar a pobreza de passar sem saber da literatura de Clarice Lispector, visto que se manifestam aqui os seus leitores, e provam que suas vidas guardam o sentido pra dentro de cada linha. De depoimentos a entrevistas, narrativas e artigos, nossa edição especial aos 95 anos dela. Repassem a vez, boa leitura, e até a próxima.
Sumário Meu namoro com Clarice Lispector, 8 revelação de Graça Taguti Beth Goulart simplesmente Clarice, 17 entrevista com Beth Goulart A paixão segundo Clarice, 26 narrativa de Cícero Belmar Lis no peito da própria vontade, 28 narrativa de João Gomes Elegíaca, 34 poema de Raimundo de Moraes Cândida Raposo e Macabéa: opostas, 38 narrativa de Ale Safra O “it” em Kerouac e Clarice, 42 artigo de Celia Musilli O gabinete da bruxa, 48 artigo de José Castello O que cada um carrega sobre o peito, 62 crônica de Vera Saad Rossi É claro, é menina, 68 narrativa de Tatá Scaroni
O Rio de Clarice e etc., 70
entrevista com Teresa Montero Duas vezes Clarice, 76 entrevista com Nádia Battella Gotlib Clarice, nosso souvenir, 88 crônica de Cristiano Aguiar Se Clarice não fosse Clarice, 92 narrativa de Felipe Valério Clarice e o outro em si em dois contos, 96 artigo de Norma de Souza Lopes Por enquanto eu estou morta, 112 narrativa de Adrienne Myrtes Clarice: a vida vista pela vida, 118 depoimento de Aloísio Svaiter Escrever as forças das águas 122 artigo de Carla Carbatti
A paixão em dois tempos, 128
depoimento de Antonio Carlos Viana Os infantis de Clarice Lispector, 134 artigo de Geórgia Alves O visual em A descoberta do mundo, 138 fotos por Lucas Hero
Acervo do IMS.
Manuscrito de Água viva por Clarice Lispector Calo-me. Porque não sei qual é o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós. Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo. E não tem fórmulas.
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Meu namoro com Clarice Lispector por Graça Taguti A paixão por esta mulher – meio mito, meio esfinge, meio nuvem – começou muito cedo. Por volta dos meus 18 anos. Hiperativa, mocinha-criança-projeto de gente, eu perambulava pelas interrogações dos dias sempre com a cabeça acesa. O coração, inevitavelmente doce. De uma doçura esparramada pelas surpresas da rotina, tomando conta de tudo, sempre. Mais curiosa e farejadora que os felinos, eu deslizava pela vida, entre atenta-edesligada, num melódico movimento. Garota faceira, travessa, intrigante. Achava que as calçadas das ruas eram tapetes. Ritos urbanos, ramificados em braços afáveis, estendidos devagar nas curvas do Rio de Janeiro. Para mim, o único objetivo desta cordial geografia era o de me receber, estava certa disso, nas minhas andanças constantes por bairros cariocas. Vez por outra me flagrava cortejada, nos espelhos dos olhos pedintes, quase licorosos, dos transeuntes. Hormônios, seduções e segredinhos de quem também descobre, aos poucos, as ondulações internas nas montanhas russas do corpo, habitante de um parque de diversões chamado vida.
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Saía, bebia, estudava, fazia terapia, lia muito, me divertia, dançava sempre. Amava me enfeitar de palavras, metáforas coloridas, fantasias saídas das estantes, para decorar, com exclusividade, meu colo adolescente. Desde pequena, ainda portando lancheira nos recreios do colégio, comecei a colecionar passeios literários. Viagens exclusivas, paisagens febris, catalogadas uma a uma no armário branco do meu quarto – destinado a acomodar sonhos, ainda vindouros. Foi quando conheci Clarice Lispector. Analógica, tangenciável. Rosto denunciando enigmas. Hieróglifos da alma. Olhos rondando a noite, de formato quase oriental. Pele alva. Quase transparente. Boca desenhada para murmurar histórias e ficções, ouvidas apenas pela escuta atenta de veias e artérias. Eu andava sempre com um livro dela na bolsa. A paixão
segundo G.H.
Conversava com Pedro, na ocasião, seu filho mais velho, na clínica aonde ambos fazíamos terapia, quando inesperadamente Clarice surgiu – transportada por um silêncio régio e chuva torrencial. Noite sem estrelas, olhar esgazeado, cabelos úmidos, ela entrou na sala trajando uma capa de chuva cinza e um imponente guarda-chuva. Imaginando tratar-se de
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miragem, balbuciei trêmula. “Clarice… eu… te adoro.” Clarice me observou sem pressa. A seguir passou delicadamente as costas da mão por meu rosto adolescente. Disse, então: “Lindaaa”. Eu sorri desajeitada, incrédula, mas consegui revelar: “Clarice, tenho um livro seu, que é minha leitura de cabeceira, aqui comigo. Você escreve algo pra mim?”. “Qual é seu nome”, indagou? Eu respondi, ela me estendeu a mão novamente, esperando que lhe entregasse a obra. Então se acomodou num canto do sofá defronte ao que me encontrava, conversando com seu filho. Instantes depois me devolveu o livro, exibindo um sorriso discreto, acrescido da dedicatória. “Para a Graça, linda, inteligente e tão sensível, desejo toda a felicidade que merece. Sua Clarice”. Houve mais três encontros com Clarice, depois desse dia. Na segunda vez, intermediada por seu filho Pedro, fui à sua casa. Vestida de verde musgo, roupa recém-adquirida para tão importante ocasião, combinando com meus olhos de mel e azeitona e cabelos quase louros. Levei um presente. Um long play, contendo músicas de Antonio Vivaldi, executadas pelo sexteto de cordas I Musici. A faixa que mais me encantava era um concerto para bandolim, cordas e contínuo em sol maior.
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Ainda não tinha completado 19 anos, quando a revi. Escrevi então no verso da capa do disco, com a respiração entrecortada: “Para a esfinge que divinizei, meu sonho, meu labirinto, meu acalanto. Tão rica e tão rara como a mais fina seda do Oriente”. Clarice olhou para mim, acendeu um cigarro, perguntou se eu tomava um café. Aceitei. Conversamos um pouco. Logo atrás do sofá, na sala de estar, havia uma máquina de escrever preta, rodeada de papéis sobre uma pequena mesa. Na ocasião, Clarice morava com sua secretária e assistente, Olga Borelli, que a auxiliava na digitação dos textos – pois a mão direita de Clarice apresentava, anos depois de grave incêndio no quarto de dormir, ainda as sequelas do acidente. Olga naquele momento não estava. Foi quando, quase atropelando as palavras, confessei meu encantamento por outro livro de sua autoria que acabara de ler. “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” – cuja história, belíssima, contava as nuances do amor de Ulisses e Lóri (Loreley). Em seguida, entreguei a ela um retrato meu, de que gostava especialmente. Um pouco depois nos despedimos. Alguns anos depois, novo milagre acontece. Meados da década de 1970. Nós reencontramos inadvertidamente no corredor contíguo à redação da
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revista “Fatos e Fotos”, onde eu trabalhava como repórter. Clarice havia sido convidada pelo editor Justino Martins para escrever como cronista, no lugar de Nelson Rodrigues, ex-colaborador da publicação. Clarice me olhou nesta tarde, como se tentasse desvendar alguns dos meus abismos. Fiquei ruborizada, com o escrutínio. Ela sorriu e disse. “Lembro-me de você, menina. Posso lhe pedir para datilografar minha crônica?” Balancei a cabeça de imediato, afirmativamente. Sentei, com ela ao meu lado. Em certo momento, Clarice afirmou estar com sede. Pediu, olhando em volta, se era possível trazerem um refrigerante para ela e outro para mim. Ao chegar o refrigerante, assim que sorvi o primeiro gole, Clarice me perguntou baixinho: “Quero beber do seu copo e descobrir seus segredos. Posso?”. Em seguida, dirigiu-se a uma fotógrafa, Isabel, que trabalhava também na revista e solicitou: “Quero que tire uma foto minha para eu dar a Graça”. Clarice , como já se sabia, era esquiva, não gostava de se expor, nem de conceder entrevistas. A foto foi feita. Mas Isabel nunca me entregou, arrumando sempre desculpas. Quando terminei de datilografar sua crônica, Clarice fez uma carícia em meu queixo. Antes de se despedir, comentou: “Você tem um rostinho de camafeu…”.
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Um ano depois, já trabalhando com o novo editor, Artur da Távola (Paulo Alberto Monteiro de Barros) revi Clarice pela última vez, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário. Paulo Alberto havia me convocado, com outros repórteres, para cobrir seu enterro e redigir uma matéria sobre a sua morte. Não sei como consegui, quis desistir da tarefa. Entretanto, Paulo me advertiu, passando o braço afetuosamente sobre meus ombros: “Você é uma profissional, Graça, sei que pode cumprir seu papel”. Não entendo como, enfrentei o trágico evento, meio ligada no automático. A dor. As lacerações internas. As despedidas definitivas de Clarice Lispector. Porém nem tudo se foi. Restaram várias sementes deste cúmplice namoro. As lembranças de Clarice, mais férteis que nunca, permanecem vivas. Frequentando minhas memórias à vontade. E fazem isso, sem ao menos pedir licença. Graça Taguti é publicitária, jornalista e escritora. Nasceu em Madrid, mas atualmente vive no Rio de Janeiro. Foi colunista da Bula Revista, onde originalmente publicou o texto acima.
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Registros por Erico Verissimo.
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Com Mafalda Verissimo.
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Registro de Ricardo Chaves.
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Beth Goulart simplesmente Clarice por João Gomes É um privilégio pra uma revista independente no meio virtual ter acesso a você. A nossa escolha se dá pelo seu espetáculo Simplesmente eu, Clarice Lispector. Para iniciarmos, queríamos saber de quando data, se lhe for possível responder, o primeiro livro de Clarice lido, e o que provocou de imediato? Caro João, eu é que agradeço, é sempre um prazer falar de Clarice Lispector. O primeiro livro que li de Clarice foi Perto do coração selvagem, também o primeiro livro que ela escreveu, tinha 13 anos na época e fui completamente tomada pelo livro, me identifiquei totalmente com a personagem e tive a sensação que só Clarice me entendia, como se pudesse enxergar dentro de mim, desde então fiquei cúmplice dela, esta sensação de cumplicidade me acompanha durante toda a minha vida. Este período de adolescência é muito solitário e às vezes doloroso, questionamos tudo, quem somos, o que queremos ser e buscamos uma individuação diante do mundo. Ler Clarice neste momento foi fundamental para ouvir minha voz interior e ampliar minha visão de mundo. Ao assistir seu espetáculo, as personagens Joana,
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Loreley, Ana e a narradora do conto “Perdoando Deus” aparecem como facetas do mistério e da experiência de ser, pela leitura, Clarice Lispector. Como aconteceram as escolhas das personagens e em que medida a importância destas e não outras? Escolhi personagens que pudessem refletir também a própria Clarice, momentos de vida refletidos nos personagens. Joana representa seu impulso criativo, a inquietação e a curiosidade necessárias para a descoberta. A Ana é uma dona de casa totalmente dedicada a seu marido e seus filhos; Clarice também dedicou parte de sua vida a ser esposa de um diplomata e mãe de dois filhos, esta personagem enfoca esta experiência vivida. A Loreley é uma mulher que se prepara para viver um grande amor, acredito que o amor é o sentimento mais forte e mais presente na vida e na obra de Clarice, ela mesma diz que nasceu para amar os outros, seus filhos e a escrita. O amor é a única salvação individual que se conhece, ninguém estará perdido se der amor e, às vezes, receber amor em troca. E a narradora de "Perdoando Deus" é uma mulher que, ao passear por Copacabana, faz um exercício de
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reflexão, filosofando sobre a vida com humor e inteligência, características da personalidade de Clarice e de sua obra. Na antologia Clarice na cabeceira, organizada por Teresa Monteiro, você apresenta o citado conto da pergunta anterior. Seu texto contorna o prazer de se entregar ao inominável, quando a narradora vem no mesmo caminho, numa narrativa que nos mostra como sentir Deus. Clarice já lhe perturbou através de alguma entrelinha? Como é a relação entre uma e outra, se a própria Clarice diz que com ela se ganha muito na releitura? Sim, podemos sentir uma "força misteriosa" por trás dos acontecimentos, quase todos os seus personagens estão à beira de uma revelação, de uma experiência mística, o que nos coloca diante do mistério da fé e da grandiosidade de Deus. Ele está na natureza, nas pequenas transformações da vida, está no universo, nas plantas, nos animais, está na beleza da vida em sua plenitude, nascimento e morte. Deus está em todos e tudo ao mesmo tempo. Penso que ao reler Clarice observamos detalhes que às vezes passaram por nós, suas frases são grandes e cheias de significados, com um poder de síntese muito forte. Temos que refletir naquilo que lemos e numa primeira leitura podemos perder coisas que
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vamos encontrar num segundo olhar. Pensando na semelhança dos traços marcantes de Clarice em você, desde que momento foi incisiva a analogia? Desde muito cedo, no primeiro livro que li, minha identificação foi imediata e não foi só com a Joana mas principalmente com a Clarice. O trabalho do ator se assemelha com a de um autor pois temos que ser outras pessoas sem deixar de sermos nós mesmos. Somos a matéria prima de nossos personagens, nossa observação do mundo se reflete em nossa criação. A força de nosso trabalho acontece dentro de nós e depois se exterioriza na característica de cada personagem, no entendimento que temos deles. Os autores também fazem este exercício de desdobramento de si mesmos. Os atores dão um pouco de si em cada trabalho, os autores também, somos parecidos. Sou muito autoral na linguagem teatral que desenvolvo. É a partir do meu corpo, voz e sentimentos que o trabalho se desenvolve e me revelo em minhas ideias, ela também é assim. Suas palavras revelam muito do que sinto. Temos uma parceria no palco. Clarice seria mais amada do que lida? Como você percebe, através dos espectadores de sua peça homenagem, o interesse em realmente ler, citar
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detalhes do cotidiano das personagens vividas cenicamente por você? Como reage e se divide o público que, entrando em contato, diz ter conhecido o enigma pelo seu trabalho? Um dos objetivos deste trabalho é o incentivo à leitura, e a literatura de Clarice é muito especial porque ela propõe um mergulho para dentro, um processo de autoconhecimento, é uma leitura provocadora e às vezes isso incomoda. As pessoas sentem necessidade de explicar tudo, mas a arte não se explica: se sente. Clarice propõe um sentir, propõe silêncio, propõe ouvir o que está por dentro, propõe uma experiência, e o teatro é um belo instrumento para se viver isso coletivamente, o que potencializa a experiência. Fico muito feliz de fazer esta ponte entre a literatura e o teatro e já ouvi muitas pessoas dizerem que passaram a ler Clarice por causa do espetáculo, estamos cumprindo este objetivo. Soubemos que a peça teve outro caminho por uma decisão dos herdeiros do escritor Fernando Sabino, amigo correspondente por cartas já em livro com Clarice. Poderia contar como era, sobretudo aos leitores destas correspondências, o projeto anterior ao premiado espetáculo? A primeira versão era com os dois personagens: Clarice
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Clarice Lispector e Fernando Sabino, cada um em seu universo, se correspondendo e dividindo com o público o amor pela literatura, mostrando a amizade deles, a cumplicidade. Eles estavam separados fisicamente mas se encontravam no espaço da criação, um espaço onírico entre as duas realidades. Mas acho que nada é por acaso, e a negativa dos direitos veio para que me entregasse totalmente a Clarice e a seu universo, tudo serviu para fortalecer a criação, sou muito grata por isso. Clarice mostra o suficiente de si para sabermos seus valores na mulher além pra sua época. Para você, em que medida contribuiu todas as biografias em uma autora tão ensimesmada como ela, e qual delas você considera mais recomendável? Existe um belo material de pesquisa neste sentido. Os livros Eu sou uma pergunta, de Teresa Montero; Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib; Clarice,, de Benjamim Moser; Era uma vez, eu, de Lícia Manzo são maravilhosos, todos contam a vida e obra de Clarice com maestria e sabedoria. Posso indicar também Línguas de fogo, um ensaio de Claire Varin, uma autora canadense que fez sua leitura de Clarice de uma forma pessoal e encantadora. Como reveladora da chance nos amar amando
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Clarice, que faltaria para o público cada vez mais chegar-se na obra dela, e qual texto recomendaria você, que é uma leitora constante? Bem, eu adoro os contos do livro Laços de família e o livro Água viva que faz uma trança inspirada pelas artes plásticas, a música e a literatura. Beth Goulart é cantora e atriz de teatro, cinema e televisão. Em 2010, por sua atuação em Simplesmente eu, Clarice Lispector, conquistou o Prêmio Shell de Teatro na categoria melhor atriz mais uma vez.
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Com o escritor Fernando Sabino
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A paixão segundo Clarice por Cícero Belmar As escritoras Clarice Lispector e Nélida Piñon eram amigas como nos velhos tempos da amizade. Algumas coisas Clarice não revelava nem para Deus. Nélida era a primeira a descobrir que a amiga, na verdade, mostrava-se ao mundo despudoradamente na estranheza das personagens que escrevia. O que havia em Clarice, que fazia Nélida se sentir íntima, era o aprendizado dos labirintos e das sombras. O que havia em Nélida, que a outra admirava, era a capacidade sutil de compartilhar as sombras. Para Nélida, um dia Clarice confessou o que não disse sequer a Deus: tenho uma paixão por alguém, que guardo com muito cuidado e reserva. Nélida era tão íntima que aconselhou: ser escritor é não se negar a nada, ter coragem de viver.
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Assim eram as amigas. Ouviam-se, eram confidentes, prestavam atenção aos sentimentos mais verdadeiros, com a intensidade que eles exigiam. Misturavam com mão firme a manteiga, o açúcar, o leite e a massa, desse pão que a vida oferece para a gente comer até se fartar. Clarice morreu. Anos depois, um repórter quis saber, de Nélida, quem afinal era o grande amor inconfessável de Clarice. Nélida respondeu: eu sei quem é, mas se um dia eu confessar, as pessoas ficarão sabendo de que massa é feito o poder oculto dos mistérios. Cícero Belmar é jornalista, dramaturgo e biógrafo. Autor de, entre outros,
Tudo na primeira pessoa e Aqueles livros não me iludem mais.
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Lis no peito da própria vontade por João Gomes Tudo começou com uma ida à biblioteca. Um livro disse busque por outro e começou o encanto pela vida. Paixão sentida que se expandia por aquelas estantes. Tempo pouco, páginas tantas. Mal se pode desejar conhecer metade, perdemos o tempo duvidando ser mesmo “ex-possível”. Lia com a voracidade de chegar ao fim, porque finito seu trabalho, dava-lhe a chance de valorizar o momento que seria pro descanso. Quem passava via-o na praça defronte ao restaurante que almoçava. Possuía um livro e outro no apartamento, tinha fácil anseio, mas quase nenhum objeto de páginas presas numa capa enfeitada. Clarice era o nome de uma prima falecida de câncer no ovário, que Deus a contenha em sua grandeza, mas o Lispector lhe fazia vir ao nariz uma flor contida ali, como se esquecida, resseca e que se devolvia viva, marcando alguma página. Devolvera um autor norte-americano de origem judia, aclamado pelo público com milhões de cópias feitas, ele entre as centenas que pouco fixou o passatempo mastigado. Um chiclete com formigas. Lispector nas lombadas dos exemplares o fez
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pensar quantos veriam os dois nomes, ele que pouco sabia partir daquele mistério. Puxou Água viva, um dos mais fininhos, não houvesse ali A hora da estrela que achou ser a história de alguma atriz onde tradicionalmente inventam que sua mãe contraiu sífilis antes do parto e apenas a estrela não tivera. Diante das regras, não podia se rebelar e trazer consigo o desejo do desejo no balcão e outro ali por baixo da calça, a bunda reta, pensando espremida. Foi quando desistiu. Susto ao ver o relógio. E quis Laços de família criando analogia com uma telenovela. Porque ele lia jogando falas que jamais se ouviam, e coragem lhe faltava para conversar em voz alta. Naquela biblioteca pública lera uma frase de Fernando Pessoa que nunca lembrava como estava escrita, talvez copiada da internet. Quando se falava, e também não lembrava onde, no escritor português, ele concordava que ler é uma conversa entre a alma e a página. Disso percebeu que lhe valia mais ter um sentir de juízo particular. Então lera a coletânea de treze contos, pasmo diante da capacidade daquela em escrever sensações fixadas no eterno de tantos olhos. Sabia tão pouco do funcionamento do mercado editorial, que nunca havia lido uma narrativa suficiente em si. O conto “Amor” fora lido, até saltar na vez, mais de
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três vezes num tempo dedicado a meia dúzia de capítulos no engarrafamento da volta pra casa. Ninguém precisou dizer “releia” ou “desista!”, para que pudessem desconversar qualquer coisa outra. Nunca ir com outros passos na passagem interior. Transbordava alegria, agora a felicidade lhe fazia querer chorar, até continuar lendo vidas quando trouxe A via crucis do corpo. Na verdade fingia não saber o que fazer para devolver aquele exemplar que tirara dentro do casaco, grudando-o na fita isolante após entregar Perto do coração selvagem. Sua indutora: Joana. Tia não havia pra estranhar a sexualidade, quanto mais os livros aos montes! Na primeira leitura, ainda se decidindo e pensando se havia cola na fita para segurar o desejo, buscava no sumário “Ele me bebeu” com a pressa da sede, mas ali não podia consumir nada de material, a leitura era prática do espírito, dizia abaixo da frase de Pessoa. Identificou em Serjoca, personagem de sua naturalidade em forma de escolha, o espelho do que aquilo lhe provocava. Fosse ele Aurélia e Serjoca as leituras que davam vida, ou mesmo tiravam tudo para recompor no osso, sentindo cores mais do que se importando com o banal. Serjoca, nele, era o inverso. Tinha pouca experiência com homens, menos ainda com mulheres. Era virgem de experimentar pessoas
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que sem as quais também calculava o preço de se suportar. Pudera, enfim, sentir prática a filosofia extinta na época da ditadura em sua anistia de ser. Mil coisas poderiam conexão relendo aqueles cotidianos repletos do inominável. Os detalhes de cada narrativa tinham a função de cada coisa útil na vida, tudo estava enraizado no pensamento daquela mulher, o volume do que ainda poderia furtar. Era um patrimônio público aquele estar ali dentro de páginas que soltas se identificava de quem. Isso aumentou nas férias do seu trabalho, que foi praticamente buscar antes por outras bibliotecas no catálogo telefônico da empresa. Adiaria a visita ao nordeste, porque o medo fora maior ao de não encontrar nada daquela história sem fim na cidade em que vivia sua família e vivera a de Clarice Lispector. Naquele mês em férias pôde ler o que possuía nas bibliotecas ligado ao seu maior nome, sem ninguém saber nada porque ainda mais calado na febre e com uns amigos de boate convidando para uma sauna. Guiado pela animalidade que sentiu sem conseguir explicar no que lia todo esse tempo, pegou O lobo da estepe de Hermann Hesse sem saber que foi também leitura de Clarice, e ali se encontrariam. Ameaça de queda, ele tombaria por escolher pelo título, somente. Foi avançando a leitura daquele romance alemão.
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Vez ou outra retornava A via crucis do corpo. Não se considerava Harry Haller pelo país em que vivia, mas logo desejaria morrer, sentindo algo a mais em sua dura lápide impulsiva. Ele que não deixaria nada e se deixasse quem leria primeiro no Brasil? As bibliotecas eram esfinges de evidências, daí nunca sabia quando teria sua hora, dando tragédia aos homens pela diversão em guiar máquinas sobre quem vai aparentemente devagar à rua, no tempo de nuvem. Logo mais o vermelho inteiro dos morangos. Quem podia derretê-los em calda quando só um na dentada? O sangue se deprimia na panela Terra. Então, última brisa, ser venturoso era isso, chegar pronto ao fim? João Gomes é escritor e editor de publicações. Presente em algumas antologias, faz o que mais gosta, que é democratizar o acesso à literatura.
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Em fotomontagem com o editor de Vida Secreta.
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Elegíaca por Raimundo de Moraes A palavra é a minha quarta dimensão. Clarice Lispector
Segui os passos da menina de Tchechelnik Dez luas passaram flechadas por Sagitário Maçãs no claro ofertam-se de tanta maturação: ensanguentadas, reluzem. Balançam lustres em din-dlens de poeira suja Aqui a Praça Maciel Pinheiro circunda o Tempo O casarão 387 é agora insípido e laranja (mas vi entre uma e outra janela a menina sorrir para mundos distantes) Longe as esquinas de Nápoles Berna Torquay Washington (As esquinas do mundo são iguais quando punge à solidão a lembrança de tudo que fomos) Corro pelos caminhos de mais um solstício a cidade ergue-se em dóricas faiscantes
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escaravelhos brotam da terra e no rosto eslavo pupilas pulsam quasars É por ti: elevo-me à tua memória Candelabros iluminando a noite o Kaddish arrebanhando os perdidos como nós – percorro os caminhos da mulher de Tchechelnik O olhar oblíquo A boca rubra A safira no dedo A Estrela de Mil Pontas rompendo gargantas. É Palavra Aponta Sagitário mais uma seta em riste Agora, sabeis: no coração selvagemente livre Salve 9 de dezembro. Raimundo de Moraes é escritor e coeditor do Portal Interpoética. Autor de Coesia e Baba de moço, publicou este poema em Tríade, onde reúne alguns heterônimos.
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No Parque do Derby, Recife, aos 14 anos.
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Na Embaixada do Brasil, em Washington, EUA.
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Cândida Raposo e Macabéa: opostas por Ale Safra 74 anos. mastigava há 50 o chiclete, uma lasca amarga de cordão umbilical. 24 anos fora gente. o resto foi função em nome do pai, do rebento e do absurdo 15 gatos. 10 cachorros. 2 netos. 1 bisneta. 1 homem enterrado. 1 amor perdido. 1 sonho nunca vivido. 1 avental. 1s toneladas inomináveis garganta abaixo 7 ossos restaurados. 40 dentes não confiáveis. badaladas no corredor penumbrento uma santa empoeirada cheira fritura há décadas e marca hora de oração. de novo hora do jantar. frango frito. os cachorros brigam. os netos ignoram. o chiclete quer jantar. a bisneta faz manha. os felinos preferem o telhado 7 passos e 4 latas com roupas de molho. o joelho não quer dobrar. nem os olhos separar feijões. os pés protestam, inchados e rachados, contra os passos até o tanque. a vassoura, em sua finitude ligeira, é companheira dos calos. o sabão derrete carinho entre
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os dedos. mas o chiclete quer a calcinha favorita limpa. é noite de baile. será que arruma o marido rico? 7 pontos depois de 4 passos e 1 quina de armário. foi para onde encurralou o grito. "descuido" o chiclete disse no registro. 7 dias de internação para ganhar peso. tratar desidratação. hipertensão e 1 infecção de pulmão. um pacote completo de "ites". foi um descanso sem reflexão então 1 joelho que não dobra. 7 pontos na cabeça. não contabilizáveis calos, cicatrizes, nódulos, cistos generalizados. 2 ovários murchos. 1 intestino rompido. as lembranças são um mar de merda chiclete ignorou o gemido. fazia sua maquiagem para o baile esperança do 3º marido a luz daquela santa fedida do corredor apagou às 07:40. 1 noite em agonia. 3 netos cada qual em um universo paralelo. 1 bisneta que assistia curiosa as mãos carcomidas em conchinhas tremerem vez e outra até parar foi sua última companhia
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resultado: 1 vida em cova rasa. 1 caixão barato. passado enterrado. e neste agora, de futuro interessante, chiclete não havia pensado. em sua ladainha "comigo será diferente", que arrumaria um marido rico, não previa 28 animas famintos no retorno do funeral. 1 avental passou por seu pescoço sem que chiclete desse conta. 1 vassoura. depois 1 sabão, as roupas. até que o próprio tempo passou. E de 1 em 1 o final desta história não tem surpresas. é um esquema de crochê, presentes de mãe para filha Ale Safra é autora de Dedos não brocham, que é também o blog de onde se originou este seu primeiro livro. Publicou no e-book Geração em 140 caracteres e no impresso É que os Hussardos chegaram hoje. Recomenda-se ler, para relacionar ao conto acima, “Ruído de passos” (Cândida Raposo) e A hora da estrela (Macabéa).
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Com o filho Pedro.
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O “it” em Kerouac e Clarice por Celia Musilli Escritores fazem exercícios de linguagem, guiados também pela busca da linguagem perfeita, não exatamente para apreender a realidade, mas para superá-la naquilo que é inapreensível. A invenção de palavras – ou sua apropriação para significar algo diferente do usual – faz parte dos truques autorais que me estimulam, da magia de tentar entrar no âmago da palavra para ver, afinal, qual a resposta – se existe – dentro dela. Ao ler Os rebeldes – geração beat e anarquismo místico, de Claudio Willer, deparei-me com um trecho em que ele fala de On the road abordando as passagens mais citadas nos ensaios sobre o livro. Segundo Willer, são aqueles em que Cassady e ele (Kerouac) se põem a discorrer sobre “IT” (AQUILO na tradução brasileira). É algo imponderável, impossível de ser descrito de modo discursivo, porém captado através da audição de um inspirado clarinetista: “(...) são confissões vindas do âmago de seu umbigo, lembranças de ideias, reinterpretações de velhos sopros. Ele tem que tocar cruzando todas as pontes, ida e volta, e tem que fazê-lo com infinito sentimento, explorando as profundezas da alma, porque o que
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conta não é a melodia daquele momento, que todos conhecem, mas AQUILO." Lembrei-me então que Clarice Lispector em Água viva – o livro dela que mais gosto – também discorre sobre o "it" em vários trechos. Na verdade, o pronome é um dos mistérios do livro, o que faz da sua emoção e, por extensão, da sua escrita algo também imponderável: “Mas há também o mistério do impessoal que é o 'it': eu tenho o impessoal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço seco e germinativo. Meu pessoal é húmus na terra e vive de apodrecimento. Meu 'it' é duro como pedra-seixo.” Ou então: "A transcendência dentro de mim é o it vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Será que a ostra quando arrancada de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu costumava pingar limão em cima na da ostra viva e via com horror e fascínio ela con-torcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo é o Deus.” Mais de uma vez Clarice tentou alcançar a plenitude ou o abismo da linguagem. Chegou a definir sua literatura como "abstrata" que, numa aproximação com as artes plásticas, seria chegar àquilo que nos toca sem muitas explicações, toca pelo impacto de ver
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uma palavra subvertida, uma pincelada que não se parece com nada neste mundo e até por isso nos captura pela originalidade, seguida de um pensar sobre o significado que buscamos no "em vão" ou mesmo no "vão" de tantas coisas. Clarice também definiu seu livro Um sopro de vida, publicado postumamente, não como literatura, mas como "pulsações". Poucos escritores me deixaram suspensa nas impressões como ela. Sobre o "it" de Kerouac, ouvi de Claudio Willer, que é tradutor e exímio ensaísta da literatura beat, que o pronome pode representar o "eu verdadeiro", que tomo como a essência que nos conecta com o cosmos, o salto para a transcendência de outros tantos "eus" que formam nossas personas. Haveria em nós uma fagulha mais autêntica, uma fagulha que nos humaniza ao mesmo tempo em que nos "transcendentaliza" e uso aqui uma palavra que representa o salto, no caso, a transposição da linguagem, a superação da realidade que pode ser o "it" que Clarice compara, enfim, "ao Deus”. Clarice estava sempre em busca "daquilo", da "coisa", assim como Kerouac, sem que isso signifique que um tenha lido o outro. A mesma palavra nos textos de ambos apenas dá pistas sobre os criadores que, no caso da literatura, nos conduzem ao mistério do Verbo, a palavras, tudo é linguagem ou aquilo que tomamos simbolicamente para criar e recriar mundos. 44
partir do qual tudo é possível ou se faz. Em outras palavras, tudo é linguagem ou aquilo que tomamos simbolicamente para criar e recriar mundos. Celia Musilli é autora de Sensível demais e Todas as mulheres em mim. Escreve aos domingos na Folha Londrina. É mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp.
Fotografada pela amiga Olga Borelli.
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Esquiando na Suíça, em 1948.
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Relançamento de Laços de família, em 1961.
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O gabinete da bruxa por José Castello Quando lhe perguntei, durante uma entrevista que me concedeu poucos meses antes de sua morte, por que escrevia, Clarice Lispector fechou o semblante, afogou-me no silêncio e só algum tempo depois, ainda muito aborrecida, respondeu: “É o mesmo que eu te perguntar: – Por que você bebe água?” Eu era só um repórter iniciante e, talvez por isso, sufoquei no desafio que ela me ofereceu como resposta. Logo que pude, e para me esquivar, mudei de assunto; mas a entrevista já estava estragada. Ferida pela pergunta que lhe fiz, Clarice não relaxou mais e a pergunta ali ficou, um obstáculo entre nós. Até hoje, mais de vinte anos depois, o impacto que ela produziu não cessou de ecoar, nem pude ter uma resposta que me satisfizesse, o que, provavelmente, indica que Clarice estava certa. Sem uma resposta, ficou a pergunta, solitária: – Por que alguém decide se tornar escritor? Recentemente, fazendo a mesma pergunta ao escritor Fernando Sabino – um dos convidados na lista original deste projeto que, infelizmente, não pôde aceitar – fui obrigado a tolerar outra resposta desorientadora: “Eu escrevo para saber por que escrevo”, ele me disse. De aspecto circular, e
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assemelhando-se à primeira vista a uma fuga, ou pelo menos a um desvio, a resposta de Sabino, no entanto, resvala no ponto mais fundamental da aventura literária: a ignorância. Com ela, Sabino me prendeu num emaranhado de novas interrogações; o que parece indicar que certas perguntas, em vez de se satisfazerem com réplicas mecânicas, servem apenas para gerar outras perguntas e, assim, se ampliar. Por que toda pergunta a respeito da origem da literatura termina contorcida sobre si mesma, para depois retornar ao lugar de onde saiu? Por que, ao perguntar a um escritor por que ele escreve, e mesmo sem desejar isso, estamos pedindo algo que se aproxima do irrefutável – como se, seguindo a sugestão de Clarice, o ato de escrever, e os livros que ele produz, não bastassem? Por que, então, toda pergunta a respeito da origem da literatura produz não só respostas insuficientes, mas parece também, ela própria, inoportuna e imprópria? A literatura – a arte – é criação, isto é, invenção. E a invenção nem sempre é bem vista, sendo muitas vezes tomada, só, como coisa imaginada com astúcia ou má fé. Invencionice, maquinação, mentira, é o que se diz. A suspeita que a literatura desencadeia vem, provavelmente, de um fator: ela parte, ou nasce, do nada. Não de algo que se perdeu, ou que foi
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substituído, ou roubado, ou escondido; mas de alguma coisa que nunca existiu e cuja presença ela vem, assim, fundar. A luta com a ausência é definidora da arte. Na literatura, contudo, que é por excelência o domínio das palavras, ela se torna ainda mais embaraçosa. Escrever – e aqui Clarice não se enganou – embora não seja tão “natural” quanto beber água, comer, ou respirar, é algo que, em vez de ser escolhido, se impõe. Às necessidades da biologia e do corpo, podemos dar uma resposta, nem que seja só um paliativo – como se diz: “enganar a fome”. Com a arte, ao contrário, os atenuantes não funcionam. A literatura se origina de uma ausência à qual nenhuma resposta, ou objeto, corresponde. Só resta enfrentá-la, ou metaforizá-la, através da escrita, mesmo sabendo de antemão que isso não bastará. Temos, inclusive, a chance de simplesmente não dar resposta alguma, de descartar o desassossego que ela produz, ou ignorála. Mas, se podem simplesmente desconhecer essa ausência, e ainda assim continuar vivendo, por que tantos homens e mulheres dedicam sua existência à literatura? Por que, afinal, continuam, mesmo contra todos os embaraços e obstáculos, a escrever? Existem aqueles, muitos, que praticam a literatura “profissionalmente”, isto é, com a ideia de obter
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ganhos financeiros, recompensas, prêmios, prestígio. Contudo, para aqueles que a praticam como uma aventura e não como uma “profissão” não há remendo que baste. Para estes, a literatura se coloca, desde o início, como uma experiência sem fim. O escritor escreve, escreve, escreve, e no fim o que encontra é só – ou tudo – aquilo que escreveu. Escreve em busca de uma resposta, mas permanece na pergunta, já que os grandes livros não fornecem soluções, mas, ao contrário, as destroem. Ou, como disse Clarice, quando se põe a escrever o escritor se depara com o espanto. Escrever, ela diz, é um susto. Esse assombro, a surpresa diante do que vai surgindo, é talvez o único instrumento que temos para medir a intensidade de uma escrita. Os escritores podem ser cerebrais, frequentar escolas e teorias e, a partir delas, compor esboços, antever esquemas, projetar meticulosamente o que pretendem escrever. Desde o século dezenove, essa ideia está contida, por exemplo, em Edgar Alan Poe – bastando ler um ensaio como “A filosofia da composição”, em que Poe se esforça para revelar as intenções submersas que teriam gerado, e viriam explicar, a criação de seu célebre poema O Corvo, de 1845. Mesmo nesse ensaio, porém, o escritor norteamericano termina por admitir que, ainda assim, a
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qualidade do poema se deve, em grande parte, à “certa soma de sugestão, certa subcorrente, embora indefinida, de sentido”. A ênfase, aqui, deve ser procurada na indefinição a que, nas últimas linhas do ensaio, Poe não pode deixar de ceder. Em que medida podemos dizer hoje, repetindo Flaubert no célebre comentário sobre sua Madame Bovary, que escritores “são” aquilo que escrevem? Ao contrário, não seria mais prudente pensar que aquilo que escrevem pode estar sempre aquém – ou dizendo melhor, além – daquilo que desejaram criar? Para lembrar Fernando Pessoa: “Tudo quanto penso/ Tudo quanto sou/ É um deserto imenso/ Onde nem eu estou”. Quanto mais o escritor cava, mais há a revolver; quanto mais avança, mais distante ele se sente, como se caminhasse para trás, ou batesse em retirada. A ausência não se preenche; a pergunta fica sempre sem resposta. Mas para que, então, tanto esforço? – interrogam-se, frequentemente, os escritores, depois de meses e meses a fio debruçados sobre os rascunhos de um livro. Como disse Sabino, o escritor escreve para saber por que escreve. O problema é que, de antemão, já sabe que não chegará a uma resposta, mas a um livro – o que são coisas bem diferentes. Este livro será, só, um amontoado de novas perguntas, ou um girar vacilante
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em torno delas, sem jamais se satisfazer com as respostas que vier a produzir. Então: o escritor escreve não para chegar a uma resposta, pois não chegará a uma, mas para formular perguntas. O círculo se fecha mais uma vez, já que a mais importante pergunta que pode um escritor formular continua a ser: – Por que eu escrevo? É esse empenho em perguntar sem se iludir com a força das respostas que, por fim, define o homem, e não só o artista. Animais não se interrogam, embora muitas vezes, no cotidiano, eles sejam tomados pela dúvida; ali estancam, vacilam, enfim se decidem por esta ou aquela solução instintiva (atacar, esconder-se, fugir); mas tomam suas decisões por instinto, sem formular perguntas, só no replicar imediato – enfim, sem a mediação das palavras, a que só o homem tem acesso. É próprio do homem, ao contrário, deter-se nas perguntas; e mesmo nas muitas vezes em que ousa responder, é sempre para chegar a novas e novas perguntas, um abismo que, por fim, define seu modo de existir. Uma nova descoberta da ciência leva sempre a uma nova dúvida; um novo modelo de avião, ou de computador, sempre ao rascunho de outro que virá superá-lo. A insatisfação define o homem e ela se materializa nas perguntas que ele se faz, sem parar. Por isso, para perguntar e experimentar
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a possibilidade de respostas, ele fala. E escreve. Grande parte do existir humano, contudo, se passa em zonas submersas, ali onde muito pouco se vê. E a vida, por isso mesmo, pode ser descrita como o girar e girar em torno de um ciclone de perguntas, que se chocam, esboçam respostas, mas se respondem sempre com novas questões. Giram em torno de um enigma, como disse o filósofo catalão Rafael Argullol, composto por esse interminável conjunto de perguntas que, afinal, caracteriza o homem. Assemelha-se, assim, a um transe – basta pensar nas mães de santo a girar e girar envoltas no som dos atabaques; ou nos dançarinos da Turquia (os dervixes), a girar e girar, sem nenhuma perspectiva de pausa, só para chegar ao êxtase místico e, assim, se unirem a deus. O homem continua a rodar e rodar – a escrever e a escrever – porque as perguntas não se resolvem, chegando apenas a sugestões imperfeitas, como alguém que calçasse sempre um sapato errado, e ainda assim não desistisse de experimentá-los. Esse ciclone de perguntas, que se respondem sempre com novas perguntas é, enfim, o próprio homem. É bom recorrer outra vez a Pessoa, citado por Leyla Perrone Moisés em conhecido ensaio, “Aquém do Eu, além do Outro”: “Eu sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis/ Que embora eu quisesse
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tudo, tudo me faltou”. É a inexistência de uma resposta definitiva que sustenta a busca e que, em consequência, confirma a escrita; é a ausência de respostas, ou o valor insuficiente das respostas, que se oferece como matéria para literatura. Sem dúvidas, não há literatura; sem hesitação e insuficiência, ela se torna impossível. Sem fome, como disse o escritor americano Paul Auster, ou sem sede, como sugeriu Clarice Lispector, ninguém se torna escritor. Quando a literatura tenta dar uma resposta completa, ela pode até imitar a ciência, ou a pseudociência; pode ser tomada por filosofia, ou pseudofilosofia; mas deixa de ser o que é. É, nesse caso, qualquer outra coisa, menos arte – e a literatura, tal como a os escritores a concebem, é antes de tudo uma arte, como a pintura e a música. Por mais bem sucedida que seja, a arte é incapaz de fornecer respostas, não pode cerrar esse turbilhão de dúvidas; ou, se chega a acreditar nas respostas que é capaz de oferecer, se torna só um arremedo de arte. Talvez o fundo da literatura, aquilo que guarda de mais seu, esteja justamente nessas perguntas que não se esgotam. E por isso vale a pena repetir mais uma vez a pergunta fundamental: – Por que você escreve? Para tentar uma resposta e certamente falhar, para falhar e assim terem a chance de exibir o modo como
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escrevem, oito escritores brasileiros (Ana Miranda, Milton Hatoum, João Gilberto Noll, Fernando Monteiro, Sérgio Sant’Anna, Raimundo Carrero, Carlos Heitor Cony e Lya Luft) foram convidados a responder, publicamente, à interminável pergunta. A esboçar e experimentar respostas, ali onde nenhuma resposta cabe. A se arriscar, aceitando uma pergunta sem fim. Ao fim das oito entrevistas, certamente, a pergunta estará ainda mais dilatada, mais cheia de meandros e sutilezas, mais insuportável; mas respondida mesmo, não estará. Contudo, se é com a certeza de que a resposta não virá, por que insistimos em formulá-la? E por que eles se darão ao trabalho de tentar responder? Se fôssemos esperar por uma resposta, ou se ela fosse possível e ousássemos pronunciá-la, a literatura perderia todo o sentido. Nessa hipótese absurda, ela se esgotaria. Foi nesse erro, aliás, que caíram muitos dos escritores da vanguarda: a de achar que poderiam “matar” a arte, ou mesmo que ela já estava morta e a eles cabia apenas apontar isso. “Matá-la” foi, talvez, uma maneira de escapar do impacto que ela é capaz de produzir. A matéria da literatura, a rigor, é o modo como a palavra desencadeia choques no homem, o modo como o abala, como penetra em sua mente, como a agita e revira, mas também o dinamiza e
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vitaliza. A matéria da literatura, portanto, não está nem só nas palavras, nem só nos homens que a pronunciam ou absorvem, mas está “entre” eles. A literatura habita um intervalo autor-livro-leitor. Ela “é” o hífen duplo que os liga. Na verdade, escritores escrevem, entre outros motivos, para manter vivo esse laço, para contorcê-lo, para apertá-lo, para torná-lo ainda mais tenso: isto é, para produzir instabilidade e inquietação. Daí o fracasso das literaturas ideológicas, das literaturas de propaganda, das literaturas de vanguarda que se contentam em aplicar cânones (a “escrita automática” dos surrealistas, ou a “escrita do olhar”, do Novo Romance) o fracasso das literaturas cientificistas (o naturalismo e seu olho clínico, o “romance histórico”, o “romance de ideias”). Fracasso? Em todas essas perspectivas, sem dúvida, grandes livros também surgiram. No entanto, talvez tenham nascido muito mais “contra” as regras que seus autores se esforçaram para cumprir, do que por causa delas. Pessoa – outra vez ele – falava do desassossego que a literatura deve produzir. Ele não a via como uma máquina, ou uma tarefa, ou uma profissão, mas algo que deve detonar, como um artefato de efeito moroso, mas fatal, já que, depois de ler um grande livro, ou um grande autor, nunca mais deles nos
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livramos. Eles ficam marcados em nossa mente, em nossa sensibilidade, até mesmo em nosso corpo, já que grandes livros produzem tremores, surtos de prazer, felicidade, pesadelos. Grandes obras deixam vestígios na mente de seus leitores, traços que custam a desaparecer. Por isso nos dedicamos tão avidamente a lê-los: para “ser” um pouco o que eles são. Clarice, em dado momento, disse: “Eu tenho certeza de que, desde o berço, meu primeiro desejo é o de pertencer”. Forneceu, com isso, uma chave para a compreensão do laço que liga um livro a seu leitor. Ao ler um livro, a ele nos entregamos – acomodados à meia luz, em nossa poltrona preferida, colocando o resto do mundo entre parênteses ou adiando-o para depois. Enquanto lemos um livro, a ele pertencemos. A rigor, ao ler A metamorfose, de Kafka, o Livro do desassossego, de Pessoa, ou A paixão segundo G.H., de Clarice, cada leitor leu sua Metamorfose, seu Livro do desassossego, sua G.H. Também um escritor, enquanto escreve, pertence a seu livro. “É” aquele livro. No entanto, essa experiência não o satisfaz, tanto que, após um bom livro, parte sempre para procurar um livro melhor. Ora “é” um livro, ora “é” outro, mas nunca se encontra inteiramente em nenhum deles. Na verdade, está entre eles. Também o escritor, enquanto escreve, vive essa
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experiência de estranhamento. As palavras saem certamente de si; mas são despejadas no papel ou na tela do computador como se expelidas por um outro. Como se fossem “ditadas”, dizem alguns, recorrendo a uma insuficiente imagem do espiritismo. O que interessa aqui é que a escrita irrompe como se viesse de fora, isto é, como se invadisse a mente do escritor, em vez de originar-se dela. Como se a ocupasse, um outro a soprando de fora. Essa impressão, de que a literatura é algo que vem do exterior, descreve, muito bem, aquilo que se passa de mais importante entre o escritor e sua obra: a ignorância. A literatura não é algo que o escritor expele, que lança para fora de si; mas, em vez disso, é algo que ele capta e que, ao escrever, toma para si e coloca para dentro, assumindo provisoriamente como seu. É aceitando essas impressões “estrangeiras” e admitindo a presença do que desconhece que um escritor se põe a escrever. Por mais que trabalhe, antes, em seus rascunhos, projetos, esboços, teorias, algo que não ele comanda tomará as rédeas. Não custa, aqui, retornar a Pessoa: “Sinto que sou ninguém, salvo uma sombra/ De um vulto que não vejo e que me assombra”. A literatura – a arte – é essa sombra que se abre entre o escritor e aquilo a que ele não tem acesso, ou a que tem só acesso parcial. E que se prolonga até aquele
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que o lê. Um elo que, enfim, o mantém vivo, preso a alguma esperança, e que o conserva na tarefa interminável de escrever. José Castello é escritor, jornalista e crítico literário. Mestre, pela UFRJ, em Comunicação. Autor, entre outros, de Ribamar, O homem sem alma/Diário de tudo, Inventário das sombras e de biografia de Vinicius de Moraes, O poeta da paixão. –
Artigo originalmente publicado no mensário jornal Rascunho, de Curitiba.
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O que cada um carrega sobre o peito por Vera Saad Rossi Quando comentaram comigo sobre o quadro com as colunas femininas de Clarice Lispector no Fantástico, deixei passar. Não por falta de interesse, excesso de desprezo, ou sentimentos afins, mas porque já nasci com um irremediável atraso, o que faz demorar-me nas datas e compreensões, tão naturais aos outros. E consequência deste delay de nascença, lá estou eu, bem mais de um ano depois, assistindo pelo Youtube ao primeiro episódio do quadro, “aulinhas de sedução”, de Helen Palmer. Quase caí da cadeira de tanto rir (ainda suspeito que se viva, Clarice seria uma serial killer). O que fizeram com Clarice Lispector, coitada! Tudo bem, é Rede Globo, pode-se esperar tudo. Mas aquilo já era demais. Bem, Helen Palmer era um dos pseudônimos de Clarice Lispector quando escrevia para colunas femininas. A ficcionista também assinou colunas sob o nome de Tereza Quadros além de ter sido ghost writer da atriz Ilka Soares. Acontece que, como Helen
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Palmer, Clarice trabalhava diretamente para a Pond’s, isso mesmo, aquela famosa marca de cosméticos vendidos a nós como uma panaceia. Segundo o contrato, os textos seriam uma espécie de divulgação do produto sem que a autora, entretanto, evidenciasse nas linhas ou entrelinhas que se tratava de uma propaganda da marca. Ou seja, as colunas, com aulinhas de sedução, beleza, como ser mulher etc. eram publicadas ao lado de um anúncio da Pond’s. A quem se interessar, o fato, inclusive com o registro do contrato, consta na tese de doutorado de Aparecida Maria Nunes, essa, sim, responsável por uma pesquisa intensa e minuciosa, e descobridora da ficcionista por trás de outros nomes. Creio que Nunes, que realizou todo o trabalho, não tenha sido citada no programa, até porque loas e lauréis em vida não são para quem se dá ao trabalho, mas, sim, para os imbecis. Ainda sobre os quadros no Fantástico, penso que existia uma razão para Clarice escrever sob pseudônimos. Aparecida Nunes defende em sua tese que a ficcionista, ao não revelar sua autoria nas colunas femininas, queria preservar sua literatura.
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Tenho outra teoria: Clarice sabia muito bem o que era ser escritora e jornalista nas décadas de 40, 50, 60 e até mesmo na década de 1970. Ainda que até hoje seja considerada uma “dona-de-casa que escreve” – eita, frase infeliz da amiga – ela sempre trabalhou e sempre enfrentou o machismo. A primeira vez que Clarice colocou os pés em uma redação de jornal, havia somente homens por lá. Ela já peitou Nelson Rodrigues, dedo em riste, “o senhor me respeite que eu sou escritora” e encarou até o assédio de Jânio Quadros, que quase arrancou sua blusa. Sim, sob outros nomes, ela queria preservar sua literatura, não duvido disso, mas queria, sobretudo, preservar a escritora Clarice Lispector, aquela que aconselha Lygia Fagundes Telles a não sorrir, senão nunca a levariam a sério, aquela que constrói um personagem Ele/Ela, quando não se falava sobre isso, aquela que engendra o narrador Rodrigo S. M. e ri da cara de todo mundo que faz biquinho e enche o peito para dizer: “Literatura Feminina”; aquela, enfim, que escreve: “gênero não me pega mais.” E aqui penso na complexidade desta escritora, que,
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sob a máscara Helen Palmer, dá dicas de sedução, mas, ao mesmo tempo, sob o pseudônimo de Tereza Quadros, cita, entre outras, Simone de Beauvoir e Virginia Woolf. Ao que termino minhas considerações com o link para seu texto A irmã de Shakespeare (na verdade, extraído de Um teto todo seu, de Woolf): http://verahelena.blogspot.com.br/2011/05/irma-deshakespeare.html, finalizado com a brilhante frase de Virginia:“Quem poderá calcular o calor e a violência de um coração de poeta quando preso no corpo de uma mulher?” Vera Saad Rossi é autora de Telefone sem fio e Mind the gap, publicados pela editora Patuá. É também jornalista. Ministrou, no Espaço Revista Cult, curso sobre Jornalismo Literário e participou de outras publicações como autora.
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Por Maureen Bisilliat.
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É claro, é menina por Tatá Scaroni Pela posição dos corpos. Celestes. Pela lua cheia. Pelo grito. Pelo uivo. Por um quase. Por um “x”. É claro, é menina. Pela barriga redonda. Pela colher. Pelo doce. Vontades de menina. Pela soma. Ímpar. É claro, é menina. Não cola. É lenda. Tudo lenda de grávida. Não. Não é. Minha vó fez. Minha mãe fez. Deu certo. Deu menina. É claro, é menina. Pelo rosa. Na parede. No pano. Nos penduricalhos. É claro, é menina. Pelo ursinho. Pelo brinquinho. Pelo laço. É claro, é menina. Pela dança. Pela risada. Pela boneca. Pelo namoradinho. É cedo. Tem que acostumar. É brincadeira. É meigo. É claro, é menina. Pela manha. Pelo vestidinho. Pelos modos, menina! É claro, é menina. Pela florzinha no cabelo. Pela revista de menina. Pela maquiagem. Só passa brilhinho. Só passa rosinha. Você é menina! É claro, é menina. Pelas amigas no colégio. Pela menina má. Pelos segredos. Pelo menino bonito. É claro, é menina. Pelo futebol, não. Futebol não pode. Só pode ver. Só pode ganhar gol. Só se menino fizer pra você. É claro, é menina. Pelos pelos. Pelos, não pode. Pelos esconde. Corta os pelos. É claro, é menina. Pelo corpo. Falta corpo. Falta peito. Mas é alta. Mas é loirinha. É claro, é menina.
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Pelos olhares na rua. É bonitinha. É novinha. Mas é gostosa. Mas já sabe o que faz, né menina. Pelo medo. É claro, é menina. Pelo choro. Pelo silêncio. Pelo abraço da mãe. Não é nada, menina. Acontece, você é menina. Com o tempo acostuma. A menina não acostuma. A menina quer mais. Liberdade é pouco. Chega, menina! Parece que quer ser homem. A menina quer ser homem. Quer ser mulher. A menina quer ser sentimento. A menina quer Ser. É claro, é menina. Pelo mundo. Mais. Pela vida que quer viver. Mais. Pelo desejo sem nome. Mais. Pelos livros. Mais. Mais. Pela felicidade. Clandestina. Mais. Pelo amor. Mais. Por tudo mais. Agora é mulher. Mulher e amores. Mulher e amantes. É claro, é Clarice. É claro, é mulher.
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Tatá Scaroni é menina e é mulher. É cigana de alma. É sentimento. É amante das palavras. É publicitária. Acha que é escritora. É Projeto três meia cinco. É zine Pinto.
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Teresa Montero: O Rio de Clarice e etc. por João Gomes Seu trabalho de lançamentos de alguns livros da obra completa de Clarice é de apuro e cuidado. Desde que momento foi possível iniciá-lo? Minha participação foi como organizadora de algumas obras, a convite do filho dela, Paulo Gurgel Valente. O primeiro foi em 2001: Correspondências. Reuni a correspondência de Clarice com amigos escritores como Lucio Cardoso, Drummond, Manuel Bandeira, Lygia Fagundes Telles e o futuro marido, Maury Gurgel Valente. Outros foram: Minhas queridas, correspondência com as irmãs, Elisa e Tânia, de 2007. E os dois primeiros livros da série Clarice na cabeceira, o de crônicas e o de contos. Ser biógrafa de um livro sobre a vida de Clarice e publicado pela editora facilitou? Sim, porque já havia um trabalho publicado. Clarice na cabeceira é, em nossa opinião, a melhor antologia de contos de Clarice, pela decisão partir do leitor no momento de escolher e apresentar um texto selecionado. Qual critério foi utilizado ao nomear quem faria parte do livro? Fãs e amigos de Clarice ligados ao meio artístico
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e ao jornalismo: literatura, cinema, teatro, artes plásticas. O vínculo afetivo foi essencial. Como é escrever a biografia de uma autora que já conta sobre si em sua literatura? Qual foi sua dosagem entre citação e depoimentos? E sobre a árvore genealógica da família Lispector, qual o nível de dificuldade? Em Eu sou uma pergunta. Uma biografia de Clarice Lispector (Rocco, 1999) tracei o percurso biográfico e literário de Clarice a partir dos lugares em que ela residiu. Da Ucrânia ao Rio, passando pelo exterior, durante o período em que foi casada: Nápoles, Berna, Torquay e Washington. O objetivo foi fazer uma biografia factual, na época nem mesmo o nome original de Clarice era conhecido. ‘Haia Lispector’ foi revelado na minha pesquisa no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, assim como a carta que ela escreveu ao presidente Getúlio Vargas, solicitando a sua naturalização. Foram 88 depoimentos. A única biografia de Clarice que conseguiu essa façanha. A árvore genealógica foi sendo composta a partir da entrevista com os primos de Clarice e documentos. Todo material publicado foi completamente inédito, tanto que inspirou a composição de dois livros: a fotobiografia da professora Nadia Gotlib e a biografia do norte-americano Benjamin Moser. Mas a imprensa quando noticiou as novas biografias não registrou que já havia uma pesquisa anterior, coisas que acontecem no Brasil. Não há uma preocupação em valorizar as fontes originais. E como Eu71sou uma pergunta está esgotado, permanece agora no limbo. No entanto,
quando noticiou as novas biografias não registrou que já havia uma pesquisa anterior, coisas que acontecem no Brasil. Não há uma preocupação em valorizar as fontes originais. E como Eu sou uma pergunta está esgotado, permanece agora no limbo. No entanto, estou preparando uma nova edição revista e aumentada incluindo material inédito. É possível, diante de tantas informações biográficas, interferir nas entrelinhas da literatura clariceana? Com Clarice tudo é possível. Ela nos ensinou a ver além. Você apreende a realidade através do sentir. Isso é que é fantástico. Lembro dela dizendo que quando criança contava uma história que não tinha fim. E quando a prima tentava dar um final ela dizia: “mas não estavam tão mortos assim”. E aí continuava a história. Clarice alarga a nossa mente, nos posiciona diante de nossas limitações. Ela é uma viagem constante, é uma filosofia de vida. Ela nos liberta e cura. Seu projeto turístico-literário O Rio de Clarice segue qual roteiro na cidade maravilhosa? No Recife é possível fazer o mesmo pelos arredores do bairro da Boa Vista, o espaço em que Clarice pôde iniciar suas fabulações? Há algum patrocínio para acontecer seu passeio?
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O roteiro percorre sete bairros: Tijuca, Centro, Catete, Botafogo, Cosme Velho, Jardim Botânico e Leme. Meu projeto é intitulado “Caminhos da Arte no Rio de Janeiro”, e provoca um diálogo entre as artes e a história da nossa cidade através de passeios guiados com intervenções musicais e performances. Estimula o cidadão a descobrir outras maneiras de olhar o Rio refletindo sobre arte, educação, patrimônio e meio ambiente. Passeia-se pelas ruas como se entrássemos no túnel do tempo. Nesta experiência sensorial se estabelece uma relação afetiva com o Rio, despertando a consciência coletiva dos cidadãos, o desejo de cuidar da cidade e de exercer plenamente a sua cidadania. O passeio, a pé ou de ônibus, é guiado por mim com a participação de convidados. E não tem patrocínio. O Rio de Clarice é realizado há 8 anos. Um passeio pela vida e obra de Clarice Lispector entrelaçado à história dos bairros onde se passa o roteiro. Nesses 8 anos tivemos três grandes conquistas: No dia 9 de dezembro de 2012, inauguramos os “‘Caminhos Clariceanos” no Rio de Janeiro, no Jardim Botânico, às margens do Lago Frei Leandro (conhecido como Lago das Vitórias-Régias). É o “Espaço Clarice Lispector”. Nosso projeto solicitou a sinalização dos “Caminhos de Clarice” no Jardim, pois faz o passeio no local.
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Batizamos o Sebo Clarice Lispector, em 29 de setembro de 2015, na banca do Seu Zé Leôncio, na Rua Gustavo Sampaio, no Leme. A banca desse cearense existe desde 1971. Uma das bancas que ela frequentou nesse bairro, pois morou nesta rua. Em 2016, o Grupo Autêntica irá publicar “O Rio de Clarice Lispector” onde o leitor poderá conhecer os caminhos de Clarice na cidade incluindo imagens e curiosidades sobre O Rio de Clarice, dos anos 1930 aos 1970. No Recife também é possível. O escritor Augusto Ferraz traçou um roteiro dos caminhos de Clarice no Recife. É preciso que alguém execute. Quem sabe você? De tudo feito para lembrar e se fazer conhecer Clarice, o que você mais se emociona e recomenda, passando por suas preferências nas linguagens artísticas? No cinema, o documentário A descoberta do mundo, da Taciana Oliveira, que tive o prazer de participar colaborando no roteiro. A estreia será em dezembro deste ano. Há também o filme da Nicole Algranti, De corpo inteiro. O DVD está à venda. A hora da estrela, da Suzana Amaral. E O corpo, do José Antonio Garcia. Os dois últimos com roteiro do saudoso Alfredo Oroz.
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No teatro, Simplesmente eu, Clarice Lispector, com a Beth Goulart. A temporada retorna em janeiro de 2016, no Rio, no Teatro SESI. Silêncios claros com a Ester Jablonski e A paixão segundo G.H., com a Mariana Lima. Estes não estão mais em cartaz, mas podem ser vistos no Youtube. O Espaço Clarice Lispector, no Jardim Botânico, às margens do Lago Frei Leandro. O acervo de Clarice depositado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira na Fundação Casa de Rui Barbosa e no Instituto Moreira Salles, ambos no Rio de Janeiro. Agradeço a oportunidade de participar desse número especial sobre Clarice. Vindo de um amante da literatura brasileira como você, é um prazer. Teresa Montero é doutora pela PUC/Rio em Letras. Além de ser biógrafa de Clarice, é da atriz Chica Xavier, assim como é guia também em O Rio de Carmem Miranda.
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Nádia Battella Gotlib: duas vezes Clarice por João Gomes Publicar duas biografias faz de você grande especialista a respeito da compreensão da vida de Clarice Lispector. Poderia nos falar um pouco do trabalho em ambos os projetos? Clarice acabou se revelando, para mim, um ser humano de grande dimensão e uma escritora excepcional. E eu contei essa história – de vida e de obra – duas vezes. Numa primeira vez, construí essa história no livro Clarice, uma vida que se conta, publicado em 1995, agora na sétima edição e que completa neste ano de 2015 os seus 20 anos. Até então conhecíamos Clarice através sobretudo de entrevistas que ela mesmo concedeu para a imprensa e de depoimentos a seu respeito. Portanto, a minha proposta nesse livro a foi de organizar um fio histórico dessa vida, desde os tempos dos seus ancestrais, na Ucrânia, que foram perseguidos porque eram judeus, e por isso resolveram emigrar, até o dia de sua morte, no Rio de Janeiro. Deu muito trabalho, confesso, pois não havia ainda
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uma biografia de Clarice que desenhasse as várias fases de sua vida e obra baseada em documentação farta: depoimentos de familiares, amigos, escritores, críticos; pesquisa nos lugares todos onde morou e alguns por onde passou; leitura e análise da documentação depositada em arquivos públicos e pessoais. Tive, portanto, de montar esses dados todos e de checar cada um deles, pois muitas vezes as informações disponíveis eram contraditórias ou mesmo errôneas. Além disso, tentei introduzir o leitor nos textos que ela escreveu. Portanto, há nesse livro duas linhas narrativas: uma, com dados mais propriamente biográficos; outra, com dados de leitura dos textos da escritora e de seus críticos, objetivando, na medida do possível, situar os textos nesse conjunto de obra. Num primeiro capítulo, apresentei um painel de diferentes visões de Clarice por parte de pessoas que a conheceram, e que traduzem, no fundo, um perfil diversificado da escritora, que parecia escapar de qualquer tentativa de registro fixo e definitivo. Ao longo dos capítulos, procurei mostrar como a literatura foi importante na vida de Clarice. E como a escritora foi mergulhando nessa ficção, a ponto de, na hora da morte, transformar-se em personagem de si
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mesma. Esta cena final, que me foi descrita por Olga Borelli, considero exemplar, pois mostra com força o grau de envolvimento da escritora com sua própria ficção. Um breve texto biográfico de Renard Perez, publicado em Escritores brasileiros contemporâneos, baseado em depoimento de Clarice, foi de fundamental importância para nós, estudiosos de Clarice, ainda que Clarice lhe tenha dado informações um tanto...distorcidas. Afirma ter nascido em 1925, mas na realidade nasceu em 1920, conforme certidão original em ucraniano, a que tive acesso. Afirma ter chegado ao Brasil com três meses de idade quando, na realidade, segundo pesquisas que fiz em jornais para ver datas dos roteiros do navio em que a família viajou, chegou quando tinha um ano e três meses. De fundamental importância foi também o livro de Olga Borelli, que conviveu com Clarice durante os últimos sete anos de vida de Clarice. Esse livro, Clarice Lispector. Esboço para um possível retrato, publicado em 1981, reúne depoimentos da própria Olga e textos de Clarice até então inéditos, entre eles, seleção de cartas que Clarice escreveu às irmãs. Foi a primeira porta que se abriu para a intimidade da escritora, com dados sobre a sua rotina: hábitos, passeios, amigos. Esse livro foi traduzido para o francês. Mas em
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português a edição esgotou-se há muito tempo e infelizmente não foi reeditado. Quanto ao meu segundo livro sobre Clarice, o Clarice Fotobiografia, foi publicado em 2008, treze anos depois do primeiro livro. Portanto, tive tempo suficiente para ‘reler’ o livro anterior e construir a mesma história sob outro prisma, o das imagens, o que acabou redundando também numa outra história. De fato, completei dados que esse novo veículo, o das imagens, exigia. Viajei de novo pelos mesmos lugares onde Clarice morou, revisitei pessoas que me concederam novos depoimentos, registrei visualmente endereços de moradias de Clarice, na Itália, Suíça, Estados Unidos. E procurei selecionar, sempre que possível, imagens de época e que traduzissem ‘situações’ de vida. Qual o seu olhar diante das outras biografias que ilustram o detalhamento histórico sobre a vida de Clarice? Alguém mereceria a distinção pelas descobertas próprias? A biografia escrita por Teresa Montero, Eu sou uma pergunta, trouxe resultados da pesquisa que fez no Arquivo Nacional em que encontrou informações importantes sobre o passado da família de Clarice. Descobriu documentos originais inseridos nos processos de naturalização de alguns membros Ucrânia para o Brasil.
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da família que esclareceram pontos referentes, por exemplo, ao roteiro e datas da viagem da família da Ucrânia para o Brasil. Introduziu também detalhes sobre a atividade diplomática do marido de Clarice, Maury Gurgel Valente, nos vários postos que assumiu no Itamaraty. Publicou ainda no final do livro uma árvore genealógica da família de Clarice muito útil para nós, estudiosos. Quanto à biografia mais recente, escrita por Benjamin Moser, confesso que li com muita atenção e não encontrei ali dados novos. Repete o que antes já se havia publicado por aqui. E quando acrescenta algo novo, no meu entender, comete equívocos. Afirma categoricamente que a mãe de Clarice foi estuprada e teve sífilis, mas sem respaldo documental. De fato, é difícil mesmo comprovar que esses fatos aconteceram, há quase cem anos, sem que haja documentação comprobatória. Poderia, talvez, fazer tais colocações mas considerando-as como hipóteses, sem engessálas em afirmações taxativas. Além disso, o seu livro procura demonstrar o judaísmo de Clarice. No entanto, gostaria de salientar que, se por um lado Clarice nasceu numa família de judeus, não seguiu – e nisso se assemelha a tantos outros judeus de nascença – não seguiu, repito, a
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religião judaica. Há inclusive uma frase de Clarice durante uma entrevista que concedeu ao jornalista Edilberto Coutinho, em 1976, que é marcante: ‘Eu sou judia, você sabe. Mas não acredito nessa besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma.” Aliás, Clarice manifesta-se contra o judaísmo assim como manifesta-se contra qualquer ‘ismo’. É contra sistemas. E sua literatura é importante também por esse motivo: desmonta padrões, chacoalha costumes cristalizados, abala territórios fixos, não se encaixa em classificações. Mantém o espírito crítico e desmistificador. É uma literatura avessa a rótulos. Quem é o público em mente de sua biografia Clarice, uma vida que se conta? Ela continua sendo uma das obras mais buscadas para se entrar no assunto? O público interessado nos meus livros, creio eu, é o público que gosta da literatura de Clarice e que gosta de literatura, de modo geral. Entre os leitores tenho a honra de contar com muitos professores. Além das sete edições, o livro Clarice, uma vida que se conta teve uma edição extra de 34 mil exemplares que foi distribuída entre professores da rede pública em São Paulo. Isso me deu muita alegria. Fico feliz quando recebo desses e de outros leitores depoimentos sobre
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o modo como meus livros sobre Clarice lhes serviram de estímulo para ler Clarice. É essa a minha função, que exerço com muita satisfação. Se Clarice Lispector tivesse bem pouquíssimos amigos, seria mais difícil escrever sobre seus anos de interação social? Ter casado com um diplomata facilitou a sua convivência com importantes nomes do século passado? O casamento e o fato de morar anos no exterior teria provocado nela o sentimento de não pertencer a lugar nenhum? Se Clarice tivesse menos amigos seria, sim, mais difícil tentar reconstruir fatos de sua vida. A correspondência que trocou com amigos permitiu o acesso a dados valiosos, sobretudo no período em que viveu fora do país (1944 a 1959). E são importantes também as cartas que trocou com as irmãs. Nessas cartas relata o que lhe acontecia a cada dia, com detalhes sobre livros que lia, passeios que fazia, pessoas que conhecia. As cartas constituem uma espécie de diário, em que a rotina era protagonista da história. Apesar dessas conversas por cartas, sentia-se muito só. E comenta, em várias oportunidades, que se sentia mesmo como uma estrangeira, que vivia na terra dos outros. Convém considerar que esse sentir-se ‘forasteira’ entre estrangeiros não deixa de ser também uma
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condição da artista que enxerga o mundo com estranhamento e originalidade. Sendo professora universitária, a competência e segurança devem ter sido os pontos da liberdade usada em sua biografia, que inclusive foi apresentada como tese de livre-docência e publicada em 1995. Como foi a relação com os herdeiros numa época em que a polêmica questão das biografias não era como hoje, em que presenciamos um período de explosão do mercado editorial? Citei muitos trechos de Clarice nos dois livros. E na fotobiografia havia não só reprodução de documentos relacionados com Clarice mas também muitas fotos dela, sozinha e em companhia de outros. A editora negociou com a agência Carmen Balcells os direitos de reprodução. Não houve problema quanto à cessão dos direitos. E escrevi o que eu quis. Minha liberdade de expressão foi respeitada por parte dos herdeiros de Clarice. Você lembra sempre a também escritora Elisa Lispector, por ter se tornado um baú histórico da família. Como precursora de biografias no assunto, a questão da sífilis pode ser uma explicação para se entender a paralisia da mãe de Clarice? Isso seria apenas uma polêmica, quando afirmada
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sem provas? As únicas referências documentais que existem sobre a doença da mãe foram registradas por Elisa Lispector. Ela afirma que a mãe sofreu ‘trauma’ por parte dos bolcheviques. Mas não especifica que tipo de violência foi essa. Não se refere a estupro. Nem a sífilis. A paralisia pode ter sido consequência de algum trauma (choque ou pancada), com complicações cardiovasculares e lesão cerebral que repercute no sistema motor. Essa foi a explicação que me deu o querido e saudoso médico e escritor Moacyr Scliar. A paralisia, se causada por sífilis, ocorreria tempos depois da causa. No caso de Mánia, ou Marieta, mãe de Clarice, essa hipótese é remota, pois segundo informações da própria Elisa, a mãe tinha dificuldade de andar já na viagem da Ucrânia para o Brasil. Resumindo: não há como diagnosticar sem documentação e quase cem anos depois. Portanto, não há como afirmar categoricamente que tais fatos aconteceram. São meras hipóteses. Em alguns leitores, talvez conhecer muito sobre o artista diminui o gosto pela releitura. Como se escreve a biografia de uma autora que já conta sobre si em sua literatura? É possível assim perder o ingênuo da coisa e ganhar o sentimental a ponto de conhecer tantos detalhes que podem interferir
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nas entrelinhas? Há casos em que conhecer o autor diminui, mesmo, a empolgação por sua literatura. No caso de Clarice, acho que interfere no sentido positivo. Vou citar apenas alguns exemplos. A partir de sua história de vida é possível perceber que era uma mulher de muitas terras e mares. Viajou muito. Nasceu viajando, enquanto a família passava por uma aldeia ucraniana no seu caminho de emigração. E viajou muito depois, na sua maturidade, acompanhando o marido diplomata. E aproveitou muito esta sua experiência porque era observadora. Escrevia sobre o que via e o que fazia, em cartas e crônicas. E ao mesmo tempo criava romances e contos. O mundo ao redor era bem ‘percebido’ pela escritora. Tornava-se facilmente matéria escrita. Além disso, tinha uma fluência na escrita que se assemelha a uma fluência da fala oral, cotidiana, sem termos exóticos, sem inversões. O mesmo procedimento tinha na criação dos personagens: as mulheres são pessoas ou de classe baixa, ou média, ou alta, mas têm uma vida interior muito rica, ou porque pensam muito (Joana) ou porque não pensam nada (Macabéa). De qualquer forma, há um vasto e complexo mundo da intimidade que é desvendado por Clarice, em
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João Avelino
linguagem inovadora, bem diferente da usada pelos romancistas sociais dos anos 1930. A escritora flagra – ou inventa – esses territórios da intimidade com detalhes pertinentes e significativos. Daí a riqueza da literatura que produz. Nádia Battella Gotlib é mestre, doutora e livre-docente pela USP, onde lecionou até se aposentar. Hoje é professora colaboradora da mesma universidade. É autora de, entre outros, Teoria do conto.
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Clarice, nosso souvenir por Cristiano Aguiar Entre as centenas de imagens flutuando à deriva na internet, uma das que mais me fascinam é Clarice Lispector. É possível encontrar centenas de ClaricesLispector por aí, multiplicadas em todos os ângulos e formatos. No caso dela e também de outros escritores, como Caio Fernando Abreu, por exemplo, a internet nos abastece com todo tipo de recortes e adaptações não apenas de seus escritos e falas, mas também dos seus corpos. Há as mãos de Clarice; o rosto imenso de Clarice; os olhos fechados de Clarice. Há Clarice deitada; Clarice fumando; Clarice de perfil; Clarice de corpo inteiro; Clarice do busto para cima. Em uma conta do Twitter, ao lado da imagem de Clarice, leio: “Você é mais forte do que pensa e será mais feliz do que imagina”. Será que ela realmente escreveu isto? Na dúvida, compartilho com os amigos. Em 2012, ao assistir a uma disciplina durante minha temporada de doutorado-sanduíche nos EUA, tive um reencontro com a criadora de Macabéa. Há anos, talvez em parte por certa angústia da influência, não lia a autora de Perto do coração selvagem. E me
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surpreendi por ter reencontrado nela certa acidez e certa agressividade que eu tinha esquecido, talvez porque eu estivesse soterrado por uma Clarice domesticada. “Pois a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende”. Dá vontade de apertar o botão de “curtir”, não é? Mas esse trecho de A hora da estrela está em um contexto específico, no qual se critica o quanto, na vida moderna, a própria experiência de viver é espremida, rarefeita. No mesmo livro, há outra frase digna dos livros de autoajuda: “Sim, quem espera sempre alcança”. Mas, logo em seguida, o narrador escreve: “É?”. Não se trata de uma maneira “errada” de entrar em contato com a obra de Clarice, necessariamente. Também não é uma “desonestidade” recortar uma frase bonita de sua obra, ou retirá-la de contexto e emoldurá-la na parede do seu perfil virtual. Vejo com simpatia que Clarice esteja nesse dia a dia das boas intenções; gosto de saber que há em nosso país um escritor que pode ser amado assim. O problema, porém, é que esta é uma Clarice-souvenir, não muito diferente das miniaturas da Golden Gate, do Cristo Redentor, ou das galinhas pintadas da praia de Porto de Galinhas, em Pernambuco. Em um livro bastante
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interessante, On longing, a poeta Susan Stewart nos lembra que o souvenir não chama atenção para uma experiência com a diferença; pelo contrário, o souvenir exalta o seu possuidor. “Olhem para meu dono”, diz, servil, a Claricesouvenir. Mas a pergunta que uma grande obra literária como a de Clarice nos propõe é o oposto disso: “olhe para si; olhe para a linguagem; olhe para a cultura”. Vale a pena lembrar que curtir e passar adiante citações de Clarice na internet é uma pequena parte de uma conversa longa, profunda e necessariamente incômoda. Afinal, é só na leitura do texto original que a obra de um escritor será resgatada do estado no qual naturalmente se encontra: o estado das ruínas. Cristiano Aguiar é escritor, crítico literário, professor e editor freelancer. É formado em Letras, pela UFPE. Foi selecionado na antologia Granta – Melhores jovens escritores brasileiros. Crônica originalmente publicada na revista Continente. O autor agradece a Débora Nascimento pela pauta.
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Registro da amiga Bluma Wainer. Paris, 1946.
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Se Clarice não fosse Clarice por Felipe Valério os restos do carnaval deixariam menos saudade do que o próprio carnaval. Se Clarice não fosse Clarice, a discussão entre quem nasceu antes, o ovo ou a galinha, já teria terminado em morte. Se Clarice não fosse Clarice, Mineirinho tomaria mais treze tiros e ninguém investigaria o caso. Se Clarice não fosse Clarice, Macabéa ainda estaria contando estrelas. Se Clarice não fosse Clarice, Madame Carlota já teria um site de aconselhamento na internet, com pagamento facilitado. Se Clarice não fosse Clarice, Ana nunca teria encontrado um cego no caminho às compras. Se Clarice não fosse Clarice, Laura teria ficado com as flores. Se Clarice não fosse Clarice, a mãe de Zilda nunca cuspiria no chão. Se Clarice não fosse Clarice, a menor mulher do mundo compraria um salto plataforma em doze vezes sem juros. Se Clarice não fosse Clarice, o homem que come no restaurante ainda estaria esperando uma mesa. Se Clarice não
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fosse Clarice, homens com máscaras de galo,touro e diabo seriam criticados por blogueiras de moda. Se Clarice não fosse Clarice, o homem cremaria o cão. Se Clarice não fosse Clarice, a mulher que vai ao zoológico tiraria uma selfie com o búfalo. Se Clarice não fose Clarice, comer uma barata seria um ato gourmet. Se Clarice não fosse Clarice, dois homens que andam juntos seriam espancados por pessoas que não acham certo dois homens que andam juntos. Se Clarice não fosse Clarice, Sofia seria apenas mais uma aluna preocupada com seu desempenho no Enem. Se Clarice não fosse Clarice, o menino apaixonado pelo prima trocaria seu óculo por lentes de contato verdes. Se Clarice não fosse Clarice, Mocinha estaria assistindo a novela das seis, das sete e das oito na casa do filho. Se Clarice não fosse Clarice, o rato morto de Copacabana seria um problema de saúde pública. Se Clarice não fosse Clarice, a menina ruiva adotaria o cachorro ruivo em uma feirinha de animas em Embu das Artes. Se Clarice não fosse Clarice, a mulher que quebrou o dente comendo uma maça processaria o
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supermercado que vendeu uma maçã dura demais. Se Clarice não fosse Clarice, a morte da macaquinha Lisette encadearia uma onda de manifestações na Avenida Paulista. Se Clarice não fosse Clarice, a mãe não trocaria a fralda do bebê porque isso é responsabilidade da babá. Se Clarice não fosse Clarice, o primeiro beijo do menino seria fato sem importância. Se Clarice não fosse Clarice, de nada a gente seria. Felipe Valério é autor de Hotel trombose e dos miúdos Engula e Filé em tiras. Além de Forceps, pelo Boca Santa, participou de diversas antologias e está no zine Pito e no coletivo Quitinete.
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Clarice e o outro em si em dois contos por Norma de Souza Lopes Toda leitura é íntima, subjetiva, secreta. Sem desarmar-se, ninguém chega a ler. A leitura é um exercício de submissão. A conexão entre um livro e seu leitor é uma experiência noturna; não transcorre no terreno da clareza ou da habilidade. E ler Clarice Lispector é entrar em contato com enigmas aparentemente sem solução. Podemos roçá-los, tangenciá-los. Contudo caminhamos para a incerteza. O leitor que afirma encontrar o âmago da linguagem de Clarice certamente o perdeu. Há quem diga que para começar a ler Clarice as melhores obras são seus livros de contos. Quem o diz certamente não se refere ao conto “O ovo e a galinha” de Felicidade clandestina. Tampouco deve se referir ao “Relatório da coisa” de Onde estivestes de noite. Os contos em questão não se prestam a um resumo simples. Ambos apresentam mulheres em seu cotidiano como narradoras, possuem poucos elementos factuais, carecem de demarcação explícita de tema, clímax, meio ou fim. Possuem em comum um jogo de linguagem entre palavra e coisa. Ainda que seja a repetição de nomes (ovo, galinha, relógio, Sveglia etc.) estes terão, até o fim dos contos,
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significação ilimitada, reaparecendo sempre, objeto visível de significado indizível. Nota-se o esforço de Clarice em perseguir o momento, em tocar a essência das coisas, em fazer roçar o Eu no absoluto. Instantes inapreensíveis quase, mas de grande intensidade e que despertavam as reações estéticas da escritora em suas experimentações linguísticas e literárias. A aparente confusão de citações Clarice/narradora não configura erro de análise, mas sim um reflexo do teor autobiográfico e autoinvestigativo, muito comum na obra da autora. De maneira simples podemos dizer que “O ovo e a galinha” é um conto/crônica que vai desconstruindo o objeto ovo que, debaixo do crivo do olhar da narradora, passa então a ser uma representação de qualquer coisa, física ou abstrata (liberdade, amor, vida, etc.). Deixa de ser simplesmente um ovo e tornase a chave para a compreensão do amor, da vida e da própria existência humana. A partir dessa narrativa Clarice posiciona-se mais na linguagem que no movimento cronológico e factual da narrativa. A linguagem se revela como algo essencial, porém falível, que não consegue abarcar a plenitude do ser. Clarice usa de construções abstratas para dizer que o ovo é o outro, um relato sugestivo a respeito da
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eterna dualidade entre corpo e alma, aparência e essência, impressão e verdade por meio de uma improvável relação com o outro. Esse outro: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo” surge como um desafio à compreensão humana, alheio à própria compreensão e danificado por ela. O ovo em si mesmo é casca e interior, é clara e gema, o líquido envolto pela casca branca e dura, uma espécie de alegoria clariceana que aposta no poder simbólico da construção para desenhar os desafios da compreensão humana, do ser humano. Clarice buscou em toda sua obra ser com o outro. Mas ser um com o outro só é possível nos limites da solidariedade, e para alcançar a solidariedade é preciso ter resgatado sua própria singularidade. Chegar à sua condição mais absolutamente intrínseca é aproximar-se de um encontro por inteiro com o outro, ainda que ele não processe o reconhecimento. A alteridade é condição do reconhecimento de si como um outro, lembra Ricouer. Em A descoberta do mundo Clarice relata experiências de “encarnação involuntária”. Conta que às vezes, quando vê uma pessoa, sem decidir por isso, nela se encarna. Um dia, em um avião, viu uma missionária – e logo começou a andar com passos de “santa leiga”. Outra vez, deparou com uma prostituta
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– e, em um segundo, fumava com os olhos entrefechados para um homem. A encarnação voluntária é uma maneira de “ler” o outro, “sendo” o outro. Via cega, em que abdicamos do saber, para experimentar o susto. Via torta, mas potente, para outro tipo de lucidez. Alerta-nos Clarice que só depois de “desencarnar” das pessoas, ela consegue, enfim, ter uma vida própria. Mesmo dessa “vida própria”, porém, ela suspeita. “Vida que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer”, diz. Quando se livra das sucessivas encarnações, é ainda um espectro (seu próprio espectro) que nela se encarna. Das fantasias alheias, chegamos às fantasias (fantasmas) próprias. Nunca conseguimos emergir. O “eu” é um livro que escrevemos sem saber que escrevemos, e até sem precisar escrever. Nas frestas dessa ficção íntima, em súbitos clarões, despontam breves fachos de lucidez. Mas há que se tomar cuidado de não dizer destes clarões. Respeitar os disfarces a fim de evitar a morte. É comum a afirmativa de que há traços de existencialismo na obra de Clarice, apesar da mesma rejeitar qualquer comparação com Sartre: “Minha náusea inclusive é diferente da náusea de Sartre, porque quando eu era pequena não suportava leite, e
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quase vomitava o que tinha que beber. Pingavam limão na minha boca. Quer dizer, eu sei o que é a náusea no corpo todo, na alma toda. Não é sartriana”, responde Clarice. A despeito disto, em “O ovo e a galinha” a narradora parece interrogar-se acerca da existência se utilizando da figura do ovo. "Se se disser apenas 'o ovo', esgota-se o assunto, e o mundo fica nu.” “Aquele que for além da superfície do ovo e se aprofunda na busca da compreensão está com fome.” A filosofia existencialista apoia no homem, na sua existência e na sua liberdade, ou seja, o homem tem plena liberdade e responsabilidade sobre os valores que estabelece. O Existencialismo está centrado no homem e privilegia a existência sobre a essência. “O ovo não é, o ovo existe.” "O ovo não tem um si mesmo." "O ovo propriamente dito não existe mais." "O ovo é uma coisa suspensa." "O ovo é uma exteriorização." "O ovo expõe." "O ovo é ovo no espaço." "O ovo é branco mesmo.” A essência de um ente é o que ele é. A essência do ovo é "o" ovo, e esta é renegada: "Individualmente ele não existe". A existência é "este" ovo, na sua forma, na sua configuração. O objeto só é enquanto existe. Quando a narradora "quebra-lhe a casca e forma", "a partir deste instante exato nunca existiu um ovo" e o
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"em si" do ovo manifesta por uma "grandiosidade que vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer". "Como o mundo, o ovo é óbvio." O em si é evidente, dá-se claro, incontestável. Para Sartre, o "em si" se esgota em ser o que ele é, incapaz de escapar à própria temporalidade: "ver o ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ser visto um ovo há três milênios". Adiante na narrativa surge a galinha. Galinha e humano apresentam semelhanças: ela é mãe, sonha, é capaz de gostar, tem vida interior, grita, olha, pensa. É tonta, desocupada e míope; nada diferente de alguns humanos. A existência autêntica seria dispor-se à morte em cada minuto da vida, e daí brotaria a experiência da angústia: "Ser uma galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva à morte”. Então, o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo, mantendo a luta contra a vida que é mortal. Ser uma galinha é isso. “A galinha tem o ar constrangido.” A par disto tudo, a galinha, no conto, representa também outros pontos chaves da filosofia existencialista: a perda da autonomia humana, reduzida ao nível da instrumentalidade. O mundo de objetos criado pelo homem puxou-o para dentro
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de si, anulando sua subjetividade. Como a galinha, o ser humano é mero "meio de transporte". "É que eu própria, eu propriamente dita, só tem mesmo servido para atrapalhar". "Era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu". O ser humano, presente no conto através da consciência da narradora, revela-se na aspiração inútil do ser. "Ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício." Diante da existência pura da coisa que jamais se afasta do absoluto, da insustentabilidade do encontro com o outro, a narradora revela que seu trabalho é "viver os seus prazeres e suas dores". Lido em espanhol no I Congresso Mundial de Bruxaria de Bogotá, em 1975, “O ovo e a galinha” nos lembra algumas curiosidades um tanto míticas acerca da autora. Clarice, que até então já era amplamente conhecida e admirada por seus livros, teria dito à revista Veja antes de embarcar para Bogotá: "No Congresso pretendo mais ouvir do que falar. Só falarei se não puder evitar que isso aconteça, mas falarei sobre a magia do fenômeno natural, pois acho inteiramente mágico o fato de uma escura e seca semente conter em si uma planta verde e brilhante. Também pretendo ler um conto chamado ‘O ovo e a galinha’, que é mágico, o ovo é puro, o ovo é branco,
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o ovo tem um filho". A crença de Clarice em superstições era conhecida por seus amigos, como datilografar seus textos contando sete espaços entre os parágrafos, revelando a fé no poder dos números. Ela escreveu um texto sobre a literatura e a magia, no qual diz: “não acredito em nada. Ao mesmo tempo acredito em tudo”. No entanto, na apresentação de Bogotá, ela desistiu da introdução, que seria um relato sobre coincidências inexplicáveis, e limitou-se a pedir que alguém lesse o conto “O ovo e a galinha”. Ela teve a impressão que ninguém entendeu o conto, mas um americano a abordou no final pedindo-lhe uma cópia encantado com o texto. Numa rara entrevista de Clarice Lispector, concedida em 1977, ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura ela nos dá mostra de como nosso esforço em alcançar a profundidade de “O Ovo e a Galinha” é modesto. Enfim, tudo que é possível afirmar com certeza sobre o conto “O ovo e a galinha” está na primeira linha: de manhã na mesa da cozinha ela viu um ovo. Num só período tempo, espaço, sujeito e objeto. No segundo conto aqui apresentado, “Relatório da coisa”, a narradora de Clarice anuncia um relatório
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não literário. Publicado pela primeira vez na coletânea Onde estivestes de noite, é descrito pela própria narradora como “a antiliteratura da coisa”. As várias metáforas associadas ao protagonista, o relógio Sveglia, aproximam o texto de um obsessivo relatório. Entretanto, a enumeração exaustiva e as explicações detalhadas que o compõem não contribuem para uma categorização esclarecedora de Sveglia, já que elas confundem mais do que esclarecem. O excesso de dizer e ao mesmo tempo a incompletude do dizer que está em tudo o que se diz. Assim como o relógio não dá conta do significado do tempo, a palavra é posta em cheque quanto a sua capacidade de significar. “O galo é Sveglia. O ovo é puro Sveglia. Mas só o ovo inteiro, completo, branco, de casca seca, todo oval. Por dentro dele é vida; vida molhada. Mas comer gema crua é Sveglia. Querem ver quem é Sveglia? Jogo de futebol. Mas já Pelé não é. Por quê? Impossível explicar. Talvez ele não tenha respeitado o anonimato.”, lemos na narrativa. A sequência de descrição do relógio é sempre interrompida. E ainda que este “relatório” seja composto por oposições binárias, as classificações dos exemplos apresentados pela autora como “Sveglia” ou “não Sveglia” são contraditórias, impedindo que o leitor chegue a qualquer definição do “objeto” em
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questão. Sveglia é ao mesmo tempo o instante e a eternidade; a morte e a vida; fonte do desejo animal e representante de uma inteligência inumana. Sveglia é o eletrônico e um cavalo branco solto; é a matemática e a literatura; é a aspereza, a doçura e a interseção entre as duas. Sveglia é tanto o seco como o seco que fica às vezes molhado; é terreno, divino e extraterrestre. A própria definição do assunto deste relatório é instável: em certos momentos, a narradora parece examinar um objeto; em outros, um evento ou uma qualidade. Sveglia é ao mesmo tempo um relógio, a mudança e o inesperado. Desorientado, o leitor de “O relatório da coisa” não logra concluir sua composição. Clarice escreve não para fazer literatura, mas para arriscar-se além dela. “O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura.” Em vez de um ovo, ela anuncia um relógio, da marca “Sveglia” – “o que (em italiano) quer dizer acorda”, ela lembra. O relógio é uma coisa, e ele leva a narradora a se perguntar se ela também é uma coisa. Ele a “acorda”. A coisa denuncia a inconstância do humano. Escreve: “Eu creio no Sveglia. Ele não crê em mim. Acho que minto muito. E minto mesmo. Na Terra se mente muito”. Existir é mentir – é portar máscaras, desempenhar papéis, adaptar-se a situações,
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defender-se do pior. Escrever é mentir também. Onde está o conto? Aparentemente a fugacidade do mesmo está também em tentar expressar um insólito dizer sobre o tempo, tempo que, como ela diz, o homem precisou mensurar, “e para isso criou uma coisa monstruosa: o relógio”. Ela deixa claro, desde as primeiras linhas: não sabe. Deixa-se arrastar pela objetividade de um relógio, da “Coisa” – e é a “Coisa” então que toma o lugar de personagem, que se expõe ao relatório e se torna objeto da escrita. “Sveglia não admite conto ou romance, o que quer que seja. Permite apenas transmissão. Mal admite que eu chame isto de relatório. Chamo de relatório do mistério”. Transmissão de quê? Da perplexidade que é escrever. “O relatório da coisa” é uma transmissão da experiência da impossibilidade da escrita. Expandindo a observação de que Sveglia desnorteia “as coisas postas no tempo cronometrado”, podemos afirmar que a narradora desorienta também as coisas postas na linguagem, ou melhor, recorda ao leitor a desorientação inerente à linguagem. Mas só porque é impossível, só porque ninguém consegue, só por isso continuamos a fazer. Tal escrita oferece um aprofundamento na experiência do objeto, em lugar do conhecimento deste.
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E, diante da “Coisa”, tudo o que lhe resta como escritora é o relatório, e não a literatura. “Já te odeio. Já queria poder escrever uma história: um conto ou romance ou uma transmissão. Qual vai ser o meu futuro passo na literatura? Desconfio que não escreverei mais nada”. Até por fim ceder ao seu designo: “Não ter nenhum segredo – e, no entanto, manter o enigma – é Sveglia”, e prossegue: “Sveglia é o silêncio”. É em outra obra que encontramos alguma pista acerca de sua relação com esse objeto enigmático: “O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No meu livro A cidade sitiada eu falo indiretamente no mistério da coisa. Coisa é bicho especializado e imobilizado. Há anos também descrevi um guarda-roupa. (...) Depois veio a descrição de um imemorável relógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo. Depois veio a vez do telefone. No “Ovo e a galinha” falo no guindaste. É uma aproximação tímida minha da subversão do mundo vivo e do mundo morto ameaçador”. Clarice, como o nome em português anunciava, a iluminada, foi brilhante na literatura que produziu sem deixar de ser o que era: uma impermeável amante do
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vazio, da linguagem, da fratura da linguagem e da pergunta. Além disso, carregava uma profunda sede de pertencer. “Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer”, ela nos diz. Daí talvez a busca pelo outro, relatada nesse presente estudo. Sua fala e sua escrita nos deixou pista de sua incrível capacidade de se colocar no lugar do outro sem se deixar objetivar por ele, garantindo a existência de sua singularidade. É quase impossível penetrar o mistério de Clarice porque ela escrevia no mesmo ritmo do fluxo de seus pensamentos. Também ler seus escritos sem compactuar, mergulhar e penetrá-los é improvável. Sua obra é repleta de sugestões, e o evento no interior das personagens é mais valorizado que qualquer evento externo. Não há um caminho para compreender seus textos senão através dos próprios textos. Não há como compreender Clarice senão através da própria Clarice. Conclui-se, desta forma, que se há limitações da autora em sua empreitada literária é porque estas espelham as limitações humanas em narrar(-se), comunicar(-se) e compreender(-se). Não é à toa que, em “O relatório da coisa”, a autora registra o conceito de paradoxo como um mero engano – “Estou melancólica porque estou feliz. Não é
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paradoxo”. Também não parece possível separar em sua obra o que é autobiografia do que é ficção. Clarice, a título de achar resposta à pergunta que ela mesma encarnava, criou mundos e personagens ficcionais semelhantes a si mesma. E os assumiu como si mesma. “Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.”, ela escreve. Em uma entrevista que a escritora concedeu a Haydée Jofre Barroso, algum tempo antes de falecer, em um determinado momento a entrevistadora indaga: "Esqueci-me de perguntar quando você nasceu. Nasci em Tchechelnik, Ucrânia, no dia 10 de dezembro. Meus pais estavam a caminho do Brasil quando precisaram fazer uma pequena parada nesta cidade para que eu nascesse; assim, cheguei ao Brasil com dois meses de idade. E não sei por que sempre pensei que também algum dia de dezembro morreria.
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Seria como encerrar um ciclo. Você me entende?” Celebremos mais uma vez a volta no ciclo nesse dezembro. Norma de Souza Lopes é mineira de Belo Horizonte e professora de literatura. Publicou seu livro de poesia Borda pela editora Patuá, em 2014. Está diariamente no blog Norma Din.
Com Tom Jobim.
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Agradecendo prĂŞmio recebido em 1976.
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Por enquanto eu estou morta por Adrienne Myrtes Talvez fosse necessário substituir os diálogos, dialogava consigo e não se oferecia reposta satisfatória, péssimo conselheiro sempre foi. Alguma coisa precisava ser modificada; ainda não conseguia ouvir a pulsação de um corpo naquele texto. Não havia sangue circulando entre letras. Se cortasse os pulsos haveria sangue suficiente, pensamento absurdo, embora absurdo fosse seu nome quando assentava palavras no papel. A cabeça encontrou apoio entre as mãos. Um ponto qualquer latejou dentro da caixa craniana. Ponto. Um detalhe talvez, não nos diálogos, na narração. Quem sabe o olhar esquecido da mulher sentada no café pudesse na realidade estar perdido. Saboreou as sílabas entre os dentes, per-di-do. Mastigou-as a exemplo da barata ofertada por Clarice em busca de redenção. Perdido estava ele naquele instante, largado na esquina de um país estrangeiro, sua imaginação: passaporte confiscado. Levantou-se da cadeira, não quis prosseguir. Esse querer durou pouco, sentou-se
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outra vez, as mãos executando raciocínio próprio, saltando de tecla em tecla, percorrendo o campo minado do texto a procura de explosões. Imaginou um amor incompreendido, tentou sentirse melancólico; sentiu-se medíocre. Ridículo. E essa compulsão besta de lembrar Clarice servia para ressaltar a mediocridade própria. Os olhos largaram a tela acesa para seguir as linhas das mãos, alheou-se na contemplação das texturas, não encontrou o caminho de volta. Não havia volta além da Terra girando em torno do eixo, brigava consigo na ausência da genialidade de Clarice que se deixava estar, fluir em correnteza interna. O pensamento, em enxurrada, arrastou-o tal um rio, as imagens boiavam, fragmentos de histórias, sua existência fictícia abraçava a realidade, trazia à tona verdades náufragas. O boi morto do outro poeta a lembrar o que foi, o que poderia ter sido. Tecido esgarçado, o texto, cheio de remendos lhe acusava de prolixidade. Do outro lado da ponte, em silêncio, sua sombra aguardava o momento de colar em seus pés. Desejou com desespero a campainha da quitinete por auxílio.
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Silêncio. Cogitou sair de casa; os pés colados à sombra, essa real, jogada embaixo da escrivaninha pela luz da janela nem ao menos se cruzaram para assombrar a letargia. Ainda em silêncio lembrou-se da mulher com o olhar supostamente perdido, agora por sua vez abandonado, que continuava no café à espera. E ele esperando que os demônios de Clarice viessem auxiliar a incendiar um texto frio, espera vã, eles apenas fuzilavam pelos olhos desconfiados e fugidios usados para enfrentar o jornalista; inspiração desesperada para a investigação da morte nossa de cada dia. Decidiu-se pela troca de verbo, gênesis de tudo. Continuava, não, permanecia. Uma senhora com o olhar perdido?, e o substantivo chega lhe puxando pela mão, não, uma mulher apenas, se é mulher a duras penas. Mulher, palavra bastante. O olho de Clarice na entrevista lhe dava argumentos para procrastinação, gritava, cortava, sobrepunha-se à imagem da personagem impossibilitando o ato de permanecer. Permanece-se mais comodamente que se
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continua. Ninguém imagina uma sucessão infinita de permanência; continuação sim, continuação puxa um fio longo, pesa. Tudo naquela mulher virou estranhamento e cansaço diante das mãos débeis de Clarice, cavando trincheiras no gesto de acender um cigarro. Trocou permanecer por continuar. Voltou à personagem, quem sabe observasse as próprias mãos?, percebeu-se apertando os dedos de encontro às palmas. Sentiu-se a mulher e tudo era incômodo nesse sentimento, havia saudades de um futuro que o esperava na esquina; o futuro à feição de um cachorro magro qualquer hora arrebentaria a coleira para matar a fome. Quis chorar, mas era querer demais para tão breve texto, além disso, choro não tem querer tem necessidade. Aquela mulher absurda era ele, aquele era o personagem cuja forma plena só se mostrava nas páginas do quarto. Não havia como fugir das linhas do papel, ali era o espaço onde despia o corpo e deixava expostas as carnes do pensamento. Construiu um labirinto. Só. Pra se perder dentro dele. Igual a ela, isso por si justificava o fascínio provocado pela tristeza de Clarice, ele costurava a vida
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nas palavras e pelas palavras. Não bastasse ser genial ao desnudar a própria dor ela abraçava a morte entre uma escrita e outra, e a ele?, sem o gênio, restava abraçar a dor e bailar. Clicou no xis, canto superior, à direita, fechando a aba do Youtube: seu acesso a Clarice na última entrevista. Pela janela a noite entrou sem alarde, a luz da tela denunciou a passagem inexorável do dia. Abandonou o cativeiro da escrivaninha e gritou janela afora assustando a vizinhança: La nuit, c’est la reine du monde. Adrienne Myrtes é artista plástica e escritora. Já pintou uns quadros e publicou alguns livros, entre eles, O mundo de fora e Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme.
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Frame da entrevista a JĂşlio Lerner, em 1977, na TV Cultura.
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Clarice: a vida vista pela vida por Aloísio Svaiter Jamais a frase de um autor sobre si mesmo foi tão verdadeira quanto à de Clarice Lispector ao se definir no romance Água viva. “Eu sou uma pergunta.” Pergunta sem resposta é efeito sem causa. É mistério. Em Clarice tudo é mistério. É mistério para os que a conheceram no Colégio Silvio Leite nos tempos de estudante, no Rio de Janeiro. Para seus amigos, que se surpreendiam com súbitos rompantes e inexplicáveis desaparecimentos. Para seu analista J.D. Azulay que a dispensou como cliente pela sua inacessibilidade. E para ela própria, que nos seus textos apregoava a sua insuficiência em decodificar-se e entender a distorção do seu espelho. Excelente cronista e exímia contista, foi nos romances que se mostrou à frente do seu tempo e forjou um estilo original e próprio. Vem daí o fato de ser mais celebrada nos dias e hoje, após a sua morte. Se, antes, era uma escritora, atualmente é mito, cuja escrita, em totalidade ou fragmentos é assunto em todas as plataformas
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da mídia. O estilo que criou, estimulada pelo amigo Lúcio Cardoso, é mágico, encoberto por neblina densa, onde seu próprio vulto se desloca. A realidade se apresenta fragmentada, distorcida, povoada de seres que ganham vida e interagem com o personagem em um ambiente metafórico. Existe uma cumplicidade implícita com o leitor, uma confissão íntima, como se há muito se conhecessem. Seus enredos são tênues. Podem discorrer apenas sobre uma barata seccionada pela porta de um armário em um prosaico quarto de empregada (A paixão segundo G.H.). E isso é a história toda. Ao falar de um evento mais banal do que o de Kafka, ela acaba por explicar a si mesma. O que ambos têm em comum é que um "inseto repugnante" os permite desnudarse. Em Água viva, alguém escreve para alguém em tom de despedida, saudando, logo de saída, com aleluia, a dor da separação e a liberdade que dali advém. É um monólogo intimista onde a tensão é criada pela tentativa de reter o instante, onde qualquer causa mesmo que atinja o presente, já é matéria do passado
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e não importa mais. A fria evolução do tempo e o pulsar da vida efêmera é o desafio com o qual lida o personagem. Um tema recorrente de Clarice, é a limitação das palavras como expressão de ser do Homem. Para ela, a palavra é uma isca pescando o que não é palavra. Por isso, Clarice é mais subtexto do que texto. Fica por conta do leitor um numero inimaginável de interpretações. Não é para ler, ela diz. É para ser. Também nos seus textos há a busca do cerne do humano. “– Eu sou o quê?”, pergunta. E a resposta é apenas: "– Sou o que." Ela chama de id o núcleo recôndito, imutável, duro, que a caracteriza, explica-a e lhe define. E id encerra a pergunta sem dar resposta. Porque afinal o que é id? Mais um mistério de Clarice. Seu texto traz o improviso e o inconcluso, pois a vida sempre escapa. Aliás, a vida mesmo é uma outra, com um estilo sempre oculto. Clarice é uma ostra enclausurada que se retorce quando lhe pingam limão. É impossível não ouvir o uivo que emana do seu sofrimento, a sua ânsia
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de entender-se, o lanho na alma que a solidão provoca, o gerúndio interminável do amor que ao final desiste e suplica: "– Olha para mim e me ama. Não: Tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.” E acrescenta exausta: “– Eu te deixo ser, deixe-me ser, então.” Por fim, resta o carinho imenso, impossível de não ser dirigido ao próprio leitor: “– Para te escrever antes me perfumo toda. Eu te conheço toda por te viver toda.” Clarice Lispector é um clássico da Literatura. Porque o clássico inova o estilo. E Clarice inova. Porque o clássico é universal. E Clarice é universal. Porque o clássico é atemporal. E Clarice é "eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca.” Aloísio Svaiter é graduado pela Escola Nacional de Engenharia do Rio de Janeiro. Filho de crítico literário, desde sempre é leitor voraz. É apaixonado pela obra completa da homenageada desta edição.
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Escrevendo as forças das águas por Carla Carbatti O que é Água viva? Um diário? Um texto ficcional? Um monólogo? Um tratado de filosofia? Um exercício poético? De que se trata Água viva? Da escrita? Da pintura? Do it? O it é a origem? O indizível? A linguagem? [Definir, do latim definio, limitar, delimitar, determinar – dicionário online Priberam]. Leio Água viva, há nisso uma espécie de fluido, de mergulho: palavra-anêmona, palavra-catarata, palavra-pássaro-marinho, palavra-rio. Se lê Água viva? Em que língua? língua-sereia, língua-fraga, línguapergunta? Perguntar é, talvez, caminhar, desviar-se, perder-se, abrir um lugar ao desconhecido. É um deslimitar: desenho uma palavra na pele da água/ inapreensível. “Há uma coisa que me escapa o tempo todo”, há algo que segue incapturável: “um cavalo solto de uma força livre”. Escrever com essas forças livres, selvagens: fluxos, pulsação, água viva, exige uma aliança com o movimento, com a vida. A água não cabe na fórmula H2O, ela é uma fluência incabível; enchentes, cheias, infiltrações, dilúvios. O que nos incita a tratar a escrita
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não como um conjunto de códigos a serem decifrados, como essência-verdade a ser descoberta, e sim como criação, deslocamentos, travessias. O próprio jogo etimológico faz da escrita um movimento cortante, desgarrador. A palavra treme, vibra: “Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba.” O que segue vibrando depois do som? O próprio movimento da palavra...? movimento que é como o rastro deixado pelos barcos no mar: dura o tempo de sua trajetória/ não se deixa capturar/ segue sua linha vertiginosa. Redemoinhos aspirais gretam o texto clariciano: anéis abertos: Rings of Lispector. Instalação de 2004 da artista estadunidense Roni Horn que consiste em uma interconexão de azulejos de gomas onde são incrustadas algumas frases do livro Água viva de Clarice Lispector (em inglês, traduzidas por Hélène Cixous) em arranjos circulares ecoando o movimento das gotas de chuva sobre a superfície da água. Palavra-tato, toca, alcança um lugar-entre, uma carícia, tão delicada que deixa intocado aquilo que toca. Palavra-gota, a força das águas revolteando, metamorfoseando debaixo dos pés de quem lê: “quero não o que está feito mas o que tortuosamente se faz”. A palavra acostumada ao formato fixo da
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forma escrita ganha uma motricidade imprevisível, como as pulsações hidrostáticas de uma medusa no Atlântico, no texto clariceano. O público navega sobre as gotas-palavras, espaço-líquido sem pontos fixos, sem possibilidades de apreensão. Como a vida.
“Minha história é viver”, diz Clarice, e associa a escrita ao devir, ao inacabado, a algo sempre por fazer-se. No entanto, devir não é atingir uma forma, conforme argumenta Deleuze, mas encontrar uma zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação. “Mas bem sei que o que escrevo é apenas um tom”.
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[Gotas d’água são tons do oceano?!] Um tom é um entre, nem lá nem cá: intervalar: o instante em que o “mi” está passando a “sol”. Mas não é nem “mi” nem “sol”, e sim a distância indiscernível, in-finta entre ambos. [As águas-vivas são espinhas líquidas do oceano?!] É também relacional, sendo assim, coloca em jogo relações de forças. E essas são inestáveis, estratégicas, fazem conexões móveis, não localizáveis. Dessa maneira, a escrita escapa ao regime representativo e se abre ao acontecimento, cria novos espaços de impossíveis: “ao escrever lido com o impossível” Por isso, Deleuze, diz que em arte não se trata de reproduzir ou inventar formas e sim captar forças. Assim a música faz sonoras forças insonoras, a pintura faz visível forças invisíveis e a escrita faz legível forças ilegíveis. Trata-se de encontrar, de fazer vir, de fazer advir o que não estava ali. Escrever se engendra no ponto mesmo de sua impotência, quer dizer, desqualificando a palavra do seu poder de significar, de dizer a essênciaverdade, qualificando-a, desse modo, para captar o jogo das forças, os fluxos, os ritmos vitais: indomáveis, inclassificáveis, acontencimentais, criando um im-pensado, um im-possível. A palavra, força sem forma, vacila, oscila, delicada, atenta aos detalhes, aos gestos, as intensidades, aos
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cheiros, matizes, timbres, vibrações, aos desvios, aos deslizamentos do desejo. “Esta é vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.” Assim leio Água(s) viva(s): sístole|d i á s t o l e pulsação marítima amorosa mergulho na placenta no plasma a próxima braçada, o desconhecido devir-água do mundo/aquilo que todo tempo me [escapa vida, movimento, palavra.
N
Carla Carbatti é doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha). Publicou seus poemas nas revistas Germina, Zunái, Mallarmagens entre outras.
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Ă gua viva, o livro mais citado na revista.
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A paixão em dois tempos por Antonio Carlos Viana Corria o ano de 1969. Eu havia chegado ao Rio de janeiro um ano antes para fazer uma especialização em literatura brasileira. Vindo da província, porque naquele tempo, excetuando Rio e São Paulo, tudo era província mesmo, a notícia não navegava tão rapidamente como nos dias de hoje. Eu havia feito Letras na então Faculdade de Filosofia de Sergipe, depois incorporada à Universidade Federal de Sergipe. Por mais estranho que pareça, não se falava ainda em Clarice Lispector nos cursos de graduação. O único texto dela que eu conhecia era apenas um parágrafo de Perto do coração selvagem, que eu havia lido num livro didático. Só fui ouvir mesmo seu nome na Faculdade de Letras da UFRJ. Para sobreviver naqueles anos tumultuados, eu dava aulas de português e literatura em colégios do ensino médio. Meu sonho mesmo era ser professor universitário, mas minha bagagem literária era tão pobre que eu nem ousava manifestar esse pensamento a ninguém. Como podia eu ser professor universitário se nem sabia direito quem era Clarice Lispector? Certo dia um aluno meu, desses excepcionais,
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perguntou se eu já conhecia A paixão segundo G.H. Falei que não. O pior de tudo: eu nem havia tido a curiosidade de procurar a bibliografia de Clarice Lispector, àquela altura já muito significativa. Esse aluno me disse que ela era a autora desse livro que ele achava apaixonante. No dia seguinte eu estava com o livro nas mãos, emprestado por ele. Levei o livro para casa com aquele carinho que a própria Clarice descreve em Felicidade clandestina. Eu ia enfim poder suprir minha carência dessa autora que nunca mais iria deixar de ter um lugar especial na minha estante. Falei para mim mesmo se eu gostasse da “Paixão”, iria procurar os outros livros dela. Nada melhor que a inocência para nos fazer ir adiante. Ser professor é não ter tempo para ler. Esperei a noite chegar para começar a ler o livro, como se fosse um livro qualquer. A ignorância também é um bom motor para irmos sempre em frente. E minha surpresa se deu diante daquele começo inusitado: “– – – – – – estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.” Mas o que significava aquilo? A narrativa não começava como os livros que eu estava acostumado a
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ler, deixando-me perdido em meio àquela repetição do verbo viver que ia desaguar naquela “desorganização profunda”. Eu, na época, também vivia uma desorganização profunda, pois não sabia ainda direito o que iria fazer da minha vida. Sabia apenas o que não queria: continuar sendo professor de adolescentes. O pior da juventude é ter todos os caminhos à frente e ao mesmo tempo não ter nenhum. Minha “desorganização profunda” naquele momento era isso: como mudar o rumo da minha vida. O livro foi me pegando a cada página que eu deixava para trás, achando estranho e ao mesmo tempo fascinante aquele número assombroso de perguntas sem nenhuma resposta. Mais estranho ainda o encontro inesperado de G.H. com uma barata, que termina por aprofundar a tragédia de sua existência. “Dois minutos depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens”, diz ela. Era o mesmo que eu sentia algumas páginas depois daquele início perturbador. Assim como G.H. diz muitas páginas adiante que ela era a barata, eu comecei a ser G.H. E não consegui mais parar a leitura, envolvido com aquela coisa nova, aquela forma de narrar desesperada, em que o existencial (eu ainda não lidava bem com essa palavra) da personagem se
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misturava ao meu, cheio de tantas perguntas também sem nenhuma resposta. Fui terminar a leitura de madrugada. Aí já estava certo de que Clarice havia entrado para sempre em minha vida. Eis que, 46 anos depois, me pedem um texto em homenagem a Clarice. Me lembrei então daquela noite quando nasceu em mim a vontade de ser escritor. “Queria escrever assim”, foi o que pensei então. Antes eu tinha somente veleidades literárias. Nunca havia cogitado firmemente sobre a possibilidade de ser escritor de verdade. Mas algo em Clarice me intimidava: a linguagem. Como alguém era capaz de escrever coisas assim: “O bojo de meu edifício era como uma usina. A miniatura da grandeza de um panorama de gargantas e canyons: ali fumando, como se estivesse no pico de uma montanha, eu olhava a vista, provavelmente com o mesmo olhar inexpressivo de minhas fotografias.” (p.35)? O desejo de ser escritor foi se diluindo diante da vertigem de sua linguagem. Para ser escritor, eu teria de perder o medo das palavras e, naquele momento, eu era só medo. Relendo G.H., me dou conta de como tanta coisa me passou despercebida naquela noite de leitura intensa. Talvez por não ter mais as dúvidas existenciais dos 25 anos, pude observar melhor a linguagem
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Paulo Henriques Britto
de Clarice e sua vertiginosa riqueza. Desta vez, não reli o livro em apenas uma noite, mas bem lentamente, como se o lesse pela primeira vez, com o olhar de quem se acostumou a ganhar e a perder palavras, como a personagem G.H. foi perdendo e ganhando a si mesma. Neste reencontro com o livro que definiu o rumo de minha vida, pude observar com certa tranquilidade e admiração maior cada símile, cada adjetivo, cada palavra repetida desse livro que é “tão grande como uma paisagem ao longe” (p.179), e ao mesmo tempo tão próximo de nós. Com o decorrer dos anos, me tornei professor universitário e escritor, sem nenhum medo das palavras. Antonio Carlos Viana é tradutor e autor de, entre outros, Cine privê e Jeito de matar lagartas, ambos ganhadores do prêmio APCA na categoria contos.
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Com a amiga Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha de GetĂşlio Vargas.
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Os infantis de Clarice por Geórgia Alves No dia 10 de junho de 1946, quando morava em Nova York, o escritor Fernando Sabino escreveu para Clarice. Parecia ter encerrado a longa carta, quando acrescentou o parágrafo que se segue, cheio de lirismo, espontâneo, puro improviso e entusiasmo: "Pipocas, Fernando! Clarice Lispector é uma coisa riscadinha escondida num canto esperando, esperando. Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo, correndo no vento na chuva, molhou o vestido, perdeu o chapéu. Clarice Lispector sabe rir e chorar ao mesmo tempo, vocês já viram? Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela e ela morre. Me escreva uma carta de 7 páginas, Clarice". Clarice respondeu no dia 19 do mesmo mês, de Berna, dizendo-se tão surpresa que parecia ter "caído numa coisa assim: de jogar verde para colher maduro ou de ir buscar lã e sair tosquiada". Ambas publicadas
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no livro Cartas perto do coração, revisado pelo próprio Sabino que faz várias anotações sobre suas contribuições à obra da autora. Que conta-lhe também sobre a chegada e a rotina na Suíça, numa rua de nome Seminartrasse (nº. 30), das coisas ainda encaixotadas, das notas de jornais e recortes das críticas aos seu primeiro livro Perto do coração selvagem. Entre essas memórias escreve: "que muita gente toma a nebulosidade de Claricinha como sendo a própria realidade essencial do romance, que eu brilho sempre, brilho até demais, excessiva exuberância...". O asterisco trata da predileção revelada em epifania por Clarice, em Copacabana, passando diante de um pipoqueiro. Sim. Clarice tinha um lado leve, doce e infantil e dedicação em enxergar pelo olhar da criança, de escolher a melhor linguagem para atingi-la, sem subtraí-la de uma compreensão ampla das coisas misteriosas do universo. Uma ternura que seria também comprovada para além da dedicação aos filhos. Na amizade que nutria por Andréa Azulay, para quem Clarice enviou um presente e uma carta: "À bela princesa Andréa Azulay, dou-lhe de presente este objeto. Espero que goste, o nome dele é móbile. Mas eu lhe dei sete nomes. O
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primeiro: la donna é mobile qual piuma ao vento. (a mulher é volúvel como pluma ao vento). O segundo nome é: vertigem. O terceiro é: ano 2000. O quarto é: sussurros delicadíssimos. O quinto é: suspiros. O sexto é: pássaro azul. O sétimo é: Andréa Azulay. Quero lhe dizer minha querida coleguinha que a mais bela música do mundo é o silêncio interestelar". São cinco as obras da literatura infantil de Clarice: O mistério do coelho pensante (escrito em 1950 sob pedido de ordem do segundo filho, Paulo Gurgel Valente. Embora fosse publicado somente em 1967, quando foi premiado pela Companhia Nacional da Criança com o prêmio Calunga); A mulher que matou os peixes; A vida íntima de Laura; Quase de verdade (uma coletânea de lendas brasileiras) e Como nascem as estrelas. Todos Publicados pela Rocco. Clarice escreveu uma vez: "Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O 'amar os outros' é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que
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minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca" […].
Ely Nascimento
Era a mais pura e pueril das verdades. Geórgia Alves tem dois filhos, dois livros (Reflexos dos Górgias e Filosofia da sede) e dois filmes. Muitas árvores. Autora e mãe.
Com o filho Paulo.
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O visual de A descoberta do mundo por João Gomes fotos Lucas Hero
A descoberta do mundo é um documentário dirigido
pela pernambucana Taciana Oliveira em parceria no roteiro com a carioca Teresa Montero sobre a vida e a obra de Clarice Lispector. Dividido entre depoimentos dos que conheceram em diversas formas a escritora e em textos ficcionais, é composto pela conexão de dois audiovisuais: um documentário e uma ficção. Feito para se mergulhar no mundo de Clarice, é provável que sirva como um convite ao público que não se vê lendo biografias, isto é, os que preferem outras linguagens, estas que podem levar outra vez aos livros. Àqueles que se envolvem com os textos de Clarice, as interpretações e a edição sonora confirmam os vários sentidos de uma descoberta. Com o trabalho de registrar as cenas do filme, o fotógrafo Lucas Hero cedeu, junto com a diretora, a delicadeza de parte do elenco, em depoimentos ou nas cenas da vida da autora ou de trechos de seus
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livros. É mais uma prova de que viver/falar de Clarice, qualquer seja a linguagem escolhida, é sempre esse carinho em forma de tributo. Assim, o audiovisual literário brasileiro ganhará o mundo, em cenas pelas cidades em que viveu a autora homenageada nesta edição e documentada no longametragem. Como reportagem visual, selecionamos algumas das imagens que ilustram alguns momentos de A descoberta do mundo, com lançamento neste dezembro, acompanhadas por legendas baseadas nos depoimentos e conteúdos do filme. Lucas Hero é fotógrafo. Trabalha com eventos e investe na área de audiovisual. Esta é sua primeira experiência, no documentário A descoberta do mundo.
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Pandora Calheiros dá vida aos “restos de carnaval” pelo bairro da Boa Vista, no qual passeou a jovem Clarice.
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Praça Maciel Pinheiro, PE. É esta a vista do abandono, se a casa em que morou a escritora também não estivesse em situação pior.
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Praça Maciel Pinheiro. A atriz Stella Maris Saldanha lê A descoberta do mundo junto à estátua da escritora.
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“Aí estava ele, o mar, a mais ininteligível das existências nãohumanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos.”
Praia de Botafogo, RJ. Cecília Bueno vai à praia, como Loreley de Um aprendizado. Ou o livro dos prazeres (trecho acima).
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Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti. Ambos conviveram com a escritora. Marina foi editora dos textos dela, à época que colaborou com o Jornal do Brasil.
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Alberto Dines convidou Clarice a colaborar no Jornal do Brasil. Teresa Montero é biógrafa de Clarice e coroteirista deste documentário.
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Agradeço a Taciana Oliveira, por sugerir a ideia deste número especial, também confiando seu trabalho ao de Vida Secreta. Dedico-lhe, pela amizade, a edição.
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Galerias acessadas Acervo Clarice Lispector no Instituto Moreira Salles. A maioria das imagens de Clarice não possui, de imediato, créditos fotográficos, e as informações vêm de Clarice Fotobiografia, de Nádia Battella Gotlib. As fotos dos autores são de divulgação em redes sociais.
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Vida
Secreta PUBLICAÇÕES
Água viva em áudio Ouça, no Soundcloud, João Gomes lendo segmento do que se tornou a epígrafe desta 3ª edição especial.