Estados em (Antologia)
Vida
Secreta PUBLICAÇÕES
© VANESSA CARVALHO
Estados em
Poesia (Antologia)
Vida
Secreta PUBLICAÇÕES
© Vários autores, 2016 Organização
Luna Vitrolira
Edição, capa e projeto gráfico João Gomes
Ensaio fotográfico Vanessa Carvalho
Dados do e-book Estados em Poesia / Antologia. 84 páginas. ISBN — Pendente. I. Poesia brasileira. Os textos podem ser reproduzidos, desde que mencionada sua autoria. Parte da presente edição está impressa no selo da Mariposa Cartonera, aqui do Recife, em parceria com a antologia. Vida Secreta agradece a Vanessa Carvalho por disponibilizar seu trabalho nesta antologia. Contatos e mais edições vidasecreta.weebly.com vidasecretacontato@gmail.com
O Estados em Poesia é um projeto colaborativo de zona literária itinerante que, idealizado em parceria — com poetas, coletivos, saraus e movimentos literários da cena contemporânea, objetiva possibilitar o encontro de artistas de diferentes localidades, sob o intento de promover o intercâmbio cultural entre os Estados. O Estados em Poesia surgiu inspirado nas rodas de poesia que acontecem tradicionalmente no interior de Pernambuco e impulsionado pelo encontro entre poetas de diferentes lugares no Festival da Macuca Jazz — 2015, na cidade de Correntes/PE, organizado por Zé da Macuca. Hoje o projeto se configura como uma roda de poesia itinerante a ser realizada, a cada edição, em um Estado diferente de acordo com sua cena artística, seu ritmo, sua dinâmica e seu sotaque. Considerando a conjuntura artística atual, no país, observa-se a diversidade de movimentos, de coletivos e de saraus comandados por jovens que estão produzindo, publicando e buscando visibilidade de forma independente, tentando construir e consolidar espaços alternativos para fazer e divulgar sua arte. Desse modo, o Estados em Poesia busca fortalecer a integração da nova geração, estreitar os limites impostos entre as divisas territoriais do país, bem como motivar o diálogo entre movimentos, artistas, produtores e público em geral. 5
A primeira edição aconteceu em 15 de janeiro de 2016, no Bistrô do Artista, em Aracaju, organizado pelo poeta e anfitrião Pedro Bomba, que uniu os Estados BH, PE e SE. A 2ª edição do Estados em Poesia será realizada no Recife, dia 23 de Abril de 2016 e reunirá os Estados RJ, BA, PE, SE, PB sob a curadoria e organização da anfitriã Luna Vitrolira e dos anfitriões Fred Caju, Giuseppe Mascena e Gleison Nascimento. Portanto esta Antologia se configura como símbolo desse encontro, de estilos e sotaques em convergência, construído conjuntamente sob o princípio da soma e da união para celebrar a poesia, pois sabemos e sentimos na pele que viver de arte é difícil, promover a arte é difícil, mas juntos mostramos que é possível transformar, se nos unirmos e colaborarmos uns com os sonhos dos outros. Que seja apenas o começo de uma nova história escrita por muitas mãos, por muitas vozes, por muitos rostos. É preciso dar as mãos para ir adiante. Evoé. Luna Vitrolira Organizadora
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A poesia em movimento permanente. Os artistas reunidos. Nos versos teimosos. Nas frentes de resistência. Em constante vivência. Dentro e fora de seus casulos criativos. É o que eu sempre digo, defendo, almejo: ao meu lado, queridos companheiros de batalha. Todos e todas em um verdadeiro estado de poesia. Com que alegria vejo essa cambada aglomerada. Longe das gavetas cheias de naftalina. Chega! E chegaram, endiabrados. Mostrando que a literatura não está morna. Nem morta. Ela vibra, víbora. Buliçosa e venenosa. Pluralmente contagiosa. De mãos dadas. Eis a nossa hora. Avante, minha gente. Rumbora. Marcelino Freire Escritor e criador da Balada Literária
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Sumário/ |Cardápio
Ágnes de Souza, 11 Alef de Souza, 12 Allan Jonnes, 13 Anaíra Mahin, 14 André Monteiro, 15 Carlos Araújo, 18 Camillo José, 19 Clara de Noronha, 20 Clécio Rimas, 22 David Henrique, 23 Débora Arruda, 24 Demétrios Galvão, 26 Dudu Morais, 27 Fred Caju, 28 Giuseppe Mascena, 29 Gleison Luiz Nascimento, 31 Graça Nascimento, 32 Ícaro Tenório, 33 Isabelly Moreira, 35 Jaflety Pedro, 36 João Gomes, 37
© VANESSA CARVALHO
Jonatas Onofre, 38 Letícia Leal, 40 Lu Rabelo, 42 Luiza Romão, 44 Luna Vitrolira, 47 Marcella Almeida, 50 Marcio Junqueira, 51 Maria Rezende, 57 Nicolas Nardi, 59 Nívea Sabino, 60 Pedro Bomba, 61 Philippe Wollney, 65 Pierre Tenório, 66 Renata Santana, 67 Rildo de Deus, 68 Taciana Oliveira, 69 Teresa Coelho, 70 Tonfil, 72 Vanessa Carvalho, 73 Zi Reis, 76 Wallacy Neto, 78 Sobre os poetas/ |página 80
© VANESSA CARVALHO
Rua da linha do trem queria ter te conhecido quando criança aos seis, você me negaria a primeira paçoca e passaríamos juntas pela fase de não querer tomar banho aos oito, eu te veria andar de bicicleta sem havaianas enquanto eu fingia acreditar em deus queria ter te conhecido quando criança para nunca saber teu sobrenome sobrenomes atrapalham todas as coisas outras Ágnes de Souza Recife/PE
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Lavando um copo descartável Vou fazer jorrar petróleo dos seus olhos Criar um formigueiro no teu cérebro Cavar uma sepultura nos teus ouvidos Enterrar tua língua embaixo da minha Vou desenhar no teu rosto As marcas de sangue Que a saudade fez No buraco do meu coração Vou trançar seu cabelo No primeiro carro que passar Pra te levar pra bem longe Pois acabou que estou viciado Em sentir sua falta. Alef de Souza Lagarto/SE
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O triunfo do chão Pode-se modificar o metro de uma perna O cabeleireiro modifica os centímetros de um cabelo A natureza amplia os metros de um menino E um acidente diminuiu em pelo menos metade Há ferramentas para tudo isto. Só os metros entre dois endereços no continente [é que são irrevogáveis. Dado que no início olharam os lugares do mundo [para dividi-lo E o fizeram por debaixo instituíram o triunfo do chão sobre as massas de ar ou sobre os animais de pé que se moviam. Daí o caráter rasteiro do mapa-múndi Se uma força arrastasse todo o reino animal do [Timor Leste para outro canto essa força ainda não bastaria para arrastar o nome do Timor Leste para junto dos seus animais. O que está em pé não interessa, disseram, e [começaram com a cartografia. A altura de uma casa também não tem validade nenhuma para as instituições. Se eu desarmo as minhas paredes e levo embora a casa e aparece no lugar um homem dos correios ele deita os meus papéis por cima do deserto e vai embora Allan Jonnes Lagarto/SE
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Dicionário de mãe ebulindo ovo ovo ovo vale de ovos vivos ovos maturando dentro uivos, calos meus cavalos segurá-los mastigando fenos leites leites leites humanos azeites penas e deleites gomas e unguentos gentes gentes gentes buliçosas gentes novas e crescentes procurando centros chuvas e serenos pejos obscenos porcos lameados natureza bruta bolsa rôta enxuta rotas esgarçadas Anaíra Mahin São José do Egito/PE 10 14
Adormecer — deito-me — depois de tudo é na cama onde me pergunto quando se dura a pedra do silêncio duríssimas as urgências quantas absurdas horas para saber que não é hoje — fotografaram-me na segunda — as magras mãos luziam estendidas a uma espécie incatalogada de perdão o sim mais largo o mais impossível havia uma distância rigorosa um cão a se coçar sozinho no diário exercício das pulgas — lamberia-me se soubesse meu nome? — Nenhum ofereço-lhe a boca espantada como quando a mulher respondeu estou buscando o firmamento da terra não pude fotografá-la a áfricas de distância onde então registrar a fome das conversas que aconteceram que não parecem estar por vir? — sete horas — 15
recolho-me por baixo dos lençóis para lançar as mãos sobre a página alberto disse suas mãos são lugares para unhas longas rasparei toda a terra até descobrir as tumbas não há jeito suave de acordar de fazer escavações até angola o horizonte é logo ali —————————— — eu sei sei também o deserto de caminhar por miragens e não clonar os oásis tenho as mãos nuas dos arqueólogos sem perícia que proteja dos escorpiões em marcha e eles estão tão perto para que nos recusemos a esperar — já é outono — caio da altura para percorrer todos os meridianos de uma casa que é só corredores — acendo trêmulo a tocha — neste instante o homem não tem olhos tem psicoses — um barulho de agulhas mastigando dentro das [roupas como tarântulas — sim estão perto virão os artrópodes 16
virá o sol em qualquer dia estação ou sonho me descobrirão deitado à espera da chuva e do próximo bote partindo contra os espelhos — sorrir? — este sangue nas gengivas é apenas o retrato do que não é possível nunca mais adormecer André Monteiro Surubim/PE
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Amiga As ventanias escapolem lá da sala da calma sua. Os prantos que se amedrontoam poderiam até cantar sem antes o caso ser dança. O corpo (tendo à voz da véspera) adquire as noções do amor e vai desfarpando os arames. Por cúmplices que mais se atonam, convém aos embebidos, vida. Carlos Araújo Santa Luzia/PB
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“the sound of someone you love who’s going away and it doesn’t matter” 6
quando ela passa aço em brasa nas minhas assaduras feito manteiga, quando seus cacos grudam na nata da minha casca, quando topa suas quinas no meu mindinho, quando seu rabo-flor me beija as anteras, quando sua voz de escaleta me vara os poros à vera, quando sem pressa ela destampa minhas artérias de pressão, quando o último domingo do ano vira sargaço embaixo de suas unhas, quando amola os caninos na pedra-pomes do meu desespero, quando suas tetas me disparam jatos de ayahuasca, quando enfia suas massas nos meus talheres, quando alimenta meus prisioneiros de guerra, quando leva meus fetiches pra passear, quando pede um pedaço da minha hóstia, quando morre na minha primeira página, quando engole meus elétrons, quando confisca as fichas da minha jukebox, quando me manda embora como se com as próprias trompas costurasse a boca de um peixe. Camillo José Recife/PE
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A capital da capital Fábricas, máquinas, prédios e mais prédios a cidade de onde eu venho tem gosto de cimento, lá a brisa passa longe... e qualquer vento é barrado pelos altos muros de concreto Fábricas, máquinas, prédios e mais prédios a cidade em que vivo vive em busca de progresso em desenvolvimento sabe? pra fazer jus ao slogan que lhe deram Fábricas, máquinas, prédios e mais prédios a cidade que passa na propaganda da prefeitura durante o horário nobre é bem diferente dessa aqui que reprime movimentos sociais com a tropa de choque Fábricas, máquinas, prédios e mais prédios a cidade em que respiro pulsa comprimida em estreitas vias de uma vida sofrida negada aos pobres, seus filhos e filhas Fábricas, máquinas, prédios e mais prédios a cidade a que me refiro diz que a cana é dura, e que a pra bandido a solução é tiro 20
a cidade que lhes digo tem um prefeito muito liso de um partido que em tempos não antigos apoiava a ditadura a cidade que eu falo é tão polarizada de um lado o ibope e do outro a notícia abafada a cidade que vivemos foi e é construída por gente que labuta que insiste, sonha e luta às vezes a cidade ao invés de uma parecem duas.
Clara de Noronha Aracaju/SE
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Saudade não se traduz E já tentei decifrar O que eu sinto no meu peito. Já tentei de todo jeito Tal dilema desvendar. Comecei filosofar Trazendo o assunto a luz... Com ignorância propus Só pensamento ordinário... Aprendi sem dicionário: Saudade não se traduz! Belchior, em tom certeiro, Propôs com propriedade: “O fim do termo saudade Como um charme brasileiro”... Concordo com o companheiro, Pois sua ideia conduz Que a saudade é uma cruz Sem língua ou itinerário Aprendi sem dicionário: Saudade não se traduz! Clécio Rimas Tabira/PE
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Imaginária a palavra em pólvora acende um clarão. Ordinária a palavra-pólvora contesta a criação. Temerária a palavra pólvora lembra destruição. Incendiária a pólvora da palavra entra em combustão. David Henrique Belo Jardim/PE
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Poesia dentro Eu preciso escrever porque nem sempre eu digo O que penso Porque as palavras que saem pelas mãos São as que menos saem pela boca Eu preciso escrever porque eu cansei de ter azia Todas as noites em que eu ia dormir Com a barriga cheia De tanto engolir sapos Eu preciso escrever porque a escrita me dá coragem E falar me dá medo Eu preciso escrever por todas as mulheres analfabetas Que morrem sem saber como é a sensação de segurar [um lápis Sem saber assinar o próprio nome E ver que o desenho dele no papel Pode dizer o mesmo que a boca diz Eu preciso escrever porque minha mãe estudou até a [quarta série Mas trabalhou muito pra que eu entrasse numa [Universidade Eu preciso escrever porque nem sempre eu vou poder [falar Porque um dia eu morrerei Mas a minha voz permanecerá eterna 24
E nunca mais Irá calar. Débora de Arruda Aracaju/SE
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Cine-mirante
ao som de Guardia
por um tempo, habitei um endereço rarefeito lugar difícil de se enviar cartas: e de lá, assisti a chuva campestre o concerto do coração dos homens as crianças livres e sensíveis a esperança viajando de trem histórias de cozinha e de amor o feitiço de uma mãe corajosa as transparências de uma jornada interior a oitava cor da música que dizia: — toda paisagem azul é felicidade... passaporte para uma pequena semana de verão na plataforma alegre de oficinas incorpóreas encontro de irmãos nas raízes de uma lembrança milagre de ser e ter no corpo um abraço cheio e um olho filmando tudo. Demétrios Galvão Teresina/PI
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A esmola Destruindo a moral perante aos filhos Um mendigo ergue a mão, silencioso, Na berlinda cruel dos empecilhos Sobre as sombras do chão pecaminoso A família são seres andarilhos Feito estrelas num céu miraculoso Que a penumbra da morte ofusca os brilhos Por comando de um ser misterioso Uma honra ceifada por dinheiro É o golpe mais baixo e sorrateiro Que os cretinos sem alma não percebem Que o escárnio da esmola que caçoa, Vangloria as mãos falsas de quem doa, Humilhando as mãos magras que recebem Dudu Morais Tabira/PE
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escrever é cuidar dos mortos dar proteção aos não-nascidos dar abrigo aos desconhecidos escrever é estar para os outros Fred Caju Olinda/PE
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Quem não quer uma sombra toda hora? Uma sombra que dê somente sombra. Não daquela que sempre nos assombra, Quando estamos sozinhos no agora. Sei que, às vezes, a sombra me persegue; Também sei que ninguém nunca consegue Correr dela. Fugir de seu roteiro Até mesmo o relógio e seu ponteiro, Tanto faz ser o lento ou o ligeiro, Tem um rastro vigia que o segue. Não importa parado ou se veloz, Ela está sempre atenta ao nosso lado. Quem correu e voltou sentiu, cansado, Como a sombra transforma o “eu” em “nós”. Vejo a sombra que dá o cajueiro: Suas falhas marcadas no terreiro São as folhas felizes que balançam. Sem cantor ou maestro as mesmas dançam Quando o vento as atinge, elas se lançam, Viram sombras sem vida e sem ter cheiro. Tem a sombra do amor mal resolvido, Tem a sombra da perda de uma chance, Tem a sombra do ex ente querido E aquela que está fora de alcance. Tem a sombra da falta de coragem, O instinto da carne mais selvagem Que se apaga por ser bem controlado. São as sombras fatais, pois são um nó... Nós vivemos, morremos, e ao ser pó, 29
Esse nó se desfaz ao ser cortado. Toda sombra é mulher desconfiada: Está sempre por perto observando... No momento que eu olho, ela se vira, Não consigo flagrá-la me espiando Quando viro de novo, ela aparece. Pra quem fica parado, a sombra cresce; Pra quem voa demais, a sombra some Velhos, somos a sombra do que fomos; Muda o porte, ela muda, pois nós somos Meras sombras, com sorte por ter nome. Giuseppe Mascena Recife/PE
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Mãe, A loucura faz cada coisa, que se a senhora soubesse cairia pra trás de ver a loucura me fazer gritar nas mesas dos bares contra os deuses que protegem teu filho por apreço ao que oras toda noite — peco muito toda noite, mãe A loucura é que move o meu corpo e te abandona toda vez que não te liga nunca pra acalmar teu coração na certeza que estou vivo — e ando mesmo muito vivo, viu? A loucura, mãe, me arrasta pros balcões de fast-food e me mostra as promoções de Mc'qualquercoisa e batata grande por sete reais pra me ver abandonar o sabor do que cozinhas — e é por isso que definhas, não é? Por ver a loucura levar teu menino pelas mãos pra não caber nos teus braços. Teu menino botando fé nas ideias que não se tateiam. E que não se enxergam. Teu menino caminhando com os olhos bem abertos e ainda sim por fora da linha — é preciso reinventar as linhas, mãe Gleison Luiz Nascimento Recife/PE
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Ser poeta Ser poeta pra mim é ter um sonho Ter um sonho abstrato sem imagem É correr ao encontro da miragem Carregando no olhar um ar tristonho Mas também, ser poeta é ser risonho Entregar-se ao prazer e a vadiagem Se arriscar sem ter medo na viagem Como arrisca-se um deus assim suponho Ser poeta é saber que ser poeta é fazer do impulso sua meta É beber cada instante eternamente É viver sem ter medo de morrer É morrer sem ter medo de viver É sentir sem ter medo do que sente Graça Nascimento Canhotinho/PE
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Deserto geográfico da intimidade Voltei no sertão mais uma vez esses dias E vi os galhos escondidos O rosto do solo mais jovem Com a barba cheia Os mais velhos satisfeitos com o céu e com o sol E com o sal que suas mulheres punham na medida na [comida desmedida A água tinha feito a limpeza laranja dos telhados e [tecidos internos dos filhos Tava todo mundo em casa Do mesmo jeitinho de antes Sem mudar nem um tracinho de personalidade sequer Nem uma mudançazinha bem pequeninha de ideia Continuavam reféns de suas espingardas hereditárias Ainda não tinham respondido, nem lido Nenhuma das repetitivas e insistentes e demoradas e contraditórias [e confusas e nervosas e odiosas e magoadas e [covardes Cartas de repúdio que escrevi Para que lessem pelo menos uma Antes de eu assinar o contrato de perdão Olhavam com a mesma expressão sem expressão De sempre De sempre sempre sempre. Desidratados: A alma precisa beber água. Eu escrevi. Meu espírito também precisou de chuva. 33
Tive que me retirar do nordeste da alma Por que não há chuva que acabe com a sede do meu [espírito. Essa sim é a seca mais difícil dos últimos todos os dias para trás e para frente. Pra eternidade de antes e de depois de mim. Do [nosso povo. Da nossa família. Ícaro Tenório Arcoverde/PE
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A cor do amor Amai o branco, o preto e toda cor, E a qualquer um amai sem distinção. O índio, o pobre, o pardo e o sem pudor, Amai a todos sem qualquer razão. Diferenças que vêm no exterior Não revelam o comum da formação Das pessoas que sonham, pois amor Não tem gênero, nem raça ou restrição. Não tem classe, dinheiro ou melanina; Não há cota ou poder que determina O valor de igualdades sociais. Já que o homem, depois, termina em pó, Se a origem e o fim é coisa só, Para que diferenças raciais? Isabelly Moreira
São José do Egito/PE
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Poema para ler em volta da fogueira 4 As estrelas são fogueiras Que queimam a centenas, a milhares — minutos [daqui. Tão perto quanto sua pupila E todos os segredos que ela guarda. A fumaça entra torta pra dentro. Fogo é fogo e queima forte e lento; Devasta, mesmo que pequeno — Revela-se o reflexo da alma. Calma, sobre a pedra rubra; Calma, na noite escura. O fogo há de iluminar o que for Há de emanar mais loucura Na experiência do amor. Calma, sobre a noite rubra; Calma, deitado na pedra escura. O fogo há de queimar o que for Há de emanar mais amor Na experiência de todo essa loucura. Jaflety Pedro Propriá/SE
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Condição aquática Podes forçar o nada a levar tempo n'água sendo barco, nadador descontar as remadas sem dissolver em nada. E por faltar ou sobrar quanto do nada serve, o saber nadado pode ser essa água levada, contrária ao que nada. Com pressa de peixe, o nada vai por sua vez vazio como só lhe soe reinventar-se do nada, e no criado se instala. Mergulharia nas águas o incolor preenchedor ilustre aos que passam, e o todo num aquário agarra olhos, por nada. João Gomes Recife/PE
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Os amigos os amigos, com suas cabeleiras ressequidas, com suas ossaturas, maxilares e engrenagens, os amigos, suas mentiras coçando no meu ouvido, suas queixas, seus alívios e álibis, suas condolências, seus derrames, seus batuques, suas aftas e naftalinas, suas axilas, asfixias e seus obituários, tudo que chega neste tropel está me dando nos nervos entre as pernas me ensinem um jeito eficiente de apagar vossas faces, tem que haver algum lugar de areias onde eu possa afundar vossos crânios, vossas palavras vãs, vocês. não suporto mais esses meus amigos, essas minhas mariposas tão próximas, ao alcance da mão, e estou suspendendo 38
Anaíra Mahin
uma lâmpada, e lhes prometo: nada mudará, quando seus corpos atravessarem essa carne elétrica Jonatas Onofre Igarassu/PE
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Flor arrancada, Enxuga teu pelo, retrai tua cauda, A partir de hoje é que serão contados Teus aniversários A mão dos afagos Perderá os dedos A pálida aurora Não celebra o dia, mas celebra Longamente sua despedida O pacto lento das coisas Só acorda quando anoitece Flor arrancada, Primeiro morra, primeiro arda Todo ontem foi vida E agora a lembrança escapa Então não teime, Feneça Pendure o chapéu desta dor no meio da sala Segure este paletó Erga esta bengala Tuas horas herdadas de flor São na ampulheta da morte O que a vida desertou Não mastigue dessa areia Flor arrancada, de onde foi mesmo Que te arrancaram? De uma parede onde estavam Grudados os seus olhos? 40
Acabem-se enfim as Pangeias! Temei menos Os oceanos LetĂcia Leal BrasĂlia/BR
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Ode ao Estelita O Recife cansou de tanto abuso Não aguenta tamanho desrespeito Por acaso, aqui se tem prefeito? Pois se tem, tá fazendo um mau uso Da cidade que é nossa por direito Não queremos mais torres horrorosas Que impedem o vento de fluir Desejamos mais parques, ciclovias Exercer o direito de ir e vir Nossos mangues, coitados, agonizam nossos rios, morrendo, são esgotos e os políticos, os tais dos governantes na verdade não passam de uns escrotos são escravos das ditas construtoras nem aí pra quem é a maioria de conluio com as grandes destrutoras dão as costas para a cidadania estampando na cara a covardia ignoram do povo o poder mas tá aí, nosso povo tá na rua exigindo a clareza no dever Que danado de desenvolvimento Que destrói ao invés de construir? Destrutoras, já chega, não dá mais! Nossa Terra precisa evoluir! 42
Que a justiça se faça desta vez! E a vitória seja dos cidadãos! Que o Recife se una, dê as mãos E sufoque tamanha estupidez Que possamos mais livres respirar Conseguir avistar o amplo céu Tomar banho de rio, de chuva, mar Viver menos trepado em arranha-céu Estelita é pedra de estrelas! É um solo regado de história É paisagem de cores, patrimônio Armazéns preenchidos de memória O Estelita é da população Nosso Cais é um canto de esperança De beleza, guerrilha, de aliança É um Porto, lugar de ocupação! Lu Rabelo
São José do Egito/PE
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Tratado sobre o óbvio (ou canção do auto-exílio para b.b.) 1. são os pés libertos para escolherem seus próprios caminhos 2. se não servem para dançar transgredir e anoitecer as ruas não merecem esse nome 3. é possível encontrar humanidade em tudo exceto nos cataclismas nas leoas famintas e nos homens fardados 4. de uma cidade sitiada se diz o mesmo que de uma jaula: é segura para predadores 44
5. o direito ao revide é tão essencial quanto o direito à educação ao solo e à agua: nenhuma face merece ser espancada duas vezes 6. assim como as pedras e os cereais as palavras têm pesos: massacre e confronto não equilibram uma balança 7. as bocas foram concebidas em igual medida para o beijo e para o grito: se surdo o governo só resta aos cidadãos os dentes 8. em legítima defesa até o ódio é permitido 45
9. a subserviência reduz o homem à sombra: iguala-o às ovelhas às garrafas vazias e aos objetos ao relento 10. quando forjada à balas a paz veste uma camisa de força 11. em tempos sombrios o medo distorce o óbvio cabe aos poetas aos lúcidos e às corajosas recuperá-lo Luiza Romão São Paulo/SP
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Credo Eu acredito no amor de porta de banheiro de muro pichado de acento de ônibus de alto de prédios de orelhão quebrado No amor que singra as pontes do Recife ao meio dia que corre pra cruzar a rua driblando buzina no meio da vida no amor que xinga e colhe uma flor corresponde um aceno acredita em destino e acaso ama e odeia ao mesmo tempo Eu acredito no amor de Eurídice e Orfeu no amor que desce ao inferno e volta de mãos vazias no amor de Medeia, de Julieta e no meu que não ultrapassa o clichê de um sonho de padaria Eu acredito no amor de uma criança por seu cachorro e seu boneco sem fazer distinção de afeto porque em ambos lhes cabe vida no amor pelo feio pelo disforme pelo que é ignorado no amor que zela e machuca com veneno e cuidado Eu acredito no amor de Nena por sua bodega no de Deja por seu Jardim no de Seu Castelo por [sapos 47
no de Dona Chocha pelas roupas e no de Angela por seus gatos Acredito no amor que corre as ruas da minha infância no amor que dá bom dia que ajuda uma velha a segurar sacolas ou no amor que empresta seu ombro como guia pra atravessar o delírios das horas mortas acredito no amor da minha mãe por mim e mais ainda pelo vício de cigarro com coca-cola Eu acredito no amor que acontece nos becos às escuras sobretudo e todo amor que nasce proibido e permanece clandestino à espreita pra quem sabe se tornar público No amor de duas vulvas no amor entre dois falos no amor que se embaraça e serena pra findar grisalho no amor que não tem número que geme rosna grita vulnerável enciumado infiel e homicida de posse e possessão Amor que supera as distâncias da convivência que muda de calçada nas brigas e se mostra mais amor em complacência e não sucumbe aos apelos da liberdade ou da prisão 48
amor de banco de praça que desalinha mas depois entrelaça Amor que se despede se desespera se despedaça Amor que não cabe num ínfimo segundo em que a morte o assalta Luna Vitrolira Recife/PE
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No meu jeito confuso, resolvi te escrever um negócio. Que caminha do coração e passa pra voz e assim segue voando pra fora. O Ferreira Gullar falou da sua voz. Ousado que é. Ele disse que quando te ouvia cantando, lembrava de um pássaro. “Não um pássaro cantando, mas sim um pássaro voando.” Achei lindo e resolvi que compartilharia desses versos com você. O outro. Manuel Bandeira. Também falou sobre os sentidos. Só que do jeito dele, sabe? Denso. Simples. “Te amo como se ama um passarinho morto.” Confesso. Custei a entender. Continuei eufórica por querer tanto escrever algo desse tipo pra você. Sobre amor. Morte. Misturando tudo que assusta a gente nesse mundo. Eu admito: também te amo como se ama um passarinho morto. Sabe por quê? Quando vejo um pássaro morto dá vontade de pegar e por na palma da mão. Levar de encontro ao meu rosto. Acarinhar. Chorar. E falar: voa, voa, passarinho morto. Marcella Almeida Aracaju/SE
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O sétimo dia o cheiro doce do detergente e a lembrança (impressa na cozinha) de um cigarro descobre sábados no sábado descobre trilhas de formigas seguidas pelo facho de sol coado pela lupa (em) alegrias cheias de vírgula sábado era a espera durante a semana encontros fortuitos entre as aulas vez ou outra voltar juntos eu caminhava lento para nunca chegar os olhos sob os óculos concentrados em mim não nas conversa dos meninos boca das meninas encarte de cd jornal revista cifra (na frente dos garotos éramos vagamente próximos você gostava de música e eu era quem você conhecia 51
que mais conhecia de música ninguém supunha nós dois deitados no sofá ouvindo caetano cantando jokeman o cheiro da sua boca só eu sabia a minha mãe desconfiava a sua fingia os garotos não os garotos eram lobos bobos fumando carlton na quadra cheirando benzina no banheiro eu era todo livros e canções e filmes e citações brincando de casinha longe dos garotos você era meu amigo) sábado não sábado eu gastava meu dia inventando o dele exercícios de caligrafia nas paredes do beco o traço quebrado em vermelho corações lanceados pairando sobre poças de sangue negro os últimos pingos suspensos 52
armando círculos concêntricos sobre a superfície e todas as dores do mundo rondando o quarteirão quando a luz baixava inaugurava ardências unhas roídas até o sabugo oráculos nas placas dos carros liturgias em torno ao telefone em dias abafados em que o suor presagiava chuva lançava isca encontrei a saga da fênix descobri um poeta italiano foda guardei um fino pra gente fumar e ele vinha pisando macio a superfície do mundo limpando na camisa o óculos e rindo amarelo lindo sentava ao meu lado mudo e me ouvia sobre tudo solar como funcionam os prismas de quartzo dos relógios de cristal as várias vidas de kiki de montparnasse a teoria das cordas snuff movie marlon brando fazendo marco antônio sábado e sua carne difícil (eu tinha medo do silêncio medo que um espaço em branco entre nós rebentasse os dentes 53
fazendo emergir cardumes de palavras, expectativas e fantasias escapistas que eu mastigava no quarto sozinho aos sábados longe dele) num sábado de dezembro o mar invadiu a casa ainda que não houvesse aquele ridículo ritual ele saberia em verdade sempre soube ou desconfiava depois foram tantos sábados terças quintas e sextas mergulhados num jogo perigoso de olhares gestos ensaiados eu avançava ele ia eu ia ele voltava eu fingia que ia só pra ver ele vir e vinha ele ia eu ficava até que numa sexta-feira ele finalmente se foi ele já havia tentado ir em outras sextas quartas quintas sábados mas acabava sempre voltando 54
eu também já havia tentado ir quase sempre às segundas que é o dia melhor da semana pra começacabar algo mas acabava voltando também até que numa sexta-feira ele finalmente se foi no dia era azul e quente quando ele chamou no portão eu lia deitado na sala os poemas do brasil de elizabeth bishop o poema final que fala das facilidades da arte de perder e era um desfecho tão óbvio tão clichê que nem sequer cogitei ele estava cansado eu também ele calou muitas coisas eu também nenhuma canção servia de trilha tentou falar palavra não deixei quis me/se perdoar não olhei pra trás medo de virar estátua de sal e percorrer os tempos fixado à orla do portão olhando um menino de vermelho e cinza atravessando a rua 55
depois nada dias aminiรณticos branco sobre branco malevich passei muito tempo assim Marcio Junqueira Feira de Santana/BA
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Primavera Dia de rasgar o coração As mãos dadas diante do altar profano e esse anel que vez em quando queima o dedo anular Três árvores floridas se exibem na janela do quarto e os peitos também querem ser vistos querem se mostrar Minhas mulheres minhas amigas rasgam os seus com os dentes e mastigam dores empedradas Cada uma em suas casas assim nos abraçamos damos as mãos sem altar colamos umbigos e bicos dos peitos somos um só corpo que deseja a liberdade Dois casais acordaram casados essa manhã Eles chegaram nervosos sorridentes e eu vi suas costas relaxarem lentamente enquanto andavam pra longe de mim Mão direita mão esquerda pose pra foto o que máquina nenhuma pode capturar 57
Dia de rasgar o coração dia de costurar Maria Rezende Rio de Janeiro/RJ
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e se jesus voltasse de peitos abertos e cada peito tivesse 350 ml de silicone e a purpurina passasse a ser item obrigatório para [quem ousasse citar seu nome os apóstolos todos escolhidos em um prostíbulo [cheio de putas, travestis e vagabundos e os milagres fossem cegos voltando a enxergar tudo [em tons de rosa os aleijados capazes de andar somente em cima de [salto 15 a água não viraria vinho seria gasolina — e quem quisesse que ateasse fogo [em si mesmo e se jesus voltasse achando jesus um nome muito brega querendo ser chamado de Maria Madalena e estivesse num salto alto com a cara toda maquiada num vestido decotado você ainda iria à igreja aos domingos? Nícolas Nardi Porto Alegre/RS
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Retrato O espetáculo é contínuo senti doído, um choro rindo ruindo as plantas, as curas manhãs ruindo as casas, morar não é lar ruindo o tocar, ausência que arranha cordialidade de sufocar feito cão, farejo mudo imundo mundo, me faz fadiga nenhum pé de arruda eu vi brotar nunca houve sorte, sou eu, colheita forte onde falta há, aqui já não habita ar a lua clareou a rua a face tua mãos dadas e a minha, só fotografava Nívea Sabino Nova Lima/BH
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leia a bula das drogasilícitas não remedie osmedos amedronte as faces deseus planetas cerca de 4em4em4em4 emquatro horas pra chegar atéaqui não cale a barriga e tudo quevem das vísceras a universidade está mais branca que hospital parece que chupou limão azedo e só anda careta eta chupe a manga até o caroço poderia ser pior se pior fosse taiquerize nos anos de crise os governistas piram e fazem pirão com a farinha do mesmo saco abaixo o currículo lattes as latrinas dissolvidas beije a boca de lobo presenteie o reitor governador e prefeito com um saco de bosta pra eles verem a merda que fazem maconha é que nem água não se recusa estudou tanto e mais tanto e no fim virou policial au o playboy de classe média acha que não 61
é bóiiiii acha que é doidão chupa droga em alta velocidade e a mãe lava suas cuecas o bóiii não sabe quem o boi lambeu não sabe quem fez sua comidinha cheio de opiniães na província todo mundo tem um pouco de medo porque todo mundo se conhece e tem o nome a zelar cague nos sobrenomesnomes no filho de fulana na filha decicrano a família só serve pra tirar foto e violar os direitos humanos o secretário de cultura poderia ser balconista ou vendedor ou +=+representante seria mais sincero e atribuiria melhor suas funções economia criativa é a fantasia do que há de mais cruel o problema de tudo é que cada vez mais tem empreendedores e cada vez menos artistas abaixo a política do bom mocismo do amiguismo do tapa nascostas lamba as pedras daruada frente tem cheiro os índios 62
da ponte do imperador sabote o centro cultural de aracaju e as visitas guiadas abaixo o horário comercialda cultura a cultura não tem emprego fixo muito menos vive em repartição pública o funcionalismo público é o decreto do medo estabelecido abaixo a carreira promissora o pior é gente que gravou discoedisco e hoje se engoma num ternoegravata assessoria de comunicação não é jornalismo cinema não é publicidade o problema do audiovisual al é que todo mundo lembra do visual al e esquece do áudio a militância de esquerda marca uma reunião pra encaminhar outra reunião reunião desburocratize a vida antes que seja cargo demais abaixo os mestres de cerimônias e os apadrinhamentos abaixo as despedidas e viagens para o exterior tudo que vem de fora vem de fora 63
nada mudará nos finais de semana se as festinhas baladas e shows só servirem para os donos de casa d shows derrubem aslisérgiasfalsas o papel que parece que é e não é abaixo o discurso requintado de apreciadores da cultura a arte deve servir ao pedreiro e a faxineira e não aos secretários políticos e cargos comissionados abaixo os mediadores governamentais e seus aprendizes as produtoras e seus vt's institucionais e convites oportunistas quem vê o navio hdantas nem imagina as drogas que há dentro dele legalize os vexamescoletivos 6acham que não é 9dade mas dar nome aos bois é fundamental. moooooon! Pedro Bomba Aracaju/SE 64
quando o teu livro chegou pelos correios pensei que as palavras brilhariam dentro do envelope assim como o enxame do caos explodia em meu peito irradiando saudade e espera; mas um livro é um livro e tem todo o opaco das coisas, as palavras por si só é tinta apregoada num lençol; o que luzia era um brio dentro de minhas retinas refletindo das esquinas de teus versos os passos bêbados do dia em que nos encontramos; — o restante foi apenas literatura. Philippe Wollney Goiana/PE
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Peรงo que tenhas muito cuidado com minha cena na sua sina posso querer ficar pra sempre ouvindo a tua voz de menina; o puro encanto do meu veneno somente mata quando germina; te darei tempo Pierre Tenรณrio Belo Jardim/PE
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Intimidade Quando silêncio nu banheiro feminino ouça o som das calcinhas apertadas gostoso e macio se escalando entre as coxas das mulheres acrobatas. Renata Santana Recife/PE
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Zoomórfico Eis que o Poeta se encarrilha pela estrada da vida e faz sua guarida nas sombras do matagal seu cantar celestial aprendeu com o Duende o fogo que ele acende é substância divinal, seu elemento astral, a espada é a caneta, carrega aljava de madeira e um elmo de sal. As botinas sete léguas em seu andar galopante a perna longa passante de Poeta corajoso se encantou quando moço e quedou feito condor por entre as pedras do lajedo (dizendo): — Céu-Calunga! Esse seu som expansivo é cravo tão corrosivo que se planta em meus ouvidos vejo a Lua na lagoa e o Sol em minha rede longa a cinta de arco verde na encosta da montanha oh Céu, me transfigura em pássaro bonito tal qual quimera do mito, um leão branco e alado, de plumas me faz encantado, pra eu voar em ti, Céu[Calunga-de-Fogo. O Céu lança sua dádiva por esses versos e de Laputa frui um relampado andaluz transfigura o Poeta numa águia colossal que se lança (rasante) pelas rochas do penhasco bate firme as grandes asas e levanta voo molha o corpo na turbulência das nuvens e deixa rastros de rocio para além da fantasia. Rildo de Deus
Vitória de Santo Antão/PE 68
1. Quantas moedas compram o desejo e com quantos fios tecem um pavio? Tolice é não desafiar o texto e sim é o não de cada palavra. Falta muito ou pouco para o tolo provar do veneno da própria língua? 2. Os retalhos de uma primavera distante costurados em minha alma tecem os fios de um sorriso pálido ainda descrente da ternura que habita os olhos. Para entender esses passos tortos não pise nos meus sonhos. 3. Era um domingo qualquer, de um tempo qualquer de uma chuva tão presente. Até quando essa água vai escorrer pelos meus olhos? Taciana Oliveira Recife/PE
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Para a senhora que desapareceu no ônibus antes que eu chorasse
Não temos casa elas deixaram nossos sapatos pendurados no fio elétrico da rua de nossos avós foi num carnaval de 1993 Nossa primeira memória respirava do lado de dentro do Universo the dark side of the sun frevo de criança não tem letra De bruços para a ponte nós ríamos das sereias e monstros que dormiam em berços de plásticos tóxicos colocamos os pés sem equilíbrio porque sabíamos que elas teriam ido embora para sempre Entrego meus olhos ao escuro da sala na tela do cosmo a desorientação cibernética notícia com sangue de deuses contemporâneos "rapaz morre em tentativa de suicídio" Naquela noite matamos nossos professores mas a única janela do prédio não cabia meu corpo 70
Eu vi de longe 22 anos depois nossos avĂłs ainda nos esperavam o olhar conformado sem as lentes do futuro como quem entende que aqueles sapatos pendurados jamais voltariam aos nossos pĂŠs. Teresa Coelho Recife/PE
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Na madrugada lenta e ressacada Eu testemunho o renascer do dia Uns copos sujos adorando a pia E uns jornais numa mesa desforrada Um quadro alegre a realçar na sala Um jarro feio com umas flores mortas Uma agonia que nunca se cala E um vão silêncio nas juntas das portas Uma caneta, um papel dobrado Com tons escuros, meio amarelado E fortes marcas de um desenho preto Como no quarto fosco de um mago Deixo um cigarro me insistindo um trago E adormeço sobre o meu soneto. Tonfil
São José do Egito/PE
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Compilação sobre o movimento 1. há um homem que vive parado e ninguém sabe por quê. quando sabem não entendem: parado ele vive. não entendem como alguém pode viver sem sair do lugar. ele descobriu onde o mundo começa e já não quer sair de lá. ele diz que perto temos um oceano e não paramos nem pra molhar os pés: movam os olhos, parem os pés. nosso oceano é maior. parado dizem que ele perde tempo e do tempo temos que estar à frente. 73
mas ele é um homem detrás do seu tempo. o perdendo pode se encontrar. parado está em movimento porque o seu mundo é por dentro. 2. não me importam os batimentos dos ponteiros: os que me dizem a hora são os de dentro do peito. 3. do céu azul ao chão rachado, naquele sertão dona rosa é a única flor. 4. nascer pra peixe de água de alma mas no papel ter quase sempre que subir pra respirar. 74
5. nos passos sós pela casa e rua, solidão é a canção que ela dança. Vanessa Carvalho Recife/PE
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Maria Ela costura os meus botões Me ensinou a fazer arroz Oh Maria! Eis aqui a tua cria Me embalaste em noite de alegria E também de dor Amor Dor poderia ser teu sobrenome Mas escolheu a resistência E foi por tua persistência Que a minha voz se fez presença Não me deixou sonhar com príncipe encantado Se sentou ao meu lado E me entregou um caderno com versos embaralhados Me disse: Filha, vá! Siga teu caminho Mas siga atenta Por que o mundo é de armadilha Se tu dê mole ele vêm e te arrebenta Retirante do sertão navegou sobre os rios da violência Vi seu corpo ser marcado por truculência Por um homem de pouca decência Vi seu riso virar choro O choro virar pranto Inundar aldeias Afogar sereias Virar acalanto 76
Vi reerguer a nossa casa O suor foi alicerce O telhado Trabalho Em nosso prato Nunca deixou faltar Coragem Tratou de temperá-la bem Com as gotas de sangue do teu ventre E se hoje tenho fôlego para correr mil léguas Erguer meus punhos em praças e vielas Foi porque tu mulher me ensinastes em silêncio Que não á luta sem amor E a luta da mulher é por sobrevivência. Zi Reis
Minas Gerais/BH
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Minha avó já foi sereia do Rio São Francisco
todos procuram ser assim como os pés da sua cadeira, vó quase uma interrogação (talvez eu) virar um livro de ideias todo em branco e reencontrar outras viagens outras sílabas escutar o ranger dessa cadeira é acessar um novo-velho mundo. ver outra vez a canoa na beira do rio mas poder fecundar os grãos de capim grudados na calça ser assim como você, vó ter inevitavelmente teu cheiro e as pernas, pensamentos finos viver o vai e vem na cadeira inconclusa acreditando atravessar outra vez o Rio São Francisco. Walacy Neto Goiânia/GO
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© VANESSA CARVALHO
Sobre os poetas reunidos Ágnes de Souza é mestranda em Teoria da Literatura, insone e alérgica a chocolate. Alef de Souza é formado em direito e medicina, mas cursa poesia. Allan Jonnes escreve poemas e estuda Jornalismo. Esse último a contragosto. André Monteiro, bio: degradável. Anaíra Mahim é poeta, cordelista, quadrinista, atriz-cantora, compositora, cientista social, palhaça e pós-graduanda em Arteterapia. Camillo José é do Recife, de 93. Um dos editores do selo "la bodeguita" e organizador do coletivo Lambadaria. Seu primeiro videogame foi um mega drive. Carlos Araújo vive em João Pessoa desde 1999. Graduou-se em Psicologia na UFPB onde atualmente cursa Letras/Português. Clara de Noronha, poeta e rimadora da cidade de Aracaju. Acredita que as palavras são a nossa maior arma e que o ritmo e a poesia andam lado a lado. Clécio Rimas, entre a tradição de poeta glosador, chegando à música poetizada do rap urbano, utiliza a cultura litorânea e enaltece ainda sua identidade sertaneja. David Henrique é de 1996. "Útero de retratos mundanos" e "poemas sem cabrestos". Pesquisa como escrever poemas sem usar palavras. Débora Arruda é poeta e mulher que possui o céu aberto na cabeça e as esquinas do mundo inteiro para rodar. As palavras são as suas armas e também o seu escudo. Demétrios Galvão é poeta e historiador. Autor dos livros “Insólito”, “Bifurcações” e do objeto poético 80
“Capsular”. Editor da revista Acrobata e do blog Janelas em Rotação. Dudu Morais dedica-se a um livro de sonetos. Destaca-se ainda usando de sua oratória no tribunal do júri, atuando como advogado. Entre a poesia e a justiça, sonha. Fred Caju possui livros, poemas, cronicontos, vídeos e récitas na página: http://fredcaju.tumblr.com/. Também é editor e do blog Cronisias. Giuseppe Mascena tenta misturar Recife com Tabira-PE para ver no que vai dar. Publicou o cordel “Invasão de favelado na casa de comunista” e só o vende olho no olho. Gleison Luiz Nascimento, escritor. Graça Nascimento possui dois livros editados em produção independente por ideologia antieditorial da poetisa que na sua arte prima por revolução e liberdade em todos os sentidos. “Na nudez da poesia” “Outras Graças”. Ícaro Tenório é poeta, escritor, ator, cantor e compositor. Isabelly Moreira é autora do cordel “Carta a Tião”, dentre outros voltados para a literatura infantil. Através das declamações e produções, repassa a arte da cultura popular, enquanto constrói o seu legado. Jaflety Pedro é cofundador do “Sarau da Caixa d’Água” e fundador do selo editorial artesanal “Osso de Baleia”. João Gomes é recifense, de 1996, e editor da revista eletrônica e selo Vida Secreta. Está nas antologias “Granja”, “Sub-21” e “Capibaribe Vivo”. Guarda, abaixo das costas, seu “Falo enterrado”. Jonatas Onofre é poeta e músico, lançou o poema “Opsufabula”, participou das antologias “Desvio para o vermelho: b treze poetas brasileiros contemporâneos” 81
e "Poemas para a Palestina". Letícia Leal é jornalista em formação e escreve poemas na sala de espera da psicóloga. É canhota, canhestra e no tempo livre tira tarô para moças apaixonadas. Lu Rabelo é poeta, declamadora, cantora e compositora. Integra, com a premiada dupla poética As Cumade. Luiza Romão é poeta, atriz e diretora de teatro. Publicou o livro “Coquetel Motolove” e participou de inúmeros saraus/slams. Cria vídeopoemas explorando a linguagem do spoken word. Luna Vitrolira, alguém de Recife/PE que vive impulsivamente, odeia beterraba e nunca teve coragem de tomar café. Marcella Almeida é poeta da cidade de Aracaju, mas já foi estrangeira. Marcio Junqueira é poeta e artista visual. Mestre em literatura brasileira com dissertação sobre Caio Fernando Abreu e a Contracultura. Maria Rezende é poeta, atriz, montadora de filmes e celebrante de casamentos. "Substantivo feminino, "Bendita palavra" e "Carne do umbigo". Como montadora assina cinco longas-metragens e séries para o GNT, Multishow e TV Brasil, além de making ofs e trailers. Nícolas Nardi imprime, corta e grampeia os fanzines, um a um, com seus poemas e desenhos. De vez em quando cola poemas em poste. Já publicou pelo quarto do seu apartamento dois fanzines e dois livros em papelão. Nívea Sabino é poeta, ativista e arte educadora. Menina de nome trocado, coração aflito e vontade de sabe-se lá o quê na vida. Pedro Bomba é poeta nascido em Aracaju. Pierre Tenório é atento aos ventos: olhos de papel amassado, poética 82
à luz de sons, abandono em contramão e apertos de coração. Philippe Wollney é poeta e coordena o coletivo Silêncio Interrompido e o selo editorial Porta Aberta. Renata Santana, 29 anos, recifense libriana poeta bibliotecária jornalista ‘recita-adora’ tagarela poeta escreve desde sempre declama desde os 13 observa é tímida e a cidade a respira. Rildo de Deus é poeta popular do “Anarquismo Conservador” publicou de forma independente diversos livretos artesanais, assim como cordéis e fanzines e também é o idealizador do festival “As Bruxas de Santo Antão. Taciana Oliveira é cineasta, videomaker e tem paixão por fotografia e poesia. É de leão com ascendente em leão, também apaixonada pelo Sport Club do Recife. Teresa Coelho tem alguns poemas publicados pela revista Mallarmagens e em fanzines da NAUvoadora e da Lambadaria. Vanessa Carvalho é escritora e fotógrafa, com participações, por meio de suas imagens, nas revistas Parênteses e Vida Secreta, e em páginas da web de projetos fotográficos. Tonfil, ou Antonio José de Lima Filho, apresenta-se como um artista sonoro visual além de trabalhar com a poesia plástica. Vela pela alegria do mundo. Zi Reis é artista visual que descobriu-se poeta na rua. Graduada em Pintura, pela Escola de Belas Artes da UFMG. Membro do Sarau Vira Lata. Walacy Neto não está à venda nas melhores livrarias. Tenta articular seus poemas no olho vivo e de mão em mão. Criou o selo literário Zé Ninguém e tenta publicar seu primeiro livro, o “Muito Pelo Contrário”. 83
Organização Luna Vitrolira Edição e projeto gráfico João Gomes Ensaio fotográfico Vanessa Carvalho Recife/PE 2016
Vida
Secreta PUBLICAÇÕES cebook.com/lei avidasecreta
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