Zoooom Literário Agosto-Setembro 2016 issuu.com/vidasecreta
Vida
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Carta editorial por João Gomes Esta primeira edição de Zoooom Literário reúne alguns dos textos em prosa publicados nas duas primeiras edições de Vida Secreta em revista. Algumas narrativas, uma entrevista e uma reportagem. Pode o leitor se perguntar: mas nenhuma poesia? Esta publicação ficará reservada somente à prosa. Ainda assim, temos a prosa poética de Eder Asa, de Maria Luiza Chacon e de Mara Amavara. Na entrevista com Adrienne Myrtes, a autora comenta sobre a sua experiência na escrita de micronarrativas e na que publicamos, “Chá com formigas”. Em reportagem, Priscila Merizzio também entrevista editores para decifrarmos o que impulsiona o fazer editorial independente. Temos muito da prosa feita em Pernambuco, através de Gerusa Leal, com sua versão feminina do conto “Homo Erectus”, do também pernambucano e presente aqui Marcelino Freire, que com seu já conhecido humor reproduz os pedidos que fazem alguns autores iniciantes pra se promoverem no meio literário. Bárbara Nunes, Cleyton Cabral e Valdir Oliveira, todos pernambucanos, cada um com sua temática e ousadia no estilo, presentes também. Patricia Chmielewski utiliza o que fala a sociedade sobre os homossexuais para contar a história de um que se divide entre os desejos íntimos e coletivos. Mara Amavara sempre surpreende com seu erotismo linguístico, e o leitor percebe isso melhor buscando a primeira edição, que foi censurada pela capa apenas por um homem segurar sua banana, fruta mesmo, entre as pernas. Falta falar apenas do paulista Felipe Valério, com sua criatividade e domínio na escrita do Boletim de Ocorrências após uma denúncia, o poético junto do burocrático. Gosto desse começo, dessa licença com o zoooom em trabalhos já publicados em nossas edições, em livros e em blogs que se permitem a leitura num rápido clique que aumenta o acesso. E sem falar nas ilustrações, na busca de diálogos com os textos. Uma boa leitura a todos e todas e até a próxima!
Expediente Zoooom Literário Agosto-Setembro 2016 Edição e projeto gráfico João Gomes Imagem de capa Autor desconhecido Colaboraram com textos Adrienne Myrtes Bárbara Nunes Cleyton Cabral Eder Asa Felipe Valério Gerusa Leal João Gomes Mara Amavara Maria Luiz Chacon Marcelino Freire Noemi Jaffe Patricia Chmielewski Priscila Merizzio Valdir Oliveira Contato e publicações issuu.com/vidasecreta vidasecreta.weebly.com vidasecretacontato@gmail.com
Sumário Chá para formigas, 4 ficção_ Adrienne Myrtes O inferno de enxergar o efêmero, 5 entrevista_ João Gomes E se todos fossem polvos, 6 ficção_ Bárbara Nunes Apto 302, 9 ficção _ Cleyton Cabral “Pari sozinha”, 10 ficção _ Eder Asa Termo de declarações (ou ode aos lobos brancos), 11 ficção _ Felipe Valério Fêmea fóssil, 12 ficção _ Gerusa Leal Anotação encontrada nos classificados do jornal, 13 ficção _ Mara Amavara O olho, 14 ficção _ Maria Luiz Chacon O trabalho do escritor, 16 ficção _ Marcelino Freire Sarah, 17 ficção _ Noemi Jaffe Homossexualismo, 18 ficção _ Patricia Chmielewski Independência é morte?, 20 reportagem _ Priscila Merizzio Os seios de minha mãe, 24 ficção _Valdir Oliveira Sobre os autores, 26 Acontece literário, 27 resenhas _ João Gomes
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Chá para formigas por Adrienne Myrtes Formiga é um bicho muito desprendido. Outro dia peguei uma delas na sala e soltei no quarto, entre outras. Ela não sofreu, não pareceu sequer perceber minha interferência, continuou seu caminho desesperado, seguiu adiante sem tentar voltar para casa; feito quem não tem família, quem domina o mundo inteiro. Já observou como elas vivem atarefadas? Apressadas? Para quê? É o que me pergunto. Contraditoriamente aparentam andar a esmo. Sem rumo certo. Talvez disfarcem. Tramam algo? Será? Quando duas delas se cruzam trocam palavras rápidas. Como se estivessem sempre com a mãe por um fio, uma corda no cadafalso. Formigas não têm tempo para banalidades, para troca de impressões. É impressionante como não relaxam. Embora gostem de chá. Desde que bem adoçado. Vê aquela xícara? Adocei bem. Não vou usar para empurrar o remédio. Estou guardando para elas. Fico horas a fio contemplando seu movimento nervoso. Isso me acalma. Esqueço que agora sou só, meus pais faz tempo não vêm, meus pais, dois anjos. Posso fazer qualquer coisa e fugir para o jardim, sou igual às formigas soltas pela casa. Conquistando cada centímetro de solidão com meus passos. Só não tenho pressa. O tempo nesse lugar ficou preso como eu. O tempo, às vezes, mal respira. Agoniza. Convivo com ele, conto histórias, não me deixo para intimidade. Os remédios são trazidos em copinhos, engulo sem argumentar, sem precisar de líquidos. Faço de conta que acredito em médicos e enfermeiros. Faço de conta que não sei que essas pessoas também vão morrer, portanto, desde já, são sombras. Finjo. Não quero que as sombras brancas que me visitam descubram meus pensamentos. Disfarço. Mudo de rota. Mudo. De assunto. As formigas costumam andar em fila indiana e vão e vêm sem atropelos. Aqui as formigas não saem do jardim. Não entram nos aposentos. Elas têm medo de gente louca e não gostam da ausência de cheiros. Na casa em que eu vivia, elas se espalhavam procurando restos de doces. Eu não gosto de doces. Os tufos de algodão branco, guardados nos armários, não são para mim e nem são doces, eles não nascem da quentura de um carrinho mágico cheirando a açúcar queimado. Não estou doente embora tentem me confundir com terapias. Conversa mal paga que eu alimento dissimulando, escondendo minha ciência da verdade, a única, todos vão morrer e é irreversível. Sombras, nenhum anjo, apenas meus pais com asas. Silêncio é o que peço quando me calo. Só preciso tapar os ouvidos para dormir, ou que os corredores cessem seus barulhos. Esse cheiro de assepsia é desumano. Esse excesso de branco, de gente oca, vazia de pensamentos. Não gosto de esparadrapo, nem da programação da tevê, menos ainda dessa gente que assiste à tevê. Gente desabitada de alma e sedada. Gosto de gente. Impregnada. Principalmente não gosto de gente que assiste tevê e se machuca e precisa de esparadrapo. Branco. Gosto menos ainda de gritos e brigas. Meus pais brigavam muito, sabe? Gritavam. Eu tenho sono leve e olhava para as formigas correndo do meu quarto para a sala, ou para o estrangeiro. Formigas vão a toda parte. Gosto de formigas, são pequenas. Quando, sem querer, esmago uma delas não há sangue, porque de sangue eu também não gosto; a cor me dá vertigem. A vida é um desmaio. Os corpos dos meus pais desmaiados ainda me lembravam vida e sons, precisei atirar mais vezes para estar certo de que calariam. Fechei o buraco da boca dos dois. Eles já não gritam mais, estão pacificados. Não brigam. Descansam em paz no céu dos pais que ninam os filhos. Sei que os transformei em anjos, vi nascerem asas, tranquilas. As formigas são tranquilas. Gosto delas. Formigas não sangram. Nem é preciso fazê-las calar quando se quer dormir.
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O inferno de enxergar o efêmero por João Gomes Adrienne [Myrtes], para você, qual seria a importância de uma publicação como Vida Secreta? João, querido, pra começar preciso dizer que admiro sua disposição e competência para fazer circular a literatura; fico honrada e grata pelo o convite para a entrevista. Para dizer da Vida Secreta começo dizendo de seu suporte, a internet, o fenômeno mais abrasador dessa nossa era, chegou chutando a porta e alterando as relações humanas em vários níveis; para a literatura trouxe uma democracia absurda e maravilhosa nas publicações. Permitiu o surgimento de sites, blogs e revistas eletrônicas as mais diversas. Em meio a essa paisagem a Vida Secreta nasceu trazendo textos de excelente qualidade aliados a um tratamento gráfico primoroso, sem rasgação de seda, e acredito ser uma das belas publicações dos últimos tempos; sem dúvida muito importante para divulgar a literatura e incentivar a leitura na rede. Pelo microconto ser um gênero dedicado à concisão dos 140 caracteres, há alguma obsessão em escrevê-los pela facilidade de vir e se editar? De fato quando comecei a escrever microcontos foi por desafio de Marcelino Freire e nosso limite era de cinquenta toques, sem contar o título. A antologia Os cem menores contos brasileiros do século é de 2004, não existia ainda o Twitter e seus 140, o meu microconto que lá está possui 41 caracteres. A inspiração para o projeto do Marcelino foi o escritor Guatemalteco, Augusto Monterroso, autor do microconto mais famoso do mundo, a saber: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. O Twitter facilitou o desafio. Acredito que o microconto é um excelente exercício e finda por viciar, vivo fases nas quais exercito bastante essas micronarrativas e o raciocínio fica afiado, eles passam a surgir naturalmente. Não chega a ser uma obsessão, penso que eles estão por aí e a gente entra na sintonia de reconhecê-los ou coisa que o valha. O que precisa um bom microconto? Tenho dificuldade para ditar regras, por natureza prefiro quebrá-las daí eu ficar sem jeito para sujeitar pessoas a escolhas, que em última análise são minhas. Por isso vou dizer dos caminhos que transito nessa escrita. Quando enveredo pelos microcontos além da síntese, óbvia, gosto de adicionar doses de insinuação, sugestão e silêncio, muito silêncio para que a história se complete ou se desenvolva em sua incompletude na cabeça do leitor. Respectivamente, em ambos dos seus textos, publicados na primeira edição, percebe-se um gosto por metáforas e certeira ironia, vontade de fazer o leitor sorrir. No primeiro, "Chá para formigas", como consegue esconder o que deseja dizer apenas para o leitor atento? Acredito que as palavras dizem mais do que o significado primeiro que lhes atribuímos, gosto de brincar com esses dizeres não ditos, com as possibilidades oferecidas pelo relacionamento entre elas; universos nascem a partir disso. Quando escrevo histórias costumo abrir espaço para as palavras exercerem ambivalências, e no caso específico do personagem de Chá para as formigas, coloco esse exercício a serviço da loucura do personagem que por vezes entende, por vezes não entende a dimensão de seus atos. Utilizo sim metáforas e ironias para esse fim e pretendo provocar riso, mesmo que um riso interno, amarelado. Fato. No geral procuro encontrar o lado risível das situações porque acho muito chato me levar demais a sério; além do que tenho ciência das já referidas ambiguidades, se existe luz mesmo dentro da sombra não há razões para não reconhecer o risível nos dramas e saber ainda que a recíproca também é verdadeira.
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Olhando para a literatura publicada apenas em blogs, feed das redes sociais, como você avalia a produção atual? Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa, já dizia o Rosa e eu pego carona na frase pra especular, vivemos um momento de necessidade de expressão e exposição, aliado a isso a contemporaneidade é ditada pela rapidez de informação, urgência na comunicação, é o que observo. Tudo é notícia e precisa ser consumido de imediato sob pena de sofrer desatualização. Penso que a escrita dos blogs e feed de redes sociais surge em resposta a esse quadro. De qualquer forma é complicado avaliar com propriedade ou fazer julgamento de valor a respeito de um fenômeno social no qual estou emersa, não tenho o distanciamento necessário para tal, nem conheço a fundo todos os vórtices que cercam essa nossa realidade. Assim, assumindo meus limites, penso que apesar da internet e em especial as redes sociais, alimentarem-se dessa fluidez, desse eterno atualizarse, e em contraposição literatura pedir mergulho e silêncio, a vida é contraditória e essa contradição, a exemplo de como ocorre com a vida, pode servir de meio e/ou alimento para a angústia do autor, gerando daí textos interessantes, com fôlego para adquirirem esqueleto e musculatura e extrapolarem essa plataforma por serem 'maiores' que ela. Para terminar, em sua minibio lemos que a literatura salva sua vida. Contaria um pouco desse salvamento, desse encontro com a palavra? Sou uma pessoa cuja cabeça ferve, vivo sob intensa atividade cerebral, construo, reconstruo e descontruo meus próprios argumentos o tempo inteiro; costumo afirmar que meu inferno de bolso é enxergar com clareza a ambivalência e a efemeridade dos fenômenos que me cercam. Por lidar essa peleja interna, esse questionamento de princípios e motivações próprias, creio que vivo dançando à beira do abismo, a um passo da loucura e é nesse sentido que a literatura me salva. Meu encontro com a palavra é necessidade diária, serve de asas para plainar sobre esse abismo, serve de pedras para me manter abismada. Desde muito cedo, escrever passou a ser ordenar e pacificar minhas incoerências, apaziguar a dor de reconhecer minha humanidade e saber que, boa parte do tempo, a humanidade é uma roupa na qual eu não caibo.
Imagem: Divulgação
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E se todos fossem polvos por Bárbara Nunes Tudo começou com a paella. Todos os domingos, meu pai vai até a casa dos meus avôs e me leva para almoçar. Vovó ajudou a me arrumar e disse que eu estava muito bonito. Sorri enquanto avisava que ficaria esperando no quintal e ela afirmou que papai já estava chegando. Ele sempre atrasava. Minutos depois, a buzina tocou. Vovó me ajudou a sair e meu pai me colocou dentro do carro. Perguntei para onde iríamos e ele disse que para a casa da Fernanda, sua nova namorada. Não me lembro da Fernanda! A última que ele me apresentou foi a Isabela. Ou seria Carla? Papai gosta bastante de namorar. Paramos na frente de um prédio luxuoso e eu precisei de ajuda para subir as escadas até o elevador. “Se tem um elevador, pra quê as escadas?” Papai riu e disse que também não entendia. O apartamento era o 1301. Descobri que a Fernanda era uma moça bonita e tinha um filho, o Gabriel, de treze anos. Eu tinha nove. Ele me chamou para jogar vídeo game e eu ganhei no futebol com três gols do Ronaldinho! No almoço, meu pai colocou bastante arroz amarelo para mim. – É paella, filho. Uma comida da Espanha! – Ah... E o que tem nela? – Várias coisas... Camarão, polvo... – Polvo? Aquele bicho dos braços grandes? Papai respondeu que sim, disse pra eu comer e deixar de papo na mesa. A Tia Zizi, da escola, tinha mostrado o que era um polvo na semana passada e eu fiquei imaginando que aqueles pedaços já estiveram no mar. Voltei para casa no final da tarde e perguntei se Vovó conhecia algo sobre os polvos; ela disse que não. Perguntei se o Lula Molusco, amigo do Bob Esponja, era um polvo e ela disse que não, porque ele era uma lula. Perguntei qual era a diferença e ela disse que não sabia. Pedi para ir até o mar para ver os polvos, ela falou que eles deveriam viver lá no fundo e era difícil ver. Ela perguntou por que tanta pergunta. Não expliquei e fui para o quarto. No computador, comecei a pesquisar sobre o bicho. Papai me ligou bem na hora em que li que os polvos gostavam de viver sozinhos e só procuravam namoradas para fazer filhos. Depois da mamãe, papai fez três filhos em três namoradas. Contei para ele que ele era um polvo e que, por isso, gostava tanto de namorar. Ele riu e disse que eu estava muito esperto com a internet, me deu boa noite e desligou. O vô já tinha perguntado se eu tinha escovado os dentes para dormir quatro vezes. A vó diz que eu devo responder sempre porque ele esquece rápido. Será que os polvos também têm memória ruim? Procurei e não encontrei nada. Continuei lendo e descobri que os polvos usam tinta para afastar quem quer machucar eles e isso me lembrou o Juninho. Juninho é meu primo e nasceu faz pouco tempo; seu pai, tio João, diz que o cocô dele faz todo mundo querer sair de perto. A vó fica brava sempre que ele diz isso mas é porque ela gosta de cuidar de todo mundo, como a mamãepolvo. Sabia que ela fica sem comer o tempo em que os filhos estão para nascer? Quando eu contei para a vovó isso, ela disse que a minha
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mãe era igual a mamãe-polvo. A Tia Zizi também disse isso quando eu contei a ela! Ela e a mamãe eram muito amigas. Mas a Tia Zizi não consegue namorado! Será que ela só namora polvos? Ou porque ela reclama com eles quando eles se lambuzam de chocolate que nem faz comigo? Se ela não fizesse isso, eu namoraria a Tia Zizi. Ela diz que se a mamãe me visse hoje, estaria muito orgulhosa de mim porque eu sou bonito. Vovó diz que mamãe está me vendo o tempo inteiro. Eu não me lembro da mamãe. Eu tinha dois anos quando ela foi pro céu. Vovó me contou que mamãe dirigia um carro quando uns moços tentaram levar a bolsa dela. Ela entregou, mas um moço ainda... Como é que vovó diz... O moço ainda atirou! Isso. E várias vezes. Eu queria ter os poderes de um super-herói para proteger a mamãe. Se fosse hoje, eu prendia eles em teias como o Homem-Aranha ou em raios como o Super-Choque. Nós ficamos machuca dos. Vovó disse que mamãe me abraçou e que só me largou quando chegaram os doutores para cuidar de nós. Aí ela foi pro céu. Na aula de artes dessa semana, fiz um desenho de todo mundo: a vó, o vô, papai, Fernanda, Gabriel, mamãe e até a Tia Zizi! Coloquei uma mancha marrom no canto pra ser o Juninho. Todo mundo tinha oito braços. Mostrei para os meus amigos e eles perguntaram por que a mamãe estava flutuando. Eu disse que ela morava no céu. Se o céu é tão azul e tão grande quanto o mar, será que a mamãe virou um polvo no céu? Será que ela virou amiga das mamães-polvos?
Imagem: Reprodução
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Apto 302 por Cleyton Cabral Começou a organizar os livros na estante: os mortos, os vivos, os mortos-vivos. Alejandra Pizarnik e Ana Cristina Cesar numa prateleira só para elas. Hilda Hilst como se estivesse num anúncio de empreendimento de frente para o mar, visão privilegiada para quem entrasse: um quarto (1 suíte). Perto de tudo. Caio Fernando Abreu ganhou nova vizinha parede com parede: Clarice Lispector. Se é verdade que as paredes têm ouvidos, um vai ouvir os murmúrios do outro nos dias frios, principalmente aos domingos. Lygia Fagundes Telles no andar de cima, passeia sorrateiramente pelos corredores, entre extintores e avencas. Nelson Rodrigues divide uma quitinete com Marcelino Freire. No térreo, uma bodega. Na varanda da frente: Machado de Assis, João Antônio, Ingo Schulze. Alan Pauls vive por ali. Mario Bellatin alegra o jardim. Inquilinos fiéis: Fernando Pessoa, Cortázar, Kafka, Tchekhov, Guy de Maupassant. Luis Fernando Veríssimo dá o ar da sua graça e não para quieto. Foi dormir entre aspas.
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“Pari sozinha” por Eder Asa pari sozinha. já era escuro e mais treva fazia a dor. grito clareia esse breu? cala-se vagalume vagando nas pupilas dilatadas! ai de mim que sempre amei a luz da lua. uma vez vi uma mula morrer ela deitada de lado estrebuchando e respirava pesado igual eu ali. mordi o lábio inferior e o sangue correu decerto que com alívio de sair daquele corpo mirrado aberto e se abrindo. EU NÃO TE ALCANÇO MENINO. o ventre doendo desesperos e por que é que não ajudaram a mula coitada? papai disse que a mula era velha mas o que é velho não devia morrer feliz? a juventude é um embuste. ai de mim que fracasso em fazer vida e morro. do tanto que eu suava babava chorava sangrava o menino vai provar que não sou seca. setenta por cento do corpo é água menino por que você só não escorre pra fora? já vem tão sólido o menino porque se nasce de tanto sofrimento e solidão que há de enfrentar menino se não te alcanço para puxar a este mundo e tem de se esgueirar sozinho por meus tubos se os ecos do teu choro em mim reverberam e me estufam se menino esmurro a terra maldita de tão dura e me arregaço na imagem de um figo maduro desabrochando e figo maduro não serve mais pra nada? – “você sabia que figo não é fruta mas uma flor que abre pra dentro?” – o que antes foi vagina hoje é ferida. me rasgo em gretas e lembro que ainda pequena achava greta garbo um nome lindíssimo e quando vi a mulher era ainda mais lindíssima mas desde quando ser mulher é lindo? e grito. já te sinto menino me fendendo dilacerada gasta e rugosa no seu primeiro sentir sentindo minha cabeça toda fria e pesada eu toda desfeita. te expulso porque não te comporto mas quisera eu fazer pela boca ou pelos poros agora se comporte pequeno e vem já pra fora que nem me importo se vens sujo não vou ralhar que tenhas demorado e me feito preocupada pode vir sem medo que te acolho menino. ao forçar como que pra lançar um olho pra fora da fronte vi pedaço ovalado luzir do vale de minhas coxas e compreendi a semelhança dos termos parto e partir. vinha ele no puro empenho de nascer em mundo tão torpe como um deus que vai aos poucos aprendendo a ter corpo. já fugia o menino de sua primeira casa que um útero é do tamanho de um punho com luvas de box e um bicho sai de dentro do outro irado de terror. pois me despontava outra cabeça pra fora e me sentia palíndromo amaldiçoado e solitário temendo histericamente machucar tão frágil semente que cinza e sem respirar não chorava ao passar por meus canais com os ombros contorcidos as mãozinhas juntas e gélidas como numa prece – uma prece meu deus – eu ainda não havia pensado em deus e nem pensaria fosse por mim mas o menino que eu já puxava e era tão compacto não chorava como a mãe que ele ainda habitava. ai deus que se diz justo não sejas tão arrogante nisso de sempre fazer tuas vontades porque claro que almejas tão luminoso menino entre os anjos mas deixa-o aqui como último consolo a este caco que já foi mulher e hoje sou. o faça chorar senhor deus que seja a minha morte mas dá-lhe grito e ar porque é cruel mesmo pra ti isso de deixá-lo morrer de silêncio. pois perdoo vossos vícios senhor deus se deres início ao menino que nada tem e nada é bem menos do que tu tiveste cristo porque nasceu de pai mãe e burro e havia manjedoura e uma estrela veio lhe brindar o natal e este que agora nino conta até com céu nublado mas ainda assim é desejo que viva e que chore para selar seu começo de martírio que no entanto é seu destino. o então menino no resvalo de quem cai num abismo moveu-se de ar lhe entrando e gritou estridente canção imunda e monotônica estreando o diafragma mesmo sem saber usarlhe e eu mãe amniótica achei-o o pavarotti dos tempos um fadista nascido. pense em nós dois líquidos e derrotados ligados ainda por cadarço orgânico corda de carne que nos mantinha um e manteria mesmo depois de torada fio de vida que indicava aquele laço. e eu nunca havia pensado na vida como um fio. eu nunca havia pensando na vida com um filho.
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Termo de declarações (ou ode aos lobos brancos) por Felipe Valério Aos vinte e sete dias do mês de janeiro de dois mil e quatorze, nesta Comissão de Investigação de Crimes de Natureza Sexual, onde presentes estavam os delegados RUBENS FERRO (vulgo Zé Cheiroso) e AMAURY VANDERLEY (vulgo Tico Serra), comigo, escrivão, ao final descrito, compareceu ROCHELLE AMARULA (nome fantasia), brasileira, mulata-quase-negra, um metro e setenta (já desconsiderando o salto revestido de um classudo acabamento em onça), sessenta e cinco quilos (distribuídos de forma musicalmente equilibrada), natural "da vida" (natureza de cunho espirituosa que deixou os homens do recinto demasiados excitados), QUE, na noite do dia anterior a este, declarou estar fumando um cigarro (desses avulsos, dedicados a fumantes sem culpa) e comendo uma coxa-creme nos fundos do Boteco Bengala Doce; QUE, percebeu a aproximação de três homens-brancos-já-crescidos e um cachorro de raça indefinida; QUE, o mais alto já chegou cambaleando a língua cheia de água na nuca com cheiro de alecrim da vítima; QUE, o mais encorpado apertou suas nádegas (roliças e invejavelmente torneadas) como se fossem bisnaguinhas recém-assadas em um bistrô parisiense; QUE, o mais bonito abriu as pernas da vítima com uma luva amarela de lavar louça (em uma clara evidência kubrickiana); QUE, o cachorro fungou três vezes a coxa da vítima; QUE, o mais bonito falava "as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá"; QUE, o mais encorpado sussurrava no ouvido da vítima termos como "entalar o barrote, escaldar a maraguaia, afundar o rabiosque"; QUE, o cachorro projetou o recheio do pênis para fora como um batom vermelho que procura um par de lábios; QUE, a vítima gemeu "ui..." de forma involuntária e automática; QUE, o mais alto segurou seus cabelos pretos-enrolados e os puxou como se controlasse uma égua cheia de teima; QUE, o mais bonito assoviou "a cada ausência tua eu vou chorar" (em um momento-Jobim que me arrancaram lágrimas); QUE, o mais encorpado penetrou a vítima com uma chave Philips de oito polegadas (movimento de beleza ímpar se realizado em direção a algum spot luminoincandescente); QUE, a vítima gritou um gemido em lá menor descartando armações em sustenido ou bemol; QUE, o cachorro mordiscou o dedo mindinho da vítima enquanto raspava no asfalto os pequenos testículos; QUE, o mais alto deu dois tapas de tirar choro da cara da vítima; QUE, o mais bonito elevou os braços e fez o movimento de balé rond de jambes air seguindo de um battement tendu em avant (clap, clap, clap!); QUE o mais encorpado sonorizou "hummm","hummm" e "hummmm"; QUE, a vítima sonorizou "não", "nãããooo", "nãããããooooo; QUE, o cachorro começou a lamber a pontinha do próprio pênis (lindo, lindo!); QUE, o mais alto beliscou dois grampos de roupa (de posse premeditada) nos mamilos (lindamente empinados) da vítima; QUE, o mais encorpado gritou "aaaaahhhhh"; QUE, a vítima soltou algo como "tudo posso naquele que me fortalece"; QUE, o mais bonito declamou em alto francês receitas originais de tartare de bouef, cuisses de grenouilles e ovas de esturjão não fertilizadas; QUE, a vítima perdeu a consciência por dezessete segundos sendo acordada logo depois pelo quente da urina do cachorro; QUE nada mais disse nem lhe foi perguntando, em seguida, determinaram as autoridades policiais que se encerrasse o presente termo, QUE, depois de lido e achado conforme; QUE, inspirado pelo comportamento inquieto do mais encorpado, declarou que o mais apropriado a se fazer era apagar as luzes, trancar as portas e mentalizar uma árvore de lobos brancos uivando homenagens para aquela já extinta ovelha mulata. Lavrado, perfumado e subscrito, ADEMAR FIGUEIRA (vulgo Poeta Pierre-Birô).
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Fêmea fóssil por Gerusa Leal Sabe a Fêmea que encontraram no sal? Encontraram no sal de Sodoma? Petrificada? Os arqueólogos encontraram no sal salgado de Sodoma? Perto da campina do Jordão em Sodoma? A Fêmea feito uma estátua salgada, com sua cesta de pães ázimos? Sabe a Fêmea que encontraram? Com seu embornal de farinha? A Fêmea que tinha cabeleira farta? A arcada dentária já falhada? A Fêmea meio macaca? Fossilizada? Fossilizada na encosta de onde já se viu? No tempo sumido? Você viu? Tetravó das mamíferas do Brasil? A Fêmea vertigem? A Fêmea engolida pelo sal da terra? Da Era Bíblica, não sei? Antigo Testamento? Que criava a galinha d’Angola? Criava o porco Pereira? Cabrita e novilha? Ia ao mangue pescar caranguejo? Guaiamum? Sabe desta Fêmea? Irmã da Fêmea do Catimbau? Prima da Fêmea de Natal? Da velha Dona Ninon? Da Fêmea de Mauá? Das Incas, até? Das Filhas do Sol? Das tribos da Guiné? A Fêmea de 100 mil anos antes de nossa era? Ou mais? Um milhão de eras? Fêmea com mandíbula de Casé? Parecida a mais terrível das serpentes carnívoras do banhado? Um mistério maior que este mistério? Pegadora de jacaré? Não sabe? Fêmea fossilizada pela desobediência? Pela curiosidade, por acaso? Pela Teologia, não sabe? Vista nas encostas salgadas de Sodoma, repito? Sodoma sodomita, vá saber lá o que é isso? A Fêmea mistificada, você leu no livro santo? De olhos miúdos? Salinizados? Exposta para estudo? À exegese dos estudiosos puritanos? Como uma estátua louca? Quase? Flagrada como se estivesse flertando com as profundezas do mundo perverso? A Fêmea germinal? Das origens uterinas da Feminilidade? Sabe esta Fêmea, não sabe? Esculpida nas encostas da campina de Sodoma? Eletrolítica? Náiade? Efidríade? Esta Fêmea dava o xibiu para outras fêmeas. E como não era o cu, ninguém em Sodoma, até então, tinha nada a ver com isso.
Imagem: Jake Dinos
[Zoooom Literário] – 13
Anotação encontrada nos classificados do jornal por Mara Amavara não que eu não fosse puta. mamãe me dava blusas que cobriam até a virilha e umas poucas sainhas. ficava puta! queria roupas que melassem o umbigo e traduzissem a falta de clima. que coisa! emputeci. cortei a saia. cinto. me senti a própria rebelde-sem-calça em seu mais fino trocadilho. quando apareci na esquina, começaram a me arrumar emprego. borboleta! princesa! senhora! puta! em cinco minutos, janinho da borracharia já ligava pro SAC. que putaria é essa? ah, meu filho, tem que depilar! esse negócio de modinha não cola velcro comigo. ainda queria que eu pagasse 10! deveria ter dito que só trabalho com dólar. fiquei puta. bem. foi. arrodeou, arrodeou e liberou tudo com direito a psiu! ei! hum! era pra ser só um fio-terra, mas janinho, como bom borracheiro, fez o cu de câmara de ar e não murchou com as bolhas. adorava as bolhas. borbulhava como os gemidos que meu celular dava ao vibrar. sim, eu era moderna! não atendia. enquanto mamãe não me desse roupas que gritassem que eu tinha preço, não ligaria. porra, qual o problema? mamãe me comprou um jaleco. brinquei de médico. mamãe me comprou uma batina. orei na surdina. mamãe me comprou um terço uma boina um perfume um espelho. mamãe me comprou uma dúvida. mas não me comprou um caralho. todo mundo tem um pau! eu queria era um caralho que ensacasse minha pitoquinha. aí me dão o cu! cuzinho gostoso e sem xuca. você pede um pau e olha a merda que vem! todo mundo tem cu. amarelo ou azul. é o início de tudo. foi dele que nasceu o não. na primeira vez em que o homo erectus virou pro homo sapiens e pediu seu cu bem embrulhadinho. ora, como assim o cu não, janinho? tá ficando assustadinho? e meu pau, cadê? não me enrola, mamãe, me dá logo esse pau. que merda! era tudo sobre o princípio. mamãe me negava um cacete porque tinha medo que eu ficasse abusada demais. imagina eu por aí, desfilando de pau duro. colocando o caule entre as flores. sendo tronco de árvore genealógica. galho de jabuticabeira. quero nem pensar se fosse um cassetete amarrado na cintura. não que eu não fosse puta. só gostava de um cu. diabético.
Imagem: Ulrike Biets
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O olho por Maria Luiza Chacon quero estar /à beira do rio/ que cai /dos teus olhos — Sinhá Teu nome Esclerótica, chego perto toco o teu nome que também é membrana parte corpo o nome que é Coroide ou Esclerótica ou imagino as imagens de dentro penso em qual local estão armazenadas e sei que no olho está teu cofre ou rio, Esclerótica, Coroide, acima do nariz esse teu nariz aquilino circuncisões do teu rosto teu olho me olha sério no horto ou no teu olho sério está também minha solidão a inaugurante a original a primeira entre as solidões a progenitora a matriarca a patriarca também mas a matriarca principalmente a de que da água veio o mundo todo redondo e bom com criaturas terrestres e marinhas que antes eram terrestres teu olho Horto das Oliveiras tu Esclerótica, Coroide tu te sendo ao avesso teu olho sério que depois sorri para mim porque pisca ou lacrimeja ou mostra para mim o que olhar porque teu olho antes de olho foi ancestral dedo indicador de Adão e tu Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea apontavas para que eu visse cores as cores adensando minha visão a minha mão queixosa e sempre disposta a mais receber do que dar ou a minha mão branca erguida sendo um pedaço de cor para cima depois dizem que cão só vê em preto-e-branco Esclerótica, Coroide, minha Mácula Lútea queria ver que nem cão depois ladrar porque vi ou ladrar porque nunca ladrei chego perto de ti teu cofre ou rio ou planta carnívora está mais perto de mim agora mas não sei embora desconfie que haverá o dia entre todos os dias em que recostarei um dos meus dedos sobre o teu olho ou teu horto e tu Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea irá fulgurar todas as espécimes florestais evocando primeiro planta carnívora meu dedo no teu olho fecho teu olho mas fecho o teu olho com o meu dedo-cadeado dentro e primeiro teu olho que antes de ser olho foi dedo indicador vai engolir meu dedo e vai doer ou eu vou dormir acidentalmente com o dedo no teu olho que antes era dedo indicador e vou dormir o sono que não permite que eu sinta dor um sono entre tantos outros um sono-hanseníase e teu olho que antes era dedo indicador vai absorver cada um dos meus dedos até que resulte em minha mão e minha mão dará lugar à sua grandiosa fome ficarei sem uma das mãos o ato de escrever será mais árduo e escreverei com a boca porque vi outro dia uma mulher que pintava com a boca ou vou encostar o topo de minha cabeça no teu olho Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea para que teu olho me degluta inteira em ritual antropofágico teu olho teu dedo indicador teu olho tu Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea estrutura de músculo e líquido irá adquirir de mim as particularidades a minha força trapezista em que inscrevo minhas acrobacias lanço-me aérea e compenetrada para de cócoras chorar e chorar depois no camarim era trapezista e esquecida e tinha segredos que coexistem detrás dos teus olhos no teu cofre aquele que desejo ter nas mãos que mais recebem do que dão que desejo tatear até compreender as formas exatas de um segredo suas depressões planícies e montanhas e teu olho Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea, Nervo Óptico vai sair de órbita vai pular para fora passarei lâmina no teu olho como personagem de Buñuel e Dali para que teu olho cortado e gelatinoso ceda espaço para minha mão inquiridora e preta-e-
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branca para uma cão vou costurar teu olho depois para que ele remende vou deixar um talho no teu olho vou roubar de ti Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea, Nervo Óptico, Humor Vítreo o teu cheiro de maresia e teu marulho teu olho oco verá mas não registrará então esquecimento precederá esquecimento teu olho irá se comover mas não chorará vou arrancar teus dutos lacrimais vou te deixar ausente feito um deserto vou tirar de ti as intumescências vou tirar de ti as estruturas delgadas porque Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea, Nervo Óptico, Humor Vítreo eu pego nas mãos atiro contra o chão e estilhaço em incontáveis pedaços teu Humor tão fácil de destruir e de refazer em remendo mal feito colhendo os cacos grudando-os com merdas do olho do teu cu ou minha mão mais adepta a receber do que dar pretendia acarinhar teu olho que foi dedo indicador ou osso ou gente mas por fortuito te converteu em deserto Esclerótica, Coroide, Mácula Lútea, Nervo Óptico, Humor Vítreo, etc etc para que a solidão se insinue primeiro e depois o olho
Imagem: Frame de Um Cão Andaluz
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O trabalho do escritor por Marcelino Freire Como eu faço para publicar o meu livro? E para sair no jornal, como é que é? Para conseguir uma resenha? Você tem como me passar os contatos? E como entro para o grupo de vocês? Vocês ainda se reúnem na Vila Madalena? Você acha que vale a pena contratar um assessor de imprensa? Você me ajuda nesta? E as festas literárias, como participar? Você, por acaso, tem uma lista de feiras? Contatos no interior? Vejo que você viaja muito. Pelo Brasil e pelo exterior. Tem como, assim, indicar o meu trabalho? Eu gosto de falar. E contar umas piadas. Juro que não irei decepcionar. Posso até pagar os custos da viagem. E, olha, estou aqui para o que você precisar. Sem favorecimento. Nem camaradagem. Tem como você me convidar para o evento que você, todo ano, organiza? Só o fato de estar lá ajudará a espalhar a minha literatura. Você leu o que te mandei, não leu? O que achou? Eu gostaria de uma orelha sua. Pode ser? Um nome ajuda na hora de os jornalistas receberem a obra na redação. E os prêmios literários? Fala. Como eu faço para ganhar um? Você já foi premiado, não foi? Merecido, com certeza. Ainda não li o que você escreve. Mas juro que eu lerei um dia. Admiro sua prosa, sua poesia. Hoje, dia primeiro de maio, Dia do Trabalhador, me lembrei de você. E falei assim para mim: vou escrever um e-mail para ele. Quem sabe ele não me tira deste marasmo? Desta preguiça. Todo escritor é mesmo desse jeito, é ou não é? Estou no caminho certo, não estou? Só preciso de sua força. E um pouco do seu suor. No aguardo de sua resposta. E com o abraço do seu eterno admirador.
Imagem: Reprodução
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Sarah por Noemi Jaffe pense numa combinação absurda: uma pessoa que, por gostar de caravelas brasileiras, vai estudar literatura portuguesa em glasgow, a cidade europeia que tem a maior tradição na construção de navios de grande porte. ela se apaixona tanto pelas caravelas e pelo português, que vai morar nos açores, para aprender a língua. de lá, ela vem para o brasil. mas, uma vez aqui, não quer visitar são paulo, o rio de janeiro, nada. só abrolhos e itacaré. ela fica em itacaré, onde abre um sebo e faz traduções. ela gosta de barcos, literatura brasileira e de surf. e tem mais uma coisa: ela existe e se chama sarah. faz poesia em português e nós duas, no porto de salvador, vimos um navio vindo de hamburgo com grandes contêineres que pareciam livros numa biblioteca gigante. eles carregavam carros ou creme hidratante ou lentes de aumento ou panoramas da literatura brasileira. não sabemos. mas um desses contêineres iria cair no mar e, daqui a cem mil anos, um pesquisador vai encontrar esses panoramas da literatura brasileira e só ele saberá, inutilmente, que ela estava prestes a salvar o mundo, mas que o mundo não quis ser salvo
Imagem: Dino Vall
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Homossexualismo por Patricia Chmielewski E aí sim, viveram felizes para sempre. Mas pra mim foi um choque. Ainda estou me recuperando. Nunca pensei. Punha minha mão no fogo. Pra mim é uma surpresa. Mas sabe que não parece? Vocês têm certeza? Não tem a menor pinta. Eu sempre desconfiei. Olha, nos dias de hoje. Não dá pra confiar em mais ninguém. Acho moderno. Que coragem, hein? Cada um sabe o que faz da vida. Deus tá vendo. Mas nessa idade? Depois de velho é fogo. Entre quatro paredes vale tudo. A homossexualidade é a atração sexual entre indivíduos do mesmo sexo. É um ato contrário à lei natural. Fecham o ato sexual ao Dom da vida, que nos é dado com a finalidade de gerar filhos. Ah, vale pela experiência, não é mesmo? Quem nunca... Será que dói? Às vezes é intriga da oposição. Mas você viu? Isso pra mim é inveja. Nunca tive vontade. Ah, por curiosidade talvez. Só pra ver qualé. Aposto que ele estava só tirando uma onda. É um fanfarrão mesmo. Pessoas que nascem com a tendência ao homossexualismo têm pela frente uma grande provação. Devem ser acolhidas com respeito, compaixão e sem discriminação. Tais pessoas também são chamadas a realizar a vontade de Deus e se forem cristãos devem unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição. Pra ver o que o álcool faz com a pessoa. Foi aposta. Perdeu no truco. Pra mim ele andava envolvido com drogas. Estava fora de si, com certeza. Vi com esses olhos que a terra há de comer. Parece que a coisa é séria. Esse povo fala muito mesmo. Deixa o cara. Vai cuidar da sua vida. A intimidade dos outros não me diz respeito. Estava escuro na hora. Acho que ele se confundiu. Foda é que nem parece. Olhando ninguém diz. Até que é bem feminina. Não tem gogó nem nada. Belos seios. É bem bonitinha. Parece mulher de família. Ah, é modo de dizer, né? Dá pra perder meia horinha. Quem será que come quem? Ah, tem um jeito de esconder jogando pra trás, com fita. Pra mim essa fanta é uva. Tá mesmo é mordendo uma fronha. Dizem que estão apaixonados. Quero ver passear de mão dada no shopping. Deus castiga. Sodomitas. Não tenho nada contra, só não faria. Acho que é doença. Filho meu não faz essas coisas. É de pequeno que se torce o pepino. Gente, fala sério, qual é o problema? Vocês são tão antiquados. Vão cuidar dos seus rabos. Quem tem, tem medo. Aqui não entra nada não. Só sai. Acho que o pior é pros pais. No trabalho já estão comentando. O porteiro parou de cumprimentar. Aposto que não é de hoje. Ele disse que foi um acidente. Esse aí senta. Está colhendo o que plantou. Dizem que vai ser afastado do cargo. Isso é coisa de artista. Acho que foi armação. Sujeira da braba. Eu é que não queria estar no lugar dele. Vai, qualquer um confundiria. Isso é coisa do demônio. Refestelou-se, com certeza. Já estava lá mesmo. E eu no lugar dele teria feito o mesmo. Só pra não perder a viagem. Que pouca vergonha, minha gente! Todo mundo sabe que quando um não quer, dois não brigam. Mas até que faz sentido. Acho que ele está mais leve assim. É uma questão de tempo. Eu sabia que uma hora isso ia dar merda. Dá pra ver o brilho no olhar. Não dá pra se esconder a vida inteira. Podia ficar sem essa. Acho que já vai tarde. Era meio afeminado mesmo.
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Aleluia, hein? Finalmente. Nunca é tarde pra recomeçar. O importante é o que a gente tem por dentro. Será que é hereditário? Agora ele vai sair na rua de vestido também? Dizem que a namorada não liga. A família nunca vai aceitar. Pouca vergonha. A que ponto chegamos. Maior de idade, vacinado, faz o que quer. Acho que se ele está feliz assim, ninguém tem nada a ver com isso. A alternativa é clara. Ou o homem comanda as suas paixões e alcança a paz. Ou se deixa dominar e aceita ser infeliz por toda a eternidade. Se opinião fosse cu, ninguém dava.
Imagem: Divulgação
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Independência é morte? por Priscila Merizzio Muitas revistas e jornais literários digitais ou impressos sem fins lucrativos procuram fazer um excelente trabalho aos leitores, artistas, pesquisadores e outros participantes, como jornalistas, entrevistados etc. Quando se diz “sem fins lucrativos”, pensa-se também nas publicações cuja anuidade ou valor por exemplar servem apenas para cobrir os custos de produção e serviço de correios. Um bom número de publicações independentes que hoje realmente fazem um trabalho relevante à cultura artística do país (englobando qualidade de produção, exigência de forma e conteúdo estético dos convidados) infelizmente não podem bonificar financeiramente seus convidados. Para escrever o presente artigo, pesquisaram-se nomes de editores que desempenham ou já desempenharam grande serviço ao meio literário brasileiro, e pôdese constatar que a maioria mantém ou manteve seus jornais ou revistas à custa do próprio bolso. Concluiu-se que todos os envolvidos nesses meios independentes – colaboradores e corpo editorial – fazem esse trabalho por amor à arte e ao próprio labor. Na cena literária independente, assim como em qualquer outro meio que trabalha com arte e curadoria, é natural que existam níveis diferentes de qualidade de edição, ideais estéticos, sistemas internos de pontualidade e organização. Nem todos têm a chance de terem patrocínio privado ou projetos aprovados em editais, como foi o caso do Jornal Rascunho, fundado e editado pelo jornalista e escritor Rogério Pereira, que após 15 anos sendo mantido com a ajuda financeira do editor, ano passado teve auxílio da Lei Rouanet e nesse ano poderá talvez, finalmente, conseguir manter-se através das anuidades de assinatura e auxílio dos patrocinadores. O Rascunho, que tem 60 colaboradores e presta grande serviço à literatura nacional, estando entre as melhores e mais procuradas publicações pelos amantes das letras e escritores delas, está tentando novamente a Lei Rouanet para 2015. Por outro lado, nem todos os editores querem ser patrocinados. É o caso de Lima Trindade, mestre em Literatura e editor-chefe da Verbo21, criada por ele e por Wilton Rossi, que dividiu a função de edição com Lima até 2001. Após 15 anos, a revista parou suas atividades em abril de 2014. Sem fins lucrativos, com domínio próprio e ISSN a revista contava com a colaboração de escritores, artistas e pesquisadores. À curadoria e edição, feitas por Lima, via-se o apuro nos conteúdos mensais. Segundo o editor, Verbo21 teve papel importantíssimo à literatura nacional e contou com a colaboração de autores estrangeiros e brasileiros, tanto nos textos literários como na seção de entrevistas. Foi uma revista de carreira independente. Os custos de sua manutenção eram todos de Lima, que nunca aceitou patrocínios, pois se pautava na filosofia do “Do it yourself” para não submeter-se à aprovação de terceiros e ter liberdade plena de ação e poderes. Os colaboradores participavam por acreditar na relevância de serem publicados. Segundo Lima, “a escolha de um meio independente traduz a busca de uma completa autonomia, uma não submissão ao status quo, uma não adequação ao sistema de produção artística e cultural que só enxerga valor no dinheiro. Nosso produto era o valor simbólico. O poder da palavra e a capacidade de provocar a reflexão em favor de uma maior criticidade”. As publicações literárias independentes são importantes para além do discurso passional. Com a autonomia que a internet dá aos artistas, hoje é possível a qualquer um lançar sua própria revista ou jornal digital sem dispor custos financeiros de impressão. Isso significa que artistas que não se sentem incluídos em determinados espaços que reúnem pequenos poderes e benefícios, seja por não terem sido aceitos ou por não concordarem com as políticas internas de tais, estes têm a chance de fazerem florescer sua própria voz. Quando se fala sobre serviço intelectual fica difícil estimar preços. Há muito tempo escritores discutem entre si e politicamente sobre receberem ou não cachê por seus trabalhos, sobretudo os poetas, que fazem parte de uma classe artística bem rejeitada pela sociedade. É sabido que o gênero escolhido por tais vende menos por, na hora de peitar livros, a massa preferir romances. Alguns escritores vêm questionando que se os organizadores de eventos ou revistas artísticas têm lucros, os convidados também devem ter seu quinhão financeiro. É quase unânime, contudo, que ser artista
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tem mais a ver com liberdade do que com qualquer outra coisa. Por outro lado, é importante alterar a posição ideológica do pêndulo e pensar nas implicações desfavoráveis do cenário independente que, quando em longo prazo, podem tornar-se um tiro no pé que alguns editores e jornalistas dão em si mesmos por trabalharem “de graça” às revistas e jornais culturais. Armando Antenore, jornalista, e durante oito anos editor da extinta revista BRAVO! defende veementemente a ideia de que prestar serviços sem cobrar por eles é desvalorizar os anos de esforço que a classe dos jornalistas empenhou para ser valorizada. Formado na USP e atuando como tal desde a década de 80, Antenore admite ter vivido a fase de ouro do jornalismo brasileiro e que jamais escreveu de graça. No entanto, deixa claro que não condena quem age e pensa diferente dele, inclusive reconhece que há pessoas talentosíssimas trabalhando voluntariamente ao meio independente. E ainda levanta problemáticas cruciais à reflexão do tema. Antes, adverte que não tem uma posição assertiva sobre o assunto. Tem apenas sua posição, e que ela é sempre dubitativa. Segundo ele, “sob a ótica do jornalismo profissional, essas publicações (as independentes) não resolvem o nosso problema. Porque o jornalismo profissional precisa ser remunerado. No capitalismo, uma profissão só existe se for exercida em troca de dinheiro. Se os jornalistas continuarem a trabalhar de graça, ajudarão a tornar a profissão cada vez mais inviável; sem dinheiro, não se vai longe. A questão já transcendeu o jornalismo cultural. Hoje, há vários coletivos em São Paulo que tratam de temas como segurança pública e que funcionam como essas publicações culturais ou coletivos de jornalistas sobre a questão hídrica. A discussão da remuneração é permanente dentro desses coletivos, porque há quem enxergue o jornalismo como militância e quem enxergue como profissão. Os que enxergam como profissão estão parando de colaborar com esses meios. Pessoalmente, eu sempre encarei esses ofícios como profissão. Só escrevo de graça no meu blog. É uma posição pessoal. Faço parte de uma geração imediatamente posterior a da profissionalização do jornalismo e vi o quanto foi duro para os colegas do passado conseguirem melhorar a remuneração e tornar o jornalismo uma profissão mais viável. Então, desde jovem, sempre me posicionei assim. E via isso como uma postura política. Só que, por ironia, a profissão caminhou por outro lado. E houve cada vez mais uma desmobilização dos jornalistas enquanto classe profissional. Eu acho isso um erro e que se é o caso de abraçar uma luta política, que abracemos então a de valorizar a profissão como tal. Lutar para que a sociedade entenda que tudo isso é trabalho. E que esse trabalho merecer ser comprado. David Carr, jornalista do NY Times que morreu recentemente se batia muito nisso. Ele dizia que é preciso financiar o trabalho dos jornalistas. Como financiar é outra história. Porém, entregar os pontos e aceitar que não é mais uma profissão é complicado. Não criticarei quem escreve de graça. Só digo que esse movimento me preocupa porque a profissão não pode ficar reduzida a iniciantes que ainda não precisam se sustentar ou às pessoas que trabalham o dia inteiro em outras coisas e se dedicam ao jornalismo nas horas extras”. Quando a Abril quebrou, em 2013 suspendeu a BRAVO! e deixou a Playboy nas bancas. Fica clara a preferência do país. Quem é que pagaria para ler conteúdo de arte na internet? Discutindo com Antenore, concluímos que na parte que toca as classes menos abastadas não é a questão financeira que pesa, mas a das prioridades e da concepção atual de mundo. Por uma questão cultural, muitas das pessoas mais desfavorecidas sentem-se rejeitadas não porque não podem comprar uma revista de 20 reais, mas um tênis de marca de 200. E quanto aos que têm condição financeira de adquirir livros e revistas, estes preferem investir em outras coisas, como almoços caros, produtos de beleza, roupas de marca, cigarros, bebidas, objetos supérfluos de decoração etc. A desigualdade social do país e a péssima qualidade do ensino público influenciam diretamente na falta de interesse às revistas de arte. E entre as classes mais abastadas existe uma ignorância saliente e prioridades discutíveis. Quando questionado sobre o fato de que se as
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revistas, jornais e editoras independentes se mobilizassem para não publicarem mais não fariam falta alguma e que a massa continuaria suas vidas, Antenore articulou “por que não pode haver gente tentando convencer de que ler um livro ou ir a uma peça pode ser tão importante quanto trocar de tênis todo ano? Você fala em as pessoas não sentirem falta das revistas, porque elas não são essenciais. O que é essencial afinal? 90% do que consumimos não é essencial. Tornou-se essencial por uma questão de marketing”. O jornalista admite que a situação cultural no Brasil é grave, no que diz respeito à falta de valorização das publicações independentes de arte e as implicações negativas disso. Ele acredita que alguma ação coletiva deve ser feita, mas não consegue definir o quê nela. É algo que precisa ser pensado. E completa: “se os jornalistas e mesmo os escritores não se posicionarem seriamente sobre essa questão, abrindo uma discussão na sociedade e dentro do próprio ambiente profissional/sindical a respeito do valor que queremos dar a esse tipo de trabalho (em favor ao meio editorial, ao jornalismo cultural), ninguém o fará por nós. Os patrões não farão. O consumidor não fará. Para o patrão interessa pagar cada vez menos e o consumidor está cada vez mais se habituando à ideia de essas coisas chegarem de graça”. Ainda sobre o mercado independente, existem editoras dando vezes a muitos escritores iniciantes ou mesmo experientes e que têm pouca atenção das maiores, fazendo um trabalho gráfico impecável com pouquíssimo lucro ou nada. Ao contrário, algumas têm altas despesas e se mantêm funcionando por ideologia e por reconhecerem sua importância no mercado editorial. Afinal, alguém precisa dar oportunidade aos artistas que obviamente não teriam chance de serem publicados e divulgados pelas campeãs de vendas. É o caso da editora Cousa (do Espírito Santo), do coletivo Boca Santa, da Boitempo, Conrad, Demônio Negro, Descaminhos (essa aposta em publicações na plataforma KDP, da Amazon), Gato Preto, Lumme, Patuá e da Penalux (estas de São Paulo, SP); Substância (Fortaleza, CE); Beleléu e Confraria do Vento (Rio de Janeiro, RJ); Sol Negro (Natal, RN); Bernúncia, Cultura e Barbárie (ambas de Santa Catarina), Medusa (Curitiba, PR) etc. O meio literário comercial é uma torre de marfim, inacessível à maioria dos escritores. Como observam os próprios editores independentes e críticos, há atualmente no Brasil mais escritores que leitores. Infelizmente o nível de exigência estética do público comum é baixíssimo e escritores preocupados em realizar uma arte de maior qualidade têm pouco espaço em selos comerciais. É claro que existem escritores e poetas de porte considerável sendo publicados pelas grandes editoras – a questão não é somente essa, quando é recomendável nunca generalizar, em nenhum dos lados. E o objetivo do presente artigo não é ater-se a pensamentos de estética literária. Eduardo Lacerda, editor da Patuá, é conhecido pelo trabalho missionário que realiza no Brasil, publicando escritores de todos os cantos, gêneros, classes sociais, raças e estilos. No momento, é a editora independente com maior lançamento de novos autores. Futuramente é bem possível que o serviço que está prestando à literatura independente brasileira seja reconhecido como o divisor de águas, entre o muro que divide as grandes editoras e seus escritores selecionados a dedo dos iniciantes e pouco conhecidos que estão tentando seu lugar ao sol. A maioria dos escritores e poetas disputa entre si o legítimo desejo de terem ascensão nacional na chegada às grandes editoras, que possibilitam contratos mais rentáveis financeiramente, além do prestígio que a equipe de marketing faz aos seus autores publicados, a maior chance de traduções de suas obras e oportunidades de feiras e palestras no país e exterior. No meio desse jogo, às vezes velado, às vezes descarado, nasce a já citada Patuá, cujo editor faz tudo sozinho, inclusive embalar e enviar os livros pelos correios. Até mesmo está conseguindo infiltrar alguns de seus autores publicados nos maiores prêmios nacionais, além de ter a atenção de nomes relevantes ao meio intelectual brasileiro e o respeito de vários artistas. Infelizmente, vende pouquíssimos livros, se não dispõe dos artifícios publicitários das gran-
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des editoras e também ainda não tem condição de oferecer um contrato que beneficie financeiramente o autor, em virtude da própria dificuldade em vender livros. Novamente retornase à discussão tida com Armando Antenore, de que a concepção de mundo impede as pessoas de comprarem livros independentes no lugar de superficialidades. Sobre a cena literária independente em si e em como escritores e poetas podem migrar dela para as editoras maiores ou ficar ululando entre os dois mundos, Ronaldo Bressane, jornalista, escritor, editor e importante divulgador do cenário independente dá seu parecer. Segundo ele, a importância das revistas, jornais e editoras literárias independentes é total. “Sem os indies não há oxigênio na literatura. Respira-se um ar muito viciado no mainstream, pouco afeito ao risco, à ousadia. É muito frequente, inclusive, que os indies virem mainstream, mas que tenham passado por essa fase antes. E os que passam por essa fase antes seguem, mesmo no mainstream, autores desafiadores, provocadores. Veja Marcelino Freire, que editou os próprios livros no começo (hoje na Record). Ou Joca Reiners Terron (hoje na Companhia das Letras), que foi editor da Ciência do Acidente, ou Daniel Galera e Daniel Pellizzari (da Livros do Mal) ou Antonio Xerxenesky (da Não, hoje na ROCCO). Eu comecei editando um site de literatura (a Revista A, entre 1996 e 2000 – foi o primeiro site de literatura do Brasil) e editei quase todos os meus livros de maneira independente, mas hoje também tenho livros editados pela Companhia das Letras e Cosac Naify, e posso dizer: a adrenalina de publicar indie é 100 vezes maior e melhor. Breve vou lançar meu segundo livro de poesia, depois de 13 anos sem publicar, e também será indie, em um esquema de crowdfunding. Autor que fica esperando por editora pra ser descoberto ou ser lido ou meramente ser editado não entendeu nada a ideia de literatura. Deve ser por isso que volta e meia sou assaltado pela vontade de, mais uma vez, editar uma revista indie de literatura”. A Revista A, editada por Bressane, existiu na época anterior à popularidade dos blogs e não existe mais na internet, de tão inicial que foi. “Pena, porque era linda. Fizemos quatro edições, 1997, 1998, 1999 e 2000. Ali lancei nomes como Emilio Fraia, Indigo, Jorge Cardoso, sem falar em muitos artistas e ilustradores hoje no mercadão. Editei meu primeiro livro em 1999, também do começo ao fim – tirei os fotolitos eu mesmo da impressora e os levei à gráfica. Em 1997, quando comecei, só havia o Daniel Pellizzari, a Indigo e o Xico Sá na internet. Já havia um site chamado Não, editado pelo Jorge Furtado em Porto Alegre, que trazia ficções. Em 1998 ou 1999 surgiu um site chamado Blocos, em que o Daniel Galera colaborou. E só em 2001 apareceu o Cardosonline.”
O tema apresentado anteriormente é amplo e repleto de nuances e detalhes importantes. Infelizmente, não foi possível aprofundá-lo da forma como poderia ter sido e nem todas as revistas, jornais e editoras existentes puderam ser citadas. Contudo, registra-se aqui o respeito e admiração por todas as publicações independentes do Brasil e seus editores e colaboradores. E também a todos os escritores e poetas que escrevem com toda a sinceridade e lutam, ao seu modo, para serem melhores como pessoas, artistas e como cidadãos engajados na evolução do país. A seguir, a quem tiver interesse, uma pequena lista de revistas e jornais literários independentes, impressos e digitais: Carcasse, Caros Amigos, Cronópios, Diversos Afins, Ellenismos, Entreverbo, Errática, escamandro, Escritablog, Gente de Palavra, Germina, Mallarmagens, modo de usar & co, Musa Rara, Coyote, RelevO, Sibila, USINA e Zunái. No site Letras Partilhadas, de Lara Souto, existe uma lista generosa de várias revistas acadêmicas brasileiras de reconhecimento nacional e internacional, além de outras publicações de arte.
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Os seios de minha mãe por Valdir Oliveira O quarto onde minha mãe morava comigo acomodava, entre outros objetos, uma cama de casal, um fogão, um armário e um porta-retrato na parede com as fotos de meu avô e da minha avó. No berço onde eu ficava as imagens eram muito além da mera descrição do ambiente. Havia movimento, muito movimento. Desde a mais tenra idade eu vi homens entrarem no quarto meu e da minha mãe. Senhores de diferentes idades, ávidos por raparigas que tivessem, como a minha mãe, beleza rara, semblante de anjo, garbo de estrela. Eles brincavam com ela, eu brincava com o maracá. Mas eles também costumavam, após o gozo, como quem bate o sino da vitória, aproximar-se do berço onde eu estava e também mexer no meu maracá. Ainda distante eu ouvia pés nos degraus da escada andando ao encontro do quarto de primeiro andar onde ficávamos eu e minha mãe. Um homem se aproximou da porta pelo lado de fora, bateu levemente e aguardou. Era Alfredo, um senhor de traços finos, de roupas elegantes, com uma expressão de quem convivia com amarguras e que era em minha mãe onde encontrava refúgio para suas mágoas. Ele demonstrava grande expectativa diante da aproximação da mulher por quem era apaixonado. Alfredo quis beijar minha mãe, mas ela disfarçou pegando na mão dele e o conduzindo para dentro do quarto. Alguns passos e ele soltou a mão dela seguindo em direção ao berço. Olhou para mim, fez uma gracinha e logo caminhou para os braços da minha mãe. Ela pôs a música na radiola e os dois começaram a dançar. Alfredo acariciou as sobrancelhas, as faces, os lábios de minha mãe, já nem sei importando com a minha presença. Instantes depois, com volúpia, desabotoou o vestido que despregou-se do corpo denunciando que minha mãe estava sem calcinha. Tinha no corpo apenas um sutiã vermelho. Eu vi toda a cena. O homem tomou minha mãe nos braços e jogou-a na cama. Em meio às carícias, ela parecia ter consciência da minha presença e por isso, de vez em quando, ficava acanhada. Notei quando puxou o lençol encobrindo parte do seu corpo. Alfredo não se conteve e tentou soltar o sutiã vermelho. Havia um conflito, o movimento deixou-me inquieto. O homem foi mais bruto e tentou arriar o sutiã. Quis beijar os seios de minha mãe, mas a firmeza das palavras afastaram o intruso. — Não. Os seios não. Impossível esquecer aquela cena. Minha mãe disse àquele homem que os seios dela eram meus. Entregou a ele todo seu corpo, menos os seios. Eram meus. Os seios da minha mãe eram só meus. Muitos outros homens de sorrisos desconfiados e cheiro de cachaça entraram no quarto meu e da minha mãe, mesmo quando eu já sabia andar. E eu permanecia no berço, fingindo que nada escutava. Mas escutava. Fernando, um senhor de 40 anos, sorriso desconfiado, traços rudes, avançou sobre ela com a sofreguidão de quem desfruta das intimidades de uma princesa. Mário, um boêmio com cheiro de cachaça e semblante de poeta, entrou no quarto com uma garrafa na mão. Sorriu como um bêbado, transou como um bêbado, amou como um boêmio. Antunes, um senhor de aproximadamente 60 anos, com terno e gravata, deu-lhe uma bíblia de presente antes de levala nos braços até a cama. Lembro quando um desses homens perguntou à minha mãe se havia outros. Meu coração estremeceu e tive vontade de chorar quando ela disse que não. Não porque tivesse outros homens, verdade que eu já assimilava, mas porque ouvi minha mãe mentir. Havia conhecido o rapaz em um parque da cidade e este ficara encantado com o jeito dela. Mostrava-se galante e apaixonado. O rapaz que atendia pelo nome de Crispin, 17 anos apenas, transou com minha mãe. E depois, crente de que fosse o primeiro, sorriu satisfeito. O rapaz tinha a voracidade de quem oferta sua virgindade à primeira mulher de sua vida. Beijou minha mãe, alisou suas coxas, apalpou suas nádegas, tocou a língua em seu umbigo, arriou o sutiã e ameaçou tomar posse dos seios dela. Ouviu um não. Muitos outros homens de sorrisos desconfiados e cheiro de cachaça entraram no quarto meu e da minha mãe, mesmo quando eu já sabia andar. E eu permanecia no berço, fingindo que nada escutava. Mas escutava. Fernando, um senhor de 40 anos, sorriso desconfiado, traços rudes, avançou sobre ela com a sofreguidão de quem desfruta das intimidades de uma princesa. Mário, um
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boêmio com cheiro de cachaça e semblante de poeta, entrou no quarto com uma garrafa na mão. Sorriu como um bêbado, transou como um bêbado, amou como um boêmio. Antunes, um senhor de aproximadamente 60 anos, com terno e gravata, deu-lhe uma bíblia de presente antes de levala nos braços até a cama. Lembro quando um desses homens perguntou à minha mãe se havia outros. Meu coração estremeceu e tive vontade de chorar quando ela disse que não. Não porque tivesse outros homens, verdade que eu já assimilava, mas porque ouvi minha mãe mentir. Havia conhecido o rapaz em um parque da cidade e este ficara encantado com o jeito dela. Mostrava-se galante e apaixonado. O rapaz que atendia pelo nome de Crispin, 17 anos apenas, transou com minha mãe. E depois, crente de que fosse o primeiro, sorriu satisfeito. O rapaz tinha a voracidade de quem oferta sua virgindade à primeira mulher de sua vida. Beijou minha mãe, alisou suas coxas, apalpou suas nádegas, tocou a língua em seu umbigo, arriou o sutiã e ameaçou tomar posse dos seios dela. Ouviu um não. Ela fez amor com Crispin uma, duas, três vezes, mas preservou o que me cabia. — Eram meus. Minha mãe disse àquele moço que os seios dela eram só meus. Entregou a ele todo seu corpo, menos os seios. Eram meus, os seios de minha mãe eram só meus. Hoje já não sei por onde anda minha mãe. Voltei à procura do quarto que eu pensei fosse meu e dela, mas o lugar não existe mais. Fugi quando tinha 15 anos de idade e agora não sei por onde anda minha mãe. Ela também não sabe que, como ela, muitos homens frequentam um quarto que tem um retrato seu na parede. A foto de minha mãe me policia, não nego, mas não posso tirá-la da parede... Minha mãe não sabe da foto, e nem sabe que os homens também não tocam em meus seios. Entrego a eles todo o meu corpo, menos os seios. Como os de minha mãe, os meus seios são só meus. Boêmios, poetas, cachaceiros, homens raparigueiros, todos avistam a foto da minha mãe, mas é a mim que procuram. Entrego a eles todo o meu corpo, menos os seios. São meus, meus seios são só meus.
Imagem: Reprodução
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Sobre os autores Adrienne Myrtes é artista plástica e escritora, já pintou uns quadros e publicou alguns livros, entre eles, o romance Eis o mundo de fora. Acredita que a literatura salva sua vida todos os dias e espera que a humanidade dê seu jeito. Bárbara Nunes vive no Recife, PE, e é professora de espanhol. Publicou os textos “Sambada no samba da criolagem”, “Réplica à Bandeira” e, na coletânea poética Sub21, “Engenharia às cinco horas”. Cleyton Cabral é publicitário, ator, escritor e o Wally no Carnaval de Olinda, PE. Publicou Tempo nublado no céu da boca e assina o blog Cleytudo. Eder Asa é mineiro, ator e nascido em 1994. Não concluiu as graduações que começou nem publicou os livros que idealizou. Escreve poemas, frases fritas e umas cartas para C. Felipe Valério é autor de Hotel trombose e dos miúdos Engula e Filé em tiras. Além de Fórceps, pelo Boca Santa, participou de diversas antologias e está no zine Pito e no coletivo Quitinete. Gerusa Leal é contista e poeta, nascida no Recife. Tem escritos em Panorâmica do Conto em Pernambuco e outras antologias. Publicou, pela Vida Secreta Publicações, Dias feitos de séculos. João Gomes, recifense, de 1996, prepara seu primeiro livro de poemas, Falo enterrado¹ e Precipitações atmosféricas², e enquanto isso dirige todas as criações artísticas e editoriais de Vida Secreta. Patricia Chmielewski é ácida, cínica, irônica, prolixa e asmática. E avessa a adjetivos. Responde O processo em liberdade condicional. Você encontra a Japa, às vezes, na Granja, no Resgate, na Tatuagem e sempre deproposito.com/. Maria Luiza Chacon é potiguar, RN, de 1991. Publicou o conto “Por una cabeza” na antologia Granja. É professora, tem dermografismo e escreve às vezes na pele ou no papel. Noemi Jaffe é escritora, professora, crítica literária no jornal Folha de São Paulo. Publicou, entre outros, A verdadeira história do alfabeto e recentemente, Iriz: as orquídeas. Marcelino Freire publicou, entre outros, Contos negreiros, Nossos ossos e, pela Vida Secreta Publicações, Poeminhas tamanho p. Criador da Balada Literária, que acontece em SP, onde reside. Priscila Merizzio é curitibana, PR. Editora convidada na Germina, integra o time das Escritoras suicidas e colabora na Zunái. Publicou Minimoabismo e, recentemente, Ardiduras. Valdir Oliveira é jornalista, publicitário e escritor. Autor de roteiros televisionados, de dramaturgias e infanto-juvenis. Publicou, entre outros, Depois do desejo, do qual selecionamos.
[Zoooom Literário] – 27 Valdir Oliveira é jornalista, publicitário e escritor. Autor de roteiros televisionados,
Acontece literário por João Gomes Têresa em êxtase é um poema premiado do pernambucano Aymmar Rodriguéz, heterônimo do jornalista e publicitário Raimundo de Moraes. Nesta edição comemorativa de 30 anos, dentro da coleção Palavras ao tempo, divulgamos mais uma voz que se manteve desde 1986 se publicando de forma independente. Homenageando a conhecida santa Teresa D’Avila, Teresa Sanches de Cepeda y Ahumada, de quem é a epígrafe: “Esta divina prisión/ del amor con que yo vivo/ hecho a Dios mi cautivo/ y libre mi corazón.” Já Aymmar, num monólogo com a voz da santa, escreve: “O meu Cristo/ grita palavrões/ e quando me fode/ eclodem aleluias/ Lambo como hiena/ seu corpo de chagas Mostro a língua/ como naja/ Ardo”, que é apenas um trecho das seis partes que compõem o conciso poema publicado por Vida Secreta Publicações em sua versão integral.
Contemporâneas: Antologia Poética reúne 60 poetas selecionadas pela mineira Adriane Garcia, autora de, entre outros, Enlouquecer é ganhar mil pássaros. “Ela não traz autoras como uma exceção, traz como a regra, e traz em si uma variação. Não é nada diferente do que inúmeras vezes acontece com antologias. É uma variação dentro do que acontece.”, lemos na apresentação. Com uma variedade de estilos, a pintora mexicana Frida Kahlo também marcou presença junto às mulheres que fazem a poesia brasileira hoje. É da qualidade de poemas como o de Norma de Souza Lopes que falamos, entre muitos: “pura que pariu /ser livre /é mais uma besteira /que inventaram para te fazer sofrer / seja aceita minha nêga /seja a seita /fundada por machos /que acham que mulher descoberta /foi feita para se abusar”.
Autores de ficção Publicados em 2014 e 2015 issuu.com/vidasecreta
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